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FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO V MESTRADO EM ESTUDOS AFRICANOS O Senegal nas rotas lusíadas Contributo para o estudo da presença da Língua Portuguesa na África Ocidental a partir do século XV Dissertação apresentada por Maria de Lurdes Pires Gomes Martins Reis Leitão Orientadora: Professora Doutora Elvira Mea Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto 2007

O Senegal nas rotas Lusíadas : contributo para o estudo da presença da língua portuguesa na África Ocidental a partir do século XV

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Maria Leitão - O Senegal nas rotas Lusíadas : contributo para o estudo da presença da língua portuguesa na África Ocidental a partir do século XV- A transposição da língua e da cultura portuguesa para novos lugares foi uma consequência dos Descobrimentos. Este estudo incide sobre as marcas da presença portuguesa na África ocidental, nomeadamente no Senegal, onde milhares de jovens estudam o português, tanto no Ensino Secundário como no Superior. Contudo, a comunidade portuguesa é muito pequena. A autora, que foi leitora na Universidade Cheikh Anta Diop, fez um levantamento sobre o ensino do português para a embaixada em Dacar e recorreu a um inquérito para investigar não só as motivações específicas dos estudantes mas também outros aspectos da cultura senegalesa, e a sua relação com a presença portuguesa. analisou ainda relatos da época, documentos históricos e bibliografia diversa para avaliar o impacto das expedições marítimas portuguesas nestes territórios e as suas repercussões até aos nossos dias.

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FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO

V MESTRADO EM ESTUDOS AFRICANOS

O Senegal nas rotas lusíadas Contributo para o estudo da presença da Língua Portuguesa na África Ocidental a partir do século XV Dissertação apresentada por

Maria de Lurdes Pires Gomes Martins Reis Leitão

Orientadora:

Professora Doutora Elvira Mea Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto

2007

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INTRODUÇÃO

“… e o que se mostrava no mapa mundy, quanto ao desta costa, nom era

verdade, ca o nom pintavam senom a aventura; mas esto que agora he posto nas cartas,

foe cousa vista por olho, segundo já tendes ouvido”

Gomes Eanes de Zurara1

A partir da Literatura de Viagens2 sobre os Descobrimentos Portugueses na

Costa Ocidental de África, tentamos conhecer melhor as movimentações dos

navegadores portugueses naqueles novos lugares e o relacionamento que estabeleceram

com povos tão diferentes cuja existência se desconhecia. Todos os temas abordados, as

referências feitas por esses viajantes, testemunhas oculares da época, podem ser pistas

para compreender os povos africanos, os seus modos de vida, os seus interesses, as suas

acções, porque falam “de cousa vista por olho”3. Por outro lado, aspectos da geografia

dos lugares descritos podem também contribuir para explicar comportamentos e

acrescentar dados para a construção da História desses povos; é a face visível que

consideramos assemelhar-se à da época pré-colonial e pós-colonial, e que poderá ajudar

a explicar movimentos dos grupos e dos reinos que ali viviam. Gostaríamos de

contribuir, principalmente através de textos ou registos dos portugueses da época das

Descobertas, para trazer não só conhecimento sobre as realidades observadas pelos

portugueses, verificar como foram interpretadas por eles, mas também identificar

condicionalismos da natureza sobre a acção do homem, investigar sobre os reinos

africanos existentes, procurar compreender as vivências e as acções humanas, num

espaço muito extenso, com características geográficas e especificidades climáticas

muito distintas das da Europa. Por isso, é importante também descobrir a humanidade

africana, os seus modos de vida, os seus contactos, as suas mudanças e os seus

interesses, as marcas culturais que deixaram, e eventualmente, identificar aspectos

culturais que permaneceram até aos nossos dias e que os exploradores portugueses

teriam encontrado. 1 G. E. de ZURARA (1453); vide ZURARA, Gomes Eanes de, Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné (Introdução pelo Visconde de Santarém), publicada por J. P. Aillaud, Paris, 1841, Cap. LXXVIII, “Das legoas que estas caravellas do Iffante forom a allem do cabo, e doutras cousas místicas”, pp. 371-372 2 Ao longo deste estudo, e como fizemos na nota supra, a indicação de um autor seguida de data constitui uma referência à data de produção do referido texto 3 G. E. de ZURARA (1453); Op. Cit., Cap. LXXVIII, pp. 371-372

2

Neste sentido, procuramos dados sobre a relação destes povos com os

portugueses e com a Língua Portuguesa. Queremos recolher vestígios do passado que

possam explicar o interesse crescente do Senegal e dos senegaleses pela Cultura e

Língua Portuguesas, na actualidade. Esse interesse terá origem nas memórias de um

passado remoto? Terá outras causas, na época presente? Ou haverá uma confluência das

consequências do passado e dos interesses actuais do país?

Com o nosso estudo, pretendemos captar principalmente elementos que se

relacionem com os territórios do Senegal e a zona circundante que faz fronteira com a

Gâmbia, a Mauritânia, o Mali, a Guiné-Bissau e a República da Guiné (Conacri),

embora não existisse esta divisão territorial em países, nem quando os portugueses

descobriram o continente africano nem mais tarde. Ou seja, na nossa análise sobre o

passado, devemos integrar os dados no contexto de toda a África Ocidental (Guiné, no

século XV).

Depois da Conferência de Berlim de 1884, a organização do território criou

contextos e perspectivas específicas. Ainda assim, hoje, como há quinhentos anos, esta

região apresenta determinados traços geográficos e culturais que devem ser realçados

para compreender como foi condicionada pela natureza a fixação de múltiplos grupos

humanos, com características muito específicas nos seus modos de vida, e conhecer

também os interesses e as necessidades que moveram as suas acções ao longo dos

tempos, antes e depois da colonização.

O Senegal é um Estado no litoral do Oeste africano. Com uma superfície de

196722 km²; o seu relevo é plano e pouco elevado. Muitos planaltos se estendem a

perder de vista, mas as altitudes são sempre inferiores a 130 metros. Perto da fronteira

da Guiné, no Sudeste, encontra-se o ponto mais elevado do país, nas montanhas do

Fouta Djalon (581m). No Noroeste, os planaltos ultrapassam ligeiramente os 100 metros

e a sua altitude baixa progressivamente de Leste para Oeste, não ultrapassando os 20

metros no Ferlo ocidental, no Siné-Saloum e na Casamansa. Também se encontram

dunas fixas que se estendem na região de Cayor e de Jalofo. Devido à escassez e à

irregularidade das chuvas, o Senegal é atingido frequentemente por períodos de seca

que provocam consequências dramáticas sobre o equilíbrio ecológico e sobre as

actividades humanas. O clima, a exploração agrícola contínua e as más escolhas de

produtos a cultivar causaram uma grave erosão dos solos, já de si pouco variados,

excepto na região de Dacar, no litoral. Predominam os solos arenosos, mais fáceis de

trabalhar, e os solos argilosos, mais compactos e mais difíceis de cultivar.

3

O rio Senegal estende-se ao longo de 1700 km, do Fouta Djalon, na República

da Guiné (Conacri), a Saint-Louis, percorrendo o território senegalês de Sul a Norte e

delimitando as fronteiras deste com o Mali e a Mauritânia. Este rio foi ocupado pelo

mar há 5500 anos, construindo um delta ao longo dos tempos, cujas correntes fluviais

são constituídas por areia muito fina com solos muito salgados, a Oeste de Richard Toll.

Este rio favoreceu a penetração colonial no Sudão, sendo hoje factor de

desenvolvimento e de integração regional, possuindo um vasto potencial de

aproveitamento agrícola, através dos projectos de irrigação desenvolvidos pela

Organização para a Valorização do Rio Senegal, na qual participam a República da

Guiné (Conacri), a Mauritânia, o Mali e o Senegal. É corrente4 dizer-se que o nome do

país provém da expressão “sunugal”que significa “a minha piroga”; isso explica a

importância atribuída ao rio que se transfere para a designação do próprio país.

No Senegal correm ainda outros três rios importantes: o Casamansa, o Gâmbia e

o Saloum. As regiões da Casamansa e do Siné-Saloum, nomes que advêm dos rios que

as atravessam, são regularmente submersas pelas marés. A Gâmbia é um pequeno

Estado de 11295 km², um enclave no território senegalês que acompanha o rio do

mesmo nome, não tendo nenhuma das suas margens mais de 30 km de largura.

A península do Cabo Verde apresenta um relevo de colinas e de planaltos, com

solos pedregosos; ao longo da costa Norte, encontram-se dunas litorais que isolaram os

lagos, testemunhos da última submersão marítima. Esta área apresenta um relevo

vulcânico: os montes das Mamelles elevam-se em Dacar a 105 metros de altitude e são

o que resta de um planalto antigo de origem vulcânica. Os pequenos planaltos do Cabo

Manuel, em Dacar, e da ilha de Goreé constituem-se de lavas e todos estes relevos

formam uma costa rochosa. As costas Sul e Oeste da península são, aliás, geralmente

acidentadas, com falésias.

Referimos ainda, pela proximidade geográfica, a existência do rio Níger.

Verdadeira espinha dorsal do território maliano, tem suscitado muito interesse dos

geógrafos e dos historiadores. Os mistérios ligados à orientação, à nascente, ao estuário

e às cidades próximas do maior rio da África ocidental (4200 km desde a nascente, na

República da Guiné, até à foz na Nigéria) só foram esclarecidos por vários exploradores

4 A. D. BOILAT (1853); vide BOILAT, Abbé David, Esquisses Sénégalaises, Karthala, Paris, 1984. Esta ideia, profundamente enraizada, é, ainda assim, contestada por autores como Etienne Smith; vide SMITH, Etienne, “La nation «par le côté» - le récit des cousinages au Sénégal", in Cahiers d’études africaines, parentés, plaisanteries et politique, 184, Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, 2006

4

nos séculos XVIII e XIX. Este rio é parcialmente navegável em território maliano,

especialmente no delta interior que se forma a partir de Ségou. O delta vivo cobre uma

superfície de 30000km² e estende-se numa imensa planície com os seus múltiplos

braços que formam um mar interior. As águas do Níger alimentam numerosos lagos,

fazendo a ligação entre a zona de savana e a desértica. Sendo fonte de vida para

numerosos pastores e agricultores, este rio testemunha a presença de civilizações e de

impérios africanos. Ainda no Mali, encontramos o deserto do Sara que cobre metade da

superfície do país, a Norte de Tombuctu e de Gao. As dunas dominam. Só alguns oásis

e poços escavados pelo homem permitem aos raros habitantes viver ali da pastorícia e

do comércio do sal. Os dias tórridos, as noites frias e as tempestades de areia tornam a

vida quase impossível no deserto.

Mas é na Mauritânia que se sente a omnipresença desta força poderosa do

deserto do Sara, como se fosse um grande oceano de areia. Neste país de 1030700km², o

único curso de água importante é o Senegal que, por esse motivo, é simplesmente

chamado “o rio”. Toda a produção agrícola se concentra na orla do rio que, no final do

“hivernage”, a estação das chuvas, chega a atingir 20 km de largura perto do seu

estuário. Na estação seca, o rio encontra-se abaixo do nível do oceano e este último tem

tendência a penetrar profundamente no interior das terras. O rigor extremo do clima

desértico é temperado apenas no Sul, durante a estação das chuvas, e na orla costeira. A

Mauritânia é pois, naturalmente, um país com baixa densidade populacional,

praticamente nula a Leste de Nouakchott.

Ao longo dos tempos, a situação de finisterra do Senegal terá proporcionado a

fixação de vários grupos humanos e de vagas migratórias sucessivas de povos, de

origens diversas, vindos principalmente do Norte e do Leste. No rio Senegal terão

passado os mais antigos e importantes fluxos migratórios da sub-região: grupos negros

do Sara, outros mestiços berberes que terão fugido para o Sul mais húmido e populações

sudanesas autóctones ou vindas do Leste. Estes encontros dariam azo a conflitos e ter-

se-iam constituído grupos, até compor a originalidade étnica senegalesa actual.

Contudo, a informação histórica sobre a África Ocidental e sobre os territórios

do Senegal é, em geral, escassa e encontra-se muito dispersa. Por outro lado, as relações

culturais entre Portugal e o Senegal também não têm sido muito visíveis. É frequente

encontrar entre os senegaleses (povo, estudantes e professores) pouca informação, ou

ideias infundadas, e expectativas irrealistas relativamente aos portugueses e a Portugal.

Visto como um dos países da Europa, Portugal é considerado pelos senegaleses como

5

um país onde se vive bem. Se se falar do passado, por um lado pensam erradamente, por

exemplo, que os portugueses foram os responsáveis pelo início da escravatura em

África; por outro lado tendem a valorizar demorada e excessivamente certas

ocorrências, causas e consequências da Guerra Colonial nos países lusófonos africanos.

Generalizaram ideias sobre esses contextos, expressas demasiadas vezes, sem

fundamento e sem contexto ou tempo definidos, causando-nos alguma estranheza por

reflectirem um certo desconhecimento de realidades portuguesas do presente e do

passado. Ao mesmo tempo, os senegaleses manifestam surpreendentemente enormes

simpatias pelos Portugueses, reconhecem com frequência os falantes de Língua

Portuguesa e vêem Portugal, ou a Europa, como um paraíso dourado, para onde muitos

desejam emigrar em busca de melhores condições de vida.

De facto, o contacto directo com este povo, durante alguns anos, permitiu-nos

identificar não só indícios de uma enorme falta de informação sobre a História e a

Cultura portuguesas, mas sobretudo um interesse particular pela Língua Portuguesa e,

em geral, uma afabilidade inesperada para com os portugueses. Desde logo, esse

convívio proporcionou-nos uma reflexão privilegiada sobre a presença e as marcas

portuguesas que possam permanecer neste povo, independentemente da sobreposição da

influência francófona. Foi crescendo a nossa curiosidade sobre várias constatações e

evoluímos para um interesse mais sério com o objectivo de responder às nossas

questões, dúvidas e perplexidades, neste domínio da influência portuguesa sobre a

cultura senegalesa. Por conseguinte, julgamos ser de grande importância aprofundarmos

o nosso conhecimento sobre o Senegal, com pesquisas e dados históricos sobre assuntos

acerca dos quais existe, por vezes, uma certa visão distorcida ou mesmo falsa, que paira

sobre o o passado e o presente português nestes espaços. Até porque novos dados

poderão levar-nos a descobrir ligações importantes, desejáveis e úteis para o futuro da

difusão da Língua e da Cultura Portuguesas no Senegal.

Na verdade, o que nos causou maior admiração foi, sem dúvida, o interesse

crescente pela Língua Portuguesa no Senegal. Surgiam-nos impressões contraditórias

sobre os objectivos a alcançar com a instituição do ensino do Português. Que

motivações teriam os estudantes que frequentam os Cursos de Português da

Universidade Cheikh Anta Diop, em Dacar? Por isso, inquirimos os estudantes, e os

resultados desse processo foram clarificadores, em alguns pontos, sobre as

características actuais da cultura senegalesa. Ao mesmo tempo, encontrámos respostas

objectivas sobre a ligação dos senegaleses à Cultura e à Língua Portuguesas.

6

1. A LÍNGUA PORTUGUESA COMO INSTRUMENTO PARA A

CONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA DE ÁFRICA: O CASO DO SENEGAL

O passado de África continua a suscitar a curiosidade de muitos estudiosos. Ao

longo dos tempos, os mistérios que envolvem este continente têm despertado interesses

múltiplos e até divergentes. Após as Descobertas dos portugueses, outros europeus se

deslocaram para esses mesmos lugares, seguindo os passos dos primeiros navegadores

que passaram por aqueles mares, querendo obter as famosas riquezas ali existentes. Por

que razão os interesses de vários países europeus coincidiriam, ao mesmo tempo, nos

mesmos lugares até então desconhecidos? Foi talvez um momento de grande euforia

quando se soube que, no continente africano (à época, designado por Etiópia, sob a

influência dos estudiosos da Antiguidade Clássica), tinham sido encontradas as riquezas

e as rotas do ouro de que se falava na Europa.

Por um lado, a África pré-colonial carece de documentos escritos que nos

transmitam informações e testemunhos da época. Não foram ainda identificadas as

fontes concretas, escritas ou outras, que teriam apoiado as expedições lusas no século

XV. Os conhecimentos anteriores seriam insuficientes para orientar os navegadores para

as regiões posteriormente descobertas pelos portugueses porque não se fundamentavam

num conhecimento adquirido pela experiência, que trouxe a “clara certidom da verdade”

(Fernão Lopes), sendo “a madre de todas as cousas”5 (Duarte Pacheco Pereira). De

acordo com a História, e entre muitos autores que desenvolvem esta ideia, Óscar Lopes

apresenta uma explicação fundamentada e especialmente minuciosa para o sentido da

aventura portuguesa quatrocentista:

5 ALBUQUERQUE, Luís de, Introdução à História dos Descobrimentos Portugueses, Col. Fórum da História, Publicações Europa-América, 5ª ed., Mem-Martins, 2001, pp. 292, ”Não é menos importante salientar que a prática de uma navegação astronómica, bem como a necessidade de serem observadas as condições físicas da atmosfera e dos mares ajudou a criar o clima propício para o surto de um experimentalismo que veio a dar no decurso do século XVI alguns dos frutos mais sazonados da ciência portuguesa. Nem sempre a invocação da experiência na pena de Duarte Pacheco Pereira exprimirá já um convívio interrogador com os fenómenos do mundo físico, se bem que nalguns passos inegavelmente o acuse; meio século antes, Azurara empregava expressões idênticas a algumas das usadas no Esmeraldo de situ orbis, mas num sentido simplesmente literário. (…) ou quando D. João de Castro procurava uma explicação para a anomalia que notara no desvio da agulha e afastava uma peça de artilharia que lhe estava próxima que supôs ser (e era) a responsável pelo caso, ou , ainda, quando este mesmo navegador mandava lançar fardos de palha às águas da foz de um rio para assim reconhecer a orientação das correntes superficiais nelas criadas, é irrecusável que estavam a considerar a experiência como “madre de todas as coisas” (palavras de Duarte Pacheco Pereira), num sentido positivo, e não retórico.”

7

“…diz respeito a uma importante conotação que liga a palavra experiência à

palavra perigo, que parece não lhe ser etimologicamente afim mas que o é do ponto de

vista paragramático e conotativo, e isto já em latim: um saber de experiência feito não

é simplesmente aquilo a que Bertrand Russell deu a designação inglesa de knowledge

by acquaintance. A experiência relacionada com a prática náutica quatrocentista já se

não reduz a uma sedimentação passiva: o ver claramente visto que encontraremos

enfatizado em Camões não constitui um simples ver (…) trata-se do saber resultante de

um risco (perigo) que se correu, sob as condições de uma metodologia náutica,

cosmográfica e cartográfica afinal tão complexa como a metodologia de um

laboratório de experimentação mecânica.”6

Fomos investigar, procurando apoio em conhecimentos de vários documentos,

narrativas, roteiros e literatura de viagens, em estudos e dados da Literatura, também da

Geografia, da Economia e da História.

É nosso desejo recorrer, sempre que possível, a documentos escritos em Língua

Portuguesa, como contributo para a construção da História de África, para estudar e

avaliar a influência dos portugueses e da Língua Portuguesa nos povos que viviam na

África Ocidental, com quem os navegadores contactaram pela primeira vez. Interessam-

nos especialmente os territórios e os nativos do actual Senegal, como vimos. Assim, no

que diz respeito a Portugal, o nosso interesse incide principalmente sobre o momento e

a época em que o Estado Português empreendeu assumidamente viagens de

Descobrimentos, no século XV, ou seja, a partir de 1415, data oficial do início destas

aventuras marítimas. Mas incide igualmente sobre a permanência de portugueses nesses

territórios ao longo dos séculos, assistindo às várias evoluções que foram ocorrendo

junto dos indígenas e a relação de continuidade dos portugueses com África.

De acordo com um estudo de História Moderna7, as fontes documentais escritas

em Língua Portuguesa, sobre as Viagens do Senegal à Serra Leoa (1453-1508), na

primeira fase das Descobertas, são as seguintes:

- Crónica dos Feitos da Guiné, de Gomes Eanes de Zurara (1453-1460?);

- Este liuto he de rotear…, de um português anónimo (1480-1485?);

6 LOPES, Óscar, A busca de sentido, Questões de Literatura Portuguesa, Ed. Caminho, Lisboa, 1994, pp. 31 7 HORTA, José da Silva, “A Representação do Africano na Literatura de Viagens, do Senegal à Serra Leoa (1453-1508)”, in “Mare Liberum”, nº 2, 1991

8

- “…certos capítulos das prouincias do titulo real…”, de Valentim Fernandes

(1502);

- Da viagem de Dom Francisco viso rey…, de Mayr /Valentim Fernandes (1505-

1506);

- Crónica da Guiné [versão da], de Valentim Fernandes (1506);

- Descripçam de Cepta por sua costa…, de Valentim Fernandes (1506-1507);

- Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira (1505-1508).

Destes textos, apenas três tiveram um redactor português que coincide com o

autor: Gomes Eanes de Zurara, Português Anónimo e Duarte Pacheco Pereira.

Não podendo ter acesso a todas estas fontes escritas em Português, quisémos

assegurar, contudo, a informação das fontes mais conhecidas e mais importantes para a

História dos Descobrimentos portugueses, para reunir mais informação, de acordo com

as referências do mesmo estudo. Assim, referem-se ainda os seguintes textos, um escrito

em italiano e os outros dois em Latim, cujos informadores foram portugueses:

- Relação das Viagens de Pedro de Sintra, de um português anónimo e do

italiano Luís de Cadamosto (1463-1465?);

- De prima inuentione Guinee…, de Diogo Gomes de Sintra, escrito em Latim

(1484-1496);

- De inuentione Africae…, do alemão Jerónimo Monetário, escrito em Latim

(1495?).

De todas estas fontes escritas, sobre os Descobrimentos e várias viagens

promovidas pelo Estado Português naquele período de tempo, consultámos com maior

preocupação e regularidade, não só por razões de maior acessibilidade mas também pelo

seu significado e importância histórica, as que a seguir se indicam:

- Crónica dos Feitos da Guiné, de Gomes Eanes de Zurara (1453-1460?);

- Relação das Viagens de Pedro de Sintra, de um português anónimo e do

italiano Luís de Cadamosto (1463-1465?);

- De prima inuentione Guinee…, de Diogo Gomes de Sintra, escrito em Latim

(1484-1496);

- Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira (1505-1508).

Explorámos também a informação dada por viajantes que, à época, estavam

declaradamente ao serviço do Infante D. Henrique e do Estado Português:

- Carta, Usodimare, (1455);

- Viagens de Luís de Cadamosto (1463-1465?).

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Além destes, acrescentamos outros títulos, que não figuram naquele estudo,

referentes a uma época mais tardia, que nos permitiram observar a evolução da presença

e da influência portuguesas até aos finais do século XVII, de entre os quais analisámos

com maior atenção a “Discripção da Costa de Guine e Situação de todos os Portos e

Rios della, e Roteyro para se Poderem Navegar todos seus Rios”, de Francisco de

Lemos Coelho, um relato, escrito na ilha de Santiago de Cabo Verde, em 1684, redigido

por um capitão português, sobre a sua própria vivência nestes lugares, ao longo de mais

de duas décadas.

Continua a ser necessário consultar as fontes escritas, mas também é

indispensável desenvolver métodos e realizar estudos científicos sobre as marcas

arqueológicas que existem. Devem investigar-se os vestígios visíveis e analisar-se as

culturas hoje existentes, transmitidas sobretudo pela tradição oral. A recolha de dados é

muito importante para África, para se compreender e se conhecer melhor, sob pena de

se perderem irremediável e rapidamente, conhecidas as influências perturbadoras da

globalização, hoje idênticas em todo o mundo, questionando as especificidaddes

culturais dos povos. A transmissão oral da História tem imensas limitações, sabemos

que aquilo que não se regista, por escrito ou por outra forma material, ou se perde ou se

transforma. Diz o povo, em língua portuguesa, que “quem conta um conto, acrescenta

um ponto”. Sabemos que é verdade, pois conhecemos esses fenómenos pela nossa

própria experiência do quotidiano, que não difere das outras culturas, nem da africana;

por muito que se queiram defender as memórias da cultura de transmissão oral, nunca se

poderá aprofundar o conhecimento do passado se não se recorrer a outras fontes e a

outros métodos para a recolha de dados. Muita informação se perdeu com o passar dos

tempos. Nem os próprios africanos podem garantir ou afirmar toda a história do passado

das gerações anteriores. A História de África continua por detrás de uma enorme e

densa obscuridade.

1.1. Perspectiva Histórica da Senegâmbia

Embora percorrendo, como pioneiros europeus, toda a costa ocidental africana,

os portugueses concentraram as suas actividades na faixa a Sul do Cabo Verde – onde

se encontra a actual capital, Dacar. Esta área é designada por Senegâmbia e pertenceu,

durante séculos, ao Estado do Gabú e pequenos reinos a ele ligados.

10

A compreensão da evolução política do reino do Gabú, das suas relações com os

vizinhos – e, em particular, com o Fouta – e do conflito entre o animismo autóctone e a

islamização exógena, são importantes para a análise do quadro geopolítico encontrado

pelos portugueses e da sua evolução até à situação política, étnica, linguística e cultural

actuais.

Fundado no século IV pelos berberes, o império do Gana8 tornar-se-ia um

território próspero ao longo dos séculos, graças ao comércio transariano dos escravos,

do sal e do ouro. Estendia-se do Senegal ao Níger, passando pelo Sul da Mauritânia.

Koumbi Saleh seria a capital, situada ao Sul da Mauritânia actual, uma cidade

florescente. Parece que o Gana animista manifestava uma grande tolerância para com os

muçulmanos, dado que a sua capital tinha uma dúzia de mesquitas. Audaghost (hoje

Tegdaoust), outra cidade da Mauritânia, era também uma cidade de caravanas próspera.

O ouro do Gana era trocado por tecidos, armas, vidraria e cerâmica com o mundo

muçulmano, por intermédio dos berberes, donos de dromedários. Contudo, o

crescimento económico provocou a reacção dos berberes nómadas que se aliaram aos

almorávidas, tomaram e queimaram Audaghost (1054) e lançaram a “jihad” - guerra

santa – contra o Gana animista. O Império do Gana sobreviveria até ao século XIII,

antes de ser anexado ao Império do Mali. Uma das principais consequências para a

região foi a conversão ao Islão da maior parte da população.

Os antepassados dos sérères, jalofos, toucouleurs e peuls estariam implantados

entre o Tagant e o Adrar (ou seja, na actual Mauritânia) e participariam na intensa

actividade do reino de Tekrour, a Ocidente do império do Gana, em ambas as margens

do troço médio do rio Senegal (correspondendo, grosso modo, à Mauritânia e à actual

área do Fouta Toro, ou seja, a margem esquerda do Senegal médio), que se tornou um

grande eixo do comércio transariano de escravos, de ouro e de sal. As primeiras

referências ao Tekrour surgem em crónicas árabes do século IX, e terá sido fundado

pelos peuls vindos do Norte. Em conflito com o Gana, terá abraçado a causa dos

almorávidas (1040) e terá sido o primeiro reino subsariano a converter-se ao Islão. Mais

tarde, viria a cair sob o domínio do império do Mali, mas sempre conservando um

estatuto particular, em grande parte devido ao respeito que detinham os toucouleurs

8 “Ghana” significa “chefe de guerra dotado de um poder sobrenatural” em língua mande. Contudo, o rei era designado Kaya Magan (rei do ouro) e o reinado era o Wagadu.

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junto dos outros povos, por terem sido os primeiros a islamizar-se. Mais tarde, a sua

importância viria a diminuir com a emergência do Jalofo e do Cayor.

Mapa 1: O Senegal pré-colonial do séc. XV ao séc XVIII9

O Cayor era um pequeno reino situado entre a foz do rio Senegal e a península

do Cabo-Verde. Quando Cadamosto10 menciona a sua existência, em 1450, o Cayor está

dependente do reino do Jalofo; mas, no final do século XVI, aproveitando a queda do

império Songai11, o chefe Detye Fu-Ndiogu proclamou-se rei do Cayor que, situado na

9 « Les Atlas de l’Afrique, Sénégal », Les éditions Jeune Afrique, 5ª ed. Paris, 2000 10 L. de CADAMOSTO e P. de SINTRA (1463-1465?); vide CADAMOSTO, Luís de, Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra, Academia Portuguesa de História, Lisboa, 1988, pp. 116 e ss 11 No século XVI, estendia-se do Senegal até à curva do Níger e desapareceu neste século. O povo Songai vivia nas duas margens do rio Níger, povo do Níger e do Mali.

12

costa, foi o primeiro a beneficiar das relações comerciais com os europeus que ali

procuravam peles, ouro, marfim e escravos capturados nas regiões limítrofes. Apesar de

tentativas diversas, nunca conseguiu anexar o Baol, a Sul, e teve relações difíceis com

os vizinhos, tendo sofrido uma derrota severa pelos lébous de Dacar, no Século XVII.

Aliás, no final desse século, o Cayor estava preso entre dois vizinhos poderosos: os

franceses, a Norte (Saint-Louis) e a Sul (Dacar) e os toucouleurs do Fouta Toro que

promoviam a guerra santa - tendo já previamente derrotado a dinastia diananké do

Jalofo – e que acabaram por invadir e converter os seus habitantes. Em 1886, com a

morte do seu chefe Lat Dior, da responsabilidade dos franceses, o reino do Cayor

desapareceu.

O Jalofo nasceu da vontade de separação do Tekrour por Ndiadiane Ndiaye, no

final do século XIV, para estender os seus domínios na direcção do Sudoeste,

englobando pequenos domínios como o Walo, o Cayor, o Baol e o Sine Saloum. A

sociedade era dominada pelo rei (“bour”), seguindo-se-lhe os nobres, os homens livres,

as gentes de casta (ferreiros, tecelães, “griots” – trovadores) e os escravos. Estes eram

rapidamente integrados na sociedade por via de casamentos e adopções. A sucessão era,

matrilinear e o reino foi por vezes dirigido por princesas (“linguères”). A desagregação

do Jalofo começou com a secessão do Cayor, em 1566, seguindo-se-lhe outros reinos

vassalos e o estabelecimento dos franceses na foz e na costa do Senegal. O Jalofo deu

origem aos wolofs, a maior etnia do Senegal actual.

O Mali, pequeno Estado malinké, existiria desde o século XI. Muito ligados à

sua cultura e ao animismo, os malinkés viveram muito tempo da caça e da agricultura.

Mas a extensão da escravatura árabe provocava êxodos muito importantes de

populações, em particular do reino do Gana. Conta-se que Soundjata, o herói lendário

cantado pelos “griots” malinkés, após a conquista de Kirina, em meados do século XIII,

estendera o seu império pela conquista, ordenara prospecções auríferas e criara, em cada

região, forças militares para fazer reinar a ordem, a segurança e a justiça. De campo de

captura privilegiado para os esclavagistas, o Mali tornar-se-ia um Estado respeitado por

todos. O império ocuparia, nessa altura, uma área compreendida entre o Atlântico e a

embocadura do Níger. O comércio transariano apresentaria um crescimento prodigioso.

Assim, expandia-se uma civilização cujas principais cidades eram Niani, Kansala,

Tombuctu, Oualata, Djenné e Gao. A partir do século XIV, várias revoltas terão

eclodido sucessivamente, até à queda do império, em meados do século XVII.

13

Por outro lado, parece que também os lugares, os vestígios pré-históricos e os

dados fornecidos pela tradição oral permitem pensar que o povoamento do território do

Senegal, em épocas anteriores à chegada dos europeus, se efectuou a partir do Norte e

do Leste com a chegada de muitas vagas migratórias. As últimas grandes migrações

terão sido as dos jalofos, dos mandingas, dos peuls e dos sérères, pertencendo todos a

um grupo designado Bafour12, cuja expansão em vários ramos parece estar

correlacionada com a pressão almorávida. Assim, a História do Senegal pré-colonial

caracteriza-se pela existência de reinos e de Estados que foram progressivamente

divididos ou desintegrados.

Alguns pesquisadores incluem as populações da Senegâmbia no grupo de

línguas atlântico-ocidental, por oposição ao grupo “sudanês” (peuls, toucouleurs,

wolofs…).

Grande parte dos povos do grupo atlântico-ocidental (bainouks, balantas,

beafadas, papel, para o grupo atlântico, e bassaris, koniaguis, badiarankés, pajadinkas

para o grupo continental, no interior) têm estruturas matrilineares (ao contrário dos

povos “sudaneses”) e terão sido os primitivos e responsáveis da civilização megalítica

de que subsistem testemunhos no Siné-Saloum.

Os bainouks são, aliás, considerados os “mestres do solo” pelas outras etnias e, à

data das invasões mandingas, seriam os únicos com reinos constituídos ou, pelo menos,

com capacidade de resistência. Também os balantas e os diolas seriam anteriores aos

demais povos, na Casamansa. De facto, o Pakao, o Djassi, o Boudhié, o Balmadou eram

territórios povoados por bainouks e balantas.13 No século XIX, os bainouks da Baixa

Casamansa terão sido em grande parte assimilados pelos malinkés (mandingas). Quanto

aos balantas, os residentes da margem direita do rio Geba, ter-se-ão integralmente

diluído nos mandingas, enquanto que os da margem esquerda terão permanecido

irredutíveis e atacavam mesmo os primeiros.

Os mandingas, em geral, teriam já uma ocupação antiga (anterior ao século XIII

e confirmada pelas conquistas de Tiramaghan, às ordens do mítico Soundjata, por volta

de 1240) da área entre a península do Cabo Verde e a Gâmbia, de acordo com as

tradições wolof, lébou ou sérère. Contudo, esses mandingas seriam oriundos do país

12 THIAM, Iba Der, “Préhistoire et histoire”, in Les Atlas de l’Afrique, Sénégal, Les éditions Jeune Afrique, 5ª ed., Paris, 2000 13 NIANE, Djibril Tamsir, Histoire des Mandingues de l’Ouest, Karthala-Arsan, Paris, 1989, pp. 119

14

Soninké (no Sudeste do actual Senegal e no Sudoeste do Mali), como atesta a presença

dos patrónimos Diafounou ou Wagadou, nas linhagens nobres.

Em termos gerais, o Gabú terá conhecido quatro fases históricas:

1. Um período pré-mandinga, das origens ao Século XIII, testemunhada pelas

tradições sérères e wolofs, a Norte, e pelas badiarankés e bainouks, a Sul.

2. O período maliano, de 1240 ao desaparecimento do império, no século XVII,

durante o qual é constituído o Gabú e criada uma capital, Kansala (hoje desaparecida).

3. O Gabú independente cujo apogeu ocorreu no século XVIII, com o tráfico

negreiro (1650-1790).

4. O declínio e queda, entre 1790 e 1867.

Mapa 2: O Gabú no séc. XVIII14

A história do povoamento do Senegal é também a do relacionamento entre o

Fouta e o Gabú e, em particular, dos seus conflitos que, mais do que religiosos (o Fouta

é sobretudo representado pelos peuls muçulmanos), foram de luta política pelo domínio

da sub-região: atraídos pela prosperidade do Gabú, obtida através do tráfico negreiro, o

reino teocrático do Fouta Djalon procurou dominar os pequenos reinos costeiros de

Baga e Nalou (Rios Pongo e Nunes) e sentiram-se atraídos pelas praças de Bissau,

14 D. T. NIANE, Op. Cit.

15

Cacheu, da Gâmbia e de Seju (actual Sédhiou, na Casamansa). A queda de Kansala e a

derrota do Gabú teve, como primeira grande consequência, a islamização da região;

logo de seguida, ocorreram as conquistas coloniais, com efectiva ocupação dos

territórios.

O contacto entre os mandingas (incluindo socés, soninkés e malinkés) e as

populações da Senegâmbia é antigo e difícil de determinar. As tradições orais do Siné

dão unanimemente conta da presença, no local, de populações mandingas15 quando os

sérères chegaram do Fouta Toro (nos Séculos XI-XII, provavelmente no rescaldo das

guerras religiosas entre muçulmanos e animistas desencadeadas pelos almorávidas nas

províncias ocidentais do Gana)16 e distinguem esse povoamento mais antigo de outro,

mais recente, ao tempo do reino do Mali. Os sérères rechaçaram ou assimilaram aqueles

mandingas e constituíram-se como “guélowars” (a aristocracia local).

A vaga “maliana”, a partir do século XIII, é mais facilmente reconhecível pelo

facto de as famílias provenientes do Wagadou (“império do Gana”, em Soninké) terem

conservado o nome do seu país de origem, uma prática corrente na África ocidental,

como refere Djibril Niane que assinala, também, o hábito mandinga de chamar os

estrangeiros pelo nome dos seus países.17 A origem da migração do General

Tiramaghan18, com uma comitiva de cerca de cem mil pessoas, está ainda por explicar,

mas uma tradição oral refere que se terá devido à recusa daquele de acompanhar o

“mansa” (rei) Soundjata19 na conversão ao Islamismo, o que justificaria o facto de os

mandingas daquela região se manterem animistas até ao princípio do século XX, apesar

da pressão peul. As áreas conquistadas por Tiramaghan, a Sul, adquiriram o nome de

Gabú. Os efeitos desta campanha nas nomenclaturas são interessantes: à medida que os

exércitos chegavam a localidades, certas famílias ficavam ali estabelecidas, geralmente

por decisão do próprio Tiramaghan; assim, a Norte, o patrónimo “Sylla” (do General

sarakholé Lamine Sylla) foi integrado pelos wolofs, enquanto que, no outro extremo, a

15 Chamados de “Socés” no Sine e no Jalofo 16 D. T. NIANE, Op. Cit., pp. 16-17 17 D. T. NIANE, Op. Cit., pp. 16-17 18 Terá ocorrido por volta de 1250; vide D. T. NIANE, Op. Cit., pp. 13, e NANTET, Bernard, Dictionnaire de l’Afrique, Histoire Civilisation Actualité, Larousse, Paris, 2006, « Mali (Empire du)». 19 Soundjata foi o mais notável rei do Mali. De acordo com a lenda, os animistas que fugiam dos almorávidas foram recolhidos pelo rei do Sosso que, no entanto, tentou matar os doze príncipes do reino do Mali. Apenas sobreviveu Soundjata que conseguiria, mais tarde, unir os chefes de clãs malinkés através da admiração pelas suas façanhas, liderar as conquistas dos reinos do Gana e do Sosso e reformar profundamente o ordenamento político-social da África ocidental. Vide D. T. NIANE, Op. Cit., pp. 13 e ss, e B. NANTET, Op. Cit., « Mali (Empire du)»

16

Sul do rio Gâmbia, instalou as famílias Keita e Diatta que viriam, por vezes, a juntar aos

seus nomes o patrónimo Manjang.

Por volta de 1450, dois séculos após a expedição de Tiramaghan, as províncias

ocidentais tinham um claro domínio mandinga. O povoamento malinké era denso ao

longo dos rios Gâmbia e Casamansa, até aos confins do Fouta Djalon. Assim, a maior

parte dos povos da Alta e Média Casamansa – baïnouks, balantas, badiarankés, etc –

poderia considerar-se mandinga. De resto, os navegadores portugueses incluíam todos

os povos da Casamansa, incluindo os diolas, na categoria dos mandingas. Contudo, os

mandingas não impuseram a sua língua, embora os chefes diolas a utilizassem para fins

comerciais.

A chegada dos portugueses foi um acontecimento maior na História da região;

num primeiro momento atribulada, com notórias dificuldades de comunicação,

desconfiança e violência, rapidamente a relação com os autóctones melhorou, quando

estes perceberam que os portugueses procuravam, sobretudo, comerciar.

Um conjunto de circunstâncias auxiliou o rápido estabelecimento de relações

comerciais profícuas: em 1433 os tuaregs conquistaram Tombuctou e expulsaram a

guarnição malinké; de 1462 a 1492 os songai revoltaram-se, conquistaram a área

meridional do Níger, até ao delta interior e conquistaram Djenné; os malinkés viram,

assim, cortado o acesso às pistas sarianas mas tinham ainda o controlo das regiões

auríferas de Bouré e Bambouk; ainda tentaram reanimar a pista ocidental com destino a

Sidjilmassa, em Marrocos (passando pela feitoria portuguesa de Ouadane20), mas esta

cidade estava em declínio após a deslocação para o Cairo do eixo comercial do mundo

muçulmano. É neste contexto que se ouve falar, por volta de 1445, da chegada de uns

brancos em navios gigantes; e quando, em 1456, Diogo Gomes subiu o rio Gâmbia21,

tendo já estabelecido boas relações com os autóctones, foi recebido pelo rei do Bintang

e fez a paz com o “mansa” do Niomi, o Manding-Mansa (rei dos mandingas) deu ordem

aos mercadores das margens do Níger para dirigirem as suas caravanas para Oeste. Os

portugueses tornaram-se rapidamente familiares de todo o universo mandinga, com uma

predilecção pelas regiões da Casamansa, Cacheu e Rio Grande. Grandes caravanas

partiam do Manding, para viagens que podiam durar quatro a seis meses, atravessavam

20 Ouadane integra um triângulo de três cidades históricas do Leste da Mauritânia, com Atar e Chinguetti. Era a feitoria portuguesa mais afastada da costa Atlântica e a localidade, inscrita como Património Mundial da UNESCO, foi restaurada entre 2004 e 2006 com apoio financeiro do Estado português. 21 D. T. NIANE, Op. Cit., cita Diogo Gomes de Sintra, neste contexto

17

o Diarra, o Bambouk e encontravam os portugueses no Cantor ou no Woulli. Este

comércio permitia ao Manding-Mansa e à sua corte receberem directamente produtos

manufacturados europeus, a um preço dez vezes inferior ao praticado pelos

intermediários árabes. Do seu lado, os portugueses recebiam o ouro maliano

praticamente na fonte, dispensando a mediação onerosa dos árabes. No início, o ouro

seria o bem mais procurado pelos portugueses, seguindo-se-lhe as especiarias e, apenas

em terceiro lugar, os escravos.22 Os “mansa” e os “farins” – chefes locais - da Gâmbia e

da Casamansa foram, na verdade, os grandes beneficiários do comércio com os

portugueses, cabendo apenas ao Manding-Mansa o rendimento dos direitos sobre o

comércio do ouro.

Ao contrário dos flups e dos balantas que se mostraram muito reticentes ao

contacto com os portugueses, os vizinhos kassangas entregaram-se ao comércio e

mesmo a uma certa ocidentalização, patente no fausto da corte do rei Massa Tamba23,

conquistador do reino dos bainouks, que trocava um bom cavalo por dez a quinze

negros.24 Ora, segundo o mesmo autor, Massa Tamba disporia de uma cavalaria de

cinco mil cavalos…

Os portugueses fixaram-se em número significativo na Casamansa, no Cacheu e

no Rio Grande, sendo a sua principal base Toubaboudaga, próxima de Brikama (na

actual Gâmbia), a capital de Massa Tamba. Contudo, no Século XVI, a base principal

dos portugueses era o arquipélago de Cabo Verde.

O desenvolvimento do comércio com os portugueses e a dinamização das feiras

situadas nas rotas para a costa aceleraram o movimento migratório para Ocidente

iniciado pelos malinkés; por sua vez, o comércio de escravos tornou-se a principal

actividade comercial entre europeus e soberanos da costa, os quais tiveram tendência

para se libertarem da vassalagem ao Manding Mansa, emancipando-se.

Os malinkés misturaram-se com as populações locais (bassaris e bainouks,

essencialmente, mas não só) e souberam beneficiar do costume local de transmissão da

herança do tio aos sobrinhos, filhos da irmã. Para tal, adoptavam também o nome do clã

materno e tornavam-se, deste modo, donos legítimos do Gabú; deste modo, nomes

malinkés foram sendo substituídos por outros: Traoré (clã de Tiramaghan) deu lugar a

22 D. T. NIANE, Op. Cit., pp. 31 23 Massa Tamba chegou mesmo a criar uma aldeia para brancos, junto à capital Brikama, em 1580, vide D. T. NIANE, Op. Cit., pp. 32 24 A. DONELHA (1625); vide DONELHA, André, Descrição da Serra Leoa e dos rios de Guiné e do Cabo Verde, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, Lisboa, 1977, pp. 166 e nota 286, pp. 311

18

Sane e Mané, Keita (clã de Mansa Wali, filho de Soundjata que acompanhou

Tiramaghan) foi substituído por Sagna e Mandjan, etc. Contudo, os mandingas que

chegaram mais tarde – sobretudo os muçulmanos, que não adoptaram o regime familiar

local – guardaram os nomes originais (Cissé, Touré, Diané, Diaby, Dabo, Souaré). Os

muçulmanos não faziam parte da comitiva de Tiramaghan mas, na sua crónica, André

Donelha já refere o seu grande número.

A data de chegada dos pastores peuls à Senegâmbia também não está

rigorosamente determinada: terão vindo na comitiva de Tiramaghan, ou antes? Sabemos

apenas que os dois povos viviam juntos no Wagadou e no Manding, ao tempo de

Soundjata. Em regra, os peuls acampavam ao lado das aldeias de agricultores,

beneficiando do pasto das terras em pousio e estrumando-as; respeitavam as autoridades

locais e não tinham ambições políticas; esta seria uma regra geral de comportamento,

que os levava a ser bem aceites pelos agricultores.

Contudo, nos Séculos XV e XVI os peuls transformar-se-iam em ferozes

guerreiros, pondo em risco o Império do Mali e as províncias da Senegâmbia. Ignora-se

o motivo pelo qual, em 1460, os peuls invadiram as províncias ocidentais, embora se

acredite25 que tenha a ver com os conflitos no delta interior do Níger entre os

mandingas, os songai e os tuaregs. André Donelha refere um rei dos Fulos muito

belicoso que saiu da cidade de Fouta e decidiu conquistar grande parte da Guiné”. Este

rei, Dulo (ou Diallo) Demba atravessou o rio Senegal, vindo de Leste, penetrou no

Jalofo onde derrotou os wolofs em diversas batalhas e atingiu a Gâmbia. Os malinkés

não contiveram esta investida dos peuls que atravessaram o Gabú, atingiram o Rio

Grande e chegaram às portas do reino Beafada, cujos reis os detiveram. Não obstante,

os peuls, animistas como as populações autóctones, integraram-se facilmente com estas.

O primeiro grande chefe dos peuls foi Tenguella Diadié Bah que, contornando o

Gabú pelo Leste, atravessou o rio Senegal com o seu exército e, com o apoio dos

bambaras, empreendeu a conquista do Bambouk e do reino de Diarra. O Manding

Mansa, Mahmoud II, solicitou a ajuda militar de D. João II26 que enviou uma

embaixada a Niani, em 1490, chefiada por Pêro de Évora e Gonçalo Eanes. Contudo,

embora a comitiva presenteasse o Manding Mansa, com ofertas dignas de um grande

soberano, Portugal não deu apoio militar, eventualmente porque cedo se apercebera de

25 LY-TALL, Madina, L’Empire du Mali, N.E.A, Dakar / Abidjan, 1977, pp. 48 26 BARROS, João de, Décadas da Ásia, public. Hernâni Cidade, Agência das Colónias, Lisboa, 1945, e M. LY-TALL, Op. Cit., citados por D. T. NIANE, Op. Cit., pp. 57

19

que o poder do Mansa era mais simbólico do que real27. O perigo acabaria por ser

afastado graças aos songhai – também atraídos pelo comércio atlântico – que derrotaram

Tenguella Bah, em Diarra, em 1512. Uma nova investida, em 1535, liderada por Koly

Tenguella (filho de Tenguella Diadié Bah e que talvez tenha ficado para a História

como o maior chefe peul), daria origem a um novo pedido de apoio de Mansa

Mahmoud III, neto de Mahmoud II, a Portugal que, novamente, enviou uma embaixada

mas não deu qualquer apoio militar. Das movimentações de Koly Tenguella ficou, entre

outros aspectos, o patrónimo Bâ na Casamansa, na Gâmbia e na Guiné.

Em 1625, o Manding Mansa detinha ainda um poder quase lendário mas

emergia, na costa, o reino do Gabú, cujo Governador, ou Farim Cabo, se tornou o

“Gabou mansa-ba, senhor de todos os reis Mandingas e dos Jalofos, Berbecins e de

diversos reis estabelecidos do lado Norte”28. É provável que este domínio chegasse ao

Siné até ao século XVII, quando as províncias gambianas se emanciparam do Gabú. No

século XVIII, parece que o Mansa-ba dispunha de um grande corpo de fuzileiros bem

armados, porquanto, observador não só dos conflitos que opunham brancos portugueses,

franceses e ingleses, mas também das incursões esporádicas de holandeses e

dinamarqueses, estava ciente de que só com uma forte organização poderia tirar

proveito do comércio com os europeus. O Mansa-ba seria o mais importante fornecedor

de escravos cujo efectivo rondava, anualmente, três a cinco mil.

No final do século XVI, o Gabú tornara-se um Estado guerreiro e uma área de

passagem das caravanas. Ao longo das pistas para a costa surgiram numerosas aldeias

de mercadores, os morocounda, termo que vem do facto de lidarem com comerciantes

“mouros” (muçulmanos malinkés ou sarakholés). Os diolas eram os maiores

mercadores, tinham entrepostos seguros nas aldeias, onde pernoitavam e deixavam os

seus feridos, e formavam sociedades familiares: os parentes, dispersos pelas aldeias,

comunicavam entre si através de mensageiros. As mercadorias eram transportadas em

pequenas etapas até aos portos e esta forma de agir contribuía certamente para reforçar

os fortes laços que uniam os clãs diolas entre si.

Os diolas estavam presentes em todo o Gabú e, a partir de certa altura, eram

apenas concorrenciados, seriamente, pelos lançados. As feiras, que os diolas animavam,

tinham por vezes uma dimensão apreciável, como o mercado semanal de Cacheu, entre

27 D. T. NIANE, Op. Cit., pp. 61 28 A. DONELHA, Op. Cit., pp. 121, citado por D. T. NIANE, Op. Cit., pp. 75

20

Novembro e Junho, ao qual acorreriam sete a oito mil pessoas para trocarem

mercadorias locais e portuguesas.

No final do Século XVII, o domínio português na Casamansa era já posto em

questão pelos franceses e ingleses; contudo, se estes conseguiram dominar as águas

gambianas, havia fortes resistências a Sul. As feitorias de Bissau, Cacheu e Farim eram

palco de constantes transações. E os beafadas de Cacheu preferiram, a dado momento,

os franceses aos portugueses, enquanto os diolas, malinkés e sarakholés mantiveram as

suas relações, vendendo ferro e algodão.

No século XVIII, os grumetes (filhos de portugueses e africanas) povoavam

todos os rios, formando uma classe sócio-profissional de comerciantes.29 Misturados

com as populações locais e partilhando os seus hábitos, vivendo em condições de

grande insalubridade, formaram uma sociedade intermediária e o Português, combinado

com as línguas locais, deu origem ao crioulo. Os diolas, que, como vimos, eram os

rivais dos lançados, aprenderam a falar Português, Francês ou Inglês.

Até à queda do reino do Gabú, o animismo permaneceu a sua crença oficial. Por

oposição ao “moro” (mouro), chamava-se soninké ao malinké que pratica o culto

tradicional e bebe vinho. Mas, no século XIX, os muçulmanos eram já muitos e

procuravam libertar-se da autoridade dos que bebiam vinho. Por fim, a queda de

Kansala, em 1867, marcou o fim do reino do Gabú e trouxe a destruição das florestas

sagradas e a islamização generalizada dos gabounkés, o que levou, também, à

transmissão do poder dos nobres (“nianthio”, em Mandinga), de pais para filhos e não

de tios para sobrinhos.

Em 1725 os peuls fundaram o Estado muçulmano do Fouta Djalon. A infiltração

peul nas montanhas, propícias à pastorícia transumante, começara provavelmente no

século XIII e intensificara-se no século XVII. No início do século XVIII, os peuls eram

já suficientemente numerosos para conspirarem contra os chefes djalonkés animistas

que derrotaram finalmente em Talansan, em 1730. Os vencedores peuls organizaram um

novo poder, reduzindo os anteriores senhores à escravatura. Os chefes religiosos que

tinham dirigido a insurreição tornaram-se os novos chefes das províncias. Deu-se,

assim, uma alteração radical no quadro geopolítico regional, o aparecimento de um

Estado muçulmano no seio dos vizinhos animistas. Contudo, a situação não seria bem

aceite pelos djalonkés que passaram a organizar acções de guerrilha contra as aldeias

29 D. T. NIANE, Op. Cit., pp. 95-96

21

peuls e a aristocracia guerreira dos “marabouts” durante quase toda a segunda metade

do século XVIII. Entre 1784 e 1789, todo o Fouta foi assolado por uma guerra violenta,

resultante de um levantamento de animistas, com um exército tão vasto que certas

tradições chegam a estimá-lo composto por quatrocentos mil homens (o que é

certamente um exagero mas transmite uma noção da sua dimensão), que reagiram às

campanhas dos “almany” (chefes dos peuls) Karamoko Alfa (contra o Gabú e

Konkodougou) e Ibrahima Sory Maoudo (para Leste), demasiado destrutivas e

frequentes contra as suas aldeias. Os animistas (incluindo peuls não islamizados),

conduzidos por Koné Bouréma Sidibé quase exterminaram os muçulmanos mas,

confiantes na vitória definitiva, não perseguiram nem capturaram Sory Maoudo que

conseguiu reunir tropas e contra-atacar Kondé Bouréma em plena estação das chuvas,

vencendo-o. O Fouta estava salvo, e os peuls prepararam um exército forte, condição de

sobrevivência necessária do Estado muçulmano rodeado por vizinhos animistas.

No final do século XVIII, o Fouta Toro torna-se também um reino teocrático,

com a vitória dos torodbés, tal como o Boundou e o Fouta Djalon. E, se a aristocracia

demonstra o seu apego às práticas religiosas tradicionais, as massas camponesas

acentuam a sua conversão ao Islão.

Os Estados gabounké e peul apresentavam semelhanças, sendo ambos

federações de provínicas autónomas e, tal como os primeiros, os peuls limitaram-se a

dotar-se de um poder central forte. Mas os gabounkés permaneceram, em geral,

camponeses misturados com os autóctones bainouks, diolas e beafadas, adoptando

inclusive os nomes destes. Ao contrário dos mandingas, os peuls, que permaneceram

pastores transumantes durante muito tempo, acabaram também por se sedentarizar em

aldeias “foulasso” ou “foulacounda”, mas ocuparam as terras dos autóctones (djalonkés,

bagas e sares) e reduziram estes povos à escravatura. Ainda assim, com o tempo, os

peuls acabaram por se miscigenar com os autóctones, procurando impor, contudo, a sua

língua, o pulaar, e a sua cultura; e se, num primeiro tempo, concederam o estatuto de

homens livres aos vencidos islamizados, os peuls acabaram por travar a conversão30,

optando por manter os autóctones nas suas crenças tradicionais e na situação de

escravatura.

