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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA Rodrigo Poreli Moura Bueno O SER DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: CINEMA E ONTOLOGIA NA FILOSOFIA DE MAURICE MERLEAU-PONTY Florianópolis 2015

O SER DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: CINEMA E … · de sua subjetividade e liberdade. Como veremos, o homem é um ser -no-mundo. A carne não é substância do mundo, porém, ela é seu

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

Rodrigo Poreli Moura Bueno

O SER DAS IMAGENS EM MOVIMENTO:

CINEMA E ONTOLOGIA NA FILOSOFIA

DE MAURICE MERLEAU-PONTY

Florianópolis

2015

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Rodrigo Poreli Moura Bueno

O SER DAS IMAGENS EM MOVIMENTO:

CINEMA E ONTOLOGIA NA FILOSOFIA

DE MAURICE MERLEAU-PONTY

Tese submetida ao Programa de

Pós-Graduação em Filosofia da

Universidade Federal de Santa

Catarina para obtenção do grau de

Doutor em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Marcos José

Müller

Florianópolis

2015

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A Deus, que nos ama incondicionalmente

À minha querida esposa Greize

A meus pais Eudes e Vera e aos irmãos Robison e Rógerson

A meu leal escudeiro Boris ...

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AGRADECIMENTOS

Ao professor orientador, Dr. Marco José Müller, por seu trabalho

seguro, competente e dedicado.

À minha estimada esposa Greize, pela motivação e carinho em todos os

momentos.

Aos amigos e aos colegas, pelas ocasiões de descontração e de reflexão.

Aos professores, aos colegas e aos funcionários do Programa de Pós-

graduação em Filosofia, por mais uma relevante etapa cumprida.

À CAPES, pela bolsa a mim concedida, importante na realização deste

trabalho.

À parceria da Universidade Federal de Santa Catarina com a

Universidade Federal do Tocantins (Dinter em Filosofia), pela

possibilidade de realização deste trabalho.

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Les animaux peints sur la paroi de Lascaux n'y sont pas comme y est la fente ou la

boursouflure du calcaire. Ils ne sont pas davantage ailleurs. Un peu en avant, un peu

en arrière, soutenus par sa masse dont ils se

servent adroitement, ils rayonnent autour

d'elle sans jamais rompre leur insaisissable

amarre. Je serais bien en peine de dire où est le tableau que je regarde. Car je ne le

regarde pas comme on regarde une chose, je

ne le fixe pas en son lieu, mon regard erre en lui comme dans les nimbes de l'Être, je vois

selon ou avec lui plutôt que je ne le vois.

Maurice Merleau-Ponty

O cinema consiste simplesmente em colocar

coisas diante da câmera. Um poeta chamaria

isto de “o olhar das coisas”. Não o olhar

humano das coisas, mas, o olhar das coisas

mesmas. Aqui, a criação artística não

significa pintar a própria alma nas coisas,

porém, pintar a alma das coisas.

Jean-Luc Godard

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BUENO, Rodrigo Poreli Moura. O Ser das Imagens em Movimento:

Cinema e Ontologia na Filosofia de Maurice Merleau-Ponty. 2015. 247

f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Centro de Filosofia e Ciências

Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

RESUMO

Neste trabalho, discutimos o pensamento filosófico de Merleau-Ponty

concernente ao cinema como arte ontológica, como experiência de

existência configurada na visibilidade, no corpo e na carne e em

propagação sobre o outro e também sobre o mundo. Para o autor

estudado, as análises de um objeto em geral, são aplicadas igualmente

ao cinema, enquanto este é um objeto a ser percebido, sendo o filme

compreendido como a arte de tornar visíveis e tangíveis objetos e

comportamentos. Vemos “segundo” e “com” as imagens, já que há um

entrelaçamento entre a minha carne, a carne do mundo e a visibilidade,

constituindo, de fato, uma precessão recíproca da visão e do visível. O

ser das imagens em movimento é o ver que não mostra unicamente o

que é, mas mostra o que pode surgir, a imagem latente que pode nascer

da interação, da ligação íntima com um tempo e um espaço

transfigurado por sua ação. Por essa razão, a arte cinematográfica é

“vidência”, ou seja, é o mundo que se torna sua própria imagem e não a

imagem que se torna o mundo. O cinema não é representação, ou

melhor, ele é símbolo e não signo, não remete a nada que não a ele

mesmo, o que faz do filme um sistema carnal. Dessa maneira, o cinema

é uma arte autônoma expressiva; ele produz sua própria essência, seu

próprio pensamento, sua própria ontologia.

Palavras-chave: Cinema e Pensamento. Carne e Ontologia.

Fenomenologia e Percepção.

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BUENO, Rodrigo Poreli Moura. The Being of Moving Images:

Cinema and Ontology in Maurice Merleau-Ponty's Philosophy. 2015.

247 f. Thesis (PhD in Philosophy) – Centro de Filosofia e Ciências

Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

ABSTRACT

In this work, we discuss the Merleau-Ponty's philosophical thought

concerning the cinema as ontological art, like existential experience set

in visibility, in body and flesh and in the spread on the other and on the

world too. For the focused author, the analysis of an object in general,

are also applied to the cinema, while it is an object to be perceived.

Then, the film is understood as the art of making visible and tangible

objects and behaviors. We see “according” and “with” the images, since

there is an intertwining of my flesh, the flesh of world and the visibility,

constituting, in fact, a reciprocal precession of the sight and the visible.

The being of moving images is the seeing that not only shows what it is,

but it shows what can arise, the latent image that can born from the

interaction of the intimate connection with a time and a space

transfigured by his action. For this reason, the cinematic art is

“voyance”, that is the world becomes its own image, not the image that

becomes the world. The cinema is not representation, or rather it is a

symbol and no sign, it does not refer to anything other than itself, which

makes the film a carnal system. Therefore, the film is an autonomous

expressive art; it produces its own essence, its own thought, its own

ontology.

