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O sentimento de honra n'A demanda do Santo Graal

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O sentimento de honra n'A demanda do Santo Graal

Autor(es): Almeida, Ana Cristina

Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras

URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/23997

Accessed : 25-Oct-2021 00:33:18

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UNIVERSIDADE

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MÁ11IESIS 3 1994 199-211

o SENTIMENTO DE HONRA N' A DEMANDA DO SANTO GRAAL*

.ANA CRISTINA ALMEIDA

1. INTRODUÇÃO

A honra é certamente um valor moral determinante n'A Demanda do Santo Graal, romance de cavalaria medieval que possuímos sob a forma de cópia do tempo do rei D. Duarte (1420-38), de um texto provavel­mente do séc. XIII 1. Neste género literário, não procuravam as personagens, os cavaleiros, nas suas aventuras, e pelos seus feitos, granjear honra e fama?

No entanto, honra é um valor cuja importância não se restringe a uma dada época (embora possa, em certa medida, ser privilegiado em determinados géneros literários, como o narrativo de que tratamos). Pensar que os tempos de uma cavalaria, ou de um cavalheirismo foram épo­cas de maior preocupação com esse valor e supor que ele sempre teve o mesmo significado, é desde logo situar a questão por uma perspectiva que nos parece incorrecta. O que sempre houve (e haverá) são fórmulas diver­sas de conceber esse valor, quer em termos teóricos, quer em termos de 'praxis'.

Para descobrir essas variantes, ou se quisermos, para avaliar a "movência" do conceito, podemos setvir-nos de estudos (para as sociedades

• Texto com base na comunicação apresentada no "V Colóquio de Cultura Greco­-Latina/Cultura Universal" (Viseu, 25-26 de Março de 1993). Organização: Comissão Cultural Greco-Latina, Associação Académica de ViseulUniversidade Católica Portuguesa

1 Segundo D.Carolina Michaelis de Vasconcelos, Apud: MAGNE, A (ed), A Demanda do Santo Graal, introd AFacó, (2 vols), Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1944 (vol. I, p. 27).

2 PERISTIANY, J.G., Honra e VeIgonha, valores das sociedades mediteITánicas, lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 21988.

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contemporâneas) como o do sociólogo J. P. Peristiany, sobre a Honra e Vergonha - valores das sociedades mediterrânicas 2, assim como, para conhecer os comportamentos nas sociedades antigas, podemos partir de trabalhos como os conduzidos por Philippe Arles e Georges Duby, em História da vida Privada 3. Há sempre, porém, outra forma (para além da histórica e da sociológica) de avaliar estas questões em todas as épocas: a perspectiva estética

É, pois, desta perspectiva estética, de abordagem de uma cópia de um texto medieval (originariamente do sécXllI), que nos ocuparemos, tentando encontrar a defmição d' "O Sentimento de Honra n'A Demanda do Santo Graal'.

O texto d'A Demanda ... (Manuscrito 2594 da Biblioteca Nacional deViena), que durante muitos anos circulou na edição de Augusto Magne de 1944 4, está hoje à disposição do leitor quer na edição portuguesa iniciada por Joseph-Maria PieI em 1934, concluída por Irene Freire Antunes e publicada em 1988 5, quer na edição brasileira, ao cuidado de Heitor Megale, editada em São Paulo no mesmo ano 6. Os critérios utilizados são diferentes nestas duas últimas edições, uma vez que a "transcrição de PieI, é uma leitura sobriamente conselVadora", segundo a opinião de Ivo Castro 7, sem "fazer excessivas concessões ao leitor não especializado", enquanto que Megale se preocupou sobretudo em reduzir "a dificuldade que oferece ao público a leitura da lingua arcaica" 8, apesar de acompanhar o seu texto de uma riquíssima introdução, dirigida certamente a um público mais especializado.