No início do século XIX, o Estado peul consolida-se através de uma sociedade

fortemente hirarquizada, dominada por uma aristocracia de “marabouts” guerreiros; em

30 D. T. NIANE, Op. Cit., pp. 130

22

cada província (“diwal”) as “paróquias” (“missidé”) organizam em seu redor um

conjunto de territórios e aldeias (“roundé” e “foulasso”). Os vencidos eram cerca de três

quartos da população mas não tinham quaisquer direitos políticos; os peuls pobres e os

convertidos podiam deslocar-se entre “missidés”, mas os djalonkés, quais servos da

gleba, não podiam sair dos “roundés”. Os aristocratas distinguiam-se em dois estratos,

os guerreiros e os letrados – estes eram particularmente numerosos em Labé, na actual

República da Guiné (Conacri). O almany era eleito por um colégio de letrados e de

chefes de guerra das nove províncias31, residia em Timbo, era simultaneamente chefe

religioso e temporal da confederação e dirigia pessoalmente a djihad fora do Fouta. Por

último, dois clãs, os Alfaya e os Soriya, alternavam no poder de dois em dois anos, uma

prática aparentemente copiada aos gabounkés32.

Entre 1799 e 1870 o Fouta viveu um período estável, embora Estados animistas

como Solima, Sankaran e Tamba o tenham atacado regularmente e, sobretudo, apesar de

algumas dificuldades internas como a oposição dos muçulmanos ortodoxos da confraria

Kadiryia33 aos almany do Fouta e de Timbo. Este núcleo de resistência (a sua capital,

Boketo, só foi conquistada e destruída em 1884) na estrada entre Timbo e a actual

Freetown, terá levado os almany a intensificarem as suas campanhas a Norte, contra o

Gabú que dominava o território entre a Gambia e o Rio Nunes.

O Fouta Djalon desempenhava um papel relevante na vida económica da sub-

região da Guiné-Gâmbia, enquanto centro de comércio de gado, de cereais, de algodão e

de mel, e mercado de escravos. Os ingleses (em Freetown), os franceses (junto aos rios

Nunes e Pongo) e os portugueses (há muito estabelecidos nos estuários dos rios Grande

e Casamansa) competiam na atracção das caravanas que provinham do Fouta.

A partir de 1830, os franceses e ingleses passam a ter o objectivo de levar o

trabalho a África, já que não era mais possível trazer mão-de-obra, por causa da

industrialização que deixava de requerer aquela de modo tão intensivo. Assim,

iniciaram uma nova política agrícola, distribuindo sementes de amendoim e de algodão,

o que dinamizou de novo o comércio.

31 As nove províncias eram Timbo, Fodé Hadji, Kébali, Labé, Kolladé, Koin, Timbi, Fougoumba e Bhuria 32 D. T. NIANE, Op. Cit., pp 131 33 Confraria ainda hoje presente na África ocidental, fundada no Iraque por Abd al-Qadir al-Jilani, no século XII, com vista a converter os povos ao verdadeiro islamismo. Vide THORAVAL, Yves, L’ABCdaire de l’Islam, Ed. Flammarion, Paris, 2003, pp. 49, e BARRY, Boubacar, La Sénégambie du XVe au XIXe Siècle, L’Harmattan, 1988

23

Por volta de 1840, o Gabú está em crise: os franceses estabelecem-se na

Casamansa, o Fouta Djalon tem, em Sédhiou, um porto de escoamento para as suas

mercadorias, dispensando as caravanas de seguirem até à Gambia e os almany

esforçam-se por controlar as pistas de caravanas que atravessam o Gabú. Em 1845,

subiu ao trono o mansa-ba Dianké Wali, o último rei dos gabounkés. Com Wali, o Gabú

conheceria um sobressalto de poder e de reorganização que culminaria com o ataque a

Manda e a destruição integral desta cidade peul. Desde o final do Século XVIII nenhum

exército gabounké tinha conseguido passar o Koliba e guerrear no Fouta. Mas em 1849,

o novo almany Oumar, desejoso de vingar a incursão de Manda, proclamou a guerra

santa e mobilizou um exército de seis mil homens, incluindo uma numerosa cavalaria de

mais de três mil cavalos. A batalha de Bérékolon concluiu-se ao fim de cinco dias com a

vitória peul, mas estes, consideravelmente enfraquecidos, retornaram ao Fouta com

menos de metade dos efectivos.

Em 1850, o Gabú, que perdera o mito da invencibilidade, sofre com as incursões

peuls, com as sublevações dos muçulmanos e com a implantação cada vez mais forte

dos europeus na Senegâmbia. Kansala já não controlava, por exemplo, as províncias do

rio Geba, na actual Guiné-Bissau, nem as vias para Cacheu e Farim. O reino era ainda

grande, mas encontrava-se dividido pelas guerras e minado por dentro, não pelo peul

mas pelo muçulmano malinké, aliado natural do Fouta.

Do seu lado, as provínicas malinkés da margem Norte do rio Gambia separaram-

se do Gabounké, embora sendo consideradas territórios de Tiramaghan34. Assim, nos

séculos XVII e XVIII, os reinos do Badibou, do Niani e do Wouli teriam uma grande

autonomia.

Os reis de Niomi vigiam com severidade o acesso ao Gâmbia, não hesitando em

recorrer à força, a única prática respeitada pelos mercadores. Contudo, o reino declina

no final do século XVIII e as rivalidades exacerbam-se. Ao contrário, o Saloum vive

nesse tempo um período de expansão, impõe-se, ganha um acesso directo ao Gâmbia e

entra no comércio de escravos. Os muçulmanos são cada vez em maior número na área

do Gâmbia, tomam consciência da sua força e tentam mesmo ingerir-se nos assuntos do

Estado. Em consequência da pressão muçulmana, o Niani divide-se em dois reinos, no

início do século XIX, o Alto e o Baixo Niani, cujos princípes se guerreiam. Entretanto,

34 Segundo Djibril Tamsir Niane, esses territórios terão sido, na verdade, domínio de expansão de tropas não comandadas por Tiramaghan, seriam posteriores à invasão deste. Subsiste, no entanto, um grande desconhecimento em relação a todo este período

24

os peuls e os jalofos, atraídos pelo comércio de escravos, fundaram diversas aldeias,

entregaram-se à cultura de amendoim e colocaram-se sob a protecção dos milicianos

dos negociantes, com os quais lidam directamente. Por fim, um chefe religioso (um

marabout) toucouleur, Maba Diakhou-Ba, decidiu levantar armas em nome do Islão e

impor-se ao Niani e ao Badibou35.

O reino do Wouli, o mais extenso dos gambianos, também não escapou aos

efeitos do comércio de escravos. Os ingleses mantinham pelo menos desde o século

XVIII feitorias em Fatatenda e Yarboutenda que se tornaram pólos de atracção de

malinkés e de sarakolés. Os soninkés governavam sem trabalhar, desprezavam

ostensivamente os muçulmanos o que, também aqui, acabou por provocar a revolta

destes contra a aristocracia tradicional, ociosa e parasitária.

Por volta de 1850, os franceses tinham conseguido tornar Sédhiou uma praça

comercial mais importante do que as de Ziguinchor e de Cacheu, controladas pelos

portugueses, mas a influência portuguesa estava ainda bem presente sob forma do

crioulo: «En 1849, le nouveau résident Emmanuel Bertrand-Bocandé nous a laissé de

fort riches Notes sur la Guinée Portugaise ou Sénégambie méridionale. Ayant appris le

créole portugais et le malinké, il avait une grande expérience des pays mandingues»36.

Ou seja, as duas línguas francas nos territórios mandingas eram o malinké,

naturalmente, e o crioulo do Português.

A desagregação lenta do reino do Gabú foi explorada pelos franceses que, a

pouco e pouco, foram considerando território seu, áreas da Casamansa (Boudhié em

1849, seguida das aldeias de Patiabor, Bajari e Bunu), não sem resistências locais:

soninkés, primeiro, e balantas, depois, opuseram forte resistência às forças muçulmanas

aliadas dos franceses. Em 1854 os franceses aproveitaram incidentes com balantas para

conquistar a margem esquerda do Casamansa, entre Binako e Bambanjon. Perante estes

acontecimentos, Kansala já não tinha, de facto, qualquer autoridade ou força para reagir,

tanto mais que os residentes franceses apoiavam, secretamente, os peuls do Fouta

Djalon contra o poder animista.

Nos anos 1860, precipita-se a queda do Gabú, com sucessivas deserções de

“nianthios” num contexto em que a guerra com o Fouta se tornara palco de complexas

alianças e traições, mais ditadas por motivos políticos e económicos do que religiosos.

35 I. D. THIAM, Op. Cit. 36 D. T. NIANE, Op. Cit., pp 174

25

A terrível batalha de Kansala (dita pelos mandingas “Guerra da exterminação da raça

gabounké”), em 1867, ditou a derrota definitiva do Gabú, a destruição da capital pelo

próprio mansa Dianké Wali e a morte da grande maioria da sua aristocracia perante um

exército peul de trinta e dois mil homens, dos quais doze mil cavaleiros, todos de branco

vestidos e usando o nome de Mamadou (Maomé).

Com a conquista de Kansala, parece estar-se perante o início do domínio peul e

da islamização. Contudo, a conquista colonial sobreveio pouco depois, com Portugal, a

França e o Reino Unido a partilharem entre si os reinos gambianos e do Gabú.

No final do século XVIII e no início do século XIX, o Fouta Djalon tornara-se

um dos centros mais importantes da cultura islâmica na África ocidental, mas o papel

principal foi muitas vezes desempenhado não por peuls, mas por diakhandés e

sarakolés. Os peuls tinham centros corânicos reputados em Touba (na actual Guiné

Conacri37), Sombili, Koula, Daralabé e Dow Sare e recorreram ao alfabeto árabe para

escrever o pulaar que se tornou, deste modo, escrita e veículo de difusão cultural e

literária. Os letrados peuls escreviam tanto em pulaar como em árabe e, em Timbo ou

em Labé, o Estado subvencionava os membros da classe que podiam, assim, viver

exclusivamente para estudar. A escola corânica era obrigatória para todas as crianças

filhas de pais livres; nela se cultivava o amor pelo bem mas, também, o ódio do

animismo e o desprezo por todos os descrentes. Mais tarde, gerou-se uma tendência

para um culto de superioridade sobre outras raças negras (tratadas de “balébés” – os

negros38).

Uma das grandes confrarias do Senegal é a dos Mouridas, fundada por Amadou

Bamba M’Backé, um marabout (chefe religioso) toucouleur falecido em 1927. Após ter

feito os seus estudos junto de Cheikh Sidiya, membro eminente da grande confraria

Qadiriyya ou Khadrya (ainda muito presente na sub-região e a terceira mais importante

no Senegal), criou a sua própria confraria, por alegada inspiração do anjo Gabriel. O

mouridismo, virado inicialmente para os jalofos, preconiza que o trabalho manual é tão

importante para o discípulo (“talibé”) como a oração e esses ensinamentos são

transmitidos nas “daaras” (escolas corânicas). O centro da confraria é Touba, uma

cidade fundada por Amadou Bamba em 1886, a 60 km a Leste de Djourbel.

37 A cidade guineense de Touba foi o mais pujante centro de difusão corânica na sub-região, no século XIX, sob a condução das chefias religiosas Khadrya; não confundir com a cidade senegalesa de Touba, sede da confraria mourida. 38 D. T. NIANE, Op. Cit., pp 136

26

A outra grande confraria (não se sabe, em bom rigor, qual delas é a que tem mais

adeptos) é a Tidjane, fundada em 1737 por Sidi Ahmed Al Tidjani, em fés, Marrocos. A

Tidjania é uma confraria sufi39 que visa uma ascenção individual pela purificação do

indivíduo; repousa no ensino religioso tradicional da “sunna” (feitos e gestos do Profeta

Maomé), da recitação de excertos do Corão e de textos da própria confraria. A Tidjania

(também presente na Guiné-Bissau) foi difundida no Senegal e no vale do Níger pelo

conquistador Toucouleur El-Hadj Omar Tall durante a guerra santa contra os animistas

(1856). O seu sucessor, El-Hadj Malick Sy compreendeu a supremacia dos

colonizadores e adoptou uma via pacífica. A sede da confraria é em Tivaouane, a cerca

de 40 km a Norte de Thiès, na estrada que liga esta importante cidade com Saint-Louis.

Os tidjanes têm um comportamento mais discreto do que os mouridas e, tal como estes,

realizam uma grande peregrinação anual. No caso dos tidjanes, trata-se do Gamou que

corresponde ao Maoloud, comemoração do nascimento do Profeta. Para os mouridas, é

o Magal, comemorando o dia do regresso do exílio e da visão profética do fundador da

confraria.

Os limites administrativos da colónia francesa do Senegal foram estabelecidos

em 1904, após a criação da África Ocidental Francesa (1895) e da deslocação da capital

de Saint-Louis para Dacar (1902). Avançam então obras públicas e a conquista agrícola

do Leste, comandada, no terreno, pelos marabouts mouridas.

Em 1945, dois deputados, Lamine Guèye e Léopold Senghor, têm assento na

Assembleia Constituinte francesa. A actividade política acompanha-se da criação de

partidos políticos distintos dos da metrópole. Associados na Federação do Mali em

Janeiro de 1959, o Sudão e o Senegal pedem a independência que obtêm no quadro

unitário, no dia 4 de Abril de 1960. Porém, a Federação não resiste e, a 20 de Agosto de

1960, a Assembleia senegalesa proclama a independência do país. Desde então, o país

evoluiu para um regime pluripartidário, sob a batuta do primeiro Presidente, Léopold

Senghor que, após 20 anos no poder, se tornou o primeiro Chefe de Estado a dele sair

antes do término de um mandato. Seguiu-se-lhe o também socialista Abdou Diouf, de

1980 a 2000, ano em que, a 19 de Março, o liberal Abdoulaye Wade ganhou as eleições

presidenciais, em nome da “alternância”.

39 O Sufismo, corrente mística do Islão, nascida no século VIII, opõe-se ao Islão legalista e privilegia a apropriação pessoal da verdade corânica. Esta “maleabilidade”, contrária à do chiismo ou do sunismo, poderá justificar a sua popularidade na África ocidental, porquanto permite uma melhor adaptação às práticas animistas enraizadas. Ainda hoje, são raros os chiitas e os sunitas num país fortemente islamizado como o Senegal.

27

1.2. A presença portuguesa

Primeira razão do Infante

“E porque o dicto Senhor [Infante] quis disto saber a verdade, parecendo-lhe

que se ele ou algum outro senhor se não trabalhasse de o saber... e vendo outrossim

como nenhum outro príncipe se trabalhava disto, mandou ele contra aquelas partes

seus navios, por haver de tudo manifesta certidão, movendo-se a isso por serviço de

Deus e d’el- Rei D. Eduarte seu senhor e irmão que aquele tempo reinava. E esta até

que foi a primeira razão de seu movimento.”40

Foi esta razão do Infante que levou a Língua Portuguesa para África, e depois

para todos os continentes; ainda que não esteja escrito, o facto é que os Descobrimentos

marítimos tiveram como consequência directa e inabalável a transferência do código

linguístico português para terras novas. E tal como noutros países africanos, a Língua

Portuguesa deixou as suas marcas na costa ocidental de África, nomeadamente no

Senegal. Naqueles territórios, por onde passaram, os descobridores lusos registaram o

que viram e o que lhes aconteceu em contacto com a natureza e com as novas gentes, e

passaram a comunicar com eles. Mas, falando línguas diferentes, parece-nos que os

estrangeiros e os autóctones levaram tempo para aprender a língua do outro, e não

comunicariam pela linguagem verbal, desde o início. Então, como se justifica ou se

explica a seguinte afirmação?

“Aos negros todos trate com boas palavras e não se engane, cuidando que não

entendem o portuguez (sic) por que o não fallão: pois os mais delles o entendem

bastantemente.”41

Parece que a presença portuguesa foi tão intensa, desde meados do século XV,

que permitiu a aprendizagem da língua portuguesa pelos nativos, como informa este

capitão português, Francisco de Lemos Coelho, que passou mais de vinte anos da sua

40 G. E. ZURARA (1453); Op. Cit., Cap. VII, “ no qual se mostram cinquo razoões porque o senhor

iffante foe movido de mandar buscar as terras de Guynea”, pp. 44-49. 41 F. L. COELHO (1684); vide COELHO, Francisco de Lemos, Duas Descrições Seiscentistas da Guiné,

(Manuscritos Inéditos Publicados com Introdução e Anotações Históricas de Damião Peres) Academia

Portuguesa de História, Lisboa, 1990, pp. 114

28

vida nos territórios correspondentes ao actual Senegal. Em meados do século XVII, data

desta afirmação, apesar da presença dos holandeses, dos franceses e dos ingleses, os

indígenas africanos não só reconheciam como compreendiam bem o Português, antes de

conhecerem a influência francófona nos territórios do actual Senegal, colonizado pela

França, depois de muitas rivalidades e conflitos com os outros europeus que ali se

fixavam. Após a descoberta destes territórios, parece que os portugueses se distribuíam

pela região de forma algo indeterminada ou desordenada. A partir do século XVI, outros

europeus se fixaram nesses mesmos territórios e impuseram a ocupação daqueles

espaços; logo iam construindo fortalezas, com grandes exércitos, para protegerem o seu

comércio e manterem os seus interesses em diversas áreas, como observaremos mais à

frente.

Por isso, torna-se necessário conhecer melhor a acção dos portugueses e falar

dos antecedentes das Descobertas, para um entendimento mais correcto da evolução das

investidas dos portugueses até alcançarem aqueles espaços e compreender o grau de

influência que tiveram junto daqueles reinos africanos.

Por estas alturas, no século XV, os nautas portugueses manifestavam já o

conhecimento de técnicas de navegação das mais avançadas da Europa. Empreendendo

viagens marítimas cada vez mais frequentes e mais afastadas da costa portuguesa,

enriqueciam-se de um saber que os manteve na linha da frente dos Descobrimentos

marítimos e terrestres sobre o continente africano:

“Todo o movimento de expansão marítima supõe igualmente um mínimo de

condições orgânicas gerais, ou seja, um ambiente económico internacional que solicite

aquele esforço, e particulares, isto é, um conjunto de aptidões específicas em

determinado povo ou grupo social que lhe permitam levá-lo a cabo.”42

Portugal era já no século XIV, uma nação consolidada, que conquistara as

condições que fundamentam a expansão lusa. Os portugueses sempre se inclinaram para

os trabalhos do mar, dada a situação geográfica do país. Estando também rodeados por

Estados poderosos e rivais, a Norte, a Sul e a Oriente, a expansão para o oceano era

determinada não só por circunstâncias geográficas mas também políticas, económicas e

religiosas:

42 J. CORTESÃO (1931-1934); vide CORTESÃO, Jaime, História da Expansão Portuguesa, INCM, vol. IV, 1993, pp. 14

29

“Todo o movimento da expansão geográfica obedece antes de mais às

necessidades da procura e do transporte dos produtos. Que outras coisas de carácter

espiritual possam somar-se a estas, e em geral apareçam fundidas com elas, não é

menos verdade; mas na base de todos os descobrimentos geográficos, de carácter

perdurável, encontram-se as razões económicas. Trata-se de uma regra sem excepção,

cuja plena validade pode estudar-se na história de todos os povos navegadores, desde

os cretenses e os tartéssios até aos holandeses e aos ingleses.”43

De facto, a experiência acumulada ao longo de alguns séculos, pelo menos desde

o início da nacionalidade, contribuiu para impulsionar as descobertas do século XV e

muitos homens corajosos puseram a sua vida em perigo ao serviço da nação.

As Cruzadas44 permitiam não só a experiência do contacto com outros povos,

inclusivamente com o mundo islâmico, mas também o conhecimento da Terra Santa

onde os portugueses podem ter obtido muitas informações sobre as características do

Oriente, das Índias, do comércio, das riquezas, das especiarias dali provenientes, e

mesmo ouvir falar de um reino cristão, como o do Preste João das Índias, isolado entre

muitos reinos árabes infiéis, e entre os turcos que também ameaçavam a Europa, que

dominavam aquelas regiões ao longo de toda a Idade Média.

A Reconquista cristã, em toda a Península Ibérica, colocou Portugal em contacto

privilegiado com os muçulmanos e essa experiência e o conhecimento directo do

inimigo da fé cristã acabou por ter repercussões positivas na expansão portuguesa do

século XV. A luta contra os Mouros foi um investimento no futuro, ou seja, logo no

início das Descobertas avançaram com conhecimento de causa sobre os muçulmanos.

O desenvolvimento da marinha de guerra e a protecção da marinha mercante por

parte dos monarcas portugueses contribuiu naturalmente para o domínio dos mares, para

as aventuras no oceano Atlântico e no Índico.

43 J. CORTESÂO (1931-1934); Op. Cit., pp. 14 44 Nova Enciclopédia Larousse, 1994, Vol. 7: Cruzadas, Dá-se o nome de “cruzadas” às expedições militares empreendidas pela Europa cristã entre os sécs. XI e XIII, sob o impulso do papado, no intuito socorrer os cristãos do Oriente, reconquistar o Santo Sepulcro (local do túmulo de Cristo) aos Turcos muçulmanos, e mais tarde, para defender os Estados fundados pelos cruzados na Síria e na Palestina. Graças a um fortesurto demográfico, o Ocidente inverteu no séc. XI o movimento que fazia dele uma cidadela cercada, submetida às incursões de sarracenos, Escandinavos e Húngaros. Pouco depois do início da Reconquista Ibérica e da instalação na Itália Meridional, as cruzadas manifestaram esse novo dinamismo. (…) Para além do nascimento de Estados latinos no Oriente, as cruzadas tiveram como consequência a criação das ordens religiosas e militares (Hospitalários, Templários, cavaleiros Teutónicos) e a multiplicação dos contactos entre o Oriente (muçulmano e bizantino) e o Ocidente. Contudo, não modificaram profundamente as correntes comerciais nem o intercâmbio cultural.”

30

Estavam portanto reunidas as condições essenciais para os portugueses

garantirem o sucesso desta empresa dos Descobrimentos, estímulo (luta contra o infiel),

experiência (conhecimento do mundo árabe e muçulmano), conhecimento técnico

(técnicas de navegação avançadas, desenvolvidas ao longo de vários séculos no Oceano

Atlântico).

A crise económica do século XIV, assim como a pestilência, que se estenderam

por toda a Europa, despoletaram a necessidade urgente e o desejo de encontrar

equilíbrios e soluções, alternativas, novas riquezas para restituir a estabilidade e o nível

de vida a que a Europa já se habituara. Em Portugal, faziam-se sentir com mais

acuidade as dificuldades na aquisição de determinados produtos, estando mais afastado

das rotas comerciais vindas do Oriente, controladas pelos árabes, depois pelos

comerciantes da península itálica, e a partir daí distribuídas para o interior da Europa.

Para ter acesso a esses produtos, os comerciantes portugueses ou iam buscá-los

directamente pelo Mediterrâneo, comprando-os a intermediários, portanto mais caros,

ou então esperavam pela sua distribuição por toda a Europa, adquirindo-os tardiamente

nas nossas costas, pelas rotas da Flandres, com custos mais elevados também. Portugal

tentou e conseguiu sair deste ciclo vicioso de dependências dos produtos exóticos e

deliciosos do Oriente, além de que tinha notícias sobre a existência de ouro em África,

tão perto do Algarve.

Além disso, em terra de pescadores, estes desde sempre se aventuraram ou se

arriscaram no alto mar, por questões de sobrevivência, para o seu sustento; navegar é,

pois, uma actividade muito antiga, tradicional e necessária para os portugueses, que

marcará sempre a cultura lusitana. A coragem destes homens, não podendo ser

ignorada, associava-se a uma experiência marítima muito arreigada e que foi

naturalmente posta ao serviço da nação, com os fidalgos da coroa e a gente da câmara

do Infante, escolhidos e coordenados para penetrar em territórios nunca vistos e

imprevisíveis.

Desde o tempo do conde D. Henrique e de seu filho D. Afonso Henriques45,

primeiro rei de Portugal, no século XII, preparavam-se embarcações para lutar contra os

ataques dos mouros, havendo notícia de combates navais. Essas galés serviam também

para espiar os movimentos da armada castelhana na costa. No tempo de D. Sancho I, foi

45 ALMEIDA, Fortunato de, História de Portugal desde os tempos pré-históricos a 1580, Vol. I, Bertrand Editora, Lisboa, 2003, pp. 229

31

muito importante a existência de navios na conquista de Silves. Mais tarde, D. Afonso

III foi o primeiro monarca a preocupar-se com a construção de uma marinha de guerra.

D. Dinis fez grandes inovações na marinha, chamando homens experimentados para

formar os marinheiros portugueses. E os progressos deste rei permitiram a D. Afonso IV

obter permissão do papa Bento XII para fazer guerra aos infiéis. No reinado de D.

Fernando, construíram-se muitos navios, tendo o rei concedido privilégios aos que

comprassem navios estrangeiros ou que os construíssem nos estaleiros portugueses.

D. João I, depois de confirmar a independência nacional, iniciou as conquistas

de além-mar, a Expansão marítima e a obra dos Descobrimentos:

“Em 1415, portanto decorridos apenas quatro anos sobre a assinatura da paz

com Castela, o rei de Portugal, à frente de uma enorme expedição militar (19.000

combatentes, 1700 marinheiros, 200 navios), conquistou a importante cidade de Ceuta,

no Norte de África. Este facto é considerado como o ponto de partida da polítca oficial

da expansão ultramarina.”46

Inspirado pelos valores de cavalaria, D João I quis revitalizar, tradições através

dos seus filhos47, entre os quais se distinguiram D. Duarte, D. Pedro, e D. Henrique, D

Fernando. Desejando que fossem armados cavaleiros, quis organizar grandes torneios,

mas os infantes preferiam mostrar as suas qualidades e conquistar aquela dignidade em

situações concretas de guerra para defender o reino:

“Não consentiu a morte tantos anos Que de Herói tão ditoso se lograsse Portugal, mas os coros soberanos Do Céu supremo quis que povoasse. Mas, pera defensão dos Lusitanos, Deixou, Quem o levou, quem governasse E aumentasse a terra mais que dantes: Ínclita geração, altos Infantes. Não foi do Rei Duarte tão ditoso

46 SARAIVA, José Hermano, História concisa de Portugal, Publicações Europa-América, Col. Saber, 7ª ed., Mem-Martins, 1981, pp. 122 47 F. ALMEIDA, Op. Cit., pp 275, “ Os filhos de D.João I, além de deixarem grandes exemplos de virtudes religiosas, morais e cívicas, tiveram alta cultura intelectual, prova de que não houve menor cuidado em formar-lhes a inteligência do que em educar-lhes a vontade. Diversos factos provam que os infantes eram muito estudiosos e ilustrados. Em carta dirigida a seu irmão D. Duarte, quando este subiu ao trono, dizia o Infante D. Pedro: “ E como quer, Senhor, que visse muitos Livros com singulares doctrinas aos Reys e Príncipes, quaes deveem seer, e vós delles tenhaaes muytos “ etc. [vide Pina, Rui de, Crónica de El-Rei D.Duarte, cap IV], (…) D. Duarte possuía uma livraria relativamente numerosa e selecta.”

32

O tempo que ficou na suma alteza, Que assi vai alternando o tempo iroso O bem co mal, o gosto co a tristeza. Quem viu sempre um estado deleitoso? Ou quem viu em Fortuna haver firmeza? Pois inda neste Reino e neste Rei Não usou ela tanto desta lei? Viu ser cativo o santo irmão Fernando (Que a tão altas empresas aspirava), Que, por salvar o povo miserando Cercado, ao Sarraceno se entregava. Só por amor da pátria está passando A vida, de senhora feita escrava, Por não se dar por ele a forte Ceita. Mais o pubrico bem, que o seu, respeita.48

A conquista de Ceuta foi uma oportunidade para a concretização desses desejos

do rei e significava expulsar os mouros, como acontecera na reconquista do território

português, dois séculos antes. Fizeram-se os preparativos para a conquista de Ceuta,

oficialmente o ponto de partida das aventuras portuguesas em África:

“Ceuta era um importante centro comercial terrestre e marítimo; situava-se

numa região agricolamente rica e num bom porto estratégico, que dominava o estreito

de Gibraltar. Podia servir de base para novas conquistas e, além do prestígio que um

tal feito representava para o rei, proporcionava-lhe ocupação para muitos nobres, cuja

profissão eram as armas.”49

E, apesar do falecimento da rainha D. Filipa de Lencastre, a 18 de Julho de 1415,

D. João I não desistiu desse projecto. No dia 25 de Julho, partiu da praia do Restelo, o

que prova a importância desta empresa e a forte convicção do rei.50 E, além do esforço

continuado dos monarcas portugueses, significava retomar a tradição nacional de defesa

e de expansão da civilização Cristã contra o Islão. Levar o Cristianismo para terras

africanas era um desejo de todos e um compromisso antigo com a Santa Sé. Sabe-se

igualmente que o infante D. Henrique estava, desde muito cedo, empenhado em fazer o

reconhecimento da costa ocidental de África, como relata Diogo Gomes de Sintra,

48 L. V. CAMÕES (1572); vide CAMÕES, Luís Vaz de, Os Lusíadas, Porto Editora, Lisboa, 1982, Canto IV, est. 50, 51,52, pp. 175 e 176 49 J. H. SARAIVA, Op. Cit., pp. 122 50 F. ALMEIDA, Op. Cit., pp. 267

33

almoxarife desta localidade, um dos homens da casa do Infante, enviado em expedições

nos mares da incógnita Guiné:

“No ano do Senhor de 1415, um fidalgo do reino de Portugal, D. João de Castro

(que era capitão da armada feita pelo Infante Dom Henrique, filho de D. João I, rei de

Portugal, e irmão da duquesa da Borgonha, mãe de Carlos, Infante esse que sempre

cuidou em manter fidalgos de boa estirpe e mandá-los às suas custas saber de regiões

estranhas), D. João de Castro, navegando pelo mar Atlântico, tomou pela força uma

parte de uma ilha dita Grã-Canária (...) Ao voltar, deparou com fortíssimas ondulações

marítimas a que os portugueses chamam correntes (...) Foi assim que o sobredito

capitão voltou a Portugal no meio das maiores dificuldades e deu conta ao Senhor

Infante do que acima se descreve.”51

Podem acompanhar-se as consequências das acções do Infante, de acordo com

os avanços que a pouco e pouco os exploradores lhe anunciavam, que se iam fazendo no

oceano Atlântico; é possível apreciar uma certa continuidade dos planos do Infante, e as

reacções, as alterações, as adaptações imediatas ao conhecimento que os corajosos

navegadores transmitiam no regresso das aventuras:

“Por outra parte, no ano seguinte, 1416, mandou o senhor Infante D. Henrique

um nobre cavaleiro, de nome Gonçalo Velho, passar além das ilhas Canárias, sem se

afastar da costa, com a intenção de saber o motivo de tamanhas correntes de mar.”52

Há razões para acreditar que, no século XIV, já se conhecia o arquipélago da

Madeira e algumas ilhas dos Açores. Além disso, a verdade é que muitos estrangeiros

viajaram até Portugal ao longo do século XIV para trabalhar em múltiplos ofícios,

alguns deles convidados pelos sucessivos monarcas; e no século XV muitos oferecerem

os seus serviços ao Infante, na empresa dos Descobrimentos. Entre outros, de variadas

nacionalidades, os genoveses Cadamosto e Usodimare colocaram-se ao serviço da

Coroa Portuguesa:

“Tendo eu ficado no Cabo S. Vicente pelo modo sobredito, o dito Senhor

mostrou haver grande prazer com a minha ficada e fui dele mui bem recebido; e depois

de muitos e muitos dias mandou armar-me uma caravela com o lote de cerca de 90

tonéis da qual era patrão um Vicente Dias, natural de Lagos, que é um lugar próximo

do Cabo de S. Vicente 16 milhas. E fornecida de todas as coisas necessárias para a

51 D. G. SINTRA (1484-1496); vide SINTRA, Diogo Gomes de, Descobrimento Primeiro da Guiné, (Edição crítica de Aires A. Nascimento), Ed. Colibri, Lisboa, 2002, pp. 51 52 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 53

34

nossa viagem, em nome de Deus e em boa hora, partimos do sobredito Cabo S. Vicente

no dia 22 de Março de 1455,...”53

E também uma carta de Antoniotto Usodimare (de 12 de Dezembro de 1455),

assinala a presença deste aventureiro e comerciante genovês em Portugal, precisamente

no mesmo ano:

“E o Senhor Rei, vendo o que se passava, queria excluir-me de tal empresa, mas

graças aos rogos do tal secretário, concordou em que eu vá a essas partes com esse

secretário. Por isso, em nome de Deus volto a fretar uma caravela na qual seguirei, e

levarei um carregamento dos servidores do Senhor Infante, e espero com o negócio

equilibrar todo o meu futuro”.54

Portanto, é certo também que Sagres se tornou num centro de cultura da arte

náutica e um centro de contactos privilegiados, conhecido por toda a Europa, onde se

concentraram muitos estrangeiros. Muitos acalentavam a esperança de participar nas

aventuras dos portugueses, por necessidade, por curiosidade ou por ambição, esperando

enriquecerem tal como outros viajantes; significa que, desde muito cedo, estas viagens

cumpriram os objectivos económicos de Portugal.

Várias fontes nos informam sobre a grande actividade marítima dos portugueses.

Uma dessas fontes é a narrativa de Diogo Gomes de Sintra, reveladora do estado de

espírito que animou muitos dos que participaram nas primeiras descobertas. Confirma

que os portugueses se embrenharam no oceano Atlântico, desfazendo muitas lendas

medievais sobre o Mar Tenebroso, misterioso e povoado de monstros, assustando os

que ousassem avançar mais além. Dos perigos do mar os portugueses tinham já um

claro conhecimento e a experiência necessária para se lançarem no mundo incógnito.

Este projecto, para o qual contribuíram vários reis, surge como uma necessidade

mas também uma nova aventura para o país, surgindo a figura do Infante D. Henrique

como o mais veemente impulsionador dessa grande empresa dos Descobrimentos:

“ (…) bem-aventurado é o Infante D. Anrique que o glorioso Deus, pera se isto

comprir, escolheu; e, assi, são bem-aventurados os Reis de Portugal que suas vezes

sobcederam, e em tanto lograram a glória, riquezas e honra destas conquistas e

comércio, com paz e acrecentamento, enquanto, com caridade e aspereza, servindo

53 L. CADAMOSTO e P. SINTRA (1463-1465?); Op. Cit., pp. 89 e 90 54 “Portugaliae Monumenta Africana”, vol. I, in Mare Liberum, INCM, 1993

35

Nosso Senhor, delas bem usaram. A qual navegação começou o Infante, por serviço de

Deus, do cabo de Não pera diante.”55.

E não só pelo que acima se transcreve. Mais impressionante se torna a sua acção,

se considerarmos a seguinte afirmação do cronista Gomes Eanes de Zurara, a primeira

razão do Infante enunciada no começo deste nosso capítulo e que fundamenta a

intencionalidade da sua acção:

“E porque o dicto senhor quis disto saber a verdade, parecendo-lhe que se ele

ou algum outro senhor se não trabalhasse de o saber, nenhuns (…) e vendo outrossim

como nenhum outro príncipe se trabalhava disso (…)”.56

Pressupõe que outros príncipes poderiam interessar-se pela sua causa, mas a

convicção e os fundamentos do Infante eram mais fortes e a sua vontade foi

determinante. Diogo Gomes de Sintra parece acompanhar de muito perto as intenções

do Infante e as evoluções dos acontecimentos:

“Nesse tempo, recebeu o Infante Dom Henrique graça, privilégio e Cartas do

Sumo Pontífice, que então era Eugénio IV, de que nenhum príncipe, rei ou senhor

algum ousaria ir às partes da Guiné sem licença sua e do rei de Portugal, sob pena de

excomunhão.”57

Na edição crítica de Aires A. Nascimento, que temos consultado58, esclarece-se

que “na realidade, a Bula de concessão é de Nicolau V e data de 1454; o Papa Eugénio

IV é anterior (1431-1447).” Contudo, os factos estão correctos, o que pode significar

um erro de memória do informador, navegador e homem muito próximo do Infante e da

Coroa portuguesa, que pode ter feito este registo muito tempo depois de ocorrerem estas

situações.

Esta notícia repete-se mais tarde, por volta de 1508, com Duarte Pacheco

Pereira, em Esmeraldo de Situ Orbis; retoma esta linha de raciocínio, baseando-se ou

não nas nossas fontes, ou noutros testemunhos à época mais acessíveis. Com grande

naturalidade revela que o Infante não só concebeu um projecto para Portugal, tendo-o

transmitido a vários reinos, acreditando talvez que seria útil e necessária a ajuda de

outros reis para tão importante empresa. Ao que parece, os europeus não acreditaram

nas suas informações e declinaram qualquer interesse:

55 D. P. PEREIRA (1505-1508); vide PEREIRA, Duarte Pacheco, Esmeraldo de Situ Orbis, (Introdução e Anotações Históricas de Damião Peres), Academia Portuguesa de História, 3ª ed, Lisboa, 1988, pp.79 56 G. E. ZURARA (1453); Op. Cit., Cap. VII, pp. 44-49 57 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 65 58 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit.

36

“ E tanto que a estes reinos foram trazidos os primeiros negros e por ele

sabida a verdade da Santa Revelação, logo o Infante escreveu a tôdolos reis cristãos

que o ajudassem a este descobrimento e conquista por serviço de Nosso Senhor, e todo

o proveito igualmente lograssem, o que eles não quiseram fazer; mas, havendo isto por

vaidade, lhe renunciaram seu dirieto. Pelo qual o Infante mandou ao Santo Padre, o

Papa Eugénio IV, Fernão Lopes de Azevedo, fidalgo de sua casa e do Conselho de El-

Rei D. Afonso o Quinto, comendador-mor da Ordem de Cristo; o qual apresentando ao

Sumo Pontífice a embaixada do Infante e renunciação dos ditos Reis, lhe foi outorgado

tudo o que pediu.”59

Ainda de acordo com Zurara, o Infante teria várias razões para o descobrimento

e a conquista de novas terras, entre elas, as mais evidentes seriam: conhecer a costa

africana para além das ilhas Canárias; procurar outros povos cristãos; desenvolver

relações comerciais; defender-se contra os mouros, conhecendo melhor o seu poder

naqueles territórios; procurar aliados cristãos contra os mouros; difundir a fé cristã.

O Infante D. Henrique era um homem privilegiado, se considerarmos que se

encontrava numa posição de maior acessibilidade a todo o tipo de informação que

circulasse no país ou no estrangeiro. Com certeza, a proximidade à Coroa, a sua posição

social e a sua formação permitir-lhe-iam o acesso mais facilitado a várias fontes, às

informações dos autores da Antiguidade ou de fontes medievais, como por exemplo O

Livro de Marco Polo. Desconhecem-se ainda as fontes concretas de informação do

Infante mas aquelas e o contexto económico das rotas comerciais, à época, já poderiam

permitir-lhe projectar o descobrimento do caminho marítimo para a Índia, de onde

vinham há muito as especiarias para a Europa, pelas rotas do mar Vermelho; buscava

também as informações que, desde o século XII, circulavam na Europa, acerca do reino

cristão do Preste João das Índias, com grande probabilidade conhecido dos comerciantes

árabes que controlavam o comércio no Oriente e que, por razões comerciais,

obviamente contactavam com os comerciantes europeus, venezianos e genoveses,

intermediários daquelas mercadorias.

Acreditava-se que aquele rei cristão poderia ser um aliado dos cristãos e de

Portugal, contra os muçulmanos que eram por aqueles considerados como uma ameaça.

Mas as informações sobre a localização deste reino eram contraditórias. Sabia-se da

existência deste reino contudo as informações seriam confusas. Assim, ao longo de

59 D. P. PEREIRA (1505-1508), Op. Cit., pp. 79

37

muitos anos, os portugueses procuraram a localização e o auxílio do reino do Preste

João da Etiópia60:

“Das Alagoas do rio Nilo de que, neste capítulo acima, falamos, temos sabido

que delas um grande braço corre, por meo da Etiópia Inferior, contra oucidente, o

qual, segundo a ordem do caminho que traz das longas terras de que vem, dizem os

Etiópios 61que o rio de Çanagá é; porque de tôdolos rios desta região da Etiópia os

quais por muitos anos cada dia praticamos, sabemos certo que este é o maior, segundo

se mais largamente dirá no capítulo que adiante vier, que do rio de Çanagá falar.”62

Sabe-se que o Infante D. Henrique orientava esta empresa dos Descobrimentos e

parece que antecedia as descobertas por informações concretas, objectivos e cálculos em

vários domínios, além de uma complexa preparação das viagens; escolhia-se o

comandante da expedição, pensava-se no número de naus e de marinheiros, a

quantidade de mantimentos e de água para o tempo de viagem previsto, ao que se

juntavam técnicas e instrumentos de navegação, etc. Eram investimentos consideráveis

para um país com poucos recursos e que, à época, vivia em crise económica. Os

resultados que conhecemos sobre estas expedições indicam que não eram concretizadas

ao acaso, decorriam de estudos de várias fontes escritas, da parte do Infante, do rei D.

Duarte, de contactos múltiplos e variados com o exterior. Eram acções pensadas,

estudadas, aplicadas com ponderação e prudência, ou não teria sido tão rápida e eficaz a

descoberta dos lugares desconhecidos e imprevisíveis. E, de facto, é inegável que se

revelaram muito perigosos em determinadas etapas destas aventuras marítimas.

A costa ocidental africana foi a primeira etapa dos Descobrimentos. Teve a força

do primeiro impacto, sobre os intervenientes directos e depois sobre o mundo; uma

acção que trouxe muitos perigos e muitas novidades que os marinheiros portugueses

46 L. ALBUQUERQUE, Op. Cit., pp.174, “ A ideia de uma extensa Etiópia é confirmada em Santo Isidoro. Nas Etimologias, depois de nos dizer que os Etiópios são negros porque “ o queima a proximidade do Sol”, situa a região numa larga faixa transversal da África, que de modo nenhum se pode identificar com a Etiópia de hoje. O texto de Santo Isidoro diz assim: A Etiópia na parte ocidental é montanhosa, arenosa no meio e ao oriente deserta. Estende-se desde o monte Atlas até aos limites do Egipto, ao meio-dia tem o oceano e por setentrião o Nilo. O Nilo aqui referido não podia deixar de ser o rio dos Negros de Solino e Nunchul de Mela, isto é, o Senegal dos navegadores portugueses. Mas o texto é ainda mais afirmativo, quando acrescenta: Há duas Etiópias: uma que está próxima da saída do Sol, e outra que está no ocaso, junto da Mauritânia. Conclui-se, portanto, que uma tradição geográfica estabelecida desde os primeiros séculos da era cristã dava o nome de Etiópia a uma larga região que se estendia do Atlântico à contracosta; os seus limites setentrionais seriam, de ocidente para nascente, a Mauritânia (prolongada até ao rio dos Negros), a Núbia e o Egipto.” 47 Os habitantes da Etiópia são os guinéus, no século XV. 62 D. P. PEREIRA (1505-1508), Op. Cit., pp. 25

38

tiveram que compreender. Para um marinheiro da Idade Média que, ao longo da vida,

ouviu falar de histórias aterradoras sobre o Mar Tenebroso e o fim do mundo, esta linha

da costa significava um perigo iminente, uma ameaça de morte. Seria de ânimo leve

que, ainda hoje, um homem comum viajaria numa nave em direcção à Lua ou a Marte?

E, além deste obstáculo psicológico que os navegadores tiveram de vencer, com muita

ousadia e coragem, a verdade é que, souberam depois, aquele mar era de facto muito

perigoso, muito agitado, com muitas correntes marítimas e ventos que dificultavam

grandemente a navegação, exigindo conhecimentos avançados sobre as técnicas de

navegar, sobre os ventos e as marés, etc. Por outro lado, a necessidade de encontrar

alternativas económicas para resolver os problemas do país, os objectivos de ir sempre

cada vez mais longe e difundir a fé cristã, eram motivos tradicionais e suficientes para

iluminar o espírito destes marinheiros portugueses que se orgulhavam de combater em

defesa da nação. Eram homens nobres e homens do povo, despertos para as coisas

novas, para a aventura, para arriscar, orientados para recolher e registar todas as

informações sobre os lugares que ninguém conhecia.

Muitas naus portuguesas seguiram na direcção da costa africana por volta de

1420 e 1430. O Cabo Não já era conhecido no século XIV e ultrapassar o mais

assustador - o Cabo Bojador -, a apenas sessenta léguas além do outro cabo, já era com

grande probabilidade a principal preocupação do Infante D. Henrique. Gil Eanes,

enviado pelo Infante, conseguiu dobrar o grande obstáculo do Cabo Bojador em 1434,

constatando que o mundo se alargava a partir dali, muito ao contrário do que se

esperava. E, tendo ultrapassado este cabo intimidatório, as descobertas sucederam-se a

um ritmo mais rápido. No ano seguinte, o mesmo Gil Eanes e Afonso Gonçalves

Baldaia chegaram ao Rio do Ouro, encontrando o ouro, essa enorme riqueza de que

havia notícia na Europa.

Então, estas viagens começaram, naturalmente, a chamar a atenção de um maior

número de pessoas e de nações, mais interessados nos proveitos que delas poderiam

obter. Facilmente podemos deduzir que múltiplas informações sobre as Descobertas dos

portugueses se espalharam, desordenadamente, sobretudo pelos outros países europeus e

pelo continente africano, na segunda metade do século.

Multiplicaram-se as expedições até 1450. O Cabo Branco foi atingido por Nuno

Tristão em 1441 e talvez este tenha sido o primeiro navegador a chegar ao Senegal, ao

rio Gambia e ao Saloum. Em 1444, Dinis Dias descobriu o Cabo Verde e o Cabo dos

Mastros que se situam no território da República do Senegal. E, em menos de trinta

39

anos, os portugueses tinham descoberto e baptizado muitos novos lugares. Este ritmo

acelerado das Descobertas atesta, uma vez mais, a orientação dos marinheiros para

executar um plano, estando dispostos a ir a toda a parte para conseguir notícias novas

para o Infante, sobre os lugares e as gentes que encontrassem, cujas culturas

desconheciam completamente.

Portanto, não se pode afirmar que houvesse certo tipo de premeditações da parte

dos portugueses, por exemplo em relação à exploração dos indígenas destes lugares.

É necessário separar os antecedentes das Descobertas e as suas consequências

directas em novos contextos económicos e culturais. O facto é que os projectos

marítimos do Infante e da Coroa portuguesa alcançaram prestígio, o reconhecimento e o

privilégio papal para continuar a empresa dos Descobrimentos e a divulgação da fé

cristã. Passados alguns anos, as recentes Descobertas eram reconhecidas e valorizadas:

“o mesmo papa Nicolau V, em 8 de Janeiro de 1455, pela bula Romanus

Pontifex, declara que as terras já descobertas ou a descobrir pertenciam ao rei de

Portugal e aos seus sucessores a título perpétuo, proibindo que alguém nelas

penetrasse sem autorização daquele monarca e reconhecendo o monopólio comercial

dos portugueses nesses territórios, incorrendo em pena de excomunhão quem nelas

exercesse comércio sem autorização dos monarcas portugueses.

Pela bula Inter Caetera, de 13 de Março de 1456, o papa Calisto III concede ao

prior-mor da Ordem de Cristo63 [Infante D. Henrique] a jurisdição espiritual nas terras

portuguesas do ultramar, dando-lhe o poder de instituir benefícios eclesiásticos.”64

Na verdade, as conquistas que os monarcas empreenderam na costa africana

foram legitimadas pela Santa Sé, e esse reconhecimento foi também uma conquista dos

portugueses; sendo, desde a sua fundação, uma nação profundamente lutadora e

religiosa, sempre os reis procuraram legitimar as suas conquistas, junto da Santa Sé,

para vê-las reconhecidas internacionalmente. De facto, a 18 de Junho de 1452, pela bula

Dum Diversis, Nicolau V concedeu aos reis de Portugal a autorização e a liberdade de

63 Nova Enciclopédia Larousse, 1994, vol 7: Ordem de Cristo “Ordem que herdou em Portugal, os bens e muitos dos membros da Ordem dos Templários, extinta pelo Papa Clemente V a instâncias de Filipe, o Belo, que cobiçava as suas riquezas. Fundada por D. Dinis, foi aprovada (1319) por João XXII, que lhe atribuiu a regra de S. Bento. A sua sede transferiu-se (1357) de Castro Marim para Tomar. Teve um papel notável no empreendimento dos Descobrimentos (descoberta, conquista e evangelização de novas terras), sendo seu administrador o infante D. Henrique. Com D. Manuel (que a chefiou desde 1484), a ordem ficou dependente da Coroa. A Ordem de Cristo foi secularizada em 1789, extinta em 1910 e restabelecida em 1918 para premiar altos serviços militares ou civis.” 64 J. C. MAGALHÃES, 1990, pp. 43

40

adquirir os domínios dos muçulmanos e de possuir os seus bens, num contexto de

combate aos infiéis, incitando-os a propagar o cristianismo (e originando o direito de

padroado concedido pelos papas a Portugal, também no Oriente).

Sabe-se que o Infante D. Henrique, sendo o orientador desta empresa dos

Descobrimentos, tinha o apoio da Coroa portuguesa. Frequentemente se regista o desejo

dos próprios navegadores de levarem ao Infante boas novas e provas sobre os lugares

descobertos – por exemplo flores, papagaios, pessoas negras. E o espanto com as novas

realidades não se esgotou em cada viagem; pelo contrário, foi-se expandindo e a

curiosidade também:

“Sem mentir, digo que vi uma grande parte do mundo, mas nunca vi coisa

semelhante a esta.”65

E, a par da surpresa dos navegadores portugueses, também o Infante reagia às

novidades:

“Ao ouvir isto, o Infante Dom Henrique incitou-o a ir saber daquelas terras por

mar para estabelecer comércio com elas e para garantir casa aos seus nobres. O dito

cavaleiro voltou a ter com o senhor Infante e deu-lhe conhecimento de ter encontrado

um mar sereno, mas cum contínuo vento rijo de aquilão e enorme quantidade de peixe

nas costas de tal mar.

O Infante mandou então aparelhar uma nau a que deram o nome de Talbin e

por capitão deu-lhe o copeiro de sua casa, de nome Afonso Gonçalves Baldaia.”66

O interesse do Infante é observável em vários momentos desta narrativa, embora

deva depreender-se que estas iniciativas precisam de um certo tempo de preparação,

meses e até anos, se considerarmos alguns períodos de paragem por outros motivos

políticos nacionais. Não era tudo imediatamente estabelecido, outros interesses se

intercalavam e condicionavam os avanços nas acções marítimas; e, ainda assim, o ritmo

das descobertas foi rápido, orientado pela lucidez deste homem determinado e atento às

mudanças:

“Por outra parte, depois da chegada do senhor Infante da armada com o rei

Afonso, depois do cerco e tomada da cidade de Alcácer, trouxe à memória ao senhor

Infante o que me dissera o rei Nomimans quanto a mandar-lhe tudo o que lhe

encomendara.

65 D. G. SINTRA (1484-1496), Op. Cit., pp. 65 66 D. G. SINTRA (1484-1496), Op. Cit., pp. 53

41

Isso tudo fez o Infante e mandou para ali um sacerdote parente do Cardeal, o

abade de Souto da Casa, para ficar com aquele rei e instruí-lo na fé. Além disso,

mandou com ele um moço da sua câmara, de nome João Delgado. Era isto no ano de

1458.”67

Ainda na mesma linha de raciocínio, o espanto dos marinheiros portugueses

manifestava-se naturalmente em relação a tudo o que viam, até a existência de redes de

pesca, feitas à maneira dos africanos, que denunciavam sem dúvida a presença humana.

E transportavam para Portugal essas surpresas visíveis, causando forte impressão junto

do Infante:

“Chegaram à costa do mar que toma o nome de Rio do Ouro, onde acharam

muitas redes feitas com cascas de árvores, porque naquele lugar há imensa actividade

de pesca.

Admirou ele [o senhor Infante] as redes que traziam com eles feitas pelos

homens daquela terra.”68

Compreensivelmente, este mesmo espírito se manifestou em relação às pessoas

que encontraram naqueles lugares:

“E vendo eles que nada aproveitavam, regressaram a Portugal e deram novas

de tudo ao senhor Infante.

Com isso o senhor Infante ficou muito satisfeito, pois tinham encontrado rasto

de gente.”69

Parece-nos que perante as diferenças encontradas nos nativos etiópios, os

navegadores pioneiros nesta aventura não hesitaram em mostrar as diferenças humanas

daquelas gentes ao senhor Infante, o príncipe D. Henrique que organizava todas estas

expedições marítimas:

“Ordenou-lhes que fossem até ao Rio do Ouro e que, se encontrassem gente,

fizessem tratado de paz com ela. Assim foram até ao Rio do Ouro; de noite foram com

batéis até à costa e ao alvorecer viram uma gente que vinha tirar água a um poço.

Cheios de satisfação, saltaram em terra com as suas armas e apanharam treze

homens e mulheres, enquanto o resto fugia. (...) E voltaram a Portugal, a ter com o

senhor Infante que muito se alegrou em sua companhia.

Por esses teve início o conhecimento daquela região. (...)

67 D. G. SINTRA (1484-1496), Op. Cit., pp. 86 68 D. G. SINTRA (1484-1496), Op. Cit., pp. 55 69 D. G. SINTRA (1484-1496), Op. Cit., pp. 57

42

O senhor Infante ficou a saber por eles o caminho para chegar a Tambucutu.

Disseram-lhe muitas mentiras.”70

Assim, o Infante D. Henrique ia recebendo novos dados sobre os novos lugares.

E das viagens da Descoberta traziam-se desta forma muitas informações concretas, que

o Infante aproveitava e adequava aos seus objectivos em vários domínios. Eram

investimentos consideráveis para um país que, à época, como em toda a Europa, vivia

dificuldades económicas e transformações sociais irreversíveis, como a falência do

feudalismo e as necessidades crescentes de rendimento por parte das classes senhoriais

que provocavam a ineficiência deste modo de produção. Também devido às

rudimentares técnicas de produção utilizadas nos trabalhos agrícolas, tornaram-se

insuportáveis as exigências dos senhores aos servos; como consequência das miseráveis

condições de vida dos trabalhadores, emergiu a burguesia e criaram-se novas

oportunidades sociais.

