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COLEÇÃO “O MUNDO DO GRAAL” MAOMÉ (MOHAMMED) NARRATIVA FIEL DA VIDA TERRENA DO PROFETA ÁRABE, LIVRE DE TODOS OS CONCEITOS ERRÔNEOS. RECEBIDO POR INSPIRAÇÃO ESPECIAL

Literatura do graal o livro de maome

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COLEÇÃO “O MUNDO DO GRAAL”

MAOMÉ(MOHAMMED)

NARRATIVA FIEL DA VIDA TERRENA DO PROFETA ÁRABE,LIVRE DE TODOS OS CONCEITOS ERRÔNEOS.

RECEBIDO POR INSPIRAÇÃO ESPECIAL

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UMA lamparina colorida iluminava o aposento e fazia luzir os adornos de ouro que se encontravam entre os abundantes tapetes colocados nas paredes.

Aqui pendia um cordão com pérolas e acolá cintilavam pedras preciosas. Em cima de uma mesinha, formada de peças artisticamente entalhadas e embutidas, havia uma brilhante taça de vidro, cheia de um óleo aromático.

Todo o recinto, embora não fosse grande, parecia ser perfeitamente adapta-do àquela bela mulher que descansava despreocupadamente sobre um macio divã.

Longas tranças de cabelos pretos, envoltos numa rede de fi os dourados, pen-diam-lhe para um lado. Sobre um vestido largo de seda vermelha usava um casa-quinho curto, ricamente enfeitado com bordados, que combinava com as sandálias que abrigavam seus pequeninos pés. Uma calça de seda azul, fofa, até os tornozelos, completava o vestuário.

Suas delicadas mãos, nas quais não se via nenhuma jóia, deixavam escorregar, por entre os dedos, as pérolas de um rosário. Mas ela o fazia distraidamente, pois seus pensamentos pareciam estar longe de uma devoção ou prece.

Ouviram-se ruídos de passos que vinham de fora. A mulher ocultou rapida-mente a corrente de pérolas no seu vestuário e recostou-se ainda mais confortavelmente nos travesseiros.

Um velho serviçal entrou no aposento.Era um dos criados de confi ança da casa, pois do contrário, não poderia ter en-

trado sem se fazer anunciar. Arrastando os pés, um pouco inclinado para frente e com as mãos juntas, ele aproximou-se do sofá e aguardou que a bela mulher começasse a falar.

Com os olhos semicerrados ela olhava-o. Que esperasse um pouco, pensava, pois não estava disposta a receber seu recado. De modo algum poderia signifi car algo de bom. Finalmente a curiosidade a venceu:

- o que trazes, Mustafá? Inquiriu num tom de indiferença. - O nosso amo Abd ai Muttalib deseja falar com Amina por causa do menino. Amina recebê-lo-á aqui ou irá procurá-lo nos seus aposentos?

- Mustafá, sabes o que o velho quer com o menino? Essa pergunta soava agora bem diferente das anteriores.

Preocupação e cuidado de mãe vibravam nela e faziam com que ela se esqueces-se de todas as diferenças de classe.

- O nosso amo não o disse, respondeu pensativo o criado, mas eu posso ima-ginar do que se trata. Há dias vem falando que chegou o tempo de mandar Maomé à escola.

- É o que pensei! Exclamou Amina indignada. Eu ainda o acho delicado demais. Mas para isso o avô não tem compreensão. Quanto antes tornarmos a dis-cutir, tanto melhor será. Dize a Abd ai Muttalib que eu estarei pronta para recebê-lo daqui a uma... não, daqui a duas horas.

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O serviçal virou-se e começou a sair arrastando os pés, quando um chamado de Amina fê-lo parar.

- Mustafá, sabes onde está Maomé?- Onde estará ele? Perguntou o criado em resposta. Com certeza está no

pavilhão ajudando o empregado a conferir as mercadorias. Nada lhe agrada tanto como o esplendor das cores dos tapetes e das pedras preciosas. Com isso ele esquece até de beber e comer.

- Dize que o mandem o quanto antes a mim, solicitou Amina afavelmente. Ela sabia que não podia dar ordens a Mustafá, pois não era sua patroa. Mas a um pedido, ele era sempre acessível. Também agora iria procurar o menino e mandá-lo a sua mãe. Amina tornou a fi car a sós.

Suspirou profundamente. Tinha medo da palestra com o dono da casa, o seu sogro, sob cujo domínio se achava desde a morte de seu marido. Isso já há seis longos anos!

Pouco antes do nascimento de Maomé, aconteceu que numa viagem de ne-gócios Abdallah foi assaltado por bandidos e ferido mortalmente. Ainda o levaram agonizante até Meca, mas não alcançou com vida a casa paterna, onde morava com a sua jovem esposa. No funeral Amina desmaiara.

Longo tempo teve de permanecer na cama, doente. Durante essa grave en-fermidade deu à luz um menino, quase sem ter consciência disso.

A debilidade do menino, que apesar dos cuidadosos tratamentos de que era alvo, não crescia como devia, os médicos atribuíram-na ao trauma e ao pranto so-frido por Amina. Seu pai era um homem belo, de fi gura imponente. Maomé, contu-do, um menino pálido, fraquinho e sem alegria, dando a impressão de que preferia escolher seus próprios caminhos.

Sem pressa e sem demonstrar qualquer sorriso na sua face, entrou no apo-sento da mãe. Quase contrariado, aproximou-se do sofá e perguntou:

- Mandaste chamar-me, mãe. O que tens a dizer-me é realmente tão urgente?Sem repreender o tom desrespeitoso com que foram pronunciadas essas pa-

lavras, Amina disse amavelmente:- Senta-te, meu fi lho, e escuta: teu avô chegará aqui para falar comigo a teu

respeito. Eu sei que ele pretende mandar-te a uma escola. É verdade que tu ainda te sentes sempre indisposto e cansado?

- Cansado estou sempre, mãe, mas isto não importa. Deixa-me ir à escola, peço-te!

Sobressaltada, Amina revidou:- O que pensas, Maomé? O barulho e as maldades de tantos rapazes pode-

riam prejudicar-te. Eles zombariam de ti, por teres tão poucas forças e por causa da tua palidez. Eles. . .

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Indignado, o menino interrompeu-a:- Se eu continuar em casa, nunca me tornarei um homem! No meio dos ou-

tros as minhas forças manifestar-se-ão. Quero aprender, devo aprender. Quero fi car um homem sábio! Direi ao vovô que irei de muito bom grado à escola. Então podes dizer-lhe o que quiseres; ele me dará ouvidos.

Sardonicamente, o menino torcia os seus membros franzinos, e o seu belo rosto fazia caretas.

- Para que necessitarás de tanta erudição, Maomé? Inquiriu a mãe, que esta-va prestes a chorar.

Durante quase um ano ela havia feito tudo para adiar o momento tão temi-do da separação do seu idolatrado fi lho, e agora ele mesmo por si desejava freqüen-tar a escola.

- Por que eu desejo aprender, mãe? Perguntou Maomé, estendendo-se em cima de um dos tapetes no chão. Eu quero tornar-me um comerciante, mas não dos pequenos. Quero tornar-me o maior comerciante de toda a Síria, Arábia e suas adjacências. Todas as pedras preciosas devem passar pelas minhas mãos e todos os tecidos fi nos eu quero tocar. Para isso preciso saber ler e escrever e, antes de tudo, fazer contas. Ninguém deve lograr-me, mãe!

As ricas cortinas da porta estavam sendo empurradas cuidadosamente, e uma mulher corpulenta em trajes de serviçal entrou. Mãe e fi lho volveram suas cabeças em sua direção.

Enquanto Amina se deitava outra vez em sua cômoda posição, como es-tivera, Maomé levantou-se rapidamente num pulo muito ágil e pendurou-se no pescoço da mulher que entrou, a qual fi cou sem fôlego com o embate.

- Sara, Sara! Exultava com a voz completamente modifi cada. Será realidade; eu poderei aprender! Agora a mãe se queixou de que vovô tenciona mandar-me à escola. Ela outra vez não me compreende.

Sem consideração jorravam as suas palavras, sem notar como ofendia com elas a sua mãe, para a qual ele era a única alegria.

Sara, a velha ama, nesse ínterim afastou os braços magros do seu favorito, e deixou-o escorregar cuidadosamente ao chão. Aproximou-se com a familiaridade peculiar às velhas criadas.

- A senhora não quer pôr trajes melhores, em consideração ao dono da casa, que a espera? Sugeriu ela lisonjeiramente.

Amina sacudiu a pequena cabeça com as pesadas tranças. - Para ele tanto faz como estou vestida, replicou.

- Assim a patroa é injusta, censurou a criada. Abd aI Muttalib nunca falta com suas atenções. As melhores pedras preciosas, as mais cintilantes pérolas e os mais fi nos tecidos da galeria, ele manda para a viúva de seu fi lho!

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Isso em nada impressionou aquela mulher tão mimada. - Eu fi co como es-tou, disse ela. Além do mais, o tempo até a sua chegada é curto. Ainda temos muito a falar. Senta-te aqui conosco, Sara.

A criada obedeceu sem objeção; ela parecia estar acostumada a tais conver-sações íntimas.

- Eu não sabia que Maomé quer ir de bom grado à escola, começou Amina. Eu mesma sou contra, porque ele ainda está muito franzino para isso; também queria tê-lo comigo por mais um ano.

- O que te adianta, se eu fi car contigo, mãe! Exclamou o menino com tei-mosia. Poucas alegrias te proporciono. Tu mesma o confessas, às vezes. E eu quero aprender, aprender, aprender!

- Terás que te conformar, patroa, com o fato de que o menino está saindo da infância. Se é para ele tornar-se homem, então deve sair dos aposentos das mulheres e passar para as mãos dos homens.

- Está bem, já que ele mesmo o deseja, que assim seja feito, suspirou a mãe. Mas, Sara, vejo um grande perigo para ele na escolha da escola. Abd aI Muttalib quererá mandá-lo para a escola municipal, onde são ensinados os rapazes da seita dos adoradores de fetiches. Maomé ainda não está fi rmemente instruído na nossa crença. Ele abandoná-la-á como um velho vestuário.

- E a culpa de quem é, patroa? Perguntou Sara com indelicada intimidade.- Tu, atrevida, achas por acaso que eu faltei com minha obrigação de lhe

ministrar os ensinamentos necessários? Replicou Amina, irritada.- Tu ensinaste o menino, mas, em vivência, não lhe deste exemplos. Quando pôde

ele alguma vez ver que a tua crença oferece apoio, consolo ou estímulo para o bem?Maomé, que aparentemente não escutava, dirigiu-se para o lado onde Sara

estava sentada.- Tens razão, Sara, disse ele carinhosamente. Da mãe eu não pude aprender

tudo isso, mas sim de ti, bondosa como és, pelos teus exemplos.Novamente a cortante dor do ciúme feriu o coração da mãe.- Como podes julgar tão impiedosamente, meu fi lho? Disse em tom repre-

ensivo. Quem rezou contigo desde que tens a idade sufi ciente para dizer sozinho uma oração? Quem te contou de Jesus, o crucifi cado?

- Isso tu fi zeste, mãe, foi a rápida resposta de Maomé. Mas enquanto tu apenas me fi zeste imaginar o assassinato do portador da Verdade, Sara ensinou-me a amar o luminoso Filho de Deus, que, por amor aos homens, nasceu como criança numa manjedoura. Enquanto me ensinaste a dizer orações numa língua que nós dois não conhecemos, Sara conduziu-me aos pés do menino, para fazer minha prece.

Essa resposta soou de maneira pouco infantil, mas provinha do coração do menino; perceberam-no as duas mulheres, cujos olhos se umedeceram.

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Após curto silêncio, Amina tomou a palavra:- Seja como for, o principal é que crês. Se amas Jesus, já estou feliz. Mas dize-

me, meu fi lho, esse amor resistirá ao escárnio e à infl uência dos colegas?- Isso veremos, mãe. Hoje ainda não posso sabê-lo. Se a fé em Jesus é a Verdade,

como vós dizeis, então ela vencerá sobre tudo o mais. Se assim não for, então perecerá.Para Maomé essa conversa séria já se prolongara muito. Outra vez ele levan-

tou-se, deu um salto com inesperada agilidade e correu dali.As duas mulheres olharam-se mutuamente. Ambas amavam essa criança mal-

criada, mais do que tudo o que existia no mundo. Mas enquanto a mãe ignorava cegamente os defeitos do fi lho, Sara procurava corrigi-los com todas as suas forças.

Com amargura percebeu Amina que toda a ternura da alma do menino se dirigia à velha ama, pela qual muitas vezes ele chegou a esquecer completamente a mãe. Sempre que o ciúme lhe ardia no coração, ela pensava em afastar Sara. Porém, não podia imaginar a vida sem a ama que a criou.

Ainda jovem, Sara chegou à casa dos nobres Haschi, onde Amina acabara de nascer, como a mais nova das seis fi lhas. Sara tratou e cuidou da criança com incansável fi delidade, conduziu os seus primeiros passos e cercou-a de cuidados até desabrochar numa linda moça.

Então chegou o dia em que Amina devia acompanhar o seu esposo ao lar. Abdallah, o comerciante de jóias, que a escolhera para esposa, era rico.

Descendia, como Amina, de uma estirpe nobre, do tronco dos Koretschi. Con-trariando os costumes da família, ele tornara-se comerciante. Era judeu, o que fez com que o pai dela, antes de tudo, retardasse repetidas vezes seu consentimento. . .

Alguns dos seus antepassados haviam se convertido a essa estranha crença, à qual os netos se apegaram obstinadamente. Todos os membros da família de Ami-na, porém, adoravam os fetiches e sentiam-se protegidos e felizes. As leis rígidas dos judeus infundiam-lhes assombro.

Porém, no dia em que o pai quis dar o seu não defi nitivo, Amina confessou com lágrimas nos olhos que há muito já havia abjurado a crença de seus pais e se tornado cristã.

Seu pai e seu pretendente fi caram estupefatos naquele instante! Mas quando o pai quis expulsar a sua fi lha apóstata, Abdallah manteve de pé sua pretensão e levou a cristã para a sua casa, como esposa. Assim, também, ninguém precisava saber da deser-ção da fé da nobre moça. Aliviado, o pai olhava o futuro.

Em companhia de Amina, Sara abandonou o palácio dos Haschi, para contrair matrimônio no mesmo dia. Chorando, Amina confessara que fora Sara que a introdu-zira na nova doutrina.

A criada foi expulsa da casa e podia seguir o homem que há muito já era seu pre-tendente. Seu primeiro fi lho faleceu ao nascer, e assim pôde encarregar-se dos cuidados

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do pequeno Maomé, ao qual dedicou todo o amor e fi delidade, como uma mãe.Com lisonjas ela conseguiu que Amina se levantasse e que vestisse trajes me-

lhores em consideração ao visitante. Mal se havia aprontado, já Mustafá anunciava o seu senhor.

Amina sentou-se no divã, enquanto Sara colocava na mesa o café preparado às pressas, retirando-se em seguida para os fundos do aposento. Pois seria falta de decoro, se Amina tivesse recebido sozinha o visitante.

Com dignidade Abd aI Muttalib entrou. Apesar de seu físico avantajado, via-se nele a linhagem da nobreza. Seus passos eram vagarosos e pausados, denotando consciência de si. Cabelos e barba de um branco-neve circundavam o rosto amare-lo-bronzeado, de onde os olhos castanhos lançavam um olhar perscrutador.

Uma seda ricamente bordada, com tonalidades amarela e marrom, cobria o seu corpo robusto. A espada curva pendia da cinta, e correntes de pérolas adorna-vam-na. No indicador direito ele usava um anel com uma pedra excepcionalmente grande, de cor amarelo-marrom, que lhe servia de talismã e que nunca tirava.

Calçava sapatos de couro com enfeites, forrados com seda, os quais usava somente dentro de casa.

Suas saudações eram adequadas ao seu porte digno, mas com bastante frie-za. Ele havia se escudado com paciência e fi rmeza para enfrentar acertadamente todas as eventuais queixas da nora.

Após ter sentado e tomado silenciosamente a primeira xícara daquela be-bida marrom, fi xou o olhar em Amina. Será que ela sabia o motivo de sua vinda? Parecia que uma máscara ocultava seu rosto; nenhum traço demonstrava qual-quer comoção interna.

Pausadamente ele começou a falar, contando a cada instante com uma das costumeiras e rápidas objeções da nora. Mas ele pôde expor com toda a calma todos os seus pontos de vista. Amina não falou nenhuma palavra.

Quando disse tudo o que tinha a declarar, exclamou:- Vês, portanto, viúva de meu fi lho, que está no tempo de mandar Maomé

à escola.Ela perguntou num tom indiferente:- Em qual escola o matriculaste, pai de meu marido? Perplexo ao ex-

tremo, ele encarou a bela mulher. Tal reação ele não esperava e não achou de pronto uma resposta.

- Nós aqui temos apenas duas escolas, disse ele, aparentando impassibili-dade. Uma é freqüentada pelos fi dalgos, mas os professores pertencem à seita dos fetiches e não sabem nada; a outra pertence ao nosso templo, e o rabino Ben Mar-soch é um homem fundamentalmente erudito. Como Maomé nasceu numa família judaica, ele também deve crescer nesta crença.

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- Maomé é cristão, porquanto eu, mãe dele, pertenço a esta religião! Interrom-peu-o, agora, Amina, impetuosamente. Sua respiração ofegava, seus olhos faiscavam.

Calmo e sorridente, contemplava Abd aI Muttalib a jovem mulher.- Até agora te deixei proceder com ele como te aprouvesse, porquanto eu sa-

bia que os anos em que o menino crescia nos aposentos das mulheres eram poucos. Agora ele os abandonará e a sua educação passará para as minhas mãos. Eu, porém, sou judeu.

Severas e altivas soaram essas últimas palavras. Novamente Amina tentou replicar:

- Maomé ama a sua religião. Ele não a abandonará. Levarás inquietação à alma do menino.

- Um garoto de seis anos ainda não possui convicção própria. Com prazer adotará a crença do seu pai como se fosse a sua própria. Não falaremos mais sobre isso. Inicialmente eu havia planejado encaminhar o menino somente no começo do próximo mês para a escola, mas vejo que será melhor desabituar-vos, a ambos, de pensamentos errôneos. Assim, ele vai hoje mesmo comigo. A partir de hoje morará junto comigo nos aposentos que o seu pai ocupou antes. Uma vez por mês ele pode visitar-te, enquanto essas visitas não vierem a contrariar a educação.

O dono da casa falou. Não restava outra coisa senão obedecer.Sim, se Amina tivesse certeza de que Maomé se oporia a freqüentar a escola,

ela teria lutado por ele como uma pantera.Esforçava-se para ocultar as lágrimas que sempre de novo lhe escorriam dos

olhos e esperava o que Abd aI Muttalib ainda tinha a dizer.No mesmo tom reservado como até o momento, ele indagou se a viúva

do seu filho não tinha falta de alguma coisa e se todos os seus desejos estavam sendo atendidos.

Ela respondeu afi rmativamente.Outra vez ele a mirou com um olhar inquiridor, como se ponderasse se era

oportuno continuar a falar sobre aquilo que para ele era motivo de preocupação. Então esvaziou apressadamente duas dessas xícaras pequenas e disse:

- Tu ainda és nova e bela, Amina. Não é justo que continues levando uma vida solitária, estendida no divã. Deus tirou-te o marido, mas pela nossa lei é per-mitido casar-se novamente.

Abu Talib, meu fi lho mais novo, oferece-te por meu intermédio a sua mão. Ele quer manter-te como herança do seu irmão. Serás rica e respeitada. Outra vez estarás rodeada de alegrias como no começo do teu matrimônio.

Calou-se e encarou-a cheio de esperança, mas Amina não respondeu. Bem ela sabia do costume, segundo o qual os irmãos mais novos pedem a viúva do mais velho em casamento, porém esperava escapar disso.

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Abdallah tinha sido um homem bonito, mas Abu Talib era corcunda e man-cava. Ela arrepiava-se ao lembrar um casamento com aquela fi gura disforme. Porém, disso não podia dar demonstração. Refl etindo rapidamente, disse em voz baixa:

- Pai do meu marido, agradeço-vos pela vossa benevolência, a ti e a Abu Talib. Eu jurei que, antes de passarem sete anos após a morte de Abdallah, não me casaria de novo. Essa promessa sustentarei. Assim lhe dou provas de todo o amor e devotamento que a ele devo.

O ancião olhava para ela um pouco mais amável do que até então.- Essa promessa te honra, Amina. Geralmente as viúvas novas não podem esperar

o tempo para um novo matrimônio. Direi ao meu fi lho que ele tenha paciência por mais doze meses. Então prepararemos o casamento. Em pompa e brilho nada há de faltar.

Nesse momento, levantou-se. Julgou ter conseguido suas intenções. Podia vol-tar aos seus negócios. Antes de tudo, porém, devia procurar Maomé e levá-lo consigo. Devia ser evitado que sua mãe transmitisse quaisquer pensamentos ao menino.

Nada havia a temer, pois em Amina os planos de casamento com Abu Talib apagaram todos os demais sentimentos. Horrível! Amina chamou Sara e desabafou todas as suas mágoas com a fi el criada.

- Patroa, consolava esta, Abu Talib é um homem bom que também ama Maomé como se fosse seu próprio fi lho. Muitas vezes vi os dois juntos na melhor intimidade.

Isso Sara não devia ter dito. Outra vez se infl amou o ciúme no coração tão facilmente impressionável da mulher.

- Ele quer desviar-me o fi lho, para que mais depressa eu atenda aos seus desejos. Mas isso não acontecerá. Um ano de liberdade ganhei. Em um ano ainda pode acontecer muita coisa.

Todas as tentativas por parte de Sara, no sentido de persuadi-la, eram inú-teis. A criada resolveu calar-se e deixar tudo entregue ao tempo.

Mas, “em um ano pode acontecer muita coisa”, havia dito Amina. Não che-gou a passar a metade e a bela mulher achava-se deitada num esquife. Uma das do-enças epidêmicas que de vez em quando surgia, atacou-a traiçoeiramente e causou o fi m de sua vida terrena.

Sara havia tratado dela com fi delidade. Quando notou que a alma ia deixar o corpo, ela trouxe um crucifi xo de marfi m, para servir de consolo e apoio à agonizante.

Muito tempo Amina olhou para a cruz e logo depois fechou os olhos.- Conta-me da criança em Belém, Sara, rogava com voz fraca. Tenho medo

da morte e a cruz só conta disso.

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E Sara falou do amor misericordioso de Deus, daquele amor inapreensível, que mandou o próprio Filho para salvar a humanidade corrupta. Ela contou da vida do Filho de Deus e da majestosa entrada em Jerusalém.

Mas isso não trouxe paz para a agonizante. Inquieta, virava a bela cabeça em cima do travesseiro, de um lado para o outro.

Despercebido pelas mulheres, entrou no aposento o velho Abd aI Muttalib, não obstante saber que corria perigo de contágio.

- Dize-me uma palavra que me tome mais fácil a morte, Sara, implorava a agonizante.

A criada meditava. Nesse momento soou uma voz maravilhosa e cheia de paz, pelo aposento:

“E ainda que eu esteja peregrinando no vale sombrio, não temerei nenhum infortúnio, porque Tu estás comigo!”

Abd aI Muttalib pronunciou devagar e solenemente, com a mão direita estendi-da sobre a cama da viúva do seu fi lho, de sorte que a pedra amarelo-marrom reluzia.

- Pai, sussurrava Amina, concordo que Maomé se torne judeu.Nunca ela o havia chamado de pai. Nessa hora em que ele trouxe consolação

para a sua alma hesitante, esse nome lhe passou pelos lábios como coisa natural.E ele continuava a rezar salmos do rei, um após outro, até que se extinguiu a

respiração dela e sua alma começou a desprender-se do corpo.Sara caiu em pranto, ao pé do leito. Amina, que ela amava como irmã, estava

morta. Mas não era por isso que ela chorava. Suas lágrimas signifi cavam o fracasso que devia trazer tão graves conseqüências.

Nesse único momento em que Sara podia ter dado provas ao ancião de quanto mais consoladora e quantas mil vezes mais elevada é a fé cristã, acima de todas as outras crenças, nenhuma palavra lhe veio à mente.

O corpo inanimado tinha de ser retirado o quanto antes possível da casa. Abd aI Muttalib cuidava de tudo que se tornava necessário para resguardar os demais da casa de possíveis perigos de contágio.

Somente depois que os despojos tinham sido sepultados na cripta duma rocha, ao lado do pai, é que Maomé recebeu a notícia do falecimento de sua mãe.

Ele pranteou aquela que somente lhe demonstrou amor, mas o seu luto não perdurou muito. Nos seus passeios mensais logo se acostumou a, em lugar da mãe, procurar Sara, que abandonara a casa de Abd aI Muttalib e morava agora na cidade, junto com o seu marido, em uma casinha agradável.

Nessas ocasiões a velha serviçal esforçava-se para reparar o erro que julgava ter

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cometido, enquanto contava do menino Jesus, ao que Maomé escutava atentamente.Ele sabia que no leito de morte a mãe anuiu em que ele fi casse judeu, mas isso

não o atingia. Com afi nco ele procurou aprender tudo o que lhe foi dado na escola.Quando os professores falavam do prometido Messias, então delineava-se

um sorriso prematuro na sua fi sionomia. Ele sabia que o Messias já havia chegado e que fora assassinado pelo povo. Com energia, sempre usava a expressão “assassi-nado”, também perante Sara.

Nesse momento, ela advertia-o e procurava provar-lhe que a morte na cruz era algo determinado pela vontade de Deus. Assim, certo dia, ele disse veementemente:

- Se isto for assim, Sara, então tu me tiras a fé em Deus. Qual o pai que deixa voluntariamente assassinar o seu fi lho? E Deus, assim como eu escuto falarem Dele, é o melhor de todos os pais do mundo. Mas tu queres rebaixá-Lo!

Apavorada, Sara encarou o menino, que ousava ter sua própria opinião, di-ferente em tudo das outras.

- Maomé, segura-te fi rmemente em Deus, peço-te, implorava. Eu sou culpada por não te tornares cristão; assim sendo, torna-te pelo menos um judeu verdadeiro.

- Isto ainda não sei, Sara, disse Maomé categoricamente. Não posso tornar-me judeu por amor à mãe morta, se nada em mim se manifesta a favor disso. Tam-pouco por ti, a quem mais estimo neste mundo, não poderei tornar-me cristão. Sim, se desse para fazer uma fusão entre as duas religiões, então, isso me agradaria.

Sara inquietou-se devido à precocidade do menino. O que haveria de ser dele?Fisicamente ele se fortalecia, debaixo do regime masculino. A escola do tem-

plo em Meca cuidava não somente do intelecto dos seus educados, como também não se descuidava do robustecimento dos corpos.

Ao lado do rabino Ben Marsoch, um jovem grego ensinava os rapazes e ins-truía-os em diversas artes, principalmente em jogos e exercícios físicos.

Por essa razão, muitos pais conceituados, que não pertenciam à religião ju-daica, preferiam mandar seus fi lhos à escola do templo.

Nas aulas, porém, isso provocou certa divergência. Não podia dar certo ins-truir os adeptos dos fetiches juntamente com os judeus, na doutrina de Deus, em-bora sem embargo pudessem compartilhar as demais matérias.

Assim os alunos de crença ferrenha formaram um círculo interno, o qual gozava de especial proteção do rabino Ben Marsoch.

Após freqüentar um ano a escola, Maomé declarou não mais querer per-tencer a esse círculo. Não obstante, ele foi forçado com severidade inabalável a fre-qüentar as aulas com esse grupo. Toda resistência e teimosia de nada lhe adiantaram.

Mais ou menos por um ano prolongou-se essa rebelião contra professor e instrução, sem que o avô chegasse a ter conhecimento.

Então, sem qualquer motivo aparente, Maomé conformou-se. Da mesma

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maneira inesperada como há um ano, ele declarara a sua saída do círculo, agora pedia que lhe perdoassem a sua arbitrariedade e que o considerassem novamente como aluno ativo. Os professores regozijaram-se ante a incompreensível mudança no seu modo de pensar.

Foi Sara que conseguiu fazer o menino compreender que ele prejudicava mais a si mesmo, enquanto se rebelasse contra a autoridade.

- Aprende aquilo que te oferecem, Maomé! Ela havia dito inúmeras vezes. Tudo será útil, se o aprenderes direito. Mas se tu te recusas a escutar o que o rabino tem a dizer, como então quererás reconhecer o que é certo e errado nas suas oratórias?

Essa foi a maneira certa de convencê-lo. Ele conformou-se e tornou-se um aluno esforçado.

Depois de ter atingido mais de oito anos de idade, Maomé perdeu seu avô. Este faleceu suavemente, sem doença prévia, durante uma noite tranqüila. Atin-giu pouco mais de cem anos de idade; seu corpo repentinamente deixou de viver, enquanto seu espírito ainda mantinha vivacidade.

Maomé nunca foi muito chegado ao avô. Foi a única pessoa que ele temeu.Agora, seu tio Abu Talib encarregou-se da sua educação. Isso tornou o me-

nino feliz. Apesar do seu natural gosto pela beleza, não reparava nos defeitos físi-cos do tio, pois sentia intuitivamente apenas a infantil e pura alma do homem.

Com grande amor Abu Talib veio ao seu encontro e fez tudo a fi m de complementar, por meio da infl uência que exercia sobre sua alma, a educação na escola do templo, que era fundamentada exclusivamente em bases intelectuais. Maomé sempre o encontrava, quando nas suas horas de folga ia procurá-lo na casa paterna, da qual ele fi cou afastado durante dois anos.

O que Abu Talib lhe outorgou em valores interiores, ele o recebeu numa sensação de contínua felicidade, sem fi car consciente disso. A sua índole distraída e autoritária abrandou-se; nos seus olhos e na sua boca estampava-se um alegre sorriso em lugar do sarcasmo que tantas vezes deslizava sobre os mesmos.

Com grande contentamento Abu Talib notou o desabrochar de Maomé. Ele pressentiu ricos tesouros na alma do rapaz e consagrou todos os seus esforços no sentido de trazê-los à tona.

Foi por essa época que o rapaz foi atacado repentinamente por crises con-vulsivas inexplicáveis. Com um grito angustioso ele caiu no chão e ali fi cou deita-do, debatendo os membros.

Assustados ao extremo, os colegas afastaram-se dele. Enquanto isso, o rabino Ben Marsoch, que o julgou possesso, rezava diante dele sem obter resultado. Nin-guém ousava tocá-lo nesse estado, e ele debatia-se cada vez com mais violência.

Finalmente chegou um médico. Dispunha de tudo para o tratamento e disse que as convulsões eram conseqüência do seu físico muito delicado. Não

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devia ser esquecido que o rapaz ainda não esquecera a morte de seu avô.Não devia ser forçado excessivamente com estudos. O rabino Ben Marsoch

não quis compreender. Pois, como Maomé havia se tornado um excelente aluno, não lhe aprazia excluí-lo das aulas.

Então o médico falou com o assustado Abu Talib. No seu amor encontrou uma saída.

- Projetei uma longa viagem para a Síria, disse ele. Levarei o rapaz junto. O clima diferente e a contemplação de tantas novidades lhe farão bem. Depois que voltarmos, poderemos tomar nova decisão.

O médico concordou e pouco tempo depois iniciaram a viagem. Abu Talib não era comerciante como seu pai e seu irmão Abdallah, e Maomé não sabia ainda qual era a sua ocupação, embora quisesse muito saber.

Ele perguntou ao tio o motivo pelo qual ia empreender a viagem, mas este, que sempre respondera a todas as perguntas com a maior amabilidade, disse apenas sucintamente:

- Tenho negócios na Síria.O rapaz tão ávido em saber, não podendo receber explicação, preocupou-

se somente com os preparativos da viagem. Um considerável número de acompa-nhantes formava o séquito; para cada qual foi preparado um camelo magnifi ca-mente arreado.

Admirado, Maomé corria de um camelo para outro. Ele viu que todos os xa-réus traziam igual insígnia, cada um no mesmo canto: uma espada curva, encimada por um pássaro multicor.

- Que é isso? E o que signifi ca? Queria saber. Mustafá explicou-lhe: - Esse é o brasão de tua família, dos Koretschi, rapaz.Com orgulho poderás também, um dia, usá-lo.- Mas tem de ter uma signifi cação! insistiu Maomé, passando os dedos por

cima da insígnia.- Sem dúvida, tem uma signifi cação: como pássaro deveis elevar-vos, supe-

rando a todos os outros, e com a agudeza da espada deveis saber combater. Nota bem, Maomé! Não te tornes comerciante como o teu pai, mas segue o exemplo de Abu Talib, e terás honra perante os homens e bênçãos em teus caminhos.

- Qual a profi ssão que o meu tio exerce? Perguntou Maomé, ligeiramente alegre por encontrar uma oportunidade para a solução dessa tão importante ques-tão para ele.

- Profi ssão? Disse o serviçal, nenhuma.Nisso virou-se para o camelo, sobre cujo lombo tratava de prender uma

magnífi ca sela.Irritado, Maomé pisoteava o chão. Assim um empregado não podia res-

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ponder-lhe! Devia queixar-se a Abu Talib, porém, se o fi zesse, seria descoberta sua curiosidade. Portanto, devia calar-se e aceitar a evasiva.

Apressadamente correu para um dos outros serviçais e perguntou:- Qual é o camelo que irei montar?- Não sei, soou a resposta insatisfatória. O jovem senhor deve perguntar a

Abu Talib pessoalmente.Finalmente chegou a manhã que deu início à viagem. O sol ainda não nas-

cera no horizonte, e os camelos dos cavaleiros já esperavam no espaçoso pátio que circundava o palácio dos Koretschi. Uma enorme fi leira de animais de carga espera-va fora, com seus tratadores que haviam sido contratados para essa viagem.

Então Abu Talib saiu de casa e, servindo-se de uma escada, subiu na sua mon-taria. Todos os outros homens subiram, enquanto o camelo se agachava até o chão; somente ele, devido ao seu defeito físico, tinha de escolher essa outra modalidade.

Mas, para Maomé, o que em outros homens talvez parecesse desprezível ou ridículo, isso, em Abu Talib, deu aos seus olhos um brilho fora do comum. Tudo o tio fazia diferente dos outros homens!

E agora esse tio o chamava para servir-se igualmente da escada e subir para junto dele. Fê-lo apressado e tomou orgulhoso seu lugar na sela especialmente co-locada, sobre a qual devia fazer o percurso da viagem.

Era magnífi co que ele não tivesse que fi car só em cima de um camelo. Se assim fosse, durante horas não teria com quem conversar. E ele tinha tanta coisa a perguntar.

Lentamente a caravana se pôs em movimento. Como um animal caminhava atrás do outro, formou-se uma longa fi leira. Assim que deixaram Meca atrás de si, fi -zeram os animais acelerarem os passos. Tomaram o rumo monte abaixo, num declive amenizado em direção a noroeste, e a marcha dos camelos tornava-se cada vez mais animada. De início Maomé teve bastante oportunidade para apreciar, mas antes do pôr-do-sol, o seu interesse já arrefecera. A região tornou-se deserta e despovoada.

Seguiam o rumo, à beira de um deserto. Quando começou a soprar um ven-to fresco, o mesmo levantava nuvens de areia que vinham ao encontro deles. Viaja-ram sem interrupção na primeira noite. o rapaz dormiu na sela. Somente na noite seguinte foram levantadas barracas.

Com olhos atentos, Maomé acompanhava os afazeres do pessoal no acam-pamento. Viu como colocaram uma imagem horrenda, de pedra, ossos e farrapos, representando o fetiche; observou como eles dançavam em redor e como se alegra-vam em descansar debaixo de sua proteção.

- Quem fez aquele objeto? Perguntou Maomé ao seu tio, junto ao qual vol-tou, preenchido de tudo o que havia presenciado.

- Provavelmente um fetichista. Nós diríamos sacerdote, se é que um ateu como esse merece tal nome.

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- Então essa imagem não pode representar nenhum deus, nem tampouco proteger as criaturas humanas, uma vez que é feita pela mão do próprio homem, falou rapidamente Maomé, revoltado por ver tanta tolice. Como podem ser tão tolos os seres humanos e crerem em semelhante coisa!

- Eles nada sabem de melhor. Ninguém lhes contou da existência de Deus, acalmava-o Abu Talib.

- Por que ninguém lhes conta Dele? Indignou-se o rapaz.- Eles não compreenderiam, respondeu o tio calmamente.O pensamento de que existiam homens ao lado dele que seguiam caminhos

falsos, unicamente porque ninguém se esforçava em indicar-lhes os certos, não mais abandonou Maomé. Ele, que nunca pensou nos outros, sentiu dor ao lembrar-se dos adoradores de fetiches, que até então não lhe fora dado observar.

Os rapazes na escola nunca falaram dos seus deuses. Ele julgou que fetiche era um outro nome de Deus. Também notou que os rapazes da nobreza não se inco-modavam com assuntos de crenças. Isso lhe parecia menos antinatural do que esse comovente apego daqueles simples homens a esses costumes tradicionais.

Esses novos pensamentos não o deixaram ter sossego. Durante a noite, le-vantou-se da cama e saiu da barraca, procurando refrescar-se ao ar livre.

Ali se estendia sobre ele o céu estrelado na sua aparente infi nidade. Cintilan-tes e vibrantes, essas luzes do fi rmamento davam testemunho da grandeza Daquele que as criou.

Todos os pensamentos confusos e estranhos se afastaram do rapaz, o qual pela primeira vez sentiu na calada da noite as vozes do cosmo falarem a sua alma. Involunta-riamente os seus braços se levantaram ao encontro desse esplendor e inconscientemente afl oravam aos seus lábios as palavras que ele aprendeu na escola:

“Senhor, como são grandes e imensas as Tuas obras; tudo ordenaste sabiamente!”O que até então havia sido para ele matéria morta para aprender de cor, agora,

nele tornou-se vívido. Sentiu a sua alma tomada por forças, às quais teve de curvar-se.Após ter passado o primeiro estremecimento, ele deixou-se cair na areia que

ainda estava quente, colocou as mãos embaixo da cabeça e começou a meditar sobre a causa pela qual ele se sentira até oprimido dentro da barraca.

Então novamente se lembrou dos pobres adeptos de fetiches. Como poderia ser possível que esses homens, noite após noite, vissem essas coisas e cressem nessas fi guras de palha e farrapos!

Devia vir alguém que lhes mostrasse algo melhor.O tio havia dito que eles não compreenderiam outra coisa! Será que alguém

já empreendera uma tentativa? Devia ser possível convencer essa gente.Era um dever natural daqueles que sabiam melhor dar esclarecimentos aos

outros. Durante horas ele fi cou deitado quieto, meditando. Então, brotou-lhe do

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íntimo o resultado das suas refl exões:“Senhor, Deus de Israel, se ninguém o quer empreender, então eu o quero,

assim que tenha idade sufi ciente para isso! Ajuda-me a fazê-lo.”Era a primeira prece independente que jorrou da alma do rapaz, e essa prece,

sentida profundamente por amor a outros homens, achou seu caminho para o tro-no do Todo-poderoso. Suave paz invadiu o rapaz, como nunca sentira antes; uma esperança tranqüilizante e uma alegria sobre o porvir afl uíram-lhe.

Essa noite ele passou ao ar livre, e na manhã seguinte apareceu com os olhos tão radiantes diante de Abu Talib, que este não pôde compreender o milagre.

Os dias transcorriam monótonos, mas Maomé, que tão depressa se enfadava de todas as coisas, entreteve-se com seus próprios pensamentos e conservou um alegre equilíbrio.

Um dia surgiu uma agitação na caravana. O condutor aproximou-se de Abu Talib e perguntou se não achava preferível acampar o quanto antes, porque temia a aproxima-ção de uma tempestade de areia. No entanto, como se achavam pouco protegidos nesse lugar, Abu Talib achou aconselhável prosseguirem a viagem um pouco mais adiante.

Um vento quente vinha se aproximando deles pelas costas, trazendo grandes mas-sas de areia consigo. Então, viram-se forçados a descer.

Os camelos deitaram-se rapidamente e os homens procuraram proteger-se atrás e no meio deles. A areia caiu tão densamente, que ameaçou soterrar tudo o que estava vivo. O coração de Maomé batia fortemente. Não sentiu medo, pois estava por demais absorto nas emoções pelas quais havia passado.

Trêmulos de susto, os cameleiros repentinamente começaram a entoar uma canção monótona, cujo texto Maomé não pôde entender. Um dos homens moveu-se agachado, e arrastou-se para o camelo da frente, sobre cujas costas colocou e amarrou uma das abjetas fi guras de fetiche. Esta inclinou-se no vento, foi sacudida, mas fi cou de pé.

Então os homens começaram a regozijar-se: o seu fetiche dominaria a tempes-tade e eles seriam poupados.

Na alma do rapaz algo começou a agitar-se. Será que esse hediondo ídolo do-minaria? Antes mesmo que Abu Talib pudesse percebê-lo, Maomé saiu do seu abrigo; deslizou serpenteante até o camelo da frente e subiu nas suas costas, de sorte que fi cou ao lado do fetiche, em pé.

Um grito de muitas gargantas ressoou. Todos o advertiram de que voltasse ao seu lugar seguro e de que seria sua morte, se não o fi zesse. Com gesto autoritário movi-mentou a cabeça para trás.

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Nesse instante parecia que por alguns minutos a ventania parou, e o rapaz apro-veitou essa pausa para exclamar aos homens o que agitava sua alma:

- Por que eu não haveria de fi car aqui tão bem quanto o vosso fetiche? Se ele não está em perigo, eu estou muitas vezes mais seguro. Sabeis que ele foi feito por mãos humanas, mas eu fui criado por Deus! Por Deus, o mais supremo nos céus e na Terra! Escutai, ó homens! Eu sou criatura de Deus e serei o Seu servo quando alcançar a idade em que Ele poderá precisar dos meus serviços!

Perplexos, os homens fi tavam-no. O que ele disse?A tempestade continuou. Maomé teve de calar-se. Mas ele permaneceu em pé.

E nem se segurou.Orando, estendeu os braços ao céu. Isso já se tornara um hábito para ele, desde

a noite em que sentiu aquela profunda emoção na alma. Sua fi gura esbelta oscilava na tempestade, porém, nada lhe aconteceu.

E outra vez a ventania parou por uns instantes. Então Maomé exclamou, extasiado:

- Pedi a Deus, o Todo-poderoso, que a tempestade cessasse. Cessará se tirardes o fetiche daqui. Quereis fazê-lo? Ele vos mostrou que não pode proteger ninguém. Agora deixai que eu vos mostre que Deus, o Senhor, pode!

Como que dominado pelas palavras infantis, um dos árabes levantou-se e arran-cou dali o fetiche. Com isso ele chegou a rolar no chão e a imagem caiu no meio de suas pernas, quebrando-se. O que certamente para eles teria signifi cado um mau augúrio, agora lhes parecia uma prova ditosa do poder Divino.

Uma única rajada de vento levantou-se ainda e varreu para longe no deserto os farrapos do ídolo. Então o vento cessou. O ar acalmou-se e os animais respiraram e levantaram-se. O temporal passara.

No meio dos homens contentes, encontrava-se em pé o rapaz, dominado pelo acontecido. Tudo isso veio sem que ele pudesse antecipadamente raciocinar e sem que pudesse tornar-se consciente da transcendência das suas palavras.

Ante esse acontecimento sentiu-se arrebatado e fortalecido. Quão grande era Deus, quão Todo-poderoso! E ele pôde anunciá-Lo! Realmente, Deus já agora se utiliza-ra dele. Agora também consagraria a vida inteira a Ele.

Caminhou devagar para a sua montaria e nela subiu. Depois de sentar-se, encos-tou-se inconscientemente no tio. Abu Talib compreendeu o que se passava na alma do rapaz. Não disse nenhuma palavra sobre o que havia se passado. Também não corres-pondeu à inconsciente carícia. Deixou Maomé recuperar sozinho o equilíbrio anímico.

Seguiram-se dias calmos e repletos de paz. Abu Talib percebeu que o rapaz pas-sava por uma transformação íntima, para a qual qualquer palavra humana seria supér-fl ua. Deixou-o completamente entregue aos seus pensamentos e apenas cuidava para que ele não se esquecesse de comer.

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A região mudou de aspecto. Na direção que seguiam, começou uma subida suave monte acima. O deserto de areia fi cou para trás. Para onde quer que dirigis-sem seus olhares, viam rochas cobertas de vegetação e lindos pomares.

- Isto é a Síria? Perguntou Maomé, como que despertando de um sonho. Abu Talib confi rmou que sim e que dali para frente tudo haveria de fi car cada dia mais belo.

- Para onde iremos na Síria? Como se chama a cidade onde fi caremos? In-terrogou o rapaz.

Ficou surpreso ao saber que dependeria das notícias que o tio aguardava para a próxima noite.

- Chegaremos amanhã num convento, onde encontraremos algum recado. Nisso se baseará a continuidade da minha viagem. Nesse convento moram somente homens devotos, que são servos de Deus, Maomé. Terás prazer em vê-los e em po-der falar com eles.

- São judeus? Perguntou solicitamente o rapaz.- Não, são cristãos, e afi rmam ter sido um dos discípulos de Cristo que fun-

dou a comunidade. Talvez eles te contem sobre isso, se solicitares.- É conveniente para mim escutar uma vez verdadeiros cristãos, declarou o

rapaz. Com exceção de Sara, ainda não vi nenhum.- Tua mãe também era cristã, não o esqueças, rapaz, admoestou Abu Talib;

porém, como resposta, obteve:- Ah! eu também ainda era novo, quando mamãe vivia, mas sempre senti

que ela não dava muita importância a sua crença, pois com a Sara eu aprendi mais do que com ela.

- Mas era uma boa mulher; tu ainda não podes julgá-la acertadamente, repe-liu Abu Talib, a quem doeu escutar o fi lho falar dessa maneira sobre sua mãe.

Entretanto, essa leve repreensão não impediu Maomé de defender a sua opi-nião. Em muitas coisas, intimamente, o tio tinha de dar-lhe razão. Por isso achou mais acertado interromper a conversa.

Ao anoitecer do dia seguinte, chegaram a um convento, que se encontrava situado numa fértil planície, no meio de pomares em fl orescência. Monges vestidos com longas batinas de cor marrom e com uma corda branca amarrada pelos qua-dris, trabalhavam nas árvores e nos canteiros.

Com a aproximação da caravana eles levantaram os olhos. Então dois deles chegaram ao portão, o qual se achava no baixo muro branco que cercava aquele imen-so terreno. O portão foi aberto, mas somente Abu Talib, com sua montaria, entrou, enquanto, após ligeira chamada, a caravana se pôs novamente em movimento.

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Um pouco assustado, Maomé olhou para os companheiros, que iam seguin-do viagem:

- Para onde eles vão? Ficaremos sozinhos aqui? Interrogou, um tanto ame-drontado.

Abu Talib não teve tempo para responder. Com muita difi culdade ele desceu de sua montaria, que estava bem adestrada para suportar com paciência todos os movimentos do seu aleijado cavaleiro.

Maomé saltou atrás com agilidade e, quando se defrontou com os monges, olhou admirado em redor de si. Um outro irmão, que acorrera, pegou nas rédeas e conduziu o camelo para fora dali. E este também desapareceu. O rapaz sentiu um mal-estar.

Involuntariamente ele pegou na mão de Abu Talib e disse imperiosamente:- Tu fi cas aqui!Com isso os monges tiveram a sua atenção voltada para o jovem hóspede.

Nos seus rostos estampava-se a admiração, mas não perguntaram nada; conduzi-ram os hóspedes para o interior do convento, onde estava preparado um aposento para receber Abu Talib.

Prontamente prepararam também uma cama para o rapaz e serviram a am-bos uma ligeira refeição. Depois disso, os irmãos retiraram-se e deixaram tio e rapaz entregues ao repouso da noite.

Maomé muito quis saber: por que os monges usavam esses hábitos compridos; por que não tinham cintos bordados, mas sim essas longas e feias cordas cheias de nós.

Abu Talib explicou da maneira que sabia. A pergunta que ele esperava, antes de todas, não foi pronunciada. Então, ele mesmo a fez, embora não soubesse nenhuma resposta para ela.

- Tu viste, Maomé, que todos esses monges têm os cabelos tosados no mesmo lugar. Sabes por quê?

Sem hesitar o rapaz respondeu:- Eu penso que eles rasparam os cabelos para que a força de cima possa pe-

netrar melhor neles.- A força de cima? Perguntou Abu Talib admirado. O que sabes disso?- Eu mesmo a senti, replicou Maomé, resoluto e sem a mínima vaidade.Um monge entrou e trouxe notícias para o tio, o qual se aprofundou nos pa-

péis a ele entregues e ordenou que o rapaz fosse deitar. Este achou muito esquisito não poder fazer sua oração ao ar livre, conforme já se tornara hábito para ele, desde há pouco tempo. Antes mesmo que ele chegasse a resolver se podia pedir para sair para fora, no pátio, Abu Talib levantou-se e deixou o aposento. Então o rapaz rezou em pé, na frente da sua cama, e logo depois se deitou, adormecendo rapidamente.

Na manhã seguinte o tio levou Maomé à presença do superior do convento.

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Abade Paulo ainda era um homem moço, com olhos ardentes e traços severos. Lan-çou um olhar penetrante no rapaz.

- É como nós presumíamos, disse, dirigindo-se depois para Abu Talib, po-rém eu quero mandar chamar o padre Benjamin. Ele verá melhor do que eu o que pode ser visto.

O padre foi chamado. Os homens esperaram em silêncio e Maomé, que se sentiu deprimido por algo inexplicável, nem levantou os olhos, que estavam sempre tão sedentos de saber.

Então entrou um homem de idade, o qual, obedecendo à chamada do abade, colocou-se ao lado deste e inquiriu Maomé:

- De que crença és, meu fi lho?Este levantou rapidamente os olhos e replicou sem raciocinar:- Sou da crença de que os adoradores de fetiches devem ser auxiliados.Abade e padre trocaram um rápido olhar. Abu Talib, porém, embaraçado

com a resposta do rapaz, dirigiu-se a este explicando:- Tu entendeste mal a pergunta do padre. Ele queria saber a que crença per-

tences; se és pagão, judeu ou cristão. Maomé encarou o padre.- Não sou nada, respondeu com impassibilidade.Aí, Abu Talib assustou-se mais ainda e quis dar esclarecimentos ao rapaz;

entretanto, o abade interrompeu-o:- Deves ter nascido em alguma religião e nela recebido ensinamentos. A esta,

então, pertences, não é, meu fi lho?Maomé sacudiu a cabeça, característica de sua índole liberal.- Eu nasci como cristão, mas ainda não cheguei a conhecer verdadeiros cris-

tãos. Depois cresci entre judeus e fui ensinado junto com judeus e fetichistas. Não sou cristão; judeu também não gosto de ser, porquanto a sua crença estagnou e não pode ir adiante. Então, encontrei Deus, bem sozinho. Agora só posso dizer: eu sou Maomé, que crê em Deus!

O embaraço de Abu Talib aumentava cada vez mais; o abade, todavia, lançou um olhar bondoso para o rapaz e disse:

- Se aquilo que dizes, com toda a tua convicção e de toda a tua alma, estiver certo, então está bom. Seja sempre Maomé, que acredita em Deus, até achares algo melhor.

O padre Benjamin dirigiu-se outra vez ao rapaz:- Em que reconheceste que Aquele que achaste é realmente Deus?Com a rapidez de um raio veio a resposta:- Na Sua grandeza e onipotência.Ao proferir essas palavras, parecia a Maomé que forças invisíveis o elevavam.

Teve tonturas. Vastas planícies estendiam-se diante dos seus olhos espirituais e uma cla-ridade rodeou-o.

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Isso levou apenas poucos instantes, então ele tornou a si, porém uma grande sensação de felicidade íntima o dominava.

O mais novo dos padres entrou e recebeu ordem para mostrar a Maomé o jardim do convento. Assim que os dois saíram do aposento, o padre Benjamin disse pensativo:

- E como esperávamos, pela mensagem que nos foi dada: esse rapaz é algo fora do comum. Deus, o Senhor, destinou-o para levar o Seu saber a longínquas regiões. Um portador da Verdade ele deverá ser, não somente para o seu povo, como também para inúmeros homens da Terra.

- Queres confi ar-nos o rapaz, Abu Talib? Perguntou o abade. Com muito prazer formaremos a sua alma. Certo é que ainda não tivemos alunos tão jovens no convento, mas também nunca alguém com dotes tão extraordinários cruzou nosso caminho.

Após um breve entendimento, o tio concordou e o rapaz foi chamado.- Escuta, Maomé, tomou o abade a palavra, quando o rapaz se encontrava ansio-

so na sua frente, seu tio recebeu notícias que o chamam a lugares distantes, para onde não poderá levar-te. Como disseste que ainda não tiveste a oportunidade de conhecer cris-tãos, então vamos oferecer-te esta ocasião. Fica conosco no convento, enquanto Abu Talib irá prosseguindo sua viagem. Tu podes aprender tudo aquilo que nós próprios sabemos.

Incerto, Maomé olhava para Abu Talib. Será que o tio estava de acordo? O melhor seria convencer-se disso, antes de responder.

- Tu aprovas que eu fi que? Perguntou. Abu Talib acenou afi rmativamente.- Então eu fi co com boa vontade convosco no convento, porquanto me agrada

aqui. Mas para que não vos arrependais de me ter dado internato, quero dizer, desde já, que até agora sempre tenho imposto a minha vontade.

O abade fez menção de dizer algo em resposta, mas Maomé não o deixou e con-tinuou:

- Obedecerei aqui, mas nem sempre o conseguirei logo; por isso digo-o anteci-padamente.

Essas palavras foram pronunciadas de maneira tão infantil, que conquistaram os corações do abade e do padre. Eles asseveraram que o tolerariam de bom gosto ao redor de si e que a vida simples e regrada do convento já por si sufocaria qualquer vontade própria.

Tudo se passou com tanta rapidez, que o rapaz quase não teve tempo para refl e-xões. Abu Talib partira, e Maomé encontrava-se numa pequena cela, que de agora em diante lhe serviria como morada. Ainda não havia conseguido saber qual a profi ssão que o seu tio exercia! Isso o preocupava muito.

Maomé podia tomar parte nas refeições com os alunos mais novos do convento; também foi admitido nas aulas, depois de um exame que provou ter ele sido excelente-mente preparado na escola do templo de Meca.

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Em pouco tempo, apelidaram-no de “pequeno escriba”, expressão esta que provocou indignação da parte de Maomé. Doutor nas escrituras sagradas ele não queria ser. “Experiente da vida” parecia-lhe ser melhor.

Como agora lhe sobravam algumas horas do dia, durante as quais os outros se extenuavam em adquirir um saber que ele já possuía, foi decidido que durante as horas vagas ajudasse o jardineiro.

Isso foi motivo de grande alegria para o rapaz, que era tão ligado à natureza. Ele encurtava o repouso unicamente para poder estar o mais possível no jardim. Diversos trabalhos lhe couberam, para os quais as suas mãos de criança possuíam uma habilidade especial, e o que tocava desenvolvia-se bem.

Se algumas vezes chovia fortemente, impedindo-o de fi car ao ar livre, então se ocupava com um trabalho na cela, ao qual se dedicava espontaneamente: escrevia textos da doutrina judaica, que lhe pareciam conter algo da doutrina cristã. Logo depois começou a procurar contradições entre as duas.

Havia recebido permissão para perguntar sobre tudo aquilo que lhe pareces-se duvidoso. Uma das primeiras perguntas foi sobre a morte de Jesus na cruz.

- Por que Deus, o Todo-poderoso, permitiu que Seu Filho fosse assassinado? Perguntou com insistência.

Os monges olharam-se e fi caram embaraçados. Um repreendeu-o por pen-sar de tal modo.

- Tu não deves falar aqui de assassinato, disse. Jesus Cristo morreu para tra-zer à humanidade o resgate de suas culpas!

- Nisso eu não acredito, retrucou o rapaz com veemência. A salvação, o Filho de Deus trouxe-a aos homens através de sua presença e de sua Palavra. Sua morte apenas aumentou enormemente a culpa dos homens. Que Deus, o Senhor, não quisesse arrancar a humanidade do abismo, isso eu compreendo. Ela era má demais. Mas que Ele deixasse fi car o Filho para vítima, isso para mim é incompreensível e incompatível com o Seu ser.

- Muita coisa mais ainda não entenderás, soou a resposta insatisfatória do abade.

Desse modo, Maomé não foi auxiliado, e então procurou de novo encontrar sozinho as respostas. Às vezes se insinuava a tentação:

“Não cismes! Joga fora tudo isso como coisa incompreendida. Vive alegre e contente todo o dia, assim como ele se apresenta, e não o ensombres por ti mesmo com raciocínios, para os quais ainda és muito novo.”

Por pouco teria cedido a essas vozes que impulsionavam o seu íntimo, po-rém, a sua experiência vivencial ainda pairava luminosa e bastante nítida diante de sua alma. Ele tinha que continuar a pesquisar.

Uma palavra de um jovem padre veio lançar um pouco de luz na torrente de seus pensamentos impetuosos. Esse jovem professor certo dia esclareceu aos alu-

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nos a necessidade da disciplina no convento. Sem ela cada um faria o que bem lhe aprouvesse, porquanto, embora Deus tenha concedido ao homem o livre-arbítrio para proceder como quiser, pela sua própria vontade, o homem não sabe aproveitar esse dom; por isso deve subordinar-se à disciplina terrena!

A palavra “livre-arbítrio” vibrou em Maomé. Com esforço dominou o im-pulso de fazer, já durante a aula, mais perguntas a esse respeito. No fi nal da aula, todavia, Maomé procurou o padre e fez suas perguntas, as quais deram provas de uma vivacidade intrínseca.

O monge esforçava-se seriamente para acalmar a alma do rapaz. Ele, aliás, nunca se ocupou com tais ponderações, mas pôde penetrar intimamente nas idéias de Maomé.

- Pondera nisso uma vez, padre, exclamou entusiasmado. O livre-arbítrio é uma das maiores dádivas que Deus deu à humanidade! Se o empregarmos certo, então, po-deremos ascender às alturas, ao passo que do contrário fi caremos sempre presos.

O doutrinador não respondeu. Esses pensamentos eram altos demais para ele. O rapaz, porém, continuou:

- Por isso Deus também não interveio, quando Cristo foi assassinado. Ele tinha que deixar os homens sofrerem as conseqüências do seu próprio querer. Real-mente, Ele é grande, acima de toda a imaginação humana! E eu, tolo, queria acusá-Lo justamente por isso!

- Rapaz, pensa no que dizes; como podes atrever-te a falar dessa maneira do Todo-poderoso! Repreendeu o professor, pois ele não era mais capaz de seguir os pensamentos do jovem.

- Apenas me arrependo do modo de pensar anterior, defendeu-se Maomé.Então calou-se. Tanta coisa lhe afl uía intimamente em reconhecimentos,

que ele não dava conta de tudo.Mas o padre foi procurar o abade, para informar-lhe sobre a conversação.- Já te disse, padre Jakobus, sorriu o superior, que Maomé é um rapaz extra-

ordinário. Tu não podes exigir que o espírito infantil compreenda as grandes coisas, como um homem maduro pode compreender. Não o intimides, senão ele perde a confi ança em ti e em todos nós. Isso seria grave, porque não poderíamos controlar o que se passa nele.

Em vista dessa palestra, o abade resolveu encarregar-se sozinho da educação do rapaz. Concedeu-lhe diariamente uma hora, durante a qual ele podia fi car tra-balhando ao seu lado e formular as perguntas que quisesse.

Isso agradou a Maomé, e ele envidou todos os esforços para aproveitar essa oportunidade que lhe fora facultada. Quanto mais paciência o abade demonstrava, tanto mais liberais ousavam sair as perguntas de sua alma.

Abade Paulo nunca lhe chamou a atenção sobre expressões audaciosas, mas

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também nunca lhe deu demonstração de que não estava à altura para acompanhar os seus elevados pensamentos.

Já há muito examinara os escritos de Maomé, e fi cara admirado com que nitidez o rapaz descobrira as diferenças entre as duas doutrinas.

Desse modo se passou mais de um ano. No maravilhoso clima da Síria, Ma-omé recuperava-se. As perigosas crises convulsivas, que ainda algumas vezes se re-petiram, desapareceram, no entanto, nos últimos meses.

Os monges fi zeram de tudo para fortifi car o seu corpo, mas para o espírito pouco puderam fazer. Ensinaram-lhe tudo o que sabiam e tiveram de passar pela experiência de que, com poucas palavras, o aluno demolia sempre qualquer edifi ca-ção das suas sabedorias erigidas em bases artifi ciais.

Um dia, abade Paulo perguntou:- Então, Maomé, agora já conheces verdadeiros cristãos. Comparaste a nossa

doutrina com a dos judeus. Para qual das duas te sentes atraído: queres ser cristão ou judeu?

- Nenhum dos dois, confessou francamente Maomé. O judaísmo foi maravi-lhoso, da maneira como foi iniciado. Mas então os homens perverteram-no, e agora estagnou, porque os tolos ainda esperam o Messias, em vez de reconhecerem que ele já peregrinou pela Terra. Agora o judaísmo nunca mais progredirá. Excluiu-se da própria vida.

- E o cristianismo? Animava-o o abade, ao qual agradaram as ponderações do jovem. Como encaras o cristianismo?

- Seria a continuação do judaísmo, disse Maomé meditando. Reconheceu o Messias, mas não faz desse reconhecimento o uso devido.

- Rapaz, como tu entendes isso? Perguntou o abade, espantado.Ele pôde escutar meio divertido, quando o jovem falou com menosprezo da

doutrina dos judeus, mas como agora se referia de maneira idêntica ao cristianis-mo, não conseguiu mais calar-se. Maomé replicou calmamente:

- Vós reconhecestes Cristo como o Filho de Deus, que trouxe a salvação. Porém, agora disputais sobre quem de vós o interpreta com mais precisão. Fazeis desse reco-nhecimento um assunto do raciocínio, em lugar de um assunto do espírito. Em vez de aspirar às alturas pela Verdade que ele trouxe, fi cais parados no mesmo lugar e deixais a Verdade escapar pelas vossas mãos, até que ela se torne completamente vulgar.

Expressão e palavra não eram mais as de uma criança.Estupefato, o abade olhou para Maomé, que ousou dizer-lhe tais coisas. Como

isso era possível? Em nenhum instante lhe surgiu o pensamento de que Maomé, sendo

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um enviado da Luz, estaria realmente em condições de trazer a ele, o inteligente abade, Luz e Verdade. Sentiu vontade de escutar mais, por isso perguntou-lhe:

- Como imaginas a crença verdadeira, se repudias uniformemente o judaísmo e o cristianismo?

- Sobre isso já meditei muitas vezes, foi a resposta surpreendente. Devia-se fazer a tentativa de conseguir a transição do judaísmo para o cristianismo, porém espiritua-lizá-lo, porquanto a fé é uma atribuição do espírito, e não do intelecto.

Perplexo, o abade fi xou os olhos no seu interlocutor, não conseguindo quase mais segui-lo.

- Isso não vem de ti, rapaz! Exclamou. Quem te disse tudo isso? Quem te ensi-nou a pensar assim?

- Isso surge em mim à noite, quando faço a minha prece, e eu o retenho porque sinto que é verdade. Logo que eu tiver alcançado mais idade, então pedirei a Deus para ajudar-me a encontrar a verdadeira crença, que possa ser ensinada aos homens. Essa crença conterá então a força para conquistar o mundo e conduzirá todos os homens aos pés do Criador, em gratidão e veneração.