A leitura do texto mostra aquilo que já Rodrigues Lapa referia nas suas Lições ... 9: o facto de esta novela estar mais carregada de simbolismo e ascese, uma vez que "é a Galaaz, ftlho natural de Lançarote do Lago, que competirá a honra suprema de alcançar a divina taça e de presenciar os seus mistérios" perdendo assim, o texto, "um pouco do seu humano encanto" 10.

3 ARIÊS, P./ DUBY, G., História da Vida Privada, (5 vols.), Lisboa, Círculo de LeitoreslEd. Afrontamento, 1989-1991.

4 E na edição posterior, fac-sírnilada, de 1955-70.

5 PIEL, J.-M. (ed), A Demanda do Santo Graal, Lisboa, IN-CM, 1988.

6 MEGALE, H, (ed), A Demanda do Santo Graal, São Paulo, TA Queíroz, Ed. / Editil da Universidade de São Paulo.

7 PIEL, Op.cit, p. xxiv.

8 MEGALE, Op.Cit, p. 14.

9 lAPA, R, Lições de Literatura Portuguesa, Coírnbra, Coimbra Edil, 1°1981.

10 Id. ibid., p. 251.

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o SENTIMENTO DE HONRA N' A DEMANDA DO SANTO GRAAL 201

Mas por outro lado, podemos também ver, seguindo o que Menendez Pelayo afrnnava, como alguns cavaleiros são "arbitrarios y futiles", como querem a "aventura por sí misma C .. ) se batem por el placer de batirse C .. ) por darse el espectáculo de su propia pujanza Y altivez", acrescentando que "ningun proposito serio de patria ó religion 1es guia" 11.

Toma-se então claro que, ainda que seja com o intuito de mostrar o valor do primeiro tipo de cavalaria, a de Galaaz, o que é facto é que estamos perante outros tipos de cavalaria, em confronto, por vezes não tão menosprezado como diz M. Pelayo, mas certamente opondo concepções muito diferentes de honra.

A cavalaria de Galaaz é de natureza celestial. Como dizia Pierre David, "Galaad, quand il aura surmonté toute chevalerie terrienne, cessera de son vivant même d'être terrien pour appartenir à la Chevalerie cé1éstiale; il será spirituel." 12

Uma outra será a cavalaria terrena, cortês, aquela que é representada por muitós cavaleiros que pretendiam, sobretudo, e como ficou mais gravado na memória dos leitores de livros de cavalaria, mostrar a sua coragem perante si mesmos e as suas damas, com cortesia e garbo, i.e. respeitando um código estrito de comportamento social e de apresentação fisica elegante. Uma personagem particular d'A Demanda ... , Palamedes, ilustra este tipo de cavalaria, e consequentemente de concepção de honra. Trata-se de um cavaleiro pagão, mouro, que combate ardorosamente e, segundo a opinião dos que o obselVam, com cortesia e garbo; tem também um objectivo definido - a "beesta ladrador", a que pretende "dar cima", impedindo que outrém intelVenha nos seus intentos, pois quer ser um cavaleiro solitário. Representará assim uma cavalaria terrena, em que se respeitam normas de carácter feudal e cortês, e a que apenas "falta" a substituição da luta contra um mal de natureza mágica, pagã, pela luta a favor do Bem, Cristão.

A presença desta personagem revela como a obra de arte literária registou a comunhão de culturas de que era feita a convivência medieval, e, simultaneamente, como a cortesia se alimentou precisamente desse contacto, privilegiado também na Península Ibérica, com a cultura árabe. Mas se retomarmos as palavras de M. Pelayo, sobretudo quando se referia ao facto de certos,cavaleiros "darem o espectáculo da sua própria pujança e altivez", não podemos deixar de pensar num terceiro tipo de cavalaria,

II Apud EN1WISTLE, W., A Lenda Arturiana nas Literaturas da Península Ibérica, Lisboa, INL, 1942, p. 201.