Portanto, estas expedições não eram concretizadas ao acaso, não poderiam

expor-se ao fracasso e perder tudo, embora fossem sempre um risco, como qualquer

investimento. Tal como nos nossos dias, investir era difícil e inseguro, exigindo adquirir

certo tipo de informações e de condições estratégicas. Com tempo para um certo

amadurecimento, faziam-se estudos de várias fontes escritas, mantinham-se e

promoviam-se contactos diversos com o exterior. Eram acções e investimentos que

levaram à descoberta de uma tão grande extensão de lugares imprevisíveis, em que

muitos pereceram. Neste contexto da Natureza, da navegação e do armamento, muitas

coisas não se podiam prever, por desconhecimento, e haveria muitas outras que

eventualmente nos ocorrem, designadamente: a especificidade dos perigos a que se

expunham naqueles mares e terras nunca antes visitados; distância a percorrer até

àqueles lugares; espaço e duração das viagens; dificuldades que teriam de enfrentar na

resolução de novos problemas náuticos, climáticos ou outros; número de marinheiros;

clima adverso; doenças; tipo de alimentação no mar e noutros lugares; receptividade

(amigável ou hostil) das gentes que encontrassem; adequação do armamento que

possuíam para a defesa e o ataque.

Um século depois, ainda está bem viva a memória das vidas que se perderam

nestas expedições marítimas, que Luís Vaz de Camões, n’ Os Lusíadas, não deixa cair

70 D. G. SINTRA (1484-1496), Op. Cit., pp. 57-59

43

no esquecimento e situa-nos, em vários momentos da epopeia, nesse contexto do perigo

e das incertezas, tanto no mar como em terra:

“No mar, tanta tormenta e tanto dano,

Tantas vezes a morte apercebida;

Na terra, tanta guerra, tanto engano,

Tanta necessidade avorrecida!

Onde pode acolher-se um fraco humano,

Onde terá segura a curta vida

Que não se arme e se indigne o Céu sereno

Contra um bicho da terra tão pequeno?”71

Apesar de tudo, os portugueses partiram intencionalmente de Portugal para

descobrir novos mundos; e pela primeira vez na História mundial, contornaram o

continente africano, chegaram à Índia por via marítima e viram o Brasil.

A descoberta da costa ocidental africana foi a vivência de toda uma realidade

nova, diferente e estranha. Foi uma acção que trouxe muitos perigos e muitas novidades

que os marinheiros, portugueses e estrangeiros, ao serviço do Infante D. Henrique,

tiveram de compreender, foram postos à prova para algo que nunca tinham visto, ouvido

ou sentido.

Caminhando para o desconhecido, os navegadores partiam de Lagos, no

Algarve, ou do Restelo, em Lisboa, ao serviço da Coroa portuguesa ou do Infante D.

Henrique que orientavam este projecto de Estado, virados para a conquista do Oceano

Atlântico, além do estreito de Gibraltar e do Norte de África, já sobejamente conhecidos

e explorados pelos povos do Mediterrâneo.

Como se prepararam para o desconhecido? Que experiência tinham para se

lançarem em aventuras no mar “Oceano”? Que marinheiros se colocavam nestas

expedições?

Diogo Gomes aponta-nos muitos dos primeiros navegadores e caracteriza-os, o

que nos permite identificar as classes sociais, a posição social dos navegadores

escolhidos para comandar as expedições e desbravar os caminhos ocultos:

“No ano do Senhor de 1415, um fidalgo do Reino de Portugal, D. João de

Castro (que era capitão da armada feita pelo Infante D. Henrique...) navegando pelo

Mar Atlântico, (...)” 72

71 L. V. CAMÕES (1572), Op. Cit., Canto I, est. 106

44

“Por outra parte, no ano seguinte, 1416, mandou o senhor Infante Dom

Henrique um nobre cavaleiro, de nome Gonçalo Velho, passar além das ilhas

Canárias.”73

No início da expansão, logo os fidalgos da corte eram chamados a cumprir esta

grande responsabilidade, como uma missão de guerra ou de paz, e nem sempre bem

sucedida, vendo-se de repente e frequentemente em grandes dificuldades que os

obrigavam a regressar ao reino.

As escolhas dos comandos das tripulações para estas viagens incidiam

naturalmente sobre nobres cavaleiros e sobre aqueles que, com certeza, o Infante já

conhecia bastante bem, confiando-lhes altas responsabilidades como a de comandar

viagens que representavam muitas dificuldades, que exigiam experiência de navegação

e de vida; daí que muitos deles tivessem já uma idade avançada. Mas, por outro lado,

colocava também homens jovens, capazes, da sua confiança, mais fortes e resistentes,

acautelando assim outros imprevistos, partilhando as virtudes de todos os que lhe

estavam mais próximos e que aceitassem esses desafios da aventura marítima, pelo

prestígio da nação:

“O Infante mandou então aparelhar uma nau a que deram o nome de Talbin e

por capitão deu-lhes o copeiro de sua Casa, de nome Afonso Gonçalves Baldaia. Com

ele mandou dois moços fidalgos com dois cavalos (...)”74

“Imediatamente, o senhor Infante fez uma armada de duas caravelas e mandou

por capitão-mor um cavaleiro já de idade que se chamava Nuno Tristão; por capitão

em outra caravela ia Antão Gonçalves, muito moço, que depois teve o castelo de

Tomar, com outros moços da câmara do senhor Infante”75

Estes homens, com experiências de vida diferentes, tinham contudo o

denominador comum de alguma proximidade ao príncipe, ao Infante D. Henrique, que

também não deixava de os premiar, de os recompensar pela coragem e valentia

demonstradas. Portanto, muitos alcançaram grande prestígio no reino em consequência

das suas acções nas Descobertas, tal como este Antão Gonçalves, por exemplo.

São homens e navegadores portugueses, com estas características, que atingem o

rio Senegal e o Cabo Verde, onde ainda hoje é considerado e homenageado o primeiro

72 D. G. SINTRA (1484-1496), Op. Cit., pp. 51 73 D. G. SINTRA (1484-1496), Op. Cit., pp. 53 74 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 53-54 75 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 57

45

navegador português que ali desembarcou, Dinis Dias, embora se pense que Nuno

Tristão terá sido o primeiro a chegar a estes sítios:

“Depois o senhor Infante expediu caravelas: numa ia alguém da sua própria

Casa, de nome Gonçalo de Sintra, e noutra um certo Dinis Dias; e queria que fossem

além do lugar chamado Pedra da Galé, para ver se mais longe poderiam apanhar ou

descobrir mais línguas (...)”76

A partir do momento em que fizeram o reconhecimento desta região, as viagens

passaram a ter não só o objectivo da descoberta desses lugares, mas também a

descoberta de novas áreas e rotas de mercado com os indígenas, o que obrigava a uma

maior eficácia da comunicação com os nativos – “descobrir mais línguas” - para obter

as informações necessárias sobre os produtos, os interesses dos intervenientes e dos

intermediários. Para isso, procuraram formas para desenvolver as trocas comerciais mas

também para as facilitar, passando pela necessidade de criar uma maior proximidade.

Assim, foi provavelmente quando descobriram um lugar onde afluíam periodicamente,

de forma sustentável, muitos comerciantes africanos para transaccionarem os seus

géneros, que em Portugal se decidiu construir uma fortaleza, para se instalarem

definitivamente e com maior segurança nesses circuitos comerciais, também para

defender o território contra os infiéis e instruir os nativos na fé cristã. Era também um

lugar aprazível, na ilha de Arguim, na actual Mauritânia:

“Mais além chegaram a um lugar que agora tem o nome de Arguim. (...)

A ilha tem muitos lugares onde nasce água doce na areia.

Por causa disso, o senhor Infante mandou depois fazer aí uma fortaleza.

Pôs aí gente segura de cristãos com um sacerdote de nome Polono, da vila de

Lagos, o qual foi o primeiro que celebrou os ofícios divinos na Guiné (...). Esta

fortaleza foi construída no ano de 1445.”77

Foi o lugar escolhido preferencialmente pelos navegadores, pelas condições

mais favoráveis que oferecia à presença humana, ficando a meio caminho entre o que

conheciam (que não ia além da Serra Leoa) e Portugal. Parece representar, assim, uma

estratégia para abranger e controlar melhor a totalidade dos territórios descobertos,

geridos unicamente pelos portugueses, naquela altura. Estas motivações podem

justificar o facto de os portugueses não terem uma presença mais forte no Cabo Verde,

76 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 59 77 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 59 e 61

46

no actual Senegal, desde que conheceram aqueles lugares, tendo-se adaptado às

circunstâncias que encontraram, e traçando sempre os seus objectivos em consonância

com aquilo que iam descobrindo, num processo de causa/ efeito. Muito cedo, montaram

essa estratégia que, à época, e naquele ponto das aventuras era mais benéfico e seguro

instalarem-se em Arguim do que no Cabo Verde, que acabavam de conhecer. Estando já

bastante distante do reino, as viagens até ao Cabo Verde eram necessariamente mais

penosas e dispendiosas do que a partir de Arguim, tanto para Norte como para Sul:

“De novo o senhor Infante fez uma armada de quatro caravelas. Os capitães:

Gil Eanes de Vilalobos, cavaleiro; Lançarote, almoxarife do Rei em Lagos; Nuno

Tristão e Gonçalo Afonso de Sintra. E houve muitos homens de nobreza que foram a

Arguim (...)”78

Deste modo, talvez possamos compreender mais facilmente por que motivos os

piratas e os outros europeus se introduziram rapidamente nos territórios do actual

Senegal, dado que as orientações dos portugueses se desviaram, mais para Norte e, mais

tarde, situaram-se também mais a Sul, nos territórios da actual Guiné-Bissau e outros

circundantes; isto também porque, tendo sido os primeiros a chegar ao continente

africano, procuraram a zona onde o comércio era mais intenso e onde os nativos eram

menos agressivos, pois, nas primeiras viagens ao Cabo Verde há notícia de tripulações

dizimadas, quase por completo, pelos negros que atiravam setas envenenadas ou que

atacavam de surpresa e de forma traiçoeira os visitantes que se aproximassem de terra,

como veremos mais adiante:

“Depois de o senhor Infante ter sabido notícias tão horrendas mandou uma

caravela armada de paz e de guerra, indo nela por capitão o já referido Nuno Tristão

que havia estado nas terras dos Cenegas com outros nobres. De Portugal navegaram

directamente até Cabo Verde.”79

É muito importante a atitude do Infante e dos navegadores perante os indígenas.

Enquanto transportava largos investimentos para as expedições marítimas, igualmente

ia sabendo de acontecimentos nefastos junto dos navegadores que comprometia nestas

viagens; não seria muito agradável perder as tripulações, ou as embarcações, ou

desviarem-se e não concretizarem os seus objectivos:

78 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 61 79 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 67

47

“Ao ouvir contar as notícias desagradáveis da morte dos seus cristãos, o senhor

Infante ficou muito triste. Andava então pelo seu paço um certo fidalgo do Reino da

Suécia que viera a Portugal para ser armado cavaleiro além-mar, em África; era seu

nome Abelhart. Desejando ele ver terras estranhas e principalmente as da Guiné,

rogava ao senhor Infante que o mandasse a tais paragens; anuiu o senhor Infante ao

seu pedido e deu-lhe uma caravela armada com alguns nobres da sua corte.”80

Se considerarmos os contextos de “notícias desagradáveis”, torna-se mais

compreensível que o Infante recebesse, de bom grado, a ajuda de outros príncipes ou de

estrangeiros destemidos, impressionados com estas aventuras inovadoras, como este

fidalgo da Suécia.

Por outro lado, não hesitava e continuava a armar caravelas para novas viagens,

com recurso a homens próximos da sua câmara ou do próprio rei:

“Não muito tempo depois, o senhor Infante armou uma caravela de Lagos que

tomava o nome de Picanço e fez seguidamente Diogo Gomes capitão dela. Armou

também outras duas caravelas para irem além. Fez de Diogo Gomes o capitão-mor

destas caravelas e numa das outras ficou como capitão João Gonçalves Ribeiro, criado

do Infante, enquanto na outra ficava Nuno Fernandes Baía, escudeiro do mesmo

Infante. E mandou-lhes que fossem além o mais que pudessem.”81

Neste caso, trata-se da experiência do navegador português, cujo manuscrito

temos vindo a consultar. Refira-se que, apesar da polémica que existe acerca da origem

deste texto, partilhamos a posição apresentada por Aires A. Nascimento que atribui a

autoria desse documento a Diogo Gomes de Sintra. Trata-se das informações recolhidas

por um português, que passou de forma marcante pelos territórios descobertos,

inclusivamente pelo território actual do Senegal. Para nós, tem grande valor a

experiência de uma testemunha ocular, de um navegador que teve contacto directo com

as novas realidades e com as novas gentes. Ainda que nos pareça que muitos destes

dados tenham sido escritos ou registados muito posteriormente aos acontecimentos ou

que possam ter sido adulterados ao longo dos tempos por algum possuidor do

documento, a verdade é que está aqui presente a cultura dos Descobrimentos que se

conhece e aceita em outros textos sobre as Descobertas.

80 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 69 81 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 69 e 71

48

Diogo Gomes empreendeu viagens ao serviço do Infante e do rei D. Afonso V,

teve várias oportunidades para aprofundar os seus conhecimentos na região do Senegal,

que nos interessa especificamente:

“Dois anos depois, porém, o rei Dom Afonso armou uma grande caravela, em

que me mandou por capitão. Levava eu dez cavalos comigo e fui à terra dos Barbacins

(...). O rei deu-me poder sobre as costas do mar, de tal modo que todas as caravelas

que encontrasse em terra da Guiné ficassem sob minha jurisdição ou domínio (já que

ele sabia que ali havia caravelas que levavam espadas e armas para os mouros),

ordenando-me que as trouxesse sob prisão até ele em Portugal”82

Reflecte-se até uma querela entre Diogo Gomes de Sintra e o genovês António

de Noli, acerca do descobrimento das ilhas de Cabo Verde, por ambos afirmarem ter

sido os primeiros a pôr o pé naquele arquipélago, precisamente na sequência desta

viagem ao Cabo Verde, em que se cruzaram e navegaram lado a lado; a descoberta tem

sido atribuída ao genovês, mas a questão ainda não parece estar cabalmente esclarecida:

“Com a ajuda de Deus em doze dias cheguei aos Barbacins e achei ali duas

caravelas, a saber, uma em que ia Gonçalo Ferreira, criado da Casa do senhor Infante,

homem morador no Porto, cidade de Portugal, que transportava cavalos para ali. Na

outra caravela estava como capitão o mercador genovês António de Noli, que também

transportava cavalos.”83

Partiam as naus com tripulações diminutas, inicialmente nem todos arriscavam o

seu futuro nestas aventuras, principalmente sem saberem se tirariam algum proveito

disso; por outro lado, o país não tinha muitos recursos e o investimento nestas viagens

era exigente e elevado; por isso, tudo era pensado, calculado com peso e medida, diante

de muitas incertezas sobre o que iriam encontrar e/ou ganhar. Outras dificuldades havia

como, por exemplo, os mantimentos que não se podiam conservar com segurança, com

facilidade, durante tempo incerto, em quantidades que de todo não podiam prever de

forma exacta se seriam as necessárias, as suficientes ou as melhores para lhes

permitirem resistir aos perigos ocultos em situações imprevisíveis.

Estas fragilidades, à partida, revelam também a enorme força do projecto do

Infante D. Henrique e do Estado português, que não se detiveram perante os obstáculos,

porque tinham objectivos firmes, inquestionáveis, e que muitos até transformaram na

82 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 89 83 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 90

49

oportunidade para encontrar uma vida melhor. O povo vivia numa grande pobreza; era

necessário lutar e arriscar para sobreviver. O Estado procurava soluções, tomava a

iniciativa para resolver problemas do país, buscava novas riquezas (metais preciosos,

especiarias da Índia, e outros produtos de difícil acesso em mercados longínquos),

novos caminhos e mais curtos para os mesmos produtos que poderiam obter, na fonte, a

mais baixos preços; teriam um mercado mais lucrativo, sem concorrência, e acederiam a

esses produtos que há muito escasseavam na Europa.

E, na sequência do espírito cavaleiresco medieval, muitos nobres estavam

dispostos a travar batalhas contra os infiéis ou conquistar novos lugares pelo prestígio

d’El-Rei de Portugal.

1.3. Os indígenas da Guiné

Segunda razão do Infante

“E a segunda foi porque considerou que, achando-se em aquelas terras alguma

povoação de Cristãos, ou alguns taes portos em que sem perigo pudessem navegar, que

se poderiam para estes reinos trazer muitas mercadarias, que se haveriam de bom

mercado, segundo razão, pois com eles não tratavam outras pessoas destas partes, nem

doutras nenhumas que sabidas fossem; e que isso mesmo levariam para lá das que em

estes reinos houvesse, cujo tráfego trazeria grande proveito aos naturaes.”84

Efectivamente, os portugueses vieram a desvendar mistérios que existiam desde

a Antiguidade Clássica, que os autores greco-latinos tinham difundido com base em

ideias fantasiosas sobre o Mar Tenebroso e sobre o litoral do continente africano, sem

contudo o terem visto, sem viverem a experiência do contacto com as realidades que

descreviam com tanto pormenor. Mas também existiam muitas lendas do conhecimento

do povo, e basta observar algumas das mais antigas representações do Mundo, para

termos a percepção destas influências até ao século XV:

“Num primeiro grupo, que teve muita aceitação nos meios religiosos, devem ser

reunidos os pequenos diagramas circulares onde é corrente a representação

esquemática do mundo conhecido, de acordo com os textos bíblicos. (...)

84 G. E. ZURARA (1453); Op. Cit., Cap. VII, pp. 44-49

50

Num segundo grupo deveremos juntar todos os planisférios e mapas, de nítida

filiação nos esquemas anteriores e na geografia erudita do cristianismo, onde se

anotam as representações, quase sempre imprecisas e profundamente erradas, de

países e acidentes mais conhecidos.

Num último grupo, de origem mais recente, terão de ser reunidos todos os

documentos cartográficos subsidiários das cartas náuticas, por terem sido desenhados

por cartógrafos que também eram autores destas ou que delas se serviram ao traçar a

representação do mundo que então se sabia ser habitado pelo homem.”85

De tal modo, que até à Idade Média, essas lendas intocadas resistiram,

convenceram, assustavam e dissuadiam muitos da exploração daqueles espaços. Entre

muitos documentos, apresentamos um exemplo, sobre lugares ainda próximos de

Portugal, citado pelo mesmo autor, Luís de Albuquerque, na mesma obra:

“Item. Está, pois, a ilha Canária, dita Canária pela grande quantidade de cães

que estão nela, muito grandes e fortes. Diz Plínio, mestre de mapas-mundo, que nas

ilhas Afortunadas há uma ilha onde crescem todos os bens do mundo, e sem semear e

sem plantar crescem todos os frutos. [...] Por este motivo acreditam os pagãos das

Índias que, quando morrem, vão as suas almas para aquelas ilhas e vivem por todo o

tempo do odor daqueles frutos e eles crêem que é o seu paraíso; mas para dizer a

verdade, isto é fábula.”86

Ainda gostaríamos de apresentar outra referência ao texto de um dos autores

mais influentes em Portugal e Espanha, à época, Pompónio Mela:

“No seu pequeno tratado de Geografia, Pompónio Mela não se limitou a

localizar as regiões do Mundo e a descrevê-las: acrescentou aos dados estritamente

geográficos indicações sobre a fauna, usos e costumes desses países; e é neste aspecto

que o livrinho se afasta muito da realidade, pois dá tal crédito a fantasias que o seu

autor é muito justamente apontado como um dos pioneiros desta literatura de

maravilhas.”87

Refira-se também o mais conhecido texto de John de Mandeville, dentro da

literatura deste género:

“O autor, imputando ao seu personagem uma longa viagem que nunca fez,

meteu na história dessas fingidas andanças pelo Mundo tudo quanto pôde encontrar de

85 L. ALBUQUERQUE, 2001, pp. 110-111 86 L. ALBUQUERQUE, 2001, pp. 120 87 L. ALBUQUERQUE, 2001, pp. 134

51

mais extraordinário na então já vasta bibliografia dessa geografia fantástica; e os

romances de cavalaria, dando aqui e além umas pinceladas romanescas, ajudaram a

compor os ingredientes de que saiu essa obra que é muito justamente considerada como

uma das maiores mistificações que a história da geografia regista.

Aparecem neste livro: as montanhas que vão para além das nuvens e dão

sombra com oitenta e seis milhas de extensão; a torre de Babilónia, morada de

dragões, serpentes e outros animais venenosos que não consentiam a aproximação de

visitantes; o “ paraíso terreal”, situado na mais alta montanha da Terra, tão alta que

tocava a Lua; e todos os lugares-comuns que os seus antecessores tinham

laboriosamente inventado – a Fénix, as trevas perpétuas no Norte da China, as

riquezas incríveis na mesma China e do Egipto, etc.

O que singulariza Mandeville é, porém, o poder de convicção com que redige as

maiores patranhas, conferindo-lhes um tom de autenticidade que elas não possuíam

noutros autores (…).)”88

Há ainda a considerar a grande difusão na Europa do Livro de Marco Polo:

“ O Livro de Marco Polo difundiu-se por toda a Europa e é muito de aceitar que

tenha entrado em Portugal na bagagem do infante D. Pedro, quando ele em 1428

regressou da sua jornada pelas “sete partidas”, como nos diz Valentim Fernandes no

intróito da edição em língua portuguesa que do texto nos deu. Porém, em relação ao

“plano da Índia”, Marco Polo apenas poderia ter sido um dos factores auxiliares que

contribuíram para o seu desabrochar; só mais tarde, tal como o foi para Colombo,

teria servido de meio de informação, o que, de resto, a edição portuguesa do princípio

do século XVI claramente denuncia.”89

Sobre estas maravilhas que se contavam, também se pronuncia Diogo Gomes de

Sintra, contrariando Ptolemeu, um dos grandes mestres antigos da Geografia que

influenciou a Idade Média e a Renascença. Contudo, há que ter em conta que a obra

deste autor só foi traduzida, vertida para Latim no século XV, o que inviabiliza

seguramente a sua grande influência nos Descobrimentos portugueses:

“Estas coisas que aqui se escrevem damo-las com a devida vénia do ilustríssimo

Ptolemeu, que muito de bom escreveu acerca da divisão do mundo, mas nesta parte

enganou-se. Escreveu, com efeito, que o mundo se dividia em três partes: uma povoada

88 L. ALBUQUERQUE, 2001, pp. 138 89 L. ALBUQUERQUE, 2001, pp. 130

52

que ficava a meio do mundo; a setentrional, segundo escreveu, não era povoada devido

ao frio excessivo; escreveu também que a parte equinocial do meridião era também

desabitada por causa do calor excessivo. Descobrimos que tudo era diferente.”90

Na verdade, ao contrário do que sucedera com as descobertas das ilhas da

Madeira e dos Açores, que posteriormente vieram a ser povoadas pelo reino de

Portugal, havia gente muito diferente e estranha na costa da Guiné, nunca antes visitada:

“Na viagem, passaram além do cabo de Tofia e acharam uma terra despovoada

e arenosa, como a anterior, sem vegetação nem àrvores. Indo mais além depararam

com uma terra cheia de àrvores, nomeadamente palmeiras, e saíram a terra. A sua

gente era toda negra.”91

No primeiro contacto, considerar o impacto da novidade é fundamental para

compreender os acontecimentos e, parece-nos, não se pode sequer esquecer ou

desvalorizar este aspecto, sob pena de se distorcerem os factos. Ao conhecerem os

habitantes destas terras, colocavam-se novas situações à presença dos portugueses nos

territórios da costa ocidental africana, onde tem início uma História comum, europeia e

africana, incluindo os territórios do actual Senegal que queremos observar.

Como poderíamos caracterizar estes contactos pioneiros? Que importância e que

influência têm no futuro destes povos?

O contexto da situação de comunicação era novo para os visitantes e para os

nativos. As gentes e os lugares, à primeira vista, apresentavam características distintas.

Os estrangeiros surgiram de repente, vindos do mar, navegando, eram brancos e

maioritariamente homens (há poucas notícias sobre mulheres que embarcassem nestas

primeiras expedições de exploração marítima). Camões, mais de um século depois

destes acontecimentos, não deixa de recordar esse contexto da dor dos marinheiros, na

hora da partida para aquelas viagens incertas; lembra-nos esses dramas humanos da

separação das famílias e dos amigos:

“A gente da cidade, aquele dia, (uns por amigos, outros por parentes, Outros por ver somente) concorria, Saudosos na vista e descontentes. E nós, co a virtuosa companhia De mil religiosos diligentes,

90 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 63 e 65 91 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 63

53

Em procissão solene, a Deus orando, Pera os batéis viemos caminhando.

Em tão longo caminho e duvidoso Por perdidos as gentes nos julgavam, As mulheres cum choro piadoso, Os homens com suspiros que arrancavam. Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso Amor mais desconfia, acrecentavam A desesperação e frio medo De já nos não tornar a ver tão cedo. (...) Qual em cabelo: “ Ó doce e amado esposo, Sem quem não quis Amor que viver possa, Porque is aventurar ao mar iroso Essa vida que é minha e não é vossa? Como, por um caminho duvidoso, Vos esquece a afeição tão doce nossa? Nosso amor, nosso vão contentamento, Quereis que com as velas leve o vento?” (...) Nós outros, sem a vista alevantarmos Nem a Mãe, nem a Esposa, neste estado, Por nos não magoarmos, ou mudarmos Do propósito firme começado, Determinei de assi nos embarcarmos, Sem o despedimento costumado, Que, posto que é de amor usança boa, A quem se aparta, ou fica, mais magoa.”92

Naturalmente, estas experiências vividas pelos portugueses nestas viagens

estavam fora do alcance dos africanos a Sul do Sara. Os autóctones daqueles sítios

longínquos, integrados numa paisagem específica, apresentavam aspectos humanos,

alguns semelhantes e outros diferentes; tinham a pele negra, eram homens, mulheres e

crianças. Também as indumentárias terão impressionado uns e outros, dentro das suas

referências culturais, e terão ultrapassado o horizonte de expectativa de ambos os lados,

com certeza. As modas eram outras. As experiências sobre o mundo também divergiam,

só de ver e de olhar:

92 L. V. CAMÕES (1572); Op. Cit., Canto IV, est. 88-93

54

“As caravelas, indo além de Cabo Verde, ou seja, em direcção ao polo

antárctico, descobriram uma terra desabitada. Avançando mais além descobriram uma

grande praia e chegaram a ela com os seus batéis. E logo saiu das árvores gente em

número de cor negra.”93

Para os exploradores portugueses, o calor, a flora e a fauna causariam sensações

novas e estranhas aos sentidos, não só pelo que havia de diferente mas também pelas

semelhanças que encontravam na terra e nos seres. O mundo estendia-se aos seus olhos

com aspectos novos que apreenderam dentro das suas referências culturais e que, quase

inadvertidamente, foram transplantadas por eles próprios para estes sítios e em contacto

com estas gentes distintas.

Afinal, não se cruzaram com monstros marinhos nem o mar entrou em ebulição,

nem sabiam desta gente negra. Facilmente concluíram que o senhor Infante tinha razão

para querer que atravessassem aquele mar “Oceano”, para ir “mais além”; estava

portanto bem informado e muito melhor do que quaisquer outros príncipes da Europa.

Tinham diante dos olhos a prova de todas as expectativas do Infante e logo isso lhes

servia de novo estímulo psicológico para continuar a participar nesta grande e corajosa

empresa dos Descobrimentos, um projecto que só traria prestígio a estes aventureiros,

ao Infante e à Coroa portuguesa. Renovava-se o estímulo com a descoberta seguinte e

entusiasmavam-se com a possibilidade de trazer as novidades a Portugal, juntamente

com as provas que pudessem encontrar, tudo o que estivesse ao seu alcance. Renovava-

se a confiança no futuro.

Houve entendimento entre os portugueses e os nativos daquelas terras?

Como estabeleceram o contacto? Como comunicaram?

Diogo Gomes de Sintra conta vários episódios cujas consequências dependiam

ou da capacidade de comunicar dos estrangeiros ou da receptividade dos indígenas:

“ Os cristãos faziam-lhes sinais de paz, mas eles não entenderam. Mandaram-

lhes os cristãos mercadorias que tinham trazido com eles a terra, mas eles receberam-

nas sem se disporem a falar. Os cristãos bem teriam podido apanhar alguns, mas não

ousavam fazê-lo pois o senhor Infante tinha-lhes mandado que não lhes fizessem nada

de mal e assim eles lhes fizeram.”94

93 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 67 94 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 63

55

Em primeiro lugar, os navegadores ao serviço do Infante não ousariam quebrar

as suas orientações e as instruções que recebiam seriam de um rigor extremo, sendo

inquestionável a admiração pelo príncipe. Mas a adaptação dos navegadores não foi

fácil, com certza, e nem todos teriam saúde que resistisse àquelas mudanças climáticas

fortes e repentinas.

Perante aqueles homens novos, era necessário comunicar. As mercadorias,

objectivas e concretas, apresentadas directamente, seriam um sinal dos interesses dos

estrangeiros em trocar os seus produtos, levaria à acção idêntica da parte dos que ali

viviam, mas a comunicação verbal seria impossível por desconhecerem a língua uns dos

outros. Portanto, uma característica comum aos visitantes e aos autóctones seria a

própria capacidade, desejo e necessidade de comunicar95; além da prática da utilização

de um turgimão / língua, teriam de recorrer a formas não verbais de comunicação e os

conteúdos das mensagens seriam de uma enorme simplicidade, seriam sinais humanos

gestuais, universais, muito óbvios, concretos, para se entenderem; esses aspectos

humanos universais devem ter sido a base da comunicação entre os indígenas e os

visitantes portugueses. Diríamos que esses conteúdos universais deveriam abranger tudo

aquilo de que um ser humano precisa para viver em contacto com uma determinada

comunidade e com a natureza.

Apesar das diferenças humanas encontradas (no início, a cor da pele, a

indumentária, a expressão verbal), houve um reconhecimento mútuo e imediato de seres

humanos, homens e mulheres. Mas a curiosidade e a criatividade humanas, de ambos os

lados, não pararam na observação do que lhes era estranho. Desde os primeiros

encontros, esta identificação psicológica existiria, o que de certa forma contribuiria para

aproximar estes grupos humanos de origens e culturas distintas. Sem falarem a mesma

língua, os primeiros contactos entre os portugueses e os guinéus, basear-se-iam num

conhecimento intrínseco dos aspectos humanos universais, o que nem sempre foi

pacífico. Eram contactos que ofereciam dificuldade, à partida, e portanto desenvolviam-

se resistências de ambas as partes; seriam lentos e complicados, cansativos e a precisar

de uma enorme paciência e dedicação. Teriam de criar as condições para uma atmosfera

de confiança entre os interlocutores, sob pena de não se entenderem e de não

conseguirem os objectivos a que se propunham. Seria contudo raro este tipo de relação

95 CARVALHO, José G. Herculano de, Teoria da Linguagem, Natureza do Fenómeno Linguístico e a Análise das Línguas, Coimbra Editora, vol I, 6ª Ed, Coimbra, 1983, pp. 11-54

56

calma e pacífica. Muitas vezes, os indígenas atacaram imediatamente, com as suas setas

envenenadas, aqueles que consideravam como invasores ou inimigos. Por outro lado, os

visitantes tinham de aceitar os termos do negócio impostos por aquelas gentes.

Além de ficarem impressionados com a nova paisagem, os navegadores

portugueses foram surpreendidos por estas habilidades dos negros que apareciam e

desapareciam repentinamente debaixo do seu olhar e não esperavam, com certeza, a

recepção daquela gente do reino de Beseguiche:

“ (...) Avançando mais além, descobriram uma grande praia e chegaram a ela

com os seus batéis. E logo saiu das árvores gente em número de cor negra.

O senhor daquela gente, de nome Beseguiche, era homem malvado e traiçoeiro

e todos os seus vizinhos o odiavam pela sua extrema malvadez; atirou ele setas

envenenadas aos cristãos e ficaram alguns cristãso feridos e imediatamente morreram

do veneno (...) Não tendo entrado em terra, regressaram eles ao rio Cenega, onde

encontraram as outras caravelas suas e assim todos regressaram a Portugal.”96

Estas “notícias horrendas” chegavam ao senhor Infante que mudava de estratégia

consoante os acontecimentos relatados pelos navegadores, que experimentavam

situações novas como esta e se sujeitavam a perder a vida nestas aventuras junto de

povos e de culturas desconhecidos.

Não perdendo o entusiasmo, o Infante de novo mandou uma caravela armada de

paz e de guerra, indo nela por capitão Nuno Tristão que havia estado nas terras dos

Cenegas com outros nobres:

“De Portugal navegaram directamente até Cabo Verde avançando para além,

até uma terra de homens malvados a que dão o nome de Sereres. Encontraram muitos

deles na praia do mar com arcos e setas envenenadas e não quiseram eles falar com os

cristãos.”97

Não parece ter sido fácil desembarcar nestas terras dos Cenegas, muito menos

comunicar com eles, pois em cada etapa que os portugueses venciam, acontecia uma

surpresa indesejável, no mar ou em terra:

“Avançando para além, navegaram para terra de Barbacins e descobriram um

pequeno rio que agora tem o nome de rio Nuno Tristão. Indo além depararam com

muitos negros dessa terra em almadias dentro do rio e fora dele no mar. Com setas

96 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 67 97 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 67

57

envenenadas mataram eles todos estes cristãos, tomaram a caravela, puxaram-na para

dentro do rio e fizeram-na em pedaços. Eu, Diogo Gomes, muito tempo depois, tive uma

âncora do rei dos negros que me fez presente dela.”98

Encontraram muita resistência dos indígenas ao longo da costa africana que

descobriram. Estes primeiros passos dos portugueses em terras de Cenega não foram

fáceis, foi necessário negociar, fazer contratos de paz e colocaram-se outras questões

como a necessidade de comunicar de forma eficaz. Apesar de levarem os “língua” como

intérpretes para falar com as gentes negras, estas revelaram-se agressivas e mantinham a

distância contra os invasores dos seus territórios, atacavam frequentemente as

embarcações portuguesas, demonstrando assim que estavam habituados a contextos de

guerra, com técnicas específicas para afugentar os inimigos. E os navegadores tiveram

de se proteger destes ataques, tendo sido obrigados várias vezes a regressar a Portugal.

1.4. O comércio no Cabo Verde

Terceira Razão do Infante

“A terceira razão do Infante foi porque se dizia que o poderio dos Mouros

daquela terra d’Africa era muito maior do que se comummente pensava, e que não

havia entre eles Cristãos nem outra alguma geração. E porque todo sisudo, por natural

prudência, é constrangido a querer saber o poder de seu inimigo, trabalhou-se o dicto

senhor de o mandar saber, para determinadamente conhecer até onde chegava o poder

daqueles infiéis.”99

Além da descrição da geografia e das gentes que os exploradores portugueses

encontraram, interessa-nos neste momento observar principalmente o tipo de relações

comerciais que se estabeleciam entre as gentes que habitavam aquelas terras, entre si e

com estes estrangeiros, à época. Muitíssimas expedições marítimas se organizaram em

Portugal até se desenhar a costa ocidental africana:

98 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 67 99 G. E. ZURARA (1453); Op. Cit., Cap. VII, pp. 44-49

58

“O senhor Infante mandou que as caravelas avançassem mais além. Indo,

porém, de paz e de guerra, descobriram um cabo belíssimo que entra pelo mar a que

deram o nome de Cabo Verde. (…) As suas gentes são extremamente negras.” 100

No que diz respeito aos primeiros contactos humanos nesta região, desde logo, o

leitor destes relatos pode facilmente deduzir que aquelas gentes estavam preparadas

para o combate, recorrendo a tácticas de uma enorme eficácia, afirmando-se como

verdadeiros senhores daqueles lugares. De facto, só eles conheciam bem aquela terra, a

sua beleza, os seus perigos, os seus segredos e as suas riquezas, tendo naturalmente

desenvolvido técnicas de defesa e de ataque que utilizavam contra qualquer ameaça.

Não foi fácil pôr o pé neste solo, de acordo com as notícias dessa época sobre

navegadores que, imediatamente atacados ao longo da costa, ficavam sem capacidade

de resposta, morrendo ou regressando inevitavelmente a Portugal. Ao avistar as

embarcações, os africanos nem sempre esperavam para identificar ou comunicar com os

visitantes. Por isso, as negociações exigiam certos cuidados e a criação das condições

necessárias para esse mercado:

“(…) descobriram um grande rio que tem o nome de Cenega, muito povoado.

Falaram os cristãos com essa gente através dos homens que traziam consigo e fizeram

pazes com eles, trocaram as suas mercadorias e trouxeram daí muitos negros

comprados.

E assim desde esse tempo até agora de cada vez trazem mais negros desde esse

lugar, que já não têm conta. A terra chama-se Gelofa (...) habitada também por negros

e em tão grande multidão de gente que custa a acreditar; (…) Pôs o senhor Rei duas

casas naquela terra de Cenégios para trocar as suas mercadorias por ouro, são elas a

de Arguim e a de S. João que fica próximo de Tofia e Anterote.” 101

Podemos depreender que, em algumas situações, foi necessário, e até mesmo

imperativo, estabelecer relações de paz, não só para conseguir uma aproximação

efectiva a estas gentes, mas também para possibilitar posteriormente trocas comerciais.

O espírito guerreiro daquelas gentes é perceptível nas descrições apresentadas

neste documento e podemos observar que se movimentavam ou se deslocavam não só

com frequência, rapidamente e com facilidade, para vender e comprar produtos vários,

mas também estavam sempre equipados para a guerra. Tão depressa faziam a guerra

100 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 65 101 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 63 e 65

59

como a paz, consoante o modo de aproximação dos estrangeiros ou os seus próprios

interesses comerciais:

“O senhor da terra, porém, pretendendo falar comigo na margem do rio, numa

grande floresta, trouxe com ele grande número de homens armados com setas

envenenadas, azagaias, espadas e adagas. Eu aproximei-me dele levando-lhe como

presente meus biscoitos e vinho do nosso, pois eles não têm vinho a não ser de palma.

(…) Ele deu-me três negros, duas mulheres e um homem (…)102

Estes senhores dos reinos africanos teriam esta enorme flexibilidade quando se

tratava de trocas comerciais. De acordo com as palavras de Diogo Gomes de Sintra,

neste contexto das relações comerciais, estes povos facilmente se entregavam à troca de

géneros, parecia terem hábitos nesse sentido e uma receptividade muito grande aos

produtos oferecidos pelos estrangeiros. Davam, em troca, homens e mulheres, que

também ofereciam de presente, como forma de reconhecimento ou para manifestar o

seu contentamento. Era, assim parece, uma prática comum e habitual entre os africanos:

“No outro dia (…) vimos gente do lado direito e aproximámo-nos dela e fizemos

pazes com eles. O senhor deles chamava-se Frangazick, sobrinho de Farisangul,

grande príncipe dos negros. Recebi deles 180 pesos de ouro em troca das nossas

mercadorias, a saber, panos, manilhas e outras coisas.103 (…)

Ele deu-me três negros, duas mulheres e um homem. Manifestou-me o seu

contentamento e cheio de alegria e de satisfação jurou-me (…)”104

A receptividade era tanta que se espalhavam, por todas as terras, mesmo muito

longínquas, as notícias sobre a presença dos navegadores. Praticavam-se trocas de

produtos, muitos deles desconhecidos dos “cristãos” portugueses (como por exemplo,

“dentes de elefante, malagueta em grão e em casca, tal como cresce”105):

“Acordadas as pazes com eles, correu fama por toda a terra de que havia

cristãos em Cantor e acorreram de todas as partes até ali, a saber do norte de

Tombucutu, bem como moradores do lado sul fronteiras à Serra de Gelei, tendo vindo

igualmente gentes de Quioquium que era uma grande cidade (…)”.106

Pode deduzir-se que o comércio entre estes povos era uma actividade de enorme

importância e que esses interesses económicos expandiram-se ainda mais com a

102 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 79 103 D. G. SINTRA (1484-1496);Op. Cit., pp. 73 104 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 79 105 D. G. SINTRA (1484-1496);Op. Cit., pp. 71 106 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 73

60

chegada dos produtos vendidos pelos portugueses. Por outro lado, estas gentes tinham

no continente africano, e em vastas regiões, uma organização comercial bastante sólida,

se tivermos em consideração o conhecimento profundo que tinham de possuir para

organizar e investir em grandes caravanas de camelos para transportar ouro e outros

produtos valiosos pelo deserto.

Todos os modos de vida pareciam assentar num sistema económico de trocas

comerciais que implicava uma mobilidade calculada e o investimento na força de

trabalho de escravos, sem a qual esses objectivos económicos, à época, não se poderiam

concretizar, dadas as duríssimas condições para o transporte das mercadorias e a

agressividade do clima, só para referir algumas das dificuldades óbvias que este tipo de

empresas enfrentaria:

“Fiquei a saber por eles que em tal cidade [Quioquum] havia abundância de

ouro e que por ali passavam as caravanas de camelos e dromedários que

transportavam as mercadorias de Cartago ou de Tunes, Fez, do Cairo e de toda a terra

dos sarracenos com carregamento de ouro que é transportado das minas do Monte

Gelu [Fouta Djalon]. A outra parte desse monte, no lado oposto, chama-se Serra

Leoa.”107

Por outro lado, há notícia de frequentes conflitos entre os vários senhores

daquelas terras, revelando-se uma organização política instável, a um tal ponto que

acontecia os líderes refugiarem-se junto dos estrangeiros, procurando protecção contra

os adversários ou rivais que sobrepunham o seu poder na sequência de jogos de poder

ou de guerras entre estes povos africanos:

“Era isto no porto de Zaza. Aí encontrei também Borgebil que havia sido rei de

Gelofa e que daí fugira por medo do rei de Burbruck que lhe tomara a terra.”.108

Portanto, a posse da terra era um sinal de poder mas também de riqueza do

senhor que a habitava, acompanhado dos seus súbditos e por homens de corte que se

distinguiam por determinados sinais como, por exemplo, brincos de ouro nas orelhas;

mas o líder do grupo nem sempre tinha garantida grande estabilidade no seu posto,

sujeito a guerras e cobiças constantes naquelas regiões.

Por fim, há um outro aspecto muito pertinente a considerar no desenvolvimento

de relações comerciais com os povos do continente africano. Trata-se da forma como

107 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 75 108 D. G. SINTRA (1484-1496) ; Op. Cit., pp 89

61

comunicavam, dado que se falavam línguas diferentes e desconhecidas nestas regiões.

Naturalmente, o aspecto linguístico foi, com toda a certeza, uma das primeiras

dificuldades sentidas pelos marinheiros portugueses e rapidamente tiveram necessidade

de resolver os problemas de comunicação. Para isso, como já dissemos, uma das mais

antigas estratégias dos navegantes foi a utilização de intérpretes (o “língua” ou

“turgimão”), emissores e receptores de mensagens, que poderiam levar à paz ou à

guerra. Os primeiros “língua” vinham até da Índia109, o que não deixa de ser

surpreendente, nesta fase das Descobertas - devia pensar-se que a Índia estava muito

perto; outras vezes, escravos e prisioneiros de guerra eram utilizados para contactos

com outros grupos. A comunicação entre os povos era difícil e, por conseguinte, os

interesses económicos foram sempre mais importantes para as populações, ao longo de

muitos séculos. E isto é tão verdade que os africanos nem precisavam de falar para

negociar, fazendo usualmente uma troca muda dos produtos, com determinadas regras

que os visitantes portugueses passaram a conhecer e aprenderam a utilizar no comércio

com estes povos. Portanto, eliminavam o obstáculo linguístico e substituíam-no por um

outro sistema que garantia a clareza nas transacções comerciais e a transmissão dos

mesmos interesses. Nem uns nem outros precisaram de aprender ou de falar línguas

diferentes, porém comunicavam, devido a interesses comuns:

“E as gentes de uns lugares, aos quais um deles chamou Bètu e outro

Abanbarraná e o outro Bahá, vão a esta terra de Toom comprar o ouro por

mercadorias e escravos que lhe levam; os quais no modo de seu comércio, tem esta

maneira, silicet: todo aquele que quer vender escravo ou outra cousa, se vai a um lugar

certo pera isto ordenado e ata o dito escravo a ua árvore e faz ua cova na terra,

daquela cantidade que lhe bem parece; e, isto feito, arreda-se afora um bom pedaço, e

então vem o rostro de cão, e se é contente de encher a dita cova de ouro, enche-a, e se

não, tapa-a com a terra e faz outra mais pequena, e arreda-se afora. E como isto é

acabado, vem seu dono do escravo e vê aquela cova que fez o rostro de cão, e, se é

contente, aparta-se outra vez fora; e tornado o rostro de cão ali enche a cova de ouro.

E este modo tem em seu comércio e assi nos escravos como nas outras mercadorias; eu

falei com homens que isto viram.”110

109 BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirti et al., História da Expansão Portuguesa, Volume I, A Formação do Império (1415-1570), Círculo de Leitores, 1998, pp. 418 110 D. P. PEREIRA (1505-1508); Op. Cit., pp. 107

62

Concluindo sobre estas ideias, podemos salientar três facetas dos africanos que

habitavam a costa ocidental de África: guerreiros exímios, comerciantes experientes e

verdadeiros senhores destes territórios. Desde logo, em meados do século XV, estes

traços foram referidos ou apresentados por vários informadores portugueses. Estes terão

conhecido muitas situações semelhantes às que foram analisadas. Revelaram muitas

características dos indígenas africanos que nem sempre são devidamente consideradas,

merecendo ser interpretadas e avaliadas com uma ponderação mais imparcial, ou seja,

uma leitura menos marcada por acontecimentos ainda recentes, como a descolonização,

por exemplo. Contudo, mais tarde, surpreendentemente, os africanos foram dominados,

explorados, vendidos na sua própria terra; e foi assim que se espalharam pelo mundo

inteiro.

63

2. O SENEGAL E OS PAÍSES LUSÓFONOS

Nesta parte do nosso estudo, interessa-nos observar de que modo a presença

portuguesa pode ser um traço cultural comum aos países da costa ocidental africana,

principalmente no litoral, onde se fixavam mais demoradamente os navegadores e os

comerciantes, após as Descobertas. Os portugueses espalharam-se pelos territórios

africanos, e desse ordenamento espontâneo resultaram regiões que sofreram maior ou

menor influência portuguesa. Por exemplo, as ilhas despovoadas de Cabo Verde,

quando foram encontradas, geridas apenas pelos portugueses que aceitaram fixar-se

naquele arquipélago, estavam mais isoladas e protegidas de influências externas, pelo

menos enquanto não foram rota preferencial dos piratas europeus também. Por

conseguinte, são mais evidentes as marcas da cultura portuguesa.

Pelo contrário, no continente africano, os portugueses não estiveram isolados ou

sozinhos, pois eram terras muito povoadas e posteriormente foram ainda ocupadas por

outros europeus. Quando os portugueses entraram na costa ocidental africana, eram os

primeiros europeus a chegar, desconheciam totalmente a cultura, os modos de vida dos

nativos da região, as formas de organização das gentes que viviam naquelas aldeias, as

línguas que falavam, etc. Começaram certamente a passar por ali e a tentar comunicar

com as comunidades que encontrassem, com o objectivo de criar zonas de negócio, o

que nem sempre foi fácil, como vimos. Contudo, terá sido um factor de avanço

conseguir contactar de alguma forma com os indígenas e obter informações cada vez

mais pormenorizadas sobre, por exemplo, o tipo de mercado que ali se estabelecia, em

que regiões preferencialmente se juntavam os indígenas para obter os produtos por

todos procurados. Tendo conhecido os locais de maior confluência do mercado africano,

acederam rapidamente a esses produtos e instalaram-se nas zonas de maior incremento

do comércio, passando a fazer concorrência nesses circuitos da economia. Arguim foi

um desses pontos de mercado que se transformou num centro comercial de grande

influência portuguesa:

“ E esta terra se chama Azara. E estes homens falam a língua dos Azenegues e

adoram a burla da seita de Mafoma.

(…) é achada ua alagoa pequena que se chama Idamém, na qual todo o tempo

do ano acham áugua e ali pousam os Alarves que vão de Arguim com suas

mercadorias, e doutras partes, e tomam folga e dão de beber a seus camelos e tomam

áugua pera o caminho. E quatro légoas desta alagoa, contra o sueste está outra alagoa

64

chamada Enseri. E neste deserto há uãs salinas donde tiram muito sal, e muito fino,

nesta maneira, scilicet, em certos lugares cavam a terra e acham, altura de um côvado,

uã fita como tábua e muito longa, de uã légua de comprido ou mais e às vezes menos, a

qual tem de grossura três dedos; e esta cortam em cantidade de seis palmos de longo e

três de largo; e destas tábuas cinco delas carregam um grande camelo. E é muito bom e

alvo, e eu o vi em Lisboa na casa da Mina, onde se fazem os tratos de Guiné, o qual ali

trouxeram de Arguim. E deste deserto levam os Alarves muitos camelos carregados

deste sal pera a feira de Tambucutu, onde por ele hão muito ouro.”111

Além deste mercado no continente africano, os portugueses foram

desenvolvendo um outro, paralelo, nas ilhas do Cabo Verde, que veio a ter ainda maior

influência no comércio português, principalmente após a Descoberta do caminho

marítimo para a Índia. Aquele espaço insular foi povoado e administrado pela Coroa

portuguesa, sendo um dos lugares preferenciais de escala dos navios vindos do Oriente.

Assim, a marca portuguesa foi-se espalhando um pouco por todos os espaços africanos

que os marinheiros visitavam ou onde se iam estabelecendo, como se sabe, no

continente ou nas várias ilhas atlânticas, numa presença contínua e permanente ao longo

de vários séculos, até ao século XX. Hoje, permanecem a Língua e a Cultura

portuguesas.

No ocidente do continente africano, a acção dos portugueses foi contudo

dispersa, desde as Descobertas. Por um lado, a extensão das terras era imensa,

impossível de ser controlada completamente; por outro lado, outros povos habitavam

nessas partes, tendo as suas próprias dinâmicas de poder, económicas e culturais. Além

desses aspectos, mais tarde, a partir do século XVI, veio a acrescentar-se a acção de

outros europeus, nessas zonas, que acabaram por transformar gradualmente as estruturas

organizativas dos africanos aí existentes. Como consequências imediatas, os territórios

africanos iam sendo ocupados e divididos entre quem se instalava e conseguia expandir

de forma mais eficaz o seu poder e a sua influência, situações que se mantiveram e se

aprofundaram até ao século XX, quando existia um continente caracterizado por uma

mescla quase indecifrável de marcas europeias e africanas.

Assim, os portugueses e a Língua Portuguesa fixaram-se definitivamente no

arquipélago de Cabo Verde, desenvolvendo-se ao longo de muitos séculos uma cultura

isolada, no meio do Atlântico, muito específica nesse espaço insular, habitado por

111 D. P. PEREIRA (1505-1508); Op. Cit., pp. 91

65

negros trazidos do continente africano e por brancos vindos da Europa. Na actualidade,

Cabo Verde mantém-se um país lusófono.

Na costa ocidental africana, os portugueses e a Língua Portuguesa dispersaram-

se por vários territórios, o que diminuiu a capacidade de intervenção de Portugal.

Contudo, vários países lusófonos aí surgiram na época da descolonização: Guiné-

Bissau, Angola, São Tomé e Príncipe. E muitos outros países mantêm, até hoje, muitas

das influências portuguesas que marcaram os lugares, a cultura e a História desses

povos. Essas marcas existem debaixo do pó dos tempos. Só investigações muito

específicas poderão trazer à luz essa acção portuguesa, oculta por sobreposições

sucessivas de acontecimentos que marcaram os africanos e todo o Mundo.

Encontrar no Senegal vestígios da presença portuguesa, idêntica à que se verifica

nos países lusófonos, é assim o nosso maior objectivo e a proposta deste nosso estudo.

Neste país francófono, a Língua Portuguesa é reconhecidamente necessária, em vários

contextos, onde há uma vontade nacional, por vários motivos, de intensificar as relações

com os países lusófonos da região, nomeadamente Guiné-Bissau e Cabo Verde, sem

excluir os outros. São também, com grande probabilidade, razões históricas,

económicas e culturais que definem o conflito recorrente em Casamansa, no Sul do

Senegal, área contígua à Guiné-Bissau. A Língua Portuguesa continua presente naqueles

lugares, sendo facilmente reconhecida e sentida como útil em certas situações.

2.1. A colonização

Quarta Razão do Infante

“A quarta razão foi porque de XXXI anos que havia guerreava os Mouros,

nunca achou rei Cristão nem senhor de fora desta terra que por amor de nosso senhor

Jesus Cristo o quisesse á dita guerra ajudar. Queria saber se se achariam em aquelas

partes alguns príncipes Cristãos em que a caridade e amor de Cristo fosse tão

esforçada que o quisessem ajudar contra aqueles inimigos da Fé.”112

112 G. E. ZURARA (1453); Op. Cit., Cap. VII, pp. 44-49

66

Interessa-nos observar o tipo de relações que se estabeleceram nesta mesma

costa ocidental africana, nos territórios da actual República do Senegal e nos espaços

circundantes onde chegou a Língua e a Cultura portuguesas, desde o século XV.

Em 1444, o português Dinis Dias desembarcou no Cabo Verde, continuando as

viagens, integradas nas orientações do Infante D. Henrique. Como vimos, o objectivo

destas viagens era já, com grande probabilidade, descobrir novas rotas comerciais, um

caminho marítimo que permitisse o acesso ao comércio das Índias, aos mercados das

especiarias que à época vinham, por outras rotas, do Oriente para a Europa. Como

ilustrámos anteriormente, parece-nos que esses interesses económicos justificam o

primeiro impulso para esta grande aventura das viagens marítimas empreendidas pelos

portugueses. Embora tudo pareça indicar que, à época, se adivinhava uma distância

mais curta, e um acesso mais rápido a esses mercados.