Keywords: Cinema and Thought. Flesh and Ontology. Phenomenology

and Perception.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................... ..17

1 A ARTE CINEMATOGRÁFICA EM BASES REFLEXIVAS . ..29 1.1 FILME, FENOMENOLOGIA E ONTOLOGIA: AUTORES E

CONCEITOS ............................................................................................... ..29

1.2 O CINEMA É UM PENSAMENTO .................................................... ..50 1.2.1 Gilles Deleuze ................................................................................... ..50 1.2.2 Jean-Luc Godard ............................................................................. ..62

1.3 NARRATIVA E CINEMA ................................................................... ..65

2 MERLEAU-PONTY E O FILME: NATUREZA E

SIGNIFICAÇÃO .................................................................................. ..81 2.1 CINEMA E PERCEPÇÃO ................................................................... ..81 2.1.1 Comportamento e Fenomenologia .................................................. ..82 2.1.2 A Obra Cinematográfica enquanto Gestalt .................................... ..90 2.2 CORPO, VISÃO E SENTIDO ............................................................. 111

3 DISCURSO, ESTÉTICA E LINGUAGEM ................................... 127 3.1 PINTURA E FENOMENOLOGIA ...................................................... 127 3.2 LEITURA E EXPRESSÃO .................................................................. 133

3.3 LIBERDADE E TEMPORALIDADE .................................................. 149

4 CINEMA, SER E A NOVA PERSPECTIVA ONTOLÓGICA ... 163 4.1 CARNE, MUNDO E VISIBILIDADE ................................................. 163 4.1.1 Quiasma e Rizoma ........................................................................... 170

4.2 FILME, IMAGEM E O VISÍVEL ........................................................ 182

4.2.1 Merleau-Ponty e Godard ................................................................. 192

4.2.2 As Imagens-Carne de: “Zidane: um retrato do século XXI” ....... 202

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 213

REFERÊNCIAS ................................................................................... 221

ANEXO ................................................................................................. 235

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INTRODUÇÃO

Esta tese tem por escopo central caracterizar e explorar algumas

das principais características da problemática ontológica da filosofia de

Maurice Merleau-Ponty no que concerne à ideia de arte cinematográfica.

O foco principal de nosso trabalho será mostrar de que modo as imagens

fílmicas atuam sobre os nossos sentidos como fragmentos em

movimento que reintroduzem o corpo, a noção de carne e de

temporalidade nos atos de percepção, de visão e de expressão. Esse

relevante aspecto implica uma mudança no estatuto da representação,

sendo que o cinema constitui um evento único e original de

interrogatório perceptual e visual acerca das imagens, conectando

diretamente olhar e expressão, carne e pensamento.

Essas imagens, de fato, são a própria visibilidade, a aparência do

mundo, no sentido fenomenológico do termo. Especialmente no caso de

Merleau-Ponty, luz, iluminação, sombras, reflexos, cor, todos os objetos

que se buscam são objetos não totalmente reais, isto é, eles têm apenas

existências visuais. O que eles fazem, na verdade, é suscitar o ser das

coisas e dos seres, enfim, o que eles fazem compõe o talismã mundano e

carnal, a alquimia cinematográfica, cuja força singular nos faz ver o

visível e o invisível.

Dessa maneira, pensamos a imagem, sem o peso da

representação, como um dado a priori. Carne e matéria se incorporam

em qualidades a partir das quais, damos a conhecer um mundo que nos

era estranho, apesar de convivermos diariamente com ele. A partir

dessas considerações, podemos indagar: o que são as imagens fílmicas?

Como o filme mostra, ou como vemos, por exemplo, a vertigem, o

prazer, a dor, o amor, o ódio, a vida, a morte, com uma precisão, uma

exatidão, uma operacionalidade cirúrgica, uma curiosidade, certa magia,

que o mundo das ciências e o mundo percebido cotidianamente por nós

não saberiam conhecer?

Inicialmente, no que tange ao cinema, é preciso compreender

que, em Merleau-Ponty, procura-se alcançar uma expressão do homem

concreto. Pensar, para ele, significa mergulhar no mundo sensível, em

um sistema carnal, habitá-lo, interrogá-lo e nunca o abandonar. A arte é

expressão autônoma do mundo concreto e é esse mundo que a filosofia

explora ou desvela. Assim, é o contato com o mundo e a presença nele,

muito anterior àquilo que se sabe sobre o mundo, que a filosofia de

Merleau-Ponty tenta empreender.

No cinema e na pintura não se oferece uma imagem do mundo

“como ele é”, mas “vindo a ser”, pois é o mundo que se torna imagem e

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visibilidade. Como seres encarnados nos envolvemos com o mundo e o

compreendemos de maneira incompleta. Nesse sentido, há um elemento

temporal que conduz às artes e ao indivíduo para a abertura ontológica

de sua subjetividade e liberdade.

Como veremos, o homem é um “ser-no-mundo”. A carne não é

substância do mundo, porém, ela é seu princípio de visibilidade, um

elemento do ser. Entre a minha carne e carne do mundo há uma relação

quiasmática na qual não há fusão, mas reversibilidade entre o vidente-

visível, tocante-tocado, sentiente-sensível. Essa reversibilidade

proporciona ainda uma imbricação (empiètement) e uma transposição

(enjambement) entre visão e tato, visível e tangível.

Dessa maneira, o cinema manifesta esses conceitos, pois a arte

fílmica atua sobre a questão do pensamento sob certa forma de

visibilidade que exprime a minha carne e carne do mundo. A imagem

fílmica não é uma segunda coisa, um decalque da realidade; nessa

imagem há uma precessão recíproca, pois ela evoca uma existência

visual do tangível e uma existência háptica do visual. Essa conceituação

de visibilidade está no coração da ontologia de Merleau-Ponty.

Podemos dizer que, desde suas primeiras obras, como “A

estrutura do comportamento” (1942) e “Fenomenologia da percepção”

(1945), Maurice Merleau-Ponty já se preocupava em formular uma

filosofia que se ligasse a uma forma de experiência do mundo carnal.

Essas obras dizem respeito a um projeto filosófico sobre a lógica

perceptiva, na medida em que se lançam em direção à experiência

vivida, tendo como lugar de reflexão fenômenos que não se reduzem às

explicações que as ciências, em geral, utilizam para explicar as

experiências perceptivas do sujeito no mundo.