12 DAVID, P., SentíeIS dans la Forêt du Saínt Graal, Coimbra, 1943, p.1lO.

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guiada, portanto, por um código de honra diferente, e que se encontra patente num outro cavaleiro d'A Demanda ... - GaIvão. Como aftrmava Ro­drigues Lapa, " GaIvão, que em certos romances bretões era a flor dos cavaleiros e o enlevo das damas, é agora aqui um personagem estranho, sobre o qual pesa uma fatalidade imensamente trágica. ( ... ) Representa pois, no romance, o espírito da cavalaria mundana, antítese de Galaaz" 13

Não será no entanto um cavaleiro destituído de propósitos sérios, mas uma personagem estranha, e que parece encontrar-se em paralelo com o que Koehler aftrma dele para a Queste e a Mort Artus (os dois romances de cuja tradição e junção resulta a nossa Demanda). Koehler diz: "s'accrochant aveuglement aux notions féodales d'honneur, et exerçant une influence décisive sur Arthur, [Gauwain) aura une grande part de résponsabilité dans la destruction du monde arthurien, car aprés sa mort, sa volonté démente se transmettra au roi, qui, pourtant, avait été prudent jusque-Iá, et l'entrainerá défrnitivement dans l'abime." 14

Podemos assim enunciar três tipos de códigos de honra, interpretados por três cavaleiros diferentes, e que denominaremos de celestial - o de Galaaz; terreno - o de Palamedes; e mundano - o de GaIvão.

2. GAIAAZ E A CAVAlARIA ESPIRITUAL

Galaaz é o cavaleiro escolhido, o que ultrapassará todos os outros em bondade e cavalaria, o cavaleiro desejado, "santa cousa e santa creatura", o predestinado a uma visão, o único que alcançará o propósito do seu caminho, o que no fun da aventura encontra o "advento" 15.

Nele, a honra reveste um carácter fundamentalmente religioso (apesar de nascido em pecado, nele revela Deus poder e virtude de molde a atingir o que outros nunca conseguirão 16), mas não deixa de lado um cariz linhagistico e guerreiro. É precisamente pela multiplicidade que nele encontra o perfeito e medido sentimento de honra, que se revela em superioridade face aos outros cavaleiros - embora também de certo modo menos humano, como dizia Rodrigues Lapa - ele é aftnal, o "sergente de Jesu Cristo".

13 lAPA, Op. cit, p. 270.

14 KOEHLER, E., L'Aventure ChevaJeresque, Paris Gallimard, 1974, p.l32.

15 PIEL, Op. cit, cap. III, p. 2; cap. XVI, p. 10-11; cap. XVIII, p. 11-12.

16 Id. ibid., cap. V, p. 3.

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Ele "dá cima" a todas as aventuras que lhe surgem, e os que com ele lutam humildam-se quando reconhecem que o erraram "por desconhocença" 17.

Mais do que qualquer outro cavaleiro (como Lançarot ou Boorz), ele passa por cavaleiro anónimo, desconhecido, não se nomeando 18.

Mesmo quando fere outros cavaleiros da Mesa Redonda, eles reconhecem a sua superioridade 19. E quando aparece em auxílio de outros cavaleiros, há sempre algo de mais urgente que o impele a votar-se ao seu caminho solitário 20.

Face ao amor da mulher, Galaaz não contemporiza, a não ser que isso implicasse uma questão de vida ou de morte, como no caso da donzela do rei Brutus, a quem por isso ele suscita admiração: " Como, cavalleiro, todavia queredes seer tam vilão, que me nom queredes aI fazer?" 21

Corajoso, vencedor e magnânimo, ele é o "melhor cavaleiro do mundo", pois põe as suas qualidades e o seu verdadeiro amor ao serviço de Deus.

Recusando-se a combater 22, exasperando-se quando não vê que a cavalaria seja um meio mas um fun em sL ele é também o cavaleiro, humilde e asceta que, porque apenas instrumento de Deus, não deve ser por isso "honrado",ie. homenagiado 23.