Acreditava-se que isso era possível pelas informações que, na Idade Média, na

Europa, já se conheciam, não só por livros escritos na Antiguidade, mas também do

relato de experiências de navegadores e de comerciantes de épocas mais recentes. A

história dos irmãos Vivaldi é recorrente, embora tenham desaparecido no mar sem mais

notícias. A história de Marco Polo, que navegou vários anos pelo Oriente, com o seu tio,

deixou descrições inovadoras e impressionantes para o mundo, sobre esses lugares

igualmente desconhecidos para os europeus. Mas também as lutas contra as invasões

muçulmanas na Europa colocaram os europeus em contacto com a cultura árabe, muito

bem informada sobre determinadas rotas de comércio, não só as que vinham do Oriente

pelo mar Vermelho, mas também as que existiam em África, se bem que o deserto do

Sara se tenha apresentado como um obstáculo intransponível ou muito arriscado de

ultrapassar para atingir o Sul do continente africano. Portanto, sempre algum

desconhecimento permanecia sobre o interior de África; era inevitável, pelo calor, pelas

condições climáticas e pelas condições insalubres que naquela época os homens tinham

menos capacidade de vencer, as doenças e a morte que provocavam.

Seria preciso conhecer muito bem os territórios. Os árabes sempre estiveram

melhor posicionados para conhecer as transacções comerciais que se faziam no Norte de

África, incluindo o Egipto, mas quase desconheceriam o continente africano mais a Sul.

Contudo, havia comerciantes vindos do Sul do Sara que, em caravanas, vinham fazer

comércio ao Norte de África, e também conheciam as rotas para Tombuctú. Contudo, o

interior do continente africano e a extensão das terras só muito depois do século XV

vieram a ser explorados.

67

Os portugueses chegaram à costa ocidental africana nas primeiras décadas do

século XV, por iniciativa da Coroa portuguesa que tinha interesses e objectivos

económicos, mas também se empenhou a nível religioso em busca do reino do Preste

João, na Etiópia (ou seja, África), que não sabiam localizar de forma exacta no

continente africano. Contudo, havia notícias desse reino cristão, do qual o Infante D.

Henrique esperaria apoio e ajuda para combater o Islão, contra o qual os portugueses já

se tinham debatido em Portugal, na conquista e reconquista cristãs do território

peninsular, para expulsar os mouros. À época, significaria uma continuação e uma

extensão da História de Portugal, um combate ao infiel, perfeitamente lógico e coerente

com a mentalidade tradicional portuguesa. Aliás, nos textos que consultámos, quando se

referem os descobridores portugueses, os autores destes textos chamam-lhes “cristãos”,

com enorme frequência, o que devia ter um significado muito mais específico. Haveria

implícitamente motivações religiosas muito fortes que conduziram a essa grande

aventura marítima portuguesa. Tratava-se de facto de um projecto realizado por cristãos.

O Infante D. Henrique empreendeu este projecto dos Descobrimentos marítimos

às suas próprias custas e com o apoio do Estado ou dos reis de Portugal: D. João I, D.

Duarte e D. Afonso V. Permaneceu, ao longo de vários reinados, esta iniciativa do

Infante para procurar um mundo novo, terras e gentes desconhecidas, e tinha acesso a

muitas informações. Ainda no início das Descobertas, quando o maior obstáculo foi

ultrapassado, depois do cabo Não, do cabo Bojador, à volta do qual muitas lendas

existiam (“quem passar além do cabo de Não tornará, sim ou não”113), o Infante

informou outros príncipes cristãos da Europa, pedindo-lhes apoio nesta empresa para

combater os infiéis, para conquistar as terras e tirarem proveito de novas riquezas. Mas

esta informação do Infante D. Henrique, para levar os reinos europeus a participar nesta

aventura dos Descobrimentos, não foi suficiente para obter o apoio desejado. Gomes

Eanes de Zurara refere-se, na Crónica da Guiné, a este desinteresse e falta de

solidariedade dos príncipes cristãos:

“E porque o dicto senhor quis disto saber a verdade, parecendo-lhe que se ele

ou algum outro senhor se não trabalhasse de o saber, nenhuns mareantes nem

mercadores nunca se disso intrometeriam, porque claro está que nunca nenhuns

daquestes se trabalham de navegar senão para donde conhecidamente esperam

proveito; e vendo outrossim como nenhum outro príncipe se trabalhava disto, mandou

113 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 51

68

ele contra aquelas partes seus navios, por haver de tudo manifesta certidão, movendo-

se a isso por serviço de Deus e d’el-Rei D. Eduarte, seu senhor e irmão, que aquele

tempo reinava114.”

Mais tarde, também Duarte Pacheco Pereira, na sua obra misteriosamente

intitulada Esmeraldo De Situ Orbis (não se esclareceu ainda cabalmente o significado

da palavra Esmeraldo) reafirma este desinteresse dos príncipes cristãos europeus, sobre

as Descobertas de Portugal:

“A qual navegação começou o Infante, por serviço de Deus, do Cabo de Não

pera Diante. E tanto que a estes reinos foram trazidos os primeiros negros e por ele

sabida a verdade da Santa Revelação, logo o Infante escreveu a tôdolos reis Cristãos

que o ajudassem a esse descobrimento e conquista por serviço de Nosso Senhor, e todo

o proveito igualmente lograssem, o que eles não quiseram fazer; mas, havendo isto por

vaidade, lhe renunciaram o direito. Pelo qual, o Infante mandou ao Santo Padre, o

Papa Eugénio quarto, Fernão Lopes de Azevedo, fidalgo de sua casa e do conselho de

el-Rei D. Afonso o Quinto, comendador-mor da Ordem de Cristo; o qual apresentando

ao Sumo Pontífice a embaixada do Infante e renunciação dos ditos reis, lhe foi

outorgado tudo o que pediu.”115

Devemos pois realçar o facto de a Santa Sé ter apoiado e estimulado o projecto

dos Descobrimentos portugueses, na condição de os portugueses lutarem contra os

infiéis e difundirem a fé. Podemos, pois, afirmar que as Descobertas estão

inegavelmente ligadas ao Catolicismo e ao poder da Santa Sé. Naquela época, o poder

temporal dos papas era aceite por todos os reis e príncipes cristãos da Europa, tinha

reconhecimento internacional desde o século XI. Gregório VII (1020-1085) foi o papa

que afirmou definitivamente o poder temporal do Sumo Pontífice e da Santa Sé,

reconhecida e aceite na cristandade, não só por razões religiosas mas também políticas,

pelo prestígio que conferia aos reis e às nações, com legitimidade inquestionável. Não é

portanto inesperada ou surpreendente esta preocupação do Infante D. Henrique em

informar a Santa Sé das suas conquistas ultramarinas e consequentemente obter

benefícios para o país. Neste ponto, torna-se necessário lembrar e demonstrar que, já

desde a fundação da nação portuguesa, o reconhecimento dos papas e a vassalagem de

D. Afonso Henriques à Santa Sé, foram alicerces fundamentais para o poder e o

114 G. E. ZURARA (1453), Cap. VII, pp. 44-49 115 D. P. PEREIRA (1505-1508); Op. Cit., pp. 79-80

69

prestígio dos reis de Portugal. Era natural que D. Afonso Henriques quisesse obter o

reconhecimento da sua qualidade de rei independente pelo Sumo Pontífice. Assim, pela

bula Manifestis Probatum116, de 23 de Março de 1179, D. Afonso Henriques garantiu a

continuidade da independência portuguesa. Nesta bula, era do interesse da Santa Sé que

os reis católicos expandissem a fé cristã e combatessem os seus opositores, os infiéis;

por isso, o papa Alexandre III vem, desta forma, reforçar o seu apoio no combate aos

infiéis e ao mesmo tempo, incita D. Afonso Henriques a prosseguir na obra da

“dilatação da fé cristã.” Este objectivo cristão continua a existir ao longo dos

Descobrimentos marítimos, pelas informações de Zurara e de vários outros autores.

Quando a expansão portuguesa se inicia, a nação portuguesa está consolidada e

o projecto dos Descobrimentos surge sempre alicerçado na História e na Religião de um

povo, determinado nas suas acções e interveniente nos destinos do país, com memória

assente nos valores da Independência portuguesa, de Afonso Henriques, e das relações

com a Santa Sé. Esses valores tradicionais mantiveram-se ao longo dos séculos, até ao

século XV, e até muito mais tarde. Assinale-se, por exemplo, a luta diplomática, travada

por Portugal, para ser reconhecida a independência após a Restauração, em 1640, em

que inúmeros obstáculos foram colocados, junto da Santa Sé, por vários países europeus

com influência junto dos papas. E só em 1670, os representantes diplomáticos de

Portugal conseguiram alcançar esse objectivo, o reatamento das relações com a Santa

Sé, pelo breve de Clemente X, Ex Litteris, de 19 de Julho de 1670.

Portanto, é fundamental não isolarmos estes valores tradicionais nem os

excluirmos da orientação e dos objectivos nacionais durante tantos séculos. Nesta época

que estamos a observar, estes factos assumem relevância na concepção das Descobertas

e nas suas consequências sobre os territórios do continente africano, pois, também foi

sempre um compromisso de Portugal expandir a religião cristã, mantendo boas relações

com a Santa Sé nesse domínio. Tomemos, pois, ainda como referências, estes dois

documentos, duas bulas papais (Dum Diversis de 18 de Junho de 1452 e Romanus

Pontifex de 8 de Janeiro de 1455) que legitimaram as Descobertas e as conquistas dos

portugueses em África, reconhecendo o monopólio comercial dos portugueses nos

territórios africanos e o compromisso dos cristãos.

116 Monumenta Henricina, citada por MAGALHÃES, José Calvet, Breve História Diplomática de Portugal, Colecção Saber, Publicações Europa-América, 2ª ed., Mem-Martins, 1990, pp 231

70

Como se explicam então as ingerências de outros europeus que não

participaram nessas Descobertas? Como se entenderam estes novos contextos

económicos, políticos e religiosos? Como reagiram os portugueses à invasão europeia

nos territórios que tinham descoberto com legitimidade e sofrendo tantas adversidades?

Até 1500, enquanto os grandes navegadores portugueses se orientavam por

novos percursos para a Índia e para o Brasil, alguns desses viajantes iam-se instalando

por terras africanas. Há notícias de que alguns portugueses ficaram nas terras do

Senegal, nas ilhas de Cabo Verde, dispersos por todas as terras de Guiné, isto é, por

toda a África Ocidental, onde fazem História também os países lusófonos, Cabo Verde,

Guiné-Bissau, Angola e os espaços insulares de S. Tomé e Príncipe. Porém, essas

memórias, sobre os contactos com os indígenas, são escassas. Registam-se não só em

poucos documentos escritos mas também na aprendizagem que os indígenas fizeram

sobre a Língua Portuguesa, a marca mais profunda dos portugueses e talvez a única não

planeada. A distribuição demográfica dos portugueses por estes territórios existiu, sem

dúvida, embora a sua dispersão e a falta de registos materiais sobre esses aspectos

possam colocar obstáculos ao conhecimento do grau de influência que exerceram nesses

lugares.

Estes dados históricos da Europa parecem irrelevantes para os africanos, à

partida não têm que ver directamente com as gentes daqueles territórios. Mas é um facto

que os africanos aprenderam a Língua Portuguesa, provavelmente na medida das

necessidades que tinham no comércio com os portugueses, que teriam uma presença

forte e única, até certo momento. No que diz respeito aos países africanos,

especificamente aos territórios do Senegal, sabemos que muitos portugueses se fixaram

ali. E os africanos comunicaram, primeiro só com os portugueses, mais tarde receberam

os outros europeus. Mas ser-lhes-ia difícil distingui-los por serem todos “brancos”; além

disso, os africanos desses territórios, recentemente descobertos, não dispunham de

qualquer referência cultural acerca dos estrangeiros. Ou seja, conheceram e partilharam

o comércio de interesse comum, passaram a distinguir os portugueses pela língua cuja

sonoridade já lhes era mais familiar, mais próxima e mais fácil. Esse aspecto da

anterioridade dos portugueses está bem ilustrado na descrição de Francisco de Lemos

Coelho:

“Por tudo isto que tenho dito se verà o muito proveito que se pode tirar deste

rio, por que se Guine he hum ovo, pódese bem, com verdade, dizer que elle he a gema.

He lastima que o estrangeiro se esteja aproveitando delle, sendo que nos o

71

descubrimos; mas á isso dis elle que, se fomos os descubridores, o fomos para elles, e

com rezaõ o dizem. Tudo isto se poderá remediar sem os escandelizar, mandando Sua

Alteza, que Deos Guarde, fazer hua feitoria em qualquer parte do rio, com os géneros

que elle trás e comprados da primeira mão, para que se pudessem dar com o commodo

que elle os dà, e deste modo tendo-os os portugueses, os do rio haviaõ de vender o que

tivessem antes aos seus que aos estrangeiros; e faltando-lhe o negocio dos portuguezes,

que he a maõ por que o fazem, logo despejaraõ o rio. E quando Sua Alteza naõ quizesse

meter fazenda sua podia consignar o negocio a mercadores que fizecem bolça, que aqui

se ouvera ella de fazer e naõ em Cacheo, donde se naõ hade tirar interece nenhu, nem

hade servir mais do que ruína, assim a esta ilha como a todo Guine, como a esperiencia

mostrara.”117

Também é certo que nos apercebemos de algum desânimo da parte deste capitão

português. Manifesta claramente o desejo de uma intervenção mais forte da Coroa

portuguesa no comércio do Cabo Verde, para que os portugueses obtivessem mais

lucros e para que lhes fizesse justiça porque eles eram, ao que parece, os intermediários

essenciais no mercado com os estrangeiros europeus e os africanos.

Os nativos de África desconheceram durante séculos os conflitos diplomáticos

que se deram entre vários países europeus, após as Descobertas portuguesas. Contudo,

os destinos de África decidiam-se na Europa, desde o século XVI. Os europeus

despertaram para o continente africano e os territórios ultramarinos portugueses foram

sendo ocupados directamente por outros (holandeses, franceses, ingleses, espanhóis) ou

trocados entre os europeus, consoante o interesse dos tratados e dos acordos de quem os

queria ratificar.

O que aconteceu foi que Portugal, a partir do século XVI, acabou por ser

pressionado, ou forçado, de várias formas e por vários adversários, ou à reconquista de

territórios por ele descobertos ou a cedê-los perante a invasão e as condições impostas

por outros. Nesta época, a nação portuguesa tinha dado a toda a Europa uma experiência

inovadora e invejável; por exemplo, logo estimulou a França e a Inglaterra a

empreenderem viagens aos lugares de que os portugueses tiravam tamanhos proveitos.

As grandes riquezas que os portugueses obtinham do comércio que faziam na África

ocidental provocaram sobretudo a cobiça dos franceses e dos ingleses.

117 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp 136-137

72

Desde então, a actividade dos corsários franceses contra a navegação e os

domínios portugueses intensificou-se. Naturalmente, perante os prejuízos causados, a

Coroa portuguesa reagiu a esses ataques. E, por exemplo, no tempo do rei D. João III de

Portugal e do rei Francisco I de França, houve necessidade de negociações entre os dois

países que levaram à assinatura do acordo de 14 de Julho de 1536 – o “Tratado de

Lião”. Este tratado mostra a relação de forças que se estabelecia entre estas duas nações

europeias, os interesses que as guiavam e os conflitos que existiam. Mediante este

acordo, o rei de França permitia que o rei de Portugal vigiasse a acção dos piratas e dos

corsários nos portos de França e que, se necessário fosse, efectuasse o sequestro dos

seus navios. Além disso, a França comprometia-se a castigar os seus súbditos que se

apoderassem de navios ou de territórios pertencentes a Portugal.

Apesar dos termos deste tratado, no sentido de se respeitar o comércio português

em África, os corsários franceses continuaram a atacar a navegação portuguesa:

“Os sucessivos monarcas franceses, Henrique II, Francisco II, Carlos IX e

Henrique III, prosseguiram na mesma política de publicarem cartas patentes proibindo

aos seus vassalos os ataques aos domínios e ao comércio de Portugal e consentindo,

sub-repticiamente, na actividade dos corsários franceses. (...)”118

E os franceses continuaram a ameaçar os domínios e as viagens dos portugueses

ao longo de todo o século.

Também no século XVI, no reinado de D. Sebastião, os ingleses atacaram os

domínios portugueses em África e a acção deste monarca português, com a ajuda das

suas frotas, evitava sucessivos assaltos dos corsários:

“ Os corsários ingleses continuavam entretanto a visitar a costa da Guiné, o

que motivou nova reclamação do embaixador português contida numa memória

dirigida à rainha Isabel em 25 de Junho de 1562. Os navios de guerra portugueses, por

outro lado, apresavam e metiam a pique os navios ingleses que encontravam na Costa

da Mina e no Golfo da Guiné, tratando-os como piratas, como aconteceu com o navio

Mignon da expedição de William Rutter. (…)

A resposta do governo inglês foi feita nos moldes das respostas anteriores,

dizendo que a rainha proibira aos seus súbditos visitar as terras de África que pagavam

118 J. C. MAGALHÃES (1990), Op. Cit., pp. 49

73

tributo a Portugal, mas que, em relação às restantes, não via razão para decretar tal

proibição.”119

Só na sequência de vários ataques à soberania portuguesa se compreende que o

rei de Portugal, D. Sebastião, dirigisse uma mensagem de um tal teor, e tão definitiva, à

rainha de Inglaterra, dizendo-lhe:

“ (...) que se os ingleses julgavam que lhes seria lícito invadir o território

português e como corsários cometer actos de pirataria, roubando os vassalos

portugueses, era lícito a estes repelir e punir tais atentados e ultrajes, o que não podia

ser considerado como um crime pelos príncipes que julgavam com justiça, tanto mais

que não devia causar admiração que os portugueses suportassem sem indignação que

estrangeiros se apossassem do que eles haviam conquistado com tanto trabalho e à

custa de tanto sangue, para gozarem do fruto de suas fadigas.120”

Apesar deste grave aviso, a Inglaterra continuava a emanar documentos contra

os portugueses e a manter um posicionamento ambíguo em relação a Portugal. Por isso,

a dada altura, o rei D. Sebastião colocou todos os meios à sua disposição em defesa da

sua nação e dos territórios ultramarinos que lhe pertenciam, impedindo o comércio dos

ingleses em todos os lugares possíveis. Noutros momentos, em Março de 1569, privou

os ingleses das propriedades que possuíam em Portugal e fortificou a cidade de Lisboa.

Impediu o comércio dos ingleses em todos os portos de mar e reforçou a defesa em

África, principalmente em Ceuta e Tânger. E para evitar os assaltos aos navios

portugueses vindos das Índias, enviou vinte navios para os Açores. Estes são apenas

alguns dos exemplos mais significativos que podemos recolher sobre iniciativas

incisivas dos reis de Portugal em defesa dos interesses da nação, contra a cobiça dos

estrangeiros europeus que agiam impunemente e fora de qualquer contexto legal,

atacando pessoas e bens, não olhando a meios para atingir os seus objectivos, assinando,

apenas, em último recurso e sem verdadeira intenção de cumprir, acordos com Portugal

para restabelecer uma ordem que mais tarde não reconheceriam.

Estas acções de D. Sebastião tiveram como efeito imediato a interrupção do

comércio dos ingleses com Portugal. E os prejuízos foram tão elevados que os

negociantes apelaram repetidas vezes à rainha para que a situação se modificasse.

119 J. C. MAGALHÃES (1990), Op. Cit., pp. 51 120 VISCONDE DE SANTARÉM, Quadro Elementar, vol XV, p. CXXIII, citado por J. C. Magalhães (1990), Op. Cit., pp. 52

74

Pelos mesmos motivos do anterior tratado com a França, o rei de Portugal e a

rainha de Inglaterra assinaram também um acordo - o “Tratado de abstinência”, de

1576:

“(...) um documento da mais alta importância pelo qual a nascente potência

marítima que era a Inglaterra, que tendo abraçado o protestantismo não reconhecia a

validade das bulas papais em que se afirmava o direito exclusivo português às suas

conquistas ultramarinas, reconhecia formalmente esse domínio português.”121

Contudo, este Tratado tinha a duração de apenas três anos. Nessas circuntâncias,

os ingleses alimentaram a esperança de o renovar e de fazer alterações às disposições

deste acordo. Não podemos saber se essas pretensões se efectuariam porque entretanto o

rei de Portugal faleceu em 1578, na sequência de uma trágica batalha em Alcácer-

Quibir, ainda antes de expirar a validade deste Tratado, ficando Portugal numa grave

crise de sucessão. Só devido a estas situações imprevisíveis, que deixaram o país à

mercê, aconteceu a ocupação espanhola e a impossibilidade de renovação destes

acordos com a França ou com a Inglaterra, que não se viram obrigados a respeitá-los no

futuro, retomando-se o contexto anterior que os portugueses repudiaram e quiseram

evitar a todo o custo.

Por outro lado, acrescentam-se ainda os holandeses que atacaram e ocuparam

muitos dos domínios ultramarinos portugueses. Em 1590, os holandeses atacaram o

Brasil, ocuparam a Baía ( em 1624) e Pernambuco (em 1630); ao mesmo tempo, as

esquadras holandesas, em guerra com a Espanha, apresavam os navios portugueses e

espanhóis, sem distinção. Na costa ocidental africana, como no Oriente, a Companhia

Holandesa das Índias orientais ocupou diversas posições portuguesas e espanholas,

comprometendo o comércio português.

Após a Restauração da Independência, D. João IV, tendo o objectivo firme de

recuperar os domínios portugueses ocupados e preservar os que lhe restavam, tentou

estabelecer a paz com a Holanda. Por isso, propôs um acordo de aliança com os

holandeses, concedendo-lhes liberdade de comércio em Portugal, com a condição de

proibirem os seus súbditos de fazerem a guerra aos portugueses e de lhes tomarem os

navios. Foram as disposições do Tratado de Tréguas, de 12 de Junho de 1641, assinado

por dez anos, entre Portugal e a Holanda. Estas alianças com Portugal eram bastante

121 J. C. MAGALHÃES (1990), Op. Cit., pp. 55

75

convenientes para os holandeses que estavam em guerra com a Espanha, permitindo-

lhes controlar de forma mais eficaz as adversidades.

No ano seguinte, apesar dos esforços da diplomacia portuguesa, os holandeses

recusaram-se a restituir Luanda e S. Tomé, afirmando que essas conquistas eram

legítimas, por serem anteriores ao tratado de 1641; argumento dúbio, sem fundamento,

pois as conquistas portuguesas também eram anteriores ao mesmo acordo. Em

contrapartida, no Brasil, pela mesma altura, os portugueses derrotaram os holandeses

em vários territórios (Tabocas, Guarapés) que estes ocupavam indevidamente. E em

1641, também foi um comandante português que, vindo do Brasil com a sua frota,

libertou Luanda em 1649, derrotando de novo os holandeses. Estes mostravam-se

renitentes em renunciar ao domínio dos territórios portugueses reconquistados. E, em 26

de Janeiro de 1654, uma poderosa armada portuguesa, comandada por Pedro Jacques de

Magalhães e Francisco de Brito Freire, reconquistou também Pernambuco, último

reduto dos holandeses no Brasil. Em Setembro de 1657, os Estados Gerais enviaram a

Lisboa uma missão. Quiseram apresentar várias exigências relativas à recuperação das

conquistas holandesas no Brasil, Angola e S.Tomé. Não foram satisfeitas, ou seja, essas

negociações foram um fracasso para os enviados holandeses. Assim, retiraram-se,

depois de concluírem o seu plano com a entrega de uma declaração de guerra.

Mas Portugal estabelecia alianças também com países que estavam fora deste

contexto de guerra e cujo auxílio poderia ser muito conveniente. Por exemplo, D. João

IV manteve negociações com a Suécia, de que resultou o acordo de paz assinado em

Estocolmo, em 29 de Julho de 1641. Este tratado, além de estabelecer a paz entre ambos

os países, determinava que nenhum dos dois países ajudaria inimigos comuns e permitia

aos suecos:

“livremente navegar aos reinos de Portugal e dos Algarves e às Províncias e

Ilhas que a eles pertencem e comerciar também livremente nos territórios portugueses,

estabelecendo diversas normas para regular o comércio e a navegação de ambos os

países.”122

Em conclusão, sobre estes factos, poderemos dizer que é notória a ambiguidade

e a duplicidade das acções dos países europeus relativamente às relações que

mantinham com Portugal sobre os territórios ultramarinos, na posse legítima dos

122 CASTRO, Borges de, Colecção de Tratados, vol. I, pp. 338, citado por J. C. Magalhães (1990), Op. Cit., pp. 89

76

portugueses havia mais de um século. Esta legitimidade advém de três factos: primeiro,

por terem descoberto esses lugares; segundo, por terem autorização da Santa Sé,

anterior à Reforma, para explorarem os novos sítios descobertos ou a descobrir; terceiro,

havia territórios já ocupados pelos portugueses. Aqueles europeus não tinham

justificações legítimas para disputar aquelas terras, muito menos dissimulando o

conhecimento das posses dos portugueses naqueles territórios:

“Il n’entre pas dans mon plan de discuter des questions de découverte;

cependant je vois avec peine différents auteurs modernes enlever aux Portugais

l’honneur d’avoir découvert le Sénégal, et l’attribuer aux habitants de Dieppe, en 1364.

Nous savons que la plupart des expéditions françaises étaient faites par des navires du

port de Dieppe et des côtes de Normandie; mais il ne faut pas oublier que les Français

et les Anglais trouvaient partout, sur ces côtes, les Espagnols et les Portugais établis et

installés, y possédant des comptoirs bâtis et ayant donné des noms à tous leurs postes,

ainsi qu’aux rivières, aux caps, aux montagnes, et que ces moms sont restés jusqu’à nos

jours, malgré les changements de domination. Il ne faut pas oublier non plus que les

Français et les Anglais unissaient ensemble leurs forces pour combattre les Portugais,

leurs ennemis communs.”123

Neste contexto, houve de facto atentados à soberania portuguesa, como vimos.

Se houve algum fundamento legal, foram os próprios acordos que Portugal teve

necessidade de assinar para repor a ordem formalmente, e por escrito, para o

reconhecimento internacional do seu poder. Contudo, as riquezas de África eram já

sobejamente conhecidas e a invasão dos territórios africanos era inevitável. Os ataques

às posições portuguesas foram cada vez mais frequentes e Portugal não tinha meios para

controlar tão grande extensão territorial em África, na Índia ou no Brasil, acabando por

se fixar em certas regiões preferenciais para os seus interesses:

“Les traditions même de tous les peuples du Sénégal confirment ce que j’avance

ici. Dans tous les royaumes du Sénégal, non seulement sur les côtes maritimes mais

même dans l’intérieur, on donne au pays des blancs, soit que ceux-ci viennent de

France ou d’Angleterre, ou même de l’Amérique, le nom de tugal, qui se prononce

tougal; or, n’est-il pas évident que c’est le mot Portugal dont ils ont retranché la

123 A. D. BOILAT (1853) ; Op. Cit., pp. 196-197

77

dernière syllabe, suivant l’habitude du pays, dont les peuples évitent autant que

possible les mots de trois syllabes?”124

O Abade Boilat falava no século XIX e, de facto, ainda hoje os senegaleses

chamam Toubab aos estrangeiros “brancos”, e principalmente aqueles que têm posses,

que mostram estar numa situação confortável na vida. Perante tais afirmações,

constatamos que os portugueses deixaram marcas notáveis e visíveis que os indígenas

manifestavam, mas que nem sempre identificariam como portuguesas, após o

aparecimento dos outros europeus. Confirma-se também a relação conflitual entre os

europeus e o ataque às posses portuguesas, como temos vindo a demonstrar com

testemunhos escritos, portugueses e estrangeiros.

Nestas condições, os estrangeiros europeus vieram sobrepor-se à influência

portuguesa, de mais de um século, à época, nas terras africanas, criando-se um

complexo cruzamento de interesses económicos, sem lei nem ordem, em que os

africanos também participaram e intervieram com os seus produtos e iniciativas, ainda

que ignorassem os acordos diplomáticos, que se firmavam na Europa, sobre as suas

terras. É certo, porém, que quiseram tirar proveito de um novo contexto económico,

como os europeus. Porém, acabaram por ser submetidos lentamente e colonizados pelos

invasores, mais tarde, a partir do século XVIII.

Assim, parece-nos que, desde o século XVI, o domínio europeu, em certas

regiões de África, é muito ambíguo e impreciso, de acordo com circunstâncias acima

descritas. Torna-se evidente que os europeus desviaram os seus interesses económicos

para África e que os portugueses foram literalmente ameaçados e atacados no exercício

das suas transacções comerciais e nos territórios que geriam. Desde então, cedo se

delinearam e constituíram os futuros povos colonizadores naquelas terras, aos quais

outros países europeus se acrescentam um pouco por todo o continente africano, até à

descolonização, no século XX.

A região ao Sul do Sara é um mosaico de confluências, de interesses e de

culturas diferentes, opositores uns aos outros – os vários povos europeus guerrearam-se

entre si, ao longo de pelo menos três séculos, pela posse de territórios em África.

Os africanos abriram a porta para o comércio com os portugueses, os “brancos”.

E, a partir daí, desconhecendo a Europa e o mundo fora do seu continente, os indígenas

consideraram que todos os brancos eram portugueses - um grave equívoco- e

124 A. D. BOILAT (1853) ; Op. Cit., pp. 197

78

continuaram com o comércio, sem estabelecer distinções entre os europeus, sem

conhecer nada mais:

“Les blancs eux-mêmes, de quelque nation qu’ils puissent être, sont appelés

toubab; ce mot n’est que la corruption du mot tougal; c’est comme s’ils disaient le pays

de Por-tugal et les hommes por-toubab. L’article de position, d’après les règles de la

langue woloffe, étant be, il eût fallu dire tougal-be, le blanc; ils ont trouvé plus doux

d’en former le mot toubab, en retranchant l’l et changeant le b en g.”125

Obviamente, este grave equívoco parece não trazer qualquer vantagem aos

portugueses quando já não eram os únicos brancos em África e a complexidade das

relações económicas e humanas aumentou, mais do que nunca. A verdade é que parece

que se criou, até hoje, uma interpretação errónea, injusta e falsa, sobre a presença

portuguesa porque confundida com a presença posterior dos outros europeus brancos.

Este equívoco dos africanos ainda existe hoje nas suas memórias, como nos foi dado a

perceber por conversas informais que pudemos ter no quotidiano, no Senegal. Contudo,

não significa que os portugueses sejam mal recebidos pelo povo senegalês. Pelo

contrário, são até muito afectuosos com os portugueses, e a gentileza senegalesa chega

até a ser desconcertante em certas situações. Esta história pareceu-nos sempre mal

contada, pois, a História de África tem ainda hoje estas enormes fragilidades e

equívocos por explicar. Contudo, como vimos, os franceses, os ingleses e os holandeses

atacaram realmente, desde muito cedo, a posição portuguesa no “Cabo Verde”, e não só.

E, embora os portugueses não se tivessem retirado daqueles sítios, há que

esclarecer a História dos portugueses na região, para que não se misture com os

resultados posteriores da ocupação dos holandeses, dos franceses e dos ingleses, que

não hesitaram em instalar-se com os seus exércitos, fortalezas e comércio ao sul do

Sara, entre os séculos XVI - XIX. Muitos dos acontecimentos que se deram nessa região

estão muito mal explicados pelos próprios africanos (a transmissão oral tem graves

limitações), nomeadamente sobre a escravatura na ilha de Goreia, o pomo da discórdia

entre estes europeus, como confirma Francisco de Lemos Coelho no seu relato.

A falta de respeito, pelos territórios ultramarinos de Portugal, levou a um jogo

dissimulado de acordos e tratados que estes países da Europa acederam em assinar,

muitas vezes estando em guerra uns com os outros, usando estes acordos para se

escudarem uns nos outros e atingirem os seus objectivos nacionais específicos, em

125 A. D. BOILAT (1853); Op. Cit., pp. 197-198

79

detrimento dos prejuízos causados aos outros e fora de qualquer quadro legal. Ou seja,

agiam impunemente, fazendo declarações de guerra a Portugal vazias de sentido (o caso

dos holandeses), querendo recuperar bens que eles próprios extorquiram aos

portugueses. Mas, ao que parece, era a lei do mais forte que ainda vigorava, e não outra.

Daí em diante, foram lutas de poder constantes entre os europeus, baseados nas

excessivamente famosas riquezas de Portugal, vindas de África, do Oriente e do Brasil.

Tinham interesses não só em extorquir as riquezas de Portugal mas também em ocupar

e dominar os territórios que possuía, até ao século XX. E Portugal só guardou uma

pequena parte de tantos lugares que descobriu, teve de negociar muitos dos territórios e,

mais tarde, a Conferência de Berlim (1884) conferiu de novo uma falsa autoridade aos

europeus para continuarem a ocupar África.

2.2. O tráfico negreiro

Quinta Razão do Infante

“A quinta razão foi o grande desejo que havia de acrescentar em a santa fé de

nosso senhor Jesus Cristo, e trazer a ela todalas almas que se quisessem salvar,

conhecendo que todo o mistério da encarnação, morte e paixão de nosso senhor Jesus

Cristo foi obrado a este fim, silicet, por salvação das almas perdidas, as quaes o dito

senhor queria por seus trabalhos e despesas, trazer ao verdadeiro caminho,

conhecendo que se não podia ao Senhor fazer maior oferta;”126

Ao longo do século XVI, os africanos continuaram a transaccionar os seus

produtos com os europeus em África, alheios às movimentações dos estrangeiros na

Europa. E, com a pirataria dos ingleses, dos franceses e dos holandeses, a segunda vaga

de europeus, começaram a ameaçar-se os territórios até aí desvendados pelos

portugueses, concedidos pela Santa Sé e com direito de padroado nesses lugares. Os

africanos estavam muito longe de imaginar que a sua terra já tinha outros donos, outros

chefes, outros senhores.

Negociava-se a posse dos territórios ultramarinos e os novos habitantes em

África, europeus, estendiam a sua presença com navios, com fortalezas, com exércitos

126 G. E. ZURARA (1453) ; Op. Cit., Cap. VII, pp. 44-49

80

nos lugares africanos, sem se considerar o passado daqueles lugares ou daqueles povos,

entrando sem pedir licença, entrando porque a porta estava aberta. Em meados do

século, não consideravam que fosse uma invasão de propriedade privada, isso não era

importante nem existia para os corsários cuja profissão era precisamente invadir

territórios alheios. Eram acções que se enquadravam na mentalidade de povos

conquistadores, cuja cultura assentava na capacidade de alargar as potencialidades das

nações. Para eles, a conquista e o domínio de mais espaço eram um sinal de poder que

os submetidos seriam necessariamente obrigados a aceitar. De novo, agiam de acordo

com a lei do mais forte que ganha independentemente dos meios que se utilizem. Claro

que, depois de tomarem indevidamente posse desses territórios, preocuparam-se muito

com a defesa destes para que não viessem outros extorquir-lhos também. E, de facto,

estes territórios do actual Senegal foram muito disputados.

Portanto, a ocupação dos territórios efectuou-se gradualmente com a construção

de fortalezas para a defesa e para o ataque, perante as ameaças com que se deparava

naqueles lugares e que se mantiveram durante largos tempos. Os africanos nem sempre

se deixaram submeter; vejamos por exemplo este comentário de um observador

seiscentista:

“ (…) e aldea que fica a vista do porto chamão aldea dos Hereges. Foi aldea de

mais negocio que teve este rio de Gambia, e ainda hoje o Inglez tem húa feitoria nella,

e dá muitos couros e muita cera e alguñs negros, e vivem brancos filhos da terra, nella.

O gentio he bárbaro, e ordinariamente anda esta terra dividida em dous bandos, e em

guerras, que cada um quer ter seu rey, e por isso os caminhos por terra não são muito

seguros. Tem, fora a terra dos Banhús de que querem fazer estes dois reinos, muitos

falupos sugeitos, os quais são aqui mãos, e salteadores no caminho e grandes ladróes,

que não està pessoa algúa segura com elles em todo este caminho.”127

Contudo, os europeus iam tirando os seus proveitos nas novas zonas, e os

africanos até ajudaram no rápido desenvolvimento deste comércio em que se integraram

com facilidade; mas a relação que ao longo do tempo se estabeleceu favoreceu o

domínio de uns sobre os outros.

Claro que os africanos não terão visto sempre com bons olhos a aproximação

destes estrangeiros, não só porque eram invasores, mas também porque eram novos

concorrentes às suas actividades económicas e geravam novas forças de poder. Os

127 F. L. COELHO (1684) ; Op. Cit., pp. 114

81

estrangeiros vieram alterar para sempre o relacionamento entre os vários reinos

africanos estabelecidos, que também já mantinham frequentes conflitos, pelo que

indicam fontes escritas:

“Perguntei que senhores reinavam naquelas terras e responderam-me que na

parte dos negros havia um senhor de nome Sambegenu e da parte oriental o senhor se

chamava Semanagu; que estavam sempre em guerra e que não havia muito tempo

tinham travado grande batalha e vencera Semanagu. (…) Depois que voltei a ter com o

senhor Infante, ao referir-lhe tudo isto, disse-me ele que um certo mercador de Orão

lhe tinha escrito, já tinham decorrido dois meses, falando da guerra ou batalha que

houvera entre Semanagu e Sambegenu. E assim daria crédito a tudo.”128

Além dos conflitos que já existiam entre os africanos, a presença estrangeira

levou a que se acendessem rivalidades entre os reinos, acrescentaram-se novos

interesses com os novos produtos dos estrangeiros e a organização dos indígenas não se

manteve, adequou-se às novidades, naturalmente dentro de referências culturais

africanas pré-existentes:

“A principal fazenda para estes portos de Jalofos he coral fino comprido e

quanto mais grosso milhor, o qual se vende a pedras, e há coral que dão por huã pedra

hum couro; e a mim me derão hum hermozo negro por hum ramal de coral.”129

Os nativos de África, concretamente os que se fixaram na região do actual

Senegal, quiseram também controlar as suas áreas de influência, junto dos estrangeiros

e, por isso, deslocavam-se até onde fosse necessário para ter acesso às novas

mercadorias e para trocarem os seus produtos tão desejados pelos novos comerciantes:

“São os portuguezes que aqui morão obrigados, senão são empedidos da

doença, a hirem vezitar o rei da terra todos os annos huã ves e levarem-lhe muito bom

prezente conforme sua possibilidade, que as vezes custa mais de cem mil reis, isto em

muito boas pessas de prata, agoardente em barris ou frasqueiras, coral fino, escarlatas

e outras couzas, conforme cada um tem; o rei lho gratefica e lhe dá muitas vezes mais

do que val o que lhe leva, conforme o acha e he sua fortuna; o que lhe dá são negros,

couros, cavallos, camellos, que aos brancos servem muito para conduzirem couros, que

128 D. G. SINTRA (1484-1496) ; Op. Cit., pp.75 129 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 65

82

tambem comprão pella terra dentro se tem já muito cabedal: e um camello carrega

quarenta e cincoenta couros.”130

Mas o comércio seiscentista que se fazia em África tinha diferenças

relativamente ao que se conhecia na Europa, que os negros não conheciam. Os europeus

passaram a ter acesso a novos produtos e os seus grandes interesses eram riquezas

naturais do continente africano, especialmente o ouro, muito famoso, embora depois se

tenham acrescentado outros produtos naturais que existiam em grande abundância

naquelas regiões, como o sal, os couros, especiarias e, como vimos, até as pessoas se

trocavam como forma de reconhecimento ou de pagamento:

“A aldea do porto de Aly fica em passando o Cabo dos Mastros (…). Os negros

são os mesmos e os negócios como no Arrecife; mas aqui com mais abundância, que há

dia em que se comprão dous mil couros: o rei vende muitos negros a troco de prata, e

custa um negro bom vinte patacas.”131

Doutras vezes, estes mesmos grupos africanos da costa ocidental africana, a sul

do deserto do Sara, usavam formas específicas para comerciar, evidenciando

simultaneamente o seu poder:

“Entrando pelo rio de Borçallo se vai por elle duas marés antes de chegar ao

porto, que fica mais de tres legoas afastado do reino. Ainda em navio se manda recado

ao rey com um prezente, o qual diz o mandador o dia que hade vir; e enquanto não vem

ninguém compra nada. Vindo o rei vè a fazenda toda que trás o navio, e as vezes sò elle

o despacha porque vende muitos negros e fermozos; e hà ocasião em que só em hum

dia vende cem negros. O milhor género para o negocio he prata e agoardente; o rei era

no fim dos annos que estive naquellas partes bixirim, que he como legislador da ley de

Mafoma, com que não comprava tanta agoardente, mas na terra gastavase bem porque

não defendia comprar-se.”132

Para estes africanos, os produtos de pouco valor que os europeus traziam eram a

grande novidade e parece que não souberam atribuir o valor correcto aos seus próprios

produtos, ou não trocariam tanto ouro por uns pedaços de tecido ou por bugigangas; diz

Diogo Gomes, a certa altura, “recebi deles 180 pesos de ouro em troca das nossas

mercadorias, a saber, panos, manilhas, e outras coisas.”133 Trocavam muito ouro por

130 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 101 131 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 102 132 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 106 133 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp 71

83

outros produtos menos valiosos, o que foi representando cada vez maiores lucros para

os estrangeiros:

“Este reino de Manjagar he sogeito ao rei de Borçallo como o da Barra e o do

Badibó. Aqui costuma o rei vir commerciar com os navios quando não vão a sua terra,

e vende muitos negros. Hà nesta terra muitos couros e os milhores de todo o rio, tem

muitos arros limpo e negros. Em a mesma terra (…) Os moradores dela são

mercadores bixirins. He de muito tracto, comprasse muita roupa, ouro e muitos boñs

couros como os de Manjagar. Vendesse muito bem collas, de que estes mandingas são

muito amigos.”134

Portanto, os europeus conheciam os dois continentes, estavam mais bem

informados sobre os vários tipos de mercado. Conheciam o valor comercial dos

produtos e as possibilidades de escoamento de tudo quanto compravam, alargaram

enormemente as suas áreas de negócios. Quanto aos nativos destas mesmas regiões do

ocidente africano, alargaram o mercado com os novos produtos exportados pelos

estrangeiros, só conheceram o contexto comercial nas suas terras, não atribuíam tão alto

valor aos seus produtos como os estrangeiros, embora as ocasiões de negócio fossem

sempre momentos a que davam grande ênfase. Quanto aos escravos, eram vendidos

pelos africanos indiscriminadamente aos estangeiros, com certas distinções no preço

atribuído:

“São os Jalofos todos mahometanos e por isso ruins para se reduzirem. As suas

guerras são a cavallo, e há muitos na terra; e o rei e fidalgos tem muito (sic) mouriscos

que lhe trazem os mouros com quem confinão pelo rio de Sanagâ, e são boníssimos, e

há cavallos que custa (sic) vinte e sinco e trinta negros.”135

“(…) Alguns donos de navios costumão hir (…) em alguns destes portos (…) e

comprão nelle marfim, roupa, couros e muitos negros, e he bom levar bebida, que

ainda que os negros são mahometanos bebem muito vinho e agoardente e dão hum

negro bom por sete ou oito botijas de agoardente, (…)”136

Depois, os estrangeiros, donos dessas pessoas transaccionadas como bens,

transportavam-nas como faziam com as restantes mercadorias, para diversos lugares do

mundo, e vendiam-nas de novo. Estes, desenraizados das suas terras, para onde não

regressavam, ou morriam nas viagens ou passavam a viver em lugares que lhes eram

134 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 120 135 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 101 136 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 126

84

completamente estranhos e sem liberdade, embora esta última condição lhes fosse talvez

a menos estranha porque nas terras africanas era comum haver escravos, estar ao serviço

e sob o domínio absoluto de alguém.

Também os europeus já tinham aquelas terras sob o seu domínio, o comércio

compensava largamente e instalaram-se sem grandes contrariedades. No que diz

respeito ao caso dos portugueses, os primeiros a chegar, sabemos de duas feitorias, as

mais conhecidas naquelas regiões e de que ainda existem vestígios. Estruturaram o

comércio com aqueles povos e, desde muito cedo, orientaram os interesses dos

indígenas para os seus próprios produtos:

“Pôs o senhor Rei duas casas naquela terra de Cenégios para trocar as suas

mercadorias por ouro; são elas a de Arguim e a de S. João, que fica próximo de Tofia e

Anterote.”137

Apesar dos esforços da diplomacia portuguesa na Europa e de algumas

resistências dos africanos nas suas terras, os europeus ficaram definitivamente sediados

naqueles territórios africanos, com os seus fortes e os seus exércitos para protegerem as

suas actividades comerciais.

Por exemplo, é interessante a história da ilha de Goreia, onde os portugueses

elevaram uma capela, o primeiro edifício ali construído:

“Le poste de police (ancien dispensaire) s’élève peut-être à l’emplacement òu les

maçons portugais, allant construire le fort d’El Mina sur la Cote de l’Or (actuel Ghana),

édifièrent en 1481 la première chapelle de l’île. Dans le recueil de textes portugais

rassemblés par Valentim Fernandes (1506-1507), on peut relever: …une église de pierre

couverte de paille qui a été faite par les gens qui accompagnaient Diogo de Azambuja

quand ils allèrent construire le château de Saint Georges de la Mine. Dans cette église

sont enterrés beaucoup de chrétiens qui se trouvaient pour (ou qui moururent pendant)

la traite sur cette côte et venaient se faire enterrer dans cette île pour l’amour de cette

église… Ce poste de police est sans doute la construction la plus ancienne de Gorée: il

figure déjà sur les plans du XVIIe siècle comme magasin et sur ceux du XVIIIe siècle

comme forge.”138

A ilha de Goreia foi, muitíssimo disputada entre os estrangeiros, funcionando

como escala para os navios vindos do Sul do Continente africano, mas também para os

137 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 65 138 CAMARA, Abdoulaye e BENOIST, Joseph Roger, Gorée – Guide de l’Île et du Musée Historique, IFAN – Cheikh Anta Diop, 1993, pp. 13

85

que vinham das Américas ou da Europa, onde se intensificava de formas nefastas o

mercado de escravos. Vejamos o caso da presença holandesa, que deu o nome actual à

ilha:

“Em passando Cabo Verde esta a ilha de Bersiginche, desviada da terra firme

também uma legoa, a qual os olandezes, que erão em meu tempo senhores della,

chamavão a ilha de Gure; e em ella tinhão duas fortalezas, a mayor defronte da terra

firme, ao longo da agua, aonde estava a feitoria e casa do general e mais soldados; e a

outra defronte dessa ao mar, distancia de um tiro de mosquete, em a qual entravão

todos os dias huma parte da esquadra da gente que entrava de guarda na fortaleza de

baixo; tendo em ambas para esse effeito oitenta the cem homens da guerra, fora a gente

que era necessária para o negócio.”139

De acordo ainda com as notícias deste capitão português, que nos deixa aqueles

e estes testemunhos escritos, também os ingleses se iam instalando em África,

disputando com os holandeses estes territórios ultramarinos na costa ocidental africana,

incluindo esta pequena ilha:

“Também aqui [Cabo Verde, Gure] vinhão os navios de Cacheo (...) e aqui

vinham todos os anos de Olanda, duas e tres naos grandes a carregar dos ditos generos

[cera e marfim] que levavão para a cidade de Amsterdam donde tinham o assento da

Companhia de Africa que asim lhe chamavão; e tiravão tanto interesse desta ilheta que

tomando-lha o inglês em meu tempo, no anno de 1663, não repararão em andarem as

guerras muy acesas entre essas duas nações para que logo no anno seguinte não

mandassem o seu general Rut com uma esquadra de quatorze náos de guerra a

restauralla; assim que por aqui se verá os lucros que tirarão dos negócios que aqui

farião”140.

A ilha foi passando de mão em mão e, pouco tempo depois, chegou a vez dos

franceses que se apoderaram definitivamente de Goreia, tão cobiçada pelos estrangeiros

que por ela iam passando:

“Hoje [1684] lha tem tomado o francês, e se tem feito senhor de todo negocio

desta costa de Jalofo”141.

Diz ainda Francisco de Lemos Coelho, o redactor desta notícia do séc. XVII,

sobre aqueles lugares de Cabo Verde e a ilha de Goreia, o seguinte:

139 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 96-97 140 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 97 141 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 98

86

“Defronte desta ilha, na terra firme, está um cabozinho que chamão o Cabo

Gaspar, detraz do qual há húa insiada muito boa e grande, que entra pella terra dentro

que parece cá de fora rio. (…) era no meu tempo boníssima escalla esta para os navios

que vinhão de Cacheo com negros para esta ilha, porque aqui refrescavão a sua

armação, fazião aguada fresca, compravão muito mantimento se necessitavão delle e os

regallos que querião na ilha, sendo do flamengo benignamente agazalhados”142.

Assim, os europeus faziam os seus negócios na ilha com os navios vindos do

Norte ou do Sul, por mar e em terra. Na opinião deste observador português, seria

aprazível visitar aquelas aldeias que existiam na orla costeira e mais para o interior:

“Desta enseada do cabo de Gaspar se vai por terra em muito bons cavallos ao

porto de Arrecife, que são três legoas, e he caminho muito alegre, porque há nelle

muitas aldeas e muito frequentadas de gente, e muito vinho de palma de que muitos

brancos gostão”143.

Por ali se misturavam os estrangeiros com os indígenas africanos, no território

do actual Senegal, instalando-se por lá definitivamente não só muitos portugueses,

flamengos, ingleses e franceses mas também judeus fugindo às perseguições da

Inquisição na Europa, desde finais do séc. XV:

“Em o porto de Arrecife ou Recife he que está junto da agoa a aldea principal, e

nella vivem os portugueses e os brancos filhos da terra, e viverão já muitos judeos com

cazas muito grossas, nascidos em Portugal, que aqui se vinhão declarar porque os

defendião os reis da terra e não podião ser castigados por isso. Aqui tem o flamengo

huma feitoria com mercador aparte, e o francês tem outra”144.

Parece, pela descrição que nos é apresentada, que nestes lugares havia já desde

há muito tempo um negócio estável e frutuoso também para os franceses, que

posteriormente acabaram por dominar a região:

“ (…) porque a este porto [Arrecife ou Recife] vem todos os annos húa náo

francesa grande e poderoza, a qual vinha ordinariamente em Novembro, que he o fim

das agoas ou Inverno desta costa, e estava athe o São João que he o principio do

Inverno; e aqui carregava de courama de vaca e levava ordinariamente trinta e cinco

ou quarenta mil couros. (…)”145

142 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 98 143 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 99 144 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 99 145 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 99

87

Os ingleses acabaram por se instalar mais a Sul, junto ao rio Gâmbia, por volta

de meados do século XVII, onde os seus produtos seriam muito apreciados.

“Sahindo do porto de Borçallo se vai ao rio de Gambia, o qual não tem entrada,

ainda que tem baixos de banda do Norte e de banda do Sul (…) Assim que havendo

inglez no rio melhor genero hé couros, cera e marfim; para que vendido com o

estrangeiro se sortée dos géneros do rio, que são ferro, agoardente, contaria miuda

preta e branca, panno vermelho, cristal numero vinte e doiz, papel miudo, que em hum

dia gastaria vinte resmas. (…)

Em este porto de Barra não há negocio nem ninguém surge nele senão para

aguardar maré para hirem para o porto de Julufré, que he do mesmo reino e fica

defronte da fortaleza do Inglez.146”

Este capitão português descreve os espaços ocupados pelos estrangeiros,

distinguindo-os com clareza, com muito pormenor, sabendo de todos os seus interesses

e relações. Apresenta o poderio europeu ali instalado, com uma enumeração dos

produtos com que carregavam os seus navios para comerciar e dos lugares onde era

costume haver mercado. Mas estes carregamentos, pelo que nos é dado perceber, não se

destinavam aos africanos, e todos os anos renovavam estas actividades que dariam

muito lucro noutros lugares, venderiam a outras gentes e noutros contextos económicos

mais lucrativos, onde esses produtos eram escassos e pagos a melhores preços, em que

se incluía o tráfico de pessoas:

“Defronte deste porto de Julufré, a meyo rio, que terá aqui mais de húa legoa de

largo, está húa ilheta que o Ingles tem bem fortificada; sendo que he couza piquena,

mas está muito deffensavel com húa fortaleza de pedra e cal, e cazas dentro para o

General, e almazens para as fazendas, com mais de vinte pessas de artelharia; e a roda

da ilheta, entre as pontas que faz, tem feito ao lume da agoa três plataformas com

quatro pessas de artelharia cada húa; tam rasas com a agoa que quando ha mareta,

lhes lava as bocas. Aqui lhes vem as naos de Inglaterra deitar o ferro e fazendas de que

está ordinariamente bem provida, e carregão de couros de vaca e de bicho, feitos no

rio, os quais constão de antas sinsins, tancões e gimguisangas e são melhores e mais

estimados esses que os de vaca, marfim e cera; e levão hum anno por outro, comprados

no rio, sincoenta mil couros e mil e quinhentos quintaes de cera e marfim. Também

comprão muitos negros que embarcão para as Barbadas, para cujo negocio e deffensão

146 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 111

88

da fortaleza tem ordinariamente outenta athe cem homeñs, assim de soldados como

gente maritima e mercadores para andarem nos pataxos, que ordinariamente tem dous

para conduzirem a fazenda que fazem os feitores, que poem en diversos portos deste

rio. Também compram algum ouro (…).”147

Entretanto, como veremos a seguir, os indígenas continuavam a organizar-se

com os seus reinos, tal como no séc. XV os portugueses os encontraram. Era uma

organização política que se mantinha à margem destas transacções económicas com os

estrangeiros, sendo previsível que a presença dos estrangeiros tenha interferido, a longo

prazo, nas relações de poder entre os reinos africanos e na relação de forças entre os

chefes dos reinos, consoante os interesses, as riquezas, as culturas e os líderes.