Comovido, o rapaz calou-se. O abade, no entanto, em vez de deixar atuar sobre si essa sabedoria, que não proveio desta Terra, desejou saber:

- Com quem já falaste sobre isso, Maomé?- És o primeiro, soou a resposta, mas agora estou arrependido por tê-lo feito,

porquanto tu não recebes aquilo que eu disse no sentido como me foi dado. Sempre queres medir tudo pelo teu cristianismo, em vez de distinguir que Deus quer te ofere-cer aqui coisa melhor! Se, porém, durante a refeição não esvaziares bem a tua tigela de comida do dia anterior, como pode caber coisa nova nela?

Sobre a face do rapaz faziam-se notar contrações. A agitação e a tensão tinham sido demais para ele. Sinais de novas convulsões surgiram. Apesar disso, continuou a falar por um impulso íntimo que predominava nele:

- Não achas, abade Paulo, que eu tenha sido conduzido para o teu convento para fazer-te ver isso? Deus às vezes se serve de pequenos instrumentos para fazer gran-des coisas. Escuta-me, porquanto eu sei que Deus manda por meu intermédio dizer-te: tira o cristianismo intelectualizado do teu coração e do teu convento e aceita o que o espírito te oferece!

Mais ele não pôde falar, pois a pertinaz doença o atacou com grande intensida-de. Com menosprezo o abade olhou para esse débil instrumento de Deus.

- Rapaz, quem te deu coragem de falar assim comigo? Tua altivez e tua pre-sunção merecem castigo! Agora te chamarei à ordem, murmurou o abade, enquanto deixava o aposento a fi m de chamar um irmão servente para cuidar do jovem.

Nessa noite Maomé escutou uma voz alta, que o chamou pelo nome. Ele sabia que não era terrena e imediatamente respondeu.

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Então a voz lhe ordenou que deixasse o convento ainda antes do ama-nhecer. Se caminhasse em direção ao sol nascente, chegaria a uma cidade onde deveria perguntar pelo devoto irmão Cirilo.

“Senhor, sou Teu instrumento e farei o que me mandas!”, rezava Maomé.Por essa razão pegou os poucos objetos da sua bagagem e fez uma trouxa,

saindo cautelosamente para o pátio. Observando e espreitando atentamente, viu que um dos pequenos portões laterais não estava fechado. Conseguiu passar. Aliviado, encontrava-se fora do muro.

“Todos hão de pensar que estou temendo o castigo do abade”, murmurou algo nele.

Hesitante, meditou: “Não seria um ato mais corajoso eu voltar e enfren-tar a pena que me foi imposta?” Logo, porém, superou essa tentação.

“Eu o faço por ordem de Deus!”, disse ele em voz alta, “portanto, não devo incomodar-me com o que os homens pensam e dizem de mim. Sou Ma-omé, o instrumento de Deus! Vós, homens, sois indiferentes para mim!” Para certificar-se da direção do seu caminho, lançou um ligeiro olhar em redor de si e então caminhou corajosamente para frente. Em geral, após os acessos de convulsão, ele não podia deixar a cama por dois ou três dias. Foi uma visível ajuda de Deus!

Quando o sol nasceu, sentiu fome. Ele não pôde levar provisões de víve-res consigo, e os figos nas inúmeras árvores e arbustos ainda não estavam ma-duros. Então sorriu da fome. O Deus, que deu forças aos seus débeis membros para caminhar, também o ajudaria a achar alimento.

Na beira do caminho encontrou uma pequena propriedade, porém ele quase não a percebeu. Então ressoou a voz de uma mulher:

- Rapaz, queres ganhar uma merenda matinal?Ligeiro como uma lebre, virou-se e respondeu afirmativamente. Então a

mulher encarregou-o de tirar de uma árvore alta um precioso pano de seda que o vento havia carregado para lá, durante a noite.

- Tu és bastante esbelto para tal trabalho, disse, enquanto mirava a figura delgada.

Sem mais delongas, Maomé tratou de subir na árvore. Com a costumeira agilidade com que fazia tudo, tirou a seda e a trouxe incólume. A mulher ficou satisfeita e não foi mesquinha na sua recompensa; deu-lhe comida e bebida com fartura, de sorte que até sobrou, e ele pôde levar as sobras consigo.

Então, ao continuar sua peregrinação, agradeceu a Deus de todo o co-ração e formou suas palavras de agradecimento à maneira dos salmos, num cântico de louvor:

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“Grande é Jeová, o Senhor! Infi nitamente grande e majestoso é Ele!E, todavia, nada Lhe é insignifi cante demais para que não o transforme num instrumento,

desde que o mesmo tenha boa vontade.Grande e majestoso é o Senhor!

E sempre se lembra dos humildes e os ajuda até nas mínimas necessidades.Antes mesmo de pedirem, Ele atende, porquanto Sua misericórdia é infi nita.

Louvai-O, todas as criaturas que Ele criou!Todos os vossos atos deviam ser um louvor ao Todo-poderoso!

Ínfi mos que sois, não devíeis pensar em vós mesmos.Pensai em Deus, agradecei-Lhe”.

Maomé entoava sempre de novo o seu salmo, que lhe dava prazer. Então veio um tropeiro no caminho, com um burro bem alimentado.

- Escuta, pequeno cantor, para onde queres ir? A pergunta foi feita com tanta bondade, que Maomé respondeu prontamente:

- Para a próxima cidade, em direção ao sol nascente! - Então monta, meu burro pode carregar-te bem, e os teus cânticos podem encurtar-me o caminho. Canta outra vez a canção que acabaste de cantar.

“Senhor Deus, agradeço- Te!” exclamou o rapaz, entusiasmado. “Eu estava cansado, mas não Te quis dizer, depois de teres me fartado de alimento! Agora dás outra vez, antes de eu pedir!”

E com entusiasmo entoou seu canto de louvor e cantou-o duas vezes, em gratidão e felicidade.

Ao tropeiro agradou o esperto rapaz; com muito gosto tê-lo-ia sempre em sua companhia. Talvez o jovem estivesse à procura de serviço; então, se o aceitasse, ambos seriam ajudados.

- Quem vais procurar na cidade? Indagou. Sou muito conhecido lá e posso conduzir-te logo ao destino certo.

Maomé meditou um instante. Devia dizer aonde queria ir? Mas para alguém teria de perguntar e por que não a esse homem simpático. Então ele disse calmamente:

- Tenho de ir ao devoto irmão Cirilo.- Ao irmão Cirilo? Esse eu conheço de fato, disse o homem, que via desfaze-

rem-se suas esperanças. E o que queres com ele?- Mandaram-me a ele, e ele sabe o porquê.Essa resposta pareceu muito misteriosa ao homem, e perguntou mais:- De onde vens?Sem medo, Maomé disse o nome do mosteiro. Tornou-se evidente ao tro-

peiro que o rapaz era um aluno do convento, que empreendeu a peregrinação por ordem do seu abade. Um desses não devia ser desviado da sua vereda.

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Conversou alegremente com Maomé, mostrando-lhe a cidade que surgia no horizonte e o conduziu, ao anoitecer, com segurança até lá. Então descreveu-lhe o caminho que levava ao devoto Cirilo e despediu-se.

A Maomé agradou bastante poder caminhar novamente, após tão longa ca-valgada. Bem-disposto, andava pelos becos e ruazinhas até que chegou ao portal que lhe foi descrito pelo tropeiro. Bateu algumas vezes, mas em vão. Então experi-mentou abrir o portão, porém estava fechado.

“Deus não me mandou até aqui para deixar-me fi car parado em frente de um portão trancado”, disse ele a meia voz.

Nesse momento uma voz amável o chamou:- O que queres neste lugar bom, no lugar de descanso dos mortos, rapaz?

Maomé assustou-se, pois os mortos ele não queria perturbar.- Procuro o devoto irmão Cirilo, respondeu humildemente. - Então vem

para este lado da rua, disse a voz.Ao mesmo tempo, no outro lado, duma cabana baixa saiu um ancião robus-

to com olhar afável.- Esta casinha não se encontraria se não estivesse situada perto do imponen-

te portão, declarou. Sempre que um estranho pergunta por mim, então lhe descre-vem o caminho até esse portão. Isso basta.

- Então és tu o devoto Cirilo? Certifi cou-se Maomé, que adquiriu confi ança nesse homem.

- Sou eu mesmo e tu certamente és Maomé, meu novo aluno, que me foi anunciado por Deus, o Senhor.

Tão empolgado fi cou pelo que de novo passou em vivência, que em lugar de qualquer resposta, entoou o seu salmo de agradecimento. Quando terminou, aproximou-se do irmão e aguardou o que este lhe mandaria fazer.

Cirilo, no entanto, sorriu satisfeito.- Eis que um cantor alegre me vem voando em casa. Bem-vindo, Maomé! Se

tu sempre cantares e louvares assim, então nos tornaremos bons companheiros.Levou-o consigo para a sua casa e o instruiu com amor e bondade, duran-

te cinco anos. Não havia para Maomé nenhuma pergunta, para a qual Cirilo não procurasse achar uma solução junto com ele. Às vezes tinham de fi car meditando por longo tempo, ou pedir a ajuda de Deus, mas sempre acharam explicação para as perguntas e os dois tiraram proveito disso.

Durante o primeiro ano, a pedido de Cirilo, Maomé relatou toda a sua vida. Com isso surgiu-lhe o pensamento de que Abu Talib poderia estar preocupado com

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o seu desaparecimento. Mas de pronto consolou-se, e disse:“Deus mandou-me para cá. Ele também achará meios e caminhos para fazer

chegar ao conhecimento de meu tio o meu paradeiro, se ele deve saber disso”.Quando se aproximou o término do quinto ano, Cirilo convidou o jovem

adolescente a acompanhá-lo numa curta viagem.Numa cidade no litoral devia realizar-se uma reunião pública, na qual, aliás,

iam ser tratados assuntos de interesse geral do povo, mas Cirilo achou necessário que o jovem participasse alguma vez dessas coisas.

Após uma boa caminhada chegaram ainda em tempo na cidade de Halef, de sorte que o jovem pôde primeiro contemplar o mar e habituar-se com o magnífi co panorama. Cirilo julgou bem certo ao pensar que antes disso Maomé não estaria receptivo para outras coisas.

No dia da reunião dirigiram-se cedo ao lugar determinado para isso, onde se encontrava uma variada multidão. Grupos de pessoas de todos os países da região e homens de todas as tribos pareciam estar ali reunidos.

Cirilo perguntou a um dos assistentes quem iria falar ao povo, nesse dia. Re-cebeu a resposta de que seria o árabe Talib ben Muttalib, o maior amigo do povo de todas as tribos. O bom irmão fi cou contente ao saber que Maomé iria logo escutar um homem importante. O nome do orador nada lhe signifi cou.

Cirilo escolheu um lugar, do qual não só se podia escutar, como também ver. Devido à popularidade que ele gozava nessa região, ninguém disputava seu lugar, nem o do seu protegido.

Jubilosos aplausos anunciaram a chegada do esperado orador. A massa do povo dividiu-se para deixá-lo passar para o lugar mais alto, de onde deveria falar.

Ao dirigir um olhar curioso para aquele lugar, Maomé de repente viu na sua frente o seu tio.

Essa era, portanto, a profi ssão que Abu Talib exercia ocultamente! Um orador popular era ele? O que teria a dizer à multidão. Pálido de emoção, o jovem escutava.

Tudo, tudo ele queria absorver; não somente as palavras que ali ressoariam, mas sobretudo o sentido contido nelas.

Ele fi cou admirado. Era um Abu Talib diferente daquele que conhecera. Per-dera todo o acanhamento na sua conduta. A multidão esquecia-se dos seus defeitos ante a projeção de sua personalidade, que dominava em volta dele, como o poder de um soberano nato.

Não pronunciou nenhuma palavra a mais. Cada uma teve sentido e signi-fi cação, e cada uma impressionava o público com poder arrebatador. Não usava a gesticulação, como em geral se via nos oradores.

Exteriormente aparentava calma, mas seus olhos fl amejavam, faiscavam ou ensombreavam-se. Falavam sua própria linguagem.

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Tudo isso Maomé percebeu no seu íntimo, antes mesmo de ser capaz de acompanhar audivelmente as palavras. Abu Talib falava que em todas as partes do território, muito além das fronteiras de El Árabe, moravam árabes, que tinham que se curvar ao domínio estranho.

Aclamações interromperam-no. Calou-se um instante. Então continuou do mesmo modo a convencer o povo ali reunido de que os árabes deviam unir-se num só todo, porque assim se tornariam grandes e poderosos.

Esse foi o signifi cado do seu discurso, enfeitado com muitas exemplifi cações e impressionantes imagens.

Então ele convidou os ouvintes a externarem os seus pensamentos sobre aquilo que haviam escutado.

Cada objeção ele replicou prontamente e com sensatez.Finalmente um dos fi dalgos exclamou:- Aqui na Síria, mais do que a metade dos habitantes são árabes. Se nós nos

unirmos ao país natal, então a Síria deixará de existir!- Seria lamentável isso? Perguntou Abu Talib.Suas palavras tiveram o efeito de uma chicotada. Um verdadeiro tumulto

irrompeu.- Então achas, Talib ben Muttalib, exclamavam os homens, que podemos fazer

conquistas sem guerras, e que devemos simplesmente anexar os países vizinhos?- Se isso fosse para o bem do nosso país, então sem dúvida, refutou o orador.- Não acrediteis, ele é judeu! Fez-se ouvir de repente uma voz gritante.Todas as cabeças se viraram para o lado de onde soaram essas palavras. Ali

estava um sacerdote fetichista, com a face contorcida impetuosamente.- Ele quer conquistar todos os povos para o seu Deus e subjugá-los! Isso não

podemos tolerar. Sou um fi lho fi el da Arábia, e justamente por isso não a quero entregar aos judeus!

- Enganas-te, sacerdote, respondeu a voz serena de Abu Talib. Realmente nasci de pais judaicos, porém reconheci que é mais importante ajudar o povo sobre a Terra a conquistar grandeza, felicidade, união e poderio, do que adorar um Deus invisível, o Qual talvez nem no Além poderemos chegar a ver.

- Para, blasfemador!Estridentes soaram essas palavras pela grande praça da reunião. Todos de-

veriam tê-las escutado.O orador empalideceu. Em sua frente estava de pé o seu sobrinho, que julga-

ra morto; o menino transformara-se num moço; e os monges lhe haviam dito que ele era destinado a ser um portador da Verdade. O homem sentiu calafrios.

Quando Abu Talib, no regresso de sua viagem, pretendeu cuidar de Maomé, o abade informou-lhe que o rapaz sucumbira de uma grave enfermidade. Isso deu

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muito o que pensar ao tio. Se Deus deixava morrer um portador da Verdade, então Lhe era indiferente que a Verdade fosse propagada.

Isso foi o começo do declínio da fé. Abu Talib raciocinou e meditou longo tem-po até que jogou de si todos os pensamentos em Deus e no Divino. Desde então lhe foi mais fácil falar ao povo. Nunca se defrontou com algo como naquele momento.

Maomé, sem hesitar, continuou dizendo em voz alta:- O Deus invisível, que Abu Talib nega, se bem que ele outrora O adorou,

está no meio de nós! Ele criou todos nós, por isso é nosso Senhor! Guia maravi-lhosamente todos os homens que Nele crêem. Eu o sei, porquanto eu mesmo tive provas disso!

Surgiu uma grande agitação.- Quem é esse jovem que tem a ousadia de falar numa reunião de homens?

Exclamavam alguns exacerbados, enquanto outros manifestavam sua aprovação ao que Maomé havia dito.

Os já excitados ânimos exaltaram-se; chegaram a agredir-se e toda a reunião fi ndou numa violenta discussão, de sorte que policiais armados da cidade tiveram que intervir, para separar os que já estavam se enfrentando com faca, corpo a corpo.

Abu Talib retirou-se com alguns partidários, antes de começar a contenda. Cirilo forçou Maomé a abandonar igualmente o recinto. O jovem teve a compreen-são de que por ora em nada poderia ser útil. Estava abalado pelo acontecido e tre-meu de pesar ao ver que o tio, a quem sua alma havia se afeiçoado, fi cara tão mau.

Cirilo achou que teria sido melhor se Maomé tivesse calado, mas também não pôde repreendê-lo. Por isso não falou nenhuma palavra, e deixou o jovem en-tregue aos seus agitados pensamentos. Maomé sentiu a reprovação e evitou por sua vez falar com o irmão.

Após ter perdurado por alguns dias esse silêncio, ao qual, aliás, se habitua-ram, ambos sentiram que não podiam continuar convivendo dessa maneira.

Enquanto Cirilo meditava como poderia reaproximar-se do jovem, sem dar o braço a torcer, Maomé achou a única solução numa rápida separação. O que ain-da devia fazer aqui? Aprendera tudo o que Cirilo lhe pôde ensinar.

Queria sair pelo mundo e ganhar o seu sustento, até chegar o tempo em que poderia atuar como instrumento de Deus.

Anteriormente ele sempre supunha que após um certo aprendizado regressa-ria à vida abundante do palácio paterno, visto ser ele o herdeiro e não o tio, que, como segundo fi lho, tinha direito apenas a pequena parte. Após o recente incidente, achou completamente impossível poder alguma vez defrontar-se novamente com o seu tio. Portanto, tornar-se-ia independente. Isso com certeza era da vontade de Deus.

A noite declarou o que havia decidido ao irmão Cirilo, surpreendendo-o. Este não quis concordar, porém Maomé não se deixou convencer e assegurou que

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na manhã seguinte continuaria sua peregrinação. Agradeceu ao irmão por tudo o que ele lhe havia proporcionado espiritual e terrenamente, e com este agradecimen-to fi cou comovido. A antiga simpatia pelo mestre despertou novamente, e fez com que se separassem em paz.

Durante a noite Maomé teve uma visão. Viu Abu Talib desaparecer numa casa velha situada numa rua estreita da cidade de Halef. Concomitantemente, uma voz chamou:

“Maomé, procura teu tio! Ele precisa de ti”.Impulsos de obstinação excitavam a alma do rapaz. Agora ainda ter que cor-

rer atrás desse renegado! Mas quando pensou que foi a voz de um mensageiro de Deus que lhe trouxe a ordem, então a sua exaltação se desfez, e ele conformou-se. Conquanto não conhecesse a rua que vira em sonho, confi ou nos guias espirituais e caminhou em direção a Halef.

Entretido com os próprios pensamentos, o caminho não lhe pareceu lon-go. Alcançou, antes do que esperava, as primeiras casas, e encontrou um menino que chorava amargamente. A criança havia pisado num caco de vidro e machucara gravemente o pé, de sorte que não podia dar nenhum passo. Maomé amarrou uma atadura na ferida e dispôs-se a carregar a criança.

- Podes dizer-me onde moras? Perguntou ao já confi ante menino.- Sim, realmente, posso dizer-te quais as esquinas que deves dobrar. Então

logo chegaremos a nossa casa. Como a mamãe vai fi car contente, quando afi nal eu chegar em casa!

Verifi cou que a criança passara a noite toda fora. Suas contínuas tentativas de andar agravaram cada vez mais o ferimento.

- Já estamos perto de nossa casa, explicou subitamente o pequeno. Maomé olhou em redor de si e reconheceu a rua que vira de noite. Novamente foi tomado de um sentimento de gratidão ao tornar-se consciente da direção da Luz, sob a qual se encontrava, de maneira que teve de desabafar o seu coração.

Pôs o menino ferido no chão, levantou as mãos e agradeceu a Deus do fundo do coração. Então tomou de novo o seu protegido nos braços e nem se admirou de que as indicações deste o levavam realmente àquela casa, que, aliás, já conhecia.

Uma mulher em pranto precipitou-se para fora, tomou nos seus braços o menino que ela pensava ter morrido, e pediu a Maomé que entrasse e fosse seu hóspede. Assim, sem muita difi culdade, ele chegou a casa na qual desejava entrar e novamente disse do fundo da alma:

“Senhor, Deus de Israel, eu Te agradeço!”

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O menino foi deitado na cama e a mãe o tratou carinhosamente. Depois se dirigiu ao hóspede, o portador do socorro, agradeceu-lhe e deu-lhe alimentos. Ma-omé, enquanto tomava a refeição, perguntou à mulher se havia um outro hóspede sob seu teto.

Ela negou. Penetrante e perscrutante, Maomé encarou-a; então, enrubescen-do, ela disse:

- Hospedei por pouco tempo um parente adoentado em minha casa.- Ah! nesse caso também nós somos parentes, retrucou sorridente Maomé,

pois Abu Talib é meu tio.Perplexa, a mulher olhou para o rapaz sorridente.- Não digas esse nome, amigo hóspede, implorou. Esse de quem estás fa-

lando está sendo procurado por espiões. Por isso, ocultou-se aqui, numa das mais pobres habitações, onde por certo ninguém pensará em procurá-lo. De onde sabes que ele está aqui?

- Eu o sei, replicou Maomé. E devo falar com ele. Ele mesmo o quererá, se disseres que Maomé de Meca está aqui.

A mulher retirou-se. Logo depois voltou e fez sinal para segui-la. Subiram uma escada horrível e encontraram-se na frente de uma porta. A mulher mandou Maomé pedir licença para entrar e desceu outra vez a escada apressadamente.

Sem se fazer notar, o rapaz entrou. Numa pobre cama encontrou Abu Talib, o qual realmente parecia doente e decaído. Quando este avistou aquele que julgara estar morto, arrepiou-se de medo.

- O que queres de mim, Maomé, tu, mensageiro de Deus, o Todo-poderoso, contra o Qual depus em público? Perguntou tremendo.

Toda a ira desapareceu do jovem. Cheio de compaixão, aproximou-se do penitente e disse:

- Deus deu-me ordem para procurar-te, por estares necessitando de mim.Abu Talib começou a chorar.- Tão bondoso é Deus com um indigno como eu? Exclamou repetidamente.

Não podia acreditar em tamanha misericórdia.Maomé por ora nada fez para facilitar-lhe essa crença. Começou a tratar em

primeiro lugar das necessidades terrenas do tio. No bolso do vestuário encontrou dinheiro, com o qual fez compras. Arrumou melhor a cama e deu-lhe uma bebida soporífera.

Assim que Abu Talib adormeceu, Maomé dirigiu-se para o menino machu-cado, o qual encontrou bem acomodado na sua cama.

- Canta mais uma vez o belo cântico que cantaste na rua, pediu. Minha mãe gostaria de escutá-lo.

Maomé entoou seu salmo e sentiu alegria em poder fazê-lo.

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Pela face da mulher escorriam lágrimas.- És judeu, amigo hóspede? Perguntou.Antes que pudesse responder, ela contou que era judia, mas casara-se com um

fetichista. Antes, isso tinha sido indiferente para ela, porém nesse momento sentiu des-pertar nela a ânsia de escutar novamente falar em Deus.

Maomé então contou o que sabia do Deus dos judeus. Os três esqueceram-se das horas; estavam inteiramente absortos. Ele falou do Messias que veio e que foi re-conhecido apenas por poucos; os outros então o assassinaram. Como sempre quando falava disso, fi cava amargurado. O pesar pelo assassinato do Filho de Deus oprimia-lhe o coração.

A porta abriu-se, sem ruído algum. Abu Talib, que acordara do sono reparador, entrou precisamente no instante em que Maomé começou a falar do Messias. Sem ser visto pelos outros, abaixou-se ao lado da porta e sentou-se no chão, fi cando à escuta daquilo que o seu sobrinho anunciava com palavras eloqüentes.

No entanto, dominado por uma forte emoção, começou a chorar. Isso desper-tou a atenção dos outros, que o conduziram a um lugar mais cômodo e dirigiram-lhe palavras animadoras. Então confessou sua grande culpa perante Deus.

- Tu podes repará-la, Abu Talib, disse Maomé gentilmente. Assim como foste um negador, torna-te um pregador de Deus.

- O povo não me dará mais ouvidos, desde que interrompeste minha reunião, Maomé, suspirou o tio.

- Se não podes mais falar a grandes massas, então recomeça em pequenos cír-culos, replicou Maomé despreocupadamente. Acredita-me que o tempo para os teus planos ainda não amadureceu. Primeiro devemos oferecer aos homens algo de novo e melhor, antes de fazê-los abandonar o antigo que adotaram.

- E quando poderemos fazer isso? Como se dará isso? Perguntou Abu Talib, desalentado.

- Assim que eu tiver maturidade sufi ciente para poder servir como instru-mento de Deus! Foi a réplica de Maomé.

Ainda falaram disso e daquilo, depois procuraram o refúgio de Abu Talib, para passarem a noite ali. Na manhã seguinte, o tio quis saber como Maomé ima-ginava o futuro próximo.

- Levar-te-ei para Meca, prometeu o jovem com toda a fi rmeza. Lá estarás a salvo das perseguições.

- Nisso também acredito, dizia o outro. Apenas no caminho e aqui dentro da cidade é que estou exposto a perigos.

- Esses nós venceremos, exclamou Maomé, cuja aventura lhe despertou atração.

Após um entendimento com a dona da casa, alugou um burro forte com uma

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sela cômoda, como era usada por mulheres. Abu Talib teve de vestir traje feminino e pôr um véu.

Maomé conduziu o burro. Assim saíram da cidade sem impedimentos. Tam-bém durante toda a viagem não houve nenhum incidente. Somente perto de Meca, Abu Talib achou melhor trocar de vestuário, porquanto lhe parecia por demais ig-nóbil aparecer no palácio paterno em trajes femininos.

Maomé sentiu-se satisfeito em rever o lugar de sua infância. Ali os velhos serviçais, em primeiro lugar Mustafá, cumprimentaram-no alegremente. Todos vi-ram nele o senhor e herdeiro.

Perguntou por Sara e soube que ela já havia falecido. Por alguns dias Maomé fi cou descansando, depois se apresentou perante Abu Talib para declarar-lhe que do-ravante trataria sozinho do seu próprio sustento. Havia esperado que o tio lhe dissesse em resposta que não necessitava disso, visto que toda a riqueza dos seus pais lhe per-tencia. Preparou-se internamente contra essa objeção, porém foi em vão.

Abu Talib pediu-lhe que fosse seu hóspede. Havia bens em profusão, mais do que o sufi ciente para que os dois pudessem viver disso.

Esse modo de pensar fortaleceu ainda mais em Maomé a resolução de se livrar de todo o existente. Sabia que devia encontrar-se independente quando lhe viesse a chamada de Deus.

- E o que pensas fazer? Perguntou Abu Talib, inconscientemente satisfeito por ter Maomé lhe facilitado tudo, para fi car de posse das adotadas riquezas.

- Quero ser comerciante, como meu pai o foi antes de mim, replicou o jo-vem. Minhas relações com os empregados no comércio e os conhecimentos adqui-ridos na infância, quando lidava na galeria, facilitarão minha adaptação. Ademais, isso será apenas uma transição, concluiu.

Já no dia seguinte abandonou o palácio, para ir à procura de um emprego. Dirigiu-se a um amigo do seu pai, que o recebeu com alegria e aconselhou-o.

Também sabia onde Maomé poderia colocar-se logo, se realmente estivesse levando a sério o propósito de tornar-se comerciante.

- Há pouco tempo faleceu um mercador de jóias, cuja viúva deseja conti-nuar o comércio. Esta procura um homem moço, de bons costumes, para servir de auxiliar junto com os empregados da sua casa comercial. Este seria o lugar certo para ti.

- Não serei muito inexperiente para isso? Indagou.O mais velho repeliu a objeção. Chadidsha, a viúva, procurava justamente

alguém que ela mesma pudesse introduzir nas particularidades dos seus negócios.

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Ela possuía bastante conhecimento do comércio, porquanto sempre ajudara o ma-rido. Não tendo fi lhos, pôde dedicar-se todo o tempo às jóias.

- É judia? Quis saber Maomé.Sobre isso o amigo não pôde dar informações.Porém, como se ele o animasse, Maomé resolveu procurar logo a viúva do

comerciante, assim já veria como era e quem era. Os depósitos e a loja fi cavam den-tro da mesma casa, numa das melhores ruas de Meca. Como a galeria de vendas do seu pai estivesse situada num outro ponto do extremo da cidade, e não no palácio, Maomé raras vezes estivera lá.

Apesar disso, ao entrar nessa loja, defrontou-se com uma grande diferença. Aqui predominava a cobiça comercial, que visava unicamente lucros, ao passo que lá existiu comércio que tinha em mira os objetos preciosos. Abdallah tinha somente pedras selecionadas à venda. Aqui, aliás, também havia, porém enterradas debaixo de montões de coisas baratas e inferiores.

Involuntariamente Maomé pensou:“Será que a alma dessa mulher é igual a esta loja? E se assim for, valerá a pena

procurar nela a pérola preciosa?”Ele mesmo admirou-se desse pensamento, que lhe surgiu como se viesse

voando ao seu encontro.Depois de solicitar a um empregado, que acorreu para atendê-lo, permissão

para falar com dona Chadidsha, foi pedido que aguardasse um instante. Enquanto ele fi cou em pé ao lado de uma mesa, passando os olhos por cima das mercadorias expostas, sentiu que um olhar penetrante e ardente lhe estava sendo dirigido de al-guma parte. Não pôde ver de quem era, até que observou um cortinado arredar-se levemente nos fundos.

Essa espreita sigilosa pareceu-lhe tão esquisita, que teve de sorrir.Então, abriu-se o cortinado; uma mulher ainda jovem e encorpada entrou

na loja. Com passos ondulantes veio em direção ao rapaz, cujas feições já haviam tomado de novo a expressão de sua costumeira seriedade.

- Por que riste ainda agora? Perguntou Chadidsha, em lugar de qualquer cumprimento.

Com isso provocou novamente um sorriso na face de quem se encontrava à sua frente.

- Imaginei como alguém atrás do cortinado experimentava observar-me, a fi m de ver se sou um homem honesto, confessou francamente.

Um ardente rubor subiu às faces da mulher, toda maquilada. Querendo apa-rentar desembaraço, disse:

- Também tu muitas vezes te esconderás atrás do cortinado, para observar os compradores, se é que vieste para ajudar-me na minha loja.

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Maomé calou-se. O que havia de responder! A mulher causou-lhe ao mesmo tempo repulsa e simpatia. Podia ter aproximadamente uns vinte e quatro anos, portanto quase dez anos mais velha do que ele, mas, apesar disso, sentiu-se superior a ela.

Como ele se calasse, ela retomou a palavra:- Queres empregar-te aqui, para ajudar-me nas vendas e compras?- Com tal propósito é que cheguei até aqui, replicou Maomé, hesitante.

Os empregados retiraram-se para o depósito. Os dois fi caram sozinhos. Então Maomé continuou:

- Quero dizer-te que em verdade não possuo os conhecimentos de um comerciante, apesar de meu pai ter sido um deles. Antes de tudo, porém, devo dizer-te que assim como esta loja é dirigida, eu não estou acostumado. Custar-me-á habituar-me aqui.

Admirada, a viúva replicou:- Sabes que nos últimos dias despachei cerca de trinta pessoas que pediram

insistentemente para trabalhar aqui, e tu, talvez o mais jovem de todos, ousas dizer-me que o meu comércio não te agrada. Não te chamei. Podes ir para lá de onde vieste.

Sem dizer nada, Maomé virou-se para abandonar o local. Mas isso con-trariou a expectativa da mulher. Ela havia esperado rogos suplicantes, pois estava disposta a atendê-los, porquanto o rapaz lhe agradara. Algo na aparência e nas maneiras dele atraiu-a. Se, porém, ela o quisesse, deveria agir com rapidez. Estava somente a poucos passos da rua.

- Ei! Escuta! Chamou atrás dele, mais alto do que o necessário. Ainda não me disseste quem és e de onde vens!

- Como me mandaste embora, torna-se desnecessário que te diga! Repli-cou Maomé, andando rumo à saída.

- Quem te diz que eu te mando embora? Zangou-se a mulher. Aqui se pesam as pedras preciosas e não as palavras. Ouem é jovem como tu não deve ser tão incompreensível.

- Isso eu poderia ter imaginado, que as tuas palavras nem sempre refl etem os teus pensamentos, escapou de Maomé.

- No que notas isso? Perguntou a mulher, atraída involuntariamente pela curiosidade.

Maomé hesitou alguns instantes, e então, num impulso como lhe era pecu-liar em momentos decisivos, movimentou a cabeça para trás, e replicou:

- Quem acoberta as faces que recebeu de Deus, também dissimula os pen-samentos que a alma gera.

Novamente ela se zangou, entretanto, o rapaz era diferente de todos aque-les que ela até então chegara a conhecer. E se ele sempre falasse assim, então po-

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deria vir a ser um bom passatempo tê-lo perto de si.- Tu podes fi car empregado aqui comigo, ofereceu-lhe magnanimamente,

esperando um alegre agradecimento.Maomé, entretanto, fi cou vacilante por alguns instantes, enquanto con-

centrava a sua alma em oração; fi nalmente disse:- Quero fazer a tentativa, se suportarei a loja e a ti. Ambas sois disfarçadas.Nesse momento ela se arrependeu da oferta feita. Apressadamente ia reti-

rá-la, quando entrou um comprador na loja e ela teve que dirigir sua atenção para ele. Era difícil contentá-lo. De todos os lados tinham de ser buscados objetos.

Com um rápido olhar, Maomé percebeu o que foi pedido, trouxe-o, e en-tregou-o a Chadidsha com naturalidade, como se a loja fosse dele. O homem comprou mais do que pediu inicialmente, e a mulher viu que recebeu um ativo auxiliar.

Na sua alegria pelo bom negócio, ela esqueceu as palavras ofensivas. Assim animada, dirigiu-se a Maomé e perguntou:

- Como posso chamar-te? De onde vens?- Sou Maomé ben Abdallah. Meu pai era comerciante de jóias.Com grande admiração a mulher olhou para Maomé. Um fi lho da mais con-

ceituada estirpe viera à sua procura, para tornar-se seu auxiliar! Podia ser possível isso? Quando Maomé viu sua estranheza e incredulidade, disse:

- Podes perguntar a Ibrahim Ben Jussuf. Ele mandou-me aqui.- Não é necessário, fez-se ouvir a voz de Ibrahim Ben Jussuf, que acabava

de entrar na loja.Ele fi cou contente em saber que os dois haviam chegado a um acordo. Pro-

pôs então a Maomé que mandasse buscar por um empregado os seus pertences. O rapaz compreendeu que o amigo queria fi car a sós com a viúva, e retirou-se.

Quando Maomé deixou a loja, Ibrahim perguntou à mulher se ela se agra-dara do novo auxiliar. Ela respondeu que quase não sabia como julgá-lo. Ele era bem-educado, mas falava uma língua completamente sem disfarce.

Mal pronunciara essa palavra, lembrou-se da comparação de Maomé. Agora quase se arrependia novamente de ter empregado esse observador perspi-caz. Ibrahim, no entanto, persuadiu-a a regozijar-se. Um auxiliar melhor ela não acharia.

O fato de que o jovem preferisse sofrer injustiças e tornar-se independente, do que expulsar o tio aleijado, honrava-o muito. Além do mais, só soube o me-lhor a respeito de Maomé, o qual, com certeza, tornar-se-ia em breve um valioso auxiliar para ela.

Maomé fi cou na casa da viúva, e acostumou-se a ser comerciante. Suas obrigações levava a sério. Muito lhe valeu ter recebido excelente instrução na es-

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cola do templo; principalmente na aritmética ele superou até a patroa.Em pouco tempo ela pôde deixá-lo sozinho com as vendas, mas teve de

observar muitas coisas novas. Estranhou como ele tratou com franco desvelo em recomendar e vender os artigos baratos e artifi ciais. Será que já se acostumara com o artifi cial e aprendera a estimá-lo?

Uma noite, ao descobrir que ele vendera até o último dos muitos objetos, ela perguntou-lhe por pilhéria sobre isso.

- Ter aprendido a estimar? Essas bugigangas? Interrogou com desdém. Não, Chadidsha, acabei com elas, para arranjar lugar para coisas melhores.

- Então não queres encomendar mais nada em substituição aos artigos desse gênero? Indagou receosa. Meu marido sempre dizia que artigos baratos atraem fregueses.

- De compradores que se deixam atrair por isso, podemos prescindir. Acre-dita-me, Chadidsha, que a tua loja será mais reputada e freqüentada por fregueses mais distintos, se tu ofereceres somente artigos de qualidade genuína e de valor integral.

Vagarosamente e a muito custo Maomé pôde convencê-la.Afi nal concordou.Após três anos, quem entrasse na loja, encontrá-la-ia completamente mo-

difi cada. Objetos selecionados eram oferecidos; tudo o que era artifi cial havia desaparecido.

A maior modifi cação registrou-se na dona da loja. Seu rosto dispensara toda maquilagem; seus trajes eram simples e elegantes.

Apenas seus movimentos impulsivos e rudes ainda denunciavam que não descendia de linhagem fi dalga. Do mesmo modo sua voz tornava-se desafi nada, quando algo a irritava.

Suas relações com seu auxiliar, de aproximadamente dezoito anos, eram singulares. Às vezes parecia que ela temia as repreensões que ele pronunciava com franqueza. Ele fi cou sendo senhor absoluto de todo o comércio, e o que dizia era válido. Os empregados dedicavam-lhe toda a consideração; mesmo sendo um tanto mais jovem que os outros, era um modelo de honradez, fi delidade e ama-bilidade.

A par disso, a agudeza de sua vista aumentara. No primeiro ano esteve na loja um freguês, que a proprietária mesma atendeu, enquanto Maomé trazia as mercadorias. De repente o jovem pegou no pulso do freguês e disse a meia voz, porém, energicamente:

- Coloca de novo sobre a mesa as pérolas que acabaste de tirar!Chadidsha assustou-se. Como podia Maomé dizer isso, pois ele não podia

ter notado nada dos fundos da loja onde se encontrava!

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O homem rebelou-se furiosamente:- Solta-me, imediatamente! Como te atreves a tocar-me? - Solto-te assim

que as pérolas estiverem nas mãos de Chadidsha.- Não tenho pérolas.Então Maomé meteu a mão na frente do vestuário do homem e puxou dali

um saco habilmente preparado, que além das péro las furtadas continha uma porção de outras coisas. O ladrão desmascarado opôs resistência, mas Chadidsha mandou chamar guardas, que o subjugaram e o levaram. E enquanto a mulher, excitada, não podia chegar ao fi m da conversa sobre o aconte cido, Maomé disse apenas:

- Estás vendo que também enxergo sem olhar pela fresta do cortinado.Maomé empenhava-se assiduamente pelo bom andamento dos negócios

durante o horário de vendas, mas depois de fechada a loja, retirava-se regularmente para seus aposentos. Todos os convites de Chadidsha para tomarem refeições jun-tos, ou acompanhá-Ia em visitas, ele recusava.

- Nas famílias onde fui criado, os homens mantinham-se afastados das mulhe-res, disse ele com seriedade. Não por se jul garem melhores, mas porque eles dignifi ca-vam a natureza da mulher, que é mais delicada. Assim eu também quero proceder.

Ela queria muito saber com que ele se ocupava nas horas de folga, porém ele não falava sobre isso e todas as interrogações foram inúteis.

Então um dia foi chamado com urgência pelo tio, o qual tinha coisa impor-tante a dizer-lhe. Tão urgente foi o recado, que Maomé deixou seu aposento sem guardar primeiro aquilo em que estava trabalhando.

Chadidsha entrou furtivamente, mas fi cou decepcionada ao deparar apenas com folhas cheias de letras manuscritas, que não pôde ler, pois eram em hebraico. Mas pelo menos sabia agora que ele se dedicava a um estudo qualquer.

Pois bem, ele ainda era jovem; que continuasse a fazer isso ainda por uns anos.Ao chegar na casa de Abu Talib, Maomé encontrou-o muito excitado. Ele

pedira uma viúva rica em casamento e tinha sido atendido! Ele, o aleijado, ainda chegaria a gozar uma felicidade que julgava vedada para si defi nitivamente.

Pelo direito, Maomé era o chefe da família e tinha de dar a sua anuência para o casamento; do contrário, não teria va lidade. Abu Talib temia que nessa ocasião Maomé pudesse desco brir que ele retivera até então a sua herança paterna.

Se o jovem exigisse agora a sua parte da herança, então os bens restantes seriam pouco cobiçáveis. Poderia nesse caso ser provável que o casamento não che-gasse a realizar-se.

Maomé teve a impressão de olhar como por uma vidraça no coração do tio, e vendo a sua cobiça pelo dinheiro, apiedou-se dele. No entanto, se não dissesse nada, isso se lhe afi guraria injusto e, além disso, o estado de incerteza de Abu Talib nunca chegaria a ter um fi m. Assim, ele disse calmamente:

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- Meu consentimento para teu casamento eu te dou com prazer, tio, posto que deves saber se ele signifi ca a tua felicidade. Como presente de casamento dou-te tudo o que há tempo vens considerando, com temor, como tua propriedade. Unicamente este palácio, com todos os seus pertences, eu reservo para mim. É in-fi nitamente pouco em comparação à riqueza que de hoje em diante passa para ti legitimamente. Peço-te, porém, que não tra gas a tua viúva para esta casa.

- Ela tem um lindo palácio, no qual, aliás, vamos morar, Maomé. Assim po-des fazer aqui tranqüilamente o que bem te aprouver, depois que eu tiver saído, no próximo mês.

Nenhuma palavra sobre a abundante doação. Nenhum cons trangimento por Maomé ter lido o seu íntimo! Apenas um alívio por tudo ter decorrido tão facilmente. Por muito tempo Maomé não pôde esquecer a impressão da enorme cobiça pelo dinheiro. Era como se Abu Talib tivesse duas almas: uma má e uma boa. Qual delas manteria a predominância?

Após o casamento de Abu Talib, Maomé foi habitar nova mente em seu pa-lácio paterno, vivendo rodeado de servos que se achavam sob as ordens do velho e fi el Mustafá, que amava seu jovem senhor acima de tudo.

De dia o jovem trabalhava na loja de Chadidsha. À noite, ao encerrar o ex-pediente comercial, ele retirava-se para o seu próprio reino. Raras vezes entrava em contato com pessoas de sua idade. Não tinha vontade de ter relações sociais.

Um dia, porém, despertou nele a vontade de viajar. O es toque de pérolas e pedras preciosas estava se esgotando e novo suprimento tinha de ser arranjado. Pe-diu à viúva que o encarre gasse da compra. Ela reconheceu que não poderia colocar seus interesses em melhores mãos e concordou.

Tão despercebido quanto possível, acompanhado apenas por dois fi éis cria-dos, ele empreendeu a viagem. Em primeiro lugar queria ir para Yatrib, ao norte de Meca. Constava que era a maior cidade mercantil de toda a Arábia. Dizia-se que de todos os lados afl uíam em determinadas épocas os comerciantes, para ali fazerem as suas compras e vendas. Isso o atraía.

Chegou em uma hora propícia. Animado movimento enchia os vastos pavi-lhões, que a administração da cidade havia cons truído para esse fi m, e que apenas três vezes por ano abriam suas portas para as reuniões dos comerciantes. Usando trajes simples, imiscuiu-se entre os presentes, após ter sido obrigado a identifi car-se na entrada do portal.

O quadro colorido que se apresentou aos seus olhos pren deu a sua atenção de tal maneira, que quase se esqueceu da fi nalidade da sua vinda. Mas então o co-mércio e as ofertas, os leilões e regateios estimularam-no. Acompanhou a disputa

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e fe chou compras favoráveis. As mercadorias adquiridas tratou de despachar cui-dadosamente pelos seus criados. Apesar de já ter chegado, a bem dizer, ao término dos seus negócios, teve vontade de fi car até que fosse anunciado o encerra mento da feira. Alguns dos comerciantes mais idosos contaram-lhe dos festejos que constitu-íam o encerramento e animaram-no a tomar parte nos mesmos.

Na última noite ele encontrou no pavilhão mesas cobertas, e o piso for-rado com esteiras grossas. Os homens sentaram-se ao redor, e uma refeição farta foi servida. Durante a refeição foi oferecido suco de uva fermentado, que Maomé saboreou. Porém, após os primeiros goles sentiu o efeito embriagante e não to mou mais nenhum trago. Os outros todos beberam; todavia, al guns deles impuseram-se uma moderação prudente.

Quando terminou o Jantar, na hora do cafezinho, todos os presentes olha-vam com expectativa para Maomé. Este não com preendeu o porquê disso, porém resolveu não perguntar, e sim, aguardar até que eles mesmos lhe dissessem. Final-mente, tiveram de dignar-se a isso, pois queriam vê-lo falar.

- Escuta, amigo, dirigiu-se para ele um dos mais velhos comerciantes. És o mais novo do nosso círculo. É costume tradi cional que sempre o mais novo tem de contar alguma coisa. Pode ser algo inventado ou experimentado em vivência, só não deve ser algo que já tenha lido!

- Por que não me disseram isso antes? Perguntou Maomé, admirado. Assim eu podia ter imaginado alguma coisa.

- O melhor deste costume é justamente o fato de que o contista nada sabe disso, foi-lhe respondido. A surpresa da víti ma é muito engraçada, e às vezes, por causa disso, escutam-se estórias incríveis.

Compreendeu claramente que não escaparia à obrigação de ter de contar algo. Mas o que devia dizer a esses homens que em parte já não estavam mais com o juízo claro. Enquanto assim meditava, alguns disseram:

- Conta de mulheres, pois isso é o melhor!- De mulheres devo contar? Perguntou Maomé, dando ênfase à palavra

mulheres.Alguns dos homens mais idosos fi caram embaraçados. Maomé então con-

centrou todas as forças da sua alma e pediu ajuda. Então um quadro vivo se revelou para ele, e outra vez um e mais um terceiro. Tão rápido como surgiram diante da sua alma, assim instantaneamente os mesmos lhe desvendaram o que devia dizer. Preparando-se, pegou uma rosa que estava sobre a mesa, e começou:

- Quando este mundo foi criado, era então perfeito como tudo o que saiu das mãos do Criador.

Um brado interrompeu-o:És cristão ou judeu?

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- Sou um ser humano! Foi à réplica de Maomé. Deixai-me contar.Tudo no mundo era ordenado da melhor maneira. Mon tanhas elevavam-se

entremeadas por verdes e férteis vales. Rios levavam suas ondas para o mar e ser-viam para moradia dos pei xes. Árvores balançavam seus galhos à luz dos raios sola-res e pássaros cantavam entre as folhas, onde os frutos amadureciam. E os homens que habitavam esta Terra, alegravam-se muito. Pescavam, caçavam, tratavam dos animais e colhiam frutas. Pelos céus percorria a Rainha do Amor Divino e olhava para a Terra cá embaixo. Também ela se alegrava de como tudo fora disposto tão ordenadamente. Nisso sentiu que faltava algo. Olhou e meditou. De repente o sabia: faltava a beleza! Aliás, beleza havia em tudo o que, recém-criado, pairava embaixo, porém a beleza dos jardins celestes era diferente.

E a Rainha do Amor pegou uma das rosas vermelhas que fl oresciam em volta dela e deixou-a baixar à Terra lentamente. Como os homens fi caram admirados, quando viram chegar à Terra essa maravilha de beleza, de cor e de aroma! Suas almas começaram a recordar-se de algo que outrora puderam contem plar. “Rosa celeste” denominaram a graciosa fl or, cuidaram e trataram dela, de sorte que o seu cálice produziu semente, em bora ela fosse cortada. E onde a semente era plantada, ali fl o resciam rosas que espalhavam seu perfume.

Num gesto involuntário Maomé levantou levemente a fl or vermelha que se-gurava na mão.

Como que fascinados, os homens escutavam. Isso era um conto maravilho-so. Ninguém mais queria interrompê-Io.

Então continuou:- Dos jardins celestes, porém, a encantadora Rainha do Amor olhava e rego-

zijava-se com o quanto de belo a sua dádiva levara à Terra. Então aproximou-se dela uma outra sublime fi gura femi nina, a alva Rainha da Pureza. E o Amor mostrou a ela o que havia criado e pediu-lhe que também mandasse para baixo uma das suas prodigiosas fl ores brancas. Nesse momento a Pureza disse:

“Minhas fl ores não servem nas mãos dos homens. Se eu as mandar à Terra, então precisamos pedir ao Criador que Ele desperte guardiãs, tão graciosas e puras, como as alvas fl ores”.

E elas foram ao Criador e pediram. Ele anuiu ao pedido e criou a mulher!Foi criada graciosa e pura; das alturas celestiais ela veio outrora para a Terra,

a fi m de servir de guardiã à pureza. Quem fala levianamente dela, quem não a valo-riza, destrói a alva fl or da Rainha da Pureza!

Com voz comovida, e, contudo sério, ele terminou. Como que cativados, os homens permaneceram sentados. Ninguém ousou dizer uma palavra sequer. Pare-cia que meditavam sobre quantas fl ores prodigiosas já haviam destroçado.

Maomé levantou-se e deixou o pavilhão com uma cordial saudação de des-

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pedida. Depois que saiu, irrompeu uma agitação. Alguns perguntaram:- O que ele quis dizer com a narrativa? Não devemos mais nos divertir com

as mulheres?Os outros, por sua vez, exclamaram:- Foi maravilhoso! Quem é o jovem? Então um ancião de cabelos brancos

levantou-se e disse:- Vamos para casa a fi m de meditarmos sobre o que aca bamos de ouvir. Po-

demos desfrutar alegrias com as mulheres, enquanto as considerarmos com pureza! Alegremo-nos também com as fl ores, sem desfolhá-las.

Então todos saíram, e muitos deles tiraram proveito disso para a vida inteira.

Após o seu regresso de Yatrib e depois de ter certeza de que todas as pre-ciosidades adquiridas chegaram em perfeita ordem, Maomé foi tomado por uma grande inquietação. Havia gozado a liberdade e respirado o ar fresco, após tan tos anos de retraimento, e agora algo o impelia a deixar esse local murado de casas. Sempre que tinha horas vagas, passeava pelas imediações, mas isso não bastou para satisfazê-lo comple tamente. Primeiramente não pôde atinar o que se passava no seu íntimo, porém, certa noite, tornou-se-lhe bem claro que não era outra coisa senão o anseio pelas coisas elevadas e pela liberdade. Nesse momento lembrou-se dos auxílios de Deus na sua primeira infância, em que seu mínimo pedido era atendido mag nanimamente. Desabafou, então, com fé infantil diante do Al tíssimo todas as suas preocupações:

“Senhor”, disse, após ter formado em palavras o seu anseio, “quero continuar a trabalhar na loja e na galeria, se isso estiver de acordo com a Tua santa vontade. Mas, se for indiferente para Ti, onde eu me ocupar até que Tu possas precisar de mim, então permite que eu saia”. Grande tranqüilidade e esperança encheram sua alma, após essa prece. Sabia que agora Deus haveria de revelar-lhe o que deveria fazer. Podia aguardar confi antemente. Então não mais sentiu inquietação. Também não se admirou ao receber de Chadidsha, no dia seguinte, a comunicação de que ela prometera a um parente, chamado Waraka, que ele poderia aprender a prática das vendas sob a orientação de Maomé.

Isso foi o início para que tivesse mais liberdade de movi mento. Tão logo Waraka fosse entrosado nas suas funções, ele tornar-se-ia dispensável.

Prontifi cou-se então de bom grado a receber o moço, que era quinze anos mais velho do que ele, para instruí-lo.

Waraka apresentou-se, e Maomé simpatizou extraordina riamente com ele. Possuía um olhar claro e um raciocínio sereno. Também parecia ocupar-se intima-

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mente com coisas diferentes do que somente com o comércio. Nas coisas nobres ele encontrou a mesma alegria que Maomé; tudo o que não era legítimo causa va-lhe igualmente repugnância. Era inevitável que os dois, que pensavam da mesma ma-neira, se tornassem amigos.

Um dia Waraka perguntou para o amigo a que crença per tencia. Em lugar de qualquer resposta, Maomé por sua vez perguntou a Waraka no que ele acreditava.

- Não posso crer em nada e em ninguém, disse o inter pelado. Justamente por isso é que eu queria saber de ti qual a crença que adotaste, porque então queria fazer o mesmo.

- Mas isso é errado, Waraka, repreendeu-o Maomé. Não se pode adotar uma crença seguindo a opinião de um outro. Se podes aceitá-Ia ou abandoná-Ia à von-tade, então uma tal crença não é legítima. Fé é convicção; é vivência no âmago da alma. Isso não é mutável como um vestuário. Também não se deixa bitolar em fórmulas humanas.

Waraka meditou e concordou com o amigo.- Considerando pelo modo como me explicaste, devo dizer que uma crença

sempre tive, porquanto creio em Deus, o Senhor, do Qual me contaste. O culto do fetichismo abjurei; ele nunca me foi sagrado.

- Também eu creio em Deus, meu Senhor, disse Maomé com seriedade, tam-bém creio em Cristo, Seu santo Filho, o qual veio ao mundo para vivifi car mais uma vez a chama da Luz, que esteve prestes a extinguir-se.

- Então és cristão! Exclamou admirado.- Não. Não sou cristão! Retrucou Maomé, quase com im petuosidade. Não

acredito que Cristo tenha morrido pelos nossos pecados, mas sim por causa da nossa culpa. Isso é uma dife rença fundamental. Também não creio que Cristo pôde cumprir a sua sagrada missão. Os pecados e a ingratidão dos homens impediram-no. Sei que ele deverá vir novamente. Então ele se apresentará diferentemente. Virá em esplendor e trará o Juízo para o mundo todo.

- Precisas dizer-me mais alguma coisa sobre isso, para que eu possa compre-ender e apreender pediu Waraka. Mas agora dize-me primeiro: como tu o entendes, quando dizes que Cristo morreu por causa dos nossos pecados? Naquele tempo nós não estávamos no mundo!

- Então, tens certeza disso? Exclamou Maomé com ênfase. Digo-te, Waraka, que eu, de minha parte, estive naquele tempo aqui! Vejo Cristo, o mais afável entre todos os homens, percorrer seu caminho; vejo-o não como um brando que se des-vanece no amor universal, como os sacerdotes cristãos o descrevem, mas sim como o vigor severo, do qual fl uem amor e misericórdia. Vejo Cristo levantar suas mãos sagradas para abençoar e ajudar; vejo-o desviar indignado seu olhar dos hipócritas, que dele se aproximam. Escuto sua voz, tão agradável, que atrai para si os corações

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com onipotência, e que pode troar como um distante trovão, fazendo estremecer os corações dos pecadores. Vejo Cristo, o Filho de Deus, o mais sagrado que existe sobre a face da Terra, pendendo ensangüentado na cruz, assas sinado!

A voz de Maomé rompeu em copioso choro. Parecia como que algo reprimi-do há muito tempo quisesse se desabafar impe tuosamente. Com muito esforço re-cuperou a calma e então se dirigiu novamente ao amigo, que o escutou comovido.

- Vejo, ouço e sinto Cristo bem perto de mim e sei que outrora pude estar em sua companhia. Assim que procuro aus cultar melhor meu íntimo, e sempre que de-sejo saber o que era então na Terra, desce um véu na frente das minhas recordações; não o devo saber. Muitas vezes pedi esclarecimento, mas este nunca veio.

Que te adiantaria sabê-Io? Perguntou Waraka, medita tivo.

-Talvez eu poderia reparar as faltas em que incorri outrora. Poderia servir mais conscientemente ao Filho de Deus.

- Isso é errado, Maomé, retrucou Waraka. Tudo isso podes fazer do mesmo modo, sem que o saibas. Imagina que tenhas sido um grande pecador, e procura redimi-Io. Sou da opinião que isso poderia ajudar-te para um servir consciente.

- Tens razão, concordou Maomé, talvez seja uma ociosa curiosidade, que Deus não atende.

Há aproximadamente um ano Waraka já estava exercendo suas atividades no comércio, e Maomé tinha certeza de que para os dois juntos não haveria mais serviço sufi ciente na loja.

Um dos dois teria de procurar ocupação em outra parte. Era mais do que evidente que o parente fi caria, ao passo que o estranho teria que se afastar do seu cargo. Isso se coadunava com os seus desejos; contudo, ele em nada quis precipitar-se, e esperou ordens de Deus.

Ou talvez pudesse pedi-Ias novamente? Mas isso não pare ceria como se ele julgasse que Deus o havia esquecido? Enquan to assim meditava, sem chegar a uma conclusão, irromperam do seu íntimo essas palavras:

“Senhor Deus, ó Altíssimo, eu espero!”Isso foi uma prece e até uma admoestação! Maomé fi cou assustado. Teria

com isso ofendido a Deus? Sentiu-se envergo nhado e tornou-se intimamente hu-milde. Então veio o atendimento. À noite, o Senhor mandou di zer-lhe que se pre-parasse para uma longa viagem. Poderiam passar-se dois anos até que ele retomasse a Meca. Sobre o des tino da viagem e qual seria a causa, ele não soube nada ainda. Agora, porém, viera uma decisão. Isso encheu Maomé de grande alegria, que se manifestou em louvores e agradecimentos.

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Já no dia seguinte Chadidsha entrou na loja, na qual se tornara uma rara visitante, e anunciou aos amigos que em Halef havia falecido um devedor do seu marido. Recebera o aviso. Um dos dois deveria seguir viagem para lá, a fi m de co-brar do es pólio as dívidas em aberto.

Maomé achou repugnante esse motivo para a viagem, de sorte que com certe-za teria mandado Waraka, se não lhe tivesse sido revelada a vontade de Deus na noite anterior. Por isso ele se ofereceu sem relutância para empreender a viagem e para exe-cutar a tarefa da melhor maneira possível. Também Chadidsha teria visto com mais agrado se o seu primo se encarregasse da execução do caso, mas também reco nhecia que Maomé era mais competente para isso, devido a sua grande inteligência.

Com toda a calma, Maomé tratou dos preparativos e en tregou a Waraka o controle de todo o comércio. A criadagem que Chadidsha lhe ofereceu, ele recusou. Preferiu ser acompa nhado pelos seus próprios criados, que lhe serviam com leal de-dicação. Para as suas despesas de viagem, pelo contrário, ele aceitou, sem dizer nada, a quantia necessária dos lucros da loja. A isso ele tinha direito, pois se empenharia pelos interesses de Chadidsha.

Ao deixar Meca atrás de si, sobreveio-lhe o prazer pela viagem. Surgiram-lhe vivas recordações da primeira vez em que ele, montado no camelo com o seu tio, passara pelo mesmo caminho. Agora trotava num nobre cavalo, que era seu, do es-tábulo do seu pai. Ao contrário daquele tempo, quando achou o cami nho ao longo do deserto, ermo e fastidioso, agora se distraía ininterruptamente.

Sempre renovava as comparações com a vida humana. Do mesmo modo como o chão, outrora fértil, estava coberto de areia, da mesma forma o bem nos corações dos homens achava-se soterrado. Assim como a areia penetra em qualquer orifício, tam bém o pecado e os maus pensamentos penetram nas almas huma nas, sempre que de qualquer forma estas se abram para isso.

Viu na beira da estrada uma plantinha esforçar-se penosa mente para produ-zir fl or e fruto, apesar da aridez do chão. Sal tou do cavalo e despejou água em cima da planta. Seus acompanhantes gracejaram:

- Não fará muito proveito; porquanto no calor a umidade não dura.- Se cada viandante assim quisesse fazer então a planta estaria salva, retrucou

Maomé. Ademais, nem que isto propor cione apenas um alívio passageiro à planta, não deixa de ser um ato justo.

Também esse pequeno detalhe vivencial tornou-se para ele uma alegoria. O caminho foi quase curto demais, para tudo o que se passou em sua alma. Antes mesmo do que esperava, chegou a Halef. Passou pelo convento, onde esteve inter-

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nado, sem se aperceber. Notou isso somente quando já haviam surgido as primeiras casas de Halef. Quis então fazer uma visita; porém não se arrependeu de que esse seu propósito não chegasse a se realizar. O que desejaria lá! Mais tarde, quando fosse instru mento de Deus, poderia anunciar a Verdade aos irmãos. Agora ainda era muito cedo.

Halef não sofrera modifi cações. Ainda era a mesma cidade comprimida em um pequeno espaço, com as ruelas estreitas e com a vida entregue às lidas comer-ciais. Numa hospedaria ele e seus companheiros encontraram alo jamento satisfa-tório. Então Maomé procurou em primeiro lugar as pessoas que administravam o espólio do devedor. Encontrou uma confusão indecifrável nos assuntos comerciais do falecido.

Apesar da boa vontade dos herdeiros, ainda não tinham sido esclarecidas as questões. Maomé viu que deveria envidar todos os esforços para desempenhar a missão a ele confi ada. Imediatamente levantou-se a já conhecida voz do seu íntimo, a qual sem-pre se manifestava, quando se tratava de executar uma tarefa que não lhe agradava.

“Vale a pena que o futuro instrumento de Deus gaste ener gias e tempo em questões comerciais?” sussurrava ela.

Mas Maomé fê-Ia calar prontamente:“Se Deus o quisesse diferente, então revelaria a Sua von tade. Agora trata de

calar e trabalhar”.Ele estabeleceu um determinado horário para as ocupações comerciais; as

horas restantes dividiu entre a contemplação do mar, do porto, da vida comercial em redor, e a meditação.

Para tudo o mais que a cidade repleta de criaturas de di versas nacionalidades lhe podia oferecer, ele era cego e surdo. Isso não se originou de um determinado propósito, mas sim, parecia como se os olhos e ouvidos nele se fechassem ante todas as tentações, das quais a mocidade em geral se torna vítima. Puro e despreocupado, ele caminhava pensativo entre as imundícies e trevas, sem que estas achassem um acesso a sua alma. Seus companheiros perceberam isso e sentiam grande alegria pela sabedoria e virtude do seu jovem senhor.

Um dia Maomé lembrou-se de procurar a casa na qual havia encontrado, aquela vez, Abu Talib. Como não soubesse o nome daquela gente, era difícil desco-brir, em meio à confusão de ruazinhas e travessas, a tal casa. Mas, de súbito, Maomé teve a certeza de que era da vontade de Deus que ele se dirigisse para lá. Assim, também lhe seria indicado o caminho, como outrora. Vivamente recordava-se do pequeno menino machucado, o qual havia carregado em seus braços, e, como ou-trora, escutava dizer: “Agora à direita”, “agora à esquerda”.

Inconscientemente seguiu essas indicações e chegou real mente à rua certa. Nesse momento viu também a casa, a qual estava em pior estado.

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Sem hesitação entrou e encontrou uma reunião de homens, que era nume-rosa demais para aquele estreito quarto. Todos rodeavam um rapaz, que estava cho-rando, e no qual Maomé reconheceu seu pequeno amigo de outrora. Ele chamou-o, apesar de não se lembrar mais do seu nome.

O rapaz levantou o rosto cheio de lágrimas, e um raio de reconhecimento passou sobre o mesmo.

- Senhor, exclamou ele, a mãe faleceu. Agora querem vender-me. Compra-me, eu te peço. Tu és bom!

Admirados, os homens olharam para o bem-trajado estranho, que aparente-mente era conhecido aqui. Maomé aproximou-se do rapaz e pegou a sua mão.

- É assim, senhores, como ele diz? Perguntou. Por que ele tem que ser ven-dido como um objeto?

- O produto desta casa e dos poucos objetos caseiros não é sufi ciente para cobrir as dívidas do falecido pai e o sepulta mento da mãe. Ele ainda não pode ga-nhar e assim teríamos que esperar muito tempo pelo nosso dinheiro. Agora estão diversos mercadores por aqui, que compram rapazes novos e os levam nos seus navios para países estranhos. Quem mais pagar, recebê-Io-á.

Maomé revoltou-se. Tal coisa não poderia estar na vontade de Deus!Mas compreendeu que nada conseguiria contra isso, com bons esclareci-

mentos. Além do mais, encontrava-se na Síria, cujas leis desconhecia. Então decidiu agir diferentemente.

- Quanto vos falta para completar a quantia necessária? Perguntou, tão in-diferente quanto possível.