Armando-se dos dons de Deus, está preparado para conhecer todas as maravilhas, razão porque a sua cavalaria pode mais onde os outros "falecem"; não actua quando a luta não tem razão de ser, não se preocupando com a glória da vitória guerreira ou da vingança Gustiça que aliás deve ser exercida por Deus e não pelo homem), preferindo a acção solitária 24.

A sua concepção de honra passa também pelo vexame público perante os que se julgam detentores da verdade, tudo sofrendo

17 Como por exemplo Boorz, id ibid., cap. XCIII, p. 60.

18 Id. ibid, cap. XCV, p. 61, em que não se nomeia a Queia

19 Id. ibid., cap. XXIV, p. 15, como é o caso de Tristão.

20 Id. ibid., cap. CCXXIX, p. 164; cap. CCUII, p. 183.

21 Id. ibid, cap. CXV, p. 74.

22 Id. ibid., cap. CCCXCIV-V, p. 272-3.

23 Id. ibid, cap. CCCC, p. 270; cap. CCCCVIII, p. 282.

24 Id. ibid., capts. CCCCXVII, p. 287-8; CCCCLXII, p. 316; CCCCLXXIV, p. 325; CCCCLXXVI, p. 327; CCCCLXXXI, p. 331; CCCCLXXXVII, p. 335; CCCCLXXVII, p.327.

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pacientemente, excepto quando isso o impede de prosseguir o seu caminho em paz 25.

A reposição da justiça terrena faz também parte das suas obrigações. Mas a sua tarefa fundamental cumpre-se em Palamedes, porquanto o leva a aceitar o baptismo 26.

Ele é "átvor nova de Cristo", e por isso privilegiado entre os que contemplam o Graal: ser-Ihe-á dado "veer as cousas espirituaes", tomar comunhão da mão de Josefes (fllho de José de Arimateia), e ver cumprido, por graça divina, o seu desejo de passar cedo à vida celestial 27.

Galaaz protagoniza assim um sentimento de honra que se pauta pela humildade perante os homens e os desígnios divinos, completa devoção à Sua vontade e, por isso, castidade e solidão, traduzindo assim o mais fmo exemplo da cavalaria celestial.

3. PAlAMEDES. O CAVALEIRO COR1ÊS EA CONDIÇÃO TERRENA

Durante algum tempo, Palamedes aparece .apenas como o cavaleiro que combate a "Beesta Ladrador" e que, embora a não consiga vencer, não deixaria a sua "presa" para "o melhor cavaleiro do mundo". Ele vai sendo nomeado não só à medida que a sua história vai sendo conhecida 28,

mas também conforme vão sendo reconhecidos os seus actos de cavalaria e cortesia 29. A figura do cavaleiro pagão, bom cavaleiro e cortês, corresponderá à necessidade de evidenciar que o conceito de honra mais valorizado n'A Demanda ... , não deriva apenas da vitória de cavalaria, mas de um substrato religioso que este cavaleiro (ainda) não tem, embora revele um posicionamento ético que outros cavaleiros, ditos cristãos, não possuem.

É em relação a Tristão que se revela o seu profundo respeito e dignidade, pois sente que, até por Isolda o amar, o não deveria ferir 30. Por isso pede o fim da luta, se ajoelha a Tristão, se outorga vencido, tudo faz

25 Id. ibid, cap. CCCCLXXXIX, p. 337; cap. XDII, p. 339; cap. XDI, p. 342.

26 Id. ibid., cap. DLXXI, p. 391.

27 Id. ibid., cap. DCXXVIII, p. 427-8.

28 Id. ibid., cap. C, p. 64-65.

29 Id. ibid., cap. CL p. 66; cap. CXLN, p. 92; cap. CLXIV, p. 109; cap. CXCVI, p. 135.

30 Id. ibid, cap. CCCLXXVIL p. 260.

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para que com ele não lute, chegando mesmo (em episódio seguinte) a ir em seu auxilio 31. Reconhece humildade perante Galaaz, exaspera-se com cavaleiros apressados, chegando mesmo a mandá-los calar, e deixa de os ajudar se Galaaz lho ordena por não ser Cristão 32.