Ainda nesta esteira, em entrevista concedida em fevereiro de

1958, Merleau-Ponty (2000, p. 287) afirmava que a vida filosófica não

deve se destacar da vida cotidiana e que o filósofo pensa o mundo de

toda a gente, expressão que se refere à necessidade de a filosofia

dialogar com a cultura, com a experiência vivida e com as produções do

conhecimento. Esse autor irá insistir na abertura da filosofia à vida, à

ciência, à historicidade e à subjetividade.

A sua conferência pronunciada no Institut des Hautes Études

Cinématographiques (IDHEC), em 1945, e intitulada “O cinema e nova

psicologia” já lançava a problemática entre filosofia, cultura e cinema.

Nessa conferência, o autor coloca o essencial questionamento: qual a

afinidade entre filosofia e cinema? Haverá uma interposição da filosofia

no surgimento do cinema, ou terá sido o cinema a persuadir a própria

virada filosófica no século XX? Para ele, o mais acertado será assegurar

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a recíproca influência originada pelo que será um compartir geracional

em termos do sujeito e do mundo (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 116-

117).

Esse filósofo afirma que a beleza da arte e, consequentemente, do

cinema consiste em mostrar como alguma coisa se põe a significar, não

por menção a ideias já desenvolvidas e adquiridas, mas pela disposição

temporal e espacial dos elementos. Expõe, também, que um filme se

constitui de semelhante maneira que uma coisa perceptiva. No entanto,

para que uma intenção como essa possa ser posta em prática, é

indispensável reconhecer que as tarefas, por exemplo, do cinema, da

literatura e da filosofia não podem mais estar apartadas, porque a

expressão filosófica pode assumir as mesmas ambiguidades e

preocupações que a arte cinematográfica. A propósito, o objetivo do

filósofo sempre foi recolocar o sujeito no berço do sensível

(MERLEAU-PONTY, 1966, p. 48-49).

É neste cenário, no começo dos anos de 1950, que Merleau-Ponty

começa a desenvolver uma espécie de tarefa filosófica que tenha como

centro uma ontologia mais elaborada. Em 1952, em seu curso nominado

de “O mundo sensível e o mundo da expressão”, o filósofo francês

pretende já constituir as linhas mestras de seu estudo ontológico, apesar

de ainda não o chamar dessa forma. Em todo caso, podemos assinalar já

nesse curso os fundamentais aspectos de sua ontologia posterior. Ali,

Merleau-Ponty (1968, p. 11-12) lastima que as filosofias de seu tempo,

não obstante percebessem a singularidade da atividade perceptiva diante

das categorias clássicas, não retiravam dela uma renovada noção do ser

e da subjetividade.

Segundo o ponto de vista de Renaud Barbaras em sua obra De L’Être Du Phénomène: sur l’ontologie de Merleau-Ponty, a noção de

ontologia do autor estudado só se consolida em “O visível e o invisível”,

de maneira que os textos que a precedem não podem ser evocados senão

como caminho, que até lá conduziram. Merleau-Ponty estaria

continuando, em “A prosa do mundo” (1952), o trabalho empreendido

em sua obra “Fenomenologia da percepção”, sendo que esta pode ser

considerada como um trabalho preliminar que esboça a problemática da

ontologia merleau-pontiana (BARBARAS, 1991, p. 12).

Para Marcus Sacrini Ferraz (2009, p. 267-268), há maneiras

diferentes de compreender as ontologias descritas na “Fenomenologia da

percepção” em “O visível e o invisível”. Ele mostra que, na primeira

obra, eram as capacidades perceptivas subjetivas que organizavam a

manifestação do Ser, já na última, essas mesmas capacidades terão sua

gênese nos padrões de organização inerentes ao mundo. Dessa maneira,

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o Ser não se circunscreve mais àquilo que se fenomeniza para um sujeito

encarnado, porque a própria percepção é, agora, parte de um processo de

manifestação sensível inerente ao próprio ser. Aqui, a subjetividade

deixa de estar no centro organizador da manifestação e podemos

estabelecer uma familiaridade ainda mais fundamental entre o sujeito e o

ser.

Logo, atesta-se, ao longo da obra de Merleau-Ponty, um

sucessivo alargamento do domínio em que se aspira obter uma relação

com o ser: basicamente, versava-se apenas a respeito do mundo

percebido, porém, depois, igualmente se adicionou a investigação da

natureza em geral e, finalmente, os procedimentos histórico-culturais

nos quais a vida humana está abarcada. O acréscimo é bem

considerável, tanto que Merleau-Ponty (1996, p. 37) começa a abordar

sua ontologia, no curso “A filosofia hoje”, de 1958/1959, como

“consideração do todo e de suas articulações”. Isso leva à importância

de que todos os campos do conhecimento humano possam ser

investigados, já que há uma relação com composições ontológicas não

compreendidas pelas divisões clássicas do pensamento.

Neste sentido, Merleau-Ponty (2006, p. 232-233) lembra que só é

admissível chegar ao ser, por meio dos seres ou entes, ou seja, é

indispensável buscar certos domínios ônticos para que específicos

aspectos ontológicos se façam perceber. É por essa razão que o autor

pondera acerca do cinema e da pintura e também sobre alguns eventos

históricos em seus cursos e textos finais. Ele entende que as atividades e

as matérias não filosóficas atuais estão relacionadas com o ser bruto que

a filosofia poderia explicar. É a apreciação das implicações dessas

atividades e disciplinas que permite mencionar, como tese filosófica

positiva, os aspectos das extensões compositivas do ser.

Dessa forma, o diálogo com o cinema e com outras artes

provocou deslocamentos na filosofia de Merleau-Ponty. A exploração

da pintura, da poesia, das imagens do cinema fornece uma nova visão do

tempo e do homem, bem como outras maneiras de perceber a ciência e a

própria filosofia. Em obras como “Signos” (1960), “O olho e o espírito”

(1961), “O visível e o invisível” (1964), o deslocamento de uma

filosofia da consciência para uma profunda meditação, por exemplo,

sobre o corpo e sua experiência sinestésica, será expressiva de uma nova

maneira de fazer filosofia.