Os homens disseram uma quantia relativamente baixa. De novo Maomé perguntou:

- A oferta do comprador alcançará esta quantia?- Senhor, o que pensas? Indignaram-se os homens. Um rapaz tão magro e

fraco pode valer tanto dinheiro? Ficaremos satisfeitos, se um dos ofertantes nos der a metade.

Imediatamente houve gritaria:- A metade? O que pensais? Ficai contentes se receber mos uma terça, não, a

quarta, a quinta parte!Em meio ao clamor, as quantias diferiam, uma sempre mais baixa que a

outra.Então Maomé bradou a palavra: “paz” e as vozes exaltadas calaram-se.- Quero dar-vos a quantia necessária, homens; porquanto lamentaria se vós

saísseis prejudicados, disse amavelmente. Para isso aceito o rapaz assim como ele está aí. O restante dos seus vestuários e demais posses podeis vender. Estais de acordo?

Concordaram! E inclinaram-se até o chão, diante do distinto senhor, o ben-

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feitor, e que fosse abençoado pelos deuses. O rapaz então chegou perto de Maomé e pegou confi ante a sua mão. Não lançou mais nenhum olhar em redor do seu am-biente, quando com o seu protetor deixou a casa.

De mãos dadas, caminharam pelas ruas estreitas, até que chegaram numa zona que Maomé conhecia. Ali ele caminhou à frente e logo depois chegaram à hos-pedaria, onde o rapaz foi entregue aos cuidados de Mustafá. Este foi encarregado de tratar da limpeza e do vestuário. Abrigo encontrar-se-ia sem difi cul dades.

- Como te chamas? Perguntou Maomé, antes ainda de se pôr a caminho do centro comercial.

- Minha mãe chamava-me Said, respondeu o menino. - E que idade tens? Quis ainda saber Maomé.

O interrogado não sabia responder à pergunta. Então seu protetor começou a fazer os cálculos. Três a quatro anos de idade podia ter o menino que ele carregara em seus braços. Quanto tempo fazia que estivera em Halef? Mais ou menos cin co anos, ou um pouco mais, podiam ter passado desde então. Por conseguinte, Said devia ter de oito a nove anos. Mustafá acenou, confi rmando esse cálculo. Pela sua estima tiva julgou o menino com essa idade. Deveria estar certo. De resto, o garoto, de estrutura delicada e com belos olhos, agra dou-lhe. Mais ainda não dava para reconhecer nele. Said, assim sujo como estava e com trajes esfarrapados, dava a impressão de extrema timidez.

- O que pensas fazer com a criança? Como devo vesti-Ia? Quis saber o fi el.- Ainda não pensei sobre isso, confessou Maomé. Vista-o bem, porém com

simplicidade. Logo há de se revelar para qual fi nalidade ele entrou na minha vida. Na noite seguinte, quando Maomé entrou no seu aposento,

quase se esqueceu do menino. O dia havia trazido trabalho muito penoso, como também desgostos e irritações desnecessá rias.

Mustafá havia preparado tudo como de costume, para o jantar. Cansado, Maomé sentou-se ao lado da mesa. Então en trou um bem-trajado pequeno servi-çal, oferecendo com bons modos e habilidade uma tigela fumegante.

O seu senhor quase não o reconheceu. Asseio, cuidados, alimento e sono sufi cientes, juntamente com bons trajes, haviam transformado completamente o garoto Said. Regozijou-se ao ver os olhos admirados de Maomé e na sua alegria juntou as mãos num gesto tão expressivo e infantil, que era lindo apreciar.

- Então, Said, gostas daqui? Perguntou Maomé amavel mente. Queria desco-brir, por meio de uma conversa, como o menino estava se sentindo.

- É tão bom, como deve ser lá em cima, onde pairam as almas, disse radiante.Somente agora Maomé se lembrou de que a mãe desse me nino era judia e

inquiriu-lhe se ela o havia instruído em assuntos religiosos. Said informou que a mãe rezava todos os dias com ele e lhe contava de Deus.

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- Desde que estiveste conosco, senhor, a mãe também falava do Messias, o qual os judeus não reconheceram, assassi nando-o. Ela dizia que tu nos transmitiste isso.

O rapaz não freqüentara escola, porém a mãe ensinara-o a ler e a escrever, dando-lhe também alguns conhecimentos de aritmética.

- Tua mãe era tão erudita? Perguntou Maomé admirado.- Sim, ela era bem instruída. Era de uma nobre descen dência judaica, da

estirpe de Levy. Mas quando se casou com o meu pai, ela deixou de ser nobre.- E que era teu pai? Indagou Maomé, atraído cada vez mais pelo pequeno.- Um homem mau, foi a resposta. Surpreso, Maomé le vantou os olhos.- Tua mãe te disse isso?- Não, senhor, assim disseram os vizinhos, e aí a mãe sempre dizia: “Nenhum

homem é tão detestável, que os outros possam arrogar-se o direito de julgá-Io”. Eu não entendi o que ela queria dizer com isso, porém guardei as palavras como re cordação.

- Mais tarde dar-te-ei a explicação, prometeu Maomé.Logo depois mandou Said deitar-se. Antes, porém, rezou com ele e agrade-

ceu a Deus por lhe ter dado o pequeno com panheiro.- Tu agradeces a Deus, senhor? Disse admirado. Eu é que devo agradecer-Lhe

por poder estar contigo.- Isso podes fazer, animou-o Maomé. E ele sem timidez levantou as mãos,

assim como tinha visto seu senhor fazer, e rezou:“O grande e onipotente Deus, eu Te agradeço por teres me conduzido a um lu-

gar onde a minha alma não precisa sentir fome. Eu Te agradeço pela Tua misericórdia”.Maomé fi cou comovido. Essa criança recompensar-lhe-ia abundantemente

todos os benefícios.Daí por diante sacrifi cou em cada dia algumas horas para instruir o garoto,

que aprendia com diligência e disposição, e compreendia tudo bem. Também o levou muitas vezes em sua companhia nos passeios solitários e mostrou-lhe as maravilhas da natureza. Certo dia, num desses passeios, aconteceu de o rapaz per guntar:

- Que homenzinhos simpáticos são esses que me abanam e acenam? Já os vi várias vezes, porém quase sempre fugiam, assim que nos aproximávamos.

- Homenzinhos? Perguntou Maomé. Não vejo nenhum. Onde os vês?Said indicou na direção de um prado, no qual se achavam algumas pedras es-

parsas. Maomé fi xou fi rmemente o seu olhar naquela direção, mas não viu nenhum vulto. Apenas lhe parecia como se deslizassem véus nebulosos sobre elas. Sacudiu a cabeça. Não podia imaginar o que o menino podia ter visto e julgado homenzinhos. Entretanto, não queria intimidá-Io e não o contrariou quando ele disse:

- Talvez vós, pessoas adultas, não podeis ver os peque nos seres, porque sois muito inteligentes. A mãe dizia-me que somente às crianças é dada a felicidade de ver anjos. Quem sabe se os homenzinhos são algo parecido com anjos.

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Daí em diante Said comunicava fi elmente onde e quando via os gnomos, de sorte que Maomé chegou por fi m a familia rizar-se com os seres para ele invisíveis. Com grande prazer levava o menino junto nos passeios ao mar, num barco movido a remo por pescadores. Ele gosta va dos movimentos balouçantes do barco e também não se per turbava quando estes se tornavam mais violentos e impetuo sos. O menino então se rejubilava e entoava dos salmos, todos os textos que se referiam ao mar.

Os dois anos, dos quais o mensageiro Divino falara, esta vam quase no seu térmi-no, e as questões difíceis podiam ser resolvidas defi nitivamente em poucos dias. Então surgiram na alma de Maomé os pensamentos a respeito de seu futuro pró ximo. Como se desenrolaria a sua vida daqui por diante? Deus não precisaria dele ainda? Através de suas preces, desde algum tempo, afl uíram às alturas os rogos por direção, orientação e ordens novas. Porém por mais que pedisse e suplicasse, nada lhe foi revelado.

Na última noite, antes de iniciar a viagem de regresso, pa receu-lhe ter visto o devoto irmão Cirilo, o qual estava à sua procura. Seria um aviso? Em todo caso não queria deixar de tomar o pequeno desvio que o conduziria até ele. Talvez ainda estivesse vivo. Deixando o seu séquito tomar o rumo certo, ele separou-se no dia seguinte do pessoal e seguiu em direção à cidade.

O imponente cavaleiro foi alvo de olhares de admiração; encontrou, todavia, o caminho que conduzia ao “bendito lugar” e assim chegou à casinha do devoto irmão. Atraído pelo tro pel do cavalo, Cirilo foi até a frente de sua porta, espreitando curioso, o estranho. Maomé chamou-o.

Então aquela idosa fi gura avivou-se. Alegre, estendeu os dois braços em direção ao recém-chegado e deu-lhe boas-vin das também em palavras.

- O quê! Posso ver-te mais uma vez, meu fi lho! Exclamava uma vez por ou-tra, alegremente comovido. Tive grandes sau dades de ti. Tornaste-te um senhor nesse meio tempo!

Maomé desceu do cavalo, que foi recolhido no quintal do vizinho. Então en-trou na casinha, já tão sua conhecida, na qual passara cinco anos. Teve de contar as boas novas; tudo Cirilo queria saber. Este, ao contrário, pouca coisa tinha a contar, mas em com pensação, durante os anos da separação, surgiram na sua men te muitos conselhos bons, que ainda queria dar ao antigo dis cípulo no seu caminho. Agora chegava a vez de poder dá-Ios.

Queria externar tudo tão depressa que quase não encon trava as palavras. As horas eram curtas demais, pois Maomé queria encontrar-se com o seu séquito antes do anoitecer. Apres sou-se para sair. Aí o devoto irmão segurou-o mais uma vez:

- Maomé, meu fi lho, escuta: deves casar! Sem isso nun ca poderás tornar-te

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um legítimo instrumento de Deus. Acredi ta-me que eu mesmo cheguei à conclusão de que o homem sozinho não é homem completo. Somente quando tem mulher e fi lhos é que pode compreender melhor a humanidade. Tam bém é melhor para si próprio quando o homem não peregrina solitário pela vida. Acredita-me, meu fi lho, meu conselho é bom. Segue-o.

Então se despediram e o hóspede se pôs apressadamente a caminho. Somente muito tarde encontrou o acampamento que o seu séquito levantara nesse ínterim.

- Estávamos apreensivos com o senhor, disse um dos criados. Mas Said nos assegurou de que nada tinha te aconte cido. Ele conservou-se tão confi ante, que também nós fi camos animados.

- De onde veio essa certeza, rapaz? Perguntou Maomé, meio gracejando. Mas a resposta surpreendeu-o:

- Os pequenos gnomos disseram-me que apenas estavas atrasado, mas que nada tinha te acontecido.

- Desde quando podes escutar o que os invisíveis dizem? Perguntou Maomé com grande admiração.

- Senhor, desde hoje, quando orei por ti.

Chegaram a tempo a Meca. Num pequeno cavalo, com prado para ele em Ha-lef, Said percorreu o trajeto da viagem com tal naturalidade como se há muito já esti-vesse habituado a montar a cavalo. Também nada podia atrapalhá-Io tão facilmente, o que foi percebido por Maomé com grande satisfação. A chegada no palácio dos Koretschi foi um acontecimento que abalou o equi líbrio íntimo do menino. Uma casa como essa, no meio de jardins fl oridos, ele nunca havia visto. Quase não podia ser induzido a entrar. A decoração interna era para ele motivo de repetidas exclama ções de júbilo. Todos se regozijavam com ele e competiam em mostrar-lhe as belezas cada vez maiores. No dia seguinte Mao mé dirigiu-se para a loja, onde encontrou Waraka à sua espe ra. A notícia sobre seu regresso espalhara-se muito rapida mente.

Então também Chadidsha acorreu e cumprimentou o pro curador, como o denominou. Ele tratou de prestar contas, sem delongas, daquilo que conseguira. Em-bora a viúva não tivesse demonstrado disposição para falar em assuntos comerciais, teve de sujeitar-se à vontade mais forte.

Maomé mudara de feições nesses dois últimos anos. O pessoal da loja olhou para ele com agrado. Tornara-se um ho mem altivo, esbelto, e, no entanto, amável e bondoso.

Sua beleza juvenil havia se manifestado plenamente. Uma fi na barba preta crespava-se em volta do queixo e das faces; ca belos bastante compridos e encaraco-

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lados emolduravam o rosto delgado. A tendência para a corpulência desaparecera aparentemen te; todos os músculos eram rijos e seus passos eram fl exíveis. Ninguém calculava a sua idade pela aparência. A prestação de contas demorou alguns dias. Depois disso, Maomé quis saber o que havia se passado nesse meio tempo, e Waraka teve satisfação em poder relatar coisas boas.

Nesse dia Chadidsha pediu a Maomé que a acompanhasse até a sua moradia, na qual ele nunca havia entrado.

Como havia perguntado sobre as pedras preciosas, e como Chadidsha tinha dito que as guardara nos seus aposentos, jul gou que ela queria entregar-lhe as pe-dras, ou pelo menos mos trá-Ias.

Em lugar disso, ela conduziu-o para um aposento provido fartamente de móveis estofados, almofadas e tapetes, que de tanta maciez fi zeram-no afundar os pés, e pediu-lhe que sentas se. O ar estava impregnado de odores de toda a espécie e opri miu-o, mas não ousou abrir a janela.

- Queria conversar sobre alguma coisa contigo, Maomé, começou Chadi-dsha, hesitante.

Antes que ela pudesse continuar a falar, ele interrompeu-a:- Tens de dizer-me aqui em teus aposentos? Não podía mos falar sobre isso

embaixo, na loja? O ar aqui está abafadiço e sufocante.- O que tenho a te dizer, meu amigo, retomou Chadidsha a palavra. Pouco

tem a ver com a loja. De tais coisas devemos falar aqui em cima.Ele estava curioso por saber o que viria agora. Ela come çou de novo.- Já faz oito anos que sou viúva. Quase todo esse tempo és meu empregado.

O comércio fl oresceu sob tua mão. Durante esse tempo fi caste homem. Mas eu estou solitária e sem fi lhos. Embora eu seja mais velha do que tu, isso no entanto é uma garantia de que te serei fi el. Não quero mais continuar viúva. Se me despreza-res, então darei a mão ao primeiro que se interessar pela casa, pelo comércio, e que deseje me aceitar como esposa.

Ela pronunciou mais do que era sua intenção. Perplexo, Maomé olhou para a mulher. Isso ele não esperava!

- Para, Chadidsha! Implorou ele. Não destroces a alva fl or da pureza! O tom das palavras calou nela. Mas ela olhou para ele, demonstrando in-

compreensão.- Como entendes isso, meu amigo? Perguntou. Que mal faz à minha pure-

za se te peço para seres meu esposo e com panheiro? Há anos já és senhor da loja. Tudo correu segundo tua vontade. É apenas um pequeno passo para ti tornar-te real-mente dono. Um dia terás de casar. Um homem sem mulher e fi lhos é um homem só pela metade. Conheces-me. Comigo, sabes quem estás levando a tua casa. Pensa bem, meu amigo, mas não me deixes esperar muito pela tua resposta.

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Aliás, ela bem que quis acrescentar que muitos homens se sentiriam felizes ao receberem tal oferta, porém pressentiu que com isso afastaria esse homem reservado. Assim, preferiu ca Iar-se. Maomé, no entanto, sentia-se como que atordoado. Cirilo havia-lhe dito que devia casar. E agora essa mulher se ofereceu a ele! Seria essa uma condução de Deus? Tudo nele girava. Gos taria de sair correndo dali para nunca mais voltar. Mas isso não poderia fazer sem primeiro auscultar a vontade de Deus.

- Amanhã te darei a resposta, Chadidsha, disse ele, tão amável quanto lhe foi possível. Tua proposta veio-me muito inesperada. Eu sempre fui da opinião de que o homem é que deve pedir a mulher em casamento. E tu fazes o inverso. Isto não me agrada. Mas quero pensar sobre isto. Talvez ache uma resposta.

Sem voltar à loja, dirigiu-se para casa. Os pensamentos re volviam-se nele; sentiu-se, porém, contente de poder esforçar-se em silêncio nos seus próprios apo-sentos, para achar clareza.

Said percebeu, através da fi na intuição que lhe era inerente, que o seu pro-tetor queria fi car a sós, e retirou-se sem ser notado. Todavia Maomé não conseguiu ainda fi car sozinho; porquanto Waraka o procurou para comunicar-lhe importan-tes assuntos comerciais.

Depois de terem tratado dos assuntos de negócio, o visitan te hesitou em deixar o seu amigo. Sentiu que se agitavam pen samentos nele, os quais não podia dominar; também pressentiu o conteúdo desses pensamentos.

- Estás perturbado, Maomé, começou amavelmente. Olha, eu sou mais velho e mais experiente do que tu. Confi a-me tuas preocupações e deixa-me aconselhar-te. Muitas vezes um caso se deslinda, quando se procura exprimí-Io em palavras.

Maomé olhou para o amigo. Sabia que podia confi ar nele. Talvez lhe ajudas-se mesmo, se falasse com ele sobre o delicado assunto.

Ai Waraka começou novamente:- Acredita-me, eu conheço Chadidsha desde pequena. Como a mais nin-

guém no mundo, te é dado despertar nela to das as boas qualidades. Muito já conse-guiste e mais ainda con seguirás, porque Chadidsha te ama!

- A mim? Admirou-se Maomé, incrédulo. Disso ela não falou nenhuma pa-lavra.

Waraka quase não pôde conter um sorriso. Quão pouca experiência da vida teve esse homem, que no mais era tão sábio!

- Isto decerto ela te ocultou por diversos motivos, meu amigo, declarou. Ela conservou em si um remanescente de su blime pureza, apesar de que a vida que teve de levar ao lado do marido a obrigasse a abandonar certas peculiaridades. Ao teu lado, desabrochará nela novamente a verdadeira feminilidade. Disso estou certo.

Foi de fato a amizade sincera que fez Waraka falar assim. Sabia que Maomé mais cedo ou mais tarde iria casar-se. Outra coisa não se podia esperar em face da

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sua predisposição geral. Por si só, porém, nunca iria pedir uma mulher em casamen-to; sempre teria que ser encorajado para isso. Por esse motivo poderia passar por experiências mais sombrias do que com Chadidsha.

Na alma de Maomé algo se patenteou durante essa pales tra. Assim que Wa-raka saiu, fi cou mais calmo. Compreendeu claramente que o assunto do casamento era apenas terreno. Sua alma não tinha sido atingida com isso e nem o seria no futuro. O devoto irmão teve razão ao dizer que ele deveria conhe cer todos os aspec-tos da vida humana para poder conduzir os outros. Conhecia Chadidsha e sabia o que poderia esperar da sua capacidade compreensiva. Portanto, queria aproveitar a opor tunidade que se lhe oferecia. Ao concentrar-se para fazer a oração, recordou-se de que tivera a intenção de levar o assunto diante do trono de Deus. Chegou à con-clusão, porém, de que jamais o deveria fazer. Um caso tão terreno o homem deveria resolver consigo mesmo, sem importunar Deus com isso. Assim, apenas agradeceu a Deus, que lhe proporcionou a oportunidade de, logo após receber o conselho do devoto irmão Cirilo, poder executá-lo. Com amável serenidade foi comunicar a Chadidsha, na manhã seguinte, que estava disposto a casar-se com ela. Sua alegria foi tão arrebatadora, que o assustou. Ela notou isso e moderou-se. Insistiu então que o enlace fosse realizado breve, pois não se contrapunha nenhum obstáculo. Ma-omé era o chefe da família e não havia necessidade de pedir consenti mento. Deixou a critério dela fi xar e determinar tudo o que se fi zesse necessário. Em casa partici-pou a Mustafá a mudança que se operaria na sua vida. O fi el absteve-se de qualquer conselho. Entretan to, trouxe um escrito que Abd aI Muttalib lhe entregara, antes do seu falecimento, destinado ao então pequeno neto. Deveria ser entregue a Maomé somente quando este estivesse prestes a casar-se.

O ancião escrevera:“És um sonhador, Maomé! Quando fi cares moço, serás um tolo. Renunciarás

abnegadamente à felicidade e ao bem-estar terreno, para correres atrás de quimeras. Vejo nitidamente diante de mim o teu caminho terrestre. Em toda a parte e sempre, retrocederás, para ceder aos outros os proveitos que te são destinados. Assim tam-bém não tomarás, por ti, a iniciativa de pedir uma mulher em casamento, porém a mulher que te amar pe dirá tua mão. Disso poderá resultar uma imensa desventura quando, mais tarde, encontrares a moça pela qual te apaixones. Tudo isso vejo tão claro, porquanto te amo, meu fi lho. Meu amor por ti ocultei atrás de uma máscara rígida; pois eu não quis te estragar com mimos. Mas tenho de deixar-te sem poder chegar a ver-te maduro, como homem consciente. Pelo menos para atenuar o infor-túnio que trarás sobre ti pelas tuas vocações especiais, dou-te hoje um conselho e, con comitantemente, a possibilidade externa de seguí-lo. Não vivas do dinheiro da tua mulher. Deixa que fi que com o que é dela e que o aplique para si e para os seus fi lhos. Tu, porém, vive altivo e livre ao lado dela, e não com ela. Promete-o a mim, o falecido,

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a bem do sossego na tua vida. Para que não precises depender de uma mulher e de sua parentela, sabe que; No pavilhão, num lugar conhecido apenas por Mustafá, acha-se guardado, numa parede, considerável tesouro em pedras preciosas e ouro cunhado. Pertence-te; porquanto eu o jun tei para ti. Ninguém mais tem direito a ele. Contudo, será melhor que não fales com ninguém sobre isso, a não ser com Mus tafá. Esse di-nheiro aplica para ti e para aqueles teus fi lhos que o merecerem. À tua mulher, porém, não dês nada. Também nada lhe contes. Acredita-me que assim será melhor,”

Depois, seguiam-se conselhos sobre a remoção e o empre go do tesouro. O escrito fi nalizava com a bênção do avô para o seu neto. Maomé estava de pé, aturdido; o manuscrito caiu-lhe das mãos.

Então recobrou o domínio sobre si e agradeceu, ora a Deus, o Senhor, ora ao avô falecido. Sabia que essa indepen dência terrena teria para ele uma signifi cação incomensurável.

“Senhor, se Tu agora me chamares para servir-Te como Teu instrumento, en-tão não terei de pensar nenhum instante em coisas terrenas”, rejubilava-se. “Estou livre para tudo o que quero e devo fazer.”

Não teve dúvidas em guardar segredo sobre o tesouro. So mente com Mustafá falou sobre o acontecido. Os dois resolve ram então procurar, numa das próximas noi-tes, a abertura da parede abobadada, para verifi car o montante da inesperada herança. Então retirariam apenas um pouco e o restante empare dariam de novo.

Feito isso, Maomé soube que era presumivelmente o ho mem mais rico de Meca. Regozijou-se com isso, porque obteve assim a sua liberdade.

Em seguida falou com Chadidsha. Perguntou-lhe como imaginava o futuro das vendas. Ela respondeu que até então ele praticamente tinha sido o senhor, porém, agora, deveria tornar -se realmente.

- E o que será de Waraka? Insistiu. Ele e eu somos de mais para o movimento do comércio.

- Portanto, que se retire para lá de onde veio, retru cou Chadidsha, indiferente. Não o chamamos e não o segu raremos.

- Essa não é a minha opinião, replicou Maomé seriamen te. Eu, pelo contrário, desejo que ele assuma a direção dos negócios, visto que não pretendo ocupar-me no futuro com assuntos comerciais.

- Talvez aches meu amigo, que eu seja tão rica, que possas levar uma vida ina-tiva? Disse com voz cortante.

Nesse momento Maomé percebeu como o seu avô julgara certo. Sentiu grato contentamento em não precisar aceitar na da do dinheiro dela.

- Estás enganada, Chadidsha, retrucou calmamente. Não levarei uma vida inativa, mas, ao contrário, tão ativa que não me sobrará tempo para o teu comércio. Não farei uso do teu dinheiro; tenho posses sufi cientes para manter-me sozinho.

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Tu do o que te pertence, podes aplicar para ti.Então ela percebeu que o seu plano de adestrar e subjugar mediante sua

riqueza aquele homem estava errado. Quase desistiu do casamento, mas era como Waraka dissera: ela real mente amava esse homem, bem mais moço do que ela. De-sejou saber qual a profi ssão a que Maomé se dedica ria no futuro. Ele apenas respon-deu que isso era assunto seu. Mais tarde ela o saberia.

Todavia, nem poderia ter dito, pois ele mesmo ainda não o sabia. Durante a conversa, algo o impeliu a falar dessa ma neira. Agora devia dirigir-se ao Todo-poderoso para receber orientação. Já na mesma noite soube que procedera certo ao livrar-se do comércio. Recebeu ordem de esperar pacientemente. Em tempo propí-cio lhe seria feita uma oferta, a qual deveria aceitar. Assim, preparou-se e encarou o futuro confi antemente.

Algo, porém, preocupava-o: era o pensamento de ter que condu zir Chadi-dsha ao palácio paterno. De modo algum ela combina va com o aristocrático esplen-dor. Afi gurou-se-Ihe, em pensa mento, como se já escutasse sua voz estridente soar pelos pór ticos e pelas escadarias. Então fi cou receoso.

Sentiu necessidade de falar com um homem idoso sobre isso; entretanto, a Mustafá não podia confi ar o problema e Wa raka era parente de Chadidsha. No entanto, Waraka, por si, veio a falar sobre o assunto. Chamou a atenção de Maomé que era costume o homem levar a mulher para a sua casa, porém se esta fosse viúva e possuísse uma casa, então o homem deveria morar com ela, segundo o costume generalizado.

Foi por essa razão que Abu Talib se prontifi cara volunta riamente a deixar o palácio!

Waraka tinha sido mandado por Chadidsha, pois esta re ceava que Maomé fosse insistir para que ela mudasse para o palácio dele. Ela, entretanto, tinha amor ao seu próprio lar e de maneira alguma queria deixá-Io. Assim, ambos sentiram-se ali viados.

Maomé confi ou a Mustafá que o seu casamento não altera ria quase nada a vida do palácio. Todos os criados deviam con tinuar suas atividades de até então. Também Said continuaria a freqüentar dali mesmo a escola do templo, à qual seu protetor o mandara desde algumas semanas.

Ele mesmo, Maomé, iria morar temporariamente na casa de Chadidsha, po-rém voltaria sempre de novo ao palácio. Isso provocou grande alegria entre os criados, que agora se esforça vam tanto mais para proporcionar-lhe uma vida aprazível.

Dois dias antes do casamento, apareceu um mensageiro do idoso soberano, cha-mando Maomé à corte. Este resistiu à curio sidade de perguntar ao mensageiro sobre a fi nalidade de sua ida ao palácio. Chegaria a percebê-Io sozinho.

Na hora aprazada, encontrava-se no palácio monárquico diante do soberano da

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Arábia, o príncipe Abul Kassim. Era um homem debilitado e de avançada idade, a quem poucos dos seus súditos chegaram a conhecer. No entanto, o ancião irradia va uma tal dignidade, que Maomé a sentiu nitidamente. Inclinou-se e esperou que lhe fosse diri-gida a palavra.

- Maomé ben Abdallah, disse o príncipe em voz baixa, soube que és um sá-bio. Um homem sábio é o melhor amparo para um soberano, quando à sabedoria se aliam devotamento e fi delidade.

Abd aI Muttalib foi meu amigo. Era meu conselheiro. Quis promovê-Io a primeiro vizir, mas ele recusou-se a servir-me de outro modo, a não ser em sigilo.

“Um neto meu está crescendo. Este podes chamar, quando tiver idade sufi -ciente”, disse ele pouco antes de sua morte. Esse neto és tu, Maomé. Mandei obser-var-te. És como desejo que seja o meu auxiliar. Queres ser meu vizir?

Perplexo, Maomé olhava para o idoso soberano. Ser seu primeiro-ministro, seu eventual substituto, ele, que não sabia como se governa um país!

Então lembrou-se de ter Deus mandado dizer-lhe que acei tasse a primeira oferta que lhe fosse feita. Portanto, estava na vontade de Deus que ele seguisse esse chamado.

Movimentou a cabeça para trás e olhou com olhos claros para o soberano.- Se achas, príncipe, que sou sufi ciente para servir-te, então estou pronto. Acei-

to este cargo da mão de Deus. Ele ajudar-me-á a desempenhá-lo corretamente.- E eu aceito-te como meu conselheiro, da mesma mão, complementou o

príncipe. Assim trabalharemos juntos benefi camente.Com muito gosto Maomé teria perguntado:“O que sabes de Deus?”Mas não ousou dizê-lo. O soberano, no entanto, pressentiu a pergunta não

pronunciada e respondeu-lhe:- Tornei-me judeu pelo meu amigo Abd aI Muttalib, Maomé. Creio em Deus

de todo o coração. Por isso não po deria tolerar um vizir ateu ao meu lado.Maomé foi convidado a comparecer na manhã seguinte, po rém o príncipe

pediu-lhe que nesse meio tempo não falasse a ninguém sobre o seu cargo. Isso, aliás, Maomé já por si não teria feito. Precisava primeiro chegar ao sossego íntimo, antes de poder dizer uma palavra sobre tudo o que vivenciara nos últimos tempos.

Passou a noite orando. Era demasiado o que lhe pesava sobre a alma. Sentiu-se impelido a levar seus pedidos diante de Deus, sem considerar se eram terrenos ou espirituais.

Cheio de confi ança, dirigiu-se na manhã seguinte ao palácio do potentado. O príncipe cumprimentou-o alegremente; o jovem auxiliar agradou-lhe.

De início combinaram os aspectos externos dos encargos a serem assumidos por Maomé, nos quais deveria se ambientar aos poucos. Depois o príncipe Abul

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Kassim comunicou-lhe que tam bém fazia parte das suas obrigações representá-Io; pois devido à sua avançada idade, não podia viajar.

Tudo isso Maomé achou muito atraente. Durante a noi te recebera forças para assumir qualquer trabalho. Tornou-se -lhe compreensível, também, que justa-mente nessa posição é que poderia atuar para Deus. Talvez esse fosse o início de sua con vocação como instrumento de Deus.

Quando todas essas coisas tinham sido combinadas, ocasião em que a pater-nal amabilidade do príncipe conquistara o cora ção de Maomé, então Abul Kassim perguntou sobre o passado do seu novo vizir.

Soube que Maomé iria se casar já no dia seguinte. Depois de Maomé ter dado todas as respostas às perguntas que se re feriam à sua futura esposa, o idoso soberano balançou a cabeça.

- É inadequado, Maomé, que tua escolha tenha caído sobre essa viúva, que não se adapta ao nível de tua posição, disse pensativo.

Maomé, entretanto, respondeu prontamente:- Eu não a escolhi, foi ela que me pediu em casamento. O príncipe pôde

compreendê-lo. Meditando demoradamen te, disse:- Não fi ca bem que a deixes, um dia antes do casamen to, por causa do teu

novo cargo. Tua palavra deves cumprir. Mas será justamente o teu cargo que te pre-servará de muitos dissabores.

Ordeno-te, como meu novo vizir, que continues residindo no palácio dos teus antepassados e que procures tua esposa somente na casa dela, quando sentires desejo para isso.

Da mesma maneira, os eventuais fi lhos deverão morar com ela, visto não terem mãe de linhagem fi dalga. Quando mais tarde se oferecer uma oportunidade para pedires uma moça de família nobre em casamento, então essa deverás levar para teu pa lácio.

Pelas leis do país isso é permitido, e as leis judaicas não são contra.Como já era da intenção de Maomé não abandonar a sua morada no palácio,

a ordem do soberano lhe foi muito opor tuna.Foi combinado que depois do dia seguinte assumiria o car go e então seria

apresentado aos outros conselheiros do príncipe. Consciente de ter encontrado em Abul Kassim um segun do pai, Maomé deixou o palácio do soberano.

No dia seguinte realizou-se a solenidade do casamento no templo judai-co. Para Chadidsha era indiferente onde se daria o cerimonial. Entretanto, Maomé queria sobretudo que a união conjugal fosse celebrada sob os olhos de Deus.

Não se tornou consciente de que com esse ato se confessava publicamente judeu; também isso não o teria impedido de dar tal passo. Queria mostrar que acre-ditava em Deus, onde quer que fosse.

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Chadidsha havia convidado muitas pessoas para os festivos cumprimentos em sua casa. Nessa ocasião Maomé tornou a ver seu tio Abu Talib, o qual compare-cera com a sua esposa.

- Estou contente, disse Abu Talib, por teres achado uma esposa rica, cuja fortuna te ajudará a progredir na vida.

- Também espero fazer progresso sem esse dinheiro, foi a resposta de Maomé.Conversou com o tio, como se nunca tivesse havido qual quer desavença en-

tre eles. Soube que Abu Talib tinha um fi lho com pouco mais de dois anos de idade, que lhe proporcionava muita alegria.

- Vem visitar-nos para conhecer o pequeno Ali, insistiu o tio. Maomé pro-meteu-lhe.

Na manhã seguinte deixou a casa de Chadidsha e dirigiu-se ao palácio prin-cipesco, onde, após solenes cumprimentos dos outros conselheiros, recebeu suas instruções e iniciou os traba lhos que durante anos requereriam seus bons ofícios.

Tornou-se evidente que Maomé não só compreendia com facilidade tudo o que lhe era dito e explicado, mas também que nele se ocultavam virtudes de um soberano nato, que agora su bitamente despertavam.

Quando o príncipe lhe dava algumas indicações, então se abria diante da vista espiritual de Maomé um vasto panorama, dentro do qual ele podia dar ordens e aconselhar. Teve a capa cidade de penetrar nas almas dos outros e adaptava suas deter minações de tal modo, que desde logo conquistou confi ança.

De mais a mais, nunca aceitava agradecimentos e louvores para si, mas sim, fazia tudo em nome do príncipe. Os demais con selheiros, que a princípio haviam visto com inveja que um des conhecido, descendente de família judaica, fosse ad-mitido ao lado deles, não tardaram em reconhecer como tinha sido pro videncial a escolha do príncipe.

Os melhores entre eles uniram-se estreitamente a Maomé; os demais, que formavam a minoria, não ousaram manifestar-se.

Chadidsha, que se casara com um homem para no dia ime diato privar-se dele, em favor do príncipe e da vida pública, fi cou tão orgulhosa e contente com as honras de que seu marido era alvo, que se vangloriava desse brilho e não sentia falta de nada.

Ela, aliás, imaginou que desempenharia dali por diante um papel entre as mulheres da nobreza de Meca, mas Maomé fez com que ela visse, desde o início, com palavras bondosas e se renas, que isso seria impossível.

Teve a compreensão sufi ciente para conformar-se e para proporcionar ao seu esposo apenas coisas belas e aprazíveis, nas poucas horas que ele podia dedicar-lhe.

Além disso, a consecução de seu ardente desejo transfor mou sua índole. Era como Waraka previra: ela tornara-se mais feminina.

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Fazia tudo para agradar a Maomé e não podia deixar de pro curar adaptar-se ao seu modo de pensar. Não tardou em pedir -lhe que a instruísse na crença judaica.

Maomé viu que o casamento se tornara benéfi co para a mulher, sem ser um obstáculo para ele.

Passados cerca de oito meses, teve de fazer uma viagem a Jerusalém, por ordem do príncipe, para chegar a um acordo com os árabes ali residentes. Sua ale-gria em poder ver a cidade onde Cristo atuara foi imensa. Com isso quase chegou a esque cer-se da fi nalidade terrena de sua viagem.

Com brilhante acompanhamento, dando a impressão de um jovem prínci-pe, viajou pelo reino árabe em direção ao norte. Em toda parte aonde chegava, era recebido com grandes honras.

Nessas ocasiões, eram-lhe dirigidos numerosos pedidos para decidir sobre questões e para punir malfeitores. Antes de fa zê-Io, sempre concentrava sua alma em oração, e assim ele podia ter a certeza de que as suas decisões seriam certas e de acordo com as leis de Deus.

Chegara a Jerusalém! Quando viu a cidade diante de si, sobrepujou-o o sa-ber sobre o Filho de Deus, saber esse que muitas vezes o sensibilizara profundamen-te, com toda a força.

“Devo ter peregrinado aqui com ele!” exclamou, e lágrimas de profunda emoção escorriam dos seus olhos. “Talvez pude acompanhá-Io, como um dos seus discípulos!”

Na entrada, esse pressentimento redobrou. Parecia conhe cer cada uma das antigas ruas estreitas. Como lhe era incômodo o contraste de viajar por aqui, com grande pompa, onde Cristo andara tão simples.

Com muito prazer teria passado a um outro a mensagem e a representação de que era portador, para peregrinar em si lêncio como servo do Filho de Deus nas suas pegadas.

No dia seguinte passou então por outros sentimentos. Lá onde Cristo sofrera e morrera, judeus e adoradores de fetiches disputavam o pedaço de chão. Os cris-tãos não procediam me lhor; apenas eram mais arrogantes do que os outros. Isso lhe causou repugnância.

Em primeiro lugar tratou daquilo de que fora encarrega do. Houve muitas conferências com altos dignitários, os quais não queriam saber da mensagem do príncipe e do seu direito de mandar-lhes tal mensagem.

Por muito tempo, porém, eles não puderam se opor às sim ples e categóricas argumentações do jovem representante. Ele granjeou a simpatia e a confi ança deles.

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Houve casos em que pediram conselhos para os seus pró prios problemas, e ele sempre aconselhava desde que essa ati vidade não viesse a prejudicar o seu príncipe.

Entrementes teve um tempo de espera, porquanto a respos ta ao príncipe tinha que ser redigida convenientemente em pa lavras, para o quê os estranhos dig-nitários demoravam.

Assim, Maomé alegrou-se de poder dispor livremente de mais alguns dias. Para ele isso signifi cava liberdade de fazer o que bem lhe aprouvesse. Tirou os trajes de gala e passeou em vestuário simples pelos caminhos que lhe eram conhecidos.

Procurou o templo, o qual se achava fechado justamente nesses dias, porque judeus e cristãos disputavam acaloradamen te a sua posse. Essa sagrada obra arqui-tetônica dos judeus apre sentava vestígios de um desmoronamento progressivo.

Maomé preferiu ir aos lugares que fi cavam ao ar livre. Sem necessidade de pedir a alguém uma orientação, encontrou o jar dim de Getsêmani e rompeu em choro ardente ao contemplá-Io. Será que ele fora um dos que não haviam sido ca-pazes de fi car por uma hora sequer em vigília pelo Filho de Deus? Viu to dos, todos! E decidiu passar a noite ali, orando e vigiando. Ajoe lhou-se lá onde o grupo dos discípulos esperara o seu Senhor, quando ali tinha ido orar.

Não surgiu na sua mente qualquer impulso de querer pôr os pés no lugar onde Cristo se ajoelhara em oração. Subitamen te teve de dizer “Jesus”, em lugar do nome de Cristo, que lhe era familiar desde a infância.

“Jesus, sim, assim dizíamos”, sussurrou. “Mestre”, foi a palavra seguinte que ele encontrou. “Mes tre, quero ser teu

servo, meu Senhor e meu Deus! Quero dar testemunho de ti aos homens, para que todos creiam em ti. Também com isso poderei ser um instrumento de Deus, teu Pai.”

Rezava fervorosamente, e durante a prece passaram diante dele vivas ima-gens da vida do Filho de Deus, a partir do dia em que chegara a vê-lo pela primeira vez. Novamente viu todos os que rodeavam Jesus, exceto um, e este um devia ter sido ele.

“Senhor, Jesus, Mestre”, rezou, “então eu já fui uma vez teu servo; consente que possa sê-lo novamente”

Nesse momento uma voz chamou: “Natanael, o Senhor atendeu a tua prece! Vive de agora em diante como

Seu servo; foste destinado a ser um servo do supremo Deus.”E Natanael-Maomé inclinou-se completamente e tocou com a testa no chão,

em sinal de promessa. Quieto e solitário pôs-se no dia seguinte rumo a Betânia.Acima de tudo, experimentava em si mesmo o cristianismo, mas diferente

do que os homens ensinavam. Irrompeu nele uma veemente indignação ao obser-var os cristãos e sua crença.

“Isso tem de ser mudado! As palavras de Jesus devem ser postas novamente

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em primeiro plano, e não as sabedorias que os homens derivaram delas para si. Que insolente e condenável procedimento!”

Mas por essa época consolidou-se algo mais em sua intui ção: experimentou em si próprio que os homens não vivem ape nas uma vez na Terra. Sabia quando e sob qual nome ele servi ra outrora ao Filho de Deus.

Então compreendeu nitidamente que ele não constituía nenhuma exceção na humanidade. Como ele já vivera uma vez, assim também todos os outros homens vi-veram igualmente mais vezes na Terra. Nunca havia escutado tal opinião, mas ela se tornou para ele uma convicção pela própria experiência vi vencial.

Nos seus passeios solitários, os quais prolongava cada vez mais para ver o quanto fosse possível dessa região, que fora pre destinada a ser a terra natal do Filho de Deus, meditava e investigava.

Chegou à conclusão de que muitas existências devem con seguir ou reforçar o que uma única existência não pode reali zar. “O que enfi m a vida quer de nós? Por que chegamos a este mundo?”

Deveria partir dessa pergunta e se achasse uma solução, então tudo o mais se seguiria.

O que mais gostaria era de livrar-se da vida na corte, para poder permanecer por tempo indeterminado na terra dos judeus e prosseguir nas suas investigações. Mas o saber de que poderia tornar-se um instrumento de Deus pesou muito.

Certo dia, fi nalmente, fi caram prontos os escritos que deve ria levar de volta ao príncipe. Foram preparados satisfatoria mente, e assim nada impedia a sua partida de regresso. Pesaroso, separou-se da cidade que tanta coisa lhe proporcionara.

Julgou não poder ser mais alegre e feliz em nenhum outro lugar. Todavia, quan-do entrou na verdejante paisagem da Síria, com a sua abundância de fl ores e frutas, nesse momento o seu coração exultou de gratidão e alegria por tanta beleza.

A cavalgada na beira do deserto dessa vez não o estimulou a comparações. Todos os seus pensamentos se concentravam no futuro; urdia projetos e nutria esperanças.

Abul Kassim demonstrou o seu franco regozijo ao ver seu conselheiro no-vamente a seu lado. Tudo o que fora pretendido, foi conseguido. Agora podiam dedicar-se a outras tarefas.

O príncipe gostava de dialogar ao anoitecer com o seu confi dente, especial-mente sobre o que se passava em sua alma. Maomé era para ele como um fi lho, perante o qual revelava sem receio o lado mais recôndito de seu caráter.

Previa complicações intrincadas após seu trespasse, que não estava muito longe. Não tinha fi lhos. Suas cinco mulheres de ram-lhe somente fi lhas, e estas se

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casaram com homens que não possuíam aptidões para funções no governo.- Tivesse ao menos um genro que pudesse se tornar meu sucessor, suspirava

muitas vezes. Agora, príncipes de outras di nastias arrogar-se-ão o direito de dispu-tar o domínio árabe. O reino desmoronará, e os meus projetos de grande alcance no sentido de unir os reinos vizinhos, desfar-se-ão em nada.

Maomé prometeu novamente sondar, a fi m de achar um su cessor habilitado. Estava convicto de que também nisso receberia ajuda de Deus, posto que seria em benefício de um grande rei no, cujos habitantes esperava converter para o único e ver dadeiro Deus.

Em casa lhe aguardava uma surpresa. Chadidsha dera à luz um belo menino. Ainda não recebera a bênção do sacer dote, por não ter a mãe se lembrado disso. Entretanto, agora ela queria que o levassem ao templo.

Maomé se opôs. Queria que a criança fosse batizada con forme a doutrina cristã e que recebesse o nome de Natanael.

- És incompreensível, meu amigo, amuou Chadidsha. Ca saste num templo ju-daico. E teu fi lho deve ser batizado como cristão. Estou ansiosa em saber o que ordena-rás quando Nata nael tiver irmãos. Natanael! Um nome feio. Eu chamá-Io-ei de Eli.

- Chama o menino como quiseres, Chadidsha, permitiu Maomé, o que mais importa é que ele se torne interiormente um Natanael e reconheça seu Mestre.

Quando participou o nascimento do fi lho ao príncipe, este disse:- É pena que ele não tenha uma mãe nobre, senão po deria casar com uma

das minhas numerosas netas.Entre esse grupo de meninas que desabrochavam em volta da corte dinás-

tica, encontrava-se uma extraordinariamente en cantadora, comparável a uma fl or. Princesa Alina devia ter cerca de cinco anos. Era delicada e ágil. Suas risadas alegra-vam o príncipe.

Quando, ao procurar o avô, encontrava Maomé, o que acontecia freqüen-temente, então puxava os longos cabelos on dulantes sobre o rosto, à guisa de um véu. O príncipe ria disso; Maomé, porém, fi cava emocionado porque via nisso uma prova da delicada pureza sutil da criança.

Um dia o príncipe revelou-lhe um pensamento que o fez permanecer acordado por várias noites consecutivas.

- Escuta, Maomé, disse bondosamente, mas de modo sério, achei uma solu-ção de como arranjarei um sucessor auto rizado, o qual, sei bem, concretizará tudo o que foi iniciado, no sentido por mim preconizado.

Assim que Alina crescer, far-te-ei casar com ela. Com isso serás tu o mais próxi-mo ao trono, de acordo com as nossas leis. Se além disso eu ainda tornar público, antes de meu falecimen to, que tu deverás ser o meu herdeiro, então todas as pretensões dos outros serão sufocadas no germe, e eu poderei deixar a Ter ra em paz.

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- Alina, a graciosa criança! Exclamou Maomé estupefato. Eu sou tão mais velho, que poderia ser seu pai.

- Isso não importa, replicou Abul Kassim de bom humor. Tua primeira mu-lher é mais velha do que tu; deixa a segunda compensar a diferença. A terceira, então, talvez tenha a idade certa.

Maomé pediu que por enquanto não fosse mais falado a respeito desse pro-jeto. Sua ambição impelia-o a concordar, mas queria esperar o que Deus determi-naria para ele.

Entrementes passaram-se os anos, repletos de atividades e pesquisas. Em verdade Maomé já era o regente da Arábia, pois, aparentemente sem propósito, con-tudo premeditadamente, o prín cipe afastava-se mais e mais de todos os negócios.

Todas as sugestões e execuções de planos deixava a cri tério do supremo con-selheiro, sobre cujas determinações repou sava visivelmente a bênção de Deus.

Já há muito tempo que Maomé teve de mudar-se para o palácio do príncipe, a fi m de poder estar dia e noite nas pro ximidades de Abul Kassim. Seu próprio pa-lácio fi cou ermo; porquanto também Said mudara-se havia poucos anos. Tinha por essa época cerca de dezesseis anos de idade e tornara-se um moço imponente.

Dotado de raciocínio perspicaz, compreendia sempre ime diatamente o que se desejava dele. A par disso, possuía exce lentes qualidades de caráter, e era de rara fi delidade e afeição.

Maomé nomeou-o seu secretário particular e teve a satis fação de ver o jovem bem-disposto em volta de si.

Procurava Chadidsha apenas raras vezes ainda. Era-lhe por demais opres-siva e barulhenta a casa, na qual parecia soprar um vento diferente do que estava habituado. Sua esposa não sentia sua falta. Cinco crianças brincavam ao redor dela e proporcio navam ocupação para mãos e coração.

Certo dia Maomé foi chamado com urgência por ela. Na tanael, um menino de aproximadamente seis anos, caíra da esca da e teve lesões internas de tal gravida-de, que o médico não teve mais recursos para ele. Poucos momentos depois de o pai ter to mado o menino inconsciente em seus braços, este faleceu.

Diante desse acontecimento, Maomé repreendeu-se por ter se descuidado tanto dos seus fi lhos. O acidente, aliás, ele não podia ter evitado, mas o que sabia sobre Natanael? Alguém o ensinara a reconhecer Deus? Antes, sempre que se lem-brava do pequeno, achava que para isso ainda teria tempo. Agora a criança tinha deixado a Terra. Saberia a criança para onde o seu caminho a conduziria?

Se bem que Chadidsha provavelmente se sentisse mais fe liz sem a sua com-

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panhia, porque ninguém mais censurava os seus atos para com as crianças, contu-do deveria tomar mais a sério as suas obrigações de pai.

Já nos dias seguintes apareceu para habituar os pequenos com ele e para contar-lhes de Deus e do menino Jesus.

Duas meninas e um menino não mostravam semelhança com ele: também eram aparentemente de pouca vivacidade es piritual. A mais nova, uma menina de notável graciosidade, fê-lo recordar-se de sua mãe, assim como a imagem dela lhe sur gia às vezes à sua frente.

Essa pequena, chamada Fatime, era seu encanto. Quando sorria jovial-mente para ele, então sentia uma íntima e forte liga ção com ela.

Esforçava-se para sentir o mesmo com os outros três, mas a indolência dos mesmos e os seus pensamentos dirigidos somen te para o lado das coisas terrenas fi zeram com que sempre es morecesse tal tentativa. Apesar disso, continuou regu-larmente com as aulas, que se desenvolveram das primitivas palestras.

Cerca de três meses após a morte de Natanael, alastrou-se uma terrível epidemia em Meca. Apesar dos maiores cuidados dos médicos e de todos os so-corros que puderam ser arranjados, atacou de igual maneira os ricos e os pobres, exigindo inexora velmente as suas vítimas.

Maomé fez tudo o que esteve ao seu alcance para prote ger os seus. Im-plorou a Chadidsha que abandonasse a cidade. Havia alugado uma casa de campo num lugar saudável, para onde ela podia retirar-se durante essa fase.

Ela recusou-se obstinadamente. Lembrou-se do tédio de que era aco-metida todas as vezes que passava fora da cidade, durante os meses quentes, por causa dos fi lhos. Dessa vez não quis fazer voluntariamente esse sacrifício.

Logo depois caiu de cama com febre, e as crianças com ela. Maomé mandou médicos e enfermeiras; por fi m, ele mesmo veio para

fazer o que era humanamente possível. Não conseguiu arrancar os doentes da morte. Chadidsha e três fi lhos faleceram no mesmo dia e tiveram que ser enterra-dos fora da cidade, numa cova destinada às vítimas da peste. Unicamente Fatime recupe rou-se.

Parecia que as preces do pai fi zeram restabelecer essa crian ça dileta.Waraka, que fugira em tempo, regressou após o afastamen to de todo o

perigo. Maomé outorgou-lhe o direito de proprie dade sobre a casa e o comércio, e levou Fatime consigo para o seu palácio paterno.

A uma mulher nobre, a qual perdera marido e fi lhos, foi confi ada a edu-cação da pequena.

Nessa criança desabrochou para Maomé a primeira felici dade oriunda de sua vida familiar. Quando os negócios do so berano o fatigavam ou quando algo o opri-mia, então se retirava para ela. Suas pequenas mãos afastavam os cabelos de sua tes ta,

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e com isso as preocupações. Seus risos sempre achavam eco na alma de Maomé.Deu preferência a uma educadora cristã. Ele mesmo tomou com afi nco a

questão; procurou aprofundar a crença da senhora de certa idade, incutindo-lhe, ao mesmo tempo, uma linha de orientação adequada, para que a sua predileta não viesse a ser tocada por algum modo de pensar errôneo.

Certo dia Abul Kassim tornou a trazer à tona o seu plano nutrido em sigilo cada vez com mais intensidade: Maomé devia pedir Alina em casamento. Ela esta-va com dez anos de idade e com isso ingressou no grupo das donzelas.

Seria uma desonra se não se apresentasse nenhum preten dente. Isso, po-rém, o príncipe queria evitar. Maomé devia ser o primeiro.

Maomé lembrou-se do país que a essa altura estava sob o seu domínio. Se não desse esse passo, teria de demitir-se e ver o governo passar a outras mãos.

Pensou em Fatime, que crescia sem companheira. Interna mente as duas me-ninas tinham grande semelhança. Que ado lescência plena de alegria poderiam levar as duas em comum! Contudo, ele queria auscultar primeiro a vontade de Deus. Re-servou-se alguns dias para deliberar e orou à noite como nunca havia orado.

Então viu uma imagem que serviu para trazer-lhe certeza. Viu-se parado algures, numa altura incomensurável; debaixo de le estendiam-se vastos territó-rios, entre os quais sabia que esta vam a Arábia, a Síria e a terra dos judeus.

Contemplava-os com alegria e com aquele amor que dedi cava de coração ao seu povo.

Nesse momento afi gurou-se-lhe como se levantasse des ses países um fi no véu, que mais e mais se condensava. Então a condensação tomou forma e tornou-se uma linda donzela, a princesa Alina. Na sua mão direita estendida ela segurava uma coroa dourada de príncipe.

Assim fl utuava para as alturas. De cima, no entanto, incli nava-se para ela uma fi gura graciosa, sobrenatural, amável e radiante em pureza. Pegou a mão da donzela e conduziu-a para ele.

A imagem desapareceu. Maomé meditou sobre isso. Tinha que ter uma signifi cação, se fora dada de cima e não gerada pe los seus próprios desejos.

Parecia-lhe, porém, ter escutado uma voz dizer: “Este é o caminho que ajudará a te tornares um instrumen to de Deus”.

Na noite seguinte mostrou-se uma outra imagem: viu como um ente ce-lestial unia dois fi os luminosos. Assim que estavam fi rmemente unidos, Maomé olhou para baixo, seguindo os mes mos, e divisou duas fi guras, das quais emana-vam esses fi os; uma era Alina e a outra deveria ser ele. Teve toda a certeza.

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Nesse momento o ente celestial inclinou-se mais e uniu também os três povos: árabes, sírios e judeus, numa estrutura fi rme, sobre a qual colocou o nó dado nos fi os luminosos.

E a voz chamou:“Deverás ser um auxiliador do teu povo!” Na terceira noite não viu mais nada, mas teve a certeza de que a união com

a princesa Alina estava na vontade de Deus. Portanto, foi a Abul Kassim e pediu a mão da princesa.

O idoso príncipe derramou lágrimas de alegria com o fato de que seu plano urdido há anos iria se tornar realidade. Era desejo de Maomé que a princesa Alina fosse consultada primeiro, para ver se consentia no casamento, porém isso contra-riava to dos os costumes e o príncipe não quis permití-Ia.

Foi-lhe comunicado que Maomé pedira a sua mão e que o príncipe dera seu consentimento. Depois disso Abul Kassim comunicou aos seus conselheiros que o casamento de sua neta predileta com Maomé, o príncipe de Meca, estava prestes a realizar-se.

Todos fi caram surpresos ao ouvirem o vizir ser designado com esse título. Mais surpreendido fi cou o novo príncipe.

Abul Kassim, porém, explicou-lhe que desde há muito já vinha cogitando propiciar-lhe essa elevação, prestigiando-o assim perante o povo. Maomé, no en-tanto, deveria guardar segredo sobre isso, para que todos julgassem que ele possuía tal título herdado dos seus antepassados e só não o tinha usado há muito tempo.

Dessa vez Maomé desejou conduzir a sua esposa ao palá cio dos seus ante-passados, e isso condizia com todos os costu mes. A antiga e aristocrática moradia foi reformada à maneira mais esmerada. Serviu-se profusamente do tesouro herda-do, para cumular a princesa de pérolas e pedras preciosas.

O idoso príncipe alegrou-se com o fato de Maomé não precisar conduzir a noiva para seu lar com mãos vazias.

Nesse ínterim surgiu um problema difícil de ser resolvido. Onde e como os dois deveriam se deixar abençoar para o ma trimônio? Alina fora criada sem qual-quer crença. O príncipe Abul Kassim era interiormente judeu, porém exteriormen-te não se importava com nenhum culto.

Após longas ponderações, Maomé propôs que Abul Kassim pronunciasse a bênção sobre eles em nome de Deus, na sala do trono, e com a presença de todos os dignitários e servidores. Ato contínuo, iriam tomar um cálice de vinho abençoado e orariam conjuntamente.

Essa proposta agradou ao príncipe e foi aceita. A mãe de Alina, no entanto, exigiu que a noiva se velasse à maneira dos costumes nacionais para o casamento; um ato simbólico do qual ela não quis abrir mão.

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Alina esteve de acordo com tudo. Ninguém pôde notar se o seu jovem co-ração estava comovido por alegria ou receio. Era amável com todos, exceto com Maomé, o qual não chegou a ver antes da hora do casamento, e com o qual nem pôde falar.

Do modo como fora idealizado, poucos dias depois foi realizado o enlace matrimonial.

A espaçosa sala estava repleta de pessoas até o último re canto. No meio acha-va-se estendido um grosso tapete colorido, sobre o qual fi caram o velho príncipe, Alina e Maomé. Abul Kassim, segurando as mãos direitas de ambos, pronunciou a bênção de Aarão sobre eles.

Nesse momento os dois jovens se ajoelharam na sua fren te; Maomé levan-tou as mãos e proferiu uma oração em voz alta, assim como surgiu de seu coração comovido e cheio de gratidão. Emocionou a todos que estavam presentes, e muitos perguntaram mais tarde sobre o Deus que é tão grande e pode roso.

Um dignitário trouxe então uma pequena taça de ouro com vinho. Maomé pegou-a das suas mãos. Quando ia beber, ocor reu-lhe uma recordação. Levantou-a bem alto e exclamou:

- Mestre, o vinho deve vivifi car em nós a recordação do sangue que derra-maste por causa das nossas culpas! Quero ser teu servo. Prometo-o perante todas as testemunhas aqui presen tes. Em tua memória bebo deste vinho!

A seguir passou a taça para Alina com essas palavras:- Bebe também dela, querida, para que dediques toda a tua vida a ele. Jun-

tos queremos procurar o caminho que conduz a ele, para que possamos mostrá-lo a outros!

Alina afastou levemente a ponta do véu e tomou um gole. A sua fi sionomia irradiava uma bem-aventurança que não tinha nada de terrenal.

A cerimônia, então, teria fi ndado, mas Abul Kassim tinha ainda outros pro-pósitos. Aproximou-se novamente do casal e segurou a mão de Maomé:

- Este, que é caro ao meu coração, como se fosse meu próprio fi lho, adquiriu pelo casamento direitos reais de fi lho. Vede nele meu sucessor a partir de hoje! Ele deverá aliviar-me o fardo do governo que aos meus velhos ombros está se tornando muito pesado. Deverá trazer felicidade ao país e ao povo, e levar a bom termo todos os projetos por nós iniciados. Vós, porém, prometei-lhe fi delidade e obediên-cia. Ruidosos e ensurdecedores aplausos ressoaram pela sala.

Isso veio inesperado a todos, se bem que alguns já tivessem tido uma vaga suposição de que após o trespasse de Abul Kassim Maomé tomaria as rédeas do governo. Teve, contudo, invejosos, mas nenhum inimigo.

Maomé, entretanto, ainda não podia compreender o que esse dia lhe trouxe-ra. Os seus desejos mais ocultos haviam se realizado.

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Conforme o costume, conduziu sua esposa encoberta de véus numa sun-tuosa carruagem ao seu palácio paterno e aos aposentos preparados para ela, onde encontrou sua própria cria dagem, já familiarizada com ela.

Mais tarde encontraram-se num dos aposentos de luxo, onde ele apresentou sua esposa a Fatime, que era cinco anos mais nova do que ela, para pedir a sua ami-zade para com a menina sem mãe.

As duas abraçaram-se e um forte laço as uniu até a morte. Maomé sentou-se então com elas num canto provido abundante mente de almofadas e tapetes, sobre o qual uma lâmpada colo rida irradiava sua luz tênue, e falou de Jesus a elas.

Ambas escutaram com olhos irradiantes. Isso lhes parecia tão sagrado e grandioso, que quase não ousavam respirar. Fi nalmente se animaram a fazer per-guntas. Queriam saber vários detalhes, pelos quais ele passara ligeiramente durante os seus relatos.

Com grande prazer deu as respostas, contente por a alma pura de Alina re-ceber a notícia sobre Jesus com tanta natura lidade.

Tornou-se então hábito entre eles Maomé contar alguma coisa todas as noi-tes. Muitas vezes falava das antigas histórias dos judeus, do fratricídio e do dilúvio, de José e de Moisés. Mas elas se interessavam mais em ouvir sobre Jesus.

Durante essas reuniões desabrochou algo no coração de Maomé que ele não conhecia: o amor puro à mulher pura. Resguardava-a como uma pérola preciosa, para que nenhum infl uxo de impureza viesse a atingi-la.

Durante o dia estava ocupado com tudo o que a sua nova posição exigia. Nas suas tarefas praticamente nada se alterou; mas na qualidade de soberano teve de receber muitas pessoas, manter conversações e ouvir relatórios.

Tudo isso eram atribuições que até então Abul Kassim de sempenhara sozi-nho. Este, porém, sentiu grande satisfação em poder confi ar também isso a Maomé. Viu contente como o seu sucessor com facilidade se engrenava nas atividades do governo e como ele era reconhecido por todos sem discordâncias.

Sentia-se feliz, pois Maomé ainda o deixava participar de tudo, narrando-lhe diariamente tudo o que se passava e o que era projetado. Também jamais deixou de solicitar conselhos a Abul Kassim.

O cargo de vizir fi cou vago. Por algum tempo Abul Kassim esteve vacilante sobre se deveria preenchê-Io ou não.

Maomé, porém, apresentou tantas razões em favor disso, que o idoso prínci-pe cedeu, e então propôs Abu Bekr, um ho mem experimentado.

Ele, aliás, era bem mais velho do que Maomé, todavia este já sabia se im-por; sobre isso não teve receios.

Maomé mandou chamar o indicado e viu à primeira vista que eles combi-navam mutuamente. Parecia-lhe que suas almas se cumprimentavam, e com prazer

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ofereceu ao surpreendido Abu Bekr o cargo que até então ele mesmo ocupara.Abu Bekr, no entanto, nem pensou duas vezes: o príncipe chamara-o para o

seu lado, portanto, atendia ao chamado.Em pouco tempo compreendeu tudo o que fazia parte das suas atribuições

e revelou que tinha capacidade para prestar mais serviços. Era extraordinariamente prático e sensato, uma boa complementação para Maomé, o qual, em tudo o que fazia, empregava toda a sua alma.

Certo dia Abu Talib compareceu diante do novo príncipe e pediu que admi-tisse seu fi lho Ali, com cerca de nove anos de idade, a seu serviço.

- Ele ainda é um rapaz, deve freqüentar a escola, disse Maomé. Deixa-o estu-dar bastante e então consulta-me mais uma vez.

Abu Talib olhou aborrecido para ele.- Tens poucos parentes, Maomé, resmungou, deixa os poucos participarem

da tua felicidade. Se achas que Ali é muito novo, então serve-te de mim. Natural-mente, com a respectiva recompensa, acrescentou.

- Abu Talib, devo-te gratidão, não me deixes esquecer disso! Na minha infância amei-te. Não sei se os meus olhos esta vam vendados, que não enxerguei teus defeitos, ou então eles não se manifestaram. Depois de meu pai, parecias o melhor homem do mundo para mim. Isso se modifi cou, quando observei a tua ganância incon tida.

Abu Talib assustou-se e queria dizer alguma coisa. Maomé, porém, não o deixou falar, e continuou energicamente:

- Também tua pretensão de hoje deriva da mesma fonte impura, se bem que me queiras fazer crer que isso advém da afeição de parentesco. Se te oferecesse o ordenado de um vizir, sem exigir os serviços inerentes ao cargo, então isso também te conviria.

Maomé deteve-se um instante. Abu Talib confi rmou:- De fato isso me conviria. Quero ver aquele que pensa diferente. Todos apro-

veitariam à ocasião. Não julgues sempre todos os homens pela tua própria Índole.Com muito custo Maomé reprimiu uma crescente sensação de violenta in-

dignação. Não deveria entrar em confl ito com esse velho. Talvez ainda fosse possível aproveitar o seu saber, e como recompensa pagar-lhe-ia bem.