Profundamente individualista, recusa a conversão que todos lhe pedem 33, para se dedicar sozinho à sua "demanda". É precisamente por temer não poder dar conclusão aos seus intentos que se deixa convencer, por seu pai, a baptizar-se. E por isso, no combate com Galaaz não é o medo da morte que o fará aceder ao pedido de baptismo que o herói lhe faz, mas o facto de o ter já prometido a seu pai. 34

Consciente, esclarecido, digno - honrado -, está por isso em condições de ir a Camaalot, confessando-se e pedindo conselhos, para ver o seu nome numa das "seedas", e entrar na Demanda do Santo Graal.

Palamedes é também contemplado (como Galaaz e Persival), com a protecção divina, que lhe permite "dar cima" a algumas maravilhas, a principal das quais é a da sua "beesta ladrador". Porque é cavaleiro de fé, e acredita que "sen (. .. ) mercee [de Deus) a cavalaria(. .. ) é danada" 35 está também apto a entrar em Corberic e a contemplar as maravilhas do Santo Graal. O seu sentimento de honra e dignidade resulta ainda mais elevado quando confrontado com o de Lançarot (que o fere) ou o de GaIvão (que o mata) 36, pois cada um deles, em sua medida desrespeitou as normas por que Palamedes, ainda pagão, se bateu.

Inicialmente representante de uma digna cavalaria, terrena, cortês, ele acaba por dar igualmente voz aos exemplos de cavalaria celestial de que Galaaz é o representante máximo.

4. GALVÃO E A HONRA MUNDANA

GaIvão é, dos cavaleiros da Mesa Redonda, aquele que desde início vê sobre si a maldição que irá tUlVar todos os seus actos: são as referências

31 Id. ibid., cap. CCCLXXXIII, p. 265.

32 Id. ibid., cap. CCCCLVIL p. 313; cap. CCCCLXVlI, p. 320; cap. CCCCLXXII, p.324.

33 Id. ibid., cap. CCCCLXXVII, p. 329.

34 Id. ibid., cap. DLXXI, p. 391.

35 Id. ibid., cap. DXCI, p. 404.

36 Id. ibid., cap. DCll, p. 411; cap. DCN, p. 412-3.

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iniciais de Lançarot, o episódio da espada, a proibição de Artur ... são os indícios dessa maldição que o persegue. O seu comportamento é, assim, representativo de uma ética que desde início se condena.

Vários episódios ilustram a sua personalidade de cobardia (acompanhando outro cavaleiro, em seu auxílio, não entra num castelo "por pavor de morte" 37, ainda que o tenham por maldade e "covardice", e não ajuda o companheiro, deixando-o morrer sozinho. Logo de seguida, encontrando a irmã daquele, promete-lhe que "faria selVÍço e honra em toda - las guisas que podesse". A sucessão destas duas atitudes em contraste aumenta o descrédito desta figura, que não parece respeitar um código de honra senão na medida das suas conveniências pessoais.

Ao combater com um cavaleiro, Galvão está a ponto de o decepar quando intelVém uma donzela. Com receio de que seja da sua família hesita, mas constatando que não, porisso "lhe talhou a cabeça". "Aleivoso, "treedor", desleal, sem ouvir missa 38, GaIvão deseja ocultar-se dos outros cavaleiros, para que não saibam da sua atitude duplamente condenável, não respeitando as regras de combate e não cedendo aos rogos de uma donzela.

É por tudo isto avisado em sonho (aliás a forma retórica - religiosa, bíblica - privilegiada de a divindade se manifestar) de que "nom devemos cuidar que as aventuras que ora ócorrem sam de matar cavalleiros nem outros homeens", como lhe explica um ermitão 39. A GaIvão é ainda dada uma oportunidade para que se aproveite ao menos " a cortiça e o meollo, pois que o Demo C .. ) levou os ramos e as folhas e a fruita" 40.