Lembramos que as considerações a respeito das artes em

Merleau-Ponty estão mais fortemente ligadas à pintura, sobretudo com

“A dúvida de Cézanne” e com “O olho e o espírito”, textos dedicados a

essa arte pictórica, mesmo que a escultura, o teatro ou o cinema

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apareçam como temas argumentativamente entrelaçados. A ênfase

atribuída à pintura está presente no autor francês como algo mais

posterior na sua filosofia, em que se distancia de uma análise sobre a

percepção para se acercar mais de uma ponderação a respeito da visão

(VIEGAS, 2010). Já concernente ao cinema, aparecem determinadas

menções, como já foi dito, em “A Fenomenologia da percepção”, mas

há mais ênfase sobre o tema na conferência de 1945, “O cinema e nova

psicologia”, no capítulo “A arte e o mundo percebido”

de Causeries (1948) e nas aulas de estética de 1952/1953 (Résumés de

cours. Collège de France, 1952-1960).

A partir desses referenciais iniciais, como compreender o papel

que o cinema possui na sua filosofia? Stefan Kristensen (2006, p. 123;

135) argumenta que, se Merleau-Ponty percebe a arte pictórica como

linguagem que expõe o início do nosso contato com o mundo, o cinema

é o que faz tornar visível o invisível das nossas afinidades com o outro.

Nesse caso, ambos, a pintura assim como o cinema, admitem um

diálogo entre visível e invisível, possibilitando compreender o

procedimento de tornar visível o invisível. Se a pintura é apreciada

especialmente por manifestar o invisível da natureza ou das coisas, o

cinema admite exibir o invisível da existência humana e seus objetos

sócio-históricos.

Ver é, por conseguinte, adentrar em um mundo de seres que se

manifestam, e eles não se manifestariam se não pudessem estar

ocultados dos outros ou detrás de alguém. Em outras palavras, olhar é

vir habitar o mundo e dali perceber todas as coisas de acordo com a face

que elas volvem para ele. Mas, no ponto em que também podemos vê-

las, elas continuam residências abertas ao olhar e, localizada

virtualmente nelas, notamos, sob distintos ângulos, a intenção

primordial da visão atual (MERLEAU-PONTY, 2006a, p. 104-105).

Na filosofia de Merleau-Ponty (2006a), a percepção é direta,

porque nela já há a significação. A questão é que alguma coisa apenas

existe para o sujeito se começar a fazer sentido em seu mundo, em sua

vida, se for experimentado, e, por adicionar-se a seu mundo, ele pode

procurar experiências prévias para significações atualizadas e especiais.

Outra fisionomia da sua filosofia é que toda imbricação do homem com

o mundo é “estesiológica”, isto é, dá-se por meio do corpo, dos sentidos,

da estesia. E, além disso, o autor assinala a comunicabilidade dos

sentidos como preceito para a percepção do mundo, o que ele nomeia de

sinestesia.

Assim, torna-se imperativo pensar sobre a percepção no cinema

para, após isso, ponderar sobre a significação possível na reprodução

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fílmica. Se trabalharmos na compreensão de que a percepção é direta,

indo ao encontro do pensamento de Merleau-Ponty, escolhemos

compreender que aquilo que é reproduzido no filme já possui

significação para o indivíduo, mesmo que essa percepção venha

conectada à consciência de que o que se apreende é uma probabilidade

representativa do que se significa.

Podemos afirmar que essas características são reforçadas no

pensamento do conhecido teórico de cinema André Bazin. Esse autor é o

mais significativo representante da noção de que a arte cinematográfica

se fundamenta no seu domínio ontológico. Ele vem realçar a noção de

que a singularidade do filme não está na habilidade de utilização da

montagem, porém no seu contrário, isto é, na adequação modelar da

imagem fílmica ao significado da realidade (BAZIN, 2014, p. 28-29).

Essa característica ontológica marcou, nos anos de 1950, o fazer teórico

e prático do cinema, influenciando intensamente, por exemplo, o

aparecimento de movimentos cinematográficos como a Nouvelle Vague

francesa e o Cinema Novo brasileiro.

Bazin vai racionalizar esse aspecto ontológico não somente como

uma razoabilidade do cinema, mas como o cerne a que a arte fílmica

permanece atrelada. No cinema, diferentemente de outras artes, não há

um afastamento do mundo, uma disparidade no que concerne à

“physis”; o filme é a condição estética da matéria. Por essa razão, a

partir dessa noção, no cinema, há uma mágica autêntica que compõe o

fundamento para o adequado realismo, tanto mais fidedigno quanto mais

o fato é visto (ou se julga visto), através do enquadramento

cinematográfico que permanece total, reverenciado, intocável, pois a sua

mera apresentação é reveladora, o que autentica e salva a ilusão original

(XAVIER, 2005, p. 70).

Observamos que alguma coisa dessa apreciação ontológica do

cinema se localiza já no que o estudioso Ismail Xavier (2005, p. 54)

chama de “realismo crítico”, no momento em que ele busca restabelecer

a realidade à nossa atenção, não por tecnologias microscópicas, como se

raciocinava no princípio do cinema, mas dando-nos a apreender a

realidade cotidiana, fazendo visível e audível o que, na percepção do dia

a dia passa despercebido.

Trata-se de um realismo disposto a arranjar os acontecimentos

narrados em perspectiva e capaz de estabelecer suas relações de maneira

a que se dê um resultado peculiar. Aqui, a imagem e o som não se

ajustam com a intenção de exibir algo, porém com o objetivo de denotar

algo, em nome de uma apreensão do seu sentido sócio-histórico

(MONTEIRO, 1996, p. 66-67).

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A partir desse viés, as afinidades entre o visível e o invisível, o

intercâmbio entre o dado imediato e suas significações torna-se cada vez

mais entrelaçado. O decurso de imagens elaboradas pela montagem

fornece relações atualizadas a todo momento e somos, na maioria das

vezes, induzidos a estabelecer amarrações propriamente não existentes

na tela. A montagem indica e nós fazemos a dedução. Os sentidos se

entrosam menos pela energia de isolamento e mais por entusiasmo de

contextualizações para as quais a arte cinematográfica possui um livre-

arbítrio apreciável (XAVIER, 1997, p. 367).