- Escuta, Abu Talib, ainda me recordo bem daquele dia em Halef, quando tive de destruir involuntariamente teus pla nos. Se estou bem lembrado, pugnaste naquele tempo por uma união entre todos os árabes. Sob ordens de quem agiste?

O interrogado estava indeciso sobre se era prudente res ponder a essa per-gunta. Enfi m, sob o olhar inquiridor de quem estava à sua frente, decidiu-se.

- Éramos um grupo de pessoas que defendiam a idéia da união dos países

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árabes. Com fatos concretos queríamos então surpreender Abul Kassim e obrigá-lo a aprovar nossos atos.

- E o que aconteceu com essa gente? Ainda tens contato com esses homens?Maomé fez essa pergunta precipitadamente.- Ainda conheço a maior parte deles, confi rmou Abu Talib. Mas se eles pen-

sam ainda como naquele tempo, isso não posso dizer-te.- Queres reatar as relações desfeitas e sondar o que eles diriam agora sobre

a Grã-Arábia? Não terás prejuízo com isso. Para cada informação, cuja veracidade for confi rmada, recebe rás uma quantia em dinheiro, cujo montante será baseado no valor que essa informação representar para o país.

Os olhos de Abu Talib cintilaram. O outrora venerado tornava-se cada vez mais antipático para o príncipe.

- Vai, agora, e procura trazer em breve informações. Ama nhã, porém, manda Ali para cá, a fi m de que eu mesmo o veja.

Abu Talib despediu-se com demonstrações de gratidão, e Maomé repugnou-se repetidamente.

“Senhor Deus, não me deixes fi car como esse”, orou.Subitamente achou que essa prece tinha grande semelhança com a daquele

fariseu, do qual Jesus falara. Ficou envergonhado e pediu a Deus que ajudasse o ancião, para que este chegasse a ter um juízo mais lúcido.

Passou-lhe despercebido que durante essa palestra não estava fechado o cor-tinado do aposento contíguo, no qual Said es crevia. Então, o jovem entrou. Sempre que Maomé o via, ale grava-se com a sua presença. Amava-o como a um fi lho e, em colóquio, confi ava-lhe muitas coisas que guardava para si.

Dirigiu-se a ele com a pergunta:Escutaste o que nós falamos?- Era inevitável, senhor, respondeu Said francamente.- Isso me convém; assim pelo menos posso conversar contigo sobre o assun-

to, meu fi lho. Não é horrível, quando um homem rico cobiça tão desmesuradamen-te dinheiro e bens?

- Terás muito incômodo com ele, foi a réplica de Said.- Incômodo? Perguntou Maomé em tom acentuado. Que queres dizer com

isso? Deverá fornecer informações, pelas quais será gratifi cado. Se for possível, evi-tá-lo-ei; não o quero ver mais na minha presença. Abu Bekr que se ocupe com ele.

- Não vai ser assim, senhor, sorriu Said de modo argu cioso.Possuía ainda o mesmo sorriso fascinante como quando era criança.- Maomé nunca abandonou um homem que necessitasse de ajuda. E Abu

Talib precisa de auxílio vigoroso, para que sua alma não venha a afundar no pânta-no da cobiça. Falarás com ele amavelmente, sem repreensões e rancores; admitirás

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seu fi lho Ali, pois com isso talvez catives o seu coração, de ma neira que ele se deixe guiar por ti.

- Como és perspicaz, meu fi lho, disse Maomé, mas não havia ironia na sua voz. Estou quase receando que assim será e isso me custará muito tempo.

- Tanto maior será a tua alegria, quando algum dia pude res olhar para Abu Talib com a mesma veneração de tua infância.

- Escuta, Said, gracejou Maomé, os teus homenzinhos também te disseram isso? De onde me conheces tão bem?

- Porque te quero bem, senhor, replicou o jovem com seriedade. Meus ho-menzinhos não me precisam dizer aquilo que eu sei. Em outras ocasiões, porém, eles me dizem muitas coisas. Eles são, além de ti, senhor, meus melhores amigos.

- Preciso levar-te comigo uma vez, para que contes deles a Fatime e Alina, disse Maomé.

Nesse momento interrompeu-se a palestra íntima. Vieram os conselhei-ros e o soberano teve de concentrar todos os seus pensamentos no que eles desejavam dele.

No dia seguinte compareceu Ali. Um rapaz pálido, ma gro, muito crescido, no qual apenas os olhos radiantes eram belos.

Maomé recebeu-o com amabilidade e encetou uma conversa simples com ele. Admirou-se ao notar que o menino de nove anos tinha uma instrução e uma erudição muito além da sua idade. Ao Iado da inteligência aguda, parecia harmoni-zar-se coerentemente uma fi na intuição, tal como Said.

Maomé chamou Said e pediu-lhe que levasse Ali, para dar-lhe alguma ocu-pação. Decorridas algumas horas, solicitou a presença de Said para indagar as suas impressões. Também este estava surpreso; havia simpatizado com o rapaz.

- Seria um prazer para mim, senhor, se eu pudesse fazer por ele o que fi zeste por mim, pediu Said. Deixa-o ser meu auxi liar, pois na escola do templo ele nada mais tem a aprender. Ao mesmo tempo quero contar-lhe de Cristo e instruí-lo nos assuntos de fé, assim como tu me ensinaste.

Eis justamente o que Maomé queria. Ali foi indagado se estaria disposto a prestar pequenos serviços a Said. Estava muito grato com a decisão de Maomé em querer fazer uma experiência com ele. Sentiu um grande acanhamento perante o príncipe, en quanto que com Said familiarizou-se rapidamente.

Então foi feita a comunicação a Abu Talib de que seu fi lho Ali fora admitido como subescriturário no palácio do príncipe e que dali em diante deveria morar num pequeno apo sento ao lado de Said.

Com essa notícia, Abu Talib compareceu apressadamente para agradecer. Foi recebido amavelmente por Maomé, o qual fê-lo relatar tudo o que nesse meio tempo investigara, e estipu lou um preço fi xo para cada informação aproveitável.

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Alguns dias mais tarde, Maomé palestrou com o velho príncipe sobre tudo o que soube de Abu Talib. Descobriu então que Abul Kassim sempre esteve a par das aspirações daquele grupo de homens e que consentira tacitamente nas suas ativi dades.

- Verás que também tu, com um conhecimento mais pro fundo da alma do nosso povo, serás induzido a unir tudo o que é de origem árabe. Pelo caráter, o ára-be supera amplamente o sírio. Tivesse ele que submeter-se ao domínio deste, então o resultado seria um interminável atrito, no qual esgotar-se-iam as melhores forças. Se, pelo contrário, o sírio for sujeitado à disciplina árabe, então ele poderá alcançar uma evolução nunca imaginada. Não te esqueças disso.

- E os judeus? Perguntou Maomé, hesitante.- Os judeus deixaram de ser uma nação desde que cru cifi caram Cristo. Na-

quele tempo estiveram sob o domínio me ramente exterior dos romanos, porém em sua vida como judeus e em suas crenças, ninguém interferia. Agora estão dispersos entre diversos povos. Tu mesmo o viste em Jerusalém.

Seria bom se o povo dos judeus fi casse novamente debaixo de uma mão forte. E se este dominador tiver fé em Deus, então isso será a única possibilidade de salvação para esse povo decaído de uma elevada missão.

Maomé fi cou admirado ante a sabedoria que aí se lhe desvendou.- Estás surpreso de me ouvir falar desta maneira, Maomé, disse Abul Kassim

bondosamente. Acredita-me que meditei muito durante minha longa vida. Nada me interessou tanto como tirar conclusões sobre o destino dos povos, até o ponto em que me foi possível obter dados sobre isso. Sempre se me descortinou a forte direção de Deus, enquanto um povo trilha va o caminho da pureza e da religio-sidade devotada à Luz. Porém, quando chegava ao auge, então fi cava arrogante, presun çoso e seguro de si mesmo, e por isso chegava a caminhos escorregadios que o levavam irremediavelmente ao abismo.

- Admiro a tua sabedoria, príncipe, disse Maomé em sua maneira franca. Mas não compreendo por que não uniste os três povos, já que tinhas a certeza de que isso seria benéfi co para os três.

- Não havia chegado ainda o tempo oportuno, meu fi lho. Pude esperar. Tam-bém isso aprendi. Então me compenetrei de que é improfícuo querer abrir o botão para forçar a fl or a desabrochar prematuramente. A fl or murcharia. Assim aprendi a tornar paciente minha alma.

Sei que realizarás todos os meus planos, quer os pronunciados, quer os guar-dados em sigilo. Para mim basta ter preparado o terreno.

- Príncipe, pai, disse Maomé profundamente impressio nado, como és sábio e esclarecido! Ajuda-me para que eu me assemelhe a ti.

- Homem nenhum te pode ajudar nisso; a vida é que te deve ensinar, assim

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como foi ela minha mestra. Temos uma grande afi nidade interior. Precipitei-me na vida, assim como tu. Também do mesmo modo que tu, não pude tolerar que os ho mens fi zessem algo errado. Acredita-me que exige mais amor deixar que os homens sigam primeiramente um caminho errado, do que querer à força que eles se coloquem no certo.

- Isso ainda não compreendo, confessou o mais moço. Se um homem come-te erro, então é minha obrigação chamar-lhe a atenção, para que ele o evite.

- Se o erro implicar um grande perigo para quem o co mete e para os outros, nesse caso pode ser tua obrigação. Em ca so contrário é melhor que deixes o homem agir errado e aprender com as conseqüências de suas ações. O que for aprendido desse modo não será esquecido tão facilmente.

Deixa-me explicar-te, referindo-me a um exemplo insigni fi cante. Eu fui tes-temunha de que há poucos dias arrancas te do jovem Ali a tinta nanquim, que ele colocara em cima dos manuscritos, querendo carregá-Ia juntamente com estes nos bra ços. Impediste assim que ele derramasse o líquido. Encarou-te atônito e não compreendeu por que não quiseste deixá-Io carre gar o recipiente.

Ontem deparei com Ali ao levar novamente esses escritos e a tinta, de um aposento para o outro. Said observou-o. Não disse nenhuma palavra, mesmo quan-do o tinteiro estava prestes a virar. Calmamente retirou alguns trapos de uma gave-ta, os quais ele guarda aparentemente para esses fi ns, e esperou. A desgraça acon-teceu: a tinta escorreu em cima do tapete. Said estava logo à mão e acudiu Ali para atenuar o dano.

Soluçando, o rapaz disse:“Agora sei por que há dias o príncipe me arrancou a vasi lha com tinta. Nun-

ca mais a carregarei assim”.Vês que o rapaz aprendeu mais com o incidente do que com a tua precaução.- Agora te compreendo. Lembrar-me-ei disso, sempre que me der vontade de

corrigir. Também compreendo agora por que me deixaste agir muitas vezes, onde teria bastado uma pala vra tua para que eu me acautelasse de um passo precipitado. Quanta preocupação te dei!

- A alegria prevaleceu, meu fi lho. Se agora ainda algo me preocupa por tua causa, é então a maneira pela qual retro cedes diante dos desejos de outrem. Altru-ísmo é bom, porém não deve degenerar em fraqueza.

Pensa em Abu Talib. Tivesses insistido energicamente em que como herdeiro a ti cabia a herança, então talvez houvesse um rompimento entre vós; mas ele teria sido obrigado a fazer um exame de consciência.

Pensa na tua primeira mulher, a cujo pedido de casamento não ousaste dar uma resposta negativa, para não ofendê-la. De ves te impor, não por despotismo, mas para sustentar o teu di reito.

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Maomé quis agradecer ao ancião, .mas este começou ime diatamente a falar de outras coisas e cortou com isso toda a possibilidade de retomar ao assunto.

E poucos dias depois Abul Kassim adormeceu tranqüila mente, sem se des-pedir. O povo manifestou sincero pesar pelo passamento do benquisto príncipe; entretanto, escutava-se com freqüência:

“O príncipe Maomé é o melhor e o maior. Ditosos nós, que o temos como soberano”.

Apesar da grande veneração que os árabes dedicavam à velhice, eles encon-travam mais agrado na juventude vigorosa. Maomé tinha, a par da jovialidade, a harmoniosa beleza de sua aparência e o brilho radiante que emanava de seus olhos. Vitorio samente, fascinava os corações.

Em toda parte encontrou amor; o mais profundo e límpi do, porém, no seu lar.Alina tornou-se uma mulher na mais encantadora incons ciência, entenden-

do com fi na intuição o modo de ser do marido. Há muito ele já conversava com ela assuntos inerentes ao bem -estar do povo. Maomé encontrou na mulher interesse e con selhos valiosos.

Alina preocupou-se, sobretudo com as mulheres. Poucos contatos teve com as mulheres do povo, contudo, percebeu intuitivamente que a pureza e a verdade estavam prestes a desaparecer delas. Muitas palavras de suas serviçais davam-lhe o que pensar.

Perguntou ao marido, e soube que as suas preocupações tinham fundamen-to. Então meditou sobre o que poderia ser feito pra sanar isso.

- Poderias decretar uma lei, pela qual as mulheres deve riam manter-se com-pletamente afastadas dos homens, enquanto solteiras? Perguntou-lhe.

Desde muito que existe essa lei, minha querida, expli cou Maomé, mas não é respeitada. São poucas as mulheres que a cumprem. O povo ri e zomba delas.

Nesse caso deverias publicá-Ia de novo, meu marido. Em ti o povo tem fé. Faze-os ver como é prejudicial a toda a nação, quando as mulheres fi cam degrada-das. As mulheres tor nam-se mães, acrescentou Alina, enrubescendo.

Eu o sei, mãezinha, disse Maomé com ternura. E desde já me alegro com o botão que minha fl or pura em breve poderá dar-me.

Ficarás triste, se não for um menino? Quis saber. Maomé assegurou que uma segunda Alina lhe encantaria mais que um herdeiro.

E realmente ela veio, a fi lhinha, o retrato fi el da mãe, a qual recebeu o nome de Fahira. Como o príncipe Abul Kassim teria se alegrado com essa criança! Maomé muitas vezes se lem brava do velho príncipe.

Quando a criança estava para ser abençoada, então os pais se viram novamen-te diante da pergunta: a quem deveriam se dirigir nesse sentido. Maomé resolveu o dilema, porquanto ele mesmo implorou a bênção de Deus sobre a cabeça da criança.

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Depois disso, tornou-se-lhe evidente que não havia coisa mais importante do que começar fi nalmente com o aperfeiçoa mento da doutrina judaica.

Teve como sua missão complementar a crença judaica com a crença cristã, completa-la, mas daquela mesma maneira como Jesus o fez com seus discípulos. Ele derrubou tudo o que foi feito pelos homens em dogmas e mandamentos, e deu em lugar aquilo que viera da Luz.

Maomé queria proceder de idêntica maneira. Muitas vezes passou noites orando para encontrar o certo. Todas as suas atuações no governo foram impregna-das desse pensamento e todos os seus atos determinados no mesmo sentido.

Aos poucos, vagarosamente, viu um começo daquilo que imaginava em es-pírito. Percebeu que deveria primeiramente li vrar o judaísmo de todas as escórias. Onde quer que tocasse, desmoronava-se algo. As tradições estavam deterioradas e os dog mas, superados.

O que sobrou foram os mandamentos, os quais outrora Moisés teve a per-missão de trazer ao seu povo; também as pro fecias sobre a vinda do Messias, as quais Maomé julgou como cumpridas pela vinda de Jesus à Terra e por isso as dei-xou de lado.

Ansiava poder falar com alguém sobre tudo isso, mas não era para ser assim. Sozinho com Deus, sua alma deveria achar aquilo que precisava para si e para os outros. Certa vez ele entrou no assunto, numa conversa com Abu Bekr. Este re plicou-lhe:

- Se queres ouvir meu conselho, meu príncipe, então dei xa-me dizer-te que teu êxito dependerá essencialmente da diver gência dos povos nos assuntos de cren-ça. Acautela-te de uni-los primeiro espiritualmente. Quando tiveres consolidado o teu do mínio sobre os povos circunvizinhos, quando eles estremecerem diante do teu poder, então poderás dar-Ihes alimento espiritual, tanto quanto te aprouver. Antes, não!

Então Maomé se convenceu de que o seu conselheiro não o compreendia no sentido mais profundo, e fechou sua alma diante dele. Para ele foi uma desilusão, que todavia não pesou muito, porquanto em casa encontrava compreensão.

Muitas vezes ele levava Said e também Ali para o círculo de sua intimidade, e, assim como antes falava de Cristo, agora relatava sobre a crença dos judeus e de tudo o que pensava sobre isso. Audição compreensiva afl uiu-lhe retroativamente, como estímulo para investigações cada vez mais profundas.

Revelou-se que em Ali o judaísmo predominava mais. Para os dogmas mais incompreensíveis ele achava uma explicação, a qual lançava luz sobre os mesmos, por outros ângulos.

Se apesar disso, esses dogmas tivessem que ser condenados, por terem sido demasiadamente humanizados, isso agora ocor ria na certeza de que os mesmos ha-viam sido estabelecidos sob a compulsão de alguma necessidade e com boa vontade.

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Na maior parte foram então mais tarde interpretados erroneamente.Said sabia muito acerca do judaísmo, mas isso nada signi fi cava para a sua

alma. Também não era cristão, mas sim, como discípulo de Maomé, colocava-se entre as duas confi ssões, assim como foram instituídas pelos homens. Tinha anseio de que o seu senhor trouxesse fi nalmente o equilíbrio.

Fatime e Alina tornaram-se por fi m servas convictas de Jesus. Tinham sua doutrina e seu modo de pensar próprios, ba seados exclusivamente nas palavras do Filho de Deus, assim como Maomé as transmitira.

Também elas se regozijavam de que afi nal a “nova doutri na”, como chama-vam aquilo que agora deveria surgir, seria dada à humanidade.

- Só não te esqueças da participação de nós, mulheres, repetia a graciosa voz de Alina.

E enquanto Maomé se dedicava com vontade pura àquilo para o que sua alma o compelia, sem pressentir que era justa mente essa a sua missão, de acordo com a vontade de Deus, segurava exteriormente as rédeas do governo com mão fi rme. Nenhum acontecimento era pequeno demais, para que não fosse por ele ob-servado e abrangido em suas conseqüências.

A atuação de Abu Talib chegou outra vez a tomar amplas proporções. Achou de novo prazer nas suas palestras com o povo e na infl uência sobre os outros. Já nem se lembrava de que era um emissário do príncipe; como outrora, procurou tirar proveito disso, pretendendo depois impô-Io ao soberano.

Recordando-se da advertência de Abul Kassim, Maomé to lerou por um tem-po esse modo de agir. Então achou que essa atividade do tio era uma das coisas que poderia causar males e que por isso deveria ser impedida em tempo.

Mandou vir Abu Talib à sua presença e pediu-lhe expli cações. O ancião não desmentiu; pelo contrário, confessou-se cheio de orgulho a favor de tudo o que lhe fora censurado como erro.

- Espera o que iremos trazer-te, Maomé, disse com ares de protetor. Nós somos mais velhos do que tu e sabemos melhor julgar o pensamento do povo.

- Isso pode ser, respondeu o príncipe indulgentemente, mas onde um prín-cipe é a maior autoridade sobre um povo, compete a ele governar sozinho. Todos os outros têm de abster -se disso, se não quiserem atrapalhar. Peço-te, portanto, que sus pendas as tuas atividades. Ouve-me, Abu Talib, rogo-te. Poupa -me ter que for-çar-te a isso.

- Sabes ainda como perturbaste minha reunião em Halef, sobrinho? Enco-lerizou-se o velho. Da mesma maneira queres fazê-Io novamente. Outra vez todos os esforços e os trabalhos empenhados serão em vão. Desta vez não o suportarei. Se não quiseres como nós queremos, então procederemos sem ti, e tu poderás ver sozinho para onde te levará a tua ambição de do mínio.

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Nesse instante Ali entrou no aposento. Ele quis retirar-se imediatamente, após entregar o escrito que motivou a sua vinda. Maomé, no entanto, chamou-o para seu lado:

- Podes repetir na presença do teu fi lho o que acabaste de dizer, Abu Talib? Perguntou.

O ancião enrubesceu, sacudiu a cabeça e deixou a sala após breve saudação.- Será bom, Ali, que hoje te ocupes com o teu pai, pro pôs Maomé. A sua

mente está infestada por pensamentos de toda espécie e talvez te seja possível dispersá-Ios.

A noite, Ali compareceu à residência de Maomé e comu nicou que não encontrara o pai em nenhum lugar. Aparente mente ninguém podia dar notícias dele. Nada, porém, podia ter -lhe acontecido, porquanto dois fi éis serviçais e mui-tos objetos tinham igualmente desaparecido.

Assim fi cou por muito tempo. Por ora ninguém sabia qual quer coisa sobre Abu Talib.

Maomé mudou-se do palácio paterno para o palácio do governo. Alina e Fahira naturalmente tiveram que acompanhá-Io. Para Fatime ele quis organizar uma corte própria, no seu an tigo lar. Mas defrontou com a resistência de toda a sua família. Alina e Fatime não queriam separar-se. Então consentiu que sua fi lha também fosse junto com eles.

Bem-fadados anos, repletos de atividades, seguiram-se. O herdeiro conti-nuou-lhe negado; a Fahira juntou-se mais uma irmãzinha, Jezihde, mas a felici-dade caseira do príncipe era tão grande, que ele não queria desejar coisa melhor pura si.

Abu Bekr insistiu em que se desse início à conquista da Síria e da Palestina. Os povos estariam maduros para a anexação; a resistência dos mandatários nesses países deveria ser quebrada pelo poder das armas.

Maomé não quis saber disso. Havia se consultado em prece e recebido a resposta de que o tempo não chegara ainda. Os países cair-lhe-iam nas mãos, como frutas maduras. Enquanto isso, ele deveria esperar com paciência e sossego.

Na sua maneira franca e honesta participou esse aviso a Abu Bekr, o qual Maomé tinha na conta de crente em Deus, dado o seu modo de ser. Novamente teve de passar por outra decepção com ele. O vizir atreveu-se a dar uma risada alta, quando o príncipe lhe disse que, em vista desse aviso, ele queria esperar obediente mente.

- Príncipe, és um tolo! Exclamou, não menos franco.Em Maomé subiu uma efervescência, mas dominou-se. Por um instante pa-

receu-lhe ver Abul Kassim, o qual lhe fazia uma advertência para que não tolerasse nada. Tão depressa como a aparição veio, também desapareceu.

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Indignado, o príncipe dirigiu-se ao seu conselheiro:- Abu Bekr, não te esqueças de que és vizir, disse inci sivamente. Teu elevado

cargo exige de ti um comportamento, o qual neste instante não soubeste guardar. Convém-me que tu mesmo leves a mensagem que eu queria mandar hoje para Yatrib e que recuperes teu equilíbrio no caminho.

O repreendido estava revoltado intimamente. Quanto mais sentia que merecia a censura, tanto mais aumentava a sua ira contra o príncipe, mais moço do que ele. Deixou o aposento após rápida despedida, e uma hora depois já passava a cavalo pelo portão da cidade, com pomposo séquito.

Maomé sentiu-se aliviado. Ficou admirado de si mesmo por lhe ter sido tão fácil impor a sua autoridade. Certo é que o espírito transfi gurado de Abul Kassim o ajudara nisso, pensou, e fi cou grato.

Said, o qual através do cortinado meio aberto tornou-se testemunha invo-luntária da palestra, teve receio de que o vizir pudesse fi car um inimigo ferrenho do príncipe. No entanto, ao ver o seu protetor tão bem-disposto, não ousou expressar por palavras a sua suspeita e resolveu fi car duplamente vigilante.

Maomé, porém, esqueceu-se logo do melindroso episódio, porquanto em casa lhe esperava novidade. Alina, que já desde alguns dias pretendia aparentemente tratar de alguma coisa com ele, como não se oferecesse oportunidade, pediu-lhe uma en trevista.

- Já tenho de me dirigir ao príncipe, por não ter o marido tempo para mim, disse pilheriando.

Então ela lembrou-lhe que Fatime já há tempo alcançara a idade de casar, sem que o pai tivesse se interessado por isso. Estaria na época de arranjar-lhe um marido, o qual ao mesmo tempo pudesse servir de sucessor de Maomé, caso não viesse mais um fi lho e herdeiro.

- Onde poderei achar esse marido? Perguntou Maomé sinceramente sobres-saltado. Tenho tantas outras coisas para fazer!

Alina teve de rir.- Então é bom que outros cuidem para ti, atormentado príncipe, exclamou

quase petulante. Fatime e eu já resolve mos o problema. Apenas precisas dar a tua anu-ência. Achamos um jovem de uma família nobre, o qual ama sinceramente Fa time...

Maomé interrompeu-a.- Onde ele teve a oportunidade de ver minha fi lha? Não quero esperar que

alguém tenha arranjado um encontro entre os dois!- Tu mesmo fi zeste com que se conhecessem meu amigo, retrucou Alina in-

diferentemente. Não aconteceu coisa alguma de que tu não tivesses conhecimento. Para que não fi ques indig nado, devo dizer-te que se trata de Ali, teu sobrinho.

Extremamente estupefato Maomé olhava para a interlocutora.- Ali? Disse admirado. Ali? Ele é muito feio para a nossa beldade.

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- Isso é tudo o que tens a objetar contra ele, meu amigo? Perguntou Alina. A sua aparência externa não importa. Seu coração é fi el como ouro. Antes de tudo, ele é fi el a ti; daria sua vida por ti!

- E Fatime o acompanharia? Perguntou Maomé, ainda incrédulo.- Ela terá prazer em tornar-se sua esposa, confi rmou a princesa. Podes então

ceder aos dois teu palácio paterno para morada; porquanto, à habitação de Abu Talib, naturalmente não poderá levar sua esposa.

- Do seu pai terá de separar-se, se quiser entrar em relações mais estreitas co-migo, disse Maomé prontamente. Abu Talib não é mais meu amigo. Ele trama traição, isso eu sei, se bem que desde então nada chegou ao nosso conhecimento a respeito.

- Fica certo de que Ali nunca amou o seu pai. Não lhe será difícil separar-se dele.

Também Ali, o qual Maomé mandou chamar na mesma hora, assegurou isso. Muito feliz em poder ter Fatime como sua esposa, e com isso poder vincular-se com mais fi rmeza ao príncipe, a quem admirava acima de tudo, teria se sujeitado a tudo o que se exigisse dele.

Então foi realizado o casamento da filha do príncipe com Ali, que atin-gira uma posição mais alta, a de conselheiro. Na sua família dominava pura felicidade, porém sobre a vida pú blica Maomé viu de tempos em tempos desli-zarem nuvens som brias, que pela freqüência com que apareciam, davam-lhe o que pensar.

Abu Bekr ficou afastado por tempo demasiadamente longo da corte. Já deveria ter voltado de Yatrib, porém nada se soube a seu respeito. Maomé relu-tava em mandar investigar sobre ele. Tinha toda a certeza de que nada aconte-cera ao vizir, mas que outras razões faziam-no manter-se afastado.

Sem demora haveria de chegar qualquer notícia dele. Entrementes nota-va-se a influência de um outro. Abu Talib surgiu logo que teve conhecimento da notícia do casamento de seu filho. Queria glorificar-se no esplendor de seu filho e por meio dele conseguir aquilo que ambicionava em vão.

Encontrou uma estranha recepção. Seu filho declarou-lhe não poder mais reconhecer como pai um inimigo do príncipe. Não queria receber nada da sua herança, e por outro lado era seu desejo que também o pai não exigisse mais dele qualquer obrigação filial.

Furioso, Abu Talib deixou o palácio dos seus antepassados, no qual com muito gosto teria se instalado de novo.

Permaneceu então em Meca, às ocultas, e começou a pro mover agitações clan-destinas. Empregou toda a sua eloqüência para instigar os ânimos contra o príncipe. Em pouco tempo viu que nada conseguiria com a população mais humilde, porque esta se atinha com tenacidade a Maomé, no qual via o legítimo e competente dirigente.

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Também os nobres, inicialmente, não se deixaram induzir a empreender qual-quer coisa contra o soberano, o qual em prin cípio lhes era de todo conveniente.

Então, Abu Talib dirigiu-se aos numerosos comerciantes da cidade. Para isso usou uma tática extremamente astuciosa.

Havia em Meca uma relíquia. Ninguém sabia a quem fora consagrada outro-ra e ninguém sabia que idade tinha. Era uma construção quadrada, chamada Caaba, onde se encontrava empa redada uma pedra preta, que era venerada.

A lenda dizia que outrora ela havia sido branca, mas pelos pecados dos ho-mens tornara-se escura.

Esse santuário era aberto apenas três vezes ao ano. Todos os anos era reves-tido por dentro com precioso tecido de seda, para o qual os sacerdotes fetichistas, que zelavam pela relíquia, faziam coletas durante o ano todo.

Cada ano era um comerciante estabelecido em Meca que fornecia os tecidos e com isso lucrava abundantemente.

Como nas duas primeiras aberturas, uma vez para os ho mens e outra para as mulheres, acorressem crentes devotos de todas as partes do país, esse santuário tinha uma signifi cação enorme para o bem material dos habitantes de Meca.

Sobre isso construiu Abu Talib o seu plano astuto. Habilmente insinuou aqui e acolá que Maomé se considerava um enviado do Deus dos judeus e por ordem do mesmo cogitava a introdução de um novo culto.

Assim que tivesse concluído essa tarefa, ele naturalmente proibiria todo cul-to aos ídolos no país e fecharia a Caaba para sempre, se é que não a destruiria até. Nesse momento teria chegado ao fi m a prosperidade de Meca. Todo o comércio con fl uiria então para a cidade mais progressista de Yatrib.

Inicialmente, os homens riram-se dessa profecia. Abu Talib, porém, não de-sistiu de falar sempre sobre isso e em toda parte. De tudo o que sabia de Maomé, ele tirava proveito habilmente.

Logo que Abu Bekr foi mandado a Yatrib, disse:- Podeis ver sozinhos em que alta conta ele tem essa cidade. O próprio vizir

dele foi mandado para lá. Provavel mente a mensagem é muito importante para um simples cavaleiro.

Tantas vezes repetidas, essas palavras acabaram penetrando nas mentes dos homens. Eles mesmos as repetiam e começavam a crer nisso.

Nesse tempo Maomé encontrava às vezes desconfi anças ou reservas, ele, que estava habituado a que as almas se lhe abrissem sem retraimento.

Assim que Abu Talib começou a sentir o seu êxito, não se conteve, teve de avançar mais. Então dirigiu seu intuito para os judeus, dos quais, aliás, também muitos eram comerciantes. Descreveu-Ihes em primeiro lugar o afastamento da afl uência de forasteiros, que traziam dinheiro à cidade.

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Também lhes revelou que Maomé estaria em vias de des fazer os dogmas santifi cados e de substituí-Ios pelo cristianismo.

Com isso incitava os judeus, tanto os crentes como os descrentes.Said foi o primeiro que descobriu quem ativava a agitação na cidade. Porém

tudo era de tão pouca evidência, que não se podia acusar ninguém de infi delidade ou revolta. Não restou outra coisa senão estar preparado para tudo e aguardar.

Nesse tempo Abu Bekr regressou. Ficara afastado mais de um ano. Um ato desmesurado para um vizir. Maomé não sa bia como deveria recebê-lo e pediu orientação ao mensageiro de Deus.

“Abu Bekr vem arrependido. Não lhe difi cultes a volta para ti”, aconselhou a voz celeste. “Terás doravante nele um servo incondicionalmente fi el. Necessitas do contraste que ele representa para o teu modo de pensar.”

Habituado a obedecer sem reservas às ordens de cima, dominou também des-sa vez a sua indignação e recebeu o regres sante com naturalidade e afabilidade, como se tivesse estado au sente apenas por poucos dias.

Isso fez com que o outro, tão deprimido pela culpa, se sen tisse mais abalado ainda. Jogou-se ao chão diante do príncipe e pediu o seu perdão. Maomé, no entanto, ajudou-o a levantar-se e disse amavelmente:

- Nada tenho a desculpar-te. Se Deus te perdoou, então entre nós está tudo bem.

Evidenciou-se que Abu Bekr pelo menos não desperdiçara seu tempo. Até Ya-trib haviam chegado os boatos espalhados por Abu Talib, porém ele os refutara ener-gicamente e conseguira debelar dos corações dos habitantes de lá todas as dúvidas. Yatrib estava afeiçoada ao príncipe com redobrada fi deli dade.

Esse fora o fruto externo da sua permanência. O interno, o mais valoroso, con-sistiu em que a incansável defesa dos planos e da doutrina de Maomé fê-lo penetrar profundamente em ambos.

Estava convicto de que tudo aquilo que até então julgara como fantasia utópi-ca de um homem moço era uma atuação da vontade Divina. Estava compenetrado da necessidade da crença no Deus Único!

Com a singeleza que lhe era peculiar, ele falou com Maomé sobre isso. Este sentiu-se feliz por sua alma ter sentido certo, quando no primeiro encontro com Abu Bekr recebeu-o amistosamente.

Interrogado sobre o que mais havia se passado durante sua ausência, o vizir revelou que havia contraído matrimônio com uma moça de família nobre, havia pou-cas semanas. Também isso alegrou o príncipe, que convidou Abu Bekr a apresentar em breve a sua esposa a Alina.

Com o vizir ao seu lado, pôde Maomé dedicar-se tanto me lhor ao aperfei-çoamento da doutrina. Constatou com isso que não podia achar clareza satisfatória

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em muitas perguntas que sur giam nele. O que num dia lhe parecia claro, no outro já estava envolto em neblina.

Alina, a quem contou o ocorrido, disse pensativa:- Necessitarás de um período de amadurecimento no silêncio e na solidão, meu

amigo. Pensa em Moisés; quanto tem po esteve no deserto antes que seu espírito fi casse preparado ao ponto de poder ser portador da Verdade e auxiliador. E também Cristo se retirou do povo, antes de lhe trazer a Verdade.

- Como devo realizar isso, Alina? Perguntou Maomé, apenas meio convencido. Minhas obrigações como príncipe não me largam nem um dia.

- E, no entanto, estarás livre assim que Deus o desejar, replicou a esposa.Tal como a água, que rompendo o dique num lugar, afl ui ininterruptamente, cor-

roendo a barragem, assim cresceu a insu bordinação em Meca, apesar do rigor de Abu Bekr. Dois homens que ele surpreendeu pronunciando discursos subversivos, man dou-os enforcar sumariamente, porque sabia que Maomé os in dultaria, se fosse consultado.

Esse exemplo intimidou o povo apenas por pouco tempo, e logo foi esquecido.Mais do que nunca o príncipe se apresentava em público.Em toda parte aonde chegava, não encontrava mais a serena confi ança dos

anos passados. Chegou ao ponto de acontecer que a algumas perguntas receberia respostas obstinadas, e até nenhuma ás vezes.

Procurou o erro no seu próprio procedimento e dirigiu-se em oração a Deus, o Senhor, para que lhe mandasse dizer o que deveria modifi car em sua vida.

Por longo tempo não obteve resposta e julgou ver nesse silêncio a ira de Deus. Não desistiu de continuar a orar e a suplicar.

Então, repentinamente, quando menos esperava, soou a voz celeste, a qual era a orientadora de sua vida:

“Maomé, tranqüiliza-te intimamente. Não cabe a ti a culpa daquilo que ago-ra sobrevirá à tua cidade. As próprias criaturas são culpadas disso. Assim tem de acontecer, a fi m de que seja preparado o terreno para a tua doutrina, a qual tens permissão de trazer ao povo.

Reúne os teus perto de ti e segue com eles para Yatrib, onde residireis com segurança. Abu Bekr, porém, deixa aqui. Rebentará uma revolta sangrenta na cida-de. Os adeptos do feti chismo combaterão os judeus, e os judeus os cristãos. Todos dirão, no entanto, que tudo acontece por tua causa.

Não te importes e permanece tranqüilo. O que aqui terá de acontecer, será executado por Abu Bekr.

Depois disso ele seguirá com os seus guerreiros para juntar -se contigo. Então confi a aos seus cuidados todos os que te são caros e retira-te para as montanhas, na solidão. Lá, o Senhor preparar-te-á, a fi m de que reconheças o que agora ainda está oculto aos teus olhos”.

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Nesse momento Maomé teve a resposta de tudo o que o preocupava. Tam-bém recebeu instruções claras. Cheio de gra tidão, louvava a sábia e bondosa orien-tação de Deus.

Na manhã seguinte deu a Alina notícias daquilo que sou bera. Além dela, confi ou a revelação a Mustafá, Ali e Said.

Enquanto Ali e Said guardavam os escritos mais impor tantes em lugares secretos, e ultimavam para si e para a fa mília de Ali todos os preparativos para a viagem, Mustafá e Maomé tratavam de abrigar os tesouros no lugar oculto, numa parede do palácio dos Koretschi.

Procederam com tanta cautela, que nem a numerosa cria dagem, nem Ali, o qual se encontrava nos aposentos de cima da casa agora por ele habitada, notaram qualquer coisa.

No terceiro dia estava tudo pronto. Maomé mandou os seus, juntamente com Ali, Mustafá e a criadagem mais velha, na frente. Fizeram circular rumores de que em Meca o calor era demasiado para a delicada saúde das mulheres e crianças. Teriam de ser levadas para as montanhas. Estando descansando nesse meio tempo em Yatrib, quem levaria a mal se realmente algo disso se tornasse público?

Somente então, Maomé falou com Abu Bekr. Disse-lhe que julgava mais acertado deixar por um tempo a cidade, onde a sua presença estava provocando apenas perturbação.

Foi o que o vizir já havia pensado; apenas não ousou propor, para que o príncipe não julgasse que ele, o vizir, queria impor-se. Maomé tranqüilizou-o sobre esse particular e deu-lhe plenos poderes para durante a sua ausência, após madura ponde ração, agir como e onde achasse de bom alvitre, e se necessário intervir.

Nessa ocasião, tiveram que encontrar exteriormente um mo tivo para a via-gem de Maomé. Também para isso Abu Bekr sa bia dar conselhos. Há pouco tempo haviam chegado mensageiros de Yatrib, para pedir ao soberano que fosse construí-do também na cidade deles um santuário. Maomé primeiramente teve de recusar-Ihes. Prometera, no entanto, que em breve iria pessoal mente debater o assunto com os habitantes. Isso agora poderia ser usado como pretexto.

Quanto à ordem recebida numa das noites anteriores, tam bém não contou nada a Abu Bekr. Aprendeu que o melhor era calar-se.

Maomé não se separou de bom grado da cidade pela qual se afeiçoara. Quando tornaria a vê-Ia? Se a revolta defl agrasse, nesse caso poderia acontecer de não fi car mais nenhuma pedra sobre a outra. Enfi m, também isso se daria assim como a sábia vontade de Deus determinara.

Acompanhado somente de Said e de dois serviçais, saiu Maomé despercebi-do, cavalgando pelo portão.

Quando chegou à verdejante planície, fez os cavalos anda rem a trote e nesse

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momento o seu coração foi tomado de fi rme esperança e alegre iniciativa. Estava agora indo de en contro à sua missão! Deus, o Senhor, ainda quis primeiro deixar o seu instrumento tornar-se polido, para que fi casse bem utili zável. Isso era apenas motivo para alegria.

Em Yatrib encontrou os seus, bem alojados num antigo, mas bem-con-servado palácio, o qual, após a morte do seu último dono, passou a ser proprie-dade da cidade.

A população recebeu o seu príncipe com jubilosas aclamações. Naturalmente não foi revelado que fugiam, porém, deixou-se que continuassem a crer que os seus familiares deveriam em breve ser levados mais adiante, às montanhas; ele, contudo, queria pessoalmente ter a oportunidade de conhecer os seus fi éis em Yatrib.

Contou-Ihes que estava chegando à meta de dar a todo o reino da Arábia uma doutrina em comum. Realizado isso, também Yatrib receberia um santuário belo e magnífi co, no qual os habitantes poderiam adorar a Deus.

Havia tanta coisa a tratar com os administradores da cidade, os quais queriam aproveitar bem a presença do seu soberano, que os dias se passaram muito depressa.

Vieram mensageiros fi éis, mandados por Abu Bekr, os quais traziam notícias sobre os distúrbios cada vez maiores em Meca. Um dia, porém, também os mensagei-ros não apareceram mais; Maomé sabia que o inevitável acontecera. Ali e Said pedi-ram licença para poder voltar e lutar ao lado de Abu Bekr, caso fosse necessário.

Com muito custo Maomé os segurou. A presença deles aqui era necessária para proteger as mulheres, porquanto em breve chegaria o tempo em que ele deve-ria deixá-las.

Comerciantes que se encontravam em viagem trouxeram a notícia de que em Meca estourara uma sangrenta revolta, a qual estava sendo reprimida com infl exível rigor por Abu Bekr. A seguir vieram outros que contaram de incêndios de grandes proporções devastando a bela cidade.

Depois não veio mais ninguém. Yatrib parecia achar-se interceptada, em di-reção ao sul, do restante do reino. Ninguém se encaminhava para lá e ninguém vinha de lá. Assim era da vontade de Deus, que queria preparar as veredas para o Seu portador da Verdade.

Certa noite veio a ordem para Maomé:“Chegou o tempo, servo do Todo-poderoso, para que deixes os teus. Bem a

sós, dirige-te a cavalo em direção às montanhas; teu caminho te será mostrado. Leva provisões para dez dias, e provê-te com vestuário duplo. Tudo isso podes car regar despreocupadamente no teu cavalo. Mais do que isso, porém, não leves contigo.

Aos moradores daqui, dize que farás um passeio a cavalo. Aos teus, porém, conta a verdade. Eles devem ser fortes e fi car tranqüilos. De tudo o mais será cuida-do; sobre isso não te preocupes.”

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Maomé fez como o anjo do Senhor lhe ordenara e ninguém dos seus familiares lhe tornou pesada a despedida. Anterior mente Alina já falara com todos, e fê-los ver como poderiam ajudar Maomé, enquanto seguissem alegremente a ordem de Deus.

Assim ele se pôs a caminho sob a direção de Deus, orien tado pelos Seus mensageiros, aberto para cada raio que quisesse entrar em sua alma e entregue in-teiramente à vontade de seu Senhor.

Como no terceiro dia ainda não houvesse regressado de seu passeio a cavalo, o povo começou a fi car inquieto. Então Ali propalou que um mensageiro que se encontrara com o so berano, no caminho, trouxera importantes cartas da Síria. Ma-omé resolvera prosseguir imediatamente a sua viagem para lá.

Isso foi aceito pelo povo em geral. Do mesmo modo compreenderam que as mulheres queriam aguardar a volta do príncipe para depois deixarem a cidade.

Por esse tempo Alina e Fatime aliaram-se ainda mais estrei tamente. Come-çaram, também, a entrar em relações sociais com outras mulheres nobres, as quais recebiam as princesas com benevolência.

Dessas relações, inicialmente apenas superfi ciais, como até então fora hábito entre as mulheres, desenvolveu-se com o tempo uma séria e fi rme união, a qual veio benefi ciar toda a população. Muito antes do regresso de Maomé, as mulheres de Yatrib haviam-se tornado servas de Cristo, da maneira como Alina as ensinara.

Com isso os costumes melhoraram. Em toda parte isso se fez notar.

Maomé, no entanto, estava nas montanhas. Com a orien tação do mensagei-ro de Deus, tinha recebido acolhida de um pastor de ovelhas, bem no alto das ram-pas arrelvadas, o qual não teve o mínimo pressentimento sobre quem ele aceitara como servo.

Maomé denominou-se Said, para não despertar suspeitas; no entanto, podia ter continuado a usar o seu nome, porquanto o pastor não sabia coisa nenhuma de um príncipe Maomé, tampouco sabia qualquer coisa sobre um Deus. Conhecia tão -somente as montanhas, suas ovelhas, fome, sede e sono.

Mas a Maomé pôde oferecer aquilo que, além da orientação de cima, preci-sava: um telhado sobre a cabeça, comida, bebida e trabalho que o deixasse meditar. Moisés outrora também não fora pastor, durante o seu estágio preparatório? Lem-brou-se disso.

Com jovialidade pastoreou os seus protegidos lanosos, en quanto se deitava na encosta ensolarada, com o olhar dirigido ao céu, deixando passar pela sua alma pensamentos sobre a eter nidade.

As perguntas que nele se haviam acumulado clarifi caram-se uma após ou-

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tra. Entrou luz na sua alma, e no raio dessa luz desabrochou aquilo que ele deveria anunciar ao mundo: a Ver dade de cima sob uma nova forma.

De súbito soube que teria sido errôneo peregrinar como Jesus através do país, ensinando. Seiscentos anos passaram-se desde então. Os povos modifi caram-se, porém não fi caram melhores. Se quisesse conseguir algo, deveria pela autoridade levar o povo a aceitar a doutrina, e somente então poderia mandar instruí-lo e falar às almas.

Os árabes eram diferentes dos judeus de outrora, diferente, portanto deveria ser o modo de aproximar-se deles.

Também viu que não deveria condenar todo o antigo como inaproveitável ou até prejudicial. Deveria proceder devagar, ligando o novo ao antigo até que pu-desse substituir o antigo pelo novo, sem com isso magoar o povo.

Seus cabelos pendiam além dos ombros e a barba alcan çava-lhe o peito. Com isso percebeu que já estava há muito tempo com as ovelhas. Não tinha nada com que pudesse cortar os cabelos, que também não lhe estorvavam. Serviam-lhe como uma espécie de indicador do tempo.

No princípio contava pelos cordeirinhos, mas no controle inicial e geral sobre a prole do rebanho veio-lhe a confusão com o nascimento constante de novas crias.

Teve que deixar de basear-se nas gerações. Também lhe era indiferente quantos anos já haviam passado. Sabia que os seus se achavam abrigados sob a proteção de Deus, e ele mesmo compreendia que ainda estava longe de terminar o seu apren dizado.

O pastor falava raras vezes com o servo, do qual tinha um grande receio. Tinha-o na conta de lunático. Assim que observou como Maomé seguia fi elmente todas as suas ordens e quanto as ovelhas o amavam, então habituou-se a esse ho-mem, que muitas vezes falava sozinho em voz alta. Contudo, não sentia necessidade de falar com ele. Um não sabia o mínimo que fosse do outro.

O vestuário que Maomé trouxera estava puído, apesar de ter sido feito de um tecido forte e novo. Fez para si um envoltó rio de pele de carneiro, igual ao do pastor. Serviu-lhe de agasa lho, aquecendo-o.

Quase pareceu a Maomé como se nada pudesse vir que interrompesse o magnífi co sossego e a monotonia da atual vida, a não ser a ordem de Deus, a qual esperava sem impaciência. Então sobreveio um acontecimento repentino: o velho pastor faleceu.

O que Maomé deveria fazer agora com as ovelhas?Nessa hora deveria dirigir-se ao mensageiro de Deus para pedir instruções.

Os animais não lhe pertenciam. Também não sabia onde o pastor buscava as pro-visões com as quais ambos se abasteciam. Onde o ancião vendia a lã, as peles e os cordeiros que às vezes levava junto, quando se afastava durante dias? Nunca Maomé perguntara sobre isso.

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Passou ainda alguns dias do mesmo modo antigo, até que o pão foi se aca-bando e até que não teve mais sal para as suas ove lhas. Então ousou pedir novamen-te ordens a Deus.

Dessa vez recebeu-as. Foi-lhe comunicado com toda a pre cisão o caminho pelo qual teria que seguir para chegar à povoa ção onde o velho era conhecido. Lá deveria procurar o decano da aldeia e participar-lhe a morte do ancião. Ao mesmo tempo deveria trocar a lã por peças de vestuário e em seguida dirigir-se em direção ao norte, para a próxima cidade, e lá fi car à espera de novas ordens.

Maomé fez exatamente como Deus lhe havia mandado fazer. Para ele era indiferente ter de andar; o essencial era que exe cutasse com isso a ordem de Deus.

Ainda na mesma noite alcançou a povoação, onde em troca da lã recebeu bom e forte vestuário. O decano chamou um homem, o qual era fi lho do pastor. Este se pôs imediatamente a caminho para olhar o rebanho abandonado. Agradece-ram-lhe pelos seus serviços e pelas notícias, e queriam segurá-lo para pas sar a noite ali. No entanto, havia recebido ordem de fi car na ci dade; tinha de ir para lá. Não tirou tempo nem para lhe cortarem os cabelos. Para isso provavelmente ainda teria tempo na cidade.

Por sorte era uma noite de luar, na qual caminhou rumo à cidade, não muito distante.

Era uma caminhada verdadeiramente encantadora, sob a proteção da alta di-reção espiritual. Parecia-lhe como se estivesse andando num imenso templo. Por ora ainda se encontrava no pór tico, e o santuário, contudo, parecia-lhe estar tão próximo. Não se importou se o alcançaria ou não; com o coração palpitando, foi ao encon-tro daquilo que deveria experimentar vivencialmente. Somente então lhe sobreveio a grande alegria de poder fi nalmente atuar como instrumento do seu Senhor e como servo do seu Mestre. Teve de fi car parado para levantar os braços ao céu, em agrade-cimento. Nesse momento essa abóbada se abriu sobre ele; um es plendor rompeu das alturas, e as irradiações quase pareciam tocá-lo. Admirado, ajoelhou-se em adoração. Não conseguiu dar expressão aos sentimentos preponderantes por meio de palavras, porém tudo nele era uma única prece de agradecimento.

Sua alma aberta contemplou nesse momento um quadro de uma magnifi -cência sobrenatural:

Na ampla sala do trono encontrava-se uma cadeira de puro ouro. Sobre ela achava-se sentado Um, cujos olhos fl amejan tes pareciam penetrar tudo. Seus cabe-los ondulavam prateados, ao seu redor. O braço direito apontava com o indicador esticado. Referia-se isso a ele, Maomé? Seria possível que a excelsa majestade que ali

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reinava lhe desse atenção, a ele, o pequeno homem terreno?E uma voz soou no seu íntimo; ou seria fora dele? Não o sabia. Escutava-a e

acolhia-a intimamente.“Maomé, servo do Altíssimo, discípulo do Filho de Deus. Vê aqui Aquele que

virá para julgar os mundos. Recolhe em ti a impressão desta imagem viva, para que possas compreender o que te será anunciado sobre isso.

A Vontade de Deus julgará os homens com justiça! Ele acei ta-te como Seu servo. Anda de hoje em diante na força da trinda de de Deus e executa o Seu mandamento.”

A voz calou-se, a imagem desapareceu. O resplendor reti rou-se lentamente. Maomé, porém, permaneceu ajoelhado e orou até que a aurora cobriu o céu. Le-vantou-se, então, como um homem diferente do que era poucas horas antes.

Com passos fi rmes caminhou até a cidade, onde mandou cortar seus cabelos e sua barba. Procurou uma hospedaria, comeu e bebeu, e em seguida estendeu-se num dos leitos duros. Fez tudo mecanicamente; todo o seu pensar estava embebido nas revelações da noite, as quais sempre de novo deixava passar diante de sua alma.

Então deve ter adormecido, porquanto afi gurou-se-lhe como se estivesse so-nhando. Viu-se na cidade de Halef, onde falava a uma grande reunião de pessoas. Escutava também o que falava.

Falava do Deus único e verdadeiro e da necessidade de que todos os povos da Terra, reconhecendo fi nalmente a Verdade, se unissem em torno do Senhor de todos os mundos!

Quando acordou sabia que deveria seguir em primeiro lugar para Halef, para ali falar ao povo.

Ao sair da hospedaria, deparou na frente da mesma com um homem com dois camelos. Este olhou para Maomé, foi ao seu encontro e perguntou:

- Es tu o viajante que quer ir ainda hoje até Halef? Encomendaste este camelo?- Para Halef quero ir com certeza, replicou Maomé, o qual julgou reconhecer

no oferecimento da montaria a direção de Deus, contudo, não queria tirar de um outro aquilo que talvez lhe estivesse destinado. Portanto, continuou:

- Mas não me lembro de ter encomendado este animal. - Se podes pagar devidamente, então ele pode carregar-te.

Respondeu o homem.Após terem combinado o preço, Maomé montou no paciente animal, en-

quanto o alugador, montado no outro camelo, dispôs -se a servir-lhe de guia.Em caminho o homem conversador contou tudo quanto havia se passado

ultimamente nos países. Admirou-se de que apa rentemente o seu acompanhante não estivesse a par de nada disso. Depois que Maomé lhe disse que viera de longe e que se encon trara ausente do país nos últimos anos, o cameleiro apressou -se em relatar fatos do passado, alguns verídicos e outros detur pados.

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Maomé deduziu dessas narrações que uma sangrenta guerra civil devastara a Arábia e que Abu Bekr concentrara suas forças armadas em Yatrib, sempre prontas para dirigirem-se com a maior presteza àqueles lugares onde as chamas da rebelião ainda não estivessem de todo sufocadas, ameaçando arder em novas labaredas.

- Conheci Abu Bekr, confessou Maomé, querendo saber mais alguma coisa sobre ele. Ainda vive?

- Nosso país iria mal se ele não vivesse mais, disse o homem com ênfase. Desde que o nosso príncipe seguiu a cavalo para a Síria, porque um mensageiro o chamou para lá, o país teria fi cado entregue a si mesmo, se o vizir não o adminis-trasse com fi delidade.

- Então ele assumiu o governo? Perguntou Maomé. Nessa hora reconheceu por que esse conversador, o qual inicialmente lhe era incômodo, fora-lhe conduzido no caminho.

- Não, para isso ele não tem tempo. Apenas sufoca a rebelião, matando os insurretos, replicou o homem com impas sibilidade.

Maomé horrorizou-se. Quão grato era por essa tarefa não lhe ter cabido!- Não temos um príncipe porque sabemos que o nosso voltará assim que

pudermos livrá-lo das mãos dos astutos sírios, os quais o mantêm preso. Abu Bekr prepara uma campanha contra a Síria, para obrigar esses patifes a pôr em liberdade o nosso príncipe.

Interinamente governa o seu genro Ali, e o seu fi lho ado tivo Said o auxilia nisso.

- E quanto tempo já está perdurando essa situação? Perguntou Maomé, o qual perdera todo o cômputo do tempo.

- Faz agora quase dez anos que as insurreições defl a graram, soou a resposta.Dez anos! Inconcebivelmente longo ao ouvir dizê-lo, porém indescritivel-

mente curto em face de tudo o que lhe fora dado passar vivencialmente.Dez anos durara seu aprendizado na solidão!Durante dez anos esteve afastado dos seus. Suas fi lhas Fahira e Jezihde não o

reconheceriam mais. Será que a criança que estava sendo esperada naquele tempo era novamente uma menina?

No decorrer dos longos anos quase não se lembrara mais daqueles que agora deveriam entrar novamente em sua vida. Também agora não lhe sobrava tempo para ocupar-se com eles. Os camelos que caminhavam a passos acelerados alcançaram ao anoitecer a cidade de Halef. Ali o cameleiro levou Maomé a uma hospedaria um pou-co retirada, mas confortável.

Nos dias subseqüentes Maomé procurou entrar em contato com os árabes residentes ali. Também eles falavam dos hor rores que se registraram em Meca e pro-nunciavam apavorados o nome de Abu Bekr. Contudo, eles presumiam que atrás de

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tudo o que ocorrera estavam as ordens de Maomé. Suspeitavam que ele se encontrasse em Yatrib e que pretendia elevá-la a sua re sidência.

Perguntou sobre Abu Talib. Ninguém sabia coisa alguma dele. Ou perecera ou adotara um pseudônimo, sob o qual estaria continuando sua atividade hostil.

Então falou sobre a união entre todos os árabes e encon trou amável atenção. Os homens pediram-lhe que fi casse na cidade até a noite seguinte. Estava marcada uma reunião secreta entre muitos árabes; ali deveria ouvir e falar, por sua vez, se quisesse.

Comoveu-se pelo fato de aqueles homens depositarem nele, um estranho, uma confi ança tão grande. Tanto assim que, afi nal, teve de expressar o pensamento por palavras.

- Dizei-me, amigos, de onde sabeis que eu estou solidário convosco e que não vos trairei? Perguntou.

Então soube que um velho árabe, o qual possuía o dom da vidência, predis-sera-lhes já há três dias a vinda de um estranho. A nitidez com que tinha descrito Maomé permitiu que eles o reconhecessem imediatamente.

O que Mussad dizia isso ninguém punha em dúvida. Ele ter-lhes-ia aconselha-do a receberem o estranho com benevolência. O sinal claro em sua testa seria para eles o indício de que fora mandado por Maomé ben Abdallah, o príncipe da Arábia, o qual trazia na testa o mesmo sinal.

No dia seguinte Maomé esteve no porto e aprendeu ali várias coisas que lhe foram de proveito.

Soube da existência de um intercâmbio comercial com países longínquos, os quais preferiam condimentos, incenso, pedras preciosas, tapetes e tecidos de seda. Também comprariam café, mas os sírios não cediam nada desse produto. Todo o café cultivado era consumido no próprio país.

- Exportais também madeira de lei? Perguntou Maomé, animado de espírito mercantil.

- Não a temos, contudo a Palestina exporta cedro a países distantes, foi-lhe respondido.

Então quis saber o que seria importado, em troca, das na ções estranhas. Soube que esses navios traziam armas, sobre tudo espadas de um esplêndido aço fl exível, as quais utilizavam principalmente como modelo, para aprimorar a sua própria produção.

Além disso vinham fardos de um tecido branco, feito de fi bras vegetais, o qual era tingido aí e aproveitado em confecções de trajes para mulheres e crianças. Seriam leves e agradáveis.

Ao aproximar-se a noite, Maomé procurou os seus conhe cidos, que o rece-beram alegremente. Mussad passara o dia todo em êxtase. Há cerca de uma hora começara fi nalmente a falar e comunicou aos ouvintes que iriam presenciar um fato

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grandioso. Maomé em pessoa viria para propiciar-lhes ajuda emsua afl ições.- Onde vive Mussad? Perguntou Maomé. Posso vê-lo? Disseram-lhe que ele

residia numa das travessas mais es treitas, onde o pé do estranho de modo algum deveria pisar. Além disso, após cada vaticínio ele se encontrava tão exausto, que se deveria deixá-lo em sossego. A noite compareceria à reunião.

- A noite? Perguntou Maomé admirado. Já não é noite? - Senhor, é verdade que o astro diurno já declinou, mas poderemos reunir-nos somente depois que os guardas da cidade tiverem feito a última ronda pelas ruas. Até lá aceita a nossa hospitalidade. Um grito de coruja anunciará quando houver cer teza de não encon-trarmos mais ninguém.

Em silêncio, os homens fi caram sentados reunidos, fumando cachimbos esquisitos, à maneira dos sírios. Isso pouco agra dou ao príncipe, contudo ele era hóspede e não podia dizer nada. Embora a fumaça que saía dos cachimbos e das bocas tivesse um aroma agradável, ela deixava tudo parecer indistinto. Da mesma forma deveria ser confuso o aspecto interior dos homens, logo que se entregavam a esse vício. Ao notarem a sua curiosidade pelos cachimbos, os homens propuseram-lhe que fumasse com eles. Ele, no entanto, pen sando naquilo que a noite lhe deveria trazer, recusou a oferta. Quando, por conseguinte, perguntaram-lhe diretamente so-bre o motivo de sua abstenção, ele disse francamente. Riram -se, mas um após outro deixou apagar o cachimbo. Em lugar disso foi servido café preto e forte, que a todos animou. Finalmente, o grito de coruja ressoou.

Os homens puseram-se imediatamente a caminho. Não foi preciso andar muito. Um pouco fora da cidade encontrava-se um grande prédio, que em sua maior parte servia para depósito de mercadorias a embarcar. Precisamente um dia antes fi cara desocupado outra vez.

Continha uma sala espaçosa. Para admiração de Maomé, em poucos ins-tantes ela fi cou repleta até o último recanto. Mais ainda se admirou, ao reconhecer no lugar o local de sua visão noturna. Portanto, estava certa a sua intuição de que poderia e deveria falar de Deus nesse local.

Num lugar que estava mais alto pela colocação improvisada de caixas, encon-trava-se em pé um ancião, que começou a falar aos presentes. Ele discursava à maneira como provavelmente era usual, enquanto citava uma série de opressões e violências que os árabes tinham que suportar na Síria. Para cada uma de tais acusações tinha testemu-nhas que confi rmavam suas palavras.

- Este é o acusador ofi cial, cochichou um dos conhecidos de Maomé, em vista de seu olhar inquiridor. Logo falará o orador do dia.

O ancião desceu penosamente das caixas; um mais moço subiu. Alegres acla-mações cumprimentaram-no, às quais ele obviamente não deu importância. Sua face pálida permaneceu imóvel e séria.

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Sem rodeios falou imediatamente daquilo com que todos se preocupavam: a libertação do jugo dos sírios, a anexação à Arábia.

- Amigos, clamou, se é verdade que se encontra entre nós um emissário do prín-cipe Maomé, como Mussad diz, então que se apresente, para que possamos haurir âni-mo e forças de suas palavras. Há meio século que apareceu o primeiro rasgo de esperan-ça; o que antes chegou até nós com bonitas palavras apenas serviu para prejudicar-nos.

Estais lembrados ainda de Abu Talib? Ele era a favor da anexação à Arábia e ao mesmo tempo nos proibiu de empreen dermos um passo nesse sentido. Seus amigos queriam encar regar-se de nossa causa junto ao príncipe. Estou convencido de que nada disso fi zeram. Agora, convido-te novamente, estranho: aproxima-te para que eu te interrogue!

Com passos tranqüilos, Maomé caminhou em direção ao orador e colocou-se na sua frente, de sorte que fi caram face a face. Apesar da simplicidade do traje, toda a fi gura de Maomé, cada movimento, exprimia tamanha dignidade e nobreza, que so-mente isso já irradiava estímulo sobre os oprimidos. O estranho devia ser pelo que jul-gavam, um alto funcionário do governo; ele saberia responder. O orador, com os olhos fi xos em Maomé, começou:

- Não nos disseste teu nome, estranho. Basta-nos que Mussad tenha falado por ti; confi amos em ti, mesmo sem saber mos teu nome. Dize-nos: conheces o príncipe Maomé ben Abdal lah?

Com grande expectativa centenas de olhos miravam o hós pede. Maomé sorriu. Havia tanta bondade e amabilidade nesse sorriso, que por entre os espectadores passou um sopro de alívio.

- Por certo conheço o príncipe dos árabes, disse a voz sonora de Maomé. Não tinha nada desse som gutural dos árabes, mas sim soava como metal límpido.

- Sabes se ele se lembra de nós, que aqui sofremos miséria e opressão? Soou a segunda pergunta.

- Ele pensa em vós e quer ajudar-vos! Anunciou Maomé em voz alta.- Ele pensa em nós e quer ajudar-nos! Repetiram muitas vozes em esperança

jubilosa e admiração, conforme a índole de cada um.Precisamente esse coro é que comoveu Maomé de tal ma neira, que nem espe-

rou pela terceira pergunta, mas sim, volven do-se para a multidão, começou a falar:- Patrícios, árabes! Suportastes pesadas afl ições, para que amadurecêsseis in-

timamente a ponto de colher a bênção que esses tempos difíceis encerraram para vós. Tivestes de aprender que longe da pátria nunca fl orescerá uma felicidade verda-deira. No entanto, seria errôneo se todos vós quisésseis agora voltar à pátria, a qual não conheceis e a qual os vossos ante passados deixaram. Aqui estais aclimatados. Porém, não temais que eu agora vos diga: permanecei no estrangeiro. Não! Não podereis voltar à Arábia, porque lá não encontraríeis mais lugar, mas. . . - Durante

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segundos parou e passou a vista sobre a multidão, a qual, fascinada, concentrava toda a atenção nele, ... mas a Arábia virá a vós! Este país que habitais, e que ape-sar de todas as opressões se tornou para vós a terra natal, anexaremos ao nosso. Uma Grã-Arábia deverá unir os países nos quais os fi lhos morenos da Mãe Arábia ganham sua vida penosamente. De oprimidos deverão passar a habitantes felizes, equiparados aos seus vizinhos.