Mas GaIvão não opta por esse caminho: continua mentindo, mesmo perjurando sobre os evangelhos, renegando ou amaldiçoando as regras de cavalaria quando lhe convém 41.

É face à concepção do amor porém, que em certa medida GaIvão se revela mais humano, desculpando Lançarot, pois "gram força damor C .. ) do mais leal cavalleiro do mundo fazia ligeiramente treedor" 42. Entre o respeito pelos deveres impostos pela cortesia amorosa e os deveres dos "bons cavaleiros", "não perjurados" e "desleais", GaIvão calar-se-á ao incitamento para contar a verdade sobre a rainha Genebra.

37 Id. ibid., cap. cxxx. p. 84.

38 a, Id. ibid., cap. CXXXIX e CXL, p. 89-90.

39 Id. ibid., cap. CLXI, p. 107

40 Id. ibid., p. 108.

41 Id. ibid, cap. CCXXXVIL p. 169; cap. CCXL, p. 172.

42 Id. ibid., cap. CCLXI, p. 189.

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o SENTIMENTO DE HONRA N' A DEMANDA DO SANTO GRAAL 207

Um sentimento de honra, egoisticamente linhagístico pode assim levar à defesa de personagens que se pautam por um estranho código, de honra e cavalaria face às damas, em detrimento de outras que, por Deus e cortesia ainda mantêm uma concepção válida de honra do cavaleiro.

Esta acomodação inicial vai-se transformando num total desprezo pelas regras ("esto menos é ca nada" 43), embora continue a reconhecer (apenas no íntimo) a injustiça das suas atitudes, e por vezes, reconheça a sua própria soberba. Parece assim que o comportamento de GaIvão cada vez mais se assemelha ao de um herói maldito, que conscientemente continua a desenvolver a sua "hybris", que se acomodou à sua condição de proscrito: se não lhe é dado nada atingir nesta "demanda", que se saiba ao menos das suas vitórias e vinganças guerreiras.

GaIvão não pode entrar no Paço Venturoso, escarnecendo-o mesmo, mas reconhece pelas palavras de Gaariet que não é de facto senão em nós mesmos que está a culpa " que fazemos as maas obras por que i nom podemos haver onra" 44. Ele é também "sandeu", pois não tendo "dado cima "a uma demanda já se quer empregar noutra. Não sabe com quem, nem porque luta, e acaba por matar Palamedes (de quem ouviu, entretanto, as maiores verdades), indo "ledo". Comporta-se assim como se, morta a voz que tornou mais viva a sua íntima consciência, fosse possível viver agora liberto de qualquer critica ou remorso.

De tal modo o seu comportamento é abusivo que chega a pôr-se em questão a sua permanência enquanto cavaleiro da Mesa Redonda. Lançarot e a rainha Genebra intercedem para que assim não seja, funcionando uma espécie de "ordo", o que, significativamente, é operado por duas figuras cujo comportamento se defme pelas regras de cortesia. Em favor de GaIvão abona, fmalmente, a sua recusa em participar do conselho que ordena a morte da rainha Genebra.

A concepção de honra em Galvão é, pois, multiplamente trágica Ela patenteia desde o início a desobediência não só aos avisos de que o seu comportamento será amaldiçoado, mas também a desobediência às regras de comportamento guerreiro mais elementares, que a sua consciência, ainda assim, por vezes lhe dita. A defesa da linhagem e o gosto da guerra são tidos como finalidade, o que torna o comportamento de Galvão cada vez mais dominado pela cegueira, tomando por justificados todos os meios que possam levar àqueles fms.O medo da morte e da publi­cidade dos seus actos ignóbeis, são os indícios fundamentais para o des-

43 Id. ibid., cap. CCCXLI, p. 234.

44 Id.ibid, cap. DLII, p. 379.

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208 ANA CRISTINA ALMEIDA

moronar da sua imagem de cavaleiro ardoroso. É-lhe dada a oportunidade de se ressarcir (através da humildade, fé e sofrimento), mas GaIvão não escuta a voz do advento, dominado como está pela obsessão da aventura.