2.3. Os reinos africanos

“ Fiquei a saber por eles que em tal cidade [Quioquum] havia abundãncia de

ouro e que por ali passavam as caravanas de camelos e dromedários que

transportavam as mercadorias de Cartago ou Tunes, Fez, do Cairo e de toda a terra

dos sarracenos com carregamento de ouro, porque aí há abundãncia de ouro que é

transportado das minas do monte Gelu [Fouta Djalon]. A outra parte desse monte, no

lado oposto, chama-se Serra Leoa.”148

Diogo Gomes de Sintra transmite, no seu livro de memórias que temos vindo a

referenciar, a ideia da existência de vários reinos dispersos nestes territórios, em meados

do século XV. Também Francisco de Lemos Coelho, nos finais do séc. XVII, descreve

estes lugares, correspondentes aos do actual Senegal, divididos em vários reinos ao

longo da costa, entre o rio Senegal, passando pelos rios Gâmbia e Casamansa, até aos

sítios que hoje pertencem à Guiné-Bissau, como veremos:

“Deste Cabo Verde ou rio de Sanagá athe o rio Gambia há de costa trinta e tres

legoas, e nesse destricto todo está a região do Grão Jalofo em o qual há sinco reinos a

saber: o do Grão Jalofo, que se estende do dito rio de Sanagá pela terra dentro, e vai

confinando com os mais reinos jalofos, os quais antigamente todos erão seus vassallos

não havendo nesta nasção mais rei soberano que este do Grão Jalofo; mas todos se lhe

147 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 112-113 148 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp 73 a 75

89

revelarão e fizerão senhores soberanos e hoje não tem mais poder do que os outros reis

desta nasção; e somente o reconhecem e tem como couza sagrada e nenhu lhe intenta

guerra, tendo-a continuamente huns com os outros principalmente nas sucessões dos

reinos em os quais he tudo comum, assim nos ritos e ceremonias, como no negocio da

mercancia e generos para elle.”149

Observamos, desde logo, que vários reinos eram a base da organização destes

territórios, provavelmente anteriores à chegada dos portugueses.Vamos agora ter em

conta as suas dinâmicas originais, tentando distingui-las da influência europeia.

Precisamente, torna-se interessante compreender esses reinos independentes,

como viviam, que tipo de relações estabeleciam entre si, de paz ou de guerra, as causas

e os efeitos dos modos de vida que tinham desenvolvido. Tentaremos reencontrar

formas específicas da organização destes povos africanos. Para isso, seguiremos o olhar

dos informadores portugueses, que escreveram as suas impressões sobre o que viram e

descreveram, até certo ponto, o relacionamento entre estes reinos. A partir dessas fontes

conhecemos, pelo menos alguns dos reinos africanos, seriam com grande probabilidade

os mais proeminentes e os mais conhecidos. É importante conhecer a forma como se

orientavam, os seus interesses e maneiras de viver, que durante séculos se mantiveram

desligados da presença estrangeira, tendo evoluído de forma autónoma, provavelmente

até ao presente. Nos finais do século XVII, as estruturas administrativas e sociais

africanas parecem manter traços independentes, funcionando com a lógica que os

concebera durante os séculos anteriores:

“Tenho dado notícia de todos os reinos dos Jalofos, que são quatro, a saber, o

de Encalhor, o do porto de Aly, cujo Reino se chama Bool, o de Joalla, cujos negros se

chamam Brebesis e são os mais valentes de todos, e o de Borçallo, que são mais em

terras mas mais cobardes, que assim os dispos o Criador para que deste modo se

podessem conservar.”150

Também por esta transparência e por este estado de espírito, descomprometido

mas atento, podem aceitar-se com segurança as apreciações que se fazem sobre o

carácter destes povos, o que era também um traço distintivo entre eles, como veremos.

Quando se diz o que acima acabámos de transcrever, fica claro que os reinos negros se

distinguiam pela força, “são os mais valentes”, pelo número e pela extensão de terras

149 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 95-96 150 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 106

90

que ocupavam,“que são mais em terras”, embora o maior poder seja reconhecido aos

que tivessem mais coragem, e não aos que possuíssem mais territórios ou mais súbditos

porque estes eram “mais cobardes.” São apreciações de um português que viveu com

estes povos, ou seria, talvez também nestes aspectos que se distinguiam os indígenas

entre si.

Já no iníco do século XVI, também Duarte Pacheco Pereira se referia aos

mesmos lugares onde se situavam estes reinos, mas o desconhecimento sobre os reinos

era maior, como é natural, se compararmos com o documento acima transcrito, sem

deixar de haver uma clara complementaridade:

“ (…) E em língua dos Negros se chama este rio Encalhor e a terra dali,

Çanaga, e o reino, Jalofo. E em nossos dias se resgatavam aqui escravos negros, dez e

doze por um cavalo posto que bom não fosse (e pola má governança que se nisto teve,

até seis não podem haver); e assim resgatavam aqui algum pouco ouro por lenço e por

pano vermelho e por outras coisas. E este rio mandou descobrir o virtuoso infante D.

Anrique por Dinis Dias, cavaleiro e Infante del-rei D. João, seu padre, e por Lançarote

de Freitas, seus cavaleiros e capitães. E quando este rio de Çanaga foi descoberto e

novamente sabido, disse o Infante que este era o braço do Nilo que corre pela Etiópia

contra oucidente, e disse verdade. E quando aqui havia bom resgate, se tiravam deste

rio, em cada ano, quatrocentos escravos e outras vezes menos a metade, havidos pelos

ditos cavalos e outras mercadorias.”151

E aquele português, Francisco de Lemos Coelho, tendo vivido mais de vinte

anos na vizinhança destes reinos, não pode deixar de intervir na sua descrição com

alguma subjectividade, expressando juízos de valor sobre a conduta destes povos que

conheceu bem de perto. Assim, vai dizendo o que pensa acerca deles, com

generalizações por vezes, com dados muito específicos doutras. Fá-lo da forma como

qualquer um de nós faria, nos nossos dias, ao contar impressões pessoais da viagem que

realizou, mas também com as marcas da cultura em que se inseria:

“O porto he boníssimo e a terra he muito sadia e muito lavada dos ventos, muito

abundante de tudo, assim de carnes como pescado, que he o milhor e mais que em toda

a costa da Guiné; e entre outros peixes que há são huns que chamão enxovas, que tem

151 D. P. PEREIRA (1505-1508); Op. Cit., pp. 94

91

esta costa, muita sardinha e tam barata que eu comprava huma barca chéa por meya

pataca, que he o menos dinheiro que corre ali.”152

No caso desta testemunha portuguesa, devemos valorizar a experiência

adquirida, ao longo de décadas, em contacto com povos culturalmente muito diferentes.

De facto, este documento torna-se mais valioso pela proximidade e pela experiência

pessoal que apresenta, garantindo um conhecimento muito profundo das realidades em

causa. Aliás, ele próprio explica por que motivo faz este relato e não se mostra

preocupado com o facto de o “Leytor, amigo,” eventualmente não gostar ou não

acreditar nas coisas que ele conta, o que revela do autor uma atitude interessante e até

bastante moderna, pela comunicação com os seus leitores eventuais, pela

espontaneidade e pela segurança que manifesta; parece duvidar de uma recepção

positiva da sua mensagem; contudo, está consciente das novidades que conta e confiante

na utilidade da sua experiência para os vindouros:

“Enquanto gostares lê, sequer por cousa nova; em te enfadando disso dize o que

quizeres, advertindo que não he minha tenção fazello para ti, pois não gostas delle;

mas sabe que o que aqui escrevo são verdades, e que faço isto com testemunha de vista

e como quem nesta costa gastou vinte e três annos vivendo em várias partes, como no

discurço da obra verão; e nas mais commerciei em seus portos em os meus navios com

que navegava.

Creyo, Amigo Leytor, de tua benevolência me perdoarás os erros e não censures

a fazer tantas digressões entrometendo histórias que não competem a discripção da

costa; mas como ella he de si tam seca e intratável, que de si não dá nada, o fis de

prepozito para se saborear o gosto.”153

Faz-se então a apresentação dos lugares e dos reinos respectivos, acima

enunciados, começando de Norte para Sul. De acordo com este relato português, os

reinos que dividiam aquelas terras e gentes eram inicialmente os reinos submetidos ao

do Grande Jalofo. Com o tempo foram-se compartimentando e disseminaram-se vários

reinos, cada vez mais divididos.

O caso de Encalhor, primeiro reino que o autor assinala, teria uma forte ligação a

Portugal, conta-se até um episódio antigo significativo sobre as relações que Portugal

estabelecera, muito cedo, com estes povos, ao ponto de estes pedirem auxílio ao rei de

152 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 99 153 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 93

92

Portugal para apoiar a reconstrução deste reino ameaçado. Pode-se depreender que nos

finais do século XV, as relações com Portugal não se tinham deteriorado, pelo contrário,

existia uma enorme esperança e interesse no apoio vindo do Estado Português:

“O primeiro reino que desta nasção conhecemos pello comercio he o de

Encalhor o qual se estende do rio do Senegá athe húa casta de negros desta nação que

chamão Xercos, e he a terra donde he senhor o Príncipe Bumugelém que em tempo de

El-Rei Dom João o segundo foi a Portugal pedir socorro ao Senhor Rey dito para

restaurar o seu reino que se lhe tinha revelado. (…)”154

Independentemente do desfecho insólito desta situação, a verdade é que o apoio

de Portugal era visto como uma grande força para resolver os próprios conflitos dos

reinos africanos. Este episódio reflecte expectativas positivas que se criaram junto de

alguns povos africanos que não considerariam a presença portuguesa como invasora ou

inimiga.

O segundo reino seria o reino de Bool, onde viveriam muitos “brancos” ou

europeus, ou seja, onde a influência destes terá sido mais profunda, não só pelo

comércio mas também pela vizinhança e convívio directo que desde cedo se instalou

naquela área, onde hoje encontramos marcas linguísticas dos portugueses, por exemplo

nos topónimos como Portudal (porto de Aly) - se a origem não é portuguesa, pelo

menos tem uma evolução e uma estrutura muito próxima da Língua Portuguesa, sendo

este um exemplo, entre outras muitas palavras portuguesas de uso comum, no Senegal,

nos nossos dias:

“Tres legoas abaixo deste porto do Arrecife comessa o reino de Bool que tem

por costa nove legoas; nelle esta a aldeã do porto de Aly que he aonde vivem os

brancos; no mejo deste caminho está hua casta de negros (…) Chamão-se Xercos. (…)

Os negros são os mesmos e os negocios como no Arrecife ; mas aqui com mais

abundancia, que hé dia em que se comprão dous mil couros; o rei vende muitos negros

a troco de prata, custava um negro bom vinte patacas.”155

Não há uma descrição tão pormenorizada como a que responde mais

directamente ao objectivo das viagens naqueles lugares, nomeadamente a indicação dos

sítios e do percurso que se deve escolher, por mar e por terra, do comércio, dos

produtos, das formas como se transaccionavam as mercadorias e até alguns valores

154 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 97 155 D. G. SINTRA (1484-1496); Op. Cit., pp. 102

93

atribuídos aos bens. Por esse motivo, torna-se difícil aprofundar o conhecimento das

características destes reinos designados, que estão inseridos principalmente no contexto

das transacções comerciais que se efectuavam entre os europeus e os africanos. Parece-

nos ainda assim que estes povos indígenas mantiveram alguma reserva sobre os seus

modos de vida; ou então, esses eram aspectos que os estrangeiros não quiseram

explorar, por falta de interesse ou de tempo, por se dedicarem prioritariamente ao

comércio; ou seria porque os aldeamentos se encontravam resguardados, sendo de

difícil acessibilidade. Seja qual for a razão, na verdade, não encontramos uma

caracterização profunda, bem localizada e distinta, sobre a constituição de todos os

reinos africanos enunciados neste documento. Contudo, esta repartição e a designação

destes deixam clara a divisão dos territórios por vários reis, que escolhiam

preferencialmente uma localização junto dos rios, cuja função, entre outras, seria a de

divisória, para separar as terras e as gentes.

Assim, temos o terceiro reino referido, o de Joalla, que se prestava a muitos

conflitos, pelas condições da paisagem. Mas era aqui que se acomodavam muitos

portugueses:

“O porto de Joalla he muito conhecido (…)

Querendo ir por terra do porto de Aly para o porto de Joalla são também nove

legoas, e vaisse pella beira da agoa. Em o meyo do caminho está um rio que devide

estes dois reinos, que chamão o rio Sereno, e a terra, á terra do Sereno, em elle de huã

banda e da outra há aldeas; as do Norte, do rey de Bool, e as do Sul do rey de Joalla; e

parece que criou Deos este asillo para muitos portuguezes que vevião nestes dous

portos; por que se vevião com temor do rei da terra, em huã noite andavão estas quatro

legoas e passavão da outra banda, aonde ficavão seguros, e destes não faltavão

brancos nestas aldeas, o rio se vadea de baixamar.”156

Segue-se o quarto reino, o de Borçallo, que tinha uma maior extensão do que os

anteriores e, talvez por isso, se subdividia noutros reinos, ou comunidades mais

pequenas, submetidos e administrados pelo reino maior:

“Deste porto de Joalla ao rio de Borçallo, que he muito perigozo de entrar… Há

nelle um riacho fundo que chamão o rio de Palmeirinha, e he a demarcação do reino de

Joalla com o de Borçallo (…) De todos estes reinos he o mais dilatado em terras, pois

comessa do rio de Palmeyrinha e vay athe o rio de Gambia, e sobe por elle asima athe

156 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 104

94

o rio de Nanhigega, que são perto de secenta legoas, em o qual districto põem muitos

reyzinhos que lhe são tributários.”157

Mas os reinos que se espalhassem para o interior do continente não eram tão

visitados e o autor assume o seu desconhecimento sobre essas áreas, mais longínquas do

mar e dos locais de negócio preferenciais dos portugueses e dos outros europeus:

“ Da terra do Gran Jalofo não he mais que as notícias que dei; que como fica

pela terra dentro não temos comunicação com elle.”158

Contudo, depreende-se que a influência cultural de certos grupos africanos

abrange grandes extensões, no século XVII:

“Pella terra dentro, confinante com o reino do Gran Jalofo, está o reino do

Gran Fulo cuja costa se chama Tugutá ou Tutá, e há neste reino gente sem número,

todos dados mais a lavoura e criação de gado, de que tem infinita quantidade, do que a

guerra. He este reino dos Fullos tam dillatado que os conhecemos pela terra dentro do

rio de Sanagá athe a Serra Leoa, e dizem se estendem athe Angolla.”159

Apesar das limitações da época ao conhecimento do vasto continente africano,

conclui-se que os portugueses tiveram o engenho necesário para estabelecer contactos

com boas fontes de informação e terão viajado o suficiente para terem uma ideia

bastante correcta da dimensão e da complexidade das sociedades e territórios com que

contactavam. Neste caso, pensamos que o autor se refere ao reino dos fulas, isto é, o

Fouta peul que foi, de facto extenso, teve uma influência marcante, deixando mais

raízes que outros reinos anteriores (por causa do grande número de súbditos, que se

instalaram em territórios geograficamente muito alargados, e, em parte, porque foram o

principal veículo difusor do islamismo na sub-região). Hoje, aqueles lugares

correspondem aos territórios de vários países cujas sociedades têm semelhanças, devido

à proximidade cultural, histórica e geográfica desses povos. Assim, muitas famílias

podem ter-se dispersado, até podem ter perdido o contacto entre si, desenvolvendo-se de

forma autónoma, mas com as mesmas marcas e referências culturais.

Naturalmente, os autores portugueses dos séculos XV a XVII não podiam

delimitar muito bem os territórios de todos os reinos que referem; no caso em apreço, o

capitão português tenta fazer essa delimitação geográfica, mas parece-nos que não

seriam do seu conhecimento certos detalhes. De acordo com as suas experiências, estes

157 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 106 158 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 107 159 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 109

95

reinos parecem distinguir-se também por características específicas dos seus líderes e

dos seus súbditos, ou seja, esses agrupamentos viviam separados, até isolados, pelo que

tinham experiências históricas e culturais próprias. Com grande probabilidade se

identificam com as etnias ou famílias, tal como hoje ainda existem no Senegal. São

muito diversificadas e dificilmente se separam, preservando os seus costumes e as suas

leis ao longo dos tempos. Haveria, no século XVII, idêntica autonomização de grandes

famílias, fechadas a tudo o que pudesse ameaçar as suas estruturas, os seus laços de

união ou o seu poder?

Sobre estes assuntos, recordamos um pequeno episódio que presenciámos

quando pedimos a identificação a um estudante senegalês. Não foi por acaso que ele se

apresentou com o nome da família primeiro, depois com o nome próprio. Quando

pedimos também o nome da etnia, ele mostrou-se muito incomodado. Depois explicou-

nos que, dessa forma, teríamos acesso pormenorizado às suas origens e às da sua

família, ou seja, era como se nós estivéssemos a entrar em domínios privados ou

reservados. Obviamente, nós não atribuímos este significado à sua identificação pessoal.

Mas, no Senegal, dizer estes dados é expor-se a uma leitura do seu passado. Nós não

temos igual informação, do passado, da história, das famílias e das etnias do Senegal.

Aquele mundo estava ali mesmo à nossa frente, oculto pela palavra.

De facto, no Senegal, esta imagem das etnias ainda está muito presente no

quotidiano, embora desconheçamos muito das suas histórias e tradições. Pode ter sido

também um aspecto distintivo dos reinos antigos africanos, de que falávamos.

Espalhavam-se e afirmavam-se naqueles extensos territórios que, por isso mesmo,

permitiam-lhes viver longe uns dos outros, controlando o seu pedaço de terra, muitas

vezes isolados nas suas aldeias, sem outros contactos que não fossem os da sua

comunidade, o que proporcionava um certo fechamento ou distanciamento do resto do

mundo. De alguma forma, abriram-se mais para o mundo quando os europeus

chegaram. Estes reinos passaram a receber visitantes. E os nativos compraram produtos

novos, desenvolveram outros interesses e contactaram com outros homens. Mas sem

experiência, pouco habilitados para responder às exigências deste novo mundo, como

vimos, os interesses variaram ou mudaram, as guerras eram outras, vindas de outros

contextos:

“Querendo hir mais por este rio de Bitam asima, que he pernada do rio de

Gambia, deste porto de Bintam a seis legoas está outro reino de Banhús, que chamão o

96

reino de Sangedegú, e aldea que vista a vista do porto chamão a aldea de mais negocio

que teve este rio de Gambia, e ainda hoje o Inglez tem húa feitoria nella.”160

Aqui, neste ponto, não podemos distinguir claramente os reinos das aldeias,

onde viviam determinadas comunidades, também designadas por outros nomes. Por

isso, parece que a certa altura os reinos confundem-se – o reino de Banhús é também o

reino Sangedegú - e ficamos com a sensação de que esses reinos também seriam mais

diversificados, com várias comunidades de diferentes proveniências e características. E

a complexidade acentuou-se mais ainda, a partir de certo momento, com a chegada dos

europeus que instalaram as suas feitorias, nessas comunidades ou reinos. Podem ter

provocado uma colisão de interesses no mercado comum. Estes agrupamentos africanos

trocavam os mesmos produtos, tinham as mesmas necessidades e os mesmos desejos.

Criou-se uma concorrência comercial e acenderam-se eventuais rivalidades entre esses

grupos e as suas lideranças, o que acontecia, como vimos atrás acerca deste mesmo

reino de Sangedegú.

Por causa desta organização diversificada, mesclada de famílias, de

proveniências e de costumes, estes pequenos reinos apresentavam fragilidades que

podem ter-se arrastado ao longo dos tempos. Por exemplo, Casamansa é hoje um

território de conflitos frequentes que podem estar relacionados com a proximidade

geográfica e étnica da Guiné-Bissau:

“Neste porto de Boaguer se embarcará em canoa, das muitas que vão para

Buzetõ ou Bajetõ ou Bajatõ … e logo dará na madre do rio de Caza-mança, o qual

atravessará a hir buscar a terra do Sul, assim por lá estar a boca do rio que vay entrar

como por se livrar dos Sacalates, que he huã nação de negros que estão entre os

Falupos da boca do rio da banda do Sul e o reino dos Bacotes, e estes são os olandezes

do rio, que não vivem mais que de furtar e roubar as canoas que atravessão aqui.”161

Esses conflitos podem também existir devido à história mais recente desse

território, dominado pelos portugueses e depois pelos franceses, na sequência de jogos

de guerra dos povos colonizadores que separaram reinos e etnias:

160 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 114 161 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 115

97

“Barbosa du Bocage aceitou ceder à França a bacia do rio Casamansa contra o

reconhecimento da esfera de influência portuguesa numa longa faixa do território

ligando Angola a Moçambique. O acordo ficou ajustado em Dezembro de 1885 (…)”162

Devemos ainda chamar a atenção para a extensão da religião islâmica

disseminada por todos estes reinos africanos, destacando-se como característica comum

e unificadora, de Norte a Sul destes lugares da costa ocidental africana, na região ao Sul

do Sara. Na verdade, esse aspecto religioso define ainda actualmente a maior parte do

povo senegalês. Mais de 90% da população segue o Islão:

“Tornando ao nosso rio de Gambia e ao porto de Bintam (…) o primeiro porto

que tem he o de Tancoroale aonde há húa boa aldeã, e o reino se chama de Quiam, e o

rei se chama Taram de Quiam; e já tudo isto, assim de húa banda como de outra, são

Mandingas, nação que vindo por hospedes da terra de Mandincança se naturalizarão

aqui (…) sendo todos mahometanos, mais ainda que os Jalofos.163

Os aspectos religiosos poderão também contribuir para um melhor conhecimento

da evolução destes povos, sendo talvez até uma fonte inesgotável de informações.

Contudo, pela complexidade e pela extensão desse tema, poderíamos desviar a atenção

para aspectos que não podemos aprofundar neste nosso trbalho. Preferimos limitar-nos

aos contactos entre as várias culturas.

Não pára por aqui a referência aos reinos africanos que parecem espalhar-se e

subdividir-se ao longo da costa ocidental:

“Deste porto de Nhacoi ao de Findifeto, há seis legoas, o qual fica de banda do

Sul (…) He o primeiro porto do reino de Oli, que lhe aqui chega o reino de Nhani; e

todos estes reinos tem mais cognominamento de Mansa, como Nhanimansá,

Olimansá.”164

Esta proliferação de reinos permite-nos pensar que, apesar da grande extensão

das terras que estamos a observar, o poder dos seus chefes sofreria de certas

instabilidades. O poder e a autoridade estavam muito repartidos e sem ligações ou

relações específicas entre eles. Por exemplo, não parece haver o reconhecimento claro

da pertença das terras ao reino vizinho e, por isso, fariam guerras por terras comuns.

Também viveriam a grandes distâncias uns dos outros, o que evitaria outros conflitos.

162 J. C. MAGALHÃES (1990), Op. Cit., capítulo “A questão dos limites dos domínios portugueses no último quartel do século XVIII”, sub-capítulo “4. Asconvenções luso-francesa e luso-alemã de 1886; o «mapa cor-de-rosa»”, pp. 183 163 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 117 164 F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 129

98

Mas os interesses e as necessidades eram os mesmos e, por isso mesmo, haveria

combates para conseguir o mesmo objecto. Nos locais de comércio, encontravam-se por

razões de sobrevivência, realizariam as trocas úteis a todos, mas produtos como o ouro,

a prata e o sal davam prestígio aos governantes, eram de mais difícil acesso, havia rotas

comerciais estabelecidas para estas riquezas, o que implicava um esforço maior e, por

vezes, guerras para os adquirir.

Os portugueses ter-se-ão cruzado com uma sociedade caracterizada por uma

multiplicidade de lideranças e de comunidades dispersas em territórios subdivididos por

reinos diferenciados. Para um estrangeiro, não seria fácil abarcar toda esta

complexidade. Manter interesses comerciais ao longo de toda a costa da Guiné e

comunicar com tantos grupos, deve ter levado a mal-entendidos frequentes, entre os

africanos e os visitantes. De facto, os portugueses foram vítimas de muitos ataques, mas

também foram muito bem recebidos por outros grupos. E a permanência e o

entendimento nas relações comerciais acabaram por estabelecer interesses comuns,

hábitos e até expectativas. Assim, os portugueses, ao mesmo tempo que planeavam o

seu comércio naquelas regiões, acabaram por se fixar nas zonas mais adequadas aos

seus interesses e mais lucrativas, comunicando com os nativos, firmando a sua presença

na economia e falando em Português. Como vimos, no século XVII os indígenas

compreendiam e reconheciam bem a língua que os portugueses falavam.

Além disso, a ausência de interesse, condicionalismos geográficos ou de tempo,

bloqueio dos reinos africanos, fossem quais fossem os motivos para não explorarem o

interior do continente africano, é certo que só muito mais tarde se desbravaram essas

terras; e, ainda hoje, existem muitas dúvidas sobre a evolução dos povos africanos e

sobre lugares mais recônditos. Mas esta falta de informação parece não existir apenas na

Europa, os próprios africanos têm dificuldade em encontrar fontes documentais que

confirmem ou infirmem as numerosas tradições orais.

Os regimes políticos africanos ainda são modelos inspirados no mundo

ocidental. Os modos de vida são também influenciados pelos europeus e emigram

preferencialmente para os países colonizadores. Têm como línguas oficiais as dos povos

que os submeteram, mas falam, no dia-a-dia, línguas nem sempre escritas e raramente

estudadas. Por isso, dizem, no Senegal, que quando morre um ancião é como se

desaparecesse uma biblioteca.

O que se verifica, contudo, e cada vez mais, é a adopção de modelos

estrangeiros, falando aqui apenas do Senegal especificamente, ao mesmo tempo que se

99

buscam as origens culturais africanas. Mas avança-se lentamente, o que nos parece ser

um sinal de persistência dos atrasos no desenvolvimento deste continente, que ninguém

conseguirá modificar sem a participação voluntária e convicta dos africanos. Conhecer

as origens culturais das populações, ou mantê-las, não devem, de forma alguma,

significar um recuo ao passado porque as culturas africanas também evoluíram e

sofreram sucessivas adaptações a novas realidades que conheceram. Pelo contrário,

devem integrar-se as culturas específicas na situação actualmente vivida e projectar o

futuro para o desenvolvimento do país dentro dos modelos que já escolheram. Parece-

nos que não há ainda sensibilidade real deste povo e dos seus líderes para se unirem

com objectivos benéficos para todos e contribuírem para o bem comum, para melhorar

efectivamente a qualidade de vida das pessoas.

100

3. INQUÉRITO AOS ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS

Quisémos conhecer as razões do interesse crescente pelo estudo da Língua

Portuguesa no Senegal cujo ensino foi decretado em 1967 por Léopold Sedar Senghor,

primeiro Presidente da República do Senegal – as primeiras classes foram leccionadas

por um guineense, Benjamim Pinto Bull, nos liceus Van Vollenhoven (actual Lamine

Guèye) e John F. Kennedy, em Dacar, seguindo-se, em 1972, a criação da Secção de

Português na Faculdade de Letras da Universidade Cheikh Anta Diop.

No momento da descolonização, não deixa de ser contraditório que, neste país

africano e francófono, se julgue importante que as novas gerações aprendam esta

Língua de um colonizador com o qual o Senegal estava, à época, de relações

diplomáticas cortadas, apoiando o PAIGC – Partido para a Independência da Guiné e

Cabo Verde - na sua luta pela independência e sofrendo incursões militares portuguesas

na região da Casamansa.

Contudo, faz algum sentido que, para o diálogo e o relacionamento entre países

africanos, seja urgente esta via de comunicação, onde existe uma multiplicidade de

línguas étnicas convivendo com as línguas oficiais dos antigos colonizadores europeus.

As políticas económicas destes países dependem de uma comunicação cada vez mais

eficaz, de uma associação de esforços para resolver problemas prementes que afectam

muitos países do continente africano.

O primeiro Presidente da República do Senegal, Léopold Sédar Senghor, era um

homem de cultura, universalista e arauto da Negritude, cujo país ensaiou, nas três

primeiras décadas de independência, duas federações: em 1960, a efémera Federação do

Mali e, entre 1982 e 1989, a Federação da Senegâmbia. Assim, é natural que tenha

considerado importante o ensino de línguas estrangeiras, para servirem de instrumentos

de trabalho e/ou políticos, na parceria entre países e para unir África ao resto do Mundo.

Por outro lado, o Presidente-Poeta publicou as suas ideias, valorizando África e

os africanos. Tendo sido divulgadas pelo continente africano, contribuiram para o

desenvolvimento de um esforço colectivo no sentido de reencontrarem as identidades

nacionais, para a emancipação da Negritude e para a procura do reconhecimento das

suas culturas noutros continentes, mas também para a afirmação de supostos valores que

interessava realçar em diversos planos – nos organismos do sistema das Nações-Unidas,

nas relações entre doadores e beneficiários da ajuda pública ao desenvolvimento, etc.

101

Não será com certeza uma coincidência que, no ano de 1961, Senghor tenha

escrito a tão conhecida Elégie des Saudades165, em que afirma ter a sua gota de sangue

português e onde relembra aspectos da cultura portuguesa que se espalhou por todo o

continente africano.

Para além da influência de Senghor, outras razões haverá certamente para que

muitos jovens senegaleses optem pelos Estudos Portugueses e que se verifique, ao longo

de quase quatro décadas, um aumento significativo de estudantes nos Ensinos

Secundário e Superior.

Observemos então os aspectos específicos abordados num inquérito, com temas

diversos, elaborado com o objectivo de obter o máximo de informação possível sobre a

opção dos estudantes universitários pelos Estudos Portugueses. Contudo, reconhecemos

que muitas outras abordagens teriam sido possíveis sobre a cultura senegalesa.

3.1. Público-alvo

O público-alvo do presente inquérito é constituído pelo universo dos estudantes

inscritos nos cursos de Estudos Portugueses da Universidade Cheikh Anta Diop em

Dacar, Senegal. A estrutura dos cursos, inspirada no sistema francês166, é a seguinte:

1. “Licence” – diploma que sanciona a conclusão dos 3 primeiros anos de ensino

Superior (ou seja, Bacharelato); para obter a “Licence”, os alunos frequentam

sucessivamente o Duel I (1º ano), o Duel II (2º ano) e o ano de Licence (3º ano);

2. “Maîtrise” – diploma de conclusão do 4º ano (logo, equivalente a uma

Licenciatura);

3. “Études de 3ème cycle” – diploma de conclusão do 5º ano (equivalente a um

Mestrado), que pode ser obtido por duas vias: i) “DEA” – “Diplome d’Études

Appliquées” (via científica, na qual os alunos apresentam uma dissertação) ou ii) DESS

(via profissionalizante, na qual os alunos fazem um estágio);

4. Doctorat d’Etat, equivalente ao Doutoramento.

Ao todo, no ano lectivo da realização do inquérito (2004-2005), estavam

inscritos 646 alunos nos referidos cursos, distribuídos da seguinte forma:

165 SENGHOR, Léopold Sédar, Oeuvre Poétique, Éditions du Seuil, Paris, 1990 166 Há mecanismos de transição – transferência ou continuação de estudos - quasi automáticos da UCAD para as Universidades francesas. Assim, dada a especificidade do sistema senegalês, preferimos manter as designações originais.

102

- Licence: 568 (87,9%) - 294 em “Duel I” (45,5%, 1º ano);

- 164 em “Duel II” (25,4%, 2º ano);

- 75 em “Licence”( i.e., no 3º ano 11.6%167);

- Maîtrise: 75 (11,6%);

- DEA: 2 (0,3%);

- 3ème Cycle: 1 (0,15%).

No total, foi possível obter respostas válidas de 300 alunos (a que acrescem 6

inquéritos parcialmente utilizáveis), isto é 46,4% do universo, o que constitui uma

amostra muito representativa, da qual não constam, apenas, os níveis superiores (“DEA”

e “3ème Cycle”) cujo efectivo, como vimos, é, no entanto, diminuto e pode considerar-

se praticamente irrelevante para os efeitos do presente trabalho. A validade desta

amostra não reside apenas no seu efectivo, mas também na repartição dos alunos que

responderam:

- 279 (93% da amostra) no conjunto dos três primeiros anos

- 133 de “Duel I” (44,3%);

- 90 de “Duel II” (30%);

- 56 de “Licence” (18,6%);

- 26 de “Maîtrise” (8,7%).

Os desvios entre as frequências relativas (por anos) do universo e da amostra são

de:

(-1,2)% em “Duel I”;

4,6% em “Duel II”;

7% em “Licence”

(-2,9)% em “Maîtrise.

Assim, podemos, sem receios, considerar representativa a amostra para os

objectivos deste inquérito.

3.2. Questões

O inquérito distribuído aos alunos foi idêntico ao que se reproduz nas duas

páginas seguintes:

167 As percentagens entre parêntesis referem-se também ao universo total dos estudantes de Português na UCAD.

103

104

105

O inquérito está dividido em duas partes: “1. Identificação Pessoal” e “2.

Estudos Portugueses”.

1. Identificação Pessoal:

A primeira parte visou colher informações de carácter pessoal sobre os alunos,

com um certo detalhe, de forma a poder ir mais além do mero recenseamento e

estabelecendo algumas correlações entre os dados apurados. Um dos objectivos

prosseguidos com este inquérito foi o de apurar, com a maior clareza possível, o

universo socio-económico de cada aluno, porquanto, sendo o Senegal um país pobre,

com baixas taxas de frequência escolar, as contingências de natureza económica e social

podem ter um papel importante no desempenho do aluno, nas suas ambições e,

eventualmente, podem constituir-se como factores da escolha dos estudos superiores em

Português. Por outro lado, um retrato das origens geográficas dos alunos e dos seus

familiares ascendentes poderia ser útil para detectar movimentos migratórios e,

eventualmente, tirar conclusões sobre as motivações da escolha da frequência dos

cursos de Português da Universidade Cheikh Anta Diop.

Para o efeito, optámos por perguntar aos alunos (sempre que possível, com a

opção de escolha múltipla, para melhor facilidade de escolha e de expressão), os

seguintes dados de natureza pessoal:

- Nome de família (os nomes designam, por vezes, origens étnicas e estratos);

- Idade;

- Local e região de nascimento;

- Etnia e língua étnica (coincidiriam?);

- Se os alunos exerciam alguma actividade profissional e qual;

- Com quem viviam antes do ingresso na Universidade;

- Com quem viviam à data do preenchimento do inquérito;

- Pedia-se também o preenchimento de um quadro de dados (nome, local e país

de nascimento, etnia e profissão) relativos aos pais e aos avós.

2. Estudos Portugueses:

A segunda parte do inquérito visou compreender melhor a relação dos alunos

com a Língua Portuguesa. Por um lado, procurando verificar a convicção com que

106

tinham optado pela frequência dos seus cursos, as expectativas futuras e as perspectivas

de saídas profissionais. Pareceu-nos igualmente importante analisar os primeiros

contactos dos alunos com a Língua Portuguesa, os motivos que os levaram – nos casos

em que tal aconteceu – a ter a disciplina de Português no Ensino Secundário. Assim, a

segunda parte incluiu as seguintes questões:

- Como teve conhecimento do ensino do Português no Senegal?

- Se estudou Português no liceu, por quantos anos e por que motivos;

- Por que motivos escolheu fazer estudos superiores de Português?

- O que pensa e o que gostaria de fazer profissionalmente após a conclusão do

curso de Estudos Portugueses;

- Por último, um pedido para os alunos indicarem países, por ordem decrescente,

incluindo o Senegal, onde gostariam de viver após a conclusão dos seus estudos

universitários.

Importa notar que algumas questões colocadas aos alunos parecem repetitivas

ou, pelo menos, com respostas sobrepostas; tal não foi casual, mas antes, propositado.

Com efeito, não ignorávamos, com a experiência da docência na Universidade Cheikh

Anta Diop, as dificuldades de interpretação de perguntas redigidas em Português –

sobretudo, dos alunos do primeiro ano - nem o condicionamento à resposta franca que

alguns factores culturais e sociais objectivamente poderiam constituir.

3.3. Análise e comentários das respostas

3.3.1. Identificação Pessoal:

Como vimos, os alunos participaram no inquérito em grande número, com

empenhamento e seriedade. Tendo também em conta a proporcionalidade da repartição

dos alunos por nível de ensino, reiteramos que a amostra proporciona um elevado grau

de probabilidade às respostas obtidas, constituindo um retrato muito claro e fidedigno

do universo dos estudantes de Português na Universidade Cheikh Anta Diop.

Seguidamente, analisaremos os resultados obtidos junto dos já referidos 300

alunos:

107

3.3.1.a - Nomes de família:

Quadro 1.1. Nomes citados pelo menos três vezes

NOME

n168 Etnia mais citada 2ªetnia mais citada

Outras etnias citadas

Diarra 12 Diola (10) Balanta (2) Gomis 11 Manjaco (11) Ndiaye 11 Wolof (4) Halpulaar (3) Sérère (2), Fula (1) e

Manjaco (1) Diouf 10 Sérère (9) Wolof (1) Diop 9 Wolof (5) Sérère (2) Diola (1) e Halpulaar (1) Sane 9 Diola (7) Fula (2) Mané 8 Balanta (5) Mandinga (2) Bainouk (1) Sambou 8 Diola (6) Mancanhe (1) e Bainouk (1) Diedhiou 7 Diola (7) Faye 7 Sérére (6) Fula (1) Mendy 7 Manjaco (7) Sagna 6 Diola (6) Badji 5 Diola (5) Coly 5 Diola (3) Bainouk (2) Diallo 5 Peul (3) Fula (1) Halpulaar (1) Sarr 5 Sérère (4) Papel (1) Sene 5 Sérère (5) Ba 4 Halpulaar (2) Fula (1) Bampoky 4 Mancanhe (4) Camara 4 Mandinga (2) Diola (1) e Socé (1) Fall 4 Wolof (4) Baldé 3 Peul (2) Bodian 3 Diola (3) Dione 3 Sérère (3) Dramé 3 Mandinga (2) Manjaco (1) Gaye 3 Wolof (3) Keïta 3 Toucouleur (1), Bambara (1)

e Mandinga (1)

Manga 3 Diola (3) N’gom 3 Sérère (2) Wolof (1) Niang 3 Wolof (2) Toucouleur (1) Sadio 3 Balanta (3) Seck 3 Wolof (3) Senghor 3 Diola (2) Sérère (1) Tendeng 3 Diola (3)

168 n: número de vezes que o nome foi citado pelos alunos

108

Quadro 1.2. Nomes citados duas vezes

NOME Etnias citadas NOME Etnias citadas Badiane Diola e Sérère Nancasse Mancanhe Banana Manjaco Ndecky Mancanhe Bassene Diola Ntab Mancanhe Cissé Wolof e Lébou Sall Halpulaar e Sérère Dia Toucouleur Sidibe Sarakholé e Bambara Diaw Toucouleur e Lébou Sow Wolof e Halpulaar Dieng Wolof Sy Peul Diompy Mancanhe Sylla Sarakholé e Wolof Gueye Wolof Tamba Diola Kante Bambara e Mandinga Tine Sérère Kassé Sérère Top Wolof

Quadro 1.3. Nomes citados uma vez

NOME Etnia citada NOME Etnia citada NOME Etnia citada

Alveringa Crioula Diol Wolof Maro Manjaco Babene Diola Djiba Diola M'baye Wolof Bahoum Sérère Djighaly Mandinga Mbengue Wolof Baïlo Peul Fam Wolof Nahekane Mancanhe Bandiaky Mancanhe Faty Mandinga Nahoukane Mancanhe Barbosa Papel Fofana Mandinga Ndione Wolof Basse Manjaco Fofo Balanta Ndiongue Wolof Bassoucou Mancanhe Gano Peul Ndiougou Wolof Bayo Mandinga Goudiaby Diola Ndour Sérère Biagui Diola Hane Wolof Pandoupy Mancanhe Biaye Balanta Ka Papel Preira Manjaco Boye Wolof Kadiona Mancanhe Sakho Sarakholé Cabral Mancanhe Kaly Mancanhe Sanka Mancanhe Carvalho Crioula Kampintane Mancanhe Savane Mandinga Cissokho Bambara Kathiaw Mancanhe Sonko Diola Corréa Manjaco Kenene Halpulaar Soumaré Soninké Danfa Balanta Kinty Manjaco Tamega Bambara Diafouna Mandinga Konnte Diola Teuw Wolof Diagne Wolof Kor Manjaco Thiam Wolof Diakhate Wolof Koroboung Mandinga Thioub Wolof Diamé Bainouk Leye Wolof Tidiane Diola Diarra Bambara Lima Mancanhe Tomy Mancanhe Diasse Wolof Lopis Diola Touré Mandinga Diassy Manjaco Mancabou Mancanhe Traoré Soninké Dieisse Bainouk Mandika Mancanhe Dieme Diola Marna Manjaco

109

A análise dos quadros 1.1. a 1.3. evidencia, antes de mais, a composição

multiétnica do Senegal. Os alunos citaram 19 etnias (incluindo o crioulo), as quais

podem variar, em número, consoante os autores.

Uma das referências que tomámos, neste domínio, foi o livro “Peuples du

Sénégal”169, cuja publicação foi apoiada pelo Ministério da Cultura do Senegal e pelo

Comissariado para as Relações Internacionais da Comunidade Francesa da Bélgica,

segundo o qual estaríamos em presença de 16 etnias, na medida em que consideram os

seus autores que os soninkés e os sarakholés são a mesma etnia, bem como os peuls e os

halpulars.

Para estes autores, algumas etnias constituem sub-grupos de outras:

- Os toucouleurs seriam um sub-grupo da etnia peul;

- Os lébous170 constituiriam um sub-grupo da etnia wolof;

- Os bambaras constituem um sub-grupo da etnia mandinga.

Estas acepções variam, como dissemos, de autor para autor, e de país para

país171; contudo, para maior comodidade de leitura dos elementos colhidos no inquérito,

seguidamente damos algumas definições inspiradas no Dicionário da África172, que nos

parecem compatíveis com a linha dominante das fontes que conhecemos:

- Diolas: povo da Baixa Casamansa, muito apegado à sua independência. São

associados aos flups, aos diamatas, aos balantas, aos manjacos, aos mancanhes e aos

bainouks. Alguns diolas vivem também do outro lado da fronteira com a Guiné-Bissau e

a solidariedade permanece muito forte entre estas populações. Permanecendo

largamente animistas, ainda que sensíveis ao Islão a Leste, são tradicionalmente

governados por “reis-sacerdotes” e reagrupam-se no seio de associações (sociedades

secretas) que mantêm uma forte coesão social. Cada família trabalha o seu lote de terra,

mas a propriedade geral é colectiva, tal como os trabalhos de desmatamento. Habitando

geralmente nas zonas florestais atravessadas por rios, os diolas cultivam principalmente

o arroz, o milho e o sorgo, bem como plantas de consumo familiar (mandioca, ínhamo,

feijão, batata doce), praticando, ainda, a pesca em água doce e a caça pequena.

169 DIATTA, Christian Sina; DRAME, Mamadou; DIOP, Abdoulaye Bara; BIDIAR, Jean-Paul Thiarthiar; NDIAYE, Raphaël; NDIAYE, Mamadou; TOUNKAR, Kéba: Peuples du Sénégal, Ed. Sépia, Saint-Maur,1996 170 Tradicionalmente residentes na Península do Cabo Verde e na ilha da Goreia 171 Para a Guiné-Bissau, por exemplo, vide: GARCIA, Francisco Proença, Guiné 1963-1974: Os Movimentos Independentistas, o Islão e o Poder Português, Comissão Portuguesa de História Militar e Universidade Portucalense Infante D. Henrique, Lisboa 2000 172 B. NANTET, Op. Cit., A tradução e a adaptação são nossas

110

- Mandingas ou Mandes: populações da África ocidental falando línguas mande

e vivendo nas regiões servidas pela rede comercial “dyula”173 e no antigo império do

Mali (Manden é raiz comum a Mali, Mandinga e Mande). Constituem o principal

conjunto linguístico da sub-região. Dele fazem parte os dan e os gouro (Costa do

Marfim), os mendé (Libéria e Serra Leoa), os bambara (Mali) e os mandingas

propriamente ditos (Gambia e Senegal). Os malinkés (Guiné Conacri e Mali actual),

manika ou mendeka (“gentes do Mali”), formam o grupo mais importante, com os seus

mercadores “dyula” que difundiram o mande em toda a savana. No Fouta Djalon, os

djalonkés era Mandes, ourives animistas que asseguravam a riqueza do império do

Mali. Há uma forte identidade cultural entre estas populações associadas por antigas

tradições e cujos clãs se referem, de perto ou de longe, aos impérios do Gana e do Mali.

- Peuls, fulbes ou fulas: povos tradicionalmente criadores de gado que falam o

fulfude. Os peuls intitulam-se fulbe (ou halpulars), mas são também chamados de peuls

(países francófonos), fulani (países anglófonos) e fulas. Uma predominância de autores,

como Mamadou Ndiaye174 e Makhtar Diouf175, consideram que, independentemente da

sua designação, inclui os subgrupos toucouleur e laobé, critério adoptado pelas

autoridades para o recenseamento de 1988, ao contrário do de 1976 em que os

toucouleurs surgiam à parte176). A origem dos peuls é ainda misteriosa, sabendo-se que

estão significativamente presentes em 16 actuais Estados africanos, numa área cujos

vértices são a Mauritânia, a Noroeste, os Camarões a Sul e o Sudão a Oriente (quadrante

do qual provêm e para onde voltarão, segundo as lendas tribais)177. Este povo de

pastores e nómadas está tradicionalmente ligado ao seu gado, que é a sua única riqueza,

e o leite, trocado contra o milho dos sedentários e os produtos manufacturados, é a única

moeda. Os peuls repugnam separar-se dos seus animais, cuja carne não comem, a não

ser aquando de cerimónias rituais. Nos peuls do Oeste, sedentários e islamizados, a

sociedade contém castas de artesãos integrados nos quatro grandes clãs Peuls: Ba,

Barry, Dia, Sow. Por último, recorda-se que os peuls se converteram muito cedo ao

Islão.

173 Não confundir “dyula” (comerciantes) com os diola (etnia) 174 C. S. DIATTA et al, Op. Cit., pp. 139 175 DIOUF, Makhtar, Sénégal, les ethnies et la Nation, Les Nouvelles Editions Africaines du Sénégal, Dakar, 1998, pp. 24 176 Há ainda quem considere, como alguns alunos participantes no inquérito, que os fula são um subgrupo dos peuls 177 C. S. DIATTA et al, Op. Cit., pp. 39 e ss.

111

- Sérères: Constituindo cerca de um quinto da população do Senegal, os sérères

vivem sobretudo na costa a Sul de Dacar, até à foz do Saloum. Constituem uma das

mais antigas populações do país. Assim, atribuem-se-lhes os vestígios do passado mais

longínquos, em particular os restos de aldeias do vale do Senegal associados à

metalurgia e a antigos cemitérios animistas. Terão desaparecido desta região no século

XII, na sequência da islamização pelos almorávidas, seguido do aumento do poderio do

reino do Jalofo. Originariamente animistas, muitos sérères converteram-se ao

cristianismo com a chegada dos Europeus.

- Soninkés ou sarakholés: povo vivendo no Oeste maliano, no Sudeste da

Mauritânia e no Leste do Senegal. Agricultores praticando também a pecuária, os

soninkés têm uma sólida tradição de comércio e de emigração. Constituídos a partir da

mestiçagem de várias populações amalgamadas à época do império do Gana, serão

também os sucessores dos agricultores expulsos das regiões mais setentrionais pela

desertificação.

- Wolofs ou jalofos: população constituindo perto de metade dos habitantes do

Senegal, a maior parte dos quais são islamizados. O sistema social piramidal herdado do

antigo império do Jalofo continua a ser praticado. Os wolofs compõem uma etnia que,

tal como a sua língua que se tornou praticamente franca no Senegal, irradiou a partir da

área original do Jalofo. Trata-se da maior etnia senegalesa, cuja importância social

esteve muito tempo aquém da demográfica, mas que tende agora a inverter esta

situação, graças ao talento comercial dos seus membros e à sua ascensão no poder

político, principalmente desde 2002, a que não é alheia a vitalidade das confrarias

religiosas, em particular, a mourida (os membros da outra grande confraria, tidjane, são

associados a um comportamento mais contemplativo). Assim, de grandes cultivadores

de amendoim, os wolofs passaram a comerciantes com um peso cada vez maior na

economia senegalesa.

No universo dos alunos inquiridos, ocorrem 132 nomes diferentes, dos quais 106

são exclusivos de uma etnia e, dos 26 restantes, 6 são maioritariamente referentes a uma

só etnia (75% ou mais dos casos). Em geral, podemos assinalar uma certa constância na

correspondência entre nome e etnia dos povos meridionais (Casamansa e costa a Sul da

112

Península do Cabo Verde), em contraste com a maior heterogeneidade das tribos178 do

interior, particularmente os peul e os wolofs.

O objectivo de reunir os dados recolhidos nestes quadros extensos é o de

salientar, desde logo, que existe, no Senegal, uma grande correspondência entre os

nomes e as etnias que permite, aos autóctones, saberem muitas vezes, pelo simples

anúncio do nome, elementos sobre a condição social e a origem geográfica do

interlocutor, senão com precisão, pelo menos situando a região da família deste e as

etnias possíveis. Assim, podemos depreender que a sociedade senegalesa se apresenta

fortemente estratificada, embora isso se verifique num plano informal: a Constituição

garante, na letra, a igualdade entre todos.

No Senegal e como poderemos apreciar adiante, a matriz de casamentos

tradicionalmente “aceitáveis” entre etnias é, para o estrangeiro, quase esotérica, mas,

por vezes, muito clara para os locais, constituindo um facto importante para o estudo

das relações pessoais e para a compreensão da vida socio-política do país. No Senegal, a

pertença étnica já não tem estatuto oficial nem é mencionada nos documentos de

identidade. Todavia, praticamente ninguém a esconde, antes é referida com facilidade.

Muitos patrónimos permitem a identificação étnica; eis alguns exemplos:

- Os Fall, Guèye e Seck são wolofs;

- Os Faye, Ndour e Sarr são sérères;

- Os Diatta, Diédhiou e Manga são diolas;

- Os Ba, Diallo e Sow são peuls;

Na maior parte das sociedades senegalesas, ao lado de um patrónimo colectivo,

que significa a pertença a uma família ou a um clã, cada pessoa tem um nome que a

designa enquanto indivíduo. Mas mesmo o nome próprio é muitas vezes escolhido

dentro de um leque restrito; por vezes, o nome invocará circunstâncias relativas ao seu

nascimento, como é o caso na maioria dos diolas.

Vale a pena determo-nos sobre algumas práticas diolas que, como veremos ao

longo do inquérito, constituem o grupo mais significativo dos estudantes de Estudos

Portugueses.

Nos diolas, por exemplo, Boalijo significa “para que serve?” (usado, neste caso,

com um intuito aparentemente depreciativo, com vista a desviar a atenção dos maus

178 Este termo será sempre utilizado com o sentido de “cada uma das divisões de um povo”, “conjunto de famílias que provêm de um tronco comum, sob a autoridade de um chefe”, ou “conjunto de clãs” Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Ed.,7ª ed, 1995.

113

espíritos de uma criança que nasce depois do ritual do Kanhalen); Kusumenso significa

“reuniram-se”; Sibilumbai é “de onde vêm?” Por outro lado, os nomes diolas são muitas

vezes escolhidos para honrar parentes.

Contudo, é também prática corrente que, para além dos nomes oficiais, outros

possam ser dados, formalmente ou não, para uso diário. Assim, os mesmos diolas

podem adicionar ao nome tribal um outro, cristão ou muçulmano, não necessariamente

inscrito no estado civil, sendo que o uso de um ou de outro é por vezes exclusivo, outras

vezes não; em todo o caso, é-lhes indiferente que o nome de uso seja, ou não, o oficial.

Um estudo sobre a marca étnica na escolha dos nomes próprios na área de

Oussouye, na Casamansa179 constatou que 76% dos diolas, 91% dos manjacos e 90%

dos mancanhes optaram por atribuir nomes próprios cristãos aos seus filhos, enquanto

que 78% dos halpularen, 73% dos mandingas e 71% dos wolofs dão nomes

muçulmanos aos seus filhos.

Outro dado interessante do mesmo estudo, quando optaram por dar um nome

étnico aos seus filhos, nenhuma das 260 crianças halpular recebeu um nome diola,

enquanto que, nesta etnia, 47% dos nomes atribuídos relevavam de uma outra etnia.

Marie-Louise Moreau conclui que a repartição dos indivíduos nas duas grandes

categorias de nomes próprios está fortemente condicionada pela sua pertença étnica e

que menos de 2% dos indivíduos possuem simultaneamente nomes cristãos e

muçulmanos, o que leva a pensar que estes dois universos são vistos não somente como

distintos, mas, também, como opostos. Contudo, assinala também que a existência de

um nome religioso é mais uma forma de obter reconhecimento institucional, e não pode

ser interpretada, necessariamente, como a adesão à religião em causa.

De facto, o animismo continua presente e o nome diola, mesmo que, como

vimos, não “oficial”, é por vezes o mais utilizado e significativo entre os diolas. Esta

situação, que poderia levar á diluição, a prazo, de elementos identitários diolas, seria

reforçada pela imagem depreciativa que outras etnias teriam daquela etnia (vista como

constituída por empregadas domésticas e por camponeses atrasados no obscurantismo

das práticas tradicionais), “atestada” pelo facto de não se verem nomes diola em

crianças de outras etnias.

179 MOREAU, Marie-Louise, « Le marquage des identités ethniques dans le choix des prénoms en Casamance (Sénégal) », in Cahiers d’Études Africaines, Langues déliées 163-164, 2001. Note-se que, para este estudo, a autora considera « halpularen » os peuls e toucouleurs ; nos “mandingas”, inclui os bambaras; e nos “manjacos”, inclui os crioulos, o que a própria autora considera “discutível”.

114

Contudo, M.-L. Moreau regista o fenómeno do aumento significativo dos nomes

diola no seio da etnia, o que considera um indicador de afirmação da identidade,

correspondente “a um sobressalto identitário, a cuja afirmação a crise casamansence,

com o seu movimento independentista, e a ocupação militar da região180 poderão não

ser alheias”.

A título ilustrativo da riqueza etnográfica do ocidente africano, vejamos também

algumas características dos peuls.

Na origem, os nomes peuls podiam designar a ocupação dos seus titulares

(“peuls da vaca”, ainda dedicados à pastorícia, “peuls do livro”, dedicados ao Islão e ao

ensino corânico, e “peuls do tambor” que detêm o poder nos grandes territórios). Assim,

os peuls reconheciam-se através de quatro grandes clãs associados aos elementos da

natureza (fogo, ar, terra e água), à cor dos bovinos (amarelo, vermelho, branco e negro),

e aos quatro pontos cardeais:

- Jal, Jallo (Dial, Diallo, mas também Ka, Kan ou Kane): associados ao Leste, ao

sol nascente, ao símbolo do fogo e aliados à vaca amarela;

- Ba (mas também Mbaalo e Balde): associados ao Oeste, ao poente, ao ar e à

vaca vermelha;

- Bari (Barry, mas também Sangare e Moodibaa’be – os letrados): associados ao

Norte, à terra e à vaca branca;

- Soh (Sow, mas também Sidibe, Dikko, Soonde): associados ao Sul, à água e à

vaca negra.181

Salamatou Sow refere ainda “la parenté à plaisanterie” (termo utilizado para

referir uma aliança entre tribos, povos e / ou castas que pode valorizar aspectos

antepassados comuns, esquecer outros e facilitar ou dificultar casamentos ou

tratamentos preferenciais) entre Jallo e Ba, ou entre Bari e Soh.