- Por que não dominadores? Clamaram muitas vozes.- Talvez também dominadores, admitiu Maomé. No en tanto, seria errado

se partísseis do ponto de vista de querer agora causar-lhes aquilo em que pecaram contra vós.

Um murmúrio elevou-se em volta. Maomé não pôde distin guir se era de aprovação ou de censura, porém esperou calma mente. Sentiu como se lhe afl uía poderosamente a força que lhe fora prometida.

Respirou profundamente, porquanto essa força era quase subjugante. A multidão, todavia, viu nisso um sinal de que ele queria continuar a falar. Voltou a reinar silêncio.

- Amigos, escutai agora o que o príncipe Maomé bem Abdallah vos manda dizer por meu intermédio.

Ele está disposto a livrar-vos do jugo dos opressores pelo poder das armas, se não houver outro recurso.

Exclamações de júbilo interromperam-no. Durante segun dos não pôde con-tinuar a falar. Então, com a mesma rapidez, tornou a reinar silêncio.

- Mas pede-vos que não empreendais nada precipitada mente. Ele quer falar pessoalmente com aqueles que entre vós foram até agora os chefes secretos. Em combinação com eles, determinará o que deverá ser feito. Qualquer passo impru-dente poderá pôr tudo a perder. Entendeis-me?

Aclamações afi rmativas responderam.- Príncipe Maomé tem plena certeza de que aquilo que se propôs a em-

preender, realizar-se-á, porquanto tem o auxílio de um poderoso aliado, o Qual lhe deu ordem de dar esse passo. Também a vós Ele quer ajudar, contanto que vos mostreis dig nos disso. Esse aliado é Deus, o Senhor de todos os mundos, o Qual vos criou, bem como a mim, os animais, as plantas e tudo o que vive, como também o inanimado! Estende Sua sagrada mão sobre os homens, para que possam respirar e se desen volver, e não quer que ninguém seja oprimido injustamente. A esse Deus Maomé obedece, e a esse Deus ele quer conduzir o seu povo, para que usufrua a bênção que advém da fé em Deus e da Verdade.

- Escutai-o! Interrompeu uma voz trêmula, contudo penetrante. Ele fala a pura verdade.

- Mussad, Mussad, o vidente, exclamaram os homens.

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Abriram caminho para o ancião, que veio se aproximando apoiado num jovem. Trêmulo, estendeu a mão quando se defrontou com Maomé. O príncipe viu que ele era cego. As pupilas apagadas haviam perdido todo o brilho, não obstante o rosto estava radiante, como se tivesse sido iluminado por dentro.

Estende-me a tua mão, estranho, pediu o ancião, e Maomé anuiu à sua vontade.

Pegou a mão do ancião e envolveu os dedos magros e fi nos do mesmo com sua mão quente e cheia de vida. Nesse momento o ancião curvou-se e beijou a mão de Maomé com seus lábios murchos.

Isso causou surpresa à reunião. Aqui e ali surgiu um lam pejo de compreen-são. Foi desnecessária qualquer palavra de Mussad; seu gesto havia dito tudo.

“Viva o príncipe Maomé ben Abdallah!” estrondosamente, essa manifesta-ção ecoou pela sala.

Toda a cautela fora esquecida. Os até então tristonhos foram tomados de jú-bilo; alegria e coragem animava-os. Maomé queria falar, porém não lhe foi possível tomar a palavra. Sempre de novo a grande alegria tinha de manifestar-se através de ruidosas exclamações.

Finalmente levantou a mão. Mussad desejava falar.Alguns homens ergueram o ancião em cima das caixas e se guravam-no, a fi m de

que permanecesse fi rme em pé. E então sua voz começou a anunciar que o príncipe em pessoa se encontrava entre eles, como garantia iniludível de que queria auxiliá-los.

Há anos, Deus, o Senhor, já se revelara a ele, Mussad. Daí provinham todas as suas profecias. Sabia que a felicidade de todo o povo repousaria na crença que Maomé traria por ordem do Senhor de todos os mundos.

Deveriam agradecer a Deus por ter-se compadecido deles. Deveriam escutar o que iria ser anunciado sobre Ele e adorá -Lo como o Senhor e Auxiliador.

Maomé falou às pessoas ali reunidas, que o escutavam fe lizes. Anunciou o Deus que outrora se revelara aos judeus e que prometera então a Sua bênção a todos os povos que desejassem andar nos Seus caminhos. Falou demoradamente; então os vigias, que estavam alerta, avisaram que a aurora estava rompendo. A reunião dispersou-se apressadamente. Maomé recebeu convites de toda parte para hospe-dar-se. Preferiu, entretanto, continuar na hospedaria; acom panhou, porém, os seus primeiros conhecidos ao lar deles, para tomar a refeição matinal.

Os dias subseqüentes passaram-se em visitas à cidade e arredores. De cada instante que os chefes secretos puderam apro veitar, serviu-se Maomé para falar so-bre os seus planos e os deles.

Quando então estava tudo coordenado, foi convocada uma nova reunião, na qual Maomé falou novamente de Deus.

Despediu-se e prometeu que em breve teriam notícias dele. Foi combinado

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que não se dirigiria mais aos sírios, porquanto cada tentativa de conseguir deles um alívio para os árabes, pro vocava maior opressão sobre eles.

Durante a noite Maomé soube que estava em tempo de voltar para Yatrib. Confi ou inteiramente na direção de cima, de modo que nem ao menos tratou de ar-ranjar uma montaria para o seu regresso. Sua confi ança não o desiludiu. Enquanto tomava a pequena refeição matinal, encontrou o cameleiro que o havia trazido.

- Soube que ainda estavas aqui. Se tens vontade de viajar para Yatrib, então podes montar, senhor. O camelo que conhe ces está lá fora à tua espera.

No caminho Maomé deixou o cameleiro contar tudo o que soubera nes-se ínterim. Meca apaziguara-se. A outrora fl orescente cidade se transformara num montão de ruínas, onde cerca da metade dos antigos habitantes levava uma vida amedrontada. Também outras cidades tiveram que sentir as represálias de Abu Bekr. Em redor de Meca achava-se um círculo de localida des destruídas.

- E Yatrib? Perguntou Maomé.- Yatrib está em plena prosperidade. Abu Bekr acampou com seus guerreiros

em redor da cidade, todavia foi supérfl uo guarnecê-la. Esteve protegida pela fi deli-dade dos seus habitantes.

- És conhecido em Yatrib? Indagou Maomé, pois gostaria de ter algumas notícias sobre os seus. No entanto, o cameleiro respondeu negativamente.

Ao cabo de muitos dias chegaram fi nalmente ao cinturão das guarnições ar-madas. Ali Maomé gratifi cou o seu guia que imediatamente continuou seu caminho com os dois camelos. Maomé perguntou por Abu Bekr. Acertou bem. O lugar onde apeara fi cava bem próximo do acampamento do vizir.

Admirados, os guerreiros examinaram o homem, em trajes simples, que tinha a ousadia de querer comparecer diante de “Abu, o sanguinário”, como o chamavam.

- Quem és tu e o que desejas dele? Perguntou o chefe. - Chamo-me Maomé e sou um amigo do vizir, soou a resposta.

- Nesse caso espera aqui fora, enquanto mando perguntar se ele quer te aten-der. Entretanto, se fi car zangado por ter sido incomodado, então que a sua ira venha sobre a tua cabeça, es tranho, sentenciou o chefe da guarda.

Maomé teve de esperar muito tempo, até que escutou a voz de Abu Bekr.- Onde está o homem que se atreve a usar o sagrado nome de nosso prínci-

pe! Vociferou, enquanto afastava com a mão o pano da entrada da tenda.- Maomé é um nome muito comum. Muitos homens usam-no, retorquiu

Maomé, bem-humorado. Teria sido abusivo se me denominasse Abu Bekr; porque este só existe um.

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O vizir deu rapidamente alguns passos adiante. Reconhecera a voz!- Senhor! Balbuciou, e quis prostrar-se diante do príncipe.Maomé no entanto impediu-o, enquanto lhe segredava que de modo algum

queria dar-se a conhecer. Abu Bekr dominou-se rapidamente. Convidou o hóspede a entrar em sua tenda, após ter ordenado que trouxessem comida e bebida. Nesse momento se defrontaram os dois, que durante dez longos anos não se tinham vis-to. Olhavam-se e admiravam-se. Enquanto Abu Bekr constatava que Maomé não parecia nem um dia mais velho do que naquele tempo, quando os deixara, Maomé teve que reconhecer que Abu Bekr estava se aproximando da velhice. Os traços de Maomé, que foram sempre nobres e de feição delgada, pareciam agora aureolados de espiritualidade; um res plendor indescritível pairava sobre os mesmos. O rosto de Abu Bekr era mais grosseiro, vermelho, inchado e marcado por uma certa cruel-dade. Tanta coisa eles tinham a dizer, e contudo não puderam dizer uma palavra. Enfi m, o vizir quebrou o silêncio:

- Senhor, onde estiveste durante todos esses anos?- Na escola de Deus, replicou Maomé com seriedade. Mais tarde contar-te-ei

sobre isso.- Amanhã eu queria seguir para a Síria, a fi m de exigir a tua entrega, disse

Abu Bekr sacudindo a cabeça.- Para a Síria deverás marchar, meu amigo, assim que tiveres me escutado.

Não para resgatar-me, mas sim para libertar os árabes.A noite inteira passaram juntos, palestrando e perguntando. Em atenção ao

desejo do príncipe, tudo o mais foi deixado de lado; apenas foi tratado dos árabes oprimidos, aos quais deveria ser levado auxílio o quanto antes.

Maomé, no caminho, já soubera estar na vontade de Deus que Abu Bekr deveria forçar a libertação dos árabes à mão armada. Por isso Maomé agora dava ordens nesse sentido e en controu em Abu Bekr a melhor boa vontade.

- Senhor, meus guerreiros e eu fi camos tão habituados ao ofício da guerra, durante a tua ausência de dez anos, que nos enfastiamos quando temos que passar algum tempo nos acampa mentos. É bom que tenhas serviço para nós.

- Não vejas, porém, na tua tarefa, somente o derrama mento de sangue, meu amigo, disse Maomé. Poupa todos os que queiram entregar-se.

O vizir inclinou-se, porém sem responder. Em sua mente algo procurava tomar forma, para o que não achava imediata mente uma expressão.

Então ele começou:- É aconselhável, senhor, que permaneças incógnito entre nós. Perseverarei no

meu plano primitivo de exigir a tua liber tação na Síria. Este será o motivo pelo qual invadirei com as forças armadas o país vizinho. Disso decorrerão todas as demais conseqüências. Agora devo pedir-te para guardar segredo por mais alguns dias.

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Maomé achou que seria razão sufi ciente, se Abu Bekr decla rasse na fronteira da Síria que ele vinha para libertar os irmãos oprimidos.

O vizir, no entanto, argumentou que então começaria uma carnifi cina no interior da Síria, a qual não lhe seria possível impedir. Então o príncipe não fez mais objeções ao intento do fi el, que durante dez longos anos arcara com todas as responsa bilidades. No dia seguinte Abu Bekr se pôs em marcha com a maior parte das suas forças armadas. Manteve seus guerreiros em ex celente disciplina. Maomé regozijou-se com a linha de conduta daqueles homens bem preparados, até que lhe veio à mente o objetivo com que saíam. Uma pequena tropa permaneceu nos acampamentos, sob as ordens de um chefe de confi ança. Maomé passou mais uns dias entre eles, sem dar a perceber a sua identidade. Quando supôs que Abu Bekr já se encontrasse bem longe dali, pôs-se a caminho para Yatrib, Pediu que pusessem à sua disposição um cavalo, o que, como amigo do vizir, não lhe po diam recusar.

Ao aproximar-se da cidade, e quando já divisava isolada mente alguns prédios, viu à direita da estrada, sobre uma verde jante elevação, um pequeno palácio branco, no meio de jardins fl oridos. A casa era de estilo tão leve e agradável, que dava a im-pressão de que fl utuava entre as copas das palmeiras levemente agitadas pela brisa.

- Realmente uma maravilha! Disse Maomé a meia voz. Podeis talvez infor-mar-me quem mora naquele palácio? Dirigiu-se a alguns homens que faziam repa-ros na estrada.

Eles levantaram os olhos e encararam o estranho.- De onde vens que não sabes que essa residência é a das mulheres puras?

Perguntaram de sua parte, admirados com tan ta ignorância.- As mulheres puras? Admirou-se Maomé. Quem são elas?- Assim denominamos a esposa de nosso príncipe prisio neiro e suas fi lhas,

porque elas levam uma vida imensamente pura e caridosa. Moram ali com pessoas de confi ança e servos!

- Ali e sua esposa também moram com elas? Perguntou o príncipe, cujo coração começou a sentir uma grande alegria.

- Não, ele construiu lá atrás, um pouco retirado, um palácio, onde reside com sua esposa e seis fi lhos varões.

Seis fi lhos varões! E a ele foi negado o herdeiro! Com cer teza era da vontade de Deus.

Agradecendo pela informação, fez o cavalo acelerar a mar cha e logo depois parou na frente das grades externas dos jar dins do palácio. Viram a sua chegada; um jardineiro veio ao seu encontro.

- Para onde queres ir estranho? Perguntou amavelmente. Aos homens é veda-da a entrada aqui. Segue um pouco adiante, até aquela casa que surge ali atrás entre os cumes. Lá reside Ali, o genro do nosso príncipe. Lá podes dizer o que desejas!

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- Tenho uma mensagem para a princesa Alina, a qual devo entregar-lhe pes-soalmente, replicou Maomé.

O jardineiro, no entanto, retorquiu categoricamente.- Se a tua mensagem é urgente, então lá podes comunicá-la à princesa. Ao meio-

dia ela sempre vai à casa de Fatime. Neste terreno não pisa nenhum pé de homem.O príncipe viu que ali não podia fazer nada. Mesmo se revelasse a sua identidade,

seria duvidoso que o jardineiro, cum pridor dos seus deveres, o deixasse entrar. A ordem de Alina era dominante.

Então cavalgou rumo ao palácio de Ali, onde encontrou o velho Mustafá, que reconheceu imediatamente o seu senhor. A muito custo Maomé pôde impedir que ma-nifestasse sua alegria com exclamações estrepitosas.

Finalmente o velho serviçal compreendeu que o príncipe não queria ser reconhe-cido por enquanto. Fê-lo entrar no palácio por uma pequena porta lateral, e pediu-lhe que esperasse ali num pequeno, mas lindo aposento. Iria chamar Fatime. Maomé fi cou sozinho por poucos minutos e experimentou a sensação de bem-estar que o cercou de súbito. Sem dúvida, esse palácio era modesto e simples em comparação com aquele de Meca, todavia a nada disso estava mais acostumado.

Nesse momento abriu-se a porta e um menino com cerca de seis anos entrou a passos acelerados. Tão surpreso fi cou, ao avistar inesperadamente um estranho, que se esqueceu por que motivo viera.

- Que estás fazendo aqui, estrangeiro? Perguntou com voz sonora de criança. Quem te deixou entrar?

Maomé olhava o menino e sentiu repentinamente que se acha ligado de algum modo àquela criança. Deveria ser um dos seus netos; sentiu-o pelo amor que de súbito impulsiona va o seu íntimo. E esse amor irradiou dos seus olhos, atraindo o menino.

Arregalando os olhos cada vez mais, a criança aproximou-se lentamente do ho-mem calado.

- Tu, tu és meu avô! Exultou de repente. Chegaste fi nal mente? Eu sou Maomé ben Ali, ainda não me conheces. Alegras-te por estares conosco?

- Menino, como me reconheceste? Indagou Maomé.- Nos teus olhos, avô. E alguma coisa dentro de mim disse em voz alta:“Este é o avô que estais esperando há tanto tempo”.A porta abriu-se. Fatime entrou e Ali, atrás dela. Mustafá não lhes revelou quem

era o estranho que tinha trazido um re cado, mas o pequeno Maomé jubilava ao encontro dos pais.

- O avô está aqui, e ele tem os olhos que tu contaste mamãe! Os olhos cheios de brilho celestial e de amor humano.

Após ter passado a primeira alegria, decidiu-se mandar chamar a princesa Alina, mas o pequeno Maomé não deveria encontrá-la, para não assustá-la com a sua notícia

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exultante. Também um choque de alegria poderia prejudicar a sua delicada natureza.Entrementes Ali chamou os seus outros fi lhos; o mais novo deles tinha apenas

poucas semanas de vida.- Maomé se parece mais contigo, príncipe, disse Ali. O nome é apropriado a ele.Então veio Alina, que estava intimamente certa da alegria que a esperava. Há dias

tinha a convicção de que seu marido regressaria por essa época. Agradeceu a Deus, que o protegera bondosamente.

Houve muito, muitíssimo a conversar, especialmente quando também Said se reuniu a eles. Logo a seguir, Ali quis prestar contas das suas atividades; todavia o príncipe pediu que por enquanto deixasse tudo correr pela rotina habitual.

Queria acostumar-se aos poucos. Talvez seria o mais acerta do, se pudesse ser feita uma divisão no trabalho: ele, Maomé, desejava dedicar-se, de preferência, inteiramente à propagação da nova doutrina.

A isso os outros se opuseram. Estavam convictos de que o povo acabaria exigindo o seu príncipe. Maomé deveria perma necer príncipe; eles, porém, poderiam aliviar-lhe os seus afa zeres, na medida do possível. Instalou-se, então, na casa da cidade, que servira por um tempo de morada à princesa e suas fi lhas.

Sempre tinha ainda em conta a hipótese de que viria a considerar Meca nova-mente como sua cidade, apesar de Ali ter-lhe relatado de uma maneira calamitosa a situ-ação da outrora próspera capital. Por esse motivo também não quis saber da projetada construção de um palácio para ele em Yatrib. Todo seu pensar girava em torno da nova doutrina, a qual ele tinha permissão para trazer ao seu povo. Saindo de Meca, como ponto de partida, queria disseminá-la em círculos cada vez mais extensos, através do país inteiro. No entanto, teve que constatar que isso seria impraticável em vista da evolução que o país tomara nesse ínterim. Lançou mão de um outro plano. Queria introduzir obrigatoriamente a doutrina por meio de algumas leis rigorosas.

Falou com os seus sobre isso, e eles ponderaram como seriam recebidos tais man-damentos. A grande massa do povo os receberia da mesma maneira como uma proibi-ção de certos tra jes, ou como uma determinação quanto à manutenção de escra vos, a qual tinha sido promulgada recentemente.

Os cristãos exacerbar-se-iam, enalteceriam sua crença e de clarariam não poder mais abandoná-la. Mas justamente esses cristãos tinham interpretado a Palavra do Filho de Deus tão er roneamente, e reproduzido-a tão equivocadamente, que Maomé não la-mentaria se quisessem emigrar. Interessou-se mais pelos judeus, que representavam cerca da terça parte da população. Em assuntos de crença, metade deles podia ser comparada aos adoradores de fetiches, isto é, não se importavam com Deus. A esses faria bem se fossem forçados a meditar e a fazer um exame de consciência. A outra metade, ortodoxa, somente poderia ser conquistada se reconhecesse Cristo como o Messias. Até esse ponto Maomé deveria chegar. Então seria fácil conquistar o povo para a nova doutrina. Maomé,

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aliás, jamais teve outro intuito senão o de livrar o judaísmo de todos os dogmas humanos aderentes ao mesmo, e depois aperfeiçoá-lo mais. Assim começou a dar formas àquilo que idealizara; inicial mente numa espécie de “mensagem ao povo”, que deveria ser lida simultaneamente em diversos lugares:

“Um povo que por falta de aspirações mais elevadas, se preocupa somente com coisas materiais, não tem direito de existir.

Dirigindo, porém, nossos anseios às alturas, então haveremos de encontrar Aquele que criou tudo e que também dirige nossos destinos: Deus!

Deus é Deus, isto é, existe apenas um único Deus, que é o Supremo, o Eterno, o Todo-po-deroso. Nenhum homem pode vê-Lo; no entanto, cada homem pode sentir a Sua vontade.Sempre de novo este Deus enviou profetas e portadores da Verdade à Terra, os quais tive-ram a missão de anunciá-Lo. Cada um deles foi agraciado com mais forças do que seus

anteces sores, contudo, nenhum conseguiu persuadir os povos obsti nados.Abraão deu a seu povo um exemplo de fé viva. Ainda hoje é admirado, porém nin-guém pensa proceder igual a ele. Moisés trouxe os próprios mandamentos de Deus:

quem os respeita?Então Deus enviou à Terra o mais sublime portador da Verdade: Jesus Cristo, Seu

próprio Filho!O que ele falou foi a Verdade límpida, foi a própria Pala vra de Deus. Viveu essa Palavra,

enquanto peregrinou na Terra. Os homens não o compreenderam. Assassinaram-no.Até agora ainda falam com gestos beatos do anunciado Messias, que deverá vir e ao qual então quererão servir e obe decer. Não querem escutar que o Messias já veio há seiscentos anos; pois, do contrário, deveriam confessar que pecaram contra ele tão gravemente, que

nenhum arrependimento pode repará-lo.Vós, árabes, porém, escutai: Cristo é Filho de Deus e veio ao mundo para que a humani-dade pudesse ser salva de seus pecados! Quis infl amar de novo todas as chamas da fé em

Deus para que a luz e a claridade penetrassem nos corações do mundo.Fixai-vos a isso, até que vos possa anunciar mais. Pois eu, Maomé, sou igualmente um profeta do supremo Deus! Sou o último na seqüência, não o mais poderoso, mas sim

aquele que veio por último.Mas tenho permissão de anunciar Deus e Seu Filho Incriado Jesus Cristo! Ainda

mais: também tenho permissão de prenun ciar Aquele que virá para julgar o mundo com justiça e majestade!

O que vos anunciei, recebi de cima.Que Deus me preserve para que eu jamais acrescente uma palavra que proceda do

meu próprio eu.

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Agora, porém, digo-vos:É meu mandamento, na qualidade de príncipe, que aban doneis a crença errônea! Todos os templos, casas fetichistas e oratórios deverão ser fechados a partir do dia em que escu-

tardes esta proclamação. Ser-vos-ão construídos novos templos, consa grados unicamente a Deus. Neles se falará a vós sobre a nova e legítima doutrina.

Todos os ídolos deverão ser queimados, porquanto os mes mos causam horror a Deus. Jamais alguém poderá ver Deus; por isso também ninguém pode fazer uma imagem Dele.

Ele mesmo o proibiu nos Seus sagrados mandamentos!”

Essa proclamação Maomé leu pessoalmente em Yatrib, na grande praça públi-ca, e pôde ver que a mesma impressionou a população. Entretanto, Yatrib fora adequa-damente preparada pela atuação das mulheres puras. Isso seria diferente em outras povoações. O príncipe esperava poder em breve enviar Ali e Said para promulgarem o seu escrito, porém surgiram novas perturbações no país. Abu Bekr regressou da Síria, onde, após breve luta, desti tuiu o príncipe do trono e fê-lo prisioneiro. Conduziu-o em sua companhia, para que Maomé pudesse entrar em negociações com ele, caso lhe aprouvesse. Árabes e judeus aclamaram os libertadores e colocaram-se ao lado deles. Também a maioria do povo sírio sujeitou-se volun tariamente, porque estava farta da dominação opressiva por parte do seu príncipe. Então o vizir dividiu o país em três partes; em cada uma nomeou um administrador e colocou à sua disposição um nú-mero sufi ciente de guerreiros, a fi m de que lhes fosse possível, em caso de emergência, impor a sua vontade à força. Isso, no entanto, não se tornaria necessário; porquanto o povo subor dinou-se de boa vontade ao novo domínio. Essas foram as boas notícias! Maomé não ousou perguntar sobre as perdas que custaram a vitória.

Por outro lado teve o desejo de entrar o quanto antes num entendimento com o príncipe, prisioneiro, da Síria. Ordenou que o trouxessem. Após grande de-mora, compareceu Abu Bekr todo alarma do e comunicou que o príncipe prisionei-ro suicidara-se. Fora -lhe deixada a espada, porque prometera não desembainhá-la contra nenhum árabe. Agora ele arremessara-se contra ela. Com a morte do prínci-pe terminou toda a resistência no país conquistado. Maomé pôde cogitar incluí-lo na aplicação das suas leis para a nova doutrina.

Nesse ínterim os habitantes de Yatrib lembraram ao prín cipe a sua promessa de mandar construir-lhes um santuário. Com prazer se pôs a cumpri-la. A Caaba de Meca, uma construção alongada de blocos de pedra, não poderia de modo algum ser considerada como bela. Maomé quis edifi car algo especial e por isso reuniu arquitetos de diversas regiões, a fi m de que lhe esboçassem plantas para a casa de Deus.

Certo dia, de manhã, Alina veio falar com seu marido: - Esta noite pude con-templar uma esplêndida construção. Era redonda, com telhado abobadado. De todos os lados pene travam os raios da luz diurna, através de janelas pintadas de várias cores.

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Enquanto a esposa falava, também Maomé viu a cons trução diante de si, tão nítida, como se a conhecesse já há muito tempo. Então pôde indicar aos constru-tores, com precisão, como queria que fosse construída a casa consagrada a Deus. Eles esboçaram os projetos, e o príncipe fi cou muito con tente; sua alegria e seu zelo estimularam os outros, de sorte que a obra tomou um impulso vigoroso.

Por essa época ocupou-se com os seus apontamentos sobre a nova doutrina. Deveria se tornar um livro idêntico às Sagradas Escrituras dos judeus, pensou. Ain-da não tinha clareza com pleta de como iria desincumbir-se dessa tarefa; no entanto, havia recebido ordem de anotar primeiramente tudo de que se tornara consciente, através da intuição, durante seu longo estágio prepa ratório.

Assim fez, e quanto mais escrevia, mais lúcido fi cava seu espírito. O que até então para ele permanecia vago, patenteou -se dali em diante da maneira mais clara, de sorte que apenas precisou esforçar-se para achar as palavras adequa-das. Mas também isso não foi difícil. Elas afl uíram-lhe. Dedicado e muito feliz com essa tarefa, não percebeu, no entanto, que a sua volta se aglomerava algo de tenebroso. Até que um dia compareceram os patriarcas da cidade de Yatrib à sua presença para comunicar-lhe que a população judaica estava revoltada com a construção do templo e tentou por diversas vezes perturbar os trabalhos. Na última noite puseram fogo, que somente pela vigilância dos guardas ali postados, foi possível apagar em tempo.

- Mas justamente aos judeus é que quero ajudar! Disse Maomé sem compre-ender. Quero fazê-los ver que grande pecado cometeram, para que possam afastar-se de seus caminhos errô neos.

Os patriarcas externaram o receio de que dessa mentalidade dos judeus po-deria advir uma grande desgraça para toda a Arábia.

- Nesse caso quero falar-lhes. Fazei com que se reúnam amanhã à noite na grande praça. Se eu lhes explicar acertada mente, então conformar-se-ão.

Embora aqueles homens nada esperassem dessa medida, não queriam imis-cuir-se, e fi zeram como lhes fora ordenado. Maomé, porém, levou sua intenção para cima através de uma prece. Na noite seguinte dirigiu-se esperançoso para a reunião dos judeus.

No caminho Maomé notou que um regular número de guer reiros estava postado de prontidão nas ruas adjacentes. Quem ordenara isso? Não achou conve-niente, porém não era mais possível desfazê-lo.

À hora aprazada começou a falar. A praça, parcamente iluminada com ar-chotes, era imprópria, de sorte que o príncipe não pôde reconhecer as feições dos que se encontravam reunidos à sua frente. Não sabia se escutavam ou se, contra-riados, tra mavam poder chegar a manifestar-se. Falou da maneira como se propôs; singelo e afável. De início reinava um silêncio de expectativa; quando, porém, fez

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alusão ao Messias, então ouviram-se alguns gritos reprimidos.- O que sabe um árabe do Messias! Clamou uma voz, mais alta que as outras.- Não esqueçais cidadãos, que meus pais eram judeus, esclareceu Maomé. Amo

a crença judaica e queria ajudar a desvencilhá-la da estagnação em que incorreu.Resmungos soaram.Continuou a falar fi rmemente. Disse que o novo templo seria consagrado ao

Deus que todos adoravam, o Eterno, Oni potente, que chamavam de Jeová.- Mas nele cristãos e pagãos deverão rezar conosco. Nós o sabemos! Excla-

mou novamente uma voz.- Não é da vontade de Deus, perguntou o príncipe em resposta, que todo o

povo se unifi que numa única crença? E se essa crença pertencer a todos, não have-rá mais cristãos nem pagãos, como também não haverá mais judeus. Todos serão servos de Deus!

Uma crescente agitação se fez sentir. De repente voou de alguma parte uma pedra que roçou a testa de Maomé.

Levantou a mão lentamente e passou-a sobre o lugar atingido. Então disse:- Não procedestes direito, ó homens. Chego a vós com amor, e me respon-

deis assim!- Queres ser tratado melhor do que o teu Messias? Bradou uma voz cortante

e escarnecedora. Pois dizes que também ele veio com amor e foi assassinado pelos judeus. Cuida para que não te aconteça o mesmo, Ó falso portador da Verdade!

Nesse momento não houve mais o que os detivesse. Pedras voaram. Vozes blasfemaram. Sozinho, Maomé enfrentou a turba, contudo, não teve nenhuma sen-sação de medo. Sentiu-se forte; porquanto nele penetravam forças de cima. Cla-mou em voz alta no meio do tumulto:

- Sede cuidadosos, ó homens! O que estais querendo fazer agora, poderá trazer-vos conseqüências funestas!

Essa admoestação bem-intencionada foi recebida como uma ameaça por aqueles que a escutaram. Isso fez aumentar a agitação. Subitamente um deles ad-vertiu primeiro e então muitos repetiram o brado:

“Os soldados estão chegando!”Assim foi. Das ruas adjacentes os guerreiros vinham machando na melhor

disciplina. Traziam nas mãos archotes, cuja claridade iluminava a praça como a luz do dia. Então a coragem da corja não persistiu; correram para todas as direções, e dentro de poucos instantes a praça estava vazia.

Maomé, porém, foi para casa atordoado.Fizera alguma coisa errada? Não deveria ter falado a essa gente?Abu Bekr apresentou-se; no entanto, o príncipe não queria ver ninguém an-

tes de levar sua mágoa diante de Deus.

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Permaneceu ajoelhado durante a noite em oração, e procurou certifi car-se de que o seu caminho era o certo.

Enquanto isso, o horror grassava em Yatrib: Abu Bekr sabia bem certo onde os judeus moravam. Desde muito já vinha observando o seu procedimento ardilo-so. Agora, com os seus guerreiros, exterminaram os núcleos.

Não foram feitos prisioneiros! Foi uma horrorosa carnifi cina que o fi el fez para proteger o seu senhor contra futuros ataques. Para ele foi conveniente que Maomé não o recebesse; porquanto sabia, em princípio, que aquilo que acabara de fazer não estava no sentido da orientação de Maomé. Todavia, Maomé era um sonhador; um outro tinha de pensar por ele, sobre isso não tinha dúvidas. Mesmo que Maomé ainda durante algum tempo não ocultasse sua desaprovação, os obstá-culos tinham sido removidos do caminho para sempre. Até a madrugada durou a matança; mais de quinhentos judeus sucumbiram.

Quem o comunicaria ao príncipe? Ninguém quis encarregar-se disso. Então o vizir entrou pessoalmente na residência de Maomé. Nunca foi covarde. Quando se defrontou com o seu príncipe, assustou-se com o seu aspecto. Suas feições es-tavam pálidas e tresnoitadas; seus olhos, sempre tão radiantes, olhavam fatigados. Contra o seu próprio costume, o vizir esperou que Maomé lhe dirigisse a palavra. Este encarou-o demoradamente e então disse:

- Vens noticiar-me algo de grave, meu amigo, vejo-o. Contudo, não poderia ser mais grave do que aquilo que tive de ver e sentir vivencialmente nessa noite. Fala.

Nesse momento Abu Bekr comunicou com poucas palavras como ele, in-dignado com o atentado contra a vida do príncipe confi ante, instigou os seus igual-mente excitados guerreiros contra os judeus. Eles não puderam interrogar muito sobre culpados e inocentes.

- Os covardes de qualquer modo teriam arranjado subterfúgios! Excla-mou o vizir à sua maneira impetuosa.

Então continuou mais calmo e disse que, uma vez desencadeada a sede de vingança dos seus guerreiros, não foi mais possível impedir a matança. Teve o seu fi nal somente com a morte do último judeu em Yatrib. Horrorizado, Maomé tampou os olhos com a mão.

- Não é tenebroso, Abu Bekr, disse então vagarosamente, que eu lhes traga a morte, que eles sejam assassinados em meu nome, justamente eu, que desejo anunciar Deus aos homens, proporcionar-lhes felicidade, paz e bênção? Dize-me se ao teu ver, depois do que aconteceu esta noite, eu mesmo ainda posso viver, e se ainda posso ser um instrumento de Deus?

Pela primeira vez desde a antiga discordância. Maomé falou novamente de Deus ao seu vizir, deixando-o visualizar sua alma. Entrementes, porém, Abu Bekr também encontrara o caminho para Deus, se bem que à sua maneira algo

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tortuosa. Implorou intimamente que lhe fossem inspiradas as palavras certas para consolar o príncipe demasiadamente brando, e também enrijecê-lo.

- Príncipe, começou com cautela, queres escutar-me uma vez? Desejas e deves trazer à humanidade a nova doutrina! Por que a humanidade necessita de uma nova crença? Unicamente porque na antiga não achou apoio sufi ciente para seguir o seu caminho sem tropeçar. A maior parte da humanidade decaiu tão baixo no pecado, que todo o auxílio é inútil.

Maomé gemia; não interrompeu, contudo, o interlocutor. Este conti-nuou:

- Imagino isto como um grande e profundo lodaçal, no qual os homens caíram por desconhecimento do caminho ou pela própria vontade. Agora esten-dem as mãos, não para se deixar puxar para cima, mas sim para arrastar os ou-tros também para baixo. Assistirias impassivelmente, príncipe, a que também os outros, até aqui inocentes, caíssem igualmente no lodo e tivessem que sufocar-se ali? Não pegarias a espada para decepar as mãos malfeitoras? Esses homens te-riam afundado assim mesmo, mas os outros estão salvos.

Os dois fi caram calados. Demoradamente prevaleceu o silêncio no apo-sento. Suas almas concentravam-se em oração. O vizir rezou pelo seu príncipe, e este pelo seu povo. Enfi m Maomé rompeu o silêncio:

- Meu amigo, agradeço-te! Agora sei que sou fraco, aí, onde é necessário uma severidade inexorável. Pedirei a Deus que me conceda forças para que possa combater em mim essa fraqueza indigna de um homem. Foi-me revelado esta noite que ainda correrá muito sangue até que o povo fi que maduro para receber a nova doutrina. Tu deves executar essa horrenda tarefa por mim, porquanto és mais forte do que eu. Agradeço-te.

- Oh! príncipe, farei por ti tudo o que te seja difícil, contanto que não me repreendas por isso! Jorrou do íntimo do vizir.

Sua fi delidade não conhecia outro meio de comprovar-se, a não ser o de abrir caminho para o portador da Verdade. Os dois não puderam conversar muito sobre os acontecimentos da noite; ambos estavam por demais comovidos com o fato. Contudo, para Maomé não havia dúvida de que deveria falar com os patriarcas da cidade. Mandou chamá-los.

Vieram abalados pelo temor. Os acontecimentos terríveis encheram-nos de pavor. Estavam em dúvida sobre o que agora estaria à sua espera. Sério e amável, o príncipe dirigiu-lhes a palavra. Lamentou terem sido necessárias medidas tão drás-ticas. Isso foi tudo o que falou sobre o assunto. Em seguida perguntou como imagi-navam a remoção e o enterro das vítimas. Não haviam ponderado nada a respeito. Então ordenou que a uma certa distância, fora da cidade, fossem abertas algumas valas, para nelas deitar os cadáveres. Fê-las ver, no entanto, que os mortos eram ir-

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mãos que erraram e que não deveriam ser enterrados como animais. Quando todos os mortos tivessem sido deitados cuidadosamente nas valas, então deveria ser colo-cada uma camada de terra sobre os mesmos. Em seguida ele viria para pronunciar pessoalmente a bênção. Ordenou ainda que os guerreiros de Abu Bekr tomassem posição em redor das covas para isolá-las, de maneira que nenhum olhar curioso atingisse os mortos, e nenhuma palavra ofensiva fosse pronunciada em voz alta.

- Quando achais que podereis estar com tudo pronto? Indagou o príncipe. Os patriarcas deliberaram entre si a meia voz, e então fi xaram o dia seguinte à noite.

- Vamos carregar os cadáveres em carroças e tampá-las bem; assim podere-mos removê-los sem muita demora da cidade, disseram.

O príncipe despachou-os, para que a triste tarefa fosse executada sem mais demora. A Abu Bekr, porém, disse:

- O verdugo não serve para coveiro, eis por que não deixei que teus guer-reiros ajudassem no sepultamento. Mas que se encarreguem de cuidar que as suas vítimas não sejam escarnecidas ainda na morte ou prejudicadas por curiosidade. Talvez isto sirva para que alguns deles reconheçam ter sido a sede de sangue o im-pulso sob o qual agiram. O Juízo tinha que vir sobre aqueles que se haviam coloca-do contra a vontade de Deus, porém ai da mão que se levantou somente para saciar sua sede de sangue!

Admirado, o vizir olhava para o príncipe, o qual parecia ter se livrado de uma vez de toda fraqueza. Então, viu-se compelido a dar expressão por palavras a essa admiração.

- Meu amigo, disse Maomé, quando nós homens reconhecemos um erro, assim como eu reconheci minha desditosa fraqueza, nesse caso falta apenas um úni-co passo para que nós nos desfaçamos dele na força de Deus. Entretanto, devemos implorar a força para isso.

À noite do dia seguinte, ainda antes do pôr-do-sol, Maomé estava de pé, na beira das três covas que haviam acolhido os mortos. Pronunciou uma oração que enterneceu a todos os ouvintes. Pediu a Deus que fosse considerado, caso isso fosse possível, que a maioria desses homens fora conduzida por caminhos falsos. Então fez ver aos sobreviventes que esses tiveram de morrer por sua causa, a fi m de que também eles não fossem arrastados igualmente ao abismo. Não deveriam maldizer as vítimas, mas lembrar-se delas com íntima gratidão. Em seguida começou a falar ao povo sobre Deus. As almas, ainda sob a impressão comovente dos acontecimentos, escutavam, receptivas. Em muitos surgiu uma noção da grandeza e da majestade de Deus. Alguns dias depois parecia que em Yatrib toda a inquietação estava esquecida. Cada qual tra-tava dos seus afazeres, e a construção do santuário redondo progredia rapidamente. Seguindo uma inspiração recebida de cima, Maomé quis exortar o povo a rezar cinco vezes ao dia, regularmente, em horas bem determinadas. .

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Desse modo, na faina diária, conservar-se-ia vivo o pensamento em Deus. O teor dessas preces, em atenção a esse motivo, Maomé não quis prescrever. Pretendia escrever para o povo poemas de louvor e agradecimento ao Criador, os quais então poderiam ser utilizados por livre escolha. Inteiramente entretido nesses pensamen-tos, relatou-os um dia aos seus. Todos os aprovaram vivamente. Pareceu-lhes bom que à mesma hora, no país inteiro, devesse subir uma prece de todos os corações. Porém Ali, que sempre ponderava a exeqüibilidade de uma idéia, antes de esta ser debatida por inteiro, quis saber como poderia ser organizada, para que realmente todos, à mesma hora, elevassem suas almas a Deus.

- Deve-se mandar proclamar a hora, refl etiu Maomé.- Então deverias mandar o convocador colocar-se em cima de algum telha-

do, príncipe, objetou Said. Parado na rua, não seria possível fazer-se ouvir. - Constrói-lhe uma torre ao lado do templo, meu amigo, propôs Alina.Essa proposta agradou a todos; especialmente Maomé fi xou-se imediata-

mente nisso. Uma alta e delgada torre deveria ser construída, a qual teria de ser erigida isoladamente, ao lado do templo. Como um dedo deveria indicar às alturas, lembrando os homens, também na sua forma externa, daquilo que paira acima da existência humana.

Alina desagradou-se do nome “templo” para o santuário. Desculpando-se, disse que ele fazia lembrar os pobres judeus mortos. Também Ali insistiu em que fosse procurado outro nome. A expressão “templo” exercia em toda parte um efeito irritan-te sobre os judeus, os quais a utilizavam para denominar as suas casas de Deus.

- Então vamos adotar o termo árabe “moschee” (mesquita), opinou o prín-cipe. Agrada-me já pelo fato de provir etimologicamente do nosso idioma e não ser plagiado de ninguém. Mesquita, lugar de adoração, sim, assim será denominado!

Como Maomé daquela hora em diante falasse sempre mesquita, os constru-tores e patriarcas habituaram-se a chamar assim o santuário.

Já há muito tempo o príncipe tinha vontade de ir a Meca. Precisava ver pes-soalmente em que situação fi cara a cidade. Caso fosse possível, desejaria instalar no-vamente a sua residência lá. Provavelmente mandaria reconstruir desde a sua base o palácio do principado. Mas o faria com prazer. Além disso, queria ver o tesouro oculto e tirar pedras preciosas, as quais tencionava doar ao santuário de Yatrib. Ra-zão sufi ciente para empreender uma cavalgada até Meca.

Abu Bekr inicialmente não quis ouvir nada disso. Sabia de que maneira hor-renda os seus guerreiros devastaram Meca, e quanto dano causara a desunião entre os burgueses. Queria poupar ao príncipe a visualização desse aspecto, contudo, este

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não mais consentiu que se tomassem em consideração, de qualquer modo, os seus sentimentos. Queria ver pessoalmente e tornar-se rígido. Então todos insistiram em acompanhá-lo: Abu Bekr com um número considerável de guerreiros, Said, Ali e Abdallah, fi lho mais velho de Ali. Alguns serviçais familiares deveriam igualmente acompanhá-los, entre eles Mustafá, que, aliás, já era bem idoso e não obstante dese-java fazer parte da caravana. Sabia que era indispensável na procura dos tesouros.

Numa bela manhã o imponente grupo saiu cavalgando pelo portal rumo ao sul. Há quanto tempo Maomé não viajava mais por esse caminho! Pomares, amoreiras e campos de cereais estendiam-se férteis diante dos cavaleiros. Se aqui alguma vez foram travados combates, então os danos já tinham sido compensados pela riqueza da fertilidade da natureza.

Passaram por pequenas povoações. Os moradores acorreram e souberam que o príncipe Maomé chefi ava o grupo, e ovacionaram-no. Aprazia-lhes ver como ele montava com imponente e natural dignidade o seu cavalo. Regozijavam-se por ser ele seu príncipe. No mais, pouco sabiam a seu respeito. Nunca lhes interessou sa-ber quem os governava. Enquanto podiam viver em paz, era-lhes indiferente quem dominava o país.

Ao fi m de alguns dias o grupo chegou às adjacências de Meca, cujo portão encontraram fechado. Abu Bekr, ameaçando, exigiu que os deixassem entrar, toda-via zombaram deles.

- Prevenimo-nos bem, servo sanguinário de um senhor sedento de sangue, clamaram para fora com riso irônico. Não nos prejudicarás mais.

Nesse momento o príncipe em pessoa pediu entrada. Depois disso houve silêncio. Provavelmente as sentinelas não tinham sido prevenidas com instruções para esse caso. Então fi zeram sinal para que o príncipe esperasse. Precisariam cha-mar os patriarcas da cidade.

Abu Bekr estava furioso. Como podia ser possível uma cidade comportar-se dessa maneira perante o seu príncipe! Maomé procurou pacifi cá-to.

- Não deves esquecer, disse, que Meca sofreu muito. Eu estive ausente duran-te dez anos. O povo não sabia se eu voltaria um dia. Possivelmente os guardas do portão nada sabem sobre mim.

Também ao príncipe não agradou fi car esperando submisso na frente do por-tão fechado. Deixou uma pequena tropa de cavaleiros no local e rodeou com os seus a cidade, num largo círculo, para poder formar uma idéia sobre as devastações. Enfi m, Said percebeu uma agitação no portão e concluiu que os patriarcas da cidade estavam reunidos ali. Maomé voltou vagarosamente com os acompanhantes. O portão perma-neceu fechado como antes, mas sobre o muro surgiram muitas cabeças; um espetácu-lo que provocou um sorriso involuntário do príncipe. Bem-humorado, aproximou-se e cumprimentou os que olhavam por cima do muro. Então disse:

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- Está em tempo de mandar abrir os portões para o vosso príncipe, que está aqui para visitar-vos. É mau procedimento fazer o soberano esperar.

Contestando, replicou um dos patriarcas que conhecera Maomé em tempo anterior:

- Quem te disse, príncipe Maomé, que és bem-vindo? Por muitos anos per-maneceste distante de nós. Não estás mais gostando de Yatrib para te lembrares fi nalmente de tua velha cidade natal?

- Não me foi possível vir antes, Ibrahim, retorquiu Maomé bondosamente. Contudo, sobre isso vos darei informações, se nos próximos dias estivermos senta-dos juntos, e eu também saberei de vós o que passastes nesse ínterim.

Em cima do muro nada se mexeu; o portão continuava fechado. Então Ma-omé clamou em voz alta:

- Vosso príncipe encontra-se diante do portão, ó homens; o profeta do Altíssimo deseja entrar na Caaba. Se vós vos opuserdes, então não devereis admirar-vos, se um cas-tigo severo for a conseqüência da vossa teimosia. Ordeno-vos que abrais o portão!

Em cima do muro começou um murmúrio baixo, uma ponderação, uma refl exão; então pareceu que o pouco antes chamado Ibrahim subiu mais alguns degraus de uma escada encostada pelo lado de dentro, porquanto tornou-se visível até os joelhos. Agitava um trapo branco em sinal de que não lhe deveriam fazer mal, e começou a falar:

- Nós não temos...Maomé interrompeu-o bruscamente:- Guarda teu farrapo, Ibrahim! Falo aqui convosco sem um símbolo desses e sem

medo. Nisso deverias seguir meu exemplo. Ainda mais: falas em nome da cidade. O que acontecer a ela deverá recair duplicado sobre ti. Pensa nisso, e não te lamentes quando acontecer aquilo que vossa obstinação atrair sobre vós.

Ibrahim de fato atirou o trapo branco e desceu de novo alguns degraus da escada, o que provocou irresistivelmente uma risada do jovem Abdallah, que observava com grande atenção o desenrolar do acontecimento.

E então Ibrahim começou outra vez: - Não temos mais nenhum príncipe. Desde que o príncipe Maomé deixou du-

rante a noite nossa cidade, para estabelecer-se em Yatrib, nós o depusemos. Nós somos auto-sufi cientes e não necessitamos de soberano algum. O palácio dos Koretschi demo-limos, e o que continha, repartimos entre nós. Podias ter fi cado aqui, Maomé ben Ab-dallah, se teu coração estivesse preso a essas coisas. Teu vizir sanguinário estrangularemos como um cão, se ele nos cair nas mãos. Para ti, porém, o portão da cidade permanecerá fechado. Também não necessitas ir à Caaba; tens a tua nova crença. Atém-te a ela!

- Agora basta! Esbravejou Maomé, que começava a enfurecer-se. Uma cidade que não tem soberano está fora da lei. Não fi queis alarmados se eu vos tratar corresponden-

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temente. Acautelai-vos de enviar caravanas comerciais para fora, porquanto estas serão interceptadas e presas. Com as vossas riquezas devereis garantir aquilo de que vos apro-priastes indevidamente. Estabelecerei um fi rme encurralamento em redor da cidade re-voltosa. Não tereis liberdade de movimentação na vossa prisão deliberadamente escolhi-da. Deixai, entretanto, os vossos portões fechados, porquanto abri-los agora signifi caria expor-vos a um perigo!

Esporeou o seu cavalo e saiu dali a galope. Seus acompanhantes seguiram-no, formando um longo grupo bem disciplinado. Tinha uma aparência majestosa esse cor-tejo, e aos homens de Meca, que eram legítimos árabes, agradou extraordinariamente o procedimento de Maomé. Apesar disso, não quiseram ceder de modo algum, julgando, aliás, ter motivo sufi ciente para rancor e vingança.

Assim que a cidade fi cou além do seu campo visual, o grupo de Maomé parou. Chamou os seus perto de si, para aconselhar-se com eles. Então foi decidido que Said e Ali regressariam a Yatrib, a fi m de buscar os restantes guerreiros. Maomé quis fi car com as tropas de Abu Bekr e com ele vigiar os dois portões. Abdallah pediu insistentemente para poder fi car com o avô e acompanhar o desenrolar ulterior. Maomé alegrou-se com a atitude de seu neto e anuiu ao seu pedido. Ainda à mesma hora partiram os fi éis, levando consigo uma parte da criadagem, enquanto os guerreiros acampavam perto da cidade, para que pudessem observar melhor o que se passava sobre os muros ou nos portões. Também durante a noite não descuidaram de sua vigilância. Nada ocorreu nos primeiros dois dias. Os portões permaneceram fechados; sobre o muro foram penduradas peças de roupa para enxugar. Abdallah resmungara que isso já estava fi cando fastidioso, então, ao meio-dia abriu-se cautelosa e furtivamente o portão. Abu Bekr ordenou que nenhum dos seus se mexesse. O inimigo deveria julgar-se seguro. Do portão saiu um imponente camelo, carregado de mercadorias, seguido de um segundo e um terceiro.

Maomé presumiu um ardil.- Não é concebível, disse, que eles realmente experimentem enviar uma caravana,

apesar de estarmos acampados aqui.Todavia assim foi. Uma considerável caravana de quinze camelos deixou a cidade

e dirigia-se em direção a oeste.Rapidamente os guerreiros montaram nos seus cavalos, e enquanto a metade

tomava a dianteira para atravancar o caminho dos camelos, a outra metade tomava o rumo entre a cidade e a caravana. Maomé mantinha-se afastado. Não se coadunava com a dignidade de um príncipe capturar uma caravana comercial. Também não teria per-mitido que Abu Bekr o fi zesse, se não tivesse ele próprio ameaçado com isso. Agora tinha que sustentar a sua palavra. Não levou muito tempo até que os vencedores voltassem. Em obediência às instruções de Maomé, os guerreiros procuraram aprisionar os inimi-gos sem matá-los. Arrastaram alguns feridos a ele. Orgulhavam-se de seu autodomínio. Maomé elogiou-os. Então um dos homens mais idosos disse:

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- Príncipe, chamaste-nos de carrascos, o que nos magoou profundamente.Se o príncipe julgou inicialmente que a caravana se compunha de mora-

dores de uma outra cidade, que eram obrigados a retomar à sua terra natal, nesse momento teve de certifi car-se de que os habitantes de Meca se deixaram levar tão longe pela sua teimosia, a ponto de enviar realmente uma caravana, que, além de tudo, estava carregada ricamente. Maomé mandou vir os prisioneiros à sua presen-ça. Não conheceu nenhum deles. Tremiam e estremeciam, de sorte que mal pude-ram responder às perguntas.

Quis saber se eram comerciantes estabelecidos. Responderam negativamente. Momentos depois fi cou sabendo que se tratava de homens contratados, os quais por causa do ganho arriscaram a sua vida. Dois comerciantes haviam feito a tentativa, para ver se Maomé executaria efetivamente a sua ameaça de interceptar as suas caravanas.

- Por que deveria deixar de cumprir aquilo que eu disse? Perguntou o príncipe. Os homens abaixaram as cabeças.

Os guerreiros, porém, regozijaram-se com a presa. Maomé mandou dar bas-tante a eles; o restante, no entanto, deveria ser guardado para o caso de a cidade se render em breve. Então deveria ser restituída aos comerciantes pelo menos a maior parte de seus bens. Após ter conferenciado com Abu Bekr, Maomé mandou vir ou-tra vez os homens de Meca à sua presença:

- Escutai, disse a eles, como sois apenas homens contratados, dou-vos a liberda-de, se me prometerdes não empreender mais nada contra mim.

Isso eles prometeram de bom gosto. Depois disso receberam permissão para regressar à sua cidade, porém sem os camelos. Lá, contudo, primeiro recusaram-se a abrir os portões para eles.

- Não podemos saber quanto dinheiro Maomé vos ofereceu para atraiçoar-nos, disseram os patriarcas.

Alguns homens juraram solenemente que não fariam nada contra a cidade e que o príncipe também não exigiu semelhante coisa deles. Os demais eram muito orgulhosos para humilharem-se. Voltaram a Maomé e pediram que os aceitasse a seu serviço. Confi ou-lhes o tratamento dos camelos. Tinham de se manter a certa distância do acampamento e encontravam-se, sem que o soubessem, debaixo de uma certa vigilância, até que deram provas de que tinham de fato intenções hones-tas. De vez em quando o príncipe travava conversa com eles. Perguntava sobre este e aquele, dos quais se recordava. Queria saber se o seu palácio paterno fora realmen-te arrasado. Os homens responderam afi rmativamente. Teria restado somente um montão de ruínas. Disso, contudo, Maomé obteve a convicção de que o local onde se encontrava o tesouro não fora descoberto. IInterrogou também sobre Abu Talib.

- Teu vizir sanguinário nada te contou a respeito dele? Perguntou um dos ho-mens em resposta. Ele poderá informar melhor o que fez com ele.

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- Então não vive mais? Indagou Maomé, se bem que sabia qual seria a resposta.Os homens negaram e disseram que Abu Talib já tinha sido aprisionado por

Abu Bekr na primeira revolta. Então o homem teria praguejado tanto e, sobretudo, blasfemado tão terrivelmente contra Cristo, que o vizir mandou pregá-lo sumaria-mente na cruz. Maomé horripilou-se. Tal fi m para um homem, a quem somente a cobiça induziu a caminhos errôneos! E esse era o pai de Ali. Como foi bom que Ali não soubera nada disso!

Mais cedo do que se esperava, vieram os guerreiros de Yatrib sob a chefi a de Said. Então Abu Bekr pôde tratar de continuar o cerco iniciado. Maomé regressou com Abdallah.

Grande júbilo recebeu-o. Os ânimos exaltados sobre a carnifi cina acalma-ram-se nesse ínterim. Os homens compenetraram-se de que os judeus haviam cometido grave crime e que o castigo, embora severo, fora justo. Assim também desapareceu neles o medo de Maomé, e quando souberam como Meca recebeu seu soberano, insistiram de novo junto ao príncipe que elevasse Yatrib para sua resi-dência. Construir-lhe-iam um suntuoso palácio. Concordou. Para o reino, com sua nova extensão, Yatrib fi cava bem mais favorável; além disso, poderia demorar muito até que Meca, após todos os distúrbios, fosse recuperada.

Imediatamente foi dado início à construção do palácio. Os habitantes de Yatrib competiam entre si para tomarem parte de qualquer modo na obra. Resolve-ram que o palácio deveria fi car pronto simultaneamente com a mesquita.

- Nesse caso também terás que abandonar a vida no palácio das mulheres puras, disse Maomé a Alina, quando falaram do futuro. Ele não podia conceber outra idéia a respeito senão a de estar reunido novamente com os seus, no palácio principesco.

A princesa, porém, sacudiu levemente a bela cabeça.- Isso não mais será assim, meu amigo, replicou. Se queremos ajudar as mu-

lheres a recuperar a pureza perdida, então devemos dar exemplos, sobretudo quan-to à vida nova que nasce da nova doutrina. Sabes que sou agraciada para ver certas coisas, quando me surgem dúvidas sobre se aquilo que sinto intuitivamente é o certo para minhas irmãs. Baseada numa dessas visões noturnas, mandei construir o palácio, no qual podem entrar somente mulheres. Por essa razão também vedei a ti, meu marido, a entrada. Gracejaste quando eu não quis permitir que visitasses nossos aposentos. Efetivamente isso não foi um mero capricho meu.

Maomé interrompeu-a, admirado.- Teria havido algum mal, se eu, o esposo e pai das ocupantes, tivesse percor-

rido o palácio? Perguntou, incrédulo. Alina pediu:- Procura compreender-me. Difi cilmente poderei exprimir por palavras

aquilo que está tão vivo no meu íntimo, e que, tenho certeza, é a verdade. Exte-riormente isso não nos teria prejudicado. Porém, após eu ter introduzido como

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exemplo a separação dos sexos, não deveria transgredi-la nem por um segundo. Se nossas fi lhas e eu não respeitarmos o mandamento, as outras muito menos o respeitarão. Vê, meu amigo, os homens desaprenderam a acatar-nos assim como era da vontade de Deus. Nós próprias somos culpadas e nós próprias devemos es-forçar-nos para modifi car isso. Nós nos entregamos com demasiada liberalidade e sem timidez aos homens. Também olhares podem tocar e macular! Essa é a razão por que Fatime, as fi lhas e eu sempre usamos um véu cobrindo o rosto, ao andar-mos nas ruas. Nenhum olhar de homem estranho poderá avaliar-nos. Se durante os anos transformamos essa prática em hábito, então isso se realizou para que uma vez um começo fosse dado. Espero e desejo que transformes em lei aquilo que até agora apenas pude prescrever às mulheres do meu círculo de intimidade. Muitas de nossas conhecidas já praticam os mesmos costumes. Sentimo-nos mais contentes assim, do que em tempo anterior.

Cheios de admiração, os olhos de Maomé fi tavam a princesa, cujo rosto de-licado cobriu-se de um suave rubor durante o diálogo.

- Realmente, Alina, Deus teve as melhores intenções comigo ao destinar-te para minha esposa! Disse cheio de gratidão. Auxiliarás as mulheres a regenerarem-se da decadência. Com isso renovar-se-á toda a nossa geração; porquanto mulheres puras serão mães boas e virtuosas.

- Posso dizer mais alguma coisa? Pediu a princesa após breve silêncio. Preo-cupa-me muito o fato de que cada homem possa ter um número ilimitado de mu-lheres. Com a primeira e a segunda talvez ainda se realize uma espécie de bênção; depois então compram as demais, ou tiram-nas da criadagem para incluí-las em seu domínio familiar. Isso em nada favorece a pureza. Sei que será errado exigir que os nossos homens devam contentar-se com uma mulher. Onde, como conosco, fi cou negado o herdeiro, será admissível que o homem se una a uma segunda mulher. Também outras razões podem ser determinantes. Porém, mais do que duas mulhe-res nenhum homem deveria ter. Queres uma vez meditar sobre isso, meu amigo?

Maomé prometeu-o e pensou ulteriormente mais nisso do que gostaria.“Como conosco”, havia dito Alina. Não seria também sua obrigação tratar de ter um herdeiro?Na verdade Ali era excelente sucessor, mas, bem considerado, Fatime não era

da mesma casta, pois era fi lha de Chadidsha. Disso poderiam advir complicações, no caso de seu falecimento, se não existisse um verdadeiro herdeiro no trono, de descendência principesca. Perdurou por alguns dias a incerteza, e então Maomé soube que Deus lhe negara o herdeiro. Toda aspiração a esse objetivo seria em vão. Dedicou-se com mais assiduidade aos seus poemas, os quais se tornaram para ele uma necessidade íntima e proporcionavam-lhe grande prazer. E com tudo isso se passaram mais dois anos.

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Então veio a notícia de que os habitantes de Meca, irritados pelos sucessivos aprisionamentos de suas caravanas comerciais, fi zeram uma investida e passaram por sua vez ao ataque. Perto da povoação de Bedr havia sido travada uma sangrenta bata-lha, que durou alguns dias. O seu desfecho não teria sido decidido por muito tempo, contudo, certo dia de manhã Abu Bekr fez uma oração em voz alta, em presença dos guerreiros, para que o Senhor dos Céus e da Terra lhe concedesse a vitória, a fi m de que Maomé fi nalmente pudesse iniciar a propagação da nova doutrina. Depois disso encorajou os guerreiros, e ainda antes do anoitecer a vitória estava conquistada. Os homens de Meca tiveram que retirar-se em debandada para a sua cidade.

Abu Bekr consultou se deveria atacar e aniquilar a cidade. Maomé encarregou Ali de entrar em negociações com Meca. Tão reduzido teria fi cado o número dos guerreiros aptos para o serviço de defesa, que a cidade certamente aceitaria quaisquer condições. Não se enganou. Os moradores de Meca fi caram contentes de poder entrar em concórdia. Com a promessa de absoluta fi delidade, foi-lhes assegurado que Abu Bekr retiraria suas tropas.

Meca estava tão humilhada, que rogou que Maomé esquecesse o passado e instalasse novamente sua residência em seu meio. Ali recusou cabalmente em nome do príncipe. Em seguida pediram que o príncipe pelo menos viesse visitar a cidade e a Caaba. Isso Ali achou que poderia prometer. Por sua vez os patriarcas conformaram-se com a condição, naquele tempo usual em tais casos, de manter abertos os portões por um determinado número de anos. Uma cidade subjugada não podia fechar ne-nhum portão, até que se redimisse.

Maomé estava satisfeito com o resultado e preparou-se para visitar Meca. An-tes, porém, fez uma alocução na praça principal de Yatrib e participou a todos os ha-bitantes que a cidade dali em diante seria a capital do novo reino da Grã-Arábia. Nessa qualidade não deveria mais chamar-se Yatrib, e sim ter apenas o nome de “a cidade”, isto é, “Medina”. Assim fi caria elevada acima de todas as outras cidades. Essa seria a recompensa pela fi delidade que os seus habitantes lhe haviam tributado em épocas difíceis. Esperava agora também que “a cidade” se tornasse pioneira na aceitação e no acatamento de todos os novos mandamentos, na moderação dos costumes e numa vida melhor.

Em sua alegria os homens prometeram tudo e a maioria também estava com o propósito de cumprir. Na verdade tiveram em mira principalmente vantagens ter-renas. Se Medina se tornasse a capital, então se transformaria no centro de todo o comércio e tráfego. Seu santuário atrairia igualmente os homens. Rica, grande e po-derosa fi caria Medina.

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Maomé cavalgou com Ali para Meca. Havia recebido ordem de cima para via-jar logo a seguir para a Síria e a Palestina e então, após o seu regresso, promulgar as novas leis e introduzir a nova doutrina. Enfi m ele poderia iniciar a sua verdadeira missão. Tudo o mais fora apenas trabalho preparatório. Grande alegria e sublime en-tusiasmo encheram-no. Deixou Abu Bekr e Said em Medina e escolheu apenas uma pequena tropa de guerreiros para acompanhá-lo, chefi ados pelo seu neto Abdallah.

Assim que Meca surgiu ao longe, fez-se notar uma animada movimentação. Abdallah lembrou-se da chegada de três anos atrás e receou que os homens pudes-sem ter outra vez intenções hostis. Maomé acalmou-o. Vieram cavalgando pacifi -camente para receber o príncipe e conduzi-lo à cidade deles, que doravante deveria ser de novo a sua cidade fi el. Excederam-se em provas de arrependimento e dedica-ção, mas Maomé sentiu que não eram sinceros. Não confi ava mais nessa gente.

Com grande interesse olhava para os danos provocados pela discórdia e pela in-surreição. De seu próprio palácio realmente não se achava mais nenhuma pedra no seu lugar. O palácio principesco, que lhe servira de morada, estava parcialmente conserva-do; apresentava, contudo, o indício de ter sido ocupado por outros que não príncipes.