A sua humanidade revela-se no respeito (ainda que de certo modo também de cariz linhagístico) que devota à compreensão da força de amor, nas pessoas de Lançarot e da rainha Genebra.

É o reconhecimento dos seus mais íntimos receios que confere no entanto o traço mais vincado da sua caracterização: GaIvão reconhece-se como herói maldito, e apesar de saber o que não deve fazer, sujeita-se a esse destino porque não acredita que o possa modificar. Por isso, o seu sentimento de honra permanece fiel, apesar de todas as peripécias e avisos, ao respeito pelo feito guerreiro, como única forma de afirmar e manter a honra de uma linhagem - imagem desactualizada de um sonho antigo de dourada grandeza. Ele é por isso, como referíamos atrás, o exemplo da cavalaria mundana.

5. CONCLUSÕES

a) O confronto que encontramos entre uma cavalaria terrena e uma cavalaria celestial que se mostra superior, correspondeu a um anseio de uma época, o séc. XII, em consonância com o espírito de Cruzada, e a que S. Bernardo, famoso cisterciense, fundador do mosteiro de Claraval e Padre da Igreja, deu voz quando escreveu De Laude Novae Militiae, o que , segundo Erich Koehler "em 1128 acelerou a mutação da «militia secularis» em «militia Christi»" 45. O misticismo de S. Bernardo autor é patente se atentarmos na sua exortação a essa nova cavalaria, em passagens como esta: "Ó verdadeiramente santa e segura cavalaria, inteiratI}ente livre daquele duplo perigo com que o próprio género humano costuma andar em permanente risco, quando Cristo não é a única razão de combater! E na verdade, todas as vezes que lutes, tu que combates a cavalaria terrena, deves ter profundo receio de, ou matares um verdadeiro inimigo no corpo, e matares-te a ti mesmo na alma, ou que talvez sejas tu morto por ele ao mesmo tempo no corpo e na alma." 46 Os deveres dos cavaleiros não foram, no entanto, "codificados" pela primeira vez por S. Bernardo.

45 KOEHLER, op. cit, p. 134 [nossa tradução[.

46 Apud: KOEHLER, Op. cit,p.l33-4 [nossa tradução).

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Antes dele, Fulbert de Chartres (bispo fundador, em fms do sécX. da famosa Escola de Chartres) em carta dirigida a Guilherme V de Aquitânia, c. de 1020, aconselhava o monarca acerca dos deveres daquele que jurava fidelidade ao seu senhor, o qual "deveria conselVar integridade, segurança, probidade, utilidade, facilidade e exequibilidade" 47. Também Bonizo de Sutri, no seu Liber de Vita Christiana (de c. de 1100), se dedicou a aconselhar os cavaleiros a "entregar aos seus senhores, e não cobiçarem a pilhagem; a não pouparem a vida pela defesa da vida de seus senhores; a debelarem os cismáticos e os hereges; defenderem os pobres, bem como as viúvas e os órtàos; a não violarem a palavra prometida, nem jamais faltarem ao juramento para com os seus senhores" 48.