Resulta-se, aí, a declaração de que a visão e o mundo convivem

em uma ambiguidade sem solução, ou seja, somente nos identificamos

no nosso pertencimento ao mundo de uma maneira imprecisa, “estar-no-

mundo” como “viver-no-mundo”, e o cinema é, aqui, exemplar. Por

meio da arte fílmica, há um reendereçamento da visão que vê (vidente) a

si mesma enquanto visível, permitindo entender, por um sentido, que o

mundo em si e para mim é um somente e, por outro, que é uma

faculdade de justaposição ao outro tal como ele é em si, atenuando a

separação entre vidente e visível (VIEGAS, 2010).

Dessa maneira, a autora Suzana Viegas (2008, p. 43) destaca no

pensamento de Merleau-Ponty quatro ideias-chave a respeito do cinema,

influenciadas, em maior medida, pela teoria da gestalt, pelo escritor

André Malraux e pelo cineasta Roger Leenhardt1. São elas: a adesão

entre a percepção e o cinema em que este último é um objeto percebido

modelar; a afinidade singular entre visível e invisível; a reversibilidade

entre vidente e visível; por fim, a arte fílmica como forma temporal que

apenas a si própria remete. Todas essas ideias transportam em si fortes

cargas ontológicas, mostrando os traços essenciais entre cinema e

filosofia.

Primeiramente, a noção de gestalt é a ampla inspiração da

exposição que Maurice Merleau-Ponty faz da arte cinematográfica e, por

isso, inicia por diferenciar a psicologia clássica da teoria da gestalt, por

meio da apreciação da percepção do mundo, a partir de exemplos

palpáveis da audição e da visão. Segundo a psicologia clássica,

compreendem-se os objetos da percepção juntando ou reorganizando as

inúmeras partes, o painel do qual é elaborado o campo perceptivo.

1 A grande influência para a reflexão sobre o cinema foi não só de André Malraux e as

análises de base psicológicas sobre a técnica cinematográfica e as categorias da imagem,

som, montagem, etc que Malraux expõe em L'esquise d'une psychologie du cinéma,

escrito em 1940, mas também de Roger Leenhardt e o texto escrito para a Revista

Esprit,em 1936, chamado Le rythme cinématographique.

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Inversamente a esta teoria, analítica e intelectual, do homem diante do

mundo e dos outros, a psicologia gestalt assegura a percepção do todo

como forma integral de exposição do “estar-já-no-mundo” (VIEGAS,

2010).

Dessa forma, a percepção é contígua e analítica, pois se está, de

maneira inevitável, imerso no mundo, porque, do ponto de vista de

Merleau-Ponty, estar-no-mundo é viver-no-mundo. A percepção natural

diferencia-se da percepção analítica por não apartar os elementos, por

não compor um painel de elementos sobrepostos, antes assegurando a

composição de um código de configurações do todo, da forma sobre o

fundo (VIEGAS, 2008, p. 32-33).

A percepção analítica, que dá o valor absoluto dos elementos

isolados, corresponde, portanto, a uma atitude tardia e excepcional, é

aquela do cientista que observa ou do filósofo que reflete. A percepção

das formas, no seu sentido geral de percepção de estrutura e de conjunto

ou de configuração, pode ser considerada como o modo de percepção

espontâneo. Assim, o cinema, como uma “nova psicologia” evidencia o

caráter sinestésico da percepção.

Podemos dizer, então, que a atenção do filósofo pelo cinema,

enquanto objeto percebido, baseia-se na sua contribuição para a

fenomenologia da percepção e do olhar e também na probabilidade de

uma justaposição em relação aos outros. A circunstância em que o

espectador acede aos dados dos sentidos será de grande relevância,

porque, tal como no princípio de formatação da percepção em que o

todo precede as partes, também o filme é percebido como um todo.

Som, imagem, diálogo, música e montagem são um todo, ou seja, uma

forma de temporalidade (VIEGAS, 2010).

Por essa razão, a visão de quem percebe torna-se uma visão

cinematográfica, uma visão que combina e convive com a própria arte

fílmica. No cinema, o olhar é reendereçado a si mesmo como olhar

visível. A potencialidade filosófica do filme será a de revelar de que

maneira se está mergulhado no mundo e nos outros, de que modo a

própria intencionalidade desponta e torna-se visível através dos recursos

cinematográficos.

Essas características remetem à noção de corpo, que pode ser

entendido como espaço e luz para a visão. O ato de ver se realiza no

mundo por meio da corporeidade, sem destituir da visão sua

especificidade de ser visão. Ela é em si mesma, mas sempre em

consonância com o corpo. É relevante frisar que não é o espaço como

unidade de relações, conforme compreendia René Descartes, que

interessa a Merleau-Ponty. A sua atenção está voltada para o movimento

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da corporeidade/mundo que, por sua vez, examina as especificidades do

movimento da visão e do corpo.

A experiência corpórea, olhar e ver, expressa um pensamento em

ação, em movimento na experiência vivida. Quando elege a visão em

suas reflexões, Merleau-Ponty evidencia o olhar inerente à corporeidade

e retoma a experiência da visão e do corpo na experiência do

pensamento como vivência da corporeidade e da carnalidade. Logo, o

cinema possui a capacidade de manifestar o interior do corpo vivido por

meio do exterior do corpo visto, como nas emoções reproduzidas pelos

atores e visíveis nos seus sinais e atitudes. É a exterioridade dos corpos,

mas, sobretudo, os comportamentos e os gestos, é uma revelação de uma

concordância intencional, de uma consciência que apalpa as coisas e os

outros (VIEGAS, 2008, p. 41).