A Caaba nada sofrera; apenas parecia indescritivelmente descuidada. Os pa-triarcas da cidade queixaram-se de que o príncipe mandara construir um novo san-tuário em Yatrib e que agora o deles seria relegado a segundo plano, esquecido. Ma-omé, querendo poupar os sentimentos daqueles homens, prometeu-lhes mandar construir mais tarde, também, em Meca uma mesquita. Eles, no entanto, deveriam nesse meio tempo limpar a Caaba e consertá-la. O príncipe, porém, já não tolerava a cidade, na qual se sentia constantemente rodeado por pensamentos falsos. Logo que se lhe tornou possível, interrompeu a visita, prometendo voltar uma outra vez, e cavalgou com o seu séquito para a Síria.

Essa viagem através dos territórios recém-anexados proporcionou a ele e a seus acompanhantes uma alegria ilimitada. Em toda parte podia-se ver como cida-des e povoações desabrochavam sob o novo domínio e com que prazer eles obede-ciam ao príncipe.

Mais de dois anos Maomé percorreu essas regiões, anunciando Deus e Cris-to, e preparando o chão nas almas para aquilo que deveria instruir-lhes mais tarde. Cheio dessas belas e regozijadoras impressões, aproximou-se afi nal de sua cidade Medina, e encontrou-a num alvoroço muito grande. Recentemente haviam chega-do tropas de guerreiros do sul para atacar Medina. Abu Bekr fora cientifi cado do plano a tempo e saíra com os seus guerreiros ao encontro dos outros numericamen-te superiores. E agora estava sendo travado o combate.

Maomé não hesitou muito; deu a volta ao redor da cidade sem demorar-se e conduziu os guerreiros a Abu Bekr como reforço. Chegou no momento preciso. Inicialmente a sorte das armas esteve ao lado de Abu Bekr. Então um subchefe exe-

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cutou erradamente uma ordem, abrindo-se, conseqüentemente, uma brecha para o inimigo, a qual ninguém mais pôde fechar, porque todos os guerreiros eram indis-pensáveis em outros lugares.

Com um rápido olhar, Maomé compreendeu a situação e cavalgou com seus acompanhantes para a brecha. Assim que os guerreiros avistaram o príncipe, reco-braram o ânimo já abatido. Após poucas horas a vitória estava conquistada; o ini-migo foi afugentado. Em grande parte contribuiu para esse resultado o sobressalto que os homens de Meca sentiram ao fi carem cientes de que Maomé em pessoa se encontrava no campo de luta. Julgavam-no ainda distante, em outras plagas. Nessa hora ele próprio tornou-se testemunha da deslealdade deles!

Abu Bekr perseguiu com todos os guerreiros o inimigo em debandada. Tam-bém não descansou antes de ter feito a maioria dos homens pagarem com a própria vida a sua traição. Particularmente se encolerizou com o fato de os homens de Meca terem encontrado apoio tão forte por parte dos judeus da zona meridional da Ará-bia. Contra esses desencadeou toda a sua fúria. Não houve quem não caísse sob seu braço vingador.

Maomé, porém, entrou cavalgando em Medina. Recebeu um leve ferimento. Abdallah teve ferimentos mais graves; entretanto, recuperou-se brevemente, sob os cuidados de sua mãe.

O príncipe teve de esperar primeiramente o regresso e as notícias de Abu Bekr, antes de poder apresentar-se com as suas inovações. Isso se tornou para ele uma dura prova de pacienciosa espera. Ele, que durante longos anos esperara pa-cientemente, quase não podia, agora, superar essas semanas.

Finalmente Abu Bekr retornou com os seus guerreiros para casa. Contou pouco da maneira como puniu os traiçoeiros, porém não deixou dúvidas de que isso foi feito radicalmente. Os patriarcas e sacerdotes da cidade de Meca que não tinham tombado em combate, mandou executar sem cerimônia. Os muros de Meca mandou demolir e o palácio do principado fez arrasar até o chão. O que teria resta-do da outrora orgulhosa e bela Meca? E esses sobreviventes teriam de pagar tributo e assim, por alguns anos, não poderiam empreender nada. Isso a Maomé pareceu severo demais.

- Por que exiges tributo desses pobres, meu amigo? Perguntou, compassivo. Não precisamos de dinheiro.

- Desta vez devem sentir o castigo, e essa população de mercenários e comer-ciantes somente o sente quando tem de entrar com dinheiro, retorquiu Abu Bekr indiferentemente. Se não queres aplicar o dinheiro de outra maneira, então junta-o para a mesquita, a qual queres mandar-lhes construir mais tarde.

- Essa é uma ótima idéia, alegrou-se o príncipe. Assim o santuário será cons-truído com o dinheiro deles, expiando com isso a sua culpa.

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Maomé, então, não viu motivo para protelar o início de sua verdadeira missão. Como ato preparatório, retirou-se para uma tenda, que mandara erigir perto de Medina, num lugar ermo, e jejuou e orou durante sete dias. Naqueles dias não falou com ninguém a não ser com o mensageiro de Deus. Sagrada força e importante saber para a nova doutrina afl uíam-lhe. Incessantemente se pre-ocupava com a maneira pela qual deveria trazer ao povo o novo, numa forma que o mesmo aceitasse prazerosamente. Também nisso lhe foi dado auxílio. Viu como o país inteiro poderia ser dividido, a fi m de poder controlá-lo com mais facilidade.

Na noite do sétimo dia regressou ao palácio principesco, tomou um banho e mandou chamar Alina. Explicou-lhe seu projeto em traços gerais e pediu-lhe que complementasse sempre aí onde teria de ser incluído um mandamento ou uma determinação para as mulheres. Assim trabalharam os dois a noite toda.

Somente então quebrou o jejum, tomou uma refeição e deu um passeio pelo jardim.

Depois disso mandou chamar Abu Bekr, Ali e Said para ministrar-lhes as determinações mais importantes sobre o novo reino. Dividiu a Grã-Arábia em pro-víncias, colocando em cada uma delas um administrador. Este não deveria apenas governar a província como seu procurador, mas sim, ao mesmo tempo exercer as funções de mais alto zelador dos bens espirituais. Esse projeto fora elaborado nos últimos anos em seus mínimos detalhes e recebera há pouco tempo apenas comple-mentação e confi rmação de cima.

Os três fi éis admiravam a profunda sabedoria que aí se lhes revelou. Pre-videntemente Maomé escolhera para administradores somente aqueles homens que demonstraram ser fi éis, como também não deixou de levar em consideração, na escolha, que fossem descendentes da zona para cuja administração tinham sido convocados.

Foi demonstrado que Maomé, o qual Abu Bekr em sigilo sempre ainda cha-mava de “o sonhador”, caminhava pela vida com os olhos abertos, e que sabia muito mais do que os outros supunham. Teve conhecimentos exatos sobre a conduta dos moradores de cada província, sobre suas necessidades e sobre seus costumes.

Após terem sido indicados os administradores, em número de vinte e sete, mandou Maomé mensageiros a todos eles, para que se reunissem num determinado dia em Medina. Nesse meio tempo combinava com os seus os mandamentos que iria publicar e as teses doutrinárias que iria anunciar.

E de novo os surpresos acharam um fi rme encadeamento, no qual não faltou nenhum elo. Uma bem-pensada integração, a qual deveria entusiasmar a todos os bem-intencionados.

- Realmente, príncipe, exclamou Ali encantado, aqui devemos reconhecer

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que teu espírito é guiado por Deus! Coisa semelhante nenhum homem pode pro-duzir. É perfeito.

Os outros aprovaram e esforçaram-se para captar direito tudo quanto Ma-omé lhes quis anunciar. Era muito o que eles tiveram de aprender, mas resultou tão nitidamente uma coisa da outra, e nada fora posto arbitrariamente, que, para surpresa sua, notaram como puderam assimilar logo o novo.

Então veio o dia fi xado para a reunião. Todos os administradores escolhidos compareceram pontualmente, na ansiosa expectativa de saberem por que o prínci-pe mandara chamá-los. Foram alojados com o necessário conforto em grandes ten-das feitas de tecidos de seda, as quais haviam sido levantadas para esse fi m. À noite, na sua chegada, foram estimulados a tomarem banho; depois todos receberam ves-tuários iguais, de várias cores: calças largas feitas de tecidos coloridos, estreitadas embaixo; camisas brancas folgadas com mangas compridas e largas, e sobre estas um colete bordado, da mesma cor da calça. Sobre o colete foi fi xada uma cinta, da qual pendiam as armas: espada, punhal e faca.

Foi servida uma copiosa refeição em todas as tendas, e os servos aconselha-vam que todos se servissem à vontade, porquanto o dia imediato seria de jejum. Isso era novo para todos.

Na manhã seguinte, justamente nesse dia de jejum, Maomé mandou chamar os vinte e sete na praça principal de Medina, onde estava esperando com seus três fi éis. Tiveram que tomar posição em forma de círculo com a fronte dirigida para o leste. Após isso, o príncipe pronunciou uma longa oração, na qual agradeceu a Deus, o Senhor, pela Sua graça e pelo Seu auxílio.

Sentaram-se no local em que se encontravam. Maomé sentou-se no meio deles e dirigiu-lhes a palavra. Esclareceu que os convocara para propagarem a nova doutrina entre o povo. Isso, porém, não deveria ser efetuado mediante peregrina-ções e tentativas de conversões, mas sim, cada um deles recebe-ria uma comarca, na qual, como mandatário com poderes circunscritos, cuidaria do bem-estar do povo, sendo sua incumbência principal a introdução da nova doutrina. Isso seria possibilitado pelos mandamentos redigidos pelo príncipe, em conformidade com a vontade de Deus, e cujos mandamentos também os administradores teriam que cumprir integralmente. O não cumprimento acarretaria um castigo severo.

Após, exigiu que se retirassem às suas tendas e meditassem para adquirir certeza se estavam dispostos a aceitar a investidura. Aquele que se julgasse incapaz, poderia desistir.

Quem quisesse seguir o chamado, deveria apresentar-se à noite, antes do pôr-do-sol, na mesquita, para prestar juramento de fi delidade. Até lá deveriam abs-ter-se de qualquer alimento.

Admirados, os homens obedeceram e retiraram-se para as tendas, onde per-

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maneceram até a noite. A maioria deles deitou-se sobre as camas e fi cou absorta em sonhos; não sabiam, com efeito, como deveriam começar a “meditação” de modo diferente. Entretanto, todos estavam possuídos de um sagrado zelo e de boa von-tade; nenhum deles cogitava em não aceitar o cargo. O novo traje deu-lhes, ante si mesmos, uma certa dignidade, que os tornou felizes. À noite, fi caram parados na frente da mesquita, que foi aberta ao som de cânticos solenes de vozes masculinas, que soavam do interior. Foi-lhes permitido entrar, e fi caram admirados. Coisa idên-tica nunca haviam visto! Assim deveria ser nas alturas, acima do mundo! A ampla cúpula estendia-se sobre a penumbra; porquanto a claridade das tochas, das velas, das lamparinas suspensas e dos incensórios acesos entre as colunas, não penetrava bem para cima. O chão estava coberto de tapetes coloridos. Os devotos puderam fi car de pé sobre os mesmos, após terem tirado os seus calçados na porta de entrada. No lado leste fora construído um nicho, no qual se apresentou Maomé. Era natural que todos estivessem numa posição em que pudessem vê-lo.

Então, a voz juvenil de Abdallah, que estava situado num lugar mais alto, no meio, leu um hino de louvor à onipotência e bondade de Deus. Soava e vibrava pelo am-biente solene e emocionou as almas poderosamente. Tiveram a sensação de estar sendo levados para planícies de bem-aventurança. Nunca haviam presenciado tal evento! A maioria deles até então não tinha crença nenhuma; uns eram cristãos e alguns judeus. Todos, no entanto, sentiram que lhes fora dado algo de novo e melhor. Então Maomé começou a falar. Pediu-lhes que cada um por si se apresentasse diante dele, para, ao pro-nunciar o próprio nome, prometer que queria servir a Deus como seu supremo Senhor e Soberano e executar Suas ordens.

A fi m de que soubessem como deveriam fazê-lo, aproximou-se primeiro Ali e disse com voz gutural, mas claramente audível:

- Ali ben Abu Talib promete servir a Deus como seu supremo Senhor e Soberano e cumprir os Seus mandamentos!

E Maomé respondeu:- Ali ben Koretschi, sê regente do reino, em meu lugar! Abu Bekr foi nomeado

grão-vizir e chefe do exército; Said para vizir, encarregado das fi nanças e administrador de todos os escritos.

A cada um que então se aproximou, Maomé citou a província que teria de go-vernar como administrador, e todos notaram com alegria que era justamente na pró-pria terra natal de cada um que deveriam viver dali em diante como servos de Deus.

Por último aproximou-se AbdaIlah, que se tornara um moço de bela aparência.- AbdaIlah ben Ali, a ti, Deus ordena que sejas orador no santuário, como

foste hoje!Em seguida Maomé pronunciou uma fervorosa prece, na qual implorou a bên-

ção do Altíssimo sobre os trinta e um servos. Um coro de homens encerrou a solenida-

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de. Após, dirigiram-se ao palácio principesco, onde os esperava uma refeição suntuosa, servida em mesas compridas.

O príncipe andava no meio dos seus hóspedes, convidando-os a se servirem na mesa e travando conversa ora com um, ora com outro. Queria fazê-los perder o emba-raço e, ao mesmo tempo, conhecê-los melhor. Quando notou que alguns não tocaram na bebida, nos sucos de frutas, no leite ou no chá, então disse em voz alta a todos: - Estais admirados de que o vosso príncipe não tenha vinho para oferecer-vos e também nenhu-ma outra bebida que estimule os sentidos. Dizei, amigos, a alegria que sentis a respeito de vosso alto cargo, não é mais estimulante do que uma boa bebida embriagante, que turva vossos sentidos e vos leva a atos dos quais mais tarde tereis de arrepender-vos?

Todos concordaram, tomados involuntariamente pelas suas palavras.- Vereis que as novas leis interditam para o futuro o uso de bebidas embria-

gantes, meus amigos; porquanto o homem deve ser senhor dos seus sentidos, se quiser viver na vontade de Deus.

Estavam perplexos, mas não resmungaram. Nesse dia souberam inesperada-mente tanta coisa nova, que quase não mais puderam assimilar nada.

Após o banquete, o príncipe despediu-se dos administradores e convidou-os a comparecerem no dia seguinte novamente no palácio, não para comer, mas sim, para receberem instruções. Deveriam a partir desse dia comparecer diariamente para fi carem bem seguros daquilo que teriam de ensinar aos outros.

Essa doutrinação começou com a tentativa de Maomé de fazê-los formarem uma noção sobre a acepção de “Deus”. O que mais lhe importava era convencê-los de que existe somente um único Deus e que esse Deus criou o mundo todo, do qual é o Senhor. Esse Deus, porém, não deveria ser considerado como um injusto e cruel soberano, mas sim como um Pai bondoso e magnânimo para com aqueles que vivem de acordo com a Sua vontade. Para os demais Ele seria inexoravelmente severo.

Por meio de perguntas certifi cava-se de vez em quando se os seus ouvintes o compreendiam. Em seguida deixou uma vez um e outra vez outro discorrer sobre o aprendido, fortalecendo com isso neles o saber. Por fi m exigiu que narrassem provas da existência de Deus, de Sua bondade e justiça, colhidas de suas próprias experiências. Em cada árabe dormita um narrador. Com surpreendente facilidade desempenharam-se dessa parte de suas tarefas.

Então Maomé, baseando-se na história de Israel, fê-los ver como Deus se revelou ao povo escolhido e como o conduziu. Aludiu, outrossim, aos profetas. Isso despertou grande interesse e foi fácil de ser compreendido. A instrução até o mo-mento já durava mais de duas semanas. Ninguém, no entanto, enfastiara-se.

Após ter narrado a depravação humana, Maomé anunciou a graça Divina que repousava na missão do Filho de Deus. Aqui encontrou as mais afetuosas palavras, que jorravam do seu íntimo com base nas suas próprias experiências vivenciais.

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- Não se deveria supor que ele conheceu Cristo? Perguntaram-se depois os homens.

Todos estavam tão comovidos, que não fi zeram objeções. Judeus, cristãos e pagãos adoraram no íntimo da alma o Filho de Deus, Cristo. Ele uniu-os a todos. Fê-los servos do seu santo Pai.

E Maomé continuou a ensinar. Falou do grande Juízo que viria sobre o mun-do inteiro. O Filho de Deus, como Juiz dos mundos, condenaria os homens ou os conduziria ao reino de seu Pai. Cristo fora a encarnação do Verbo Divino aqui sobre a Terra; o Juiz dos mundos será a Vontade de Deus. Mas apesar de Deus se manifes-tar aqui na Terra através dos Seus Filhos, todos três são somente “um Deus”; uma trindade na unidade.

Sempre de novo tornou a explicá-lo. Absorveram-no, mas o seu raciocínio não podia assimilá-lo. Então Maomé pediu que deixassem o raciocínio de lado e procuras-sem tornar vivo em seu íntimo o mistério Divino.

Após ter resumido a nova doutrina em amplos traços diante deles, passou a adorná-la com pormenores. Tornou evidente que, assim como Deus, o Senhor prepara para servos os homens que Ele convoca a Seu serviço e os manda instruir, da mesma forma tem Ele, em outros reinos, que estão ocultos aos olhos humanos, servos cujo número ascende a legiões.

Chamou-os genericamente de “anjos”, porque julgou que os homens assim o entenderiam melhor. E fez esta distinção entre os anjos: grandes e pequenos, auxiliado-res terrenos e auxiliadores espirituais, masculinos e femininos, e grandes santos, os quais têm permissão de permanecer eternamente em volta do trono de Deus. Anjos seriam os ventos e as chamas, anjos guiariam os animais e os homens; serviriam a Deus em todos os acontecimentos.

Isso todos compreenderam; inspirava suas almas. Amavam tudo o que lem-brava lendas fabulosas, e as narrações sobre os seres angélicos eram mais belas do que todas as lendas.

Com base nisso Maomé tentou insufl ar-lhes um profundo respeito por tudo o que foi criado, sejam homens, animais ou plantas, pedras ou águas. Ensinou-lhes que todos aqueles que ofendem uma criatura de Deus têm de passar pelo mesmo sofrimen-to causado ao outro. Demonstrou-lhes isso por meio de inúmeras exemplifi cações, e acharam tais conexões em experiências pelas quais eles próprios passaram. Então quis falar sobre as consecutivas encarnações dos homens sobre a Terra, porém na noite ante-rior recebera ordem de omitir isso ainda, porquanto os homens não estariam sufi cien-temente preparados para compreendê-lo.

Com o encerramento da doutrinação, limitou-se portanto a participar-lhes que tudo aquilo que lhes disse estaria escrito no livro da divulgação, o Corão. Esse livro deveria tornar-se para eles a coisa mais importante neste mundo. Deveriam rezar, com

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fervorosa devoção, um a um os versetos, durante sua vida toda, para dessa maneira poderem compenetrar-se interiormente do seu sentido.

Esse encerramento foi seguido por uma grande festa na mesquita, que foi cele-brada, com pequenas interrupções, durante dois dias. Então Maomé interpretou para os administradores os mandamentos, que foram aceitos por eles.

A lei suprema era obedecer a Deus e à vontade de Deus. Em segundo lugar co-locou-se a obediência às autoridades terrenas. A fi m de que pudessem viver sempre na vontade de Deus e na Sua sagrada presença, foram determinadas cinco orações por dia, para as quais os “muezins”, os anunciadores, teriam de conclamar do alto dos minaretes, ou, onde não houvesse um, em outro lugar elevado. Ao contrário de suas primitivas determinações, Maomé estabeleceu o texto das curtas orações, em atenção ao fato de que os homens vieram repetidas vezes para se queixarem de que não sabiam o que e como deveriam rezar.

Ao fazerem essas preces, os devotos deveriam colocar-se de pé sobre um tapete, o qual lhes oferecia um livre substitutivo para a mesquita. Eis por que deveriam ter esse pedacinho de tapete sempre consigo. Estariam assim sobre um solo sagrado, onde quer que se encontrassem. Além disso, deveriam dirigir sua fronte para o leste, ao orarem.

- Do leste vem a Luz; vós o vedes pelo sol, aduziu Maomé elucidando. Abri-vos à Luz, a qual vos quer iluminar, e olhai em sua direção.

Antes de cada oração, o devoto deveria lavar o rosto e as mãos, e se possível, também os pés. Da mesma forma, deveriam ser feitas abluções antes das refeições. Essas abluções do corpo deveriam lembrá-lo de que a pureza da alma é condição indispensá-vel para o cumprimento da vontade de Deus. Essa pureza estendia-se também em rela-ção ao respeito que o devoto deveria manifestar perante as mulheres. Criada por Deus, o Senhor, mais delicada, foi a mulher colocada na vida para servir de ornamento a essa vida, como a fl or ao jardim. Com veneração o homem deveria olhar para as mulheres. Seria preceituado, dali em diante, que em toda parte as mulheres e as moças deveriam ocupar aposentos separados e, onde fosse possível, até casas separadas. Nenhum ho-mem deveria entrar em aposentos habitados por mulheres ou moças. Também para as mulheres casadas seria preceito habitar aposentos aos quais teriam acesso unicamente mulheres. Ela poderia, se quisesse, visitar o marido; este, porém, não poderia visitá-la. Ao sair de casa, a mulher deveria usar um véu que cobrisse seu rosto e, preferencialmen-te, toda a sua fi gura. Não deveria apresentar-se em praças públicas. Na mesquita seriam celebradas festas especiais para as mulheres, porquanto não poderiam participar das solenidades comuns.

O casamento deveria ser abençoado pelo encarregado da mesquita. A ne-nhum homem seria lícito ter mais de quatro mulheres.

Para arrancar o povo da ignorância e do distanciamento de Deus, seriam construídas mesquitas em todas as cidades com regular número de habitantes, e a

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cada mesquita seria anexada uma escola pública, que teria de ser freqüentada por todos os rapazes. Deveriam também ser instalados reservatórios de água e grutas para as abluções, como também deveriam ser construídos balneários e hospitais. Para os pobres e inválidos teriam de ser instalados refeitórios gratuitos. Tudo isso seria em benefício de todos, mas custaria muito dinheiro. Por esse motivo Maomé determinou que cada fi el contribuísse com um décimo dos seus ganhos como imposto. Essas somas seriam então aplicadas na construção e manutenção das citadas instituições. Cada administrador de província teria que empregar em cada cidade e em cada povoação um ou mais funcionários, os quais teriam de zelar pelo pagamento pontual desse imposto. Como fora instituído segundo a vontade de Deus, cada fi el que deixasse de pagar, tornar-se-ia, assim, culpado perante Deus.

Esses foram os primeiros mandamentos que o príncipe Maomé, ou, como dali em diante desejou que o chamassem, o profeta de Deus, deu ao povo.

Quando todos os administradores provinciais os compreenderam, pude-ram fazer perguntas e externar sua opinião a respeito. Demonstrou-se, no entan-to, que todos estavam tão bem enquadrados em suas atribuições, que ninguém soube objetar qualquer coisa. Depois de terem fi cado reunidos quase quatro meses, a reunião fi nalmente chegou ao término. Muitos dos homens tinham-se transformado; fi caram mais sérios e maduros. Todos se despediram com o fi rme propósito de serem verdadeiros servos de Deus, com vontade fi rme.

E o país permanecera calmo por todo esse tempo! Parecia um milagre. Ma-omé sabia que os servos invisíveis de Deus, os anjos, cuidavam disso, e agradeceu a Deus de todo o coração.

Tornou a dedicar-se a sua família e soube que a mesma tinha sido aumen-tada com mais uma menina.

Alina acolhera em seu lar a fi lha de Abu Bekr, ao encontrá-la descuidada e defi nhando na sua casa abandonada. Abu Bekr cedo perdeu a esposa e não encon-trou tempo para casar de novo.

Lembrava-se raras vezes de sua única fi lha, sem mãe; também quase nunca chegava ao seu lar. Se alguma vez se achava em Medina, aí preferia fi car em com-panhia dos seus guerreiros no acampamento, a procurar sua casa deserta.

Aischa, sua fi lha, era uma menina singularmente bela, a qual em nenhum traço tinha semelhança com seu pai. Devido a sua infância afl itiva, tinha algo de acanhado e deprimido em sua índole, e que começou a desaparecer sob a infl u-ência das fi lhas de Alina.

A mensagem de Cristo, assim como as três moças lhe sabiam transmitir, ela recebeu com alma sôfrega, e não conhecia coisa melhor do que retransmiti-la aos outros. Com isso procurou de preferência os desamparados. Alegremente

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também simpatizou com Maomé, quando ora uma, ora outra das fi lhas a levava junto, à noite, em suas visitas ao pai.

Este se conformou com o desejo de Alina de não chegar no palácio das mu-lheres; em compensação, estas vinham sempre que ele tinha tempo para elas. Algu-mas vezes lia para elas em voz alta ou falava da nova doutrina, outras vezes tinham de animá-lo com conversas ou com música. Tinham instrumentos de corda e sa-biam tocá-los com destreza. Acompanhavam a música, cantando separadamente ou em coro.

Quando alguma vez, no meio do dia, Maomé tinha o desejo de descansar ou de se distrair, procurava o palácio de Ali, onde seus seis netos sempre o cum-primentavam com gritos de alegria. Sobretudo o jovem Maomé era-lhe afeiçoado e contava as semanas que faltavam para seu avô cumprir a promessa de admiti-lo em seu serviço pessoal.

Ibrahim, o segundo, era um rapaz quieto e retraído, que vivia seu cami-nho solitário. Afeiçoou-se a Maomé, mas também perante este mostrava-se tímido, apesar de todo o amor. Ainda não sabia o que desejava fazer de sua vida no futuro. Estudou porque lhe fora exigido, mas não por íntima vocação. Quando Ali lhe per-guntou se mais tarde não desejaria ser declamador na mesquita, como seu irmão mais velho, então respondeu negativamente.

Certa noite o profeta recebeu ordem de viajar para Meca. Tinha chegado o tempo de ser cumprida sua promessa referente à construção da mesquita. Bem que sentira desejo nesse sentido, contudo quis aguardar primeiro a ordem de Deus. Evidenciou-se que não podia levar nenhum dos seus, por lhes ter confi ado cargos fi rmes, os quais não poderiam abandonar. Como desejasse ter ao menos um neto em sua companhia, perguntou a Ibrahim se ele queria acompanhá-lo. Os olhos do rapaz cintilaram; incrédulo, fi xava-os no interrogador. Seria possível que o avô o escolhesse, justamente ele de quem ninguém precisava? Alegremente respondeu que sim e pôs-se com inusitado zelo a tratar dos preparativos da viagem. Assim que troteava depois sobre o seu cavalo, ao lado de Maomé, este notou que Ibrahim não era mais um menino. Despercebido de todos, tornara-se um moço, o qual, sob o aconchego do invólucro grosseiro, trazia dentro de si uma alma ardente.

Sobre o dorso do cavalo ele era diferente do que parecia noutras ocasiões. Com vivacidade respondeu às perguntas de Maomé; fez, aliás, suas perguntas e ale-grou-se com o aspecto cada vez mais belo da região.

Meca, propriamente, tinha um aspecto desolador. Quem a conhecera antes apenas podia olhar com tristeza para essa cidade despojada de seus muros e de todos os seus prédios altos. Os habitantes perderam todo o ânimo para reconstruir qualquer coisa que não fosse de necessidade vital. Em silêncio deprimente recebe-ram o príncipe, que entrou na cidade com um pequeno séquito e sem guerreiros.

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Não sabiam onde deveriam alojá-lo. Não existia mais casa alguma que lhe pudes-sem oferecer. Ele resolveu o problema, pois mandou armar uma tenda junto ao seu séquito, ocupando-a ele próprio em companhia de Ibrahim.

Na sua primeira caminhada dirigiu-se à Caaba. Foi sozinho, porquanto seu propósito era perceber intuitivamente se esse antiqüíssimo sacrário signifi cava-lhe alguma coisa. Porém nada tocou o seu sentimento intuitivo. Essa pedra preta, que os fi éis costumavam beijar, parecia-lhe pagã. Contudo, sabia que não deveria desvalori-zar a Caaba, se não quisesse tirar tudo dos tão profundamente abatidos de Meca.

E no meio dos ídolos que cobriam as paredes em redor, ajoelhou-se e supli-cou a Deus que mandasse mostrar-lhe também aqui a Sua vontade. Recebeu ordem de que deveria livrar o recinto de todos os ídolos e construir por cima uma nova mesquita, de maneira que o antigo sacrário fi casse no centro como um túmulo. As-sim, não seria tirado do povo, contudo diminuiria em importância e se enquadraria no serviço em honra de Deus.

Satisfeito, Maomé deixou depois disso a Caaba, reuniu os moradores de Meca e anunciou-lhes que agora lhes mandaria construir um santuário, uma mesquita, que encobriria seu antigo sacrário, a Caaba. Nesse momento algo como alegria penetrou nos corações magoados. Alguns dos homens, porém, disseram:

- Não temos mais dinheiro para tais construções.- Quem vos diz que tereis de arranjar dinheiro? Perguntou Maomé bondosamen-

te. Se o vosso príncipe quer mandar construir alguma coisa, então é porque dispõe dos meios para isso.

- Nesse caso é uma mesquita do príncipe e não a nossa, persistiram os homens.- Mas será construída com o vosso dinheiro, portanto pertence a vós, retorquiu o

príncipe, e esclareceu então a conexão.Nesse momento viram que aquele que lhes parecera bárbaro, sanguinário e injus-

to, possuía um coração piedoso. Começaram a adquirir confi ança nele. Também não se desviaram mais do príncipe, quando em algum lugar se defrontavam com ele no cami-nho. A essa altura começou a falar publicamente de Deus e da nova doutrina, a qual deno-minou “Islã”, isto é, a submissão à vontade de Deus. Ao explicar-lhes o nome, salientou que somente aquele que se insere em tudo na vontade do Altíssimo, poderá viver direito. Se sua ambição se dirige em direção contrária à vontade de Deus, então será arrastado pelas engrenagens das leis que regem o Universo e fi cará triturado; seguindo, porém, o rumo de acordo com a vontade de Deus, receberá o apoio dessa força e será conduzido avante.

Isso os homens compreenderam bem; no entanto, julgaram que o profeta que-ria evidenciar-lhes que eles sozinhos não teriam mais nada a fazer nem a decidir. Teriam de se entregar ao seu próprio destino, que ninguém poderia alterar. Com resignação deveriam aceitar aquilo que lhes tinha sido imposto. Maomé teve grande trabalho para dissipar tais pensamentos. Procurou convencê-los de que entre a vontade de Deus,

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assim como esta vibra nas leis eternas que movimentam o cosmos, e o destino existe uma diferença enorme. Comprovou que os homens tecem seu próprio destino. Deus, o Senhor, não interferiria nisso. Da maneira como os homens dirigem o seu barco da existência, assim será o rumo pelo qual deslizará sobre as águas da vida.

Justamente aos homens de Meca pôde comprovar, tomando por base as próprias experiências deles, como todo o pesar de que se tornaram vítimas foi por eles mesmos provocado. Dessa sua própria vivência brotou-lhes então a compreensão. Quem mais aprendeu com tudo isso foi o jovem Ibrahim. Não perdeu nenhuma das palavras do profeta; guardou-as no íntimo, até que lançassem raízes e desabrochassem.

Com isso modifi cou-se toda a sua aparência e todo o seu caráter. Não se podia re-conhecer mais o adolescente no alegre e enérgico moço. Encontrara o objetivo e a profi s-são de sua vida: queria tornar-se anunciador do Santíssimo! Guardião das Verdades Di-vinas! Assim que obteve essa certeza, confi ou-a a Maomé, o qual constatou com grande regozijo que também nessa parte teria um sucessor. Já lhe pesava na alma a preocupação sobre quem um dia seria o continuador de sua obra. Ali seria um bom soberano, porém nunca se tornaria um sacerdote. E Abdallah restringiu-se ao cargo de declamador, o qual era para formar apenas um degrau, e não se esforçou mais para diante.

- Deixar-te-ei aqui, meu fi lho, quando eu mais tarde regressar para Medina, de-clarou ao jovem, que o escutou com alegria. Cada mesquita deverá ter seu xeque. Assume este santuário, anuncia nele a Verdade límpida, e Deus, o Senhor, abençoar-te-á! Assim que eu tiver de deixar a Terra, então poderás escolher se queres fi car aqui ou se queres administrar a mesquita em Medina.

Logo que a construção da mesquita, para a qual Maomé havia encarregado os arquitetos de Medina, estava em pleno andamento, ele preparou-se para voltar. Com a ajuda de dois serviçais de confi ança, conseguiu encontrar debaixo das ruínas do seu pa-lácio o abobadado espaço murado, no qual ocultara os tesouros. Ao silêncio de algumas noites, estes foram removidos. Então conduziu-os consigo, sobre camelos de carga, para Medina, a fi m de confi á-los aos cuidados administrativos de Said.

Na sua volta, que era esperada por todos com alegria, teve uma surpresa: Aischa, a meiga e delicada, anuiu em tornar-se esposa de Said, que já tinha certa idade. Apenas es-peravam sua bênção para realizar o matrimônio. Maomé, que há muito tinha Said como fi lho, regozijou-se com a sua sorte e mandou construir-lhes um confortável palácio ao lado do de Ali.

Na primeira reunião com os patriarcas da cidade, assistida por Maomé, notou este que algum descontentamento afl igia aqueles homens. Indagou o motivo. Então de-clararam que se sentiam insatisfeitos pelo fato de ele ter mandado construir um santuá-rio também para os rebeldes de Meca.

Teve de empenhar grande esforço para tornar-lhes compreensível que Meca já possuía um santuário desde muito tempo. A nova mesquita, da qual eles necessitavam

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urgentemente, porquanto cada cidade grande deveria ter uma, foi construída sobre a Caaba. Tudo tinha fi cado como estava.

A fi m de que não pudessem reclamar de novo, fê-los saberem que dali em diante a mesquita de Medina passaria a ser chamada “a mesquita do profeta”, enquanto que para aquela de Meca seria conservado o nome de mesquita-Caaba ou “mesquita sagrada” .

Com isso todos concordaram.

Dessa vez o profeta não permaneceu por muito tempo em Medina. Sentiu-se impulsionado a procurar as outras principais povoações. Ainda não tinha tido oportunidade para inspecionar de perto alguns dos administradores no exercício de seu cargo; não sabia se executavam suas tarefas segundo a vontade de Deus, ou se procediam em sentido arbitrário. Nessa oportunidade o jovem Maomé cruzou o seu caminho e desejou ter permissão para acompanhá-lo. Os dois irmãos mais velhos já tinham um cargo, e agora seria a vez dele.

O príncipe alegrou-se com seu zelo e perguntou-lhe qual o serviço que dese-jaria para si. Então o jovem fi cou calado e disse fi nalmente que isso se revelaria por si, como aconteceu com Ibrahim. Seu avô, porém, percebeu que intimamente ele já estava fi rmemente decidido por alguma coisa.

A cavalgada era longa. Sem demorar-se, deixaram atrás de si pequenas po-voações, mas em cada cidade onde residia um administrador foi feita uma parada. Nesse tempo o profeta palestrava detalhadamente com o seu representante e inspe-cionava até que ponto progredira a construção da mesquita.

Então verifi cou-se que os vinte e sete homens eram diferentes entre si ao extremo. Alguns deles quase não puderam se conter em levar ao povo a bênção que eles próprios receberam.

Haviam começado imediatamente com a construção da casa de Deus, orga-nizaram uma escola na qual, em sua maior parte, eles mesmos lecionavam e cuida-vam que as abluções e as preces fossem feitas pontualmente.

Outros começaram com a doutrinação e julgaram que seria melhor mostrar primeiramente ao povo do que se tratava, antes que pudessem ser introduzidas inovações. Maomé nada objetou. Cada uma das províncias era diferente, conforme as propensões dos habitantes. Estes, os administradores deveriam conhecê-Ios me-lhor, porquanto se criaram no meio deles. Por conseguinte estaria certo se alguns administradores hesitassem.

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Também deparou com os que procuravam aproveitar a sua investidura e os trajes que então podiam usar, para conseguir o mais possível honrarias terrenas. Não fi zeram nada daquilo que lhes fora recomendado e assustaram-se muito quando o profeta em pessoa veio para certifi car-se. O que deveriam dizer para desculpar-se?

Qualquer palavra era supérfl ua. Maomé desde logo percebeu a situação, e os negligentes foram repreendidos severamente. Nesse momento o príncipe lamentou não ter levado consigo homens preparados, que estivessem aptos para serem coloca-dos no lugar dos ineptos. No momento teve de deixar os faltosos nos seus postos, mas decidiu voltar dentro em breve para verifi car novamente, e então traria substitutos.

Nesse itinerário veio dar novamente em Jerusalém. Como aí despertavam as re-cordações! Narrou-o ao neto, sem no entanto falar de sua encamação passada. Esta de-veria continuar como algo próprio. O jovem escutou com grande interesse tudo quanto o soberano relatou. Acompanhou com vivacidade todas as narrações; comoveu-se tam-bém ao ter que ver discórdias e disputas nos lugares onde Jesus estivera e sofrera.

Maomé, o mais velho, perdeu o sono. Fez uma prece pedindo que Deus lhe mandasse mostrar o que poderia fazer para operar uma mudança nisso.

Tornou-se-lhe nitidamente claro nesse momento que também deveria man-dar construir um santuário, uma mesquita, na qual judeus e cristãos pudessem con-juntamente achar a nova doutrina, o Islã.

O administrador simpatizou com esse pensamento, especialmente quando Maomé lhe disse que ele próprio iria dar os recursos para essa obra. Esse recinto de adoração, o terceiro santuário da Grã-Arábia, deveria ser suntuoso.

Em toda parte do país chamou a atenção de Maomé a presença de homens de estatura menor do que os demais habitantes. Deveriam ser estranhos de outros países. Perguntou e recebeu a resposta de que se tratava de turcos, um povo que não sabia nada sobre sua origem ou, propriamente dito, de sua pátria. Não teriam crença nenhuma e eram muito espertos e gananciosos. Não recuariam diante do que quer que fosse.

Maomé quis saber quem era seu soberano. Ninguém o sabia. Então come-çou a travar conversa com um e outro deles. Não eram comunicativos e, sobretudo, recusavam-se a prestar informações sobre a fi nalidade de sua permanência na Pa-lestina. Quando, porém, lhes indagou sobre o seu chefe, eles informaram-lhe com orgulho que tinham um imperador, o qual residia na magnífi ca cidade de Cons-tantinopla. Aliás, nunca o tinham visto, mas sabiam dele. Era poderoso e todos os povos eram-lhe submissos.

Então Maomé resolveu entrar em contato com esse imperador, do qual nem ao menos sabia o nome, para fazê-Io saber da existência do Islã. Escreveu-lhe que, se os seus súditos quisessem comerciar e viver na Grã-Arábia, nesse caso deveriam aceitar a nova doutrina. Não poderia forçá-Ios a isso, porquanto não era da sua

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alçada. Poderia, no entanto, expulsá-Ios do país, caso não quisessem adotar o Islã. Contudo, o poderoso imperador de Constantinopla sem dúvida teria o poder so-bre os seus súditos para ordenar-Ihes qual a crença que deveriam preferir. Maomé redigiu muitas vezes esse escrito, até que fi nalmente lhe agradou. Não quis parecer muito submisso nem muito arrogante. Após longas ponderações subscreveu-se: Maomé, príncipe da Grã-Arábia e profeta de Deus, o Senhor de todos os mundos.

A quem deveria confi ar essa mensagem? Não encontrou ninguém em con-dições, além de Said, a quem poderia entregar esse importante escrito. Said também daria uma ótima impressão se chegasse à presença do soberano estranho. Mandou al-guns dos homens de sua comitiva buscá-Io com uma tropa de cavaleiros. Nesse meio tempo começou a pregar em Jerusalém e nos arredores. Escutaram-no com interesse; apenas os judeus não quiseram saber de suas palestras, e também não podiam opor-se, porquanto ele era seu soberano. Por isso preferiram fi car afastados das reuniões.

Em lugar disso, os turcos vinham cada vez com mais freqüência. Encontraram prazer naquilo que o soberano estranho falava. Não entendiam, aliás, direito a sua língua, mas havia muitas pessoas que sabiam interpretá-Ia.

Se com isso modifi cavam palavras ou frases inteiras, por não terem compreen-dido o sentido, então ninguém o percebia. Para alguns intérpretes até era um prazer perverter o sentido daquilo que era anunciado, e de rebaixar o que era sagrado. O profeta dirigiu-se ao administrador da comarca de Jerusalém. Ele deveria ter no mí-nimo tanto conhecimento da língua turca que lhe fosse possível entender-se com essa gente. Indignado, o homem repeliu tal exigência. Pois fora investido no cargo para tratar com os árabes! Em vão Maomé procurou convencê-Io de que seria grave se no meio de sua comarca houvesse pessoas praticando comércio, e que não quisessem saber nada de Deus. Opinou, em resposta, que tais homens existiriam em toda parte. Queria dar-se por satisfeito se conseguisse unir judeus e cristãos; com os pagãos não poderia incomodar-se. Nesse tempo surgiu para o príncipe um auxílio inesperado.

O Maomé mais moço, achando engraçados esses turcos, que apesar de sua corpulência eram bastante ágeis, já travara relações com eles, e com raro talento aprendeu logo a falar a língua deles, de tal maneira que pôde servir como auxiliar. Isso foi revelado certo dia, quando o homem que fora contratado com remuneração para repetir imediatamente, em turco, cada frase dos discursos do profeta, desempe-nhou sua tarefa propositalmente com falhas. Então repentinamente o jovem Maomé bradou no meio da palestra e disse por sua vez aquilo que o profeta acabara de dizer.

Nesse instante incitou-se um alarido. Os turcos fi caram excitados ao notarem que o intérprete lhes dizia coisas erradas. Este fi cou furioso porque achou a intromis-são do jovem injustifi cada e receava perder o ganho. O jovem Maomé, porém, fi cou fi rme e transmitiu todas as palavras e conversas que aí foram trocadas com uma habi-lidade, que o príncipe dali em diante se serviu somente dele. Uma vez na intimidade,

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perguntou ao neto se o cargo que aí lhe aparecera, sem que tivesse pensado nisso antes, correspondia aos seus desejos e às suas esperanças.

Com um olhar radiante, o jovem fi tou os olhos do mais velho.- Com certeza é o certo para mim, justamente porque veio tão inesperada-

mente, como se deu com Ibrahim, disse categoricamente. Desejei, aliás, tornar-me chefe do exército, mas disso não quis te falar nada, porque receei que me achasses muito novo. Agora estou muito contente por ter acontecido assim.

Ainda procurarei aprender outras línguas de nossos vizinhos, e então pode-rei servir a Deus com o intelecto que Ele me deu.

Quando então chegou Said com o seu séquito, demonstrou-se que compre-endera corretamente o recado do seu príncipe. Ele e sua comitiva vestiam trajes pomposos e suas cavalgaduras estavam esplendidamente equipadas; era um prazer ver aquele cortejo imponente. Também se provera de fartos presentes para honrar o imperador estranho. Era natural que o jovem Maomé o acompanhasse para servir de intérprete.

Então também o príncipe partiu com o seu grupo, para chegar sem pressa, com muitas mudanças de rumo, de regresso a Medina. Primeiramente permaneceu por um mês em Halef, porque esse rico centro comercial com seu animado movi-mento lhe pareceu apropriado para ele anunciar a Deus.

Em trajes simples insinuou-se no meio dos homens, entabulou conversa com eles, ajudou-os em trabalhos leves e contou de Deus. Nunca se enganava em seu modo de proceder, posto que seguia sempre exatamente as instruções recebi-das de cima. Em certas povoações sua nobreza e seu esplendor principesco tiveram maior importância. Os homens acorriam e escutavam-no somente por ser ele seu soberano. Em outros lugares dava exteriormente mais valor a suas narrações pro-féticas, e às vezes ele parecia apenas como simples contador de lendas. Mas tudo o que fazia brotava do seu íntimo, efetivava-se no desejo ardente de servir a Deus com todas as forças, e por isso foi bem-sucedido.

Em Medina recebeu a notícia de que Abu Bekr vira-se obrigado a empre-ender uma campanha no sul contra judeus revoltosos. Conseguiu nessa ocasião prender um amigo de Abu Talib, chamado Abu Dschalil. Trouxe-o junto no seu regresso a Medina para que Maomé determinasse pessoalmente o que deveria ser feito com ele.

O profeta mandou vir Abu Dschalil à sua presença. Era um homem velho e amargurado, a quem a prisão estafara muito. De início não deu qualquer resposta às perguntas categóricas, mas amáveis, do príncipe.

Então este disse aos serviçais:- Conduzi-o a sua cela. Hoje ele não está disposto a falar. Que me mande

avisar quando tiver disposição para isso. Até lá, não o quero ver.

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Abu Dschalil assustou-se. Esperava um ímpeto de ira e preparou-se intima-mente contra isso. Quando, no entanto, este não veio, esperava que o matassem su-mariamente, devido à sua atitude renitente. Agora deveria voltar ao cárcere, não por causa da vontade do príncipe, mas sim da sua própria. Isso era horrível!

Maomé viu o que se passava em sua alma, mas também sabia que por ora não o deveria ajudar. Caso contrário, o homem se aferraria ainda mais profundamente em sua obstinação. Calou-se e rezou intimamente em prol do outro, seu inimigo.

- Deixai-me aqui, quero responder! Exclamou o prisioneiro repentinamente, como que coagido.

Imediatamente os serviçais o soltaram e retiraram-se para os fundos do aposento.

Abu Bekr fi cou parado ao lado do príncipe e admirou-se. Sempre Maomé fazia tudo diferente do que se poderia esperar, e cada vez era o certo!

Bondosamente, Maomé foi ao encontro do seu inimigo e perguntou:- Abu Dschalil, por que me odeias?- Não te odeio, príncipe! soou a resposta surpreendente. - Pois bem, então

quero perguntar de maneira diferente: por que és meu inimigo?- Porque o prometi ao meu amigo Abu Talib.- Podes dizer-me por que ele exigiu semelhante promessa de ti? Perguntou

Maomé, extremamente surpreso.- Tentarei fazer com que compreendas isso. Abu Talib estava amargurado de-

vido à sua deformidade física. Sentiu-se preterido em toda parte. Teu pai, príncipe, era belo e feliz. Faleceu cedo, e Abu Talib nutria a esperança de tomar o seu lugar, mas tu eras um estorvo para ele. Queria deixar-te com os monges. Conseguiste escapar. Nunca chegou a saber se houve alguma traição nisso ou se Deus te ajudou. Então deve ter procedido com desonestidade na sua pretensão à herança. Porme-nores sobre isso nunca me confi ou, mas sei que a sua consciência não o deixou em sossego. Doaste-lhe, então, mais do que teria sido necessário. Isso magoou-o pro-fundamente, porquanto ele viu nisso um desprezo pelo seu modo de pensar e de agir. E tua vingança, príncipe, foi cruel.

- Minha vingança? Interrompeu-o o ouvinte, que passava de um espanto para outro. Minha vingança? Não sei de nenhuma!

- Ela foi bárbara. O único fi lho tomaste e afastaste do pai. Fizeste-o abando-nar o palácio paterno. O infeliz teve de fi car expatriado e refugiado, porque os teus espias o perseguiam. Não o deixaste mais sossegado nem uma hora. Então procurou meios para prejudicar-te. Queres por isso censurá-lo? Sua grande loquacidade, que não quiseste aproveitar, dirigiu-se contra ti. Por fi m mandaste assassinar o indefeso pelo modo mais cruel que pudeste imaginar. E ainda te admiras que eu, seu amigo, te seja hostil e o deva ser enquanto estiver vivo!

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Exausto, o velho silenciou, mas também o príncipe não pôde dizer nenhu-ma palavra. Chocaram-no profundamente as acusações injustas, nas quais, apesar de tudo, havia uma centelha de verdade.

Abu Bekr dominou-se somente a muito custo. Quis protestar, mas um ges-to do príncipe fê-lo fi car calado. Então deixou o aposento com passos pesados. Em lugar dele entrou Ali, sem ter sido chamado. A Maomé pareceu, como um toque de cima, aquilo que deveria dizer.

- Escuta, Ali! Este homem, Abu Dschalil, acusa-me de ter te tirado de teu pai. Queres contar-lhe como se deu teu ingresso a meu serviço?

Ali prontifi cou-se imediatamente a isso. Então Maomé disse: - Deixo-vos aqui sozinhos, para que este meu inimigo não tenha de rece-

ar que eu te sugestione em tuas declarações.Retirou-se amavelmente.Ali e o amigo de seu pai fi caram a sós, porquanto também os serviçais

saíram, em obediência a um aceno do príncipe, para esperarem fora. Os dois conversaram demoradamente. A índole calma e impassível de Ali tinha algo de convincente, ao que o outro não pôde fechar-se. Uma acusação após outra foi re-futada pelo jovem. Com isso ele mesmo chegou a tornar-se plenamente conscien-te de quanta vergonha sempre sentira de seu pai, devido a sua mentalidade baixa, inclinada para a cobiça incontida, e de como sempre fora o príncipe que o ajudara a dominar esse sentimento. Quando não havia mais nada a ser esclarecido, Ali mandou pedir a presença do soberano. No breve instante que se passou, até que Maomé entrasse de novo no aposento, agitavam-se no peito do ancião os mais variados sentimentos. No fundo era um homem probo. Sentia-se envergonhado. Assim que o príncipe se defrontou com ele, prosternou-se e suplicou perdão por tudo o que fez e falou.

Amavelmente Maomé o levantou.- Foste orientado errado, meu amigo, por isso não pudeste agir diferente.

Esqueçamos o passado e regressa para junto dos teus. Penso que daqui em diante seremos amigos.

E ele mesmo conduziu o homem atordoado ao seu aposento de hóspede, e tomou uma refeição junto com ele, como se fosse pessoa da sua intimidade.

Abu Dschalil permaneceu por alguns dias como hóspede no palácio do príncipe. Após, deixou Medina com acompanhamento, para voltar a sua terra natal e lá contar a respeito do príncipe, cuja bondade parecia sobre-humana.

Abu Bekr não se conformou que Maomé fi zesse novamente valer o perdão

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em lugar do castigo que era bem merecido. O que teria impedido a ele, Abu Bekr, de matar o inimigo na mesma hora?

Em sua indignação manifestou esse pensamento perante Maomé. Este fi tou-o com um olhar indagador e disse-lhe:

- Admiras-te de que seguiste tua voz interior, Abu Bekr? Alegra-te com isso, porquanto a clemência com que Abu Dschalil pôde ser contemplado me vale mais do que um castigo severo! Com a mesma solicitude com que antes instigou contra mim, ele doravante me arranjará amigos. O Abu Dschalil, vivo, ajuda-me; morto, porém, ter-me-ia prejudicado.

Novamente o grão-vizir teve de reconhecer a grande sabedoria do seu supe-rior e submeter-se. Para impedir a si próprio de expressar isso ainda em palavras, começou a falar de um outro assunto, que há tempo o vinha preocupando. Queria ter uma bandeira! Maomé não compreendeu de imediato a fi nalidade de uma ban-deira. Abu Bekr explicou-lhe que no campo de luta era preciso ter tal insígnia, que sobressaísse em meio aos combatentes.

Assim os guerreiros saberiam sempre onde se encontrava o chefe e poderiam acercar-se dele a qualquer momento.

- Os inimigos também a vêem, disse o príncipe no seu desconhecimento.- Não tem importância, meu príncipe, retrucou Abu Bekr, o qual nisso se

julgou superior ao seu senhor.E novamente justifi cou e explanou, até que convenceu Maomé, aliás não da ne-

cessidade da bandeira, mas sim, do imperioso desejo de poder conduzir uma consigo.Bondoso como sempre, quando se tratava de satisfazer um desejo, o príncipe

pegou um pedaço de seda branca, de tecido pesado, que se achava na sua frente, e entregou-o a Abu Bekr.

- Isto corresponderia às tuas fi nalidades em mira? Perguntou, certo de que o vizir se daria de todo por satisfeito.

- Este é muito bonito, meu príncipe, declarou Abu Bekr cauteloso, mas so-mente assim como está não basta.

- Deves mandar pregá-lo num mastro, isso é claro!Com isso Maomé quis dar o assunto por encerrado e voltar-se para outras

coisas. O vizir, porém, continuou insistindo:- Falta-lhe o teu emblema, meu príncipe! Um pedaço de seda branca, ou de

algum outro tecido branco, qualquer um pode levar consigo; não tem signifi cação alguma. Somente a insígnia do príncipe faz a bandeira!

- Que aspecto deve ter tal símbolo? Indagou o profeta. Abu Bekr começou a relatar o que até então havia visto de bandeiras:

- Os judeus conduzem uma bandeira de um tecido amarelado, no qual se en-contra a estrela-de-davi, com seis pontas. Pintaram-na, talvez porque suas mulheres

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não saibam bordar. Nós devemos mandar bordar imprescindivelmente tua insígnia sobre a mesma; assim é mais distinto.

Maomé sorriu levemente. O assunto parecia-lhe tão insignifi cante em vista de tudo aquilo que nesse instante lhe passava pela cabeça; no entanto, assim não era, senão Abu Bekr não teria se empenhado tão insistentemente. Este continuou:

- Os moradores de Meca têm um quadrado, o qual provavelmente deve sig-nifi car a Caaba. Os sírios que eu tive de chamar recentemente na divisa, para refor-ço, traziam consigo uma magnífi ca bandeira, com uma águia. Diziam que era uma bandeira romana. Essa águia, um pássaro com as asas abertas, encimava o mastro e era feita de metal, com excelente acabamento. Vês, portanto, meu príncipe, que se pode usar qualquercoisa, desde que tenha um sentido!

- Pois então preciso refl etir sobre isso, meu amigo, prometeu Maomé. Den-tro de poucos dias receberás a resposta.

À noite, contou a sua esposa o desejo do vizir. Para sua surpresa, Alina fi cou entusiasmada com a idéia de fazer desfraldar uma bandeira com a insígnia de Ma-omé. Idealizou várias propostas, que não agradaram muito ao profeta, devido às características femininas.

- Se a bandeira deve fl utuar no campo de batalha, então não pode trazer como emblema uma rosa ou qualquer outra fl or, declarou. Outra coisa Alina não sabia opinar.

Durante a noite levou essa pergunta diante do luminoso mensageiro de Deus. Este aconselhou-o a não relacionar a bandeira somente com ele, como príncipe, mas sim com Aquele cuja vontade dirige os acontecimentos. “Achas que posso consagrar a bandeira a Deus?” perguntou Maomé. “Ela não é muito terrena para isso?”

“Se ela for a bandeira do profeta, como a queres denominar, então deverá fl utuar somente a serviço do Supremo. E não será terrena demais para poder trazer um símbolo que a caracterize como bandeira do Senhor.”

Mal a ressonância da voz se esvaneceu, surgiu diante dos olhos espirituais de Maomé uma imagem viva, clara e esplêndida, como ele nunca havia visto.

Viu a abóbada celeste como uma gigantesca cúpula. Estrelas resplandeciam e seguiam sua rota orbital; de súbito, pareceu-lhe como se fossem luzes nas mãos de seres femininos indescritivelmente graciosos. Parecia que se dispunham em ordem, como se estivessem de prontidão. Subitamente se inclinaram, porquanto a Rainha de todos os céus descia. Maomé já a havia contemplado uma vez. Também nesse momento ela usava um manto azul-escuro, que se adaptava à cor do céu noturno; longos cabelos com um brilho prateado ondulavam. Como um véu luminoso, fl u-tuavam na frente de seu semblante celestial. Com a mão esquerda segurava o manto à altura do peito, enquanto estendia a direita, onde se encontravam uma rosa ver-melho-escura e um lírio branco como neve. O delicado pé descalço que apareceu

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debaixo do manto comprido pisava no semicírculo da meia-lua, como num barco luminoso. Coros de anjos pareciam ressoar; cores e fragrância fl uíam em volta do agraciado, cujo coração quase parava em admirativa adoração. Muito tempo após ter desaparecido a encantadora imagem viva, Maomé ainda olhava para o céu. Nes-se momento agradeceu a Deus pela graça de poder ter tido essa visão. Tinha isso alguma signifi cação para ele?

Súbito conheceu o símbolo que deveria distinguir a bandeira do profeta de Deus de todas as outras: o apoio do pé da Rainha do céu, o semicírculo da meia-lua, assim seria. Nesse símbolo, a bandeira deveria falar a todos os que a vissem:

“Escutai, ó homens, este é o sinal de que servis a Deus! Desfraldai a bandeira somente se as vossas obras puderem subsistir diante de Deus. Também é o sinal de que no Islã quereis recolocar a mulher no lugar que lhe é reservado pelos desígnios de Deus. Mantende-a na pureza e tratai-a com honradez. O símbolo da sublime Rainha do céu orna por isso a vossa bandeira!”

Assim queria falar aos guerreiros, quando lhes entregasse o pendão. Com grande alegria comunicou no dia seguinte a sua esposa o que pudera contemplar, e ela ofereceu-se para bordar o sinal da Rainha do céu na seda branca, em colabora-ção com as fi lhas. Todos os outros guardaram silêncio sobre isso.

Muito antes de terem chegado ao término os trabalhos do bordado, os quais levaram muito tempo, porque as mulheres empregavam para isso fi os de ouro puro, Maomé saiu a cavalo para procurar os diversos administradores. De alguns haviam chegado pedidos para que os aconselhasse ou lhes explicasse algo, e em outras pro-víncias os funcionários pediam que viesse examinar os trabalhos do administrador, os quais evidentemente não estavam sendo executados no sentido dos mandamentos.

- Levas-me junto desta vez, avô? Perguntou ansioso o quarto neto, Murzah.Com muito gosto Maomé teria junto dele um dos seus, porém Murzah efe-

tivamente ainda não havia ultrapassado bem a infância e haveria de acarretar-lhe mais trabalho do que ajuda, refl etiu o príncipe.

Murzah, contudo, era de outra opinião. Nos outros dois demonstrou-se so-mente em caminho a sua utilidade. Por que com ele haveria de ser diferente? Im-plorou ao pai que falasse por ele, e Ali, que conhecia seu fi lho, resolveu interceder a seu favor.

Ora, quase nunca aconteceu de Ali ter pedido alguma coisa, de maneira que Maomé atendeu imediatamente ao pedido, mesmo julgando que aquilo não era muito inteligente.

A alegria do jovem foi quase irreprimível. O dia todo não falou de outra coi-

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sa a não ser de que iria acompanhar o príncipe. Finalmente chegou o dia da partida; um imponente grupo cavalgou para fora do portal de Medina.

Também Murzah andava bem a cavalo e trotava alegre ao lado de Maomé. Em viagem este perguntou a Murzah, assim como também perguntara aos outros netos, o que ele escolhera como objetivo na vida.

- Quero servir-te, avô-príncipe, disse o esperto jovem, radiantemente.- Já tens uma idéia de qual a capacidade que utilizarás para isso? Gracejou o

profeta. - Não. Nem sei se possuo alguma capacidade. Mas sabes, se não posso servir-

te com a vida, então quero morrer por ti.Isso soou de maneira singular vindo da boca desse neto particularmente

otimista; no entanto, com tudo o que surgia ao redor, esqueceram em breve a con-versa séria.

Dessa vez a cavalgada se dirigiu para objetivos bem defi nidos; em nenhuma parte pararam por mais tempo do que o absolutamente necessário.

Primeiramente chegaram à cidade da qual vieram queixas sobre a vida do administrador. Sem ser anunciado, o príncipe apresentou-se e encontrou o servo infi el tão embriagado no meio das mulheres e na casa destas, que foi impossível exigir uma prestação de contas. Evidenciou-se que as queixas dos outros funcio-nários não foram exageradas. Os fundos provenientes dos impostos que tinham sido cobrados regularmente não foram aplicados na construção da mesquita, nem teve qualquer outro proveito comum. O administrador considerava-os como bens a ele pertencentes, os quais poderia esbanjar com suas inúmeras mulheres. Maomé mandou levá-lo, por intermédio de seus servos, do palácio ao estábulo, para que dormisse em cima do feno. Nesse ínterim, examinou com os demais funcionários tudo o que se encontrava na chamada sala da administração e investiu o mais velho desses servos fi éis no cargo de administrador.

- Não proibi rigorosamente todas as bebidas embriagantes? Perguntou o príncipe repreensivamente.

- Isso fi zeste, mas verbalmente, declararam os funcionários. Nos manda-mentos escritos não se encontra em parte alguma um item que se refi ra a isso. Por essa razão o administrador julgou ter o direito de poder desfrutar do vinho e de outras bebidas embriagantes, em excesso, até que um dia reformasses a lei.

- Está escrito na lei, porém, expressamente, que nenhum homem tenha mais de quatro mulheres, repreendeu o príncipe. Aqui, no entanto, estavam reunidas no mínimo doze.

- O administrador também tem somente quatro mulheres; as outras são amigas delas, soou a informação entristecedora.

- Assim, portanto, cada mandamento pode ser contornado, se o homem o

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quiser, queixou-se Maomé, afl ito. Julguei ter abrangido com estes mandamentos efetivamente tudo o que pode ser prejudicial ao homem! Como me enganei!

Dirigiu-se, então, ao novo administrador:- Cuida que a casa das mulheres fi que vazia. As amigas devem voltar para

junto de seus pais e as quatro mulheres devem emigrar com o seu marido, logo que este esteja em condições para isso.

Maomé falou pessoalmente com os moradores da província e prometeu-lhes para breve a construção da mesquita e de uma escola. Não acusou publicamen-te o administrador, todavia se propôs a cobrir o desfalque do dinheiro com suas próprias fi nanças.

Dois dias mais tarde o demitido saiu a cavalo, às escondidas, com suas qua-tro mulheres e com tudo o que pôde juntar ainda. Para o príncipe assim foi mais conveniente do que ter ainda que falar com esse homem.

Após ter se convencido de que sob a direção do novo administrador tudo se normalizaria, partiu dali, para verifi car a ordem na próxima grande cidade. Aqui o chamou o insistente pedido do administrador, que quis instruções para as difi cul-dades especiais resultantes da fi xação, na comarca, de pessoas que tinham outras crenças e que se recusavam a pagar impostos.

Depois de cientifi car-se do que se passava, isto é, de que um rico proprietário falecera sem deixar herdeiros legítimos, e de que em vista disso sua mulher predileta mandara vir seus aparentados, decidiu:

- Quem quiser fi xar residência na Grã-Arábia deve adotar a crença do Islã e tomar-se assim um súdito do príncipe de todos os árabes. Não o querendo, então deve vender a propriedade e com o rendimento deixar o reino. Na Grã-Arábia há somente fi éis do Islã.

Procurou pessoalmente os rebeldes e tentou fazê-los compreender a sua de-cisão. Eles, no entanto, eram hostis; porquanto quiseram fazer a tentativa de intro-duzir uma cunha de insubordinação no país unido. Por isso defenderam-se com todas as forças e declararam que nem lhes vinha à mente obedecer.

Maomé marcou um prazo dentro do qual essa situação maléfi ca deveria ser resolvida. Quando o prazo passou, mandou avaliar a terra, pagou aos homens o preço de compra e mandou transportá-los, juntamente com os seus, por intermé-dio dos guerreiros, para além da fronteira.

Todos sentiram-se aliviados, porquanto esses estranhos haviam também provocado o desagrado de todos, em face de seus costumes desregrados.

Alguns dias mais tarde, Maomé estava em pé na frente da tenda que lhe ser-via de morada e olhava o céu. Queria partir na manhã seguinte com o seu séquito. Auscultava os sinais meteorológicos.

Repentinamente ressoou a voz de Murzah, estridente e em apuros:

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- Avô, acautela-te!Rapidamente o príncipe se virou e viu como uma faca reluzente, atirada

aparentemente contra ele, transpassava o neto que saltara à frente.O grito de Murzah atraiu os serviçais, os quais subjugaram o assassino e

conduziram-no dali. Maomé, porém, abaixou-se sobre o corpo estendido do meni-no para examinar o ferimento. Viu então que era mortal.