Há ainda peuls mais identificados com o sedentarismo, que têm como nomes de

clã mais usuais: Ly, Sy e Tall.

Outros povos senegaleses, como os wolofs, os sérères ou os mandingas têm,

também, nomes ligados a clãs; mas o objecto do presente trabalho e a dimensão

aconselhável do mesmo não justificam o alongamento nesta matéria, para além destes

180 Marie-Louise MOREAU cita aqui a tese de doutoramento de MARUT, J.-C., “La question de la Casamanse (Sénégal). Une analyse géopolitique”, Université de Paris VIII, Paris 181 SOW, Salamatou, “Les noms sociaux en fulfulde”, in Cahiers d´études africaines, Langues déliées, 163-164, Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, 2001

115

dois exemplos do vasto e complexo universo das nomenclaturas na África ocidental e

das interpretações que elas consentem junto dos iniciados.

3.3.1.b - Idade

Atente-se ao seguinte quadro relativo à repartição etária dos alunos:

Quadro 2. Repartição etária dos alunos

Idade

Duel I

Duel II

Licence Maîtrise

Total

%

19 2 2 0,720 11 1 12 4,121 19 3 22 7,522 35 13 4 52 17,623 39 18 9 66 22,424 17 22 13 1 53 18,025 5 18 16 5 44 14,926 1 7 7 4 19 6,427 1 3 3 8 15 5,128 1 2 4 7 2,429 1 1 0,330 1 1 0,331 0 0,032 0 0,033 0 0,034 1 1 0,3

A análise das idades dos alunos revela alguns aspectos marcantes:

- O ingresso tardio na Universidade: só 0,7% dos alunos têm menos de 20 anos;

- As dificuldades escolares: não há nenhum aluno de “Licence” (3º ano) com 21

anos, nem de “Maîtrise” com 23 e o maior efectivo (moda) em cada ano lectivo ocorre,

em geral, na mediana (23 anos em “Duel I”, 24 em “Duel II”, 25 em “Licence” – cuja

mediana seria 25,5 - e 27 em “Maîtrise”);

- A permanência limitada na Universidade: devido às dificuldades escolares

registadas e, provavelmente, à falta de meios financeiros, os alunos acabam cedo os

estudos ou abandonam rapidamente, sem os concluir;

- São em pequeno número os que terminam o curso;

- Poucos iniciam a sua actividade profissional dentro da formação em Estudos

Portugueses;

- Verfica-se, nestes alunos, um atraso sistemático para o início de uma

actividade profissional.

116

Fica, assim, patente o difícil ambiente que ainda prevalece no Senegal para os

estudos, quer pela pobreza geral, quer pelo implícito insucesso escolar no Ensino

Secundário. Assim, a taxa de escolaridade no ensino primário era, em 2000, de apenas

60,7%, o que, traduz, contudo, uma nítida progressão durante a década anterior, pois

aquele ratio era de 48,1% em 1990, mas as evoluções positivas foram uma regra em

África, exceptuando a Namíbia e a Tanzânia182.

3.3.1.c - Local de nascimento

Para melhor estudar esta matéria, vejamos um mapa da divisão administrativa do

Senegal:

Mapa 3: Regiões e capitais regionais do Senegal183

Analisemos agora a distribuição geográfica dos locais de nascimento dos alunos,

relacionando-a com os anos que frequentam na Universidade Cheikh Anta Diop: 182 Fonte: MINEDAF, 8ª Conferência dos Ministros da Educação dos Países africanos, Dezembro 2002 e PNUD, matrizes elaboradas na base dos questionários nacionais relativos ao processo de acompanhamento dos Objectivos do Milénio para o Desenvolvimento, Agosto de 2003, citados por: RHAZAOUI, A; GRÉGOIRE, L-J; MELLALI, S: L’Afrique et les Objectifs du Millénaire pour le Développement, Ed. Económica, Paris, 2005 183 « Les Atlas de l’Afrique, Sénégal », 2000

117

Quadro 3. Distribuição por área de nascimento

Ano

Região / país

Duel I Duel II Licence Maîtrise Total %

Dacar 17 17 12 1 47 14,4Djourbel 4 7 4 2 17 5,4Fatick 8 2 4 3 17 5,4Kaolack 5 4 3 1 13 4,1Kolda 23 13 9 5 50 15,9Louga 2 1 1 4 1,3Saint-Louis 3 3 4 10 3,1Tambacounda 5 5 1 2 13 4,1Thiès 11 13 2 1 27 8,6Ziguinchor 56 23 16 10 115 36,5Outros países 1 1 2 0,3

Os dados compilados no Quadro 3 evidenciam a predominância dos alunos do

Sul do Senegal no universo dos estudantes de Português da Universidade.

Com efeito, 52,4% dos estudantes nasceram nas duas regiões da Casamansa, a

província mais meridional do Senegal e que separa a Gambia da Guiné-Bissau. Grosso

modo e sem prejuízo de posteriores análises, a repartição indicada indicia a

predominância das etnias diola, manjaco, mancanhe, mandinga, balanta, fula e papel.

Contudo, é importante reter que parte dos elementos destas etnias nasceram já na

região de Dacar (cidade e arredores), fruto do êxodo rural que se iniciou com a

designação daquela cidade como capital da África Ocidental Francófona e que se

intensificou a partir de 1960, quando se tornou a primeira – e, até ao momento, única –

capital do Senegal.

Também relevante é o peso de Thiès neste quadro, resultante da presença de

muitos estudantes sérères. Os sérères residem em geral na “Petite-Côte” e no Siné-

Saloum, a Sul de Dakar, área pertencente às regiões de Thiès, Fatick e (pouco) Kaolack.

3.3.1.d – Etnia

Procuraremos verificar se as etnias têm habitats tradicionais e se os elementos

estatísticos permitem explicar a proporção de cada etnia na amostra. O primeiro aspecto

118

relevante será a análise comparativa da repartição por etnias dos alunos com a do

Senegal. Vejamos, para o efeito, o Quadro 4184:

Quadro 4. Repartição das etnias na amostra de estudantes e na população do Senegal

Repartição das etnias na amostra de

estudantes Repartição das etnias na população

senegalesa

Diola 23,3% Wolof 42,7%Wolof 15,7% Sérère 14,9%Sérère 13,8% Peul 14,5%Manjaco 9,8% Toucouleur 9,3%Mancanhe 9,2% Diola 5,3%Mandinga 5,3% Mandinga 3,6%Balanta 4,3% Sarakholé 1,7%Peul 3,0% Bambara 1,3%Fula 2,3% Manjaco 1,0%Bainouk 2,0% Mouro 1,0%Bambara 2,0% Balanta 0,8%Toucouleur 1,6% Lébou 0,8%Papel 1,0% Socé 0,6%Sarakholé 1,0% Mancanhe 0,3%Lébou 0,7% Laobé 0,3%Socé 0,3% Bassari 0,1%

A etnia mais representada no universo de estudantes de Português é a diola que,

no Senegal, é apenas a quinta. A percentagem de estudantes diolas na amostra é

praticamente o quádruplo da sua representatividade no Senegal. Os wolofs seguem com

15,7%, apenas 1,9% a mais do que os sérères. Ora, na população senegalesa, a

proporção entre wolofs e sérères é de 1,83 para 1, ou seja, quase o dobro.

Com uma percentagem de alunos acima da representatividade na população

senegalesa, temos as seguintes etnias: diola (4,4)185, manjaco (9,8), mancanhe (30,7),

mandinga (1,5), balanta (5,4) e bambara (1,5). Refira-se o caso dos bainouks, fulas

(quando citados à parte dos peuls) e papel que, segundo os autores citados, têm uma

expressão irrelevante (no conjunto e com outras etnias, perfazem 1,3%) na população

senegalesa. Ora, na amostra, estão representadas com, respectivamente, 2%, 2,3% e 1%.

Com uma percentagem de alunos inferior à frequência relativa na população

senegalesa, temos as etnias wolof (-63,3%), sérère (-7,3%), peul (-79,3%), toucouleur

184 Tendo em conta que utilizaremos os elementos fornecidos por C. S. DIATTA et al, Op. Cit., seguiremos a fusão das etnias que adoptam 185 Indicamos, entre parêntesis, a proporção entre as frequências relativas na amostra e na população senegalesa

119

(-82,8%), sarakholé (-41,2%), lébou (-12,5%), socé (-50%), bassari, laobé e mouros.

Procuraremos, ao longo deste documento, dar pistas de explicação para esta situação.

Façamos, também o exercício de simplificação, agrupando os dados em grandes

grupos étnicos186:

Quadro 5 - Repartição das grandes famílias de etnias na amostra de estudantes e na população do Senegal

Repartição das etnias na amostra de estudantes

Repartição das etnias na população senegalesa

Grupo subguineense (diolas, bainouks, bassaris, manjacos, mancanhes, balantas, papel)

49,6% Grupo sahelo-sudanês (wolofs, sérères, lébous)

58,4%

Grupo sahelo-sudanês (wolofs, sérères, lébous)

30,2% Grupo halpular (peuls / fulas, laobés, toucouleurs)

25,1%

Grupo mande (mandingas, soninkés / sarakholés, diakhanés, bambaras, djalonkés, socés)

8,6% Grupo subguineense (diolas, bainouks, bassaris, manjacos, mancanhes, balantas, papel)

7,5%

Grupo halpular (peuls / fulas, laobés, toucouleurs)

6,9% Grupo mande (mandingas, soninkés / sarakholés, diakhanés, bambaras, djalonkés, socés)

7,2%

Mouros - Mouros 1,0%

O quadro fala por si, no que refere à predominância do grupo sub-guineense:

praticamente metade do universo.

O grupo mande, também mais presente a Sul do que a Norte do Senegal,

completa o conjunto das famílias cuja proporção na amostra de estudantes é superior à

da população do país. Contudo, a diferença de proporções indicia que uma elevada

concentração de estudantes de Estudos Portugueses de uma determinada etnia não é,

apenas, consequência da sua proximidade geográfica com países lusófonos, pois tanto

Kolda, como Ziguinchor, fazem fronteira com a Guiné-Bissau.

Ao invés, o grupo sahelo-sudanês tem uma proporção de estudantes claramente

inferior à sua predominância (58,4%) na população senegalesa. Como vimos, esta

constatação é também válida para a etnia sérère, que integra este grupo.

O grupo halpular é o que tem uma maior desproporção, negativa, entre a

percentagem nos alunos e na população.

186 MBOW, Raymonde, e KANE, Ahmadou Fadel, «Peuplement et ethnies», in « Les Atlas de l’Afrique, Sénégal», Les éditions Jeune Afrique, 5ª ed., Paris, 2000

120

Mapa 4: Grupos étnicos no Senegal actual187

Para tentar encontrar explicações para as dissemelhanças entre as proporções das

etnias na população senegalesa e no universo dos alunos de Estudos Portugueses da

Universidade Cheikh Anat Diop, comecemos por relacionar as etnias dos alunos com as

suas regiões de nascimento, de modo a verificar uma eventual diferenciação de zonas

dos habitats das etnias:

187 MBOW, Raymonde, e KANE, Ahmadou Fadel, «Peuplement et ethnies», in « Les Atlas de l’Afrique, Sénégal», Les éditions Jeune Afrique, 5ª ed. Paris, 2000

121

Quadro 6. Relação etnia / área de nascimento dos alunos

Área Etnia

Da- car

Djour-bel

Fa- tick

Kao-lack

Kol- da

Lou- ga

Saint Louis

Tamba-counda

Thiès Ziguin- chor

Costa do Marfim

Diola 4 1 5 61 Bainouk 6 Balanta 2 8 3 Crioula 2 Mancanhe 3 1 12 1 11 Manjacos 5 8 1 15 Papel 1 2 Wolof 17 5 1 5 4 5 3 6 1 Lébou 1 1 Sérère 7 4 15 1 15 Mandinga 2 1 9 3 2 Bambara 1 1 2 1 1 Sarakholé 1 2 2 Socé 1 Peul 3 2 2 4 3 1 1 2 1Fula 4 1 2 Toucouleur 1 2 1 1 1

Verifica-se, no quadro 5, uma diferenciação zonal da origem das etnias188:

a) Grupo subguineense (Ziguinchor, Kolda, Dacar)

- bainouks, diolas e papel: Ziguinchor;

- balantas, mancanhes e manjacos: Kolda;

- crioulos: Dacar;

b) Grupo sahelo-sudanês (Dacar, Thiès, Fatick)

- wolofs: Dacar;

- lébous: Dacar e Djourbel;

- sérères: Fatick e Thiès;

c) Grupo mande (Kolda, Ziguinchor, Dacar-Djoubel-Kaolack-Tamba-Thiés)

- bambaras: Kaolack;

- mandingas: Kolda;

- sarakholés: Thiès e Ziguinchor;

- socé: Djourbel;

d) Grupo halpular (Kolda, Saint-Louis, Dacar-Tambacounda)

- fulas: Kolda ;

- peuls: Kolda;

188 Entre parêntesis, indicam-se as três principais, por gupo e por ordem decrescente

122

- toucouleurs: Djourbel.

A diferenciação zonal apresenta, no entanto, variações significativas entre

grupos étnicos: assim, o grupo subguineense regista a maior concentração (64,5%) de

nascimentos na província mais citada, Ziguinchor, enquanto que os demais grupos têm

uma muito maior dispersão: o grupo mande tem apenas 31% em Kolda, o grupo

halpular, 25% em Kolda, e o grupo sahelo-sudanês tem 22,6% em Dacar.

O quadro 6 permite ainda constatar a grande variedade das etnias presentes em

Dacar, atraídas pelas funções inerentes ao estatuto de capital, mas também em Kolda e

em Ziguinchor, revelando as características de cruzamento étnico da região da

Casamansa que foi posse de diversos impérios coloniais.

Para aprofundar esta análise, optámos por introduzir, também, as áreas de

nascimento de pais e avós de alunos, interrelacionando-as entre si e com as etnias.

O estudo da região de nascimento de pais e avós fornece indicações sobre

origens étnicas, mobilidade das famílias dos estudantes e pode fornecer pistas, de

natureza geográfica e cultural, sobre a motivação dos alunos para frequentarem os

cursos de Português na UCAD:

Quadro 7 – Relação etnia / região de nascimento dos pais

Depart.189 Etnia

Dkr

Djb

Ftk

Klk

Kld

Lga

St.L

Tmb

Ths

Zgr

Estrangeiro190

Diola 1 8 1 128 GB(3) Bainouk 12 Balanta 18 5 GB(2) Crioulo GB(3) Mancanhe 15 25 GB(16) Manjaco 1 16 34 GB(7) Papel 3 GB(3) Wolof 19 13 6 11 10 14 3 13 4 Lébou 3 1 Sérère 2 4 45 31 Mandinga 2 15 1 4 6 GB(3), MAU(1) Bambara 1 1 4 1 3 MALI(1) Sarakholé 3 1 2 2 2 Socé 2 Peul 4 2 3 9 1 13 1 3 CV(1) Fula 6 2 2 GB(2), GC(2) Toucouleur 1 5 1 1 1 1 189 Legenda: Dkr – Dacar; Djb – Djourbel; Ftk – Fatick; Klk – Kaolack; Kld – Kolda; Lga – Louga; St.L – Saint-Louis; Tmb – Tambacounda; Ths – Thiès; Zgr – Ziguinchor; 190 Legenda: CV – Cabo Verde; GB – Guiné-Bissau; MAU – Mauritânia; GC – República da Guiné (Conacri);

123

No que respeita à região de origem dos pais dos alunos, mantêm-se no essencial

as características assinaladas para os estudantes, mas com particularidades:

a) Grupo subguineense (Ziguinchor, Kolda, Dacar-Kaolack-Thiès)

- bainouks, diolas, mancanhes, manjacos e papel: Ziguinchor;

- balantas: Kolda;

- crioulos: Guiné-Bissau;

b) Grupo sahelo-sudanês (Fatick, Thiès, Dakar)

- lébous, wolofs: Dacar;

- sérères: Fatick;

c) Grupo mande (Kolda, Ziguinchor, Tambacounda)

- bambaras: Kaolack;

- mandingas: Kolda;

- sarakholés: Dacar;

- socés: Djourbel;

d) Grupo halpular (Kolda-Saint-Louis, Djourbel)

- fulas: Kolda;

- peuls: Saint-Louis;

- toucouleurs: Djourbel.

Comparando a concentração dos nascimentos de cada grupo étnico no

departamento citado mais vezes, temos que esta é de: 68,8% em Ziguinchor, para o

grupo subguineense; 28,5% em Fatick, para o grupo sahelo-sudanês; 27,3% em Kolda,

para o grupo mande; e 26,2% em Kolda ou Saint-Louis, para o grupo halpular.

Assim, a concentração nos primeiros departamentos de nascimento dos pais era,

nos casos sahelo-sudanês e halpular, maior do que no caso dos filhos e, no caso mande,

inferior em 3,7%. Contudo, as diferenças não são muito significativas, destacando-se

sobretudo o grupo subguineense, que apresenta, para ambas as gerações, valores

superiores a 65% (arredondando à unidade) e os outros grupos que, na geração dos pais,

têm valores compreendidos entre os 26 e os 28% e, na geração dos filhos, entre 23%

(sahelo-sudanês) e 31% (mande).

Em detalhe, podemos observar que os pais bainouks provêm exlusivamente da

província de Ziguinchor, onde nasceram, também, 91% dos pais diolas.

124

Por sua vez, a percentagem de pais wolofs nascidos em Dacar era menor que a

dos filhos (20% em vez de 37%), visualizando-se claramente a grande disseminação no

território da etnia, sobretudo a Norte do rio Gambia.

Quanto aos pais sérères, 93% nasceram nas regiões de Thiès e de Fatick mas esta

província destaca-se (55% contra 38%), ao contrário do equilíbrio que se verifica nos

filhos (36% para ambos os departamentos).

Ao contrário dos filhos, é na região de Ziguinchor que nasceram mais pais

manjacos (59%) e não em Kolda.

Também no caso dos peuls, a região principal de nascimento dos pais é Saint-

Louis e não Kolda, embora esta tivesse um forte efectivo; parece notar-se, em todo o

caso, um movimento geracional no sentido Norte-Sul.

Por último, uma parte significativa (7,4%) dos pais nasceu noutros países e, em

particular, na Guiné-Bissau (6,6%), onde nasceram 100% dos crioulos e 50% dos papel.

Aprofundemos ainda mais a perspectiva de análise, observando, no quadro 7, os

departamentos de nascimento dos avós, sempre em função da etnia:

Quadro 8 – Relação etnia / região de nascimento dos avós191

Depart. Etnia

Dkr

Djb

Ftk

Klk

Kld

Lga

St.L

Tmb

Ths

Zgr

Estrangeiro192

Diola 9 228 GB(10), MALI(3), MAU(1)

Bainouk 18 GB(4) Balanta 26 7 GB(12) Crioulo GB(10), PT(1) Mancanhe 9 29 GB(36), CV(2) Manjaco 1 16 34 GB(50) Papel 4 GB(4) Wolof 28 11 4 13 38 29 3 19 6 Lébou 6 2 Sérère 4 8 87 2 1 51 Mandinga 2 23 1 8 10 GB(12), GAM(2),

GC(1), MALI(1), MAU(1)

Bambara 6 2 1 1 MALI(10) Sarakholé 4 2 4 6 Socé 4 Peul 1 3 9 6 7 24 2 4 GC(4), GBO(1),

MALI(1) Fula 6 8 GB(6), GC(4) Toucouleur 2 2 3 8 4 1CV

191 Legenda idêntica à do quadro 6, acrescida de: GAM – Gâmbia; GBO – Gabão; PT - Portugal 192 Legenda: CV – Cabo Verde; GB – Guiné-Bissau; MAU – Mauritânia; GC – República da Guiné

125

O Quadro 8 ajuda a apreender melhor a mobilidade intergeracional das etnias.

Vejamos, antes de mais, um resumo dos dados relativos aos grupos e às etnias:

a) Grupo subguineense (Ziguinchor, Kolda, Guiné-Bissau)

- bainouks, diolas, mancanhes, manjacos: Ziguinchor;

- balantas: Kolda;

- crioulos: Guiné-Bissau;

- papel: Ziguinchor e Guiné-Bissau;

b) Grupo sahelo-sudanês (Fatick, Thiès, Louga)

- lébous: Dacar;

- sérères: Fatick;

- wolofs: Louga;

c) Grupo mande (Kolda, Tambacounda, Guiné-Bissau)

- bambaras: Mali;

- mandingas: Kolda;

- sarakholés: Tambacounda;

- socés: Djourbel;

d) Grupo halpular (Saint-Louis, Kolda, Kaolack)

- fulas: Saint-Louis ;

- peuls: Saint-Louis;

- toucouleurs: Thiès

Em matéria de concentração dos nascimentos nos departamentos mais citados,

regista-se pouca diferença em relação ao que foi referido para os estudantes e seus pais:

o grupo subguineense é o que apresenta menor dispersão, com 62,3% dos nascimentos

em Ziguinchor; os demais grupos situam-se num curto intervalo: 33% dos halpulars

nasceram em Saint-Louis; 29,2% dos sahelo-sudaneses nasceram em Fatick; e 22,8%

dos mandes nasceram em Kolda.

Analisando os resultados obtidos para os grupos étnicos nas três gerações,

detectamos alguns padrões estáveis:

- o grupo subguineense tem sempre, no departamento de Ziguinchor, o seu foco

de nascimentos, com elevadas concentrações: (de avós para netos) 62,3%, 68,8%,

64,5%;

- Kolda é sempre o departamento com mais nascimentos do grupo mande, e a

tendência parece ser a de uma crescente concentração: 23%, 27%, 31%;

126

- o grupo sahelo-sudanês apresenta uma cada vez mais baixa concentração (29%,

28,5% e 23%);

- o grupo halpular apresenta também uma tendência para reduzir a concentração

(33%, 26%, 25%) e uma aparente tendência migratória de Norte para Sul. Acerca deste

grupo valerá a pena relembrar que são, na origem, pastores, pelo que a desertificação

progressiva do Sahel poderá ter influenciado parcialmente esta tendência migratória.

Será também pertinente assinalar que os departamentos citados são bastante

diferentes entre si, em termos de extensão, pelo que a “concentração” na maior

província, a de Tambacounda, com os seus 59602km² (ou na de Saint-Louis, também

muito vasta e, sobretudo, muito extensa) não é comparável à concentração efectiva nos

550km² do departamento de Dacar.

Por último, assinale-se também uma nítida imigração, para o Senegal, de muitas

das famílias dos alunos mas que, também nesta matéria, a situação é bastante distinta

entre os grupos étnicos.

Assim, o peso dos nascimentos no estrangeiro passa, no total, de 17,1% nos

avós, para apenas um nascimento nos alunos. Ou seja, o fenómeno imigratório parece,

para estas famílias consolidado, ainda que fosse interessante, noutro âmbito, avaliar o

impacto da emigração, para fora do Senegal e do próprio continente africano, cuja

pulsão existe entre os alunos, como veremos adiante.

Mas, como dissemos, notam-se grandes diferenças entre grupos étnicos, no que

respeita à imigração:

Assim, podemos considerar que o grupo que parece ter origens mais antigas no

território do Senegal, de acordo com os dados colhidos no inquérito, é o sahelo-sudanês,

constituído, recordamos, por wolofs, sérères e lébous. O facto de nenhum avó, nem

nenhum aluno destas etnias ter nascido fora do Senegal revela bem o seu enraizamento

no país, conforme tivemos já a ocasião de assinalar, e, também, uma menor

miscigenação, provavelmente devido ao facto de os seus “terroirs” não serem contíguos

ás fronteiras do país. No que respeita aos nascimentos dos pais, apenas três ocorreram

no estrangeiro (1,7%).

No grupo halpular, 16% dos avós nasceram no estrangeiro, valor que desce para

8,2% nos pais e 3,1% entre os alunos deste conjunto étnico.

O peso dos avós do grupo mande nascidos no estrangeiro é bastante relevante:

26,7%. Esse valor desce para 9,1% nos pais e para zero nos alunos.

127

Por último, o grupo subguineense tinha uma percentagem de avós nascidos no

estrangeiro inferior à dos mandes - mas, ainda assim, elevada (25,9%) -; contudo, é nos

pais subguineenses que há mais nascimentos no estrangeiro (11,3%), o que poderá

indiciar laços fortes com povos da Guiné-Bissau (designadamente, os flups) que, por

motivos diversos – instabilidade político-militar e pobreza crónicas – continuam a

emigrar daquele país para o Senegal.

Em pormenor, os avós diolas nascem predominantemente na Casamansa (90,8%

em Ziguinchor, valor idêntico ao dos filhos, e 3,6% em Kolda) mas também no

estrangeiro (4% na Guiné-Bissau, 1,2% no Mali e 0,4% na Mauritânia).

As áreas de nascimento dos avós bainouks evidenciam uma diferença relativa às

dos filhos e netos, a favor da Guiné-Bissau (18,2%).

Os wolofs não são essencialmente originários da região do Cabo Verde, mas sim

de uma faixa contígua ao litoral a Norte desta (o Jalofo), como se evidencia pelo facto

de Louga ser a região onde nasceram mais avós (25%) daquela etnia, seguida de Saint-

Louis (19,2%) e de Dacar (18,5%).

Em certas etnias, é maior a frequência de avós nascidos no estrangeiro do que

em qualquer região do Senegal: os papel (100% na Guiné-Bissau), os crioulos (91% na

Guiné-Bissau), os bambaras (50% no Mali), os mancanhes (47,4% na Guiné-Bissau) e

os manjacos (49,5% na Guiné-Bissau).

Nos pais séréres, Fatick continua a predominar (56,9%), embora com uma forte

presença em Thiès (33,3%).

Demonstra-se, também, o carácter itinerante dos peuls, com um notório

equilíbrio da sua disseminação pelo Senegal (excepto em território sérère) e pelos países

a Leste e Sudeste do Senegal. Contudo, no caso dos peuls propriamente ditos, destaca-

se a região de Saint-Louis (38,7%) que inclui toda a margem esquerda do rio Senegal a

jusante do município de Bakel, ou seja, uma grande parte do Fouta Toro.

Observemos dois mapas de fluxos, entre os países e regiões de nascimento dos

avós e dos pais, e destes para os seus filhos.

128

MAPA 5 – Fluxos migratórios dos avós dos alunos193

Na primeira fase, dos avós para os pais, nota-se imediatamente que o principal

fluxo migratório ocorre da Guiné-Bissau para a Casamansa, com predominância de

Ziguinchor, mas com uma presença importante de Kolda.

Igualmente significativos, embora de intensidade menor, são os fluxos República

da Guiné (Conacri) para Kolda, de Saint-Louis para Dakar, e de Thiès para Djourbel.

No caso da Guiné-Bissau, dois factores relevam para este fluxo migratório: o

parentesco entre vizinhos de uma fronteira artificial, traçada pelos europeus e que

dividiu etnias e a Guerra Colonial. Não temos, neste trabalho, qualquer possibilidade de

apurar a relação entre os fluxos Norte-Sul e Sul-Norte que, entre a Casamansa e a

Guiné-Bissau ocorreram à época, nem conhecemos estudos nesse sentido que nos

pudessem esclarecer melhor sobre qual das duas motivações terá sido a principal (sendo

que, naturalmente, se tivesse predominado o factor étnico, seria provável que os fluxos

se assemelhassem em ambas as direcções, enquanto que a motivação de fuga aos

confrontos militares geraria um maior fluxo Sul-Norte).

O caso de Saint-Louis é um exemplo de êxodo rural generalizado que se faz

sentir no Senegal há décadas. Não é, consabidamente, um caso isolado em África, nem

193 Provavelmente entre a Segunda Guerra Mundial e a Independência do Senegal

129

no Mundo, embora pareça estar, agora, em fase de regressão. O fenómeno tem

geralmente as mesmas causas – procura de emprego e de oportunidades nos polos

urbanos – mas é, no caso senegalês, agravada por três factores adicionais: as secas

recorrentes e a consequente desertificação que afecta o Sahel; as pragas de gafanhotos e

uma emigração persistente para outros continentes. Atente-se, também, ao caso de

Louga, que sofre um visível êxodo, embora disperso em todas as direcções.

Quanto ao fluxo de Thiès para Djourbel, dever-se-á ao aparecimento, nesta

região, da cidade de Touba, lugar “santo” da confraria mourida. De uma pequena aldeia,

Touba tornou-se uma cidade com cerca de 400 mil habitantes (próxima de outra urbe

significativa, Mbacké), onde a lei é, na prática, estabelecida pelo Califa Geral dos

mouridas. É uma zona franca, e o local de muitos comércios que aproveitam as

romagens constantes e, sobretudo, a grande peregrinação anual que junta cerca de dois

milhões de fiéis. Não surpreende, deste modo, que muitos senegaleses a procurem para

residir e / ou desenvolver uma actividade económica, ao abrigo da protecção e das

influências que os chefes religiosos têm, de facto, em todas as esferas do poder.

MAPA 6 – Fluxos migratórios dos pais dos alunos194

194 Provavelmente entre a Independência do Senegal e os anos 80

130

Na segunda fase – transição das regiões de nascimento de pais e filhos –

verifica-se a redução do fluxo proveniente da Guiné-Bissau, embora permaneça

importante. Significativo é o facto de não haver registo de qualquer fluxo da Guiné-

Bissau para Ziguinchor, mas, apenas, para Kolda. De resto, há também um fluxo

significativo de Ziguinchor para Kolda, o que pode ser parcialmente explicado pelo

desvio das estradas comerciais entre a Guiné-Bissau e Dacar após o início dos actos de

violência armada do MFDC. Com efeito, os assaltos a viaturas e, mesmo, a colocação

de minas, ocorreram com maior frequência na área de Ziguinchor, prejudicando assim a

rota Bissau - Ziguinchor – travessia do rio Gambia por “ferry” em Farafeni - Kaolack.

Esta poderá ser, também, uma explicação para algum fluxo em direcção de

Tambacounda (cruzamento das estradas para Dacar, para o Mali, para a Guiné Conacri

via Kédougou ou via Medina Gounass e a alternativa para Bissau - quer por contornar a

Gambia na ligação a Kolda, quer entrando no país vizinho por Pirada, na direcção de

Gabú e Bafatá) e centro ferroviário na linha Dacar - Bamako) e para os êxodos de

Ziguinchor para Dacar e, até Kaolack, significativamente maiores do que os de Kolda.

Outro aspecto bem patente é a aceleração do êxodo em direcção de Dacar, um

fenómeno que está hoje comprovado, estando a população da capital no limiar dos 2,5 milhões de habitantes, à custa de uma desertificação humana do interior e do Norte.

A análise da dispersão dos habitats étnicos pode ser facilitada pela análise das

regiões ou países de origem dominantes em cada geração, por etnia. Assim, se, para

uma etnia, a região onde ocorre a maioria dos nascimentos for sempre a mesma ao

longo das gerações, há constância; de igual modo, interessa também ver qual a

frequência relativa dos nascimentos nas referidas regiões dominantes: quanto mais

próximo do valor máximo de 100%, maior é a concentração da etnia numa dada região;

ao invés, as etnias mais nómadas tenderão a não ter regiões de origem dominantes.

Vejamos, assim, o seguinte quadro síntese que complementa, detalhando, a

análise relativa aos grupos:

131

Quadro 9 – Regiões ou países onde ocorre a maior frequência relativa de nascimentos por etnia:

Avós Pais Alunos Geração

Etnia

País / região

dominante

Frequência relativa

País / região

dominante

Frequência relativa

País / região

dominante

Frequência relativa

Diola Ziguinchor 90,8 Ziguinchor 90,8 Ziguinchor 85,9 Bainouk Ziguinchor 81,8 Ziguinchor 100,0 Ziguinchor 100,0 Balanta Kolda 57,8 Kolda 72,0 Kolda 61,5 Crioulo RGB 90,9 RGB 100,0 Dacar 100,0 Mancanhe RGB 50,0 Ziguinchor 44,6 Kolda 42,9 Manjaco RGB 49,5 Ziguinchor 59,7 Ziguinchor 51,7 Papel Ziguinchor 50,0 Ziguinchor 50,0 Ziguinchor 66,7 Wolof Louga 25,2 Dacar 20,4 Dacar 36,2 Lébou Dacar 75,0 Dacar 75,0 Dacar 50,0 Sérère Fatick 56,9 Fatick 54,9 Fatick 35,7 Mandinga Kolda 37,7 Kolda 46,9 Kolda 52,9 Bambara Mali 50,0 Kaolack 36,4 Kaolack 33,3 Sarakholé Tambacounda 37,5 Dacar 30,0 Thiès 40,0 Socé Djourbel 100,0 Djourbel 100,0 Djourbel 100,0 Peul Saint-Louis 38,7 Saint-Louis 35,1 Kolda 21,1 Fula Saint-Louis 33,3 Kolda 42,9 Kolda 57,1 Toucouleur Thiès 40,0 Djourbel 50,0 Djourbel 33,3

Constata-se que certas etnias mantêm, ao longo das gerações, a mesma região ou

país predominante em matéria de nascimentos: bainouks (Ziguinchor), balantas (Kolda),

diolas (Ziguinchor), lébous (Dacar), mandingas (Kolda), papel (Ziguinchor), sérères

(Fatick) e socé (Djourbel); contudo, convirá relembrar que as amostras de lébou, papel e

socés são pequenas, pelo que a fiabilidade de eventuais conclusões é menor.

Assinalem-se, também, as elevadas e constantes frequências relativas dos

nascimentos dos bainouks e dos diolas em Ziguinchor, o que demonstra a fixação

territorial daquelas etnias naquela região.

Para continuar a analisar a dispersão, podemos analisar, no Quadro 9, duas

ocorrências complementares:

- as regiões e países onde ocorre a segunda maior frequência relativa de

nascimentos por etnia;

- o somatório das frequências relativas às primeira e segunda regiões onde

ocorrem mais nascimentos:

132

Quadro 10: segundas áreas onde ocorrem mais nascimentos, por etnias Avós Pais Alunos

Frequência relativa

Frequência relativa

Frequência relativa

Geração Etnia

2º País / região mais

citado 2ª maior

∑ 1ª e 2ª

2º País / região mais citado

2ª maior

∑ 1ª e 2ª

2º País / região mais citado

2ª maior

∑ 1ª e 2ª

Diola RGB 4,0 94,8 Kolda 5,7 96,5 Kolda 7,0 92,9

Bainouk RGB 18,2 100,0 100,0 100,0

Balanta RGB 26,7 84,5 Ziguinchor 20,0 92,0 Ziguinchor 23,1 84,6 Crioulo Portugal 9,1 100,0 100,0 100,0 Mancanhe Ziguinchor 38,2 82,2 RGB 28,6 73,2 Ziguinchor 39,3 82,2 Manjaco Ziguinchor 33,7 83,2 Kolda 28,1 87,8 Kolda 27,6 79,5 Papel RGB 50,0 100,0 RGB 50,0 100,0 Dacar 33,3 100,0 Wolof Saint-Louis 19,2 44,4 Saint-Louis 15,1 35,5 Thiès 12,8 49,0 Lébou Djourbel 25,0 100,0 Djourbel 25,0 100,0 Djourbel 50,0 100,0 Sérère Thiès 33,3 90,2 Thiès 37,8 92,7 Thiès 35,7 71,4 Mandinga RGB 19,7 57,4 Ziguinchor 18,8 65,7 Tambacounda 17,7 70,6 Bambara Kaolack 30,0 80,0 Thiès 27,3 63,7 Dacar, Djourbel,

St.-Louis, Thiès 16,7 50,0

Sarakholé Dacar, St.-Louis

25,0 62,5 St.-Louis, Tambacounda, Ziguinchor

20,0 50,0 Ziguinchor 40,0 80,0

Peul Kaolack 14,5 53,2 Kolda 24,3 71,2 Dacar, St.-Louis 15,8 36,9 Fula Kolda, RGB 25,0 58,3 St.-Louis,

Tambacounda, RGB, GC

14,3 56,2 Tambacounda 28,6 85,7

Toucouleur Ziguinchor 20,0 60,0 Dacar, Kolda, St.-Louis, Thiès, Ziguinchor

10,0 60,0 Dacar, St.-Louis, Tambacounda, Ziguinchor

16,7 50,0

Podemos separar as etnias em diversos grupos, consoante a dispersão das duas

regiões em que ocorrem mais nascimentos de cada. Vejamos o

Quadro 11: Repartição dos nascimentos pelas regiões dominantes de cada etnia

Avós: bainouks, crioulos, diolas, socés

Pais: bainouks, crioulos, diolas, socés

Etnias em que 80% ou mais dos nascimentos

ocorrem na região dominante Alunos: bainouks, crioulos, diolas, socés

Avós: balantas, bambaras, lébous, mancanhes, manjacos, papel, sérère

Pais: balantas, lébous, manjacos, papel, sérères

Etnias em que 80% ou mais dos nascimentos

ocorrem nas duas regiões dominantes Alunos: balantas, fulas, lébous, mancanhes, papel, sarakholés

Avós: balantas, bambaras, lébous, mancanhes, papel, sérères

Pais: balantas, lébous, manjacos, papel, sérères, toucouleurs

Etnias em que 50% a 80% dos nascimentos

ocorrem na região dominante Alunos: balantas, fulas, lébous, mandingas, manjacos, papel

Avós: fulas, mandingas, peuls, sarakholés, toucouleurs

Pais: bambaras, fulas, mancanhes, mandingas, peuls, sarakholés, toucouleurs

Etnias em que 50% a 80% dos nascimentos

ocorrem nas duas regiões dominantes Alunos: Bambara, Mandinga, Manjaco, Sérère, Toucouleur

Avós: wolofs

Pais: wolofs

Etnias em que as duas regiões dominantes

representam menos de 50% dos nascimentos Alunos: peuls, wolofs

133

Da observação do quadro 11 resultam os seguintes traços gerais:

Quatro das etnias têm o seu habitat tradicional concentrado numa só região

(bainouks, crioulos, diolas e socés) e mantêm-se estáveis, sendo de reter a excepcional

ligação, ao longo das três gerações, dos bainouks e dos diolas a Ziguinchor.

No extremo oposto, é assinalável a dispersão dos habitats wolof e peul: as

regiões onde nascem mais alunos peuls são Kolda, a Sul, seguida de Saint-Louis, a

Norte, e Dacar, ao Centro; por sua vez, os wolofs apresentam valores mais altos em

Dacar e Thiès, mas, também, em Saint-Louis, Kaolack e Djourbel.

Os sérères apresentavam-se muito concentrados na mesma área, o Siné-Saloum,

administrativamente dividida entre as regiões de Fatick e de Thiés, nas gerações

anteriores. No que respeita aos locais de nascimento dos alunos desta etnia, assinala-se a

emergência de Dacar, e nota-se uma tendência para o aumento da frequência relativa de

nascimentos de sérères em Thiès, em detrimento de Fatick, o que se explica facilmente

pela proeminência daquela cidade, a terceira mais povoada do Senegal (se for

considerado o aglomerado de Touba / Mbacké), industrialmente activa (é um importante

entroncamento rodo-ferroviário, sendo também conhecida como a “cidade do carril” e

nela se implantaram indústrias importantes) e a sede de um departamento onde se

encontram os mais importantes recursos turísticos (a “Petite Cote”, com a importante

estação balnear de Saly Portugal, mas também Mbour, Somone e Nianing).

Como referimos, os mandingas parecem estar em processo de concentração,

enquanto os bambaras, os peuls, os sérères e os toucouleurs estarão a disseminar-se.

Avaliemos, em conjunto, todos os nascimentos, por etnias e regiões / países:

Quadro 12a – Repartição, por regiões, de todos os nascimentos no Senegal

Região de nascimento Avós Pais Alunos Total Frequência relativa

Dacar 46 34 47 127 6,6Djourbel 30 28 17 75 3,9Fatick 91 51 17 159 8,2Kaolack 32 21 13 66 3,4Kolda 95 90 50 235 12,2Louga 48 12 4 64 3,3Saint-Louis 69 33 11 113 5,8Tambacounda 21 13 12 46 2,4Thiès 79 49 26 154 8,0Ziguinchor 345 223 106 674 34,8Total Senegal 856 554 303 1713 88,5

134

Quadro 12b – Repartição, por países, dos nascimentos ocorridos fora do Senegal e sua frequência relativa ao total de todos os nascimentos

País de nascimento Avós Pais Alunos Total Frequência relativa

Cabo Verde 3 1 4 0,2Costa do Marfim 1 1 0,1Gabão 1 1 0,1Gambia 2 2 0,1Guiné-Bissau 144 39 183 9,5Guiné (Conacri) 9 2 11 0,6Mali 15 1 16 0,8Mauritânia 2 1 3 0,2Portugal 1 1 0,1Total Estrangeiro 177 44 1 222 11,5

A análise de todos os nascimentos de alunos e familiares referidos no inquérito

permite confirmar a importância de Ziguinchor (34,8%) e da Casamansa em geral, que

inclui Kolda (12,2%) e que, no conjunto, representa 47% do universo estatístico.

Vejamos, ainda, um outro quadro comparativo:

Quadro 13 – Repartição da população senegalesa, por regiões, em 2000, e comparação

com as frequências relativas da repartição dos nascimentos de alunos e familiares:

Região População

em 2000195 Frequência relativa da

poulação em 2000

Frequência relativa dos nascimentos de avós, pais

e alunos

Frequência relativa dos nascimentos

de pais e alunos

Frequência relativa dos nascimentos dos alunos

Dacar 2326929 24,4 6,6 9,0 15,5Djourbel 902327 9,5 3,9 5,0 5,6Fatick 628969 6,6 8,2 7,5 5,6Kaolack 1100938 11,6 3,4 3,8 4,3Kolda 797165 8,4 12,2 15,5 16,5Louga 555052 5,8 3,3 1,8 1,3Saint-Louis 842409 8,8 5,8 4,9 3,6Tambacounda 518040 5,4 2,4 2,8 4,0Thiès 1310933 13,8 8,0 8,3 8,6Ziguinchor 543886 5,7 34,8 36,5 34,9Total Senegal 9526648 100,0 88,5 95,1 99,7

Ziguinchor e Kolda são as únicas regiões onde a frequência relativa de

nascimento de alunos é superior à da população. Sendo o valor de referência da

195 Fonte : Departamento de Projecções e de Estatísticas do Ministério da Economia e das Finanças citado pelo Programa das Nações Unidas para o Desevolvimento, Rapport National sur le développement humain au Sénégal, 2001 – Gouvernance et Développement Humain, PNUD, 2001

135

população aquele obtido em 2000, é naturalmente discutível compará-lo com as regiões

de nascimento e, em particular, as dos pais e dos avós, na medida em que, para tal, seria

importante conhecer a repartição da população há 25 e 45 anos atrás, por exemplo.

Contudo, podem-se tirar pistas de interpretação, do facto, por exemplo, de que, tanto no

agregado das três gerações, como no dos nascimentos de pais e filhos, Fatick tem,

também, frequências relativas superiores à repartição da população senegalesa em 2000,

o que poderá querer dizer que, ou o peso da população Sérère está a diminuir em Fatick,

ou aquela etnia se está a transferir para Thiès.

Ainda assim, as frequências dos nascimentos de alunos e a da população de

Fatick e Tambacounda, em relação ao todo nacional, estão próximas, divergindo 1% e

1,4%, respectivamente.

As observações dos dois parágrafos anteriores sugerem a divisão do território

senegalês em três áreas, no que diz respeito à apetência das populações para estudarem

o Português:

- A Casamansa, que se dirá de alta apetência;

- As regiões de Thiès, Fatick e Tambacounda (ou seja, um eixo

aproximativamente transversal a Norte da Gâmbia, com a excepção de Kaolack), de

apetência média;

- As regiões a Norte desse “eixo” e de Kaolack, de apetência baixa (embora

Dacar apresente uma evolução sensível).

O caso específico da Casamansa suscita alguns comentários adicionais: a região

representa 38,8% dos nascimentos de avós, 52,3% dos nascimentos de pais e 51,3% dos

nascimentos de alunos, ou seja, as frequências relativas dos pais e dos alunos são quase

idênticas, mas representam um significativo acréscimo em relação à dos avós.

Tal facto explica-se pelas migrações dos avós, sobretudo a que teve origem na

Guiné-Bissau, com destino à Casamansa: com efeito, 9,5% de todos os nascimentos

ocorreram na Guiné-Bissau, mas a repartição por gerações é muito desigual (13,9% dos

avós, 6,5% dos pais e 0% dos alunos).

A Guiné-Bissau, na qual ocorreram 82,4% de todos os nascimentos ocorridos no

estrangeiro, é claramente o maior foco de origem das migrações de familiares

ascendentes dos alunos e o seu peso na amostra indicia que esse factor será porventura

relevante nas motivações para a escolha dos cursos de Português na Universidade

Cheikh Anta Diop.

136

Sabe-se que, dos restantes países vizinhos, houve migrações significativas para o

Senegal, mas estas não se reflectem na nossa amostra.

Com efeito, o Senegal teve, ao longo do Século XX, um saldo migratório

positivo.

Numa primeira fase, até aos anos 1950-60, grandes contingentes de

trabalhadores do Mali, da Guiné (Conacri) e, mesmo, do então Alto Volta (hoje,

Burkina Faso) vinham sazonalmente para o Senegal, na estação quente e húmida

(“hivernage”), para o cultivo do amendoim (de que o Senegal chegou a ser o maior

produtor). Destes trabalhadores, muitos acabaram por se estabelecer no Senegal, com as

respectivas famílias.

O movimento sazonal para a bacia do amendoim (cujo polo principal é Kaolack)

era também interno: em primeiro lugar, com os wolofs, mas, também, com os

toucouleurs e os soninkés / sarakholés. Os wolofs que, por sua vez, foram a primeira

etnia a migrar massivamente para Dacar, deram início a um importante êxodo rural que

só não teve consequências mais visíveis por causa das elevadas taxas de crescimento

natural que asseguraram um crescimento da população senegalesa de 100,1% entre 1976

e 2000196, embora desigualmente repartido (a taxa de crescimento natural entre 1988 e

1995 variou entre 1,3% em Louga e 3,8% em Dacar e em Djourbel).

Com a independência, as estatísticas tornaram-se menos fiáveis e não existe um

balanço oficial do saldo migratório senegalês desde então (embora, na actualidade, se

saiba que é largamente desfavorável), tanto mais que o exercício é dificultado pelos

laços de parentesco e linguísticos que unem residentes do Senegal, da Gâmbia, da

Guiné-Bissau, da Guiné (Conacri), do Mali e da Mauritânia.

Sabe-se, em relação às comunidades lusófonas e de acordo com informações

transmitidas pelas respectivas Embaixadas em Dacar, que os efectivos de originários de

Cabo-Verde e da Guiné-Bissau rondarão os 20 a 25 mil no primeiro caso (com

tendência de estagnação) e serão superiores a este valor, com tendência crescente, no

segundo caso.

A emigração caboverdiana para Dacar (capital da África francófona ao tempo

colonial e, por isso, também ponto de passagem para uma emigração para a França) é

196 Fonte : Departamento de Prospecção e Estatística do Ministérios das Finanças, citada por PNUD, Op.cit.

137

um tema clássico da própria literatura e da música, tendo ocorrido, ao contrário da

guineense, principalmente antes da independência, em 1975:

“Pouco se sabe da emigração para o Senegal. Trata-se de tema abandonado

pela quase totalidade dos investigadores caboverdianos, mas curiosamente, também

não é considerado pelos investigadores não-caboverdianos que se têm interessado pela

evolução do arquipélago. (…) Consideramos de pura incoerência histórica pretender

fixar o início da emigração caboverdeana para o Senegal, a partir de 1903. Citamos o

caso dos lançados que exerceram uma acção preponderante sobre o comércio do litoral

e interior da África Ocidental que eram na maioria naturais das ilhas de Cabo Verde.

A construção do porto de Dakar recebeu uma grande contribuição da mão-de-

obra caboverdiana, a tal ponto que l’Avenue Gambetta era popularmente conhecida

como l’Avenue des Portugais.”197

Relativamente à Guiné-Bissau, sabe-se que os manjacos e os mancanhes

emigraram em grande número, na segunda metade do Século XX, para a Baixa

Casamansa; sabe-se, ainda, que os fulas se dirigiram antes para a Alta Casamansa ou

para Dacar, onde denotam algum activismo cultural e associativo, sendo bastante

distinto o modo de inserção na sociedade senegalesa.

Os guineenses tenderam a estabelecer-se, num primeiro tempo, na Casamansa,

para prosseguirem as suas ocupações tradicionais (agricultura e pesca) e, em Dacar, são

essencialmente operários e empregados domésticos (exceptuando um pequeno grupo de

quadros superiores das instituições internacionais – Nações-Unidas, Bretton Woods,

União Económica e Monetária da África Ocidental, com delegações regionais em

Dacar, que ali têm o seu lugar de origem que suspendem ocasionalmente para

presenças, não raras vezes efémeras, nos Governos guineenses).

Os caboverdianos concentram-se em Dacar, onde exercem, tradicionalmente,

grande parte das artes, sejam musicais, sejam ofícios como electricistas, carpinteiros,

marceneiros, barbeiros – de que tinham quase o exclusivo na capital – e cabeleireiras e,

no caso das mulheres, alguns trabalhos domésticos. Numa segunda fase ou geração, os

caboverdianos desenvolveram uma importante actividade comercial ou empresarial

(restaurantes, agências de viagens e imobiliárias, empresas de armação e industriais) e,

talvez por força de uma maior atenção dos pais, uma parte significativa prosseguiu

197 CARDOSO, Pedro, Folclore Caboverdiano, Edição da Solidariedade Caboverdiana, Paris, 1983, pp. XIII (Prefácio de Alfredo Margarido)

138

estudos superiores, estando aquela comunidade bem representada ao nível de profissões

como médicos, advogados, magistrados, gestores de empresas e quadros superiores.

A diferença de comportamento entre as duas comunidades “lusófonas” (que

tendem, na realidade, a expressar-se nos respectivos crioulos do Português) está também

patente na amostra de alunos: sendo relativamente idênticas na população, a

percentagem de alunos de origem guineense é elevada, enquanto que apenas 0,2% de

todos os estudantes, pais e avós nasceram em Cabo Verde.

A mera origem familiar num país lusófono constituirá, nestes termos, uma

condição suficiente para motivar o estudo do Português na Universidade Cheikh Anta

Diop?

3.3.1.e – Língua e miscigenação étnicas

Por curiosidade, pedimos aos alunos que designassem a sua língua étnica.

Os resultados confirmam o facto de muitas etnias terem línguas próprias, que

utilizam. Contudo, não questionámos sobre a língua mais correntemente usada, pois

sabe-se que o Wolof se tornou uma língua quase franca, falada, no mínimo, por 3/4 da

população senegalesa.

Assim, podemos fazer uma distinção em função da regra da associação etnia /

língua:

- Nenhum bainouk, balanta, bambara, crioulo, mancanhe, sarakholé, socé,

soninké, toucouleur ou wolof declara qualquer outra língua para além da que tem o

nome da sua própria etnia;

- Os lébous e papel, devido, porventura, à sua reduzida presença na amostra,

dividem-se: os lébous citam, em igual proporção, o Lébou e o Wolof; e 1/3 dos papel

refere o crioulo como língua;

- As demais etnias referem uma língua predominante e, num ou noutro caso,

uma segunda ou terceira: para além do mandinga que diz falar Socé (na verdade, são a

mesma língua), um manjaco cita como língua o Pulunde e um sérère refere falar Diola.

Nos restantes casos, citem-se apenas dois aspectos:

- Os diolas falam a sua própria língua em 94% dos casos. Dos restantes, 4,3%

preferem referir sub-grupos linguísticos (Bayotte, Erame, correspondentes a aldeias) e

um aluno cita como língua étnica o crioulo;

139

- O Pulaar é falado pelos peuls, pulaars e por dois fulas (que referiram, no

inquérito, que os fulas são Pulaars).

Assim, constata-se que, não obstante a tendência para generalizar o Wolof, como

“língua nativa” (sobretudo dirigida a partir de Dacar e recorrendo aos meios

audiovisuais de comunicação social), a par do Francês, língua oficial, as etnias

senegalesas resistem à assimilação e salvaguardam a sua identidade, no plano

linguístico e não só; de facto, observem-se os quadros seguintes, relativos à

miscigenação étnica:

Quadro 14a - Casamentos dos pais – miscigenação étnica - grupo subguineense

Mães Pais

diola bai-nouk

balan-ta

criou-lo

man-jaco

man-canhe

papel man-dinga

fula

Diola 66 1 1 1 Bainouk 2 4 Balanta 1 11 Crioulo 1 Manjaco 1 1 27 1 Mancanhe 1 27 Papel 2

Quadro 14b - Casamentos dos pais – miscigenação étnica - grupo sahelo-sudanês

Mães Pais

wolof lébou sérère diola man-dinga

bam-bara

sara-kholé

peul tou-cou-leur

Wolof 37 2 1 1 1 1 3 1 Lébou 1 1 Sérère 39 1

Quadro 14c – Casamentos dos pais – miscigenação étnica – grupo mande

Mães Pais

mandin ga

bamba ra

sarakho le

dio la

bai nou

k

ba lan ta

manjaco

wo lof

sérère

peul tou cou leur

mouros

Mandinga 6 1 1 1 1 1 1 1 1 1 Bambara 3 2 1 Sarakholé 1 1 2 1 Socé 1

Quadro 14d – Casamentos dos pais – miscigenação étnica – grupo halpular

Mães Pais

peul fula

toucou-leur

diola

criola wolof lébou sérère bam-bara

Peul 12 1 1 2 1 1 Fula 6 Toucouleur 2 1 2 1

140

Quadro 15a – Casamento de avós – miscigenação étnica – grupo subguineense

Avós Avôs

diola bai-nouk

balan-ta

crioula manja-co

man-canhe

papel outros

Diola 129 1 Bainouk 12 Balanta 24 Crioulo 1 1 Manjaco 1 2 42 1 Mancanhe 39 Papel 2 4

Quadro 15b – Casamento de avós – miscigenação étnica – grupo sahelo-sudanês

Avós Avôs

wolof lébou sérère sara-kholé

peul tou-couleur

outros

Wolof 63 4 2 1 1 1 Lébou 4 Sérère 1 72 1

Quadro 15c – Casamento de avós – miscigenação étnica – grupo mande

Avós Avôs

man-dinga

bam-bara

sara-kholé

diola ba-lanta

wolof sérère peul ou-tros

Mandinga 17 1 4 2 1 Bambara 8 1 1 1 1 Sarakholé 1 2 3 Socé 1

Quadro 15d – Casamento de avós – miscigenação étnica – grupo halpular

Avós Avôs

peul fula

tou-couleur

diola papel wolof sérère man-dinga

Peul 23 1 1 Fula 14 Toucouleur 6 3 3

Através dos quadros anteriores, pretendemos observar até que ponto, nos

casamentos, as pessoas de cada etnia procuram manter-se-lhe fiéis à etnia, ou se há uma

miscigenação.