No que diz respeito à questão da visibilidade, Merleau-Ponty

(2006, p. 162) profere que “eu, o vidente, sou também visível”. Ele

lança mão do termo quiasma para se referir a esse relacionamento de

intersecção ou de reversibilidade entre o vidente e o visível, o tocante e

o tocado, o falante e o falado e que, na obra “Fenomenologia da

percepção”, aparece como composição ontológica da oposição

reversível de sujeito-objeto, interior-exterior. É o entrecruzamento ou

intersecção do olhar em que me observo do exterior, “é preciso que

aquele que vê não seja ele próprio estrangeiro ao mundo que vê”

(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 175).

A reversibilidade pode ser levada em conta, já que é a imbricação

entre o tocante e o tangível, entre o vidente e o visível. É uma estrutura

de reversibilidade que manifesta a dificuldade de assimilação simultânea

dos dois estados, passivo e ativo, ver e ser ouvido, pois, nessa

experiência, existe continuamente uma lacuna ou uma distância entre o

olhar que vê e se inclui visto. No exemplo de Merleau-Ponty (2006a, p.

201), a mão direita que apalpa a mão esquerda não pode ser apalpada, já

que, ao ser ativa, não pode, concomitantemente, ser passiva, porque, ao

ser apalpada, a mão direita não é um objeto, e sim a reversibilidade

reflexiva do seu toque.

Ao analisar essa questão, notamos que há uma ligação que

circunvizinha os dois lados, isto é, as naturezas do ser vidente e visível;

contudo não é possível presumir quem observa primeiro ou se o corpo se

percebe antes mesmo de olhar os objetos. A permanente sintonia do

vidente e do visível é inteligível pela sua forma sensível, que é

retribuída por uma afinidade entre o visível e as coisas. Próximos, o

corpo principiado no mundo sensível encontra, na exterioridade, uma

interioridade e, na interioridade, a exterioridade; todavia não estão

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desunidos, pois os extremos se tornam compreensíveis, partes do

próprio todo. Assim, o corpo atua – possui a capacidade de ver – e seu

ato assenta sobre si mesmo.

O corpo, indivisível, permitindo ser percebido não somente como

aparência, demonstra como a visão com respeito ao corpo é diferente;

decisivamente, o corpo no seu ser, na sua essência, atravessa o mundo,

devido a certo grau de afinidade. Portanto não existem balizas que

constranjam o corpo a ser vidente e o mundo a ser o visível. A carne do

mundo imbrica, transporta o corpo e as coisas, transforma em si as

parcelas comuns dos outros seres, outorgando ao corpo o direito de

conviver com as coisas como se ficassem presas na mesma conjuntura.

A carne não é simplesmente uma conexão, não prediz duas parcelas

afastadas, mas ampara o entrelaçamento do corpo e das coisas, já que é

um elemento do ser.

Desse modo, a arte, nomeadamente, o filme, é o lugar de encontro

do outro e de si próprio, porque o olhar possui a habilidade táctil de

abarcar o mundo e os outros, de apalpar o visível. A reversibilidade

entre o cinema e a sua experiência denota que, nessa arte, o ato de ver

torna-se visível nesse procedimento que não é dialético, mas

coincidente. Na arte fílmica, o espectador não só apreende e entende as

experiências dos outros como, de uma maneira reflexiva, nota e percebe

a sua própria percepção e compreensão. Trata-se de uma imbricação

entre a experiência direta, percepção contígua das experiências dos

outros, e a experiência indireta, percepção intercedida pelas experiências

dos outros (VIEGAS, 2008, p. 35).

Além desses aspectos, o cinema é uma configuração temporal ou

“unidade melódica” de imagem e som. Se, por um viés, o cinema é uma

amostra visível de tudo o que a nova psicologia gestalt expõe acerca da

percepção em geral, por outro, a psicologia pode colaborar para a

apreensão do que está conexo à percepção cinematográfica. “Um filme

não é uma soma de imagens, porém, uma forma temporal” (MERLEAU-

PONTY, 1983, p. 110), isto é, uma coesão temporal visual e sonora, o

que induz Merleau-Ponty a mencionar as conhecidas experiências de

Lev Kuleshov nas quais este autor soviético, utilizando o mesmo plano

do ator Mosjúquin, no entanto, através da montagem de diferentes

sequências, leva o espectador a ver, em sua face, distintas emoções, de

acordo com o decurso das imagens.

Na concepção de um filme como configuração temporal, não se

trata somente de incorporar som a imagens antecipadamente capturadas

ou o inverso, porquanto a relação entre esses dois elementos é essencial.

Merleau-Ponty advoga a verossimilhança narrativa e a sincronia

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imagem-som de um filme com o objetivo de instituir uma realidade

inteiramente nova, ou seja, se não fossem exibidos em uma tela, não se

teria o ensejo de observar esses fatos na realidade. O autor assevera

ainda que um filme pode expor uma história por imagens e sons,

igualmente como o romance o realiza pelas palavras; o cinema, então, é

uma arte visual e narrativa e, como implicação, assegura que o escopo

da arte cinematográfica não será a de produzir ideias. Não existe uma

realidade para além da tela de projeção, só há uma para ali, onde se

localiza o espectador no desenvolvimento do olhar vidente e visível. O

que é inerente ao filme é a sua visibilidade (MERLEAU-PONTY, 1983,

p. 112-115).

É importante destacar ainda que a questão da visibilidade vincula-

se com temporalidade e esta, por sua vez, relaciona-se com o sujeito e o

mundo. O tempo concentra duas dimensões, sujeito e objeto, no sentido

de que existiria, então, um “tempo sujeito” e um “tempo objeto” e é por

essa razão que ele se torna fundamental para a compreensão das relações

entre sujeito e mundo. Segundo Merleau-Ponty, um dos aspectos básicos

que já aponta para um vínculo entre temporalidade e subjetividade

consiste na constatação comum de que se vivem as experiências umas

após as outras, sempre com um “antes” e um “depois”; porém, segundo

o autor, outro aspecto apresenta uma relação muito mais íntima entre o

tempo e a subjetividade, pois as pessoas não são eternas (MERLEAU-

PONTY, 2006a, p. 549).