Com pesar mirava o neto, o qual era arrebatado sem que pudesse primeiro desen-volver-se completamente. Murzah, no entanto, lançou um olhar quase travesso e disse:

- Vê, agora realmente posso morrer por ti. Agradeço a Deus por isso!Sua alma luminosa e límpida elevava-se. Maomé julgou ver como ela se despren-

dia rápida e facilmente do corpo ferido, fl utuando para cima.Grande foi a lamentação pelo desaparecimento do jovem, ao qual todos tinham

se afeiçoado. Foi sepultado num sepulcro novo, talhado na rocha. Foi o primeiro enterro que o príncipe teve de fazer pelo rito da nova doutrina. Somente depois de terminado o cerimonial, o soberano desejou ver o assassino. O chefe dos guerreiros comunicou-lhe ter sido tão grande a indignação de todos, que não fora possível protegê-lo contra a fúria do povo. Estava morto.

Maomé supôs, como hipótese evidente, que tinha sido um dos homens depor-tados para além da fronteira; teve, no entanto, de tomar conhecimento de que fora o administrador destituído do cargo. Isso foi-lhe duplamente doloroso. A um descrente ele poderia ter relevado com mais facilidade o covarde assassínio.

A cidade onde aconteceu a calamidade pediu, como prova de que o príncipe não guardaria mágoa contra ela, poder dali em diante denominar-se “Murzah”. Isso Maomé permitiu de bom grado.

Durante a noite cismou muitas vezes com o motivo por que Deus teria permitido esse ato de covardia. Seu auxiliador, o luminoso mensageiro de Deus, silenciou em face de todas as perguntas desse teor.

Assim, mais uma vez se encontrava deitado em sua cama sem poder conci-liar o sono. Então ouviu duas vozes de homens conversando, nas quais reconheceu imediatamente a do chefe dos guerreiros e a do seu servo de confi ança. Falavam daquilo que também para ele era o motivo de permanecer acordado.

- Por que Deus permitiu tal coisa? Perguntou o comandante dos guerreiros, entristecido. A vida toda ainda se estendia diante do jovem, e em verdade essa teria se tornado nobre, porquanto a alma era pura.

- Sabes o que o teria aguardado nesta vida? Perguntou Mansor, o criado, em resposta. Talvez tivesse que suportar algo tão pesado que a morte prematura lhe foi uma graça. Quem pode predizer o que o futuro trará? Somente Deus o conhece.

- Não compreendo como Deus permitiu o sacrifício do menino, insistiu o guerreiro.

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- Achas que teria sido preferível que o nosso príncipe tivesse sido assassi-nado? Quis saber o criado. Já que um tinha que ser vítima do assassino, então foi melhor que o jovem, o qual ainda não podia ser útil ao povo, tenha ido, em lugar do príncipe, de quem ainda não podemos prescindir.

- Deus, porém, não precisava ter aceito o sacrifício de nenhum deles, mas podia ter impedido o covarde assassino de outro modo, objetou novamente o guerreiro.

- Esqueceste o que Maomé nos contou sobre o livre-arbítrio do homem? Se um homem se decidiu a uma ação, então Deus intervém apenas em casos muito especiais. Ele deixa o homem executar aquilo que está no seu querer. Mas este terá de arcar com aquilo que atraiu sobre si. Deus, aliás, impediu que nosso príncipe, a quem foi dirigido o atentado, fosse arrebatado. Sejamos gratos a Deus por isso e não façamos queixas irreverentes contra Ele.

As vozes afastaram-se. Maomé, porém, escutara o sufi ciente. Foi dominado concludentemente pela suas próprias palavras. Mansor ajudou-o, sem ter ciência disso. Ele, no entanto, implorou a Deus perdão por sua falta de convicção.

Daquele dia em diante simpatizou mais com Mansor do que com os outros. Falou muitas vezes com ele e alegrou-se com a maneira franca com que emitia suas palavras.

Após ter visitado diversas outras localidades, chegou a Jerusalém. Soube que à noite do dia anterior Said e o jovem Maomé tinham regressado com o seu séquito. Isso foi uma alegria inesperada. Pouco depois o neto entrava na tenda para cumprimentá-lo.

No dia seguinte Said, auxiliado pelo jovem Maomé, relatava o resultado da viagem.

Chegaram sem contratempo até o magnífi co mar, em cuja orla se encontra-va Constantinopla, a capital de um poderoso reino.

Quando já julgavam que teriam de utilizar algumas barcas para atravessar o mar, souberam que o imperador se encontrava justamente no chamado lado asiá-tico da cidade.

Pediram audiência e foram recebidos. O que, porém, Said poderia ter feito sem o jovem Maomé, ninguém poderia dizer. Nenhuma pessoa naquela pomposa corte sabia sequer uma palavra em árabe. Além de turco, falava-se uma outra língua que soava bem, mas o jovem Maomé não pôde entender.

- Contudo, príncipe, arranjei-me muito bem com o meu turco, jubilou o jovem. O imperador, um homem de bela aparência, aliás, não o sabia falar, mas pelo menos entendeu-me, de sorte que pôde analisar se aquilo que seu auxiliar lhe transmitia estava certo.

Disse-nos muitas amabilidades e tivemos de voltar muitas vezes para contar da nossa crença. Depois disso determinou que todos os turcos e outros súditos do seu reino, residentes na Grã-Arábia, teriam de aceitar o Islã como crença sua.

- Trouxemos escritos em várias línguas para todas aquelas comarcas, nas

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quais se encontram turcos e outros súditos de Constantinopla, acrescentou Said. Também para ti, príncipe, temos um escrito através do qual o grande imperador branco manifesta seu amor fraternal e não deseja que teu reino seja de modo algum prejudicado pelos seus súditos.

Muita coisa os dois ainda tiveram para informar e relatar. Maravilhosa era a cida-de, de maior magnifi cência ainda o mar, o qual era cercado por margens verdejantes.

Num dos dias seguintes o príncipe contou do voluntário sacrifício de Mur-zah. Receou que Maomé, o qual era ligado de um modo especial com esse irmão, lamentasse muito a perda. Em lugar disso, o neto rompeu em júbilo:

- Que ele tenha podido fazer isso por ti! Como não o teria feito contente e alegre! Vê, avô, se todos nós cumprirmos nossos deveres e preenchermos o lugar para o qual nos chamaste, mesmo assim ninguém conseguiria fazer tanto pelo nos-so país quanto Murzah. Ele pôde preservar-te!

Esse modo de pensar foi um alívio para o príncipe, o qual estava apreensivo pela maneira como Ali e Maomé receberiam a notícia do falecimento de Murzah.

Enquanto Said se preparava para percorrer a cavalo as províncias onde vi-viam e comerciavam pessoas de nacionalidade turca, Maomé quis regressar com o neto para Medina. Sentia satisfação em ter o esperto jovem com ele, o qual sempre de novo sabia alguma coisa de belo e agradável para contar.

Entretanto, Said insistiu em que o jovem Maomé o acompanhasse. Senão, de que maneira ele se arranjaria com as línguas estranhas? Todos compreenderam isso, e o jovem auxiliador foi junto com Said.

De alguma maneira a notícia sobre a morte de Murzah já havia chegado a Medina antes do regresso do príncipe. Fatime e Ali lamentaram sinceramente a perda de seu fi lho, entretanto logo se conformaram por causa do avô, de sorte que também quanto a eles sua preocupação foi em vão.

A bandeira estava pronta e fi cou sobremaneira esplêndida.Mandou vir todos os guerreiros que estavam próximos, a fi m de reuni-los na

mesquita; abençoou a bandeira e entregou-a então a Abu Bekr, mais ou menos com as mesmas palavras que ouvira naquela noite.

A bandeira, quando se achava encostada ao lado do nicho do profeta, tinha um aspecto tão magnífi co, que nasceu o grande desejo de que na mesquita sempre houvesse uma.

Maomé consultou o mensageiro de Deus a esse respeito e recebeu a resposta de que poderia presentear cada mesquita com uma tal bandeira, para as festas, mas as bandeiras hasteadas e desfraldadas no santuário deveriam ser verdes.

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Alina escolheu para isso seda da cor de grama nova e tratou de bordá-la juntamente com as fi lhas. Os três santuários receberam uma meia-lua de ouro; as demais mesquitas, porém, tiveram de contentar-se com uma de prata.

Os três santuários!Durante as viagens de Maomé, a construção da sagrada mesquita de Jeru-

salém progredira num ritmo vigoroso, de sorte que poucos meses depois de seu regresso a Medina, teve de cavalgar novamente para Jerusalém, a fi m de inaugurar a mesquita com sua bênção.

Recebeu o nome de “Mesquita da Penha”. Antes mesmo de ser inaugurada, teceram-se muitas lendas em torno dela.

O príncipe deu ordem para que também Said e Maomé, o moço, compa-recessem a Jerusalém por ocasião dessa cerimônia. Por ordem do imperador, os turcos converteram-se ao Islã, o qual lhes parecia sobremaneira belo.

Na verdade quiseram modifi car nele muitas coisas, conforme sua própria índole, porém o sempre tão gentil príncipe permanecia fi rme e inexorável em as-suntos de crença.

Quando terminaram as festividades em Jerusalém, o chefe dos turcos ali do-miciliados pediu uma audiência com o príncipe. Queria justifi car os seus desejos.

- Vê, príncipe, disse num tom persuasivo, nós precisamos trabalhar pesada-mente durante toda a nossa vida para chegarmos a possuir alguma coisa. Propicia-nos o nosso descanso após a morte. Para ti será indiferente se acolá nós trabalharmos ou folgarmos. Permite que digamos aos homens cansados que poderão descansar e não trabalhar no Além. Aos árabes podes dizê-lo de forma diferente.

O auxiliar Maomé, que estava presente para o caso de o turco não ter conhe-cimento sufi ciente da língua árabe, teve que se esforçar para fi car sério. Para Maomé, o mais velho, no entanto, esse conceito do turco não parecia ridicularizável. Estava estupefato ante a estreiteza da concepção.

- Meu amigo, disse vagarosamente, não deves pensar que em assuntos de cren-ça se possa dizer o que bem nos apraz. São verdades que transmitimos e nas quais não se deve torcer nada. Não posso prometer aos turcos uma bem-aventurança diferente do que aos árabes.

- Nisso divergem nossas opiniões, teimava o outro. Eu suponho que lá em cima deve haver muitos céus, porquanto se aqui na Terra tenho um inimigo, não seria possível nós dois chegarmos ao mesmo céu. O que resultaria disso?

- Ambos estariam impossibilitados de entrar, disse Maomé apressadamente. Quem guarda rancor na alma, não pode achar acolhida no reino da paz.

Julgou que com essas palavras causaria uma forte impressão. O turco, porém, ouviu apenas a expressão: “reino da paz” e aplicou-a então novamente a seu modo.

- Agora tu mesmo dizes que acolá existe paz. Como poderia haver paz onde

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se tem de trabalhar como um animal de carga! Exclamou contente. Permite-me dizer a nossa gente que depois da morte poderão descansar do trabalho! Com muito mais gosto eles então aceitarão tua doutrina, príncipe.

Em vão o profeta procurou convencer o outro. Tudo quanto pôde conseguir foi que o turco prometesse não falar nada de descanso eterno, como também nada de labuta eterna.

Assim que ele saiu, então o jovem Maomé começou a rir incontidamente e arrancou o mais velho da inoportuna cisma na qual estava prestes a incorrer. Nesse momento ambos fi caram sérios, quando ele disse:

- Como há de ser após a minha morte, se cada um quer sofi smar, torcer a crença e interpretar os ensinamentos conforme for do seu agrado?

- Nós então ainda estaremos aqui, consolou o neto. Devemos zelar para que tudo fi que assim como te foi revelado.

- Cristo Jesus também não teve outra sorte, meditou o profeta. Mal deixou a Terra, e os homens já deturpavam e modifi cavam suas sagradas palavras. Mereço eu melhor sorte do que ele?

- Seria horrível se isso acontecesse de novo! Exclamou o jovem fervorosa-mente. Não pode ser que a Verdade vinda de cima seja cada vez deturpada e que então sempre de novo deva vir um outro profeta, para anunciá-la novamente! Desta vez deve fi car assim como tu a trouxeste para nós!

Os dias reservados a Jerusalém chegaram ao término. De Medina veio um recado de que ali estava sendo esperada ansiosamente a volta do príncipe. Então ele partiu com seus acompanhantes, aos quais também se juntaram Said e o jovem Maomé, para regressarem pelo caminho mais curto.

Essa estrada, pela qual nunca viajara, tinha um bom trecho através do deser-to e era transitável somente em certas épocas do ano. Os moradores da redondeza afi rmavam que justamente agora não haveria perigo algum.

Assim o grupo tomou, contente, esse novo caminho. Após terem cavalgado alguns dias, o chão, que fi cava cada vez mais arenoso, indicava que estavam se apro-ximando do deserto. Mas também o ar estava calmo, de sorte que não tiveram de sofrer debaixo da poeira. A região fi cava cada vez mais erma e inóspita. Finalmente se encontravam entre colinas, montes de areia e em planícies onde a areia estava depositada em forma ondulada. Aprovisionaram-se com reserva sufi ciente de água para não terem de se preocupar. Além disso, os cameleiros asseguraram que conhe-ciam bem o caminho.

Numa noite achavam-se todos deitados nos acampamentos improvisados, quan-do de repente se fez notar uma grande agitação entre os animais. Também os homens começaram a sentir certa inquietação, se bem que não pudessem dar uma explicação.

Maomé, que estava mais impressionado do que todos os outros, saiu da ten-

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da para olhar o céu. Não parecia que um vermelhão singular coloria o horizonte? Acordou o neto e chamou a atenção dele para o fenômeno. Também este viu a coloração que parecia inexplicável. Pouco a pouco os cameleiros, os guerreiros e os acompanhantes saíram, um atrás do outro, ao ar livre. Alguns declaravam que não viam nada de extraordinário, outros confi rmavam que o céu estava descomunal-mente .avermelhado. Esse rubor, no entanto, era diferente daquele avistado habitu-almente. Ninguém era capaz de descrevê-lo acertadamente. Enquanto ainda olha-vam e admiravam, pareceu a Maomé que na parte central o vermelho desaparecia, para dar lugar a um fulgor dourado. Ele clamou:

- Vede lá, vede!Todos fi taram a direção que seu dedo indicava, sem contudo reconhecerem

algo de novo. Ele, porém, viu que do brilho se formou uma estrela maravilhosa. Assemelhava-se à estrela-de-davi; tinha seis pontas, mas inúmeros raios em todas as direções. A Maomé a luz dessa estrela parecia clara e sobrenatural. Se pelo menos um dos outros a pudesse ver!

Mal pensou nisso, então a voz do neto exclamou:- Vede, ó homens, o magnífi co astro. A estrela-de-davi paira no céu e nos

anuncia Cristo, seu Senhor.Ao mesmo tempo Maomé escutou uma outra voz, que falava somente a ele,

mas, alto e perceptível:“Tu, servo do Altíssimo, desta estrela que hoje podes contemplar, deves falar,

antes de deixares a Terra! É a estrela dos Filhos do Altíssimo. Quando aparece, então a graça de Deus se estende sobre a Terra”.

E pareceu-lhe como se a estrela se volvesse e retomasse ao interior do céu, arrastando atrás de si os seus raios, como uma longa cauda.

Quando todo aquele resplendor celeste se apagou, Maomé acordou do seu aprofundamento íntimo.

Então ouviu em volta de si as exclamações de admiração. Cerca da metade dos homens declararam ter visto a estrela. Começaram, no entanto, a tecer comen-tários em torno da signifi cação que teria a aparição.

Alguns diziam que Deus quis com isso manifestar Sua misericórdia e de-monstrar que Maomé era realmente Seu profeta. Outros ultrapassaram isso, e afi r-mavam que se tratava de uma homenagem dos céus a Maomé, o elevado. Outros, por seu turno, quiseram ver na aparição da estrela um presságio de maus tempos: guerra, fome e epidemias de toda sorte. Também eles se excederam na imaginação de tudo àquilo que certamente haveria de acontecer.

Inicialmente Maomé os deixou falar. Nele ainda vibrava a voz de cima que lhe trouxe uma mensagem.

Escutou, aliás, as barulhentas vozes em disputa, mas não prestou atenção

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àquilo que queriam signifi car. Finalmente lhe veio à mente o sentido das mesmas e ordenou silêncio. Explicou que todos aqueles que foram agraciados com a aparição compreenderam erroneamente. Fê-los ver que se mostrariam indignos se quises-sem introduzir novamente apenas seus próprios pensamentos naquilo que Deus os deixou contemplar.

Quando se restabeleceu entre eles a calma, exterior e interiormente, então tentou anunciar-lhes que a estrela era um mensageiro de Deus à humanidade, um mensageiro da graça e da misericórdia.

Deus enviava a estrela, anunciando com isso que uma parte Dele próprio baixava à Terra num dos Seus Filhos.

Hoje, deixava que a vissem apenas em imagem, para que fosse possibilitado a ele, Maomé, anunciá-la conscientemente. No entanto, em tempo vindouro a estrela apareceria de novo, efetiva e veridicamente no céu, assim como pôde ser vista sobre Belém por ocasião do nascimento do Filho de Deus, Cristo Jesus. Outrora atraiu reis e poderosos de longínquas terras, para que pudessem participar da graça.

Repleto de elevada força, o profeta de Deus falava, e parecia-lhe como se um outro falasse através dele. O que pôde anunciar agora era novo para ele.

- Ela virá, a estrela, o mensageiro de Deus! Então anunciará a todo o mundo que de novo um Filho de Deus se acha sobre a Terra. Não será o alegre portador da Verdade, não será Jesus que virá outra vez, mas sim um portador da Verdade, cheio de gravidade, a justa Vontade de Deus, do Eterno, que aparecerá para julgar o mun-do. Cada um será julgado pelas suas obras. Aqueles que até então tiverem vivido conforme os mandamentos de Deus poderão ingressar no Seu reino, para servi-Lo por toda a eternidade. Ser-lhes-á reservada a mais elevada bem-aventurança. Aos outros, porém, a boca do Senhor dirá: “Perecei, vós, malfeitores! Não vos conheço, e também meu Pai não vos conhece!” Então passarão por angústias mortais, para nunca mais ressuscitarem.

Os homens que se reuniram ao redor de Maomé escutavam impressionados. Ele, mais sensibilizado que todos, silenciou. De súbito, porém, a voz de um dos came-leiros que se encontrava mais distante, de pé, chamou:

- Ainda uma coisa totalmente terrena anunciou a aparição luminosa que aca-bamos de ver. Um tufão de areia está se aproximando. Não estais sentindo o cheiro da poeira que o ar traz consigo? Sentis ansiedade em vossos corações? Escutais o rugido das feras? Devemos tomar precauções, para que não pereçamos todos.

Rapidamente se apagou a impressão profunda de tudo aquilo que Maomé lhes tinha anunciado.

- Parece que as trevas quiseram introduzir suas forças no campo de luta, para ar-rastar, para baixo, nossas almas da elevação íntima, disse o profeta, entristecido; pôs-se, contudo, também a trabalhar preventivamente, porquanto todas as mãos eram neces-

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sárias. Cuidadosamente os cameleiros coordenavam tudo. Os camelos foram desvenci-lhados de suas selas e deitados juntos, do melhor modo possível. Os lugares entre eles foram indicados aos homens, que os deveriam ocupar assim que o perigo se aproximas-se. Mercadorias e equipamentos foram encobertos da melhor maneira possível. Antes de tudo, porém, os guias procuraram marcar o caminho pelo qual deveriam seguir, enquanto ainda o enxergavam. Não deveria acontecer que tivessem que tomar com o príncipe um rumo errado. Mais rápido do que o mais experimentado viajante do deser-to pudesse imaginar, rompeu a tempestade com uma fúria que deveria mostrar a cada um quão ínfi mos eram os homens. Maomé orou para que tudo passasse misericordio-samente. Não podia imaginar que estaria na vontade de Deus um perecimento debaixo dos elementos desencadeados. Sob o efeito da prece entrou clareza em sua alma: -Quem ocasionava a tempestade que revolvia as massas de areia? Não era o guia dos ventos e dos anjos do ar, como ele, Maomé, os denominara? Se eram anjos, então estavam su-bordinados a Deus, o Senhor, e não eram servos das trevas. Já que eram servos de Deus, também executavam Sua vontade. Conseqüentemente, nada poderia acontecer que não fosse ordenado por Deus. Sentiu-se inteiramente livre e aliviado; toda a ansiedade o abandonou. Quis dirigir palavras animadoras ao seu neto, que estava deitado ao seu lado; chamou-o e viu um rosto sorridente.

- Avô, é esplêndido poder passar por semelhante experiência! Exclamou o jovem. E contudo ter a certeza de que nada pode acontecer, pois estamos protegi-dos! Aprendeste também com isso, tanto quanto eu?

- Aprendi muito, meu fi lho, respondeu Maomé com seriedade.Ao término de algumas horas, que pareciam infi nitamente longas para to-

dos, desapareceu o tufão, assim como surgira. Verifi cou-se que ninguém fora pre-judicado, e que as rajadas dispersadoras mais fortes passaram além do caminho, de sorte que a caravana pôde continuar a viagem sem impedimento. Esse poderoso fenômeno, no entanto, apagou em quase todos eles a lembrança da visão que o antecedeu. Isso foi intencional: na sua incompreensão, os homens teriam espalhado entre o povo o seu modo errôneo de interpretar.

Agora, porém, quando Maomé falava da vindoura estrela, eles sempre se lembravam de que também puderam contemplar sua imagem, e então confi rma-vam as palavras do profeta, sem acrescentar algo próprio de si.

Assim que chegaram a Medina, encontraram mensageiros e emissários de vá-rias tribos vizinhas, que desejavam prestar sua homenagem ao grande príncipe, como também queriam pedir sua ajuda contra os seus inimigos. Temendo esses inimigos, preferiram subjugar-se espontaneamente ao soberano, do qual souberam muitas coi-

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sas boas e ao mesmo tempo terríveis. Com punho férreo obrigaria os homens a su-jeitarem-se sob sua soberania. Contanto que não procurassem insurgir-se contra ele, então seria bondoso e indulgente. Assim, acharam mais conveniente não provocar contra si o lado sanguinário desse príncipe.

Maomé, o mais moço, teve de atuar dia e noite como intérprete. Resolveu pe-dir ao príncipe, logo que chegassem tempos tranqüilos, para reunir jovens em volta de si, a fi m de instruí-los no uso das línguas estrangeiras. Era indispensável que muitos árabes se capacitassem a falar todas essas línguas.

O príncipe veio ao encontro dessas delegações com benevolência, apesar de ter descoberto que em alguns era apenas o medo que os induzira a procurá-lo. Tirar-lhes esse medo e em compensação facultar-lhes a oportunidade de chegarem a conhecer a fundo as maravilhas da crença em Deus, isso era para ele uma necessidade urgente.

Sentiram-lhe a bondade, que era genuína, e a mesma persuadiu suas almas, fazendo com que fossem embora bem diferentes do que quando vieram. Pelos países em volta, no entanto, espalhou-se a notícia sobre o príncipe dos árabes, o qual creria num Deus poderoso, sendo-lhe por isso facultado exercer uma infl uência fascinante sobre os corações humanos. Já que sabia dar efeitos a tal fascínio, então provavelmen-te entenderia mais coisas. De repente teve início uma romaria para Medina: trouxe-ram enfermos, aleijados, possessos e cegos, como no tempo de Jesus.

“Senhor, posso ajudar?” perguntou Maomé. Recebeu, no entanto, sério aviso de que isso não fazia parte de sua missão.

Ele era um profeta, um anunciador do Altíssimo, e não um médico. Existiam tantos médicos hábeis dentro e fora de Medina, e esses certamente poderiam curar muitas das enfermidades. Não precisaria deixar ninguém ir embora decepcionado ou enraivecido.

E Deus evidentemente estendeu Sua bênção sobre as mãos dos médicos que a Ele imploraram nesse sentido. A maioria dos suplicantes foi curada ou pôde ao menos obter melhoras. A par disso Maomé mandava sempre instruí-los na nova dou-trina, e as almas predispostas de um modo especial pelo sofrimento absorveram tanto quanto lhes foi possível.

Abu Bekr ia com seus guerreiros ora para cá, ora para lá. Sempre havia qual-quer coisa a apaziguar, insurreições a abafar ou alguma violação de fronteira a ser punida. Onde quer que ele desdobrasse a bandeira do profeta, aí estava a vitória. Seus guerreiros lutavam com bravura nunca vista. Não temiam perigo algum; por si mes-mos, rompiam por entre a mais cerrada aglomeração e, quando tombavam, morriam alegremente, quase jubilantes. Isso era incompreensível a todos os inimigos e espalha-va tal assombro, que pouco a pouco ninguém mais ousava entrar em combate contra os árabes e contra aqueles que estes acolheram sob sua proteção. Os jovens de famílias nobres e modestas insistiam em ser recrutados entre os guerreiros. Certo dia compa-

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receu o quinto neto diante do príncipe para pedir-lhe que conseguisse de Abu Bekr o seu recrutamento na tropa de elite.

- Ad-Din, indagou Maomé, não podes imaginar algo melhor para tua vida do que derramar sangue? Para mim seria a última coisa que ambicionaria. Por que queres tornar-te um guerreiro?

- Porque então terei certeza de poder entrar no reino de Deus, respondeu Ad-Din ingenuamente. Vê, tu mesmo dizes que por mais que nos esforcemos para proce-der direito, podemos às vezes fazer um erro, o qual nos impedirá a ascensão. Com os guerreiros isso é impossível. Por essa razão julgo mais certo tornar-me guerreiro.

Maomé não pôde compreender aquilo que o neto disse. Pediu-lhe que contasse com mais precisão como lhe ocorrera a idéia de que os guerreiros são privilegiados dessa maneira. E Ad-Din revelou:

- Já há muito tempo Abu Bekr disse aos seus guerreiros que aquele que enfrenta o inimigo com bravura e intrepidez pode com isso extinguir todos os pecados eventu-almente cometidos anteriormente. Tombando, então belos seres angelicais femininos o conduziriam a um castelo celeste, onde seria tratado e cuidado do melhor modo. Não achas também, avô, que essas perspectivas são sufi cientemente atraentes para se dar prazerosamente a vida por isso?

- É esse o motivo pelo qual tantos moços se apresentam para serem guerreiros? Inquiriu o príncipe.

O neto respondeu afi rmativamente. - Nós todos queremos ter uma vida feliz lá em cima. Este também é o motivo

pelo qual os guerreiros procuram sempre introduzir-se na mais cerrada aglomeração de combatentes, para que tombem o mais depressa possível e sejam buscados para as alegrias eternas.

Maomé fi cou estarrecido! Semelhantes coisas puderam ser propagadas, mesmo enquanto ele, o profeta de Deus, ainda vivia!

Como fi caria após a sua morte? Fez todo o possível para esclarecer Ad-Din sobre as sedutoras idéias preconcebidas que o dominavam. Mas o jovem não quis desistir da bela crença, que achara tão bonita. Aferrou-se tenazmente à mesma e achava sempre novas objeções. O príncipe viu que numa única vez nada conseguiria. Pediu a Ad-Din que pensasse melhor sobre o assunto e voltasse numa outra ocasião. Então mandou chamar Ali e perguntou-lhe se estava ciente dessa crença errônea. Ali confessou que sim. Sabia disso, mas como Abu Bekr conseguia dessa maneira aliciar um grupo de guerrei-ros intrépidos, sem precedente, não ousou interferir contra isso. O ofício de guerra de-pendia em todos os casos da coragem de cada um por si. Se houvesse alguma coisa capaz de elevar esse ânimo e fortifi cá-lo, então dever-se-ia fi car contente e não combatê-la.

- No fundo Abu Bekr também não diz nada errado, apenas exagera um pou-co, exclamava Ali, ao qual o olhar de Maomé começava a tornar-se incômodo. Ele

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pinta a bem-aventurança de um modo, que, ao pessoal, ela se afi gura realmente como tal. Que proveito tira uma dessas almas simples, do pensamento de que lá em cima poderemos servir a Deus infi ndavelmente? Deixa-os permanecerem na crença de que acolá usufruirão um bem-estar, e de que lá em cima encontrarão a recom-pensa pela morte em prol da pátria.

- Ali! Exclamou dolorosamente o príncipe. Tu queres ser meu sucessor, e co-meças desde já a torcer a Verdade! Nenhuma palavra deve ser dita diferente de como a recebi do Altíssimo. Se alterardes a Verdade por causa dos homens, então ela será reti-rada de vós!

Maomé falou demoradamente com aquele que fora escolhido para ser o anun-ciador da Verdade após ele. Não conseguiu outra coisa a não ser que Ali se calasse. In-timamente, porém, Ali estava persuadido de que Maomé, por estar muito afeito a sua obra, não queria por isso que ela fosse modifi cada em qualquer coisa.

Cada evento no mundo deveria progredir, se quisesse permanecer duradouro. Deveria unicamente a crença constituir uma exceção?

Isso ele disse à noite, na intimidade familiar, quando comentou agitado a pales-tra tida com o príncipe. Abdallah, o fi lho mais velho, silenciou meditativo.

Então disse:- Creio que no fundo tens razão, meu pai, mas ainda é muito cedo. Reserva

tudo isso para a época em que fores soberano no país. Isso não há de demorar mui-to tempo mais. Uma repetição desse colóquio poderia induzir o príncipe a nomear um outro sucessor.

Maomé, o mais novo, reagiu:- Então não tendes noção do perigo - que representa a deturpação da Verdade?

Deixai-me contar-vos um exemplo.Um príncipe tinha disponível um grande tesouro em ouro não cunhado e quis

fazê-lo chegar entre os homens. Mandou cunhar moedas de ouro puro e distribuiu-as. Cada um as pegou prazerosamente, e o comércio do país fl oresceu. Então o tesoureiro viu que o ouro diminuía, e cuidadosamente misturou outro metal com o ouro puro. Os homens não o notaram e pegaram as moedas em confi ança. Por fi m, também aqueles que cunhavam as moedas quiseram tirar proveito para si. Também acrescentaram ou-tras ligas de metais. As peças tornaram-se mais pesadas do que até então. Os homens procuravam-nas. Cada um preferia as peças pesadas, às genuínas e leves. No comércio, todavia, reconheceu-se de repente as tais moedas falsifi cadas e recusaram-nas. Os ho-mens viram-se reduzidos à maior pobreza e assassinaram o tesoureiro.

- Tua parábola é falha, meu querido irmão, disse Abdallah ironicamente.Ali, porém, olhava meditativamente para o fi lho, que tinha tanta semelhança

com o Maomé mais velho. Causar-lhe-ia ainda muito aborrecimento, se não pudesse ser encontrada uma saída. Em todas as ocasiões possíveis, representaria as concepções

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do profeta e colocá-las-ia nos seus caminhos, qual um signo da Verdade, por mais anti-quadas que já se tivessem tornado!

Logo depois Maomé deixou o aposento. Ali e AbdaUah, porém, continuaram a falar sobre o assunto e estavam de acordo em que se deveria colocar Maomé num cargo o mais longe de Medina, para não haver discórdia no próprio lar. Aos poucos, tornou-se evidente ao príncipe que se formava uma certa tensão entre ele e Ali. Este nunca faltava com o respeito, mas calava-se assim que o profeta manifestasse um ponto de vista. E esse silêncio demonstrava que Ali era de opinião diferente.

Se a manifestasse, então Maomé lhe poderia ter indicado do que provinha a di-versidade no seu modo de pensar. Poderia ter sido encontrada uma ponte, um caminho comum, que fosse trilhável para ambos. Mas Ali silenciava. Com isso foi afastada de antemão a possibilidade de qualquer entendimento. Após isso, o príncipe percebeu que o seu neto homônimo obviamente estava passando, em casa, por algo idêntico. Falavam com ele somente sobre coisas triviais, enquanto que Ali e seu fi lho mais velho se uniam cada vez mais estreitamente entre si.

Ad-Din fora enviado a Abu Bekr, por desejo expresso de Ali, para ser ensinado pelo mesmo no ofício de guerra.

O neto mais jovem, Ali, ainda corria atrás da mãe e era visto raras vezes.Maomé, então, acostumou-se a procurar para descanso o pequeno palácio de

Said, onde era sempre bem-vindo. A delicada Aischa vivia sua vida tranqüila e retraída com suas duas fi lhas.

Quando, porém, o príncipe estava presente, à noite, então ela saía dos seus apo-sentos para vir dedicar-se ao príncipe e ao marido, e comprazia-se com suas conversações. Era muito sensata, tinha uma fi na intuição e compreendia com mais rapidez do que os demais, tudo o que Maomé dizia. Então, quase sempre ela dominava a sua embaraçosa timidez e dizia aquilo que lhe acorria em pensamento, com palavras inteligentes.

Em decorrência disso, Maomé chegou a falar com muito prazer na presença de Aischa sobre suas visões, das quais contava unicamente a Alina. As ponderadas observa-ções de Aischa aprofundavam o sentido dessas visões.

Said continuava afeiçoado e com a antiga fi delidade e gratidão ao príncipe, o qual o adotara quando era um pobre rapaz. Maomé podia confi ar nele em qualquer situação.

Consolava-se com o fato de que Said e Ali se entendiam aparentemente bem. Isso, porém, apenas assim parecia. Said queria evitar dissabores para o príncipe com relatos sobre as desavenças que surgiam entre eles. Diante de Said, Ali não silencia-va; ao contrário, desabafava-se sempre que reprimia intimamente sua opinião pe-rante Maomé, manifestando-a para Said mais desconsiderada e veementemente do que, aliás, era de sua vontade. Ante isso, Said não podia permanecer calado, e assim cada convívio entre os dois terminava em discórdia.

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Por quanto tempo isso poderia fi car ocultado ao príncipe? Said pensava algumas vezes num meio para afastá-lo novamente de Medina. Então veio uma carta de Ibrahim, solicitando a presença do príncipe em Meca, visto haver muitos assuntos a tratar.

Maomé resolveu imediatamente fazer dessa viagem uma “peregrinação” ao santuário, como fora costume na época de sua infância. Apenas queria dessa vez afastar toda a idolatria e transformar a peregrinação de modo que vibrasse, através dos dias, a pura adoração a Deus. Mandou anunciar ao povo que ele mesmo cogi-tava ir à “sagrada mesquita” para ali orar e promover uma grande solenidade. Todo aquele que fosse adepto do Islã, poderia associar-se. Às pessoas de outra crença estaria vedada a visita à mesquita. Não era preciso iniciar a jornada em Medina, e sim, quem quisesse poderia unir-se aos peregrinos no caminho. Todas as pessoas masculinas de sua família tomavam parte na romaria; apenas Ali fi cou, para não deixar Medina sem governo. Foi uma alegria para Maomé que Abu Bekr com seus guerreiros se juntassem a ele no caminho.

Maomé e os seus familiares viajavam a cavalo, como a maioria dos nobres. Co-merciantes abastados utilizavam camelos; os demais caminhavam a pé. Com isso, a ca-ravana dividiu-se em três grupos, os quais não chegavam todos ao mesmo tempo em cada parada de descanso. O príncipe só permitia o prosseguimento da romaria, quando o terceiro grupo se unia aos outros e após os viandantes pedestres terem descansado sufi cientemente. Desse modo a viagem para Meca demorou muito.

Quando Meca surgiu ao alcance da vista, foi feito o último descanso. Foi pre-cisamente no mesmo lugar onde o príncipe teve de sentir a resistência dos moradores. Agora era diferente. Os portões foram escancarados para deixar entrar os peregrinos, sobretudo o príncipe. Novamente Maomé esperou primeiro os que vinham se aproxi-mando a pé. Depois disso ordenou que todos os animais de montaria e de carga fossem confi ados aos guerreiros, os quais já por si teriam que fi car de guarda nos acampamen-tos. A não ser a pé, ninguém deveria entrar, ao chegar o término dessa peregrinação.

Um cortejo não abrangível com a vista formou-se num dos dias seguintes. Na frente o príncipe, e atrás dele Said, Abdallah e Maomé. Ad-Din quis naturalmente unir-se aos irmãos, porém o príncipe determinou que ele deveria caminhar no meio dos guerreiros, aos quais pertencia agora por livre escolha.

No portão estavam os patriarcas à espera de seu príncipe, e, conduziram-no ao palácio reconstruído para ele, onde também a maioria de sua comitiva achou alojamento. Todos os demais peregrinos foram hospedados, parte em casas de fa-mília, parte em hospedarias e os restantes em tendas. No dia seguinte, ao nascer do sol, o cortejo formou-se mais uma vez e entrou na mesquita sob o som de cânticos de louvor e gratidão.

Ibrahim recepcionou a multidão de peregrinos com a bênção de Deus. De-pois disso fez uma alocução e no fi nal uma oração. Em seguida falou o profeta.

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Novamente anunciou Deus, o Senhor dos Céus e da Terra. Quem o escutou julgou nunca ter ouvido palavras tão poderosas. Pediu aos ouvintes terem sempre presente que tudo aquilo que ele pôde lhes ensinar fora dado de cima. Também após a sua morte não deveria ser modifi cada coisa alguma, porquanto a Verdade era eterna, não podendo ser torcida. Tudo que se pudesse torcer não seria mais Verdade. Mas também somente enquanto permanecessem fi éis à Verdade estariam sob a bênção de Deus. Finalizando, leu novos mandamentos, que se haviam tornado necessários. Salientou primeiro a proibição do uso de bebidas embriagantes. Sobre esse abuso foi estabelecida uma punição severa, visto que um homem embriagado nunca faz o que agrada a Deus. Tal homem põe em perigo os costumes do povo todo.

Além disso, o profeta proibiu o consumo da carne de porco. Aqueles entre os seus seguidores que antes pertenciam ao judaísmo, abstiveram-se disso já por si. Os outros, também, não sentiram essa proibição como um peso! Então o profeta pas-sou a introduzir as épocas de jejum, para evidenciar ao povo, que servia ao maior e mais santo de todos os senhores.

- Viveríeis à toa e esqueceríeis a quem pertence vossa vida, se esse jejum não vos fi zesse lembrar.

Todo o nono mês, o “ramadã”, foi fi xado para a época do jejum. Ninguém po-dia comer ou beber enquanto o sol pairasse no céu. Além disso, Maomé determinou ainda dias isolados para o jejum, os quais deveriam ser observados rigorosamente.

- Se aprenderdes a dominar vossas cobiças, então isso será de proveito para a vida inteira. Chegareis assim a exercer melhor controle sobre vós mesmos e pode-reis precaver-vos contra erros e pecados.

Os dois dias seguintes decorreram com devoções e preleções na mesquita. Nessa oportunidade Maomé fez saber que era seu desejo que cada homem fi zesse pelo menos uma vez em sua vida a peregrinação para Meca. Com isso mostraria que fazia empenho para dar a sua vida aquele valor que deveria ter perante Deus.

Para que se recordassem de sua viagem peregrina, poderia cada um que em-preendesse a jornada cingir seu chapéu, seja um turbante ou um barrete, com uma fi ta verde, da cor da bandeira da mesquita. Essas fi tas foram distribuídas aos devo-tos na mesquita. Com altivez os presentes rumaram com os seus distintivos verdes ao grande e improvisado pavilhão, onde, na última noite, deveriam reunir-se todos para uma refeição em comum.

Todos juntos, o mais pobre peregrino, o príncipe com os seus, tomaram seus alimentos. Também nessas romarias nunca deveria ser feita diferença de classe, por-quanto perante Deus todos os homens seriam iguais.

Aos poucos se dispersou a multidão reunida. Também Said regressou com Abdallah para Medina, enquanto os dois Maomés pensavam em fi car ainda por breve tempo em Meca. Ibrahim, que se dedicava inteiramente ao serviço de Deus,

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tinha muitas perguntas e sugestões a fazer. Na sua atuação descobriu intimamen-te muitas coisas que exigiam esclarecimento. Estava contente em poder recorrer à orientação do profeta.

Em oração e profunda meditação chegou à conclusão de que esta vida na Ter-ra deveria ser um elo de uma longa corrente de vidas semelhantes. Quanto mais me-ditava sobre isso, mais nitidamente se patenteava diante de sua alma a verdade desse pensamento. Achou inúmeras provas a favor e nenhuma contra. Isso queria contar ao príncipe e fortaleceu-se com todos os argumentos para defrontar-se com a refutação do soberano, a qual esperava na certa. Maomé, porém, disse-lhe com satisfação:

- Amadureceste, então, para saber isso! Quando estiveste pela primeira vez comigo na nossa mesquita, então quis falar sobre isso. Deus não me permitiu. Eu deveria esperar até que os homens tivessem alcançado a maturidade necessária. Essa época julguei não ter vindo ainda. Agora vejo que talvez me tenha enganado. Logo que voltar para Medina, quero fazer a tentativa de descobrir um modo pelo qual poderei insinuar este saber nos meus ensinamentos aos homens, sem torná-los vacilantes em sua crença.

- Talvez temas que os turcos poderiam indignar-se, riu o Maomé mais moço, ao saberem que seu tão desejado descanso, então, ainda seria perturbado por múl-tiplas encarnações!

E contou ao irmão da preguiça dos novos correligionários. Mas Ibrahim riu tão pouco quanto o príncipe.

- Também eu já tive muitos casos em que os homens acreditam no Além, mas imaginam-no como uma afl uência interminável de toda a espécie de prazeres. Até aposentos de mulheres querem transplantar para os céus. Causa-me muito tra-balho retifi car os pensamentos errados.

- Neste caso não julgas, como teu pai, que poderiam ser feitas concessões aos homens? Perguntou Maomé, amargurado.

Ibrahim negou decididamente. Também ele estava convencido de que não se deveria dizer nenhuma palavra diferente do que Maomé o ensinara.

- Como estou contente, disse o príncipe, que pelo menos vós dois e mais Said perseverareis na doutrina pura e direis sempre de novo ao povo onde se en-contra a Verdade.

Minha vontade era modifi car minha determinação e escolher um outro su-cessor. Mas a quem deveria dar a preferência? Se escolho um de vós, então não querereis prejudicar as obrigações fi liais e colocar-vos contra vosso pai.

- Também ainda somos novos para isso, opinou Maomé, enquanto Ibrahim pe-diu que o deixasse na mesquita, pois era onde poderia prestar melhor serviço a Deus.

Num outro dia, Maomé perguntou se os judeus, radicados ali no sul, aceita-ram a nova doutrina e se viviam em paz. Ibrahim informou que sempre necessitava

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ainda do punho forte de Abu Bekr para conter esses por demais impulsivos. Mas desde que o vizir se acostumou a abafar inexoravelmente a menor revolta, o país não tinha muito mais a sofrer.

- Se os judeus se convencessem de uma vez que o Islã lhes proporciona exa-tamente aquilo que lhes faltava: a coroação de sua crença! Suspirou o príncipe.

Ibrahim, ao contrário, asseverou que justamente isso eles consideravam como cilada, na qual deveriam ser apanhados para o Islã. No fundo de suas almas, todos os antigos judeus acreditavam somente em Moisés, se é que já tivessem tido uma determinada crença.

- Sempre presencio como os judeus mandam abençoar seus fi lhos com no-mes judaicos; secretamente até os mandam circuncidar. Achariam vergonhoso se um fi lho tivesse um nome árabe, como é uso, aliás, entre os judeus do norte.

- Também aqui, em tempo anterior, não se reparava nisso, declarou Maomé, senão eu, como fi lho de pai judeu, com certeza teria recebido um outro nome.

- Maomé quer signifi car: o homem que vale o preço, disse o Maomé mais novo. Contigo isso corresponde efetivamente à realidade. Quero tentar consegui-lo também.

Dessa vez o príncipe partiu com pesar de Meca, onde o envolvia a paz. O que o esperaria em Medina, em face da arbitrariedade de Ali? E, contudo, teve de regres-sar para lá, porquanto precisava tentar impedir que modifi cassem aquilo que ainda era possível.

Sem incidentes chegaram certa noite à capital e encontraram-na calma. Eviden-temente não se esperava ainda a volta do príncipe, porém estava tudo preparado para recebê-lo, no palácio principesco.

Said veio o mais depressa possível para cumprimentá-lo, e relatou que na frontei-ra do norte tinham irrompido agitações, de maneira que Abu Bekr se dirigira para lá. Ali estava doente, senão também teria comparecido à recepção. Evidenciou-se que as per-turbações no norte não eram de natureza grave. Era bom, porém, que se mostrasse aos rebeldes imediatamente a autoridade, de sorte que tal não se repetisse mais no futuro.

Poucos dias depois, Ali estava restabelecido. Estava mais calmo do que antes e mais acessível às explicações de Maomé. Para o soberano era uma grande alegria; por-quanto julgou que Ali se transformara intimamente com a moléstia.

Alina e Aischa, que enxergavam com mais clareza, não quiseram tirar-lhe a alegre credulidade. Pouco lhe seria possível fazer para modifi car o modo de pensar de Ali, no qual mais e mais se evidenciava o caráter do pai. Assim como Abu Talib fora cobiçoso por dinheiro, Ali o era pelo poder, pelo domínio e pelo prestígio, que o fi zeram esquecer tudo o mais.

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Fatime não teve nenhuma infl uência sobre ele. Afastou-se dela por comple-to, desde que ela fi zera algumas vezes, chorando, a tentativa de mudar o seu modo de pensar. Constava que vivia com outra mulher; entretanto, as mulheres nada sa-biam de positivo. Silenciavam para não denunciar ao príncipe rumores incertos.

Esse silêncio se lhes tornou mais fácil do que esperavam; porquanto Maomé vivia mais para dentro de si do que para seu ambiente. Aproveitava a tranqüilidade no país para abrir-se a novas revelações que lhe afl uíam ditosamente.

Começou a aprofundar-se nas verdades transmitidas por Jesus. Baseado em alguns escritos propagados entre os cristãos, procurou tornar vivas as palavras ver-dadeiras, assim como ressurgiam em sua alma.

Viu com admiração que tudo aquilo que julgava como sendo anunciações no-vas, dadas a ele, já havia sido proclamado à humanidade pela boca do Filho de Deus.

A humanidade, porém, não o compreendeu. Assim como a areia no deserto cai sobre tudo e tudo nivela, do mesmo modo os pensamentos humanos encobri-ram as palavras celestes e vulgarizaram-nas.

Nada, absolutamente nada daquilo que podiam perceber agora espiritual-mente, precisava ser novo para eles se tivessem trazido na alma as palavras do Mes-sias e vivido em conformidade com as mesmas. Fazia agora a tentativa de recons-truir algumas das preciosas palavras de Jesus e de explicá-las de maneira a poderem ser compreendidas pelos homens. Sentiu satisfação nesse trabalho e fez uma idéia de como o mundo se tornaria melhor, se Jesus fosse tido novamente como norma para tudo. Sua vida como exemplo e suas palavras como estrela-guia; de que mais os homens precisavam?

Nesse aprofundamento lembrou-se também dos avisos sobre o Juízo Final. Diante dos seus olhos pairava a estrela, o mensageiro do céu, o qual ele pôde con-templar no deserto. Diante de sua alma pairava a imagem de Jesus, como ele ca-minhara na frente dos seus discípulos. A isso ainda se juntaram imagens que ele já havia visto.

Tornou-se-lhe claro que o Filho de Deus que viria para julgar o mundo, não poderia ser Jesus Cristo.

O Messias nunca havia dito: “Eu virei novamente!” Sempre se serviu de ou-tras expressões. Na maior parte das vezes falou do Filho do Homem. Subitamente, Maomé sabia quem era o Filho do Homem. Filho de Deus, a Vontade de Deus, assim como pudera vê-Lo! Quando esse Filho de Deus viesse para julgar o mundo, então a estrela apareceria outra vez no céu. Dessa estrela deveria anunciar agora e Daquele a quem essa estrela anunciou!

Começou então a falar cada sexta-feira, na mesquita, sobre os últimos dias do mundo, assim como se lhe afi guravam diante dos olhos de seu espírito. Descre-veu o Juiz dos Mundos, o qual, sentado sobre um trono de ouro, separava os fi éis

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dos infi éis, concedendo a um a vida e a outro a condenação eterna. Aqueles aos quais ele dava a vida eterna, poderiam ir com ele ao seu reino, o reino de Deus, seu Pai. Com essas preleções o profeta tornou-se vidente, descrevendo as imagens que passavam diante de sua visão interior.

Falava com grande felicidade, porém apenas alguns eram capazes de segui-lo. Também não se esforçavam, pois não queriam saber nada dum Juízo justo de Deus.

Queriam ouvir sobre as alegrias que os esperavam no Além, o descanso que se segue à fadiga, a bem-aventurança que se segue à afl ição. Sobre isso o profeta deveria falar a eles.

Certa vez Abdallah dirigiu-se a Maomé com o pedido de que fosse ao en-contro dos desejos do povo. A assistência às preleções na mesquita diminuiria, se o povo tivesse que ouvir sempre somente aquilo que não queria ouvir.

- Precisam ouvir isso! Exclamou Maomé com a antiga impetuosidade, a qual quase não mais se percebia nele. E necessário que compreendam isso. Ajuda-me antes a convencer essa gente, em vez de te tornares intermediário de suas concepções errôneas.

Abdallah deu de ombros.- Verás que não poderás obrigar os homens. Serias mais astuto se cedesses

aparentemente e falasses a eles assim como lhes é agradável. Em seguida poderias então incluir de novo o Juízo, se não deve ser de outro modo.

- Nunca dei muito valor a essa chamada astúcia, Abdallah, disse o príncipe, tornando-se mais calmo. Agora sou muito velho para andar por caminhos tortos. Também sei que abandonaria as veredas de Deus. Eu, porém, sou Seu instrumento. Farei a tentativa de pronunciar minhas palavras com mais amor ainda.

Tomou isso a sério. Acusou-se a si próprio de ter talvez procedido muito severamente, em seu desvelo de expor às almas humanas o último Juízo de uma ma-neira impressionante. Procurou um modo novo para fazê-las compreender aquilo que tinha de mostrar-lhes. Começou, assim, discorrendo sobre a bondade e a mi-sericórdia de Deus. Então, logicamente, também teve de censurar as falhas dos ho-mens. Se nas primeiras preleções sentiram alívio, nas últimas, entretanto, sentiram novamente como se uma carga lhes fosse imposta desnecessariamente.

Abdallah dirigiu-se ao seu pai para conseguir dele a promessa de procurar convencer Maomé de que também outros deveriam falar uma vez na mesquita. Ele deveria preparar em tempo um sucessor também para essa parte.

Por mais que o plano lhe agradasse, Ali hesitou, no entanto, em executá-la. Poderia dar motivo a novos e indesejáveis atritos se o sucessor quisesse falar diferente do que Maomé desejasse. Falando, porém, no sentido do profeta, então nada melhoraria.

- Devemos ter ainda um pouco de paciência, meu fi lho, tranqüilizou-o. Maomé gastou prematuramente suas forças, porque nunca se poupou. Não viverá

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muito tempo mais. Após isso, poderemos fazer o que bem nos apraz. Por que dis-putar antecipadamente aquilo que virá depois por si?

Abdallah conformou-se. Maomé sentia-se satisfeito, vendo tudo em paz. Ali com perspicácia havia enxergado certo: as forças terrenas do profeta estavam combalidas.

Quanto mais evoluía em espírito, tanto mais rápido diminuíam suas forças físicas. Ele mesmo quase não notou, mas Alina e as outras mulheres o observavam apreensivas. Tentaram muitas vezes persuadi-lo a descansar e procurar lazeres agra-dáveis. Raras vezes transigia, e assim mesmo apenas por curtos instantes.

- Não tenho tempo para essas coisas, costumava dizer amavelmente. Devo atuar enquanto Deus ainda me pode utilizar aqui embaixo. Ele proporciona-me cada dia tanta força quanto necessito.

Então o amor de Said utilizou-se de um ardil. Pediu ao príncipe que lhe ex-plicasse, sempre que lhe fosse possível, aquilo que anunciava na mesquita. Ele, Said, desejava saber mais sobre isso, a fi m de que mais tarde pudesse infl uenciar o povo no sentido como Maomé preconizava em suas explanações orais.

Said preocupava-se realmente em procurar compreender tudo melhor do que os outros, para que após a morte de Maomé restasse mais um que reconhecera a Verdade. Contudo, ele também podia ter adquirido esses conhecimentos em época mais oportuna. Por essa razão convidava o príncipe a vir em diferentes horas ao seu palácio; acomodava-o confortavelmente num divã, sentava-se aos seus pés e esti-mulava-o a narrar àquilo que enchia sua alma. Essas eram horas de pura felicidade para ambos.

Em nenhuma outra parte Maomé sentia-se tão bem compreendido. Said desenvolvera-se mais, desde o seu matrimônio com Aischa. Quando nessas oca-siões o Maomé mais moço, com sua rápida assimilação e seu coração ardente, se juntava a eles, nesse momento parecia como se a força de cima afl uísse visivel-mente para eles.

A escola fundada pelo neto de Maomé tomara grande impulso. Por toda parte necessitava-se de conhecedores de línguas. Os jovens das famílias mais nobres desejavam receber instrução. Alguns deles até já haviam passado de alunos para professores e ajudavam o jovem Maomé. No entanto, como tarefa de prioridade, a par do ensino lingüístico, ele se propôs a instruir as pessoas na doutrina pura.

- Mais tarde naturalmente tereis de interpretar principalmente palestras sobre assuntos de crença! Disse aos alunos. Será de bom alvitre que desde já vos torneis fi rmes nisso.

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Dessa maneira preparou uma turma de jovens unidos, os quais estavam con-victos da Verdade do Islã, como Maomé a ensinou, e viviam de acordo com as leis morais. Quando se despediram da escola para tomar posse de um cargo, promete-ram pôr em prática e defender a doutrina em toda parte a que chegassem.

Isso não pôde nem deveria fi car oculto. Ali olhava para isso com maus olhos. Dessa turma poderiam surgir-lhe mais tarde muitas contrariedades, as quais desde já com muito gosto teria tornado inofensivas. Contudo, não achou nenhum meio viável. Assim que se tornasse príncipe, poderia tratar de fechar a incômoda escola; agora, porém, deveria tolerá-la ainda.

Maomé, o profeta, visitava com muito prazer essa escola com seus vivos e alegres alunos. Muitas vezes falava a eles. Esses eram os pontos culminantes da vida escolar.

Tornou-se costume que Ali, cada manhã, relatasse ao príncipe tudo o que havia se passado no dia anterior e também aquilo de que tivesse conhecimento por meio de recados. Maomé, então, ordenava o que deveria ser feito. Às vezes, acontecia que o príncipe chegava a saber que Ali, em caso algum, havia procedido de acordo com essas ordens. Quando o admoestava, então, Ali se desculpava: tinha compreendido errado as palavras do príncipe, ou fora necessário agir diferente no momento preciso, sem ter havido mais tempo para perguntas.

Quando esses casos se tornaram mais freqüentes, o profeta consultou o lu-minoso mensageiro de Deus, se seria sua obrigação tomar novamente as rédeas do governo com mão fi rme. Se deveria verifi car como suas ordens eram executadas. Então não lhe sobraria mais tempo para aprofundamento espiritual. Recebeu como resposta que era mais importante fi rmar no povo o saber sobre a Verdade Divina, do que pôr exteriormente em execução medidas governamentais.

Depois disso Maomé continuou a trabalhar de maneira inabalável como antes. No entanto, não deixou de admoestar e repreender repetidamente, quando chegavam ao seu conhecimento, negligências e arbitrariedades de Ali. Quanto mais incômodo isso se tornava para o sucessor, tanto mais cautelosamente este procedia. Urdiu aos poucos uma tessitura de mentiras em redor do príncipe, com tanta habi-lidade, que nem o amor de Said, nem o zelo de Maomé puderam penetrá-la e muito menos dilacerá-la.

Certo dia chegou aos ouvidos do príncipe a notícia sobre o casamento clan-destino de Ali. Ficou indignado. Como poderia um homem, que tinha uma Fatime como esposa, a qual lhe presenteara com fi lhos varões, não se dar por satisfeito. Se, porém, ele desejasse uma segunda mulher, por que não a tomava publicamente como esposa?

Ali negou tudo. Era calúnia. Teriam confundido a sua pessoa. Nesse momen-to o príncipe se enojou do seu sucessor e pediu a Deus que não permitisse a posse de Ali no governo.

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Alguns dias depois, Ali declarou que queria fazer a peregrinação para Meca, a qual não pôde realizar naquela ocasião, devido aos ofícios urgentes no governo. Uma romaria partiria nos próximos dias para o santuário, à qual queria juntar-se.

- Pensa bem, Ali, exortou Maomé, que somente se pode tomar parte no cortejo com o coração arrependido! Quem se aproxima do santuário de Deus, sem arrependi-mento e com a alma carregada de culpas, atrai irremediavelmente sobre si o castigo!

- Nesse caso minha peregrinação justamente nesta época deveria provar-te com mais clareza a minha inocência, do que o poderiam todas as palavras, replicou Ali com fi nura.

Não foi possível arrancá-lo da obstinação. Apesar de todo o dispêndio de esforços por parte do profeta para aproximar-se de sua alma, foi tudo em vão. Teve que deixá-lo partir, profundamente consternado com a hipocrisia do homem ante-riormente tão sincero. Negligenciara alguma coisa nele?

Perguntou a Said. Este contestou-o vivamente.- Não deves esquecer, príncipe, que é fi lho do pai dele.De algum modo os dois deveriam ter uma semelhança íntima, principal-

mente porque a índole da mãe não ofereceu nenhuma compensação. Pelos fi lhos de Ali não receio, pois eles têm Fatime.

No lar de Said recentemente associara-se às meninas um pequeno, Omar, a alegria dos pais. Também Maomé regozijou-se com o garoto, que era uma criança bela e vivaz.

Ali demorava para regressar de Meca. Isso já se tornava motivo de inquietação para Maomé. Então soube que seu substituto aproveitara o caminho para fazer visi-tas a diversas províncias. Enquanto o príncipe se livrava de todas as preocupações e se voltava com aprofundada concentração a seus afazeres espirituais, Said e o jovem Maomé tiveram algumas conversas angustiadas sobre a demorada ausência de Ali.

- Quanta desgraça ele pode provocar com essa viagem! Suspirou Said, esque-cendo completamente que estava falando ao fi lho do censurado.

Este, porém, concordou com ele, e disse:- Apresentar-se-á como futuro príncipe. Eu desejava que o avô nunca tives-

se falado qualquer coisa sobre seu sucessor, e então poderia agora ainda escolher livremente.

- Quem ele poderia propor? Perguntou Said, afl ito. Não sabia de ninguém que pudesse preencher o posto.

- A ti, respondeu Maomé rapidamente.Quando Said lhe explicou que o povo não o aceitaria por causa de sua ori-

gem humilde, Maomé disse lamentando:

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- Em último caso Abu Bekr sempre ainda seria melhor do que o pai. Pelo menos é franco e sincero.

- É bom que não caiba a nós determiná-lo, respondeu Said fi nalizando.Poucos dias mais tarde Maomé procurou o avô a fi m de pedir permissão

para ir ao encontro de Ali. O príncipe fi cou admirado com esse sentimento de amor fi lial, anuindo, porém, de bom grado.

Assim o jovem Maomé partiu com a aquiescência de Said e Alina, a fi m de interceptar atividades arbitrárias de Ali. Julgou que, estando perto dele, não poderia pronunciar palavras ambíguas. Deveria envergonhar-se perante o fi lho.

Por intermédio de viajantes comerciais, chegou a saber que Ali dirigira-se para a Síria, a fi m de exigir dos administradores de lá o juramento de fi delidade a ele. Isso não poderia acontecer enquanto Maomé ainda vivesse!

Com um pequeno grupo de acompanhantes, o jovem auxiliar cavalgou nes-se rumo; sua apreensão estimulava-o a apressar-se cada vez mais. Já havia passado a fronteira da Síria, quando encontrou inesperadamente Abu Bekr com os seus guer-reiros, os quais julgava que ainda se encontrassem no norte.

Cumprimentaram-se e fi zeram descanso em comum, apesar de Maomé ter declarado que não tinha tempo para demorar-se ali; pois deveria achar o pai.

- Isso podes fazer mais rapidamente se fi cares comigo, do que se cavalgares para Halef ou para Damasco, riu Abu Bekr. Olha no acampamento, lá o verás. Mas a falar a verdade, quero aconselhar-te: não olhes lá dentro. Ele está mal-humorado e poderia vingar-se em ti daquilo que é minha culpa.

Às insistentes perguntas do jovem, o vizir informou que algo o tinha indu-zido a tomar o caminho de regresso através da Síria, não obstante não terem sido avisados de qualquer agitação naquela região.

Então escutou estranhos boatos. Ali, o príncipe da Grã-Arábia, estaria se deixando ovacionar e estaria exigindo juramento de fi delidade por toda parte. De-clarava que Maomé falecera, e que ele, Ali, havia se tornado soberano em seu lugar.

- Isso me revoltou tanto, que obstruí o caminho do mentiroso e obriguei-o a voltar comigo para Medina. Ele, porém, riu-se de mim, e insistiu em cavalgar adian-te. Nesse momento agarrei-o um pouco asperamente. Para as próximas semanas terá perdido a vontade de andar a cavalo.

E agora fala: o que te fez vir aqui?Maomé relatou com a mesma franqueza a fi nalidade de sua viagem apressa-

da. Abu Bekr pegou sua mão:- És um excelente moço, no qual se pode confi ar! Ainda nos regozijaremos con-

tigo, quando teu avô não mais estiver entre nós e começarem as inevitáveis confusões.- Que pretendes fazer com o pai? Indagou o jovem, apreensivo, após terem tro-

cado demoradamente suas opiniões. Não podes obrigá-lo a voltar se ele não quiser!

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- Ah! é assim, riu estrondosamente Abu Bekr. Não posso fazer isso, então? Com sua infi delidade ele tornou-se culpado perante o príncipe. Encontrei-o em fl agrante, sub-juguei-o e aprisionei-o. Como prisioneiro meu, posso conduzi-lo para onde eu quiser.

- O sucessor do príncipe, teu prisioneiro? Exclamou Maomé, horrorizado. Estou receando, vizir, que aí a tua lealdade e tua vontade te pregaram uma má peça. Não podes conduzir o auxiliar mais graduado do príncipe, preso, para lá e para cá, através do país.

- Isso não posso fazer, fi lhinho? Bradou Abu Bekr, que começou a irritar-se. Mas ele pode mentir, tapear e atraiçoar o príncipe! Isso ele pode, hem? Acredita-me que então eu também posso proceder com ele conforme merece!

Maomé sacudiu a cabeça. Não viu nenhuma saída para esse apuro, no qual a probidade de Abu Bekr o levou. E que era um apuro, isso tornou-se-lhe evidente.

Não se tratava, para ele, do pai. Esse conceito já há muito perdera o valor. Trata-va-se, porém, do sucessor e substituto do príncipe! Como poderia o povo respeitá-lo, se, como prisioneiro culposo do vizir, fora arrastado pelo país?

Surgiu-lhe um novo pensamento.- Abu Bekr, teus guerreiros sabem que manténs preso o sucessor do príncipe?O indagador esperava um não, porém este também não veio.- Achas que meus homens podiam tê-lo subjugado com a sua tropa, sem vê-lo?

Além disso, Ali bradava continuamente: “Não avilteis minha sagrada pessoa; sou o prín-cipe da Grã-Arábia”. Portanto, isso deve ter-lhes soado aos ouvidos!

- O que achas, então, que deve ser feito? Perguntou Maomé, apreensivo.- Assim que eu chegue de regresso a Medina, prestarei contas ao príncipe do que

fi z e por que assim se deu. Feito isso, fi ca a seu critério decidir como quererá punir a infi delidade e a perfídia. Isso, então, não é mais da minha conta. É chegado o último momento para que se abram os olhos do profeta quanto às maquinações insidiosas do ambicioso Ali. Perdão, sempre esqueço que ele é teu pai.