Os resultados não deixam dúvidas e reflectam um traço colectivo da sociedade

senegalesa, a da preferência à própria etnia quando se trata de encontrar um cônjuge.

Mas há diferenças por etnia e por sexo:

141

Quadro 16 – Frequência relativa dos casamentos com pessoas da mesma etnia

Etnia dos Pais

% Etnia das mães

% Etnia dos avôs

% Etnia das avós

%

Crioulo 100,0 Papel 100,0 Bainouk 100,0 Fula 100,0 Fula 100,0 Manjaco 96,4 Balanta 100,0 Lébou 100,0 Papel 100,0 Mancanhe 93,1 Fula 100,0 Mancanhe 100,0 Sérère 97,5 Balanta 91,7 Lébou 100,0 Manjaco 100,0 Mancanhe 96,4 Sérère 90,7 Mancanhe 100,0 Mandinga 94,4 Diola 95,7 Diola 86,8 Diola 99,2 Diola 94,2 Balanta 91,7 Fula 85,7 Sérère 97,3 Balanta 92,3 Manjaco 90,0 Wolof 80,4 Peul 92,0 Serère 91,1 Wolof 78,7 Bainouk 80,0 Manjaco 91,3 Bambara 88,9 Bainouk 66,7 Mandinga 75,0 Wolof 87,5 Wolof 88,7 Peul 66,7 Peul 66,7 Mandinga 68,0 Peul 88,4 Bambara 50,0 Bambara 50,0 Bambara 66,7 Bainouk 85,7 Lébou 50,0 Lébou 50,0 Papel 66,7 Toucouleur 75,0 Mandinga 40,0 Sarakholé 50,0 Crioulo 50,0 Papel 66,7 Toucouleur 33,3 Toucouleur 50,0 Toucouleur 50,0 Crioulo 33,3 Sarakholé 20,0 Crioulo 20,0 Sarakholé 33,3 Sarakholé 33,3 Português 0,0 Mouro 0,0 Socé 0,0 Socé 0,0 Mouro 0,0

Assim, no que respeita aos pais, vejamos aspectos sobre a fidelidade étnica nos

casamentos.

Verifica-se uma absoluta fidelidade à etnia dos homens fulas, papel e crioulos,

embora o número de ocorrências seja pequeno nas duas últimas, logo estatisticamente

pouco relevantes; nos casos femininos, apenas a etnia papel parece ter absoluta uma

fiedelidade absoluta. É curiosa a diferença entre a prática dos fulas inquiridos e a dos

peuls que, em princípio, são uma só etnia; tal situação poderá explicar-se por desvio

estatístico (este universo não é suficientemente grande para garantir conclusões), ou por

particularidades sociais locais que indicam que, mesmo no seio de uma família étnica,

há diferenças assinaláveis, possivelmente determinadas pelo meio envolvente.

Regista-se uma fidelidade praticamente integral (superior a 90%) nos homens

sérères (97,5%), mancanhes (96,4%), diolas (95,7%), balantas (91,7%) e manjacos

(90,0%), e, nas mulheres manjacas (96,4%), mancanhes (93,1%), balantas (91,7%) e

sérères (90,7).

Constata-se uma fidelidade superior a 50% em quase todas as etnias, excepto,

nos homens mandingas, toucouleurs e sarakholés, e nas mulheres crioulas (assinale-se,

também neste caso, que o baixo número de crioulas na amostra não permite que se

considere representativa da “etnia” ou do grupo).

Quanto aos avós, refira-se:

- que a fidelidade à etnia parece ser maior do que a dos filhos (pais dos alunos);

142

- a absoluta fidelidade, nos homens bainouks, balantas, fulas, lébous e

mancanhes, e nas avós fulas, lébous, mancanhes e manjacas;

- uma grande fidelidade (superior a 90%) nos homens diolas, sérères, peuls e

manjacos, e nas mulheres mandingas, diolas, balantas e sérères;

- uma fidelidade superior a 50% em quase todas as etnias, excepto nos avôs

sarakholés e nas avós crioulas e sarakholés.

Para complementar esta análise, vejamos o seguinte quadro:

Quadro 17 – Outras etnias com que se registam casamentos

Etnia Pais Mães Avôs Avós Bainouk 1 1 0 1 Balanta 1 1 0 1 Bambara 2 3 4 1 Crioulo 0 4 1 1 Diola 3 9 1 3 Fula 0 1 0 0 Lébou 1 1 0 0 Mancanhe 1 2 0 0 Mandinga 9 2 4 1 Manjaco 3 1 3 0 Mouro - 2 2 - Papel 0 0 1 2 Peul 5 4 2 3 Português 1 - - - Sarakholé 3 1 2 3 Sérère 1 3 2 4 Socé 1 - 1 - Toucouleur 3 2 2 2 Wolof 7 5 5 4

Com o quadro 17 pretendemos verificar se, quando não há fidelidade absoluta à

própria etnia para casar, há uma dispersão dos restantes matrimónios por muitas ou

poucas outras etnias. E os resultados permitem distinguir dois grupos de etnias: as que

se “misturam” com poucas etnias e as que, aparentemente, são menos selectivas.

Antes de mais, assinale-se que em nenhuma etnia se registou, no conjunto de

todos os estratos familiares, uma incompatibilidade absoluta. Contudo, as etnias

bainouk, balanta, fula, lébou, mancanhe e papel (a amostra de socé não é, de facto,

representativa e deve ser vista como mandinga) são claramente renitentes em

diversificar as suas uniões e não o fazem com etnias com as quais não tenham uma

ligação evidente, seja ela de coabitação geográfica, de origem comum ou de parentesco

linguístico. Assim, as associações constatadas são as seguintes:

143

1. Nas avós (não há miscigenação por iniciativa masculina): bainouk – manjaco;

balanta – mandinga; papel – crioulo; e papel – português;

2. Nos pais: bainouk – diola; balanta – diola; lébou – peul; e mancanhe –

crioulo;

3. Nas mães: bainouk – mandinga; balanta – mandinga; fula – diola; lébou –

peul; mancanhe – diola; e mancanhe – manjaco.

Ou seja, as associações constatadas são maioritariamente intra-subguineenses

(5), ocorrendo também entre estes e mandes (2), portugueses (1) e halpulars (1); a

associação que não envolve subguineenses dá-se entre sahelo-sudaneses e halpulars, o

que também não surpreende.

No oposto, os diolas, mandingas, peuls e wolofs mencionam mais de 15 outras

etnias com as quais casaram. Contudo, estes casos são bastante diferentes entre si: nos

diolas, são as mulheres que aceitam mais facilmente (ou aceitam as suas famílias por

elas) casar com outras etnias; nos mandingas são, ao contrário, os homens quem mais

contribui para diversificar os casamentos; as únicas etnias que têm um comportamento

semelhante em ambos os sexos são os peuls e os wolofs.

Face a quanto precede, podemos concluir que, em geral, as pessoas que desejam

contrair matrimónio, fazem-no preferencialmente com alguém da mesma etnia (ainda

que, assinale-se, a poligamia seja legalmente permitida no Senegal).

Assim, 6 das 18 etnias analisadas198 têm, no conjunto das duas gerações

analisadas, uma média igual ou superior a 90% de casamentos com pessoas da mesma

etnia: mancanhes (97,3%), fulas (96,5%), manjacos e sérères (94,3%), balantas e diolas

(94%). Todas estas etnias habitam tradicionalmente a Casamansa, à excepção dos

sérères. Por outro lado, das etnias com amostras minimamente significativas, a

toucouleur é aquela com uma menor percentagem de fidelidade étnica: 52%, ainda

assim maioritária.

Mesmo as etnias conhecidas pela sua maior mobilidade, os wolofs e os peuls,

apresentam valores relativamente altos de fidelidade étnica: 84% e 78,5%,

respectivamente.

198 Consideramos, para este efeito, o crioulo como uma etnia – o que é obviamente discutível – mas não o português.

144

Nestes termos, a ideia de que o Senegal é um país de intensa miscigenação

étnica199 propagandeada oficialmente, sobretudo por um núcleo wolof mourida muito

activo, só pode ser entendida comparativamente com o passado ou com outros Estados

africanos.

No entanto, fica claro, na amostra, que há sempre excepções, em todas as etnias

minimamente representadas, e que a miscigenação ocorre com diversas outras etnias.

Analisando os dados do quadro 17 e fazendo a média das quatro categorias (pais, mães,

avôs e avós) no que respeita ao número de outras etnias com as quais se registaram

casamentos, os valores obtidos variam entre o mínimo dos Fula (0,25) e o máximo dos

Wolof (5,25%). Já vimos que o comportamento dos géneros, dentro de cada etnia, pode

variar; mas assinale-se que este indicador atinge os seus três valores mais altos em

etnias com percentagens de fidelidade bastante diferentes: 5,25 nos Wolof (84% de

fidelidade), 4 nos Diola (94%) e nos Mandinga (69,3%). E sabe-se que, quando a pessoa

decide não casar no interior da etnia, vários factores entram em jogo na escolha, dos

quais a coabitação local, a afinidade cultural / linguística, e a segregação por castas.

Um dado interessante pode ainda ser extraído das análises precedentes. Das

etnias com uma representatividade na amostra igual ou superior ao dobro da sua

representatividade na população senegalesa, todas têm uma fidelidade à etnia, na

escolha da pessoa a desposar, muito elevada (83,3% dos bainouks, 83,5% dos papéis,

94% dos balantas e dos diolas, 94,3% dos manjacos, 96,5% dos fulas e 97,3% dos

mancanhes). E fica por saber se, caso as amostras das etnias bainouk e papel fossem

maiores, se os valores então apurados não tenderiam a alinhar-se com os outros, acima

dos 90%.

Os dados até agora apurados suscitam uma questão: por que motivo(s) os povos

da Casamansa – ou do grupo subguineense, mais propriamente – apresentam, em vários

aspectos, comportamentos muito distintos dos demais grupos senegaleses?

Detenhamo-nos, por momentos, sobre o conceito de “parenté à plaisanterie”,

acima referido e que é alvo de estudos e de algum debate no Senegal.200

Há vários tipos de parentescos, e já nos referimos aos parentescos entre

patrónimos. 199 M. DIOUF, Op. Cit., pp. 95 200 Seguimos, para este tópico, DIALLO, Youssouf, “Identités et relations de plaisanterie chez les Peuls de l’ouest du Burkina Faso”, in Cahiers d’études africaines, parentés, plaisanteries et politique, 184, 2006, pp 709 e ss. Traduziremos parenté à plaisanterie, literalmente, “parentesco para gracejo”, por “parentesco.”

145

Um outro parentesco clássico é o que une os peuls e os ferreiros, resultante de

uma suposta aliança sagrada. As regras da aliança entre ambos prescrevem a entreajuda

recíproca, evitar conflitos entre membros dos dois grupos e a interdição da aliança

matrimonial. Ora, quanto mais sagrada é considerada a aliança, mais pesadas são as

obrigações e acutilantes os “gracejos” entre aliados. No caso da aliança peuls / ferreiros,

por exemplo, são interditos casamentos entre os verdadeiros parceiros rituais e a

transgressão das regras e tabus sexuais pode ter grave consequências, através de sanções

ocultas que trazem a morte ou o azar para o parceiro faltoso. Por isso, uma transgressão

das regras exige sempre uma reparação, pecuniária ou meio de um sacrifício expiatório.

Outro exemplo será a relação entre bambaras e peuls, que obriga os segundos a

servir um dos primeiros, tratando-lhe do gado, sem o que será tratado de fútil. Não se

trata, aqui, de uma relação resultante de uma aliança celebrada no passado, mas antes

ilustrando as relações de força do passado.

Uma das consequências dos “parentescos” é a adopção pelos cativos ou

dominados, voluntária ou por imposição, dos patrónimos dos dominantes. Esta é uma

das razões pelas quais alguns patrónimos bem marcados de uma etnia se disseminaram

por outras. Em Ségou (Mali), por exemplo, o clã real atribuía o epíteto de “Fula” (ou

peul) a todos os indivíduos, livres ou servos, e grupos de indivíduos que tinham como

actividade principal a vigilância dos rebanhos bovinos. Assim, um parentesco inicial

entre dois patrónimos originariamente ligados, intrinsecamente, a duas etnias

específicas, pode actualmente ser invocado por pessoas com esse nome mas de outras

etnias e/ou funções sociais. Youssouf Diallo dá o exemplo dos Ouattara, inicialmente

Dogossié-fing, um grupo de caçadores itinerantes da actual Costa do Marfim que se

tornaram vassais de Bamba, influente chefe de guerra do Kong e foram, por isso,

chamados de bamba-jon (escravos ou sujeitos de Bamba). Ora, séculos depois, na

África ocidental, é tradição que, quando um Ouattara encontra um Kulubali (Koulibaly),

Koné, Bamba, Câmara, Diarra ou Sidibé, irão trocar gracejos.

No Senegal, os “parentes” tratam-se frequentemente por primos. Na “vox

populi”, os parentescos são inúmeros: os sérères seriam cativos dos toucouleurs, os

sérères seriam primos dos peuls, os sérères seriam primos dos diolas, etc. Contudo,

alguns parentescos não são tão antigos como parece e o conceito presta-se a

manipulações de propaganda por parte de qualquer Estado desejoso de consolidar a

unidade nacional feita, como sabemos, a partir das fronteiras imprudentemente

desenhadas pelo colonizador.

146

Etienne Smith201 tenta evidenciar que, “no contexto senegalês, a récita dos

parentescos é uma tentativa de reorganização dos contos plurais e divergentes nascidos

da crise do regime de verdade histórico do nacionalismo senegalês. Apresenta-se como

uma pedagogia da convergência que insiste sobre as similitudes e as ligações

horizontais “pelo lado” entre comunidades, a fim de, por um lado, tirar legitimidade às

imaginações separatistas e, por outro, de fazer circular uma representação pluralista da

nação, não limitada ao seu centro “islamo-wolof” (Diouf 2001). Este discurso é feito

por certas franjas do aparelho cultural do estado senegalês, cuja capacidade de produção

de elites neo-tradicionais e de uma ideologia culturalista não carece de mais

demonstrações (Diagne 1992, 1996). É fruto da formulação de etno-histórias por

amadores, da multiplicação de jornadas culturais organizadas por associações locais,

mas também da participação de agentes culturais estatais familiarizados com o discurso

sobre a «cultura» e cujas profissões são assim valorizadas (professores, bibliotecários,

eruditos, tradicionalistas, linguistas militantes das línguas nacionais, inspectores de

academia, escritores, «peritos culturais», responsáveis de rádios comunitárias, militantes

de associações de desenvolvimento, etc)”. Ora, se o parentesco entre sérères e

toucouleurs parece ser geralmente considerado pelos senegaleses, bem como os peuls -

Didhiou, peuls - mandingas no antigo Gabú, peuls - balantas e peuls - soninkés, já o

mesmo não se passa entre lébous e sérères ou toucouleurs, nem entre estes e diolas, nem

entre diolas e sérères, como afirma o autor.

Por vezes essas dúvidas advêm de uma questão de precedência, sendo incómodo

admitir, a esta ou aquela etnia, que se foi, no passado, vassalo, escravo ou vencido de

outra. De resto, a aliança firma muitas vezes a vontade de omitir no futuro,

deliberadamente, a memória de um conflito ou de uma humilhação. Unidos pelo pacto

de silêncio, os parentes afastam definitivamente pretextos de conflitos, omitindo a

autoria do golpe inicial e apagando as hierarquias, mas guardam, nas piadas, a

possibilidade de desafiar o outro, sem consequências. Um exemplo é o parentesco peul -

mandinga, resultado da batalha de Kansala.

Atendamos, em particular, e acompanhando Étienne Smith, a questão do

parentesco entre sérères e diolas, por envolver as duas etnias mais presentes no universo

dos alunos de Estudos Portugueses da Universidade Cheikh Anta Diop.

201 E.SMITH , 2006, Art. cit., pp 907 e ss

147

Segundo aquele autor202, “a emergência da récita dos parentescos é inseparável

do surgimento da crise casamansence como teste à integração nacional no Senegal. Isto

é particularmente claro no que concerne o activismo do Governador Diola Saliou

Sambou, na origem do primeiro Festival das origens no país sérère (Janeiro de 1994) e,

mais tarde, da criação da Associação Cultural Aguène e Diambogne (ACAD) em 1994

que reagrupa os quadros sérère e diola dedicados à promoção do parentesco. (…) A

récita dos parentescos, que se inscreve na história mais vasta das convergências (De

Jong, 2005), faz parte da contra-ofensiva cultural do Estado senegalês, para disputar ao

MFDC o monopólio da produção de discursos sobre a etno-história diola. (…) Assim, a

promoção do parentesco operada pela ACAD deu lugar a três festivais das origens

alternando entre países sérère e diola: o objectivo era o de arrimar os diola à nação

senegalesa por intermédio desta relação privilegiada de parentesco com os sérère,

emblematizando o coração da senegalidade”. Em conclusão, nota o autor, apesar de

sectores diolas rejeitarem qualquer ligação aos sérères, é forçoso reconhecer a qualidade

do trabalho da ACAD: Enquanto que, em 1967, menos de 27% dos diolas afirmavam

conhecer o mito de Ageen (que, teria sido separada da sua irmã Jamboñ ao largo de

Sangomar por uma tempestade que quebrou a sua embarcação, dando origem aos diolas

e aos sérères), em 2003 eram cerca de 60%. O abade Diamacoune Senghor, líder

histórico do MFDC, admitia a ligação diola - sérère, mas dava a primazia aos primeiros.

Esta visão é naturalmente polémica e, ainda que assim fosse, jamais seria

assumida pelo Estado senegalês. Para nós, a capacidade de utilização de propaganda ao

serviço dos estados africanos é um dado adquirido, por vezes, com assinalável eficácia;

e o Senegal, país de exímios oradores e com elites cosmopolitas, tem naturalmente

quadros bem capazes de executar uma tal política. Contudo, também sentimos, na nossa

passagem pelo Senegal, que a ideia de uma relação especial entre diolas e sérères é

comum, não tendo nós ferramentas para aferir até que ponto aquele autor está, ou não,

próximo da verdade. A própria crise militar na Casamansa é complexa, tendo o MFDC

diversas facções que produzem, não raras vezes, argumentos contraditórios para

justificar a sua acção.

Neste contexto, para Etienne Smith o Wolof surge como algo à parte. Não é,

neste contexto da promoção dos parentescos, apresentado como uma identidade própria,

mas antes como uma língua e, sobretudo, um produto final da História senegalesa. Em

202 E. SMITH, 2006, art. Cit., pp. 920-921

148

abono da sua tese sobre um estereótipo do wolof mourida em oposição às tradicionais

qualidades distintivas de cada etnia, E. Smith refere diversos estudos sobre estereótipos

(Diarra e Fougeyrollas, 1969; Fougeyrollas, 1970; Mk. Diouf, 1998; E. Smith, 2003) e

sobre representações linguísticas (Julliard, 1991; Moreau, 1994, 1996; Thiam, 1996;

Swigart, 1996; Rasoloniaina, 2000).

Etienne Smith conclui afirmando que o quadro de promoção dos parentescos dá

ao grupo sérère, o mais “wolofizado” de todos os pontos de vista, um papel central, o de

núcleo da constelação, tendo este grupo laços históricos e afinidades com todos os

outros.

Em conclusão, o factor étnico parece ter importância na escolha dos cursos de

Português na Universidade Cheikh Anta Diop. As etnias mais representadas pelos

alunos revelam, em geral, uma forte identidade étnica, com evidente procura de

cônjuges que perpetuem a linhagem. Este comportamento é baseado em tradições

culturais e em pressões familiares, mas permite, também, a perenidade da memória

antiga, na qual se podem incluir, nas etnias do Sul do Senegal, a memória da presença

portuguesa, a Língua Portuguesa. No caso das populações do Sul, a vizinhança com a

Guiné-Bissau lusófona (quer em termos oficiais quer na utilização do crioulo do

Português), conjugada com a presença de familiares e, mesmo, de terras, do outro lado

da fronteira traçada pelos colonizadores, é obviamente um importante factor adicional

para a motivação dos jovens para aprenderem o Português.

A presença portuguesa fez-se também sentir em território costeiro sérère, cujo

número de alunos de Português é elevado, mas inferior à proporção daquela etnia na

população senegalesa. Logo, não justifica tudo, de per se.

De facto, os wolofs não têm uma memória forte da passagem portuguesa,

embora esta tenha sido efectiva; contudo, a extensão do domínio Jalofo incluía vastas

terras do interior e, de qualquer modo, após a presença portuguesa registou-se a

holandesa, a inglesa e, sobretudo, a francesa, mais recente, bem mais intensa e

marcante.

Assim, para além do factor étnico, a vivência urbana (que contribui para a erosão

daquele) e o interesse dos pais na educação dos filhos são importantes para a decisão de

prosseguir estudos superiores, quaisquer que sejam. Investiguemos, pois, factores

adicionais.

149

3.3.1.f – Contexto social – profissões exercidas na família e a questão das castas

A sociedade senegalesa é também marcada pela existência, informal, de castas;

informal, na medida em que estas não são oficialmente reconhecidas nem é permitida,

nos termos da Constituição, qualquer distinção em função das mesmas. Contudo,

existem, mais numas etnias do que noutras, sem a importância que lhes é atribuída na

Índia, mas a África Ocidental (essencialmente o Mali) é a sub-região, no continente,

onde se coloca este problema com maior acuidade. As principais castas no Senegal são

as dos “griots” (trovadores, que asseguram a transmissão da História e das tradições por

via oral), dos ferreiros, joalheiros, cordoeiros e tecelões, e as dos escultores de madeira

que se confundem com a etnia laobé.

O reconhecimento das castas permite compreender melhor algumas

características políticas, sociais e económicas do Senegal, mas não é simples, porque o

fenómeno varia entre etnias (por exemplo, os pescadores são uma casta entre os

toucouleurs, mas não nos wolofs).

Em certos casos, o problema das castas sobrepõe-se à questão étnica:

“Numa família fora de casta Wolof ou Toucouleur, qualquer projecto de

casamento com uma pessoa de casta esbarra com reticências podendo ir até à ruptura

total com os parentes. É um domínio em que a tradição continua a preceder o Islão, no

Senegal”203.

Para o mesmo autor, esta situação tem a vantagem de encorajar matrimónios

inter-étnicos, na medida em que uma família intransigente sobre o casamento de um dos

seus com uma pessoa de casta diferente, no seio da etnia, pode tornar-se tolerante

relativamente à união com uma pessoa de outra etnia, na qual não existem castas (os

diolas, por exemplo), ou elas têm o mesmo nível.

Por outro lado, a influência da casta é muito importante na política:

“Os grandes grupos étnicos muçulmanos Wolof e Haal Pulaar aceitaram

Senghor durante duas décadas como Presidente da República, descartando qualquer

consideração étnica ou confessional. Mas pode dizer-se, (…) que não estão prontos a

ver a magistratura suprema ser exercida por um Wolof ou um Toucouleur muçulmano

203 M. DIOUF, Op. Cit., pp. 126 e ss

150

se ele pertencer a uma casta, quaisquer que possam ser as suas qualidades humanas e

as suas competências.”204

Neste inquérito não era possível colocar a questão das castas, desde logo porque

nem todas as etnias as têm, mas também porque se trata de uma questão muito delicada.

Assim, este elemento não foi considerado, embora possa ser parcialmente

antevisto através da análise das profissões dos pais (ressalve-se, no entanto que, nos

meios urbanos e perante o desemprego, há pessoas sem casta que exercem funções

habitualmente reservados aos de casta, e vice-versa):

Quadro 18 - Profissões exercidas pelos familiares dos estudantes

Profissão Pais Mães Avôs Avós Total %

Agricultor 119 30 273 81 503 24,9Não refere 23 48 206 216 493 24,4Doméstico 0 156 3 183 342 17,0Empregada doméstica 0 13 0 224 237 11,8Comerciante 17 18 13 20 68 3,4

Falecido 6 1 23 23 53 2,6Sem profissão 4 8 13 22 47 2,3Trabalhador manual / artes 21 6 17 2 46 2,3Reformado 31 3 6 2 42 2,1Técnico especializado 22 7 12 1 42 2,1Ilegível 1 0 3 36 40 2,0Professor 16 8 2 0 26 1,3Forças da Autoridade 11 0 7 0 18 0,9Marítimos, incluindo pescadores 7 0 10 0 17 0,8Operário 3 2 10 0 15 0,7Técnico Superior 9 1 5 0 15 0,7Funcionário Público 7 0 2 0 9 0,5Chefe religioso 0 0 2 0 2 0,1Empresário 2 0 0 0 2 0,1

O quadro 18 permite antever um difícil quadro socio-económico para a vida dos

alunos. A categoria profissional predominante, no geral e no sexo masculino, é a dos

agricultores (24,9%) que não têm, em geral, remunerações elevadas. O peso dos

agricultores mantém-se constante (24,8%) nos pais. No sexo feminino as mães e avós

dedicam-se geralmente ao trabalho doméstico. Há também profissões dominadas pelo

204 M. DIOUF, Op. Cit., pp. 127

151

sexo masculino tais como as forças da autoridade, funcionários públicos, pescadores,

empresários, técnicos superiores e chefe religioso.

O facto de os alunos não conseguirem referir a profissão em 24,4% dos parentes,

sobretudo avós, é sintomática: alguns serão inactivos, outros falecidos, outros, de facto,

desconhecidos; as domésticas são também um caso especial porque é plausível que

alguns alunos tenham confundido esta ocupação (activa mas não remunerada), com

“empregada doméstica”. Assim, numa perspectiva pessimista, os não remunerados

poderão atingir 45,7%.

Apenas 3% dos familiares exerce funções de “casta” e não mais de 3,6% (6,2%

dos pais) é empresário, comerciante ou chefe religioso, ocupações que poderão garantir

uma remuneração superior à média. A estas, poder-se-ia acrescentar as forças da

autoridade e os técnicos superiores o que, ainda assim, não excederia 4,5% dos

familiares (9,7% dos pais).

Ou seja, a esmagadora maioria dos familiares dos alunos provêm de um meio

economicamente desfavorecido, o que não permite as condições necessárias para um

estudo sereno. A evolução positiva de avós para pais é uma realidade (assinale-se a forte

redução da proporção de empregadas domésticas para 2,2% dos pais), mas é muito

provável que menos de 10% destes tenham condições acima da média.

Relativamente aos próprios alunos, 282 (94%) referem não ter actividade

profissional. É um valor surpreendentemente baixo, se tivermos em conta as profissões

dos parentes ascendentes e as idades relativamente avançadas dos alunos. Contudo, este

indicador também revela duas realidades sentidas no Senegal: o desemprego massivo

entre os jovens e uma atitude muito reivindicativa face às alegadas obrigações do

Estado de financiar os seus estudos, alimentação e alojamento205.

Os restantes 18 (6%) alunos citam as seguintes ocupações profissionais:

- 14 alunos de Duel I declaram exercer uma profissão (4 agricultores, 3

futebolistas, 2 informáticos, 1 alfaiate, 1 andebolista, 1 artista e 1 pintor);

- 4 alunos de Duel II declaram exercer uma profissão: (2 informáticos, 1

carpinteiro e 1 canalizador);

- Nenhum estudante de “Licence” exerce uma profissão;

205 Esta atitude reivindicativa faz-se sentir numa conflitualidade permanente, com greves e confrontos com as polícias recorrentes, em qualquer ano lectivo, que presenciámos na nossa actividade de leitora.

152

- Apenas um aluno de “Maîtrise” trabalha, como agente no Serviço de Comércio

de Pikine.

3.3.1.g – Agregados familiares dos alunos

A nomenclatura e a dimensão dos agregados familiares dos alunos fornecem

igualmente elementos de análise importantes sobre as condições de estudo e de trabalho

dos alunos.

Assim, não basta conhecer o rendimento de uma família para aferir a sua

qualidade de vida, sendo relevante a dimensão do agregado. Por outro lado, se o aluno

não vive com os pais, tal poderá criar alguns problemas de adaptação, embora as

famílias senegalesas incentivem, tradicionalmente, a mobilidade dos seus.

Por último, a análise de tais dados permite observar as redes familiares que se

dizem muito desenvolvidas no Senegal, tal como em toda a África Ocidental.

Quadro 19 – Pessoas com quem vivia antes da entrada na Universidade

Duel I Duel II Licence Maîtrise Total %

Só 1 2 0 0 3 1,0 Com outras pessoas, não familiares

31 24 14 5 74 24,2

Com familiares 96 60 40 21 217 70,9 Não refere 6 4 2 0 12 3,9

Assinale-se que a maior parte dos alunos (70,9%) vivia com familiares antes de

ingressar na Universidade e que apenas 1% vivia só.

Quadro 20 – Pessoas com quem vivia à data do inquérito

Duel I Duel II Licence Maîtrise Total %

Só 9 8 4 5 26 8,7 Com outras pessoas, não familiares

54

33 17 6 110 36,8

Com familiares 58 38 31 11 138 46,2 Não refere 11 6 4 4 25 8,4

A proporção de alunos que vive com familiares desce para 46,2%, o que

significa que cerca de 24% poderá ter migrado da sua área de residência para Dakar.

Este valor é provavelmente maior, na medida em que alguns alunos deixaram os locais

153

de residência dos pais e vieram habitar com familiares, pelo que estão incluídos na

mesma categoria.

Por outro lado, poucos são os alunos que vivem sós, mesmo depois do ingresso

na Universidade; tal poderá significar, apenas, falta de recursos para arrendar uma casa,

ou mesmo, um quarto, mas, também, a apetência senegalesa para a vida em colectivo e

um aproveitamento dos alojamentos para estudantes no interior do recinto universitário.

Quadro 21 – Pessoas da família com quem viviam

Com quem vive ou vivia

Antes da entrada na UCAD À data do inquérito

Pais e outros 214 93,5% 103 69,1% Só mãe 4 1,8% 2 1,3% Só pai 2 0,9% 1 0,7% Avós 3 1,3% 1 0,7% Irmãos 2 0,9% 8 5,4% Tios 4 1,8% 29 19,5% Primos 0 - 4 2,7% Sobrinhos 0 - 1 0,7%

Dos alunos que mencionaram com quem viviam, verificamos que a percentagem

dos que habitavam com os pais era de 96,2% antes do ingresso na Universidade e de

71,1% depois. Assim, confirma-se a ideia de que pelo menos 25% terá migrado para

Dakar, a fim de prosseguir estudos na capital.

Mas o facto de a proporção de alunos que habitavam com os tios e primos passar

de 1,8% para 22,2% após o ingresso na Universidade, evidencia a importância e a

coesão da família senegalesa. E esta asserção é tanto mais evidente se tivermos presente

que grande parte dos familiares dos alunos não reside na península do Cabo Verde, mas

sim nas regiões tradicionalmente habitadas pelas respectivas etnias. Quase estaremos

tentados a afirmar que, em geral, quando há parentes na área de Dakar, os alunos

aproveitam a rede e a solidariedade familiares, por motivos económicos e não só.

Quadro 22 – Dimensão dos agregados familiares com quem viviam os alunos

Nº de familiares com que vive

Antes da entrada na UCAD À data do inquérito

1 a 4 pessoas 43 24,0% 71 53,4% 5 a 9 pessoas 89 49,7% 38 28,6% 10 a 14 pessoas 33 18,4% 16 12,0% 15 a 19 pessoas 4 2,2% 6 4,5% 20 a 24 pessoas 7 3,9% 1 0,8% Mais de 25 pessoas 3 1,7% 1 0,8%

154

No que concerna a qualidade de vida do aluno e, em particular, os meios

financeiros, é mais importante analisar com quantas pessoas, e não com quem vive,

embora este último factor possa interferir no seu estado de espírito.

Os elementos recolhidos e constantes do Quadro 22 são eloquentes: as famílias

senegalesas são muito numerosas, o que indicia um baixo rendimento per capita, logo,

menor disponibilidade para estudos bem sucedidos e, sobretudo, longos. Mas este dado

transmite também o interesse com que as famílias vêem os estudos dos seus filhos,

adivinhando-se reais sacrifícios para sustentar os jovens, tanto mais que, como vimos,

estes raramente exercem actividades remuneradas, nem mesmo a tempo parcial. E,

embora a maioria dos alunos que reside com a família habite, após o ingresso na

Universidade, com agregados que não excedem os quatro elementos, é importante reter

que 46,6% partilha tecto com cinco pessoas ou mais.

Por outro lado, os factos de 49,7% dos alunos provirem de famílias com cinco a

nove elementos e, ainda mais importante, de 26,2% pertencerem, antes do ingresso na

Universidade, a agregados com mais de dez membros, é suficiente para traçar um

quadro sobre a estrutura da família senegalesa e a pirâmide demográfica triangular da

população daquele país.

É pois num contexto socio-económico marcado por uma população jovem, em

forte crescimento (pelo efeito conjugado da alta natalidade e do aumento da esperança

de vida) e por uma economia que, sobretudo no domínio comercial, repousa no “sector

informal”, que os alunos têm de competir para concluir os seus cursos bem

classificados, na expectativa de aproveitar as escassas hipóteses de colocação no

mercado de trabalho, designadamente, no ensino. Neste sentido, constitui também

motivo de alguma admiração que tantas famílias façam sacrifícios para que estejam

inscritos 646 alunos nos cursos de Português da Universidade Cheikh Anta Diop, sem

grandes possibilidades de que esta formação habilite directamente para uma saída

profissional.

155

3.3.2. Estudos Portugueses

3.3.2.a – Antecedentes e motivos da escolha do Português

Quadro 23 - Como teve conhecimento do ensino do Português no Senegal?

MOTIVO N.º DE ALUNOS

Disciplina de opção na Escola onde estudava 147 35,9%Procurou informação porque gostava do Português 94 23,0%Documentação na Escola onde estudava 74 18,1%Através da família ou de amigos 40 9,8%Outras razões 54 13,2%

Sem grande surpresa, é na escola secundária que os alunos descobrem a

possibilidade de aprender o Português. Veremos, adiante, que a rede do ensino da nossa

Língua, na principal região de origem dos alunos, é bastante densa. No conjunto das

duas opções correlacionadas, 54% dos alunos terão descoberto o Português por ser uma

disciplina de opção na Escola onde estudavam, logo, provavelmente, no acto da

matrícula, ou pela acção de divulgação dos professores que procuram distribuir toda e

qualquer documentação que promova a Língua. Refira-se, de resto, que a permanência

dos professores de Português numa determinada escola depende da inscrição dos

alunos, pelo que os docentes lançam mão de todos os (escassos) recursos para

convencerem os alunos a matricularem-se.

Quanto ao segundo motivo – “procurou informação porque gostava do

Português” – parece-nos imputável aos contactos com a Língua, na sua forma original

ou através do crioulo, que muitos alunos tiveram no seio das famílias ou na vizinha

Guiné-Bissau (incluindo os meios de comunicação social desta, isto é, televisão, rádio

que podem chegar à região da Casamansa). Esta motivação pode ser associada à quarta

mais citada – descobriu o Português através da família ou dos amigos, adivinhando-se

que alguns alunos tiveram alguma dificuldade em escolher o motivo.

Dos alunos inquiridos, 13,2% invocou outras razões.

156

Quadro 23 bis – Outras razões

MOTIVO MENCIONADO N.º DE ALUNOS

Queria falar Português 11Para conhecer a civilização e a História de Portugal 11Gosta da Língua e da Cultura portuguesas 9Desde criança que quer falar Português 2Porque o Senegal faz fronteira com a Guiné-Bissau 1Porque o pai era professor na Guiné-Bissau 1Para telefonar ao irmão que está em Portugal 1Gosta muito da Língua de Camões e quer falá-la 1Porque é uma língua muito importante 1

Os motivos aqui invocados valem, sobretudo, pela curiosidade; mas assinalem-

se as menções mais votadas que denotam um certo voluntarismo, embora se possam

encarar as hipóteses de se tratar de formulações justificativas de escolhas mais ou

menos involuntárias, ou mesmo, de amabilidade para com a professora portuguesa.

Inquiridos sobre os antecedentes no liceu, 300 alunos responderam que já tinham

estudado Português no Ensino Secundário, com durações variáveis:

Quadro 24 – Duração dos estudos de Português no Liceu

Duração dos estudos Frequência absoluta Frequência relativa

2 anos 2 0,73 anos 178 59,34 anos 40 13,35 anos 67 22,36 anos 6 2,07 anos 4 1,39 anos 1 0,311 anos 1 0,312 anos 1 0,3

Os períodos de estudo de Português no Liceu mais frequentes são, naturalmente,

os 3 anos – geralmente os últimos do Ensino Secundário206, com 59,3%, e os 5 anos207,

com 22,3%. Os restantes casos serão muitas vezes repetições de anos.

Note-se, porém, a grande diferença de frequência relativa entre os dois valores

mais citados, que demonstra que o Português é essencialmente ensinado no que, em

Portugal, seria o Ensino Secundário propriamente dito, e não no terceiro ciclo do

Básico.

206 O sistema senegalês tem uma terminologia idêntica ao Francês. Assim, neste caso, será a Seconde, Première e Terminale 207 Neste mesmo caso, a Quatrième e a Troisième

157

Perguntámos aos alunos quais os motivos que os levaram a frequentar a

disciplina de Português no Liceu. Trata-se de uma pergunta relativamente semelhante à

primeira pergunta (“A”) desta segunda parte do inquérito, permitindo verificar a atenção

dos alunos e a consistência das respostas que deram. 163 alunos escolheram uma

resposta, 137 optaram por várias e 2 não responderam. Os resultados foram os

seguintes:

Quadro 25 – Motivação para o estudo do Português no Liceu

Motivo Citações

Era uma opção na escola 145Queria ser Professor 118Interesso-me pela Cultura Portuguesa 111Interesso-me pela História de Portugal 92Ouvia falar Português 53Gosta da sonoridade 44Já falava Português 26Outros 72

As duas respostas mais citadas eram relativamente previsíveis: 145 alunos

referiram ter optado pelo Português, pelo simples motivo de que era uma das disciplinas

oferecidas pela Escola, e 118 alunos parecem privilegiar a via profissional, afirmando

desejarem ser professores mais tarde.

As respostas mencionadas em terceiro e quarto lugares (“interesso-me pela

Cultura Portuguesa” e “interesso-me pela História de Portugal”) são mais difíceis de

interpretar; os alunos responderam por sentirem verdadeiramente essas motivações? Por

cortesia? Não esqueçamos contudo que vários optaram por respostas múltiplas. Ou, tão

só, por estes motivos constarem do formulário? É difícil esclarecer e houve,

provavelmente, de tudo.

Quanto às três restantes opções constantes do inquérito, poderão agrupar-se num

conjunto que subentende um contacto – falado, ouvido – com a nossa Língua; ao todo,

123 respostas mencionaram um destes factores.

Relativamente aos “outros motivos”, os estudantes identificaram 35 distintos,

alguns dos quais francamente surpreendentes: “ser embaixador”, “ser ministro”, “ser

dentista”, “quero ganhar muito dinheiro”, “lutar pelo desenvolvimento da Língua de

Camões”, “era uma obrigação fazer a Língua Portuguesa na minha turma” e “no

primeiro dia de aulas, o meu nome estava na turma de Português”… Os motivos mais

158

citados pelos alunos são: “ser intérprete” (17 alunos); “ser diplomata”, Embaixador ou

“trabalhar na Embaixada” (7), “ser investigador” (5 alunos) e “ser jornalista” (3).

A pergunta seguinte incidiu sobre as motivações para fazer estudos superiores de

Português. Os resultados foram os seguintes:

Quadro 26 – Motivação para os estudos superiores de Português

Motivo Citações

Quero ser Professor 136Gostei das aulas no Liceu 101Pelos mesmos motivos referidos em B 82Interesso-me pela Cultura Portuguesa 82Interesso-me pela História de Portugal 59Porque tem saídas profissionais 26Porque não entrei no curso que queria 15

Antes de mais comentários, assinale-se que, como em todas as perguntas deste

sub-capítulo, os alunos puderam fazer escolhas múltiplas.

A resposta mais frequente foi “quero ser professor”, o que indica que a

Licenciatura ainda representa uma saída profissional credível, além de que a frequência

dos estudos liceais não só não terá dissuadido aqueles que invocaram este objectivo

como motivação para os iniciar, como terá aumentado o número de adeptos da

docência. Questionados sobre onde desejavam ser professores (no Liceu ou na

Universidade), os alunos que escolheram esta resposta dividiram-se do seguinte modo:

72 querem ser professores na UCAD, 31 no Liceu e 16 referem ambas.

O segundo motivo – “gostei das aulas no Liceu” – é um tributo aos professores

senegaleses e ao seu esforço louvável, num contexto difícil, como veremos.

Último aspecto relevante, o facto de apenas 15 alunos referirem que seguiram

Português porque não entraram no curso que queriam. Se este número corresponde à

realidade ou se é fruto de alguma susceptibilidade que leva a não admitir a negação da

expectativa, não o sabemos; de qualquer modo, o valor apurado é muito baixo e

significa, também, que no Senegal, a função docente é ainda socialmente prestigiada,

em todo o caso, bem mais do que na Europa em geral, e em Portugal, em particular;

convém, a este respeito, não esquecer que se trata da perspectiva de um emprego

estável, uma carreira no estado que, embora relativamente mal remunerada, garante casa

de função, vencimento mensal e pensão de reforma (apenas 2% dos senegaleses

contribuem para a Segurança Social…).

159

3.3.2.b – Expectativas quanto ao futuro profissional

A questão seguinte incidia sobre as expectativas dos alunos relativamente ao seu

futuro profissional. Designadamente, colocámos duas questões precisas: “O que pensa

fazer profissionalmente quando concluir o seu curso de Estudos Portugueses na UCAD”

e “o que gostaria de fazer quando terminar o seu curso de Estudos Portugueses”; ou

seja, quisemos distinguir entre o que os alunos realmente gostariam de fazer e aquilo

que, de modo realista, pensavam estar ao seu alcance. Os resultados foram os seguintes:

Quadro 27 – Ambições e expectativas dos alunos quanto ao seu futuro profissional

Ordem de

prefe-rência

O que gostaria de fazer após a conclusão dos estudos

n O que pensa fazer após a conclusão dos estudos

n

1ª Professor universitário 78 Estudos portugueses no estrangeiro

90

2ª Estudos portugueses no estrangeiro

54 Professor universitário 58

3ª Professor de liceu 31 Professor de liceu 48

4ª Outra profissão ligada à Língua Portuguesa

24 Investigador 25

5ª Outros estudos no estrangeiro 20 Outros estudos no estrangeiro 21

6ª Investigador 16 Outra profissão ligada à Língua Portuguesa

11

7ª Ter outras profissões 7 Estudos portugueses no Senegal 6

8ª Estudos portugueses no Senegal 3 Outros estudos no Senegal 3

9ª Outros estudos no Senegal 3 Ter outras profissões 1

Em primeiro lugar, verifica-se que um número significativo de alunos não quis,

ou não soube, responder: 78 alunos não escreveram o que gostariam de fazer e 31 não

referiram o que pensam fazer; ou seja, uma parte dos alunos já não tem, ou não refere,

um ideal profissional…

A carreira docente universitária beneficia claramente de uma imagem positiva

entre os alunos de Português da UCAD; no universo das escolhas possíveis para os

alunos que escolheram estas licenciatura e mestrado, ser professor universitário

representa um posto de trabalho vitalício e fixo, em Dacar, relativamente prestigiado

(embora a sociedade senegalesa seja materialista), com uma remuneração superior à

160

média dos funcionários e viagens ao estrangeiro para congressos e serviços – bem

remunerados – de interpretação. Naturalmente, nem todos os alunos que gostariam de

seguir essa carreira pensam que o vão conseguir, mas, ainda assim, cerca de 20% dos

alunos considera que a mesma está ao seu alcance.

Ao contrário, o número de alunos que gostaria de ser professor liceal é pouco

mais de metade daqueles que pensam vir a seguir essa carreira; ou seja, esta constitui

uma segunda escolha, plausível e realista, para muitos alunos (30%).

Curiosamente, são mais os alunos que pensam poder prosseguir estudos

Portugueses no estrangeiro do que aqueles que, a priori, gostariam de o fazer.

Confessamos que ficámos surpreendidos com este dado. Com efeito, a pulsão para a

emigração é uma realidade patente em todo o Senegal, sejam quais forem as

habilitações literárias dos jovens; ora, seria, a nosso ver, de esperar que os alunos

desejassem emigrar, mas que, em menor número, esperassem consegui-lo, atendendo

aos exigentes critérios de concessão de vistos de estudo – e outros – nas missões

consulares estrangeiras. A única explicação credível assenta na sensação de que não há

saídas profissionais para os alunos no Senegal, pelo que estes desejarão tentar a sorte no

estrangeiro. O estrangeiro já não surgiria, assim, pelo menos a este nível social, como

um “El-dorado”, mas sim como um mal necessário para uma parte significativa dos

alunos. Por outro lado, deve ser tida em conta a recente vaga de emigração clandestina

por via marítima que começou a ganhar amplitude precisamente no ano de realização do

inquérito, em 2005, e que foi vista, num primeiro tempo e por muitos candidatos à

emigração, como um expediente de resultado quase garantido, tanto mais que o então

recém-empossado Governo espanhol acabara de legalizar 700 mil imigrantes em

situação irregular. Por outro lado, a escolha dessa nova rota marítima é mais barata do

que as vias “clássicas” de tentar comprar passaportes, vistos falsos ou adulterados e

influências, o que, numa sociedade pauperizada, tem óbvia importância.

Deste universo de alunos, 8% gostaria de “ter uma profissão ligada à Língua

Portuguesa”, mas apenas 3,6% acreditam que o poderão conseguir. Assinale-se que

pedimos aos alunos que identificassem a referida profissão, e, no total das duas

questões, 12 responderam diplomata, 6 hospedeiro e 3, intérprete.

Ao contrário e, também, surpreendentemente, são mais os alunos que

consideram possível ser investigador, do que aqueles que mencionam esse desejo. Para

esta situação não temos qualquer explicação, pois não temos conhecimento de carreiras

ligadas à investigação nacional senegalesa (os poucos investigadores presentes no

161

Senegal são, em geral, mestrandos e doutorandos, ou funcionários e agentes contratuais

do CNRS – Centre National de Recherche Scientifique – francês).

As restantes categorias têm uma frequência praticamente irrelevante, mas vale a

pena observar as respostas obtidas sob um outro ângulo, somando as pontuações

atribuídas pelos alunos às diversas alternativas de respostas (de 1 ponto para a primeira

preferência até 10 pontos para a última). Deste modo, não focamos apenas a primeira

preferência que, em muitos casos, pode não constituir uma opção clara e evidente na

mente dos alunos:

Quadro 28 – Somatório das pontuações obtidas pelas respostas dos alunos sobre o que gostariam de fazer após a conclusão dos estudos

Profissão O que gostaria de fazer após a

conclusão dos estudos Ser professor universitário 760Continuar os estudos portugueses no estrangeiro 874Ter uma profissão ligada à Língua Portuguesa 1015Ser investigador 1025Ser professor no liceu 1043Prosseguir outros estudos no estrangeiro 1144Continuar os estudos portugueses no Senegal 1294Ter outras profissões noutros países 1340Ter outras profissões no Senegal 1394Prosseguir outros estudos no Senegal 1453

Quadro 29 – Somatório das pontuações obtidas pelas respostas dos alunos sobre o que pensam fazer após a conclusão dos estudos

Profissão

O que pensa fazer após a conclusão dos estudos

Continuar os estudos portugueses no estrangeiro 741Ser professor universitário 811Ser professor no liceu 1046Ser investigador 1058Prosseguir outros estudos no estrangeiro 1083Ter uma profissão ligada à Língua Portuguesa 1228Continuar os estudos portugueses no Senegal 1486Prosseguir outros estudos no Senegal 1498Ter outras profissões noutros países 1518Ter outras profissões no Senegal 1585

Nos quadros 28 e 29, quanto mais baixo é o valor, maior é a preferência. Assim,

mantêm-se, em geral, a ordem das preferências do quadro 27, sobre o que gostariam e o

162

que pensam fazer os alunos após a conclusão dos seus estudos e sobre o que pensam

realmente fazer.

No que se refere ao que os alunos gostariam de fazer, mantém-se a docência

universitária no cimo das preferências e o prosseguimento de outros estudos no Senegal,

em último. A única diferença relevante é a descida da profissão de professor liceal para

quinto lugar, embora as diferenças com os terceiro e quarto, “ter uma profissão ligada à

Língua Portuguesa” e “ser investigador”, sejam pouco significativas.

No que se refere ao que os alunos pensam fazer após a conclusão dos estudos, a

ordem das escolhas é idêntica. Assim, confirma-se que os alunos vêem na possibilidade

de prosseguir os Estudos Portugueses no estrangeiro uma perspectiva mais exequível do

que ser professor universitário o que, se por um lado é mais realista (poucas serão,

previsivelmente, as aberturas de vagas na UCAD); por outro lado surpreende, atendendo

à dificuldade, por todos conhecida, de obter vistos e bolsas de estudo no estrangeiro,

pelo que se afigura, de algum modo, uma “fuga em frente”, na qual a emigração é vista

como a solução para as incertezas do futuro.

3.3.2.c – Pulsão migratória

Perante uma tentação migratória previsível, pois ela é, actualmente,

absolutamente generalizada na sociedade senegalesa, quisemos apurar a sua intensidade

e quais seriam os destinos favoritos. Para o efeito, pedimos aos alunos que colocassem,

por ordem decrescente, os cinco países no mundo onde gostariam de viver após a

conclusão dos seus estudos universitários, incluindo o Senegal, para aferir se, em

condições de equidade, os alunos prefeririam ficar no seu país ou, ainda assim, emigrar.

Conhecendo as grandes dificuldades dos jovens senegaleses em encontrar

trabalho, sabíamos que a apetência geral dos senegaleses para a migração também se

verifica no seio dos estudantes de Português da UCAD; ora, a visão idealizada das

perspectivas de emprego no estrangeiro terão certamente levado alguns alunos a, por

realismo, ponderarem as contingências e não responderem, em relação ao seu país,

como fariam se este estivesse em condições idênticas com os demais. Ainda assim, os

resultados foram interessantes e significativos, tendo os estudantes referido 19 países, a

saber:

163

Quadro 30 – Países onde os alunos gostariam de viver após a conclusão dos estudos – 1ª preferência

País Frequência % País Frequência %

Portugal 118 38,9 Canadá 3 1,0Senegal 92 30,4 Suíça 3 1,0Brasil 29 9,6 Austrália 2 0,7França 22 7,3 Inglaterra 2 0,7E.U.A. 10 3,3 África do

Sul 1 0,3

Cabo Verde 6 2,0 América do Sul

1 0,3

Itália 4 1,3 Bélgica 1 0,3Guiné-Bissau 4 1,3 Marrocos 1 0,3Angola 3 1,0 Moçambique 1 0,3

A preferência por Portugal é significativa, mas não muito surpreendente: os

alunos estudam Português, pelo que lhes parece natural trabalharem num país lusófono

(53,1%) e, particularmente, no nosso país, que é visto como rico, desenvolvido e

integrando a União Europeia, à qual proporciona o acesso.

O valor obtido pelo Senegal poderá surpreender pela negativa se considerarmos

que tivemos o cuidado de mencionar “após a conclusão dos estudos”, isto é, em nada

supondo que estes não poderiam dar acesso a um emprego no próprio país; contudo,

pensamos que os alunos não responderam a esta pergunta em abstracto, mas, antes, que

terão incluído no seu raciocínio a probabilidade de poderem ter trabalho no Senegal,

bem como o próprio poder de atracção da emigração.

Mencione-se, também, a atracção visível que exercem a França e os Estados

Unidos (16,9% no conjunto) nos jovens senegaleses; mesmo que se afigure improvável,

a qualquer estudante senegalês, conseguir obter um emprego naqueles países com um

diploma de Português, não deixam de exprimir o desejo de para ali emigrarem,

provavelmente para exercerem profissões não relacionadas com a nossa Língua.

Para melhor apreender a atracção de cada país, optámos por somar as pontuações

atribuídas pelos alunos, dando 5 pontos à primeira escolha e 1 à quinta:

164

Quadro 31 – Países onde os alunos gostariam de viver após a conclusão dos estudos – somatório das pontuações

País Frequência País Frequência

Portugal 1106 Marrocos 10Senegal 709 África do Sul 8França 634 Emiratos Árabes Unidos 5Brasil 630 México 5Estados Unidos da América 293 Timor-Leste 5Cabo Verde 164 Gambia 4Canadá 147 Japão 3Angola 121 Polónia 3Itália 107 Suécia 3Espanha 102 Arábia Saudita 2Guiné-Bissau 91 Índia 2Suíça 79 Argentina 1Inglaterra 68 Camarões 1Moçambique 45 China 1Austrália 36 China – R A Macau 1Bélgica 34 Dinamarca 1Alemanha 26 Luxemburgo 1São Tomé e Príncipe 23 Mali 1Países Baixos 12 Rússia 1

Ao todo, os alunos referiram mais do que os 19 países citados como primeira

preferência, designadamente, 38.

Confirma-se que Portugal é o país mais atractivo e por uma diferença maior em

relação ao Senegal - o segundo preferido – comparativamente à mera relação das

primeiras escolhas. A França vem, desta feita, em terceiro lugar, ligeiramente à frente

do Brasil. Os Estados Unidos são uma quarta preferência destacada, seguido por Cabo

Verde, o Canadá, Angola, Itália e Espanha, o último país que “obtém” mais de 100

pontos.

Curiosamente, a Guiné-Bissau surge de seguida, o que indicará a vontade de

regressar a um território de origem familiar ou, eventualmente, de trabalhar num país

vizinho, lusófono, fazendo valer a utilidade do curso tirado na UCAD e a possibilidade

de serem professores de Francês – língua estrangeira – na Guiné-Bissau, o que revela

um intercâmbio útil entre os dois países.

Assinale-se, também, que o Senegal não aparece, no quadro 30, tão destacado do

terceiro nomeado, como no quadro 29. Cremos que este resultado advém do elevado

número de alunos que gostaria, naturalmente, de viver no seu próprio país e que, como

tal, o colocaram como primeira escolha, quando optaram por referi-lo.