Podemos, então, levar em consideração a relevância da arte

fílmica para além dos estudos a respeito da percepção de cunho

psicológico, quando se diz que o cinema não consente unicamente em

mostrar ideias. Do ponto de vista de Merleau-Ponty, a intenção do

cinema está na sua percepção, no fato de manifestar abertamente modos

e atitudes humanas, maneiras de estar no mundo, características

ontológicas de se relacionar com o outro e com as próprias coisas, já que

os estados emotivos são, tanto no cinema como nessa nova psicologia,

atitudes e comportamentos.

Para a ampliação e a compreensão de todos esses aspectos,

organizamos a estrutura do trabalho da seguinte maneira: no capítulo 1,

faremos uma exposição geral acerca de relações entre cinema e filosofia

e da importância de alguns autores cujos vários sistemas e abordagens

são tomados para problematizar o cinema como fenomenologia e como

ontologia, dando destaque para o filósofo Gilles Deleuze e o cineasta

Jean-Luc Godard. No capítulo 2, daremos ênfase a algumas ideias de

Merleau-Ponty referentes à natureza e à significação do filme, pois, para

esse autor, as análises de um objeto em geral, aplicam-se igualmente ao

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cinema, enquanto este é um objeto a se perceber e não a se pensar, isto

é, quando se percebe um filme, cinema e mundo se organizam perante o

indivíduo.

Já no capítulo 3, examinaremos as relações entre arte, linguagem

e cinema, buscando compreender a arte, especificamente como

manifestação de liberdade, indivisibilidade e mistério do sensível e da

temporalidade, analisando o que daí decorre em direção à futura

instituição de uma nova forma de ontologia. Por fim, no capítulo 4,

analisaremos a constituição do filme e do ser como elementos

intrínsecos diante de uma nova perspectiva ontológica, na qual cinema,

carne e mundo gravitam um sobre o outro, para abertura do processo

cabal de visibilidade, fenômeno que vemos, notadamente, no cinema

moderno (como mostraremos nas relações de Godard como Merleau-

Ponty) e mais especificamente em obras contemporâneas, como no filme

“Zidane: um retrato do século XXI (2006), em que a dimensão

ontológica merleaupontiana pode ser amplamente manifesta.

Levando ao máximo as ponderações de Merleau-Ponty,

compreendemos mais claramente que, entre o pensamento filosófico e a

arte fílmica, não existe uma primazia de uma em relação à outra, porém

há uma convivência: o cinema mostra e torna visível a maneira de

ponderarmos as afinidades com os outros, com o mundo, e a filosofia dá

a possibilidade de reflexão a respeito do que se exibe nas imagens, isto

é, a sua visibilidade (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 117). Existe,

portanto, uma relação inerente e autônoma entre a arte e o pensar que se

imbrica com a minha carne e a carne do mundo. Assim, permite-se que

o olhar que vê se descubra a si mesmo como visível e invisível, e que o

cinema seja iminentemente uma expressão ontológica por excelência.

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1 A ARTE CINEMATOGRÁFICA EM BASES REFLEXIVAS

Optamos por realizar, neste capítulo, uma exposição geral acerca

das relações entre cinema e filosofia e da importância de alguns autores

cujos vários sistemas e abordagens são tomados para problematizar o

cinema como fenomenologia e como ontologia. Nossa intenção, neste

momento, não é traçar um rol numeroso de estudiosos que trataram

dessas questões, mas apontar algumas linhas de pensamento que nos

auxiliarão no posterior aprofundamento desses temas.

1.1 FILME, FENOMENOLOGIA E ONTOLOGIA: AUTORES E

CONCEITOS

O cinema pode ser considerado um meio criativo, um produtor de

novas e diferentes coisas. O que o governa, o que o impulsiona, o que o

produz são as questões que muitos teóricos do cinema e filósofos

procuraram articular. Cinema envolve também outras formas

audiovisuais, tais como a televisão, jogos de computador, indústrias de

mídia on-line que remodelam o conhecimento do mundo por meio de

várias categorizações, gêneros, campos de investigação, diferentes

métodos de representação, intervenção ou provocação. Por meio dos

seus vários pressupostos e finalidades diferentes, o cinema mostra e

indaga as formas como nós agimos sobre as coisas do mundo, incluindo

a própria natureza do pensamento que é, de uma forma ou de outra, uma

atividade perceptiva, mas também corpórea e carnal.

Dessa maneira, a pergunta “O que é o cinema?” é uma questão

ontológica, já que é uma indagação acerca das formas pelas quais o

cinema pode reunir partes diferentes, expressões, tecnologias e eventos e

produzir uma unidade inteira: um filme, uma obra audiovisual. Mas é

também uma questão fenomenológica, em que estão situadas as

explorações de consciência e de ser cinematograficamente produzidas

por meio da percepção e do movimento.

No que tange a esse aspecto, a fenomenologia pensada por

Edmund Husserl (1988) é uma volta ao mundo vivido, ao mundo da

experiência, o ponto de partida de todas as ciências. A fenomenologia

propõe descrever o fenômeno, e não explicá-lo ou buscar relações

causais; volta-se para as coisas mesmas como elas se manifestam. Voltar

às coisas mesmas significa voltar ao mundo da experiência,

considerando que, antes da realidade objetiva, há um sujeito que a

vivencia; antes da objetividade, há um mundo pré-dado, e, antes de todo

conhecimento, há uma vida que o fundamentou.

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Husserl faz da fenomenologia uma investigação filosófica que

pretende elucidar de que maneira a possibilidade de conhecer eventos e

objetos mundanos se funda nas estruturas de consciência. Essa

investigação situa-se no conceito de “intencionalidade”. Diz ele: “A

palavra intencionalidade não significa nada mais que essa

particularidade fundamental e geral que a consciência tem de ser

consciência de alguma coisa, de conter, em sua qualidade de cogito, seu

cogitatum em si mesma” (HUSSERL, 2001, p. 51).

Esse conceito de intencionalidade indica que o aspecto primordial

da consciência é seu atributo de se referir constantemente a algo que não

ela mesma: ter consciência é sempre ter consciência de alguma coisa.

Explicitando melhor, a consciência é uma atividade composta por atos

(percepção, imaginação, paixão etc.), com os quais objetiva algo. A

percepção é percepção de um percebido, a imaginação é a imaginação

de um objeto imaginado, o desejo é desejo de um desejado. Logo, a

consciência somente é consciência estando voltada para um objeto,

assim como o objeto só pode ser definido em relação com a consciência

(CARMO, 2011, p. 17-18).

É importante dizer que o mundo fenomenológico é composto

pelos modos de doação dos objetos em correlação com os atos de

consciência. É por essa razão que a investigação husserliana partilha do

idealismo transcendental. Em virtude do conceito de intencionalidade,

Husserl entrevê, entre sujeito e objeto, ou consciência e mundo, uma

correlação mais amplificada que a dualidade sujeito-objeto do

pensamento cartesiano. Na verdade, esse filósofo alemão quer

demonstrar um método de cognição que, enquanto mantém uma espécie

de análise imanente aos conteúdos da consciência, poderia ainda chegar

a um conhecimento mais “absoluto” e “universal”.

As noções de Husserl a respeito de uma consciência que não está

circunscrita a si mesma, porém relaciona-se abertamente com o mundo,

foram compreendidas, por exemplo, por Jean-Paul Sartre como as bases

de uma filosofia da ação. Já Maurice Merleau-Ponty (filósofo sobre o

qual nos aprofundaremos em capítulos subsequentes) empreendeu uma

virada corporal na fenomenologia, ampliando a ideia de

intencionalidade, inscrevendo-a como marca de todo e qualquer

fenômeno no interior da experiência vivida, enraizando-a na experiência

primária, imediata e pré-reflexiva do corpo situado no mundo. Agora, o

corpo não mais como mero suporte para atividade da mente, mas como

fonte de toda experiência possível (CARMO, 2011, p. 8-9 e 19-20).

O alcance da fenomenologia não se restringiu somente ao campo

da filosofia, pois diversos pensadores das ciências humanas buscavam

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nela um suporte, um diálogo e subsídios metodológicos. Nesse contexto,

autores alemães como Hugo Münsterberg e Rudolf Arnheim,

ligeiramente influenciados pela fenomenologia e mais preocupados com

as relações entre psicologia e percepção visual, irão tecer relevantes

reflexões sobre a noção de cinema.

O filósofo e psicólogo Hugo Münsterberg, em 1916, publicou

uma obra intitulada The Photoplay: A Psychological Study, livro que

muitos consideram como um inovador trabalho da teoria do cinema e o

primeiro a considerar as potencialidades específicas de cinema como

uma forma de arte independente (LANGDALE, 2002, p. 2).

Infelizmente, a edição do seu texto inovador esgotou-se logo após a

Primeira Guerra Mundial e só foi relançada em 1970. Embora ainda hoje

pouco conhecido, Münsterberg é considerado como uma das principais

figuras intelectuais de sua época, um dos fundadores da psicologia

aplicada (ANDREW, 1976, p. 14-15).

O autor em tela foi um incansável defensor do cinema,

promovendo-o como uma forma de arte legítima capaz de sintetizar, em

seu bojo, fotografia, drama, literatura e música. Como muitos teóricos

iniciais do cinema, Münsterberg tentou identificar as especificidades

artísticas desse novo meio, defendendo a validade do cinema como uma

forma de arte diferente do romance e, de certa maneira, superior ao

teatro e à fotografia. Ele também articulou, de forma distinta, dimensões

psicológicas da experiência cinematográfica, com o paralelo sugestivo

entre técnicas cinematográficas e experiência perceptiva, antecipando

assim sua própria estética psicológica do filme (CARROL, 1988, p.

490).

De fato, Münsterberg chamou o cinema, mantendo um paralelo

teatral comum em sua época, de photoplay (peça cinematográfica,

literalmente uma peça de teatro filmada, ainda que ele argumente que o

cinema não pode ser reduzido ao teatro). Sua principal contribuição para

a teoria do cinema envolve seu apurado exame do paralelo entre

dispositivos cinematográficos (close-up, flashback, movimentos de

câmera, cortes etc.) e atos psicológicos de consciência (atenção,

lembrança, imaginação, estados emocionais etc.). Podemos, portanto,

entender o poder estético do filme, uma vez que assistimos ao modo

como ele influencia a mente do espectador, o que significa analisar o

processo mental que essa forma específica de atividade artística produz

em nós (MÜNSTERBERG, 2002, p. 65).

Nas análises de James Dudley Andrew (2002, p. 30), importante

teórico do cinema, nos diz o seguinte:

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Münsterberg foi em primeiro lugar um filósofo,

um idealista da escola neokantiana. E é a estética

kantiana que ele nos entrega pré-embrulhada no

início da parte II de seu livro. Seguindo Kant,

Münsterberg utiliza um tipo inteiramente diferente

de análise quando se volta da psicologia para a

estética. A psicologia é parte de um modo de

pensar científico. Tenta explicar aspectos do que

Kant chamou de “domínio fenomênico”, o

domínio do senso de experiência onde as coisas

são ligadas no tempo, no espaço e na causalidade.

A introdução histórica de Münsterberg descreveu

a epiderme do cinema, tratando-o como um objeto

in natura. A parte I concentrou-se na psicologia

porque Münsterberg considerava o cinema um

objeto para experiência exigindo que o

relacionemos com o local da experiência, a mente

(ANDREW, 2002, p. 30).

Para Münsterberg, a história do cinema divide-se entre

desenvolvimentos cinematográficos externos e internos, isto é, entre a

história tecnológica do meio e o desenvolvimento do uso, pela

sociedade, desse meio. A história descreveu o objeto que geralmente

chamamos de cinema, e a psicologia revelou como o objeto externo

concebe o objeto interno, que é, na verdade, o filme. Juntas, essas

explanações elucidam os aspectos “fenomênicos” do cinema. A segunda

metade de seu livro vai da ciência para a filosofia, explicando a forma e

a função do cinema, isto é, o “domínio numênico”. Ainda que a ciência

seja hábil em mostrar como uma coisa ganhou existência e como

funciona em nossas vidas, é incapaz