- Isso podes esquecer, vizir, disse Maomé sério, mas tem presente que ele é o subs-tituto do príncipe.

Diante disso Maomé não teve mais pressa de seguir adiante. Sua vontade era im-pedir que Abu Bekr regressasse a Medina. Quão profundamente chocante deveria ser para o príncipe a notícia sobre a traição de Ali!

O substituto ferido foi conduzido dali no dorso de um camelo, numa espécie de liteira. Não chegara ainda a avistar-se com o fi lho. Este não sentia desejo algum de procurar um encontro.

Enfi m, certo dia, chegaram ao fi nal da viagem. No portão souberam que o prínci-pe estava gravemente enfermo. Ficaram assustados. De momento Abu Bekr com certeza não deveria comunicar-lhe nada sobre o procedimento de Ali, sobre seus ferimentos e seu aprisionamento.

O que deveria ser feito com Ali?

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Mandaram chamar Said e deliberaram com ele. Dele souberam que a enfermi-dade do príncipe era muito grave. Estava no palácio de Said, onde havia dias sofrera um colapso. Os médicos não permitiram que fosse feito qualquer movimento com ele.

Alina e Aischa tratavam-no abnegadamente e com todo seu grande amor.Por ora não se poderia contar tais coisas ao príncipe. Isso também não teria

pressa. O povo estaria se preocupando ansiosamente com a vida do profeta e não daria pela falta de Ali, o qual o povo julgava encontrar-se ainda em Meca.

Então os três resolveram levar Ali para o porão do palácio de Abu Bekr e lá mandar vigiá-lo.

Foram escolhidos os guerreiros mais fi és e de confi ança para esse serviço; os outros foram mandados a um acampamento fora da cidade e obrigados a calar.

Às eventuais perguntas do príncipe, poder-se-ia informar que Ali fora ferido num combate e só voltaria após o seu

restabelecimento dos ferimentos. Procederam da maneira como determina-ram entre si. Ali vociferava freneticamente. Nada lhe foi dito sobre a enfermidade do príncipe, de sorte que teve de supor que estava sendo mantido preso por ordem do mesmo. A ninguém era permitido aproximar-se dele. Sozinho, deveria refl etir sobre sua culpa.

Maomé teve desejo de procurar logo o avô. Demorou, porém, alguns dias, até que a febre baixasse e o médico permitisse visita. Os dois, que se assemelhavam muito, externa e internamente, tiveram grande alegria ao se reverem.

- Agora não te afastarás mais de mim, enquanto eu estiver vivo, meu fi lho, pediu o príncipe com ternura, e o mais novo prometeu.

Ele mesmo não pôde imaginar coisa melhor do que fi car de vigília ao lado do leito do enfermo e participar de tudo o que acontecia ao redor. Pôde ver as luminosas fi guras que se aproximavam do leito anunciando e consolando, animando e comuni-cando. Nem sempre ouviu o que falavam, mas que se tratava de algo maravilhoso, isso pôde depreender das feições radiantes do doente. Nenhuma pergunta a respeito de Ali saiu dos lábios do enfermo; em compensação, pediu que mandassem chamar Ibrahim. Alina já havia pensado nisso, e o jovem xeque já se achava a caminho. Alguns dias depois apresentou-se perante o leito. Paz e tranqüilidade de alma emanavam dele. Seus olhos castanhos irradiavam uma alegria que não era deste mundo. Longe de todos, tornou-se uma personalidade independente e valorosa. O príncipe sentiu alívio ao vê-lo. Somente então começou a pensar em coisas terrenas, enquanto que antes se movimentava com todos os seus sentimentos intuitivos em outras planícies. Pediu a Ibrahim que assumisse o cargo de xeque na mesquita de Medina, a mesquita do profeta.

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- É muito fácil executá-lo, meu fi lho, disse com um amável sorriso. Desde que es-tou deitado aqui, ninguém mais falou nas sextas-feiras aos homens. Teu irmão Abdallah lê, mas isso só não basta. Fala tu agora ao povo, enquanto eu ainda permaneço na Terra. Eles acostumar-se-ão contigo e não mais quererão prescindir de ti, depois que eu for em-bora. Aliás, é muito importante que justamente aqui, onde infelizmente existem tantas correntes contrárias, seja a Verdade ensinada da maneira mais pura.

Ibrahim queria fazer objeções, no entanto algo o impediu. Prometeu o que o príncipe desejou e este fi cou visivelmente mais calmo.

Momentos depois começou novamente:- Ali não é mais digno de ser meu sucessor. Deveis julgá-lo em segredo e fazê-lo

desaparecer. Abu Bekr, sê tu príncipe da Grã-Arábia em meu lugar! A Verdade terá em ti um amigo e protetor. Nunca, porém, esqueças que um príncipe deve construir e não destruir, sanar e não ferir. Se tiveres de recorrer às armas e derramar sangue, então escolhe para ti um chefe guerreiro que atue em teu lugar. Promete-me isso!

O vizir, completamente atordoado, prometeu tudo o que o príncipe exigiu. Por-tanto, Maomé sabia da perfídia de Ali! Com verdadeira galhardia suportara tudo isso. Realmente, havia uma grande diferença entre Maomé e os homens que o rodeavam. A Said, o príncipe agradeceu pela sua fi delidade nunca vacilante e seu amor fi lial.

- Com tua conduta fi zeste-me esquecer que em realidade não és meu fi lho. Deus recompensar-te-á por isso; eu não o posso. Terás que passar por duras pro-vações assim que eu deixar a Terra. Com muito gosto te pouparia, mas vejo nitida-mente que assim deve ser.

Permanecerás fi rme como um baluarte, contra as ondas de descrença, crença er-rônea e traição. A força de Deus estará sempre contigo, enquanto a implorares, e enquan-to Deus ainda precisar de ti aqui na Terra. Paz interior esteja contigo em meio a todas as discórdias. Deus, o Senhor, te abençoe!

Comovido, Said retirou-se de perto da cama. Não teve mais esperança de que Maomé convalescesse. Quem assim falava, já devia estar à beira do Além.

Nesse momento, Maomé fez um gesto ao seu neto predileto para que se aproxi-masse. Este ajoelhou-se perto do leito e num impulso de afetuosidade encostou a cabeça no peito do enfermo, o qual passou levemente suas mãos sobre a mesma. Demorada-mente os dois permaneceram em silêncio, mas um fl uir de forças sagradas passou de um para o outro, o que promoveu uma profunda compreensão.

- Maomé, a ti caberá a tarefa mais difícil. Gostaria de levar-te comigo agora, assim que deixar a Terra. Deus, porém, o dispôs diferentemente. Sê tu o amparo das delicadas mulheres, as quais tenho de deixar para trás. Sê seu auxiliador até que voltem tempos calmos. Correrá sangue e serão assassinados inocentes. Protege as mulheres por essa épo-ca! Após isso, consulta Deus sobre outros serviços. Foste meu neto predileto, não apenas porque reconheci em ti uma parte de mim mesmo, mas sobretudo porque seguiste teu

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caminho imperturbavelmente claro e reto. Permanece como és, e a bênção de Deus te acompanhará, assim como a minha estará sempre contigo.

Foi chamado Abdallah. Veio contrariado e não quis saber quão doente o príncipe estava, Perguntou impetuosamente pelo pai. Antes que pudessem responder-lhe, desejou saber por que Ibrahim fora chamado para a mesquita. O médico e Abu Bekr deram a entender que deveria moderar-se, pois estava na presença de um moribundo.

Por um momento Abdallah se assustou; então, porém, virou-se e deixou o apo-sento sem dizer uma palavra. Se Maoméo escutou ou o viu, isso ninguém chegou a saber. O príncipe desejou, então, que as mulheres chegassem uma a uma a sua presença; queria despedir-se. Inicialmente se opuseram a isso, quando pronunciara essa palavra. Agora nenhum dos presentes tinha coragem para isso. Era por demais evidente que essa vida preciosa estava prestes a extinguir-se.

Aischa veio com suas fi lhas, e Maomé agradeceu-lhe por todo o amor que encon-trara em sua casa. Tinha tomado afeição por Aischa como se fosse sua própria fi lha.

Se agora Said tivesse de consagrar todas as suas forças para o reino, então ela, com Alina, Fatime, suas fi lhas, todas juntas, deveriam retirar-se para um lugar seguro, fora de Medina. O jovem Maomé estava nomeado para protegê-las e encarregar-se-ia de todas elas. Também para Fatime e as outras fi lhas ele teve palavras bondosas. Depois disso pediu que o deixassem a sós com Alina.

- Tu, minha fonte de bênçãos na Terra, deixa-me agradecer-te, disse emocionado. Estas palavras nunca quiseram passar pelos meus lábios, tantas vezes que se impeliram para lá. Se me foi possível observar os mandamentos do Senhor e seguir puro e imacu-lado meu caminho, então tu me ajudaste nisso, minha fl or pura dos jardins eternos de Deus! Limpos e impecáveis são todos os teus pensamentos e atos. As moças e mulheres do teu ambiente familiar tornaste puras e delicadas. Atua ainda, após o meu trespasse, por muito tempo sob a bênção, e ensina as mulheres a se tornarem iguais a ti. É meu desejo que todas vós que estais ligadas a mim pelo laço do amor vos oculteis em alguma parte, até que as épocas de rebeliões, que agora deverão vir, tenham passado. Maomé, meu neto, deverá ser para vós um guarda e protetor. Segue meu conselho nesta parte, porquanto é necessário que te conserves para o nosso povo. Deus mesmo assim o quer! Sua bênção esteja contigo. Ver-nos-emos de novo!

Essas foram as últimas palavras que Maomé falou por uma necessidade terrena a um ente humano. Dali em diante todos os seus pensamentos estiveram com Deus. Se falava, então isso sucedia para anunciar aquilo que lhe era dado ver.

Seus lábios balbuciavam ininterruptamente. Mesmo aqueles que estavam perto dele, muitas vezes não puderam entender o que dizia. Nesse momento, de novo as pala-vras soavam claras e nítidas. Falou dos Filhos de Deus. Teve uma visão de Cristo, assim como o vira outrora. Pediu e implorou poder novamente caminhar com ele. Em seguida estampou-se um sorriso maravilhoso em seu semblante.

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- Ó tu, sagrado Filho de Deus, esqueci! Nunca mais precisarás cansar teus pés na poeira de nossas estradas. Nunca mais precisarás falar a um povo obstinado que não te quer escutar, e quando te ouve, deturpa e avilta tuas sagradas palavras. Mestre, tu estás com Deus! “Eu e meu Pai somos uno”, anunciaste para nós! Isso agora pôde tornar-se realidade para ti. Ficaste novamente uno com o teu Pai eterno. Agradeço-te por ter tido permissão de anunciar de ti!

Maomé silenciou longamente. De repente ergueu-se, como se contemplasse algo de majestoso. Levantou seus braços sem forças:

- Juiz do mundo, Filho de Deus! Em profunda humildade inclino-me diante de ti e suplico-te: consente que te sirva quando vieres para julgar!

O profeta calou-se, como se escutasse atentamente. Depois disso seu semblante se transfi gurou ainda mais.

- Rendo-te graças, a ti, Eterno! Neste caso poderei servir-te lá em cima. Não ne-cessitarás mais de mim quando pisares na Terra? Mas lá em cima poderei ultimar minha obra? Agradeço-te pela tua imensa graça!

Novamente seguiu-se um longo silêncio. Um ou outro dos presentes aproxima-va-se silenciosamente da cama para verifi car se ainda respirava.

Parecia que Maomé dormia tranqüilamente. Contudo, somente assim parecia. Sua alma desprendia-se facilmente, sem dores. Entes luminosos assistiam-no. Também rodeavam o corpo terreno, a fi m de que não sentisse nenhuma dor com o desligamento.

Maomé, o jovem, pôde vê-los. Também foi agraciado para escutar o que foi dito ao moribundo.

“Volta a tua Pátria, meu servo Maomé. Sempre foste um instrumento fi el. Não é tua culpa, se aquilo que tiveste permissão de trazer ao mundo novamente afundar na imundície que é ativada pelas trevas. Foste destinado a ser um portador da Verdade. Tu o foste! Superaste a ti próprio, e viveste para os outros. Serviste a teu Deus!

Volta. A Pátria eterna espera-te!”Intenso brilho concentrou-se por sobre a cama do moribundo, o qual abriu os

olhos pela última vez, e clamou em voz alta:

“D E U S !”

Nessa única palavra jazia um triunfo e uma bem-aventurança que aqueles que a ouviram nunca mais esqueceram. Através das horas mais difíceis de suas vidas, quando estiveram na iminência de tropeçar, essa única palavra ajudou-os e segurou-os:

“D E U S !”

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SUPLEMENTO

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O falecimento de Maomé provocou entre os seus as mais desencontradas sensações. Um pesar sincero comovia a todos, porém somente Alina e Aischa pude-ram entregar-se a esses sentimentos.

Os homens sabiam que havia chegado o momento de agir, se quisessem pre-venir que se manifestassem logo a seguir os maiores distúrbios. Deixaram a sala mortuária aos cuidados das mulheres, inculcando-lhes que não deixassem entrar nenhum serviçal, nem qualquer outra pessoa, enquanto eles se retiravam a um dos aposentos contíguos para deliberarem. Que urgia tomar providências, isto todos compreenderam perfeitamente. Abu Bekr, que era sempre tão enérgico e decidido, estava completamente arrasado. Não compreendia que deveria ser o sucessor do profeta; duvidava que poderia resolver a situação.

Said e Ibrahim estavam calados; olhavam, porém, para Maomé, de cuja pers-picácia esperavam auxílio.

Ele não estava consciente disso. Sua alma dirigia-se em oração para as alturas, a fi m de obter orientação para todos. Parecia-lhe como se escutasse a voz do falecido, dando-lhe instruções claras e nítidas sobre o que deveria ser feito primeiramente.

Era tudo tão compreensível, que entrou paz e confi ança na alma do homem. Levantou-se e dirigiu a palavra aos outros.

- Escutai, disse, o príncipe vos dá, por meu intermédio, ainda uma vez or-dens, as quais devemos executar fi elmente. Sua morte deve permanecer em sigilo enquanto o traidor Ali não for eliminado. Este, portanto, deve ser julgado nos pró-ximos dias, em nome do profeta.

Somente então pode ser anunciada a morte de Maomé, e Abu Bekr será procla-mado seu sucessor. Se negligenciarmos isso, então uma guerra civil será a conseqüência inevitável. Ali nunca abandonaria, de boa vontade, a já agora arrogada soberania.

Como, porém, o invólucro terreno de nosso príncipe não pode permanecer exposto tanto tempo sobre a Terra, a ordem dele é que o enterremos esta noite, no jardim deste palácio. Deve ser procedido com o maior sigilo. Isto está claro. Mais tarde então deveremos sepultá-lo na mesquita do profeta. Para esse fi m, devemos deitá-lo hoje na terra, de um modo que possa ser desenterrado facilmente. Pede-vos que não considereis isso como uma profanação do cadáver, e sim, que compreen-dais ser ele induzido a isso pelo seu amor ao povo.

- Sim, o amor ao seu povo! Disse Said quase chorando. Esse amor ele man-tém até após a morte. Jamais desejou alguma coisa para si mesmo. Agora desiste até do honroso funeral de que é digno, e prefere deixar-se enterrar como um crimino-so, a ver defl agrar uma guerra civil por sua causa!

- Estais de acordo que sigamos as instruções de Maomé? Perguntou o jovem Maomé, com insistência. Todos concordaram.

- Então tomemos sem delongas as providências necessárias. As mulheres

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podem lavar, untar, vestir e adornar o morto. Tu, Ibrahim, podes ajudá-las nisso e rezar as orações fúnebres que ele mesmo compôs. Nós outros temos de preparar em segredo o receptáculo externo; porquanto após o pôr-do-sol teremos trabalho sufi -ciente com a escavação de uma cova funda. Maomé ordenou tudo cautelosamente.

Said chamou a atenção para o comprido baú que se encontrava no aposen-to adjacente, o qual mandara fazer para guardar tecidos de seda. Era de tamanho sufi ciente para abrigar o falecido. Os outros estavam de acordo e forraram-no com preciosos tecidos de seda. O médico quis entrar, porém deixou-se mandar embora por Abu Bekr, perante o qual sentiu um instintivo temor, com a insinuação deste de que o enfermo estava dormindo um pouco. Quanto menos confi dentes, melhor é, achavam os quatro homens. Desde há muito o sol desaparecera no ocaso, quando mãos carinhosas deitaram os restos do servo de Deus na caixa comprida de madei-ra. Nesse ínterim foi chamada Fatime. Então os sete se ajoelharam e um sentimento sagrado transpassava todos eles. Perceberam a força que lhes afl uía de cima, a fi m de que cada qual à sua maneira pudesse cumprir sua missão.

Na terra fofa do jardim, no meio de arbustos em fl or, foi fácil escavar a cova, na qual foi colocada a caixa. Os homens nivelaram tudo de novo e fi caram rezando parados naquele lugar que abrigava o corpo daquele que fora para eles o guia e amigo na Terra.

Nem os empregados domésticos notaram qualquer coisa. Tratava-se de guardar ainda por cerca de um dia o segredo. Na manhã seguinte foram chamados os funcionários do príncipe para uma reunião. Abu Bekr, Said e Maomé dirigiram-se igualmente para a grande sala do palácio principesco.

Abu Bekr comunicou aos presentes, por ordem do príncipe, qual o delito de que era acusado Ali. Não se achava provavelmente ninguém na sala que já não tivesse escutado falar do procedimento traiçoeiro de Ali; não havia necessidade de mais provas. Mas antes que fosse pronunciada a sua sentença, era mister que se defrontasse com seus acusadores.

Abu Bekr enviou alguns dos seus guerreiros para trazerem o prisioneiro.Sem terem conseguido trazê-lo, voltaram depois de ter decorrido bastante

tempo: o cárcere estava vazio! Como poderia ter se dado isso? Foram chamados os guardas. Tremiam de medo e não quiseram falar.

Finalmente, quando o jovem Maomé lhes prometeu que os defenderia se dissessem logo a verdade, eles confessaram que o sacerdote Abdallah procurara seu pai.

Ao recitador da mesquita não puderam impedir a entrada; além disso, tinha dito a eles que vinha a pedido expresso do príncipe. Havia permanecido demora-damente com Ali.

Por fi m saíra, dizendo-lhes que Ali provavelmente morreria nessa noite. Suas

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feridas haviam se agravado. Ele, Abdallah, iria comunicar ao príncipe e chamar seus irmãos ao leito mortuário.

Algumas horas depois voltara em companhia de Ad-Din e dissera-lhes que os outros ainda viriam; não os tinha encontrado ainda. Poucos minutos depois de os irmãos terem entrado na prisão, saíram precipitadamente. Ad-Din abrira o ca-minho brandindo a espada desembainhada, e Abdallah carregava seu pai ferido.

Tudo isso teria se passado com tanta rapidez, que, quando os guardas volta-ram a si, os homens haviam fugido. Então os guardas resolveram fechar outra vez as portas e fi car no momento calados, porquanto foram tomados de muito medo.

Isso soou de todo acreditável e, além disso, Maomé pôde ver que eles fala-vam a verdade. Assim, foram despachados sem castigo. Os funcionários, porém, receberam instruções para investigarem sobre o paradeiro dos fugitivos.

Nesse momento os confi dentes fi caram contentes por terem seguido sem reservas o conselho de Maomé. Passaram-se dias até que foi encontrada uma pista de Ali. Tivesse ele sabido do falecimento do príncipe, então teria se apresentado imediatamente com seus partidários para assumir o posto.

Entrementes, porém, o povo soube quão grave fora o delito de Ali, que até teve que ser julgado, tendo se refugiado para escapar à justa sentença judicial. A pista levou para além da fronteira do reino, de sorte que não foi mais possível pros-seguir no seu encalço.

Somente alguns dias mais tarde Said fez saber aos serviçais que Maomé havia falecido. Por meio deles a notícia propagou-se rapidamente, e todo o povo chorou a morte do seu soberano, profeta e servo de Deus.

Novamente no silêncio da noite a caixa foi desenterrada, tendo sido coloca-da num suntuoso esquife. O calor excepcional daquele dia não fez parecer estranho o fato de o ataúde ter sido fechado antes de ser levado à mesquita. Ninguém teve suspeitas. Só mais tarde surgiram boatos de que o príncipe já havia falecido antes. Os de má fé inventaram mentiras horripilantes e os de boa fé teceram piedosas len-das em torno disso. A verdade nunca foi descoberta.

Uma comovente solenidade na mesquita precedeu o sepultamento. Ibrahim, que teve de assumir sem qualquer cerimonial o seu cargo, porque Abdallah estava desaparecido, falou ao povo. Explanou como Maomé durante toda a sua vida não quisera ser outra coisa a não ser servo de Deus, como todas as leis por ele promul-gadas originaram-se da vontade de Deus, como a doutrina que ele trouxe lhe afl uíra do reino de Deus. Com palavras ardentes exortou o povo para que se compenetras-se disso e para que perseverasse fi elmente na Verdade.

- Maomé mesmo disse muitas vezes nos últimos anos: “Todos os portadores da Verdade puderam trazer a Verdade eterna de Deus. Depois vieram os homens e interpretaram-na à sua maneira, aviltaram-na e deturparam-na, até que da Verdade

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foi tecida uma mentira”. Árabes, fi éis do Islã, não deixeis que vos tirem o sagrado! Não deixeis torcer nem desfi gurar palavra alguma! Sede os guardiões do tesouro que vos foi confi ado.

Quando Ibrahim silenciou, Ornar, o subchefe dos guerreiros, aproximou-se do ataúde que estava colocado na elevação arrumada para o declamador e coberto com a bandeira do profeta. Agradeceu ao extinto em nome de todo o povo por tudo que proporcionara ao reino e a cada alma individualmente. Suas palavras improvi-sadas brotaram de um coração grato e sacudiram as almas de todos.

A cerimônia foi encerrada com uma prece suplicando forças.

No dia seguinte foram chamados os funcionários para uma reunião, e Said declarou-lhes que o príncipe moribundo nomeara Abu Bekr para seu sucessor. Essa escolha não causou surpresa a ninguém, porquanto como Ali estava fora de cogita-ção, não havia outro homem mais competente para continuar a obra, do que ele.

O chefe dos funcionários perguntou ao grão-vizir se estaria disposto a as-sumir o elevado posto. Respondeu afi rmativamente com voz trêmula e relatou as palavras de despedida do príncipe. Após, acrescentou:

- Quero seguir as recomendações de Maomé. Omar, meu subchefe, deverá tornar-se grão-vizir em meu lugar; e Chalid, até agora o chefe superior, passará a ser o dirigente de todos os guerreiros. Eu mesmo me absterei do derramamento de sangue e desejo dedicar-me inteiramente ao bem-estar do povo e à propagação do Islã. Como Maomé, também eu não quero nada para mim, mas quero fazer tudo pelo povo!

Cumpriu a palavra. Num trabalho assíduo juntou todos os manuscritos de Maomé e recompôs os versetos um a um. A ele deve-se o fato de que o Corão, o livro da doutrina do Islã, tenha podido ser legado à posteridade como um todo integral.

O jovem Maomé dirigiu-se num dos dias subseqüentes a Alina, a fi m de tratar da mudança das mulheres.

Aparentemente essa medida, por ora, parecia supérfl ua. Reinava a paz no reino; a temida guerra civil não defl agrara. Deveriam afastar-se da cidade, na qual atuaram tão benefi camente?

Apesar disso, Maomé estava decidido a persuadi-las. Sabia que o príncipe nunca se enganava quando ordenava alguma coisa baseada num aviso de cima. Também aqui se evidenciaria a sabedoria do seu desejo.

Ao contrário de sua expectativa, Alina concordou imediatamente. Sim, mais ainda: ela pôde de noite contemplar o local do novo paradeiro! Era uma casa grande

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e simples, numa região montanhosa, circundada por vastos jardins.Nesse lugar ela se viu junto com as mulheres e moças da família de Maomé,

que cuidavam de moças e crianças do sexo feminino e educavam-nas como mulhe-res puras. Essa seria a sua futura tarefa.

Descreveu a casa tão nitidamente, que Maomé sabia de súbito onde teria de pro-curá-la. Propôs então que procuraria descobri-la e mandaria reformá-la; depois disso viria buscar as mulheres. Deveriam, nesse ínterim, preparar tudo para a mudança.

Ao término de poucos dias de viagem, alcançou o sítio procurado.O proprietário havia falecido. Os herdeiros não deram muita importância à

propriedade e quiseram vendê-la por um baixo preço. E assim Maomé logo chegou a um acordo com eles. Colocou alguns serviçais de confi ança para cuidarem que a sujeira mais grossa fosse retirada. Não houve necessidade de reparos. Estava tudo em bom estado de conservação. No grande pátio, cercado com muros, esguichava uma fonte, e numa pequena cabana havia uma instalação para banho. Como apa-rentemente um rebanho fi zesse parte da propriedade, encontrava-se ali uma peque-na e bonita casa de pastores, a qual Maomé escolheu para sua residência, enquanto tivesse de proteger as mulheres.

Então cavalgou com os demais acompanhantes de regresso para Medina e informou as mulheres, as quais escutavam ansiosas, sobre sua compra vantajosa. Estiveram de acordo em tudo; apenas sentiram muito que Maomé tivesse que mo-rar sozinho por causa delas.

Nessa época achou oportuno concretizar seu projeto. Construir fora do muro da propriedade das mulheres uma grande casa e transferir a escola de línguas para essa região distante. Ficou um pouco receoso sobre qual seria o parecer de Alina. Ela, no entanto, fi cou feliz por Maomé poder prosseguir em seu trabalho abençoado e pelo fato de, caso surgissem agitações na sua proximidade, poder ainda contar com a proteção dos jovens alunos.

As mulheres partiram tão logo quanto foi possível: Alina, Fatime e Aischa, as três fi lhas de Alina, as duas meninas de Aischa e as criadas indispensáveis. Associa-ram-se ainda a elas três amigas, de Medina, com suas fi lhas.

Maomé levou seu irmão mais novo Ali, e Omar, o fi lhinho de Aischa, visto que ambos necessitavam muito de educação. Uma turma de alunos adultos deveria segui-lo, tão logo o prédio da escola de línguas estivesse pronto.

Mal as mulheres deixaram Medina, já começaram a circular cada vez mais rumores sobre várias agitações. Abu Bekr mandou mensageiros a cada um dos vinte e sete administradores, comunicando-lhes a morte de Maomé e pedindo que se comprometessem com ele.

A maioria deles lamentou, aliás, a perda do príncipe, mas não opuseram ne-nhuma difi culdade quanto ao sucessor. Assim como o profeta o determinou, seria o

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melhor para todos. No entanto, entre aqueles que Ali procurara recentemente, ha-via alguns aos quais ele fi zera muitas promessas para o caso de tornar-se príncipe. A outros declarara que já era soberano e por conseguinte lhes prometera muita coisa. Esses não quiseram abrir mão do que lhes fora prometido. Declararam não querer reconhecer Abu Bekr, e sim, somente Ali como soberano.

Em vão os mensageiros fi zeram com que eles vissem que não se poderia mais contar com Ali. Acusaram abertamente Abu Bekr de ter afastado o sucessor de Mao-mé para apossar-se do trono. Por isso queriam chamá-lo à responsabilidade.

Isoladamente, ou em comum, tentaram instigar não só as suas comarcas como também o país inteiro à subversão.

Para Abu Bekr não houve outra alternativa, após o regresso dos mensageiros, senão enviar Chalid e Ornar com bem-equipados guerreiros para garantir o seu do-mínio. Onde quer que seus chefes guerreiros chegassem, eles saíam vitoriosos. Prin-cipalmente Omar, nessas ocasiões, procedia com tal sentimento humanitário, que os vencidos quase fi cavam envergonhados. Mal regressaram os chefes guerreiros a Medina, resolvidos a recrutarem novas tropas, para que nunca mais fosse preciso retirar todos os guerreiros efetivos do interior do país, veio a notícia da fronteira norte, que Musailima, um amigo de Ali, fi zera uma investida com uma horda selva-gem para castigar Abu Bekr por causa do seu proceder.

Imediatamente Chalid se pôs a caminho com seus guerreiros bem-discipli-nados e conseguiu prender o agitador juntamente com seu bando. Prometeu a vida a Musailima, se contasse onde Ali se encontrava no momento. Mas o homem per-maneceu fi el ao amigo e preferiu morrer, a traí-lo.

Com isso estava vencida a última revolta e Abu Bekr pôde continuar com toda a calma a tratar das organizações externas que Maomé determinara, mas que não pudera mais realizar. Organizou mais escolas no país e ordenou que todos os rapazes deviam freqüentá-las para aprender ao menos a ler e a escrever.

Em sua ocupação com o Corão, aprofundou-se mais nas doutrinas de fé do que em tempo anterior. O que com isso se lhe tornou convicção, ele quis passar adiante. Sentiu forte desejo de fazer muito mais para a disseminação do Islã.mPara conseguir esse objetivo, algumas vezes lançou mão de recursos falsos, sem contudo estar consciente disso.

Como anteriormente já asseverara aos seus guerreiros que os esperava uma bem-aventurança toda especial, se tombassem em combate com o inimigo, assim prometeu agora aos homens que cumprissem fi elmente o jejum e praticassem a abstinência preceituada, um céu repleto de belas mulheres.

Ibrahim, que soube disso, censurou-o:- Como podes dizer tais coisas que imaginaste sozinho, príncipe Abu Bekr?

Instou. Não devemos acrescentar nada à Verdade que não promana da Verdade.

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- Que mal fará, se estimulo os homens com tais narrativas para darem mais atenção àquilo que eles têm de cumprir cá embaixo? Se com isso os ajudo a viverem de acordo com os mandamentos de Deus, onde poderia encontrar-se aí o prejuízo?

- Tu os estimulas com promessas falsas. Cada mentira vem das trevas é, por-tanto, um inimigo da Luz. Não podes fazer os homens andarem nos caminhos da Luz, se envolves suas veredas nas trevas.

- Ibrahim, tão grave como tu o pintas agora, isso não é. Pergunto novamen-te: em que poderia residir o mal, se eles chegam ao outro lado e descobrem então que o velho Abu Bekr lhes contou algo que não está bem certo? Então também compreenderão que eu quis ajudá-los!

O ancião o disse ingenuamente. Estava tão convencido de sua boa intenção. Não era possível explicar-lhe o prejuízo que causara.

Certa vez, quando vieram homens à sua presença para queixar-se de que seus afazeres comerciais não lhes permitiam livrar o tempo necessário para empreende-rem a peregrinação a Meca, lembrou-se Abu Bekr de facultar-lhes um substitutivo.

Deveriam mandar um substituto a Meca, que empreendesse em seu lugar a peregrinação. Teriam de responsabilizar-se pelas despesas e além disso recompen-sar fartamente o homem. Nesse caso a peregrinação deste poderia ser considerada como se fosse feita por eles mesmos.

Também com isso irritou-se Ibrahim. Dirigiu-se a Said para, em comum com ele, proibir o príncipe ou, como mais gostava que o chamassem, o califa-subs-tituto, de tornar públicas inovações sem consultá-los.

Abu Bekr fi cou admirado de que também dessa vez fosse alvo de repreensão em lugar de receber elogio. Julgou que procedera com habilidade, porquanto soube que justamente esses homens, que tomavam por pretexto a falta de tempo, temiam as despesas. Agora lhes impôs mais custas ainda e alegrou-se com isso.

- Ele é como uma criança, suspirou Ibrahim. Ainda vamos ter muito traba-lho com ele.

Essa predição fora errada. Nem dois anos haviam se passado desde que Abu Bekr assumira a sucessão do profeta, quando veio a falecer acometido por uma do-ença que, aliás, contraíra anteriormente numa campanha, e a qual descuidou.

Antes de sua morte nomeou Ornar, o grão-vizir, para seu sucessor. Chalid deveria fi car vizir e Amir, chefe de todas as forças armadas. Quando coordenou tudo, adormeceu suavemente, sem que as pessoas de sua intimidade o percebessem.

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Ornar tornou-se califa e assumiu seu cargo cheio de boa vontade, sobretudo cônscio de que somente poderia proporcionar benefícios ao povo, atendo-se fi el-mente aos ensinamentos do profeta.

O que, porém, exigiu de si próprio nesse sentido, isso também esperou dos outros. Os fi éis deveriam usufruir sua vida mediante alegres atividades em agrade-cimento a Deus, mas jamais desviar-se um passo sequer do caminho indicado pelos mandamentos e pelas leis.

Entendeu-se excelentemente com Ibrahim e Said; eram seus mais leais au-xiliares.

Um dos seus primeiros atos governamentais foi a nomeação de Said para grão-vizir, visto ter Chalid lhe solicitado que o deixasse no seu posto como chefe dos guerreiros.

- Não sirvo para governar, disse lamentoso. Com arma em punho posso realizar grandes coisas, isso eu sei. Prefi ro ser a espada de Deus, do que conselheiro do príncipe. Perdoa-me, califa.

Omar viu-se em apuros. Compreendeu Chalid muito bem, e também teria ido de bom grado ao encontro do seu desejo, mas agora tinha sido nomeado Amir para chefe supremo do exército. Chalid não poderia passar para o segundo lugar, depois que durante dois anos ocupou o primeiro.

- Poderei preencher qualquer posto, também o mais humilde, assegurou Chalid, se posso continuar como chefe guerreiro.

Após uma conferência com os seus conselheiros, Omar por fi m consentiu nisso e Chalid agradeceu-lhe por meio de lealdade e submissão exemplar.

Se Abu Bekr sentiu forte desejo de tornar o Islã acessível a todos os homens, então em Omar esse impulso tomou proporções tais, que mandou conquistar paí-ses estranhos pelos seus dois chefes guerreiros, unicamente para que os povos pu-dessem participar das bênçãos da nova doutrina.

Não era cobiça pelo poder e pela glória. Omar vivia mais simplesmente do que o homem mais comum. Não era casado e habitava uma pequena casa nas pro-ximidades da mesquita. Para sua alimentação bastavam-lhe frutas e arroz. Levava uma vida de moderação em todos os seus atos e deu os melhores exemplos ao povo. Assim, todas as conquistas que seus chefes guerreiros faziam para ele, não lhe sig-nifi cavam aumento do poder, mas sim, considerava-as como empreendidas para a glória de Deus.

Apesar de que ele mesmo tivesse sido chefe guerreiro, não se imiscuía quando os dois alguma vez fi zessem algo de modo diferente do que lhe parecia mais viável.

- Cada qual que se encontra num posto de responsabilidade, deve ter liber-dade para agir por conta própria, costumava dizer, senão nunca poderá efetuar um trabalho completo.

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Em razão dessa convicção, deixou Amir e Chalid empreenderem campanhas em todas as direções: Pérsia, norte da Síria, Mesopotâmia, Egito e Africa do Norte foram subjugados e tornados acessíveis ao Islã.

Em toda parte a nova doutrina encontrou cultura corrompida e crenças em decadência. Foi fácil introduzir o novo, principalmente porque Chalid teve a habi-lidade de, em toda parte onde chegava, levar também a arte.

Mandou fazer construções como naquelas regiões nunca foram vistas. Reuniu objetos de arte num país para proporcionar prazer a outros e deixá-los admirados.

Ornar dedicou-se, como Abu Bekr, inteiramente aos trabalhos pacífi cos de aperfeiçoamento. Entre outras coisas reconheceu que o sistema de carceragem se achava em situação deplorável. Os cárceres em todas as partes do reino eram hor-ripilantes buracos, de onde, após entrar, raras vezes se saía com vida, mesmo que a permanência tivesse sido de curta duração. Isso não se coadunava com os ensi-namentos do profeta, tampouco com a vontade de Deus. Ornar mandou construir cadeias mais humanas, regulou os serviços de guarda e de tratamento, e com isso ajudou a prevenir que o medo da prisão conduzisse os homens ao suicídio.

Como ele fora chefe guerreiro, teve predileção pela ordem e disciplina. Criou um quadro de funcionários que condizia de todo com a ordem militar. Havia chefes de categoria elevada e inferior; podia-se alcançar promoção dentro de determinada hierarquia. Isso contribuiu para que o vasto reino, que aumentava continuamente, se solidifi casse, e conseqüentemente progredisse.

A década do governo de Omar não apresentou nenhum ato do qual o ca-lifa tivesse que se envergonhar. Não mandou executar nada que não estivesse em concordância com os mandamentos de Deus. A Arábia progrediu, gozou de uma prosperidade muito bem regulada, e também os costumes mantiveram-se numa certa altura.

Certa noite Said faleceu sem que tivesse havido qualquer sintoma prévio. Alcançou uma avançada idade, mas ninguém pensou que seu trespasse estivesse tão próximo. Serviu ao país, dedicando-lhe ao mesmo tempo todas as suas forças. Sua família vivia separada dele. Não se ressentiu disso, pois ele também não tinha tempo para ela.

Seu falecimento abriu uma lacuna maior do que ele próprio talvez imaginas-se. Era um dos que estiveram sob a infl uência direta de Maomé. Quem deveria ser agora o grão-vizir? Ornar lembrou-se de Maomé, o moço, e mandou que Ibrahim fosse até ele, levando a solicitação para assumir o cargo. Maomé protegeu as mu-lheres durante doze anos. Devia deixá-las? Antes de dar uma resposta ao seu irmão, aprofundou-se numa prece e soube que a promessa feita ao avô estava mais do que cumprida. Não deveria esquivar-se por mais tempo do serviço ao povo.

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Assim transferiu a proteção das mulheres e a direção da escola ao seu irmão Ali e regressou com Ibrahim para Medina.

Com a habilidade que lhe era peculiar, introduziu-se nas suas novas obri-gações e tornou-se em pouco tempo indispensável para Ornar. Viu melhor do que Said onde faltava algo, onde se faziam necessárias inovações e onde os costumes começavam a decair. Sua vigorosa e incansável energia animava também Ornar sempre de novo.

Quanto mais se intensifi cavam as relações comerciais da Grã-Arábia, tanto mais bruscamente se evidenciava um inconveniente, o qual até o momento qua-se não se observara. Tratava-se da diversidade cronológica resultante das várias crenças. Enquanto os antigos judeus e os povos que até então conviveram com eles, perseveravam estritamente na cronologia antiga, os cristãos começavam seus cálculos cronológicos somente a partir do nascimento do Filho de Deus. Mao-mé achou imprescindível que se pusesse termo a essa duplicidade de cômputo. Propôs a Ornar tomar por base a cronologia de todos os fi éis do Islã, o início da nova doutrina. Com isso assegurava-se uma identidade para todo o vasto reino; no qual, pelo menos exteriormente, não havia mais pessoas de outras crenças. Ornar instituiu, portanto, como sendo o vigésimo primeiro ano do profeta, o ano no qual a reforma foi transformada em lei, não alterando, contudo nada no fato de os árabes calcularem os anos pela lua, ao passo que todos os outros povos tinham por base o período solar. Esperava tornar, aos poucos, o Islã acessível ao mundo todo, e então todos se identifi cariam também nessas exterioridades. Após Maomé ter conseguido que em relação ao cômputo do tempo não houvesse mais confusões, foi dado mais um passo.

Sentiu-se impelido a expedir leis que deveriam regular as relações entre de-vedores e credores. Assim como era até aquele momento, cada qual que emprestasse dinheiro ou bens podia exigir a restituição por avaliação arbitrária e, conforme a índole de cada um, enriquecer acima dos limites lícitos.

Para Maomé isso há muito vinha causando horror, porém, sem o apoio de uma lei rígida, não podia empreender nada contra isso. Omar confessou franca-mente que não entendia nada dessas coisas; regozijou-se, no entanto, por ter um grão-vizir tão inteligente e deixou-se aconselhar. Então foi fi xado bem exatamente quanto o emprestador poderia exigir quando quisesse fazer valer seus direitos e quando poderia recorrer à ajuda do governo para isso. A lei partiu do ponto de vista de que ninguém era obrigado a emprestar dinheiro ou bens. Se um homem o fi zesse, então isso deveria ter por base a compaixão por aquele que estivesse premi-do pela necessidade, e não para querer enriquecer à custa dele. Por isso a nova lei era complacente para com o devedor e deixava ao emprestador pouca possibilidade para procedimentos injustos.

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O cargo de Maomé teve por conseqüência a ocupação integral de seu tempo com coisas exteriores, sobrando-lhe pouco tempo para aprofundar-se espiritual-mente. O anseio por esse aprofundamento espiritual era, no entanto, tão forte, que aproveitava cada momento para isso. Nessas ocasiões isolava-se completamente do mundo exterior e falava a sós com seres de outras planícies, assim lhe parecia. Não perguntava de onde vinham essas vozes que ouvia dentro de si; sabia que lhe trans-mitiam sempre luz e força, e isso lhe bastava. Não admitia qualquer pensamento tendente a procurar um nome para aqueles que o auxiliavam, pois isso se lhe afi gu-rava como uma profanação. Em tais momentos abençoados abria-se sem qualquer reserva e recebia força que lhe proporcionava grande felicidade, elevando-o muito acima de si mesmo. Desse modo viu muitas coisas que outros não reconheciam. Dessas visões levou um saber para a labuta diária, que também muitas vezes lhe foi útil para observar com mais clareza os atos e pensamentos dos homens.

Desde algum tempo via muitas vezes esgueirarem-se vultos de mau augú-rio em volta de Omar. Assim que fi rmava os olhos, desapareciam. Achou que de-via considerar isso como um aviso. Assim que essas advertências se tornaram mais freqüentes, falou com seu irmão Ibrahim, o único confi dente seu a esse respeito. Ibrahim, o xeque, achou necessário prevenir Ornar. Nem sempre Maomé podia estar perto do califa. Deus, porém, não motivava tais visões em vão.

- Justamente isso é que me desagrada, falar de tais coisas a Ornar, disse Ma-omé. Encarrega-te tu da advertência, irmão.

Ibrahim, entretanto, era de opinião que essa teria mais valor se viesse do grão-vizir. Então Maomé resolveu aguardar a primeira oportunidade que se ofere-cesse. Pediu a Deus que mandasse auxiliá-lo, de modo que não se tornasse necessá-rio para ele falar daquilo que era sagrado para a sua alma.

Quando, algumas horas depois, se dirigiu ao palácio principesco, onde Or-nar tratava de todos os negócios de Estado, embora não residisse nele, viu Maomé como um homem com traje esquisito entrava furtivamente por uma porta lateral.

Correu atrás dele e conseguiu prendê-lo. Encontrava-se em seu poder uma arma afi ada e de aspecto estranho.

Inicialmente o homem se recusou a dar informações sobre origem, nome e intenção, por mais minuciosamente que os juízes o interrogassem. Nesse momento Maomé entrou na sala onde havia entregue o prisioneiro às autoridades. Fitou o homem, que se desviou de seu olhar.

- Tu vens de Ali ben Abu Talib, disse com inusitada severidade.O homem estremeceu de susto; todos puderam ver que assim era.- Foste incumbido de assassinar o califa, soou a segunda e categórica afi rma-

ção do grão-vizir.O homem ajoelhou-se e estendeu os braços para cima, implorando.

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- Se contares onde se encontra Ali, então serás perdoado, prometeu Maomé.Trêmulo, o homem afi rmava que ele mesmo não o sabia. Era natural da

Pérsia e tinha recebido a incumbência na fronteira.- Estás mentindo, replicou Maomé, impassível. És árabe e tens íntima ligação

com Ali.Dito isso, dirigiu-se aos juízes:- Jogai-o no cárcere até que se resolva a falar a verdade. Com isso Maomé

deixou o aposento. Horripilou-se, pois reconhecera nesse degenerado seu irmão Ad-Din! Deveria ter mandado matá-lo imediatamente? Não o sabia e queria pri-meiramente pedir orientação de cima.

Entrementes foi a Ornar para comunicar-lhe a conspiração contra a sua vida. O califa escutou-o calmamente e então disse:

-Com tais coisas devo contar constantemente e também estou preparado para isso, Maomé. Enquanto Alá precisar de mim aqui sobre a Terra, não me será torcido sequer um fi o de cabelo. Se, porém, devo ir, então é indiferente para mim de que modo Ele me mande chamar. Agradeço-te por tua vigilância. Tens razão que não devemos descuidar-nos. Se, não obstante, um assassino conseguir alcançar-me, então é porque chegou minha hora.

A fi m de distrair os pensamentos de Maomé, participou-lhe nesse momento sua intenção de introduzir para si e para seus sucessores o título de “príncipe dos fi éis”: Emir aI Muminin.

Substituto do profeta, a falar a verdade, só poderia ser denominado aquele que dirigira o reino imediatamente após ele; em rigor, apenas Abu Bekr.

O grão-vizir deu a sua aprovação; seus pensamentos, contudo, estavam com o assassino e seu incitador. Queria obter clareza, e à noite deixou-se conduzir ao cárcere que acolheu Ad-Din. Sem acompanhamento dirigiu-se para dentro do pe-queno espaço, no qual o prisioneiro achava-se estirado sobre um leito duro.

- Irmão - dirigiu-lhe a palavra, e contra a sua vontade sua voz era meiga -, irmão, não endureças teu coração contra mim! Teu ato criminoso teria provocado uma grande calamidade para o reino. Omar é um bom príncipe, muito melhor do que Ali jamais o poderia ser. Vive de acordo com a vontade de Deus e também governa no mesmo sentido. Ajuda-me a protegê-lo contra a desgraça e então te pro-porcionarei a oportunidade para reconquistares a liberdade e uma vida feliz.

O prisioneiro levantou-se num salto, quando se viu reconhecido. Quis negar tudo descaradamente; no entanto, o timbre da voz de Maomé sensibilizou-o. Cho-rando, tapou os olhos com as mãos.

- Compreende-me, irmão! Soluçava. Nosso pai devia ser o príncipe depois da morte de Maomé. Era tão reprovável o fato de ele ter em tempo deixado que os administradores lhe prestassem juramento de fi delidade? Ele o fez com o único propósito de poupar ao país ulteriores agitações.

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Maomé interrompeu-o:- Se naquele tempo foi essa realmente sua razão, por que então não age agora

de modo idêntico?- Vê, libertei-o com o auxílio de Abdallah, porquanto não pudemos suportar

que nosso altivo pai fi casse no cárcere ou fosse julgado e talvez até morto. Desde então vivo em sua companhia e vejo diariamente como o rancor pela perda da so-berania lhe consome as forças. Amo o pai, irmão.

A voz de Maomé teve um tom comovido, quando pegou a mão do mais novo:- Isso não é um amor verdadeiro, que quer fazer um pecado por causa de ou-

trem, Ad-Din, explicou-lhe. Devias ter empregado toda a infl uência ao teu alcance para demover o pai de seus maus pensamentos. Um amor sincero ajuda o outro a subir; tu, porém, empurras o pai no abismo.

Admirado, o irmão olhava para o interlocutor. As palavras penetravam-lhe na alma, mas não sabia ainda que proveito podia tirar delas. Amavelmente Maomé esclareceu-lhe sua opinião, evidenciou-lhe o erro que representava o modo de pen-sar de Ali e levou-o ao ponto de reconhecer sua grande culpa.

- Então quero reparar, irmão, declarou ingenuamente. Irei novamente pro-curar o pai e fazê-lo ver tudo isso. Talvez me acredite.

Essas últimas palavras denotavam hesitação. Maomé sabia que qualquer ten-tativa de Ad-Din seria em vão.

- Antes fi ca aqui e coopera comigo, enquanto me dizes o que Ali está tra-mando e onde ele se encontra.

- Justamente o último não sei, disse Ad-Din. Provavelmente permanecerá escondido na fronteira norte do reino. Foi combinado que eu tentasse o assassinato. Caso fracassasse, então Abdallah, que agora se chama Hassan, deveria fazer a mes-ma tentativa. Ele é mais corajoso e jeitoso do que eu. Contra ele deves resguardar o califa, irmão. Pensativo, Maomé deixou o cárcere. O que deveria fazer? Recolheu-se ao seu modesto lar, porquanto não quisera ocupar o palácio paterno, e prosternou-se em oração diante de Deus.

Rezou demoradamente. Disse ao seu Senhor tudo quanto pensava e viven-ciava. Foi um alívio para seu coração poder fazê-lo. Não se lembrou de que Deus, o Onisciente, também sabia de tudo isso. Finalmente silenciou com um suspiro de alívio e esperou.

Vozes ressoavam à sua volta. Enfi m percebeu uma mais clara que as outras:“Maomé, sabes que Deus concedeu às criaturas o livre-arbítrio. Por isso, mui-

tas vezes não intervém para impedir algum mal, quando os homens assim o desejam. Ele sabe por que permite tais coisas.

Não perguntes e não cismes. Segue teu caminho assim como até aqui o tri-lhaste: íntegro e guiado pelos servos do Altíssimo. Teu caminho está próximo da meta

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fi nal. Conduzir-te-á aos jardins da eternidade. Prepara tua alma para o último passo e deixa os assuntos terrenais aos cuidados de outros.”

Animado por um sentimento indescritível, levantou-se Maomé, pois estava ajoelhado. Aproximou-se da janela aberta e olhou para fora, na escuridão da noite.

“Estou perto do alvo? Senhor, meu Deus, agradeço-Te!”Acalmado, procurou sua cama. Quis entregar tudo, a vida do emir e a sua pró-

pria, nas mãos de Deus. Foi tão consoladora a certeza de que a responsabilidade por aquilo que viria ou deveria vir não seria exigida dele.

Na manhã seguinte procurou Omar e informou-o sobre os planos de Ali, sem contudo dizer qualquer coisa que o assassino preso era seu próprio irmão.

- Vamos retê-lo na prisão ainda, opinou o emir, talvez atraiamos com isso o homem que ele chamou de Hassan. Se os guardas cuidarem, provavelmente poderão agarrá-lo em tempo.

Anteriormente o grão-vizir teria feito objeção. Agora fi cou apenas um pou-co curioso na expectativa do desenrolar dos acontecimentos. Depois disso pediu ao príncipe permissão para mandar buscar o jovem Omar, fi lho de Said. O jovem era também neto de Abu Bekr, muito inteligente e religioso. Talvez pudesse prepará-lo para ser seu sucessor.

- Manda chamá-lo, podemos precisar de gente boa ao nosso redor, consentiu Omar. Mas tu ainda és muito novo para pensares num sucessor. Muito antes disso um sucessor poderia desenvolver-se para mim nesse jovem.

Os dias seguintes passaram sem qualquer novidade. O prisioneiro quase fi cou esquecido pelo povo. Estava deitado no cárcere e estranhava por que não o julgavam.

Ornar ben Said apresentou-se em atenção ao chamado de Maomé. O belo e alegre jovem foi alvo da simpatia de todos. Esteve sob boa disciplina com Maomé. Os mandamentos do Islã e as revelações de Deus enchiam sua vida. E o que experimen-tava vivencialmente, procurava transformar em atos.

Impelido pelo saber sobre seu breve trespasse, Maomé introduziu o jovem mais rápido do que usualmente em todos os negócios administrativos.

Chalid regressava de uma expedição armada que empreendera com uma tro-pa de guerreiros escolhidos, na fronteira norte. Aquele que procurava não encontrou, mas conseguiu capturar diversos homens suspeitos, os quais, ameaçados de morte, confessaram estarem a serviço de Ali. Foram encarcerados por ora. Chalid relatou as notícias ao príncipe.

- Receio que nossas prisões se encham antes que possamos pegar o chefe da conspiração, suspirou Ornar. Quase desejo que o golpe que nos ameaça se realize logo!

Poucos dias após, Maomé vinha da mesquita, onde participou da devoção de sexta-feira, a qual nunca perdia.

Então um homem mal vestido chocou-se com ele. Não pôde ver o rosto do

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homem, aparentemente bêbado, mas como esse indivíduo desrespeitasse evidente-mente as leis do Corão, ordenou o grão-vizir que o segurassem.

Antes, porém, que pudessem pegá-lo, desapareceu. Conseqüentemente não podia estar embriagado. Admiraram-se disso e perguntaram a Maomé qual era a sua opinião. Nesse momento notaram que o grão-vizir estava pálido e começava a oscilar. Horrorizados, acudiram-no, e o jovem Omar apanhou-o nos seus braços.

Levaram o desmaiado ao palácio do governo, que era o mais próximo, e um médico imediatamente se encontrava presente. Nesse momento verifi cou-se que Ma-omé estava gravemente ferido. Uma punhalada tinha-o atingido perfi damente. O fe-rimento, aliás, não era propriamente mortal, contudo o médico tinha pouca esperan-ça de conservar a vida do grão-vizir. Foi chamado Ibrahim; também o emir veio.

Todos se encontravam perto da cama preparada às pressas, quando o ferido abriu os olhos. Entretanto, não reconheceu mais ninguém. Sua alma movia-se nos seus caminhos habituais em outras planícies. Um sorriso afável estampava-se em suas feições, que estavam ultimamente sempre tão sérias. Parecia ter uma bela visão.

“Avô”, balbuciava.Escutava atentamente. Instantes depois falou, mas como se não estivesse

consciente das palavras que pronunciava, como se um outro lhe ditasse.“Meu povo, ouve! Não traz proveito nenhum deturpar a Verdade, mesmo

que seja com os melhores objetivos. Por isso Abu Bekr teve que deixar a Terra, após tão curto período de governo.

Tu, Omar, perseveraste fi elmente naquilo que Deus revelou. Mas o povo tor-nou-se aqui e ali secretamente desleal. Procuram meios para esquivar-se do cum-primento dos mandamentos. Por esse motivo Deus quer deixá-los entregues às suas concupiscências. Também tu serás chamado, Omar!

Somente quando o povo tiver vontade de abandonar o mau caminho pelo qual enveredou, surgir-lhe-á outra vez um califa que poderá conduzi-lo rumo à ascensão!”

A voz tornou-se quase inaudível; as últimas palavras já não puderam mais entender. Os olhos fecharam-se; o grão-vizir estava morto.

Omar estava profundamente impressionado. Sem que ele o soubesse, o povo decaíra no pecado? Isso lhe doeu mais do que a morte do seu fi el.

Muito além de Medina houve grande lamentação, e o sepultamento de Maomé, o moço, no qual a maioria via o futuro emir, tornou-se uma comovente solenidade.

Do assassino não foi descoberto nenhum vestígio. Quando o emir Omar voltou da mesquita para casa, encontrou sobre sua mesa um bilhete:

“Cuida-te, emir! A próxima punhalada atingirá o teu coração”.Chalid, que o acompanhava, leu a ameaça. O chefe guerreiro quis imediatamen-

te mandar fechar todos os portões da cidade e revistar cada casa isoladamente. Cansado, Omar fez um aceno de desaprovação.

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- Meu tempo aqui na Terra chegou ao término: pude ouvi-lo recentemente. O que Deus, o Senhor, permite, não podemos nem devemos querer impedir.

Chalid fez a tentativa de explicar ao emir quão importante era justamente agora a sua vida.

Enquanto ainda falava, entrou o vulto escuro de um homem pela janela aberta; uma lâmina reluziu, e com um gemido de dor Omar caiu para trás. Antes que Chalid pudesse agir, o criminoso escapou pela janela.

Os gritos ressoantes de Chalid chamaram os serviçais, aos quais confi ou o ferido, enquanto ele próprio correu atrás do assassino; contudo, não pôde descobri-lo em nenhum lugar. Também os guerreiros e serviçais procuraram-no por toda parte; todos os esforços, porém, fi caram sem resultado. Entretanto, o califa Omar pôde partir da Terra sem ter recuperado a consciência.

Aturdido, o povo recebeu a notícia sobre a nova perda, e se Ali julgasse que com essas medidas de violência conseguiria o domínio no país, então viu-se amargamente desiludido. O povo exaltou-se contra ele e insistiu em que fosse escolhido quanto antes possível um sucessor de Omar.

Do conselho instituído para tais fi ns faltavam, no entanto, os dois melhores: Said e Maomé. Sobrava apenas Ibrahim, o qual devotava-se fi elmente a Maomé e ao Islã. Os outros membros do conselho não levavam a sério os princípios da doutrina e achavam que agora podia dominar um príncipe, sob cuja regência se pudesse gozar a vida.

Contra o protesto de Ibrahim, elegeram um velho de família conceituada, cha-mado Othman, o qual teve de fazer-lhes muitas promessas em troca da promoção que veio para ele completamente inesperada. Foi emir apenas no nome; no fundo, quem governava eram eles.

O primeiro ato governamental de Othman foi a promulgação da lei, dispondo que nenhum xeque poderia ser membro do conselho. Com isso Ibrahim foi neutraliza-do; um conselheiro mundano tomou seu lugar.

Omar foi declarado jovem demais para o cargo de grão-vizir. Foi transferido para um cargo inferior, e para primeiro conselheiro do emir foi nomeado um parente de Othman. O povo revoltou-se. Diversas províncias uniram-se para o levante. Chalid e Amir, que receberam ordem para empreender uma campanha contra os revoltosos, demitiram-se dos seus postos. Amir colocou-se ao lado dos administradores revoltados, enquanto Chalid se retirou para a solidão.

O país inteiro estava em agitação; em nenhuma parte havia a paz que dominara ditosamente durante anos.

Subitamente surgiram boatos de que Ali estava no país. Ele e seu fi lho mais velho Hassan instigavam o povo contra o governo de Othman. Então o velho emir fez chegar

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um recado a Ali, propondo que se aliasse a ele; ninguém precisava saber disso.Deveria subjugar para ele os rebeldes; depois ele, Othman, renunciaria e no-

mearia Ali para seu sucessor. Esse plano pareceu agradar a Ali; concordou e assumiu a tarefa sangrenta para o aparentemente dominante emir.

Este, no entanto, queria gozar sua vida pelo menos enquanto respirava. Ha-via muito, ainda sob o governo de Omar, possuía às escondidas um bem lotado ha-rém. Agora não fazia mais segredo disso diante do povo, dando assim um péssimo exemplo aos nobres.

Para precaver-se, revogou o mandamento de Maomé pelo qual um homem podia ter no máximo quatro mulheres. Estipulou que cada homem que possuísse meios sufi cientes, poderia ultrapassar à vontade esse número; deveria, contudo, pa-gar um tributo por toda ocupante a mais do harém.

Em vão Ibrahim admoestou contra tal procedimento. Não conseguiu nada junto ao novo partido do governo. Então associou-se estreitamente àqueles que co-mungavam com ele no mesmo ideal, sobretudo os ex-alunos de seu irmão Maomé. Seu irmão mais novo, Ali, uniu-se igualmente a ele, da mesma forma Omar.

Ibrahim enviou emissários a todas as partes do país, conclamando para a preservação dos bons costumes e da crença verdadeira.

Quanto mais lascivos se comportavam os partidários de Othman e quanto mais cruelmente lutavam os guerreiros aliciados por Ali, tanto mais os ibramitas ganhavam terreno.

Todo o reino, até então muito bem organizado, parecia em ebulição. Nin-guém sabia quem governava e ninguém teria sabido que era Othman o emir, se de tempos em tempos novas leis não provocassem a indignação da parte do povo que permanecia bem-intencionada.

O jejum não lhe agradou; julgou-se muito idoso para sujeitar-se a algum sacrifício voluntário. Depressa redigiu uma lei facultando àquele que por algum motivo razoável não pudesse jejuar, por se achar adoentado ou em viagem, pagar uma determinada quantia em dinheiro. Com isso então se compensaria o jejum.

As abluções freqüentes eram-lhe incômodas. Promulgou um mandamento, estipulando que aquele que desfrutasse de sufi cientes meios, friccionando o corpo com águas perfumadas, poderia fazê-lo despreocupadamente, em lugar de se lavar ou de se banhar.

Quase todos os meses era revogada uma parte dos mandamentos do Islã. O que o emir deixou intato, isso foi alvo de críticas por parte de seus partidários. Já ressurgiam aqui e acolá antiqüíssimas idolatrias, sem que ele tomasse realmen-te qualquer providência para coibi-las. Então aconteceu que Othman, que já não agüentava mais a vida desregrada, foi surpreendido pela morte numa orgia.

Sua morte foi horrível: soltava altos gritos e lutava contra um vulto que só

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ele via. Implorava que esse ser o deixasse morrer sossegado e que não exigisse pres-tação de contas dele.

“Tu, grande e luminoso ser”, gritava estridentemente, cada vez mais deses-perado, “não te conheço, nunca te vi! Portanto não tenho dívidas contigo. Toma minhas preciosidades, vende minhas mulheres, mas deixa-me em paz!”

Estupefatos, seus conselheiros o rodeavam. Ninguém ousou socorrê-lo. Era por demais evidente a interferência de uma mão superior.

“Não sabia que os mandamentos vieram de Deus”, exclamou o moribundo. “Jul-guei que fossem inventados por Maomé. Quero respeitá-los no futuro. Prometo-o!”

Seu corpo era agitado por convulsões. Então falava de novo. Isso prolongou-se por três noites e dois dias. A angústia do agonizante era insuportável; o medo dos que o rodeavam aumentava de hora em hora. Finalmente, na manhã do terceiro dia, teve seu desfecho. A última exclamação do moribundo foi:

“Ali é meu sucessor!”Os que o rodeavam fi caram surpresos. O que queria Othman de Ali?Nesse momento ele se encontrava no meio deles. Ninguém o viu chegar.

Estava ali, de pé, o único calmo entre os amedrontados. Com mão fi rme pegou as rédeas do governo. Ordenou imediatamente que dos fatos ocorridos na sala mor-tuária não fosse propalado nada entre o povo. Prometeu que cada um que lhe pres-tasse juramento de fi delidade poderia permanecer no seu cargo. Determinou tudo para a proclamação ao povo e para o sepultamento.

Então os partidários de Othman sentiram-se aliviados. Novas perturbações no país seriam provavelmente evitadas, mesmo que Ali, que já era um ancião, não governasse mais por muito tempo. Restauraria ele os mandamentos de Maomé?

Ali nem pensou nisso. Que os homens tratassem sozinhos do que necessita-vam para suas almas. Isso era assunto de cada um por si. Para ele o importante era apenas restabelecer a tranqüilidade no país. Como fora ele mesmo quem provocara a maior parte das agitações, tornou-se-lhe fácil conseguir o que a outros parecia impossível. O povo regozijou-se com a mão forte que o dominava e nem perguntou mais de quem ela era.

Ibrahim perseverou fi rme no seu cargo como pregador na mesquita do pro-feta, se bem que sentia ser do desejo de Ali que renunciasse.

Então o emir mandou chamar o fi lho a sua presença e ordenou-lhe que se demitisse do cargo. Ibrahim recusou-se. O emir deveria estar satisfeito por Ibrahim não exortar o povo contra ele.

Nesse momento Ali disse friamente:- Então terás a sorte do teu irmão Maomé. O punhal de Hassan é infalível.Ibrahim sorriu e deixou o aposento. No dia seguinte foi encontrado apunha-

lado na mesquita.

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Dois anos mais tarde uma mão assassina atingiu também o coração desleal de Ali. Seu fi lho Hassan pretendeu o trono, mas foi rejeitado por todos os partidos.

Depois disso seguiram-se califas: uns maus e outros um pouco melhores. Ninguém encontrou mais a Verdade Divina na doutrina dirigida completamente para coisas mundanas.

O Islã tornou-se implacável e sanguinário. Conquistou-se um mundo, mas somente porque o senhor das trevas apoderou-se dele como um excelente instru-mento seu.

Todo o sentimento intuitivo foi proscrito dos doutrinamentos; o intelecto e os cálculos interesseiros obtiveram a vitória.

Quando o Filho do Homem, a quem o profeta tem permissão de servir acolá nas Alturas, passar através daquelas plagas aviltadas, então também o Islã poderá le-vantar sua cabeça e desabrochar para uma vida nova no sentido desejado por Deus.

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