165

Assim, dos dez países mais citados, quatro são europeus, três são africanos, dois

são norte-americanos e um sul-americano e os países lusófonos obtêm 48,7% do total

das preferências manifestadas.

166

4. A DIFUSÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA NO SENEGAL

J’ai retrouvé mon sang, j’ai découvert mon nom l’autre

année à Coïmbre, sous la brousse des livres. »

L. S. Senghor208

4.1. Léopold Sédar Senghor

Senghor, a sua poética e os valores da Negritude representam uma vontade forte

de construir uma ponte entre África, Portugal e o Mundo. Com a sua obra estabeleceu

laços universais e solidariedades com toda a Humanidade. De facto, ter escrito em

língua francesa não significa uma ligação apenas à França ou ao antigo colonizador. É

antes consequência da sua formação e da sua experiência no país natal, mas também

vontade de difundir a cultura africana :

« Et puisqu’ìl faut m’expliquer sur mes poèmes, je confesserai encore que

presque tous les êtres et choses qu’ils évoquent sont de mon canton : quelques villages

sérères perdus parmi les tanns, les bois, les bolongs et les champs. Il me suffit de les

nommer pour revivre le Royaume d’enfance – et le lecteur avec moi, je l’espère - « à

travers des forêts de symboles ».209

Quem leria os seus poemas se estivessem escritos em sérère, a sua língua

étnica? Seria preciso esperar por uma tradução ? Não traria vantagens óbvias para

África nem para os africanos, seria uma perda de tempo na difusão da sua mensagem à

Humanidade. De facto, uma ideia universal escreve-se em todas as línguas. Mas é

importante e relevante que este poeta tenha escolhido uma estratégia que facilitou, sem

dúvida, a transmissão desses conteúdos ao maior número possível de eventuais

receptores. Sendo a língua oficial do Senegal, veiculada no ensino e nos meios de

comunicação social, não é de estranhar que Senghor tenha expresso pensamentos e

sentimentos através da Língua Francesa. A língua vale assim pelos conteúdos que

transmite e pelo acto de os comunicar. Numa situação comunicativa, a língua refere

experiências e culturas dos indivíduos e dos povos. Senghor não escreveu na sua língua

208 L. S. SENGHOR, Op. Cit., pp.203 209 L. S. SENGHOR, Op. Cit., pp. 160

167

étnica (sérère), pois, não permitiria uma tão rápida transmissão dos conteúdos africanos

ao resto do mundo e fechar-se-ia na esfera cultural das etnias do Senegal. Mas a sua

estratégia resultou.

Senghor, pela sua obra, apresenta um traço de união entre o passado e o presente

dos africanos, marca uma continuidade e uma reconciliação com o passado, atitude que

pode ser um ponto de partida pacífico, estável e duradouro para considerar e debater, de

forma poética, muitos dos equívocos existentes sobre África, no passado e no presente.

Transmite e defende assumidamente a ideia da Negritude.

Por exemplo, “ Ethiopiques” é um conjunto de textos em que Senghor explora,

desde logo, o sentido da palavra grega « aithiops » que designa o que é negro. Não é

tanto o código linguístico que se valoriza, mas antes o significado, o conteúdo da

mensagem que se quer projectar, para revelar aquele conceito, é o ritmo, a emoção e a

verdade que a palavra encerra na mensagem poética :

“ Le Nègre singulièrement, qui est d’un monde où la parole se fait spontanément

rythme dès que l’homme est ému, rendu à lui-même, à son authenticité. Oui, la parole

se fait poème.”210

Ainda, no conjunto de poemas designado por “Nocturnes”, destacamos também

“Elegia das Saudades”211 , onde o poeta se associa à Língua e à Cultura Portuguesas,

parte de um mundo de que se recorda vagamente, que o “eu” lírico quis alcançar com a

sua poesia, embora se trate de uma reflexão crítica sobre um passado remoto :

" Monde scellé de caractères stricts et mystérieux, ô nuit

des forêts vertes, aube des plages inouïes !

J’ai bu – murs blancs collines d’oliviers - un monde

d’exploit et d’aventures d’amours violents et de cyclones.

Ah ! boire tous les fleuves : le Niger le Congo et le Zambèze,

l’Amazone et le Gange.

Boire toutes les mers d’un seul trait nègre sans césure non

Sans accents

Et tous les rêves, boire tous les livres, les ors, tous les prodiges de Coïmbre.

Me souvenir, mais simplement me souvenir… "212

210 L. S. SENGHOR, Op. Cit., pp. 156 211 L. S. SENGHOR, Op. Cit. 212 L. S. SENGHOR, Op. Cit. , pp. 203

168

Senghor manifesta, com frequência, um interesse especial por Portugal,

realçando memórias de tempos antigos, não só referindo-se à presença dos portugueses

no território do Senegal, mas também para homenagear o seu próprio povo e as

respectivas façanhas antigas, de tempos distantes, quase míticos.

A proximidade de países lusófonos também o desperta para este tipo de

reflexões que se desenham como projectos para o futuro. É evidente a necessidade e a

utilidade da Língua Portuguesa naquela região. Senghor ter-se-á apercebido

precocemente das vantagens de uma associação do Senegal com os países lusófonos e

soube avaliar a importância definitiva das marcas do passado em África. E, talvez por

isso, considerando interesses económicos, políticos e culturais do seu país natal, o

Presidente-Poeta decidiu oferecer a formação em Língua, Literatura e Cultura

Portuguesas às futuras gerações. Parece-nos uma vontade firme e muito consolidada,

com alicerces nesses desejos de universalidade e nessa favorável vizinhança de países

lusófonos, como a Guiné e Cabo Verde com quem o Senegal se relaciona em inúmeros

contextos, sem excluir os outros países e alargando ainda mais as potencialidades da

influência do Senegal no continente africano, com a diversificação de aliados.

É Senghor o fundador inquestionável dos Estudos Portugueses no Senegal. A

sua identificação com um passado longínquo, ligado aos vestígios da acção portuguesa,

transporta-o para uma dimensão poética e cultural. Através dela, e no contexto

improvável e surpreendente da Guerra Colonial, aparece muito cedo no seu espírito a

ideia da instituição do ensino do Português no Senegal, num território já mesclado de

tantas outras culturas e línguas. A cultura francesa influenciou a vida de Senghor, mas

no seu percurso de vida esteve sempre aberto a todo o mundo e às causas africanas.

Especialmente ligado à sua gota de sangue português, que declarava ter, atribuindo a si

próprio e ao povo do Senegal uma ligação muito forte à História de Portugal :

« Ah ! Je confonds confonds, je confonds présent et passé. »

(…)

« Mon sang portugais s’est perdu dans la mer de ma Négritude.

Amália Rodriguez, chante ô chante de ta voix basse

Les saudades de mes amours anciennes

Des fleuves des forêts des voiles, des océans des plages de soleil

Et les coups donnés et le sang versé pour des choses futiles.

169

J’écoute au plus profond de moi la plainte à voix d’ombre des saudades »213

A apologia da Negritude aparece ligada à presença portuguesa numa elegia que

fala de tempos remotos, em que se lembram as batalhas travadas em África, e cuja

expressão recorre mesmo aos signos do código linguístico português :

« Cétait au siècle de l’honneur.

La bataille était belle, le sang vermeil la peur absente.

A l’ombre de mes dunes, chantent les saudades de mes gloires perdues. »214

A Negritude surge como um apelo ao povo do Senegal, fazendo-o acreditar em

glórias do passado, buscando um orgulho nacional através de memórias, longínquas

e/ou recentes. Na verdade, os problemas da pobreza de África continuam a ser de muito

difícil resolução. É, pois, imperativo estimular os africanos para a acção, com

fundamentos que vão ao mais profundo do seu ser, como fazia Senghor ao transpor o

conceito de Negritude para a sua poesia. O conceito ficou. Mas não há continuidade

nem correspondência visíveis na acção. As pessoas continuam receptivas ao que vem do

exterior, mas mantêm-se fechados nas suas esferas culturais sem resolver os problemas

da pobreza. Emigrar para a Europa não é resposta para todos nem para todas as

carências que se vivem no Senegal, e noutros países africanos. É necessário que os

africanos se sintam bem na sua própria terra.

Contudo, Senghor abriu a porta para a resolução de certos problemas. Muitos

dependem da boa comunicação entre os povos. Outros dependem de um esforço

continuado, colectivo e convicto, para empreender acções de defesa da Humanidade em

perigo. Infelizmente, as novas tecnologias não contribuem de forma eficaz para a

resolução de todos os problemas do Desenvolvimento Humano, e não produzem

milagres. Não se confie excessivamente na tecnologia que sempre terá limitações. Há

que apostar mais na capacidade criadora e infindável das pessoas, que transformam o

mundo. É bom que todos possam ter um computador e acesso à Internet. O Senegal faz

já um esforço significativo para reduzir a “fractura numérica”. Mas seria lógico que

antes se tivesse acabado com a fome e a miséria, no país. Não é saudável uma ínfima

refeição ou uma pequena porção de arroz, por dia, para um estudante. A construção de

213 L. S. SENGHOR, Op. Cit., pp. 206 214 L. S. SENGHOR, Op. Cit., pp. 204

170

uma casa começa pelos seus alicerces e não pelo tecto. O computador veio intensificar

as possibilidades de comunicação entre os povos mas o desenvolvimento humano

continua a depender da vontade dos homens e da solidariedade entre os povos.

4.2. O Ensino Secundário

4.2.1. Estrutura do sistema

A estrutura do Sistema de Ensino do Senegal, Secundário ou Superior,

identifica-se com a organização do Sistema de Ensino Francês. O Ensino é veiculado

em Francês, língua oficial no país, e costuma iniciar-se o estudo de uma segunda língua

estrangeira (LV II) nas turmas de Quatrième (4e), prolongando-se essa aprendizagem

até ao último ano do Ensino Secundário, ou seja, proporciona-se a opção pela

aprendizagem de uma outra língua estrangeira ao longo de cinco anos. Devemos ter

presente que nenhuma destas é a língua materna da generalidade dos alunos que, como

vimos, falam as suas línguas étnicas. Mas quando entram para o Ensino Primário é

obrigatório realizarem os seus estudos em Língua Francesa. É uma situação de

bilinguismo normal para qualquer estudante senegalês, em escolas públicas ou privadas.

Com a família, entre amigos, entre si, os estudantes são falantes do Wolof, do Sérère ou

de outras línguas das suas etnias. Na escola, no liceu e na Universidade recebem toda a

sua formação em Língua Francesa e são avaliadas as suas competências na língua

oficial do país, que condicionam a sua progressão nos mais variados cursos. Contudo, a

Faculdade de Letras da Universidade Cheik Anta Diop de Dacar também oferece, aos

alunos de Estudos Portugueses, Espanhóis ou Italianos, o ensino e a formação em várias

línguas étnicas: Wolof, Sérère, Pulaar, Diola, pelas quais os estudantes podem optar, tal

como pelo Inglês.

Portanto, um jovem senegalês pode iniciar a sua aprendizagem da Língua

Portuguesa com a idade de 13/14 anos e prosseguir esses estudos até terminar o Ensino

Secundário, completando cinco anos de aprendizagem desde o ano escolar de

“Quatriéme” (4ème), pode até licenciar-se em Estudos Portugueses. A par desta

situação, nem sempre se encontra esta consistência e esta regularidade no processo de

Ensino/Aprendizagem da Língua Portuguesa. Podem surgir múltiplas situações de

alunos com maior ou menor sucesso, mas há situações problemáticas e complexas que

171

actualmente podemos encontrar na UCAD. Há alunos que frequentaram no liceu apenas

dois, três ou quatro anos de Português (LV II - Langue Vivante II). Esta irregularidade

na frequência da disciplina de Português, no liceu, deve-se a um situação específica.

Trata-se do conceito de “Grands Commençants” que se iniciou a partir da década de

1980, ou seja, alargou-se o Ensino do Português aos estudantes de faixas etárias mais

elevadas. Os alunos podem iniciar mais tarde a sua aprendizagem do Português (LV2),

na turma de “Seconde” (2nde, ou seja, o início do Secundário, em Portugal), podendo

completar um ciclo de três anos no ensino secundário.

Mais tarde, podem candidatar-se ao Curso de Estudos Portugueses no Ensino

Superior. Nos últimos anos, tem havido um número crescente de candidatos que são

seleccionados directamente pelos professores da Faculdade de Letras, de acordo com as

suas habilitações literárias e mediante uma entrevista. Após a selecção e quando

admitidos, os alunos inscrevem-se no curso. Na Faculdade de Letras, funciona o

Departamento de Línguas Românicas, onde se integram o Português, o Espanhol e o

Italiano.

4.2.2. Quadro geral do Português no Ensino Secundário em 2004/ 2005

Para termos uma ideia sobre o espaço actual do ensino da Língua Portuguesa no

Senegal, é importante conhecermos dados sobre as regiões e as escolas secundárias

onde se inicia o estudo da Língua Portuguesa. Começamos por apresentar as escolas

frequentadas pelos estudantes universitários que escolheram continuar os Estudos

Portugueses na UCAD (Universidade Cheikh Anta Diop). Trata-se do público-alvo do

inquérito, cujos resultados foram já apresentados. Os estudantes universitários da

UCAD, inscritos em DUEL I e DUEL II, no ano lectivo de 2004-2005, realizaram os

seus estudos do Ensino Secundário nas seguintes escolas, de várias regiões do Senegal:

- Região de Dakar: Cours Sainte Marie de Hann, Lycée John F. Kennedy,

Lycée Lamine Gueye, Lycée Mixte Maurice Delafosse, Lycée des Parcelles Assainies e

Lycée Seydina Limamou Laye, em Dakar; Lycée Abdoulaye Sadji e Lycée Moderne em

Rufisque;

- Região de Djourbel: Lycée d’Enseignement Général em Djourbel;

- Região de Fatick: Lycée Léopold Sédar Senghor em Fatick, e CEM de

Palmarin;

- Região de Kaolack : Lycée Valdiodio Ndiaye em Kaolack;

172

- Região de Kolda: Lycée Alpha Molo Balde, em Kolda; Lycée Ibou Diallo, em

Sédhiou;

- Região de Saint-Louis: Lycée Charles De Gaulle e Lycée Louis Faidherbe, em

Saint-Louis ;

- Região de Tambacounda: Lycée Mame Cheikh Mbaye, em Tambacounda;

- Região de Thiès: Lycée Léopold Sédar Senghor, em Joal; CEM Malick Sy e

Lycée Malick Sy, em Thiès;

- Região de Ziguinchor: Lycée Alioune Sane, em Bignona; Lycée Aline Sitoé

Diatta, em Oussouye; CEM de Thionk-Essyl; CEM Amilcar Cabral, Lycée Djignabo e

Lycée Saint Charles Lwango, em Ziguinchor.

Dado o número total de alunos seleccionados para o curso de Estudos

Portugueses da Faculdade de Letras da Universidade Cheikh Anta Diop, e de acordo

com estes dados recolhidos junto dos alunos, poderemos depreender que estas são as

escolas secundárias que apresentam geralmente maior sucesso no ensino da Língua e

Cultura Portuguesas, no Senegal.

A Embaixada de Portugal em Dacar procurou também saber, com exactidão, em

2004, o panorama completo do ensino do Português no Senegal, na medida em que, até

então, todos (anteriores leitores, professores senegaleses, inspectores de Academia, etc)

falavam em “cerca de” 8, 9, 10 mil alunos. Considerou-se, então, que a desejável

melhoria do apoio ao ensino do Português começaria por uma definição de prioridades,

baseada na realidade sobre a distribuição dos efectivos de escolas, professores e alunos.

Para efeito, o Embaixador pediu-nos a colaboração para conduzir este trabalho que se

revelou, autentica mas inesperadamente, de morosa investigação.

Num primeiro momento, recorreu-se ao Ministério da Educação do Senegal, ao

qual foram solicitados os elementos em causa. Apesar de promessas reiteradas, o facto é

que nunca se recebeu uma listagem do Ministério da Educação, acabando um

responsável por reconhecer, em Dezembro de 2004, que os serviços não tinham

conhecimento da realidade do país, nem um sistema estatístico de rotina e operacional.

Foi então necessário recorrer a uma abordagem diferente, tendo sido pedido à

autora que realizasse um trabalho metódico de contacto de todas as escolas senegalesas

passíveis de oferecer aulas de Português.

Assim, começámos por solicitar aos participantes do “Colóquio sobre o Ensino

Recíproco do Português e do Francês” (realizado em Dezembro de 2004), o

preenchimento de uma folha, com indicação da escola em que leccionavam e dos

173

contactos. Infelizmente, apesar de muitas insistências, não foi possível contactá-los a

todos, verificando-se que certos números de telefone estavam errados.

Numa segunda fase, procurámos contactar, uma a uma, todas as escolas

indicadas pelo Ministério da Educação, pelos professores e as constantes na lista

telefónica (o que, ainda assim, poderá não ter garantido a cobertura integral do espaço

escolar senegalês). Infelizmente, entre números errados e ausência frequente de

responsáveis, nem sempre foi possível obter respostas. Assinale-se que, devido à

inexistência de viatura disponível da Embaixada e às limitações orçamentais que

impossibilitavam o pagamento de deslocações a cidades distantes, não nos foi possível

efectuar deslocações ao terreno.

Por outro lado, tendo presente a evidente falibilidade das informações prestadas,

optou-se por repetir todas as chamadas das escolas que informaram ter alunos de

Português, para confirmar os dados fornecidos, tendo por vezes sucedido que se

verificaram contraditórios, obrigando a uma terceira chamada. Solicitou-se a todas as

escolas que enviassem os dados por escrito, mas apenas duas o fizeram.

Os dados solicitados foram os seguintes:

- nome exacto da escola;

- localidade, endereço, telefone, fax e correio electrónico;

- nº de alunos de Português por ano escolar;

- n.º e nome dos professores de Português;

- nome e contacto do Director da escola;

- se a escola tem clube de Português.

Os dados obtidos relativos às escolas que leccionam Português estão

parcialmente resumidos no quadro 32, retendo-se os seguintes elementos:

- Escolas recenseadas: 93215

- Escolas contactadas: 86

- Escolas que não têm Português: 29

- Escolas que têm Português: 57

- Nº de Professores: 92216

- Nº de total de alunos: 10966217.

215 Recordamos que o Português só é disponibilizado a partir da 4ème / 8º ano de escolaridade 216 Assinala-se que não foi possível obter os nomes dos Professores de 17 escolas que têm alunos de Português - o que poderá ser estranho para quem não conheça a Administração senegalesa, pelo que é provável que o efectivo se aproxime dos 110 docentes

174

Os alunos recenseados estão repartidos pelos seguintes anos:

- em 4ème: 1409 (12,8%);

- em 3ème: 1071 (9,8%);

- em 2nde: 3257 (29,7%);

- em 1ère: 3050 (27,8%);

- Em Terminale: 2282 (20,8%).

Por último, foram recenseados oito clubes de Português, mas a maioria dos

Directores não estava bem informada sobre esta actividade nas escolas.

Vejamos, de seguida, a rede de escolas senegalesas em que se leccionava

Português no ano lectivo de 2004-2005. Devido ao grande número de escolas, optámos

por dividi-las por quadros evidenciando a repartição regional

Quadro 32a – Escolas onde se lecciona Português e alunos inscritos (2004-2005) – Norte e Centro interior do Senegal

N.º DE ALUNOS ESCOLA LOCALIDADE

4eme 3eme 2nde 1ere Term TO-TAL

CEM André Guiaber Saint-Louis 22 42 64CEM Mpal Saint-Louis 27 22 11 60CEM Sancaré Saint-Louis 2 1 3Lycée Charles de Gaulle Saint-Louis 41 64 19 124Lycée Cheick Omar Foutya Tall Saint-Louis 16 16 15 47Collège Privé Cheikh Assane Ndiaye Djourbel 9 7 4 20Lycée d'Enseignement Général Djourbel 262 382 150 691Lycée Techniq. Cheikh Ahmadou Bamba Djourbel 49 27 28 104CEM Acapes Tambacounda 43 43CEM Moriba Diakite Tambacounda 85 71 156CEM Quinzambougou Tambacounda 61 14 75CEM Thierno Souleymane Agne Tambacounda 52 42 94Collège Waounde Ndiaye Tambacounda 18 10 1 3 32Lycée de Tambacounda Tambacounda 267 85 83 435Lycée Mame Cheikh Mbaye Tambacounda 149 121 45 315TOTAL 265 191 814 748 348 2263

217 Contudo, não foi possível obter esta informação em 2 escolas, pelo que, tendo também em conta que não conseguimos contactar 8 escolas, é razoável apontar para uma fasquia superior a 11000 alunos

175

Quadro 32 b/c - Escolas onde se lecciona Português e alunos inscritos (2004-2005) – Centro Oeste e Casamansa

N.º DE ALUNOS

ESCOLA LOCA-

LIDADE 4eme 3eme 2nde 1ere Term TO-TAL

CEM Abdoulaye Mathurin Diop Dacar 52 63 115Cours Sainte-Marie de Hann Dacar 15 4 22 13 16 70Ecole Fadilou Diop Dacar 86 80 166Lycée Blaise Diagne Dacar 21 25 145 131 40 362Lycée Galandou Diouf Dacar 10 20 10 20 7 67Lycée J F Kennedy Dacar 12 7 85 120 54 278Lycée Lamine Guèye Dacar 57 41 13 111Lycée Mixte Maurice Delafosse Dacar 71 73 60 204Lycée Parcelles Assainies Dacar 225 176 112 513Lycée Seydina Limamoulaye Guediawaye – DK 136 47 46 229Lycée de Mbao Mbao – DK 40 54 30 124Lycée Abdoulaye Sadji Rufisque – DK 65 47 33 145Nouveau Lycée de Rufisque Rufisque – DK 102 16 27 145CEM Malick Sy Thiès 40 40CEM Modeime Lat Dior Thiès 2 2Cours Bede Yacine Thiès 10 1 2 5 18Kocc Barna Privé Promo Educ Thiès 1 6 5 3 15Lycée Malick Sy Thiès 145 287 122 554Nouveau Lycée de Thiès Thiès 96 148 244CEM Lamine Senghor Mbour – TH 22 12 34Lycée Léopold Sedar Senghor Mbour – TH 32 45 27 104CEM Djim Momar Gueye Kaolack 53 54 107CEM Valdiodio Ndiaye Kaolack 42 38 80Lycée Valdiodio Ndiaye Kaolack 216 45 44 305CEM Collège Maounde Kande Kolda 12 10 3 12 37CEM Kolda Kolda 62 75 137Groupe Scolaire An Nur Kolda 5 2 7 14Lycée Alpha Balde Kolda 29 82 34 145CEM Amadou Maputhe Diagne Sedhiou – KOL 101 82 183CEM Saint Jean Sedhiou - KOL 2 2Lycée Ibou Diallo Sédhiou – KOL 73 57 232 116 81 559Lycée Chérif Sambidine Haidara Velingara – KOL 68 10 78CEM Kandé Ziguinchor 0CEM Tété Diadhiou Ziguinchor 99 50 149CEM Thionk Essyl Ziguinchor 163 139 135 121 80 638Collège Goudomp Ziguinchor 75 120 195Collège Lwanga Charles Ziguinchor 180 150 206 536Collège Malick Sall Ziguinchor 130 130Lycée Djinabo Ziguinchor 190 447 208 845Aline Sitoé Diatta Oussouye – ZG 40 84 38 28 47 237Lycée Ahoune Sane Bignona - ZG 45 83 618 746CEM de Sindiane Sindiane – ZGR 20 20 40TOTAIS 1144 880 2443 2302 1934 8703

A análise do quadro 31 permite retirar algumas conclusões:

176

Os alunos das principais regiões e cidades do Senegal têm a possibilidade de

aprender Português no 3º Ciclo do Ensino Básico e no Secundário (terminologia

portuguesa), à excepção das regiões de Louga e de Fatick, bem assim como das cidades

de Bakel, Matam e Podor, que ficam muito distantes da capital regional, Saint-Louis,

em pleno interior Nordeste, área de fraca densidade populacional e habitada pelas etnias

Peul, Toukouleur e Wolof.

Relativamente à região de Fatick, assinale-se que a Escola de Palmarin, na qual

muitos alunos tradicionalmente frequentam o Português, estava, no ano da análise, sem

professor, na medida em que o titular fora para Portugal como bolseiro. Ora, sucede

que, devido à organização interna do sistema de ensino senegalês, esta situação pode

provocar o fim do ensino da nossa Língua, na medida em que, se não houver professor,

deixa de haver a oferta da disciplina que é, não raras vezes, prontamente substituída por

outra218, sem possibilidade de regresso à situação inicial. No seu regresso, o professor

poderá ter sido colocado noutra escola. Este tipo de consequências de uma certa

inadequação da figura da concessão de bolsas anuais foi diversas vezes objecto de

reparos e informações dos sucessivos leitores na UCAD ao Instituto Camões, mas sem

êxito até àquela data.

No cômputo geral, a Casamansa destaca-se claramente pela oferta disponível e

pelo número de alunos: 18 escolas (5 das 7 com mais alunos) e 4671 alunos (42,6%).

Contudo, assinale-se que a percentagem de alunos casamansences que frequentam a

disciplina de Português no Ensino Secundário é menor do que a de inscritos na UCAD.

Este dado explica-se, a nosso ver, pelo aumento dos alunos inscritos na disciplina nas

escolas da região de Dakar (2529 alunos - 23,9%)., de que, porventura, uma parte

significativa poderá ter familiares ascendentes da Casamansa ou da Guiné-Bissau.

218 O Instituto Cervantes é, nesta matéria, particularmente agressivo e eficaz na promoção do Espanhol

177

CONCLUSÃO

Não é muito difícil depreendermos que na África Ocidental estejam ocultos

muitos vestígios da presença portuguesa. Muitos lugares, que são hoje países distintos,

não tiveram sempre essa configuração, nem a tinham à chegada dos portugueses nas

suas caravelas, no século XV. A presença de vários países lusófonos, relativamente

próximos geograficamente, é indício óbvio da disseminação de marcas portuguesas.

Principalmente a Língua Portuguesa está espalhada pelo continente africano e os

africanos identificam-na há séculos. Nos nossos dias, talvez a marca linguística seja a

maior evidência das Descobertas lusíadas. De facto, é aquela que vingou, como marca

histórica e pela necessidade de comunicação humana, embora não pareça ter havido,

desde o início desse projecto luso, um plano específico de difusão da Língua. Mais

tarde, após a conferência de Berlim, os territórios africanos ficaram divididos e

desenhados com régua e esquadro no mapa, de acordo com os interesses dos países que

colonizaram África, a partir do século XVIII. Mas a vontade dos europeus de dividir, de

separar e de ter aquelas terras não conseguiu desmembrar completamente as culturas

dos povos que aí habitavam. Esses povos e as suas culturas continuaram a evoluir com

as suas dinâmicas próprias, tal como em tempos anteriores. Sempre o poderio

estrangeiro, em geral, assentava nas relações comerciais, perpetuando a busca de

riqueza e de melhores condições de vida em proveito próprio nesses lugares. Os

estrangeiros, visitantes ou invasores de África, adquiriram escassos conhecimentos

sobre as particularidades culturais dos nativos. Esse interesse não fazia parte dos

objectivos e das prioridades dos tratados que assinaram ao longo dos séculos. Por isso, a

antiguidade da presença portuguesa e muitas marcas iam sendo preservadas,

memorizadas, pelos nativos, ainda que sem intencionalidade específica, e dentro dos

seus hábitos culturais. Assim, apesar da descolonização e das lutas pela independência

mais recentemente, a nossa ideia-chave é que está ainda em curso a Expansão da

Lusofonia.

No começo, a convicção do Infante D. Henrique foi maior na grande aventura

dos Descobrimentos. O Infante manifestava uma consciência especial, de prudência e

bom senso, sabendo, desde logo, que estava a expor-se a muitos perigos no espaço

desconhecido, tal como demonstrámos. A Santa Sé deu um voto de confiança e

acreditou que essa aventura poderia ser uma via para simultaneamente combater os

178

infiéis e difundir a fé cristã. Por isso, concedeu tudo o que os portugueses pediram e

legitimou todas as suas Descobertas, incluindo as suas conquistas futuras em lugares

desconhecidos. Apoiou os Descobrimentos portugueses e cristãos, ab initio.

A Coroa portuguesa igualmente deu sempre um grande valor às determinações

da Santa Sé, para legitimar grandes conquistas portuguesas, e não só, que adquiriram

grande prestígio internacional, por intermédio de relações pacíficas e respeitosas com o

poder da Igreja Católica. Assim, toda a Nação se entregou a essa aventura marítima,

também com grande empenho na procura do reino cristão do Preste João das Índias,

porque a devoção do povo português era profunda e muito menos reservada do que

actualmente. Fizeram-se múltiplos investimentos, prepararam-se intensa e

continuadamente as expedições marítimas, embora não se registassem dados seguros

que orientassem os navegadores de forma inequívoca. O desconhecimento da “Etiópia”

era quase total, excluindo o Norte banhado pelo Mediterrâneo.

Quando os portugueses chegaram à África ocidental, os africanos foram, de

facto, surpreendidos pelos visitantes, e tudo indica que mantiveram as suas dinâmicas

culturais. Como sabemos, o confronto de culturas tem particularidades que nem sempre

facilitam a comunicação entre os povos. Era grande a dispersão dos habitantes da África

ocidental, antes e depois dos lusíadas. Vários fluxos migratórios, de proveniências

diferentes, se tinham fixado nesses lugares, disputando os poderes e as riquezas naturais

daqueles sítios. Apresentavam uma consistente organização na troca dos produtos destas

terras. Ao longo dos séculos, vários povos chegaram, instalaram-se e dispersaram-se

naquele imenso continente, onde o Islão surgiu também como uma invasão sobre as

culturas de muitos grupos. O Islão árabe219 foi impondo essa religião cuja influência

219 LEWIS, Bernard, Os árabes na História, (trad) Ed. Estampa, 2ª ed, 1996, pp 158-160: o primeiro traço que nos chama a atenção é o poder assimilativo da cultura árabe, muitas vezes indevidamente apresentado como meramente imitativo. As conquistas árabes uniram, pela primeira vez na história, os vastos territórios que se estendem desde as fronteiras da Índia e da China até às proximidades da Grécia, Itália e França. Durante algum tempo pelo seu poder militar e político, durante muito mais tempo pela sua língua e pela sua fé, os Árabes uniram numa única sociedade duas culturas inicialmente colidentes –a tradição mediterrânica milenar e diversificada, da Grécia, Roma, Israel e do Próximo Oriente antigo,e a rica civilização da Pérsia, com padrões de vida e de pensamento próprios e os seus férteis contactos com as grandes culturas do Oriente mais afastado. Da coabitação de muitos povos, fés e culturas no seio da sociedade islâmica nasceu uma civilização nova, diversa nas suas origens e nos seus criadores, e no entanto imprimindo em todas as suas manifestações o cunho característico do Islão árabe. Desta diversidade da sociedade islâmica ressalta um segundo traço característico, particularmente surpreendente para o observador europeu – a sua relativa tolerância. Contrariamente aos seus contemporâneos do Ocidente, o muçulmano medieval raramente sentiu necessidade de impor o seu credo pela força a todos aqueles que se encontravam subjugados à sua autoridade. Tal como eles, ele sabia perfeitamente que, na devida altura, aqueles que acreditavam em algo diferente sofreriam as penas do Inferno. Mas ao contrário deles, não via qualquer vantagem em se antecipar ao julgamento divino neste mundo. A maior parte das

179

nem sempre foi benéfica nem pacífica, sendo a causa do declínio de grandes impérios

africanos (Mali, Gabú) e de conflitos duradouros na região. A sua influência

permaneceu até aos nossos dias com marcas visíveis, definitivas e complexas que

merecem um estudo exaustivo e específico, que nós não tínhamos como objectivo

abordar. Contudo, não se pode ignorar a sua existência no Senegal.

Os árabes invadiram também a Península Ibérica, os portugueses reconquistaram

o território cristão, assimilaram aspectos dessa cultura mas expulsaram os muçulmanos

e, na sequência desse plano nacional, da acção e da vontade firmes dos monarcas,

restabeleceram as suas raízes culturais e a posse dos territórios. No século XV, como na

época da Reconquista, os portugueses voltam a unir-se para a concretização de um novo

plano nacional, para o qual também contribuiu o engenho de muitos monarcas que

possibilitaram os Descobrimentos, com as suas iniciativas no aperfeiçoamento

continuado da marinha portuguesa, que seria a chave para resolver muitos problemas do

país, no futuro. Por um lado, o desenvolvimento da marinha permitia não só uma maior

eficácia no ataque aos inimigos mas também a defesa e a protecção do país. Por outro

lado, serviu para combater os infiéis, o Islão, e expulsá-los do território. Portanto, a

unidade do povo português em torno de grandes projectos nacionais foi, ao longo dos

tempos, a maior garantia do sucesso de certas acções, incluindo aqui obviamente as

Grandes Descobertas. Embora a maior riqueza que se espalhou no mundo nem sequer

tenha obedecido a um plano desde o começo. Falamos da difusão da Língua Portuguesa.

que até hoje permanece em tantas partes de África. Além dos países lusófonos, também

no Senegal, como noutros países africanos onde os portugueses passaram, deixaram-se

marcas ainda por explorar.

A aventura portuguesa, pode dizer-se, foi sendo preparada ao longo de séculos,

ignorando e desconhecendo totalmente o passado africano. Quando chegaram a esses

lugares, os portugueses surpreenderam-se com as paisagens e os povos que

encontraram, precisaram de tempo para assimilar as práticas culturais locais e adaptar-se

às novas realidades, mas conseguiram fazê-lo com êxito, de acordo com as orientações

vezes sentiu-se satisfeito por pertencer à fé dominante numa sociedade de muitas fés. Impôs aos restantes algumas discriminações sociais e legais, em sinal da supremacia, e a advertência não se fazia esperar se alguma vez parecessem dispostos a esquecê-lo. De outro modo, concedia-lhes a sua liberdade religiosa, económica e intelectual, e dava-lhes a oportunidade de contribuírem de forma notável para a própria civilização árabe.

180

recebidas no reino e não à maneira dos africanos, cada povo agiu dentro das suas

características culturais. Devemos considerar que as Descobertas tiveram início com o

desconhecimento completo da existência dos povos e das culturas ao Sul do rio Senegal.

Não se podem atribuir intenções aos portugueses que eles nunca poderiam ter antes de

lá chegarem, como por exemplo a exploração do homem preto pelo homem branco; o

racismo não existia, por desconhecimento de uns e de outros. O que aconteceu depois é

consequência de novas realidades em que todos participaram, e em que ninguém foi

sempre inocente.

Pelo contrário, no continente africano, os povos apresentavam-se muito

divididos e dispersos, além de disputarem entre si as mesmas riquezas e os mesmos

poderes, o que reforçava a conflitualidade, com todas as consequências dela

decorrentes. Por outro lado, havia um confronto entre as diversas culturas originais

destes povos, de diversas proveniências e a intromissão da religião islâmica que veio

alterar profundamente a organização social e subverter hierarquias instituídas,

constituindo um factor adicional de desordem, com grande impacto, além dos conflitos

que já existiam entre os muitos reinos.

Quando os portugueses chegaram à África ocidental, depararam já com os traços

predominantes da diferença de civilizações ainda hoje verificável. Com efeito, a

influência islâmica, já bem presente, mesclada com as tradições animistas, criou um

subtipo cultural e civilizacional específico e distinto, quer das sociedadade tribais

“puras” da África negra, quer das magrebinas e, obviamente, muito diferente da

portuguesa.

Por outro lado, após a chegada dos europeus, além da escassez de documentos

em certos períodos de tempo, África surge sempre ligada às culturas e às acções dos

colonizadores, o que lhe retira conteúdos, substância e objectividade; pois, os africanos

estão, geralmente, ocultos pelos acontecimentos mais recentes da colonização europeia,

acentuam-se as perplexidades sobre o tráfico negreiro e desvalorizam-se frequentemente

características específicas dos povos africanos, que não são da responsabilidade dos

colonizadores, o que leva estes povos a não empreenderem uma reflexão exaustiva

sobre as suas acções no passado. Por exemplo, no contexto da escravatura, nem todos os

argumentos que se apontam contra o antigo colonizador são de aceitar para justificar as

dificuldades em que vivem, na medida em que já existia em África, e os africanos

aderiram a muitas das acções dos estrangeiros. Por outro lado, mantêm apoios diversos,

dos países cooperantes e dos planos da Ajuda Pública ao Desenvolvimento do chamado

181

Terceiro Mundo, que deviam reverter para o bem comum e, como se sabe, isto

raramente acontece.

Apesar das mudanças de contextos políticos e económicos, os africanos

continuam a refugiar-se num “certo” e ainda nubloso passado, marcado pela

interferência de estrangeiros, para justificar a maneira como vivem e não sentirem a

urgência de mudar. Contudo, ao mesmo tempo, integram a influência islâmica sem a

questionarem e distinguem as suas identidades, afirmando mantê-las bem vivas e

seguras, pelo saber e pelas tradições transmitidos de geração em geração. Afinal, as suas

culturas específicas estiveram e estão sempre presentes nos seus modos de vida.

Portanto, conjugam estas três vertentes culturais e civilizacionais (islâmica, europeia e

culturas autóctones) que, de acordo com as conveniências, interferem nas suas acções,

na resolução de problemas e na preparação do futuro. Não deixa de ser verdade que essa

mescla de culturas pode dificultar a escolha de uma via de mudança e de

desenvolvimento dos países.

Por isso, interessa conhecer essa partilha dos territórios e das riquezas do

continente, pelos indígenas e pelos estrangeiros, ao longo de mais de cinco séculos.

Parece-nos mais ou menos claro que, até hoje, devemos entender que, desde o século

XV, há uma História comum em África, dos estrangeiros (europeus e não só) e dos

nativos africanos, várias culturas, com vidas que partilhavam os lugares, as riquezas da

terra e do mar, o comércio, desejado por todos, e a partir do qual se desenvolveu um

novo contexto económico. A sociedade, os hábitos e os costumes, a religião, ou seja,

estes aspectos das culturas que se cruzaram, não impediam os contactos comerciais nem

separavam totalmente as gentes que por ali passavam.

Temos de ver, contudo, duas excepções, ou dois aspectos que mudaram os

indígenas. Por um lado, a religião islâmica mantém influências mais antigas e mais

fortes sobre os povos do Norte de África. Contudo, a religião católica implantou-se

reconhecidamente, desde muito cedo, por acção dos portugueses:

“Les Portugais sont sans contredit les premiers qui envoyèrent des prêtres sur

les côtes qui nous occupent en ce moment. Quoique nous n’ayons aucun registre

concernant leur mission, la chrétienté de Joal, dont nous parlerons plus tard, en est une

preuve palpable. Nous les verrons s’honorer du nom de Portugais et conserver

glorieusement leur titre de chrétiens, malgré toute leur ignorance et toutes leurs

superstitions. Les vieillards de quatre-vingt-dix ans se vantent encore d’avoir été les

enfants de choeur des derniers missionaires portugais, et aiment encore à raconter des

182

traditions de leurs pères touchant les premiers qui portèrent chez eux le flambeau de la

foi.”220

Por outro lado, há também a transmissão / imposição das línguas europeias dos

colonizadores. Apesar disso, muitas línguas étnicas resistiram às interferências dos

estrangeiros e continuam a ser faladas pelos nativos de África.

Existem várias descrições de África, escritas por europeus, deixadas por

navegadores, comerciantes, governantes, missionários, que nos legaram as suas

experiências em contacto directo com os africanos, desde o século XV. Os africanos não

escreveram sobre essas épocas mais remotas, contaram a sua História de geração em

geração. Mas esses elementos da tradição oral não coincidirão com os dados históricos

enunciados em fontes escritas por outros que viram e contaram o que viveram nesses

tempos, nesses lugares, em contacto com esses povos?

Consideramos que o período entre os séculos XV e XVII, ao momento da

chegada dos portugueses, será o momento de maior impacto dos novos contactos

culturais, aquando das Descobertas desta costa africana. Por isso, esses acontecimentos

apresentam especificidades sobre a difusão da Língua Portuguesa junto dos indígenas.

Podemos estudá-las para compreender melhor os vestígios da presença portuguesa que

parecem influenciar os projectos culturais, políticos e económicos do Senegal na

actualidade. Por serem tão antigas, a influência e as consequências da presença dos

portugueses nos territórios do actual Senegal, encontram-se muitas vezes por detrás da

cortina da colonização.

Desde muito cedo, os africanos sabiam orientar-se com eficácia naqueles largos

espaços. Temos notícia das caravanas que organizavam para trocar os seus bens e que

são a prova sobre o conhecimento que tinham para empreender acções que lhes

interessassem verdadeiramente. As riquezas dos lugares – o ouro e outros metais

preciosos, o sal e os escravos – eram produtos muito valiosos e abundantes, à volta dos

quais se foram construindo e desfazendo muitos reinos africanos, ao longo de várias

gerações e de muitos séculos, muito para além da data das Descobertas dos portugueses.

São culturas diferentes, desde sempre. Mas, apesar de longínqua, a influência

portuguesa deixou marcas, reminiscências e vestígios visíveis no povo senegalês, tal

como pudemos verificar e concluir neste nosso estudo e também pela análise do

inquérito aos estudantes universitários de Estudos Portugueses na Universidade Cheikh

220 A. D. BOILAT (1853); Op. Cit., pp. 20

183

Anta Diop de Dakar. Além das fontes documentais que consultámos, de períodos

diferentes da História, de vários autores que viram, viveram e transmitiram

características concretas destas realidades, este inquérito acrescenta aspectos da

actualidade senegalesa e deu-nos a possibilidade de confrontar o passado com o

presente. Mas também permite antecipar medidas de acção para a difusão da Língua

Portuguesa no Senegal, dado que existe um tão grande interesse e empenho neste

desenvolvimento.

Como pudemos constatar e, em síntese, devemos reter as conclusões principais

mais pertinentes do inquérito realizado junto dos alunos da UCAD. Os alunos

manifestaram, na sua grande maioria, um gosto especial pela língua e cultura

portuguesas, tendo recebido estímulos para os Estudos Portugueses, da parte da família

e de amigos, sendo principalmente provenientes de regiões geográficas do Sul do

Senegal, na fronteira com a Guiné-Bissau, país lusófono, a que acresce a predominância

das etnias do Sul entre os estudantes, o que explica também a distribuição e a

concentração das escolas do ensino secundário. Estes resultados confirmam portanto

que essa apetência dos jovens senegaleses para os Estudos Portugueses tem causas

muito remotas que continuam a influenciar as escolhas ou as preferências deste povo.

Ao mesmo tempo, fica comprovado que, através das etnias e das famílias, a transmissão

oral de experiências e de conhecimentos, de geração em geração, continua bem viva e a

orientar as escolhas dos mais jovens africanos.

Os dados históricos aqui enunciados e as realidades evidenciadas pelo inquérito

mostram um interesse significativo do Estado senegalês no ensino do Português,

merecendo, no nosso entendimento, um apoio muito maior do que aquele que tem sido

prestado por Portugal. Em particular, a região da Casamansa deve ser objecto de uma

atenção especial, tendo em conta a sua posição geográfica (fronteira da Guiné-Bissau), a

sua etnia tradicionalmente dominante (diolas ou flups, espalhados pelos dois países) e a

grande concentração de escolas, professores e alunos de Português, provavelmente das

mais elevadas nos países que não integram a CPLP. Além disso, esta região é distante

de Dakar – e ainda mais isolada desde o desastre do navio Joola, 2002 - o que cria

graves dificuldades de mobilidade aos docentes que queiram fazer formação na capital.

Em geral, os contactos realizados permitiram verificar a nítida dificuldade no

domínio da língua de muitos professores, sem prejuízo do grande empenhamento e

motivação que alguns revelam no exercício das suas funções. Assim, parece-nos do

máximo interesse restabelecer um programa de bolsas de curta duração (2 meses, no

184

máximo), a gozar no Verão em Portugal, de que todos os professores, rotativamente,

deveriam beneficiar regularmente ao longo da vida profissional (de 5 em 5 anos, por

exemplo), para manter um contacto directo com a Língua. As bolsas de curto prazo

parecem preferíveis, não apenas por questões de natureza económica, mas também

porque se verificou, no passado, que bolsas anuais levavam à extinção da oferta de

Português nas escolas a que pertenciam os professores beneficiários. Por outro lado,

afiguram-se também mais úteis os contactos regulares com Portugal, em vez de uma

grande e única estada em Portugal.

Além de tudo isto, os materiais são escassos e muitas vezes desactualizados ou

inadequados, por vezes mesmo contraproducentes para um conhecimento realista do

nosso país. Trata-se de um problema que começa, desde logo, na Universidade, sem

meios de qualquer ordem para um ensino superior mais digno e cujos docentes

privilegiam sectores ou perspectivas da nossa Literatura e da nossa Cultura que se

afiguram 30 anos atrasados. Parece-nos, pois, urgente dotar as escolas de manuais – que

ali não existem – e utilizar parte do acervo do ICA (Instituto Camões), por exemplo,

para equipar as biliotecas e clubes com livros em Português, que suscitam curiosidade e

interesse dificilmente compreensíveis para qualquer europeu que não sabe o que é

aprender em condições tão deficientes. Parece-nos também que o projecto já esboçado

de distribuição de jornais por escolas, como materiais de trabalho, em parceria com a

TAP – Air Portugal, seria muito útil para manter todos os professores e alunos em

contacto com a realidade actual portuguesa. Por último, parece-nos imprescindível

apoiar melhor a Universidade, atribuindo ao leitorado de Português pelo menos um

equipamento de projecção de filmes e imagens (computador portátil e projector), para

que os alunos (646 no ano lectivo de 2004-2005) possam familiarizar-se com a Língua e

com o País.

Por, outro lado, criar e gerir com competência Bibliotecas ou Centros Culturais

de Língua Portuguesa, como o de Cabo Verde, a título de exemplo, seria estabelecer

alicerces definitivos para a permanência e/ou para a continuidade da expansão da

Língua Portuguesa, em vários países, atestando e reforçando a sua actual pertinência na

comunicação a nível mundial.

São algumas pistas que deixamos com o objectivo de valorizar a continuidade da

Expansão da Lusofonia em África. Ali existem tantos países lusófonos, tantos falantes

da nossa língua e tanta vontade de aprender e de manter o laço histórico que continua a

aproximar os nossos países! Com a Língua Portuguesa construímos, há muitos séculos,

185

uma “auto-estrada da comunicação”. Por isso, chamamos a atenção para o facto de esta

realidade ser frequentemente negligenciada ou mal entendida, tendo vindo a excluir-se

sucessivamente oportunidades para o desenvolvimento e o crescimento de todos estes

países africanos, que Portugal poderia apoiar. Todos poderão beneficiar de projectos

facilitadores e multiplicadores para o enriquecimento cultural, também económico,

contribuindo mutuamente para a estabilidade, para uma maior qualidade de vida,

valorizando e espalhando este bem comum, a Língua Portuguesa, uma ponte entre

Portugal, África e o Mundo.

186

MAPAS

Mapa 1 - O Senegal pré-colonial do século XV ao século XVIII ---------------- 11

Mapa 2 - O Gabú no século XVIII --------------------------------------------------- 14

Mapa 3 - Regiões e capitais regionais do Senegal --------------------------------- 116

Mapa 4 - Grupos étnicos no Senegal actual ----------------------------------------- 120

Mapa 5 - Fluxos migratórios dos avós dos alunos ---------------------------------- 128

Mapa 6 - Fluxos migratórios dos pais dos alunos ---------------------------------- 129

QUADROS

Quadro 1 - Inquérito -------------------------------------------------------------------- 103

Quadro 1.1. - Nomes citados pelo menos três vezes -------------------------------- 107

Quadro 1.2. - Nomes citados duas vezes ---------------------------------------------- 108

Quadro 1.3. - Nomes citados uma vez ------------------------------------------------- 108

Quadro 2 - Repartição etária dos alunos ----------------------------------------------- 115

Quadro 3 - Distribuição por área de nascimento ------------------------------------- 117

Quadro 4 - Repartição das etnias na amostra de estudantes e na população

do Senegal ------------------------------------------------------------------- 118

Quadro 5 - Repartição das grandes famílias de etnias na amostra de

estudantes e na população do Senegal ----------------------------------- 119

Quadro 6 - Relação etnia/ área de nascimento dos alunos --------------------------- 121

Quadro 7 - Relação etnia/ região de nascimento dos pais ---------------------------- 122

Quadro 8 - Relação etnia/ região de nascimento dos avós --------------------------- 124

Quadro 9 - Regiões ou país onde ocorre a maior frequência relativa de

nascimentos por etnia ------------------------------------------------------- 131

Quadro 10 - Segunda área onde ocorrem mais nascimentos, por etnias ----------- 132

Quadro 11 - Repartição de nascimentos pelas regiões dominantes de cada etnia 132

Quadro 12 a - Repartção, por regiões, de todos os nascimentos no Senegal ------ 133

Quadro 12 b - Repartição, por países, dos nascimentos ocorridos fora do Senegal

e sua frequência relativa no total de todos os nascimentos--------- 134

Quadro 13 - Repartição da população senegalesa, por regiões, em 2000, e

comparação com as frequências relativas da repartição dos

187

nascimentos de alunos e familiares ----------------------------------- 134

Quadro 14 a - Casamentos dos pais – miscigenação étnica – grupo subguineense 139

Quadro 14 b - Casamentos dos pais – miscigenação étnica –

grupo sahelo-sudanês--------------------------------------------------- 139

Quadro 14 c - Casamentos dos pais – miscigenação étnica – grupo mande ----- 139

Quadro 14 d - Casamentos dos pais – miscigenação étnica – grupo halpular ---- 139

Quadro 15 a - Casamentos de avós – miscigenação étnica – grupo subguineense 140

Quadro 15 b - Casamentos de avós – miscigenação étnica –

grupo sahelo-sudanês---------------------------------------------------- 140

Quadro 15 c - Casamentos de avós – miscigenação étnica – grupo mande ------ 140

Quadro 15 d - Casamentos de avós – miscigenação étnica – grupo halpular ----- 140

Quadro 16 - Frequência relativa dos casamentos com pessoas da mesma etnia -- 141

Quadro 17 - Outras etnias com que se registam casamentos ----------------------- 142

Quadro 18 - Profissões exercidas pelos familiares dos estudantes ---------------- 150

Quadro 19 - Pessoas com quem vivia antes da entrada na Universidade --------- 152

Quadro 20 – Pessoas com quem vivia à data do inquérito --------------------------- 152

Quadro 21 – Pessoas da família com quem viviam ----------------------------------- 153

Quadro 22 – Dimensão dos agregados familiares em que viviam os alunos ------ 153

Quadro 23 - Como teve conhecimento do Ensino do Português, no Senegal ----- 155

Quadro 23 bis - Outras razões ----------------------------------------------------------- 156

Quadro 24 - Duração dos Estudos de Português no liceu --------------------------- 156

Quadro 25 - Motivação para o estudo do Português no liceu ------------------------ 157

Quadro 26 - Motivação para os Estudos Superiores de Português ------------------ 158

Quadro 27 - Ambições e expectativas dos alunos quanto ao seu futuro

profissional ----------------------------------------------------------------- 159

Quadro 28 - Somatório das pontuações obtidas pelas respostas dos alunos

sobre o que gostariam de fazer após a conclusão dos estudos ------ 161

Quadro 29 - Somatório das pontuações obtidas pelas respostas dos alunos

sobre o que pensam fazer após a conclusão dos estudos ------------- 161

Quadro 30 - Países onde os alunos gostariam de viver após a conclusão dos

estudos – 1ª preferência --------------------------------------------------- 163

Quadro 31 - Países onde os alunos gostariam de viver após a conclusão dos

estudos – somatório das pontuações ------------------------------------- 164

Quadro 32 a - Escolas onde se lecciona Português e alunos inscritos

188

(2004- 2005) – Norte e Centro interior do Senegal ------------------ 174

Quadro 32 b/c - Escolas onde se lecciona Português e alunos inscritos

(2004-2005) – Centro Oeste e Casamansa ---------------------------- 175

BIBLIOGRAFIA

Bibliografia Específica

Documentos Históricos e Obras Literárias (Séculos XV-XVIII, 1453-1684)

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198

ÍNDICE

Introdução ………………………………………………………………… 1

1. A Língua Portuguesa como instrumento para a construção da

História de África : o caso do Senegal ……………………………… 6

1.1. Perspectiva histórica da Senegâmbia ……………………………. 9

1.2. A presença portuguesa …………………………………………… 27

1.3. Os indígenas da Guiné …………………………………………… 49

1.4. O comércio no Cabo Verde ……………………………………… 57

2. O Senegal e os países lusófonos …………………………………….. 63

2.1. A colonização ……………………………………………………. 65

2.2. O tráfico negreiro ………………………………………………… 79

2.3. Os reinos africanos ………………………………………………. 88

3. Inquérito aos estudantes universitários ……………………………. 100

3.1. Público-Alvo ……………………………………………………... 101

3.2. Questões …………………………………………………………. 102

3.3. Análise e comentários das respostas ……………………………... 106

3.3.1. Identificação Pessoal ……………………………………….. 106

3.3.1. a - Nomes de família …………………………………… 107

3.3.1. b - Idade ………………………………………………. 115

3.3.1. c - Local de nascimento ………………………………… 116

3.3.1. d - Etnia ………………………………………………… 117

3.3.1. e - Língua e miscigenação étnica ………………………. 138

3.3.1. f - Contexto social – profissões exercidas na família e

a questão das castas…………………………………. 149

3.3.1. g - Agregados familiares dos alunos……………………. 152

3.3.2. Estudos Portugueses ………………………………………… 155

3.3.2. a - Antecedentes e motivos da escolha do Português …… 155

3.3.2. b - Expectativas quanto ao futuro profissional …………. 159

3.3.2. c.- Pulsão migratória ……………………………………. 162

199

4. A difusão da Língua Portuguesa no Senegal …………………………. 166

4.1. Léopold Sédar Senghor ……………………………………………. 166

4.2. O Ensino Secundário ………………………………………………. 170

4.2.1. Estrutura do sistema ……………………………………… 170

4.2.2. Quadro geral do Português no Ensino Secundário

em 2004 / 2005 …………………………………………… 171

Conclusão ……………………………………………………………………. 177

Mapas ……………………………………………………………………... 186

Quadros …………………………………………………………………… 186

Bibliografia ……………………………………………………………….. 188

Índice ……………………………………………………………………… 198