Do confronto destes dois textos com o de S. Bernardo resulta evidente a diferença entre uma cavalaria quase reselVada à defesa do património e integridade do seu senhor, e de outra motivada espiritualmente em nome da difusão da fé. Mais longe chegará ainda John de Salisbury (clérigo inglês formado em Chartres e bispo da cidade) quando questionar, c.l160, no seu Polycraticus (espécie de tratado de economia política): "Qual é a utilidade da cavalaria regular? Proteger a Igreja; lutar contra a perfidia; respeitar o sacerdócio; repelir as injustiças dos pobres; pacificar o território conquistado; por amor dos irmãos, como ensina a fórmula do juramento, oferecer o sangue, a alma se necessário for ... Na verdade os que isto fazem é que são os cavaleiros santos." 49

b) O sentimento de honra personificado em GaIvão, e que qualificámos, segundo Lapa, de mundano, tem a ver com um tipo de cavalaria em que tomam primordial importância regras de comportamento abusivamente materialistas e que representam, mais uma vez segundo Koeh1er, " la faillite des normes éthiques de la comunauté devant les revendications insatisfaites de l'individu" 50. O conjunto de normas éticas que deveria vigorar, derivaria fundamentalmente da aplicação de "mesura" e "cortesia", não só no campo amoroso, mas no comportamento social em geral (cortês/cavalheiresco). Ora o que se conclui das atitudes de Galvão é que essa ética só se aplica restritivamente na compreensão do comportamento amoroso de outros cavaleiros (Lançarot e o seu amor pela rainha Genebra), e no trato que lhe merecem as damas (precisamente

47 Id. ibid, pJ33 [nossa tradução).

48 Id. ibid., pJ33 [nossa tradução).

49 Id. ibid, pJ34 [nossa tradução).

50 KOEHLER, Op. cit, p. 132.

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também, em relação à própria rainha). Nos restantes dominios do comportamento social, a cegueira ("athê"') que Galvão patenteia, extravasa as regras de qualquer cavalaria, e subverte-as no sentido do interesse pessoal ou linhagistico, fIm que se procura sem olhar a meios. Cavalaria mundana pretende assim denominar a confluência da subversão das regras do comportamento guerreiro e da manutenção de certas regras de comportamento cortês no dominio amoroso.

c) É necessário relembrar que o manuscrito d'A Demanda... portuguesa corresponde à adição de dois textos , sendo que as principais referências a GaIvão são recolhidas precisamente no fInal, o que corresponde à Mort Artus. Será então a personalidade de GaIvão , e a concepção de honra que acerca dela formulámos não um elemento retórico de contraste, mas simplesmente a remanescência de um herói antigo, interpretado por GaIvão?

d) O vocábulo "honra" (e a formulação dos códigos, como atrás vimos) começou por ter um forte sentido patrimonial , assim como a própria essência de "cavaleiro" não signillcava propriamente que este detivesse uma certa educação ou nobreza de sangue. Pelo contrário, como indica José Mattoso, ao referir o caso dos "cavaleiros exilados" 51,

foi uma classe que ascendeu à condição de nobre ou de relativo prestigio, graças à sua pericia guerreira. Será então a concepção de honra nesta personagem de GaIvão um sinal dos tempos?, dos mesmos tempos em que os cavaleiros exilados se constituiram como grupo de pressão, o que contribuiu também para a destituição de Sancho II em Portugal?

e) Se a intenção do romance é indubitavelmente moralista, e de uma determinada concepção de moral cristã , não deveremos integrá-la, enquanto cópia do tempo de D. Duarte, no conjunto de textos que fIzeram do seu reinado o da eloquência, mas também o do moralismo?

A estas e outras questões procuraremos responder, sendo certo que da interpretação do conjunto de concepções resulta uma ideia de hesitação e perplexidade por parte de muitas das personagens desta história. Esses são os sinais talvez, da falência ou esvaziamento de conteúdo de uma ética, de uma doutrina. Será então necessário transmitir novo alento,

51 MATIOSO,J., A Nobreza Medieval Portuguesa, Lisboa, Ed. Estampa, 1981, p.356--360.

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substituir fórmulas vazias ou falíveis por novas normas, que suIjam como gratificantes. É esse o papel de Galaaz, que setvirá de exemplo a outros cavaleiros, de facto humanos, como Palamedes, Boorz ou Lançarot que, eles sim, experimentam a mudança e se preparam para o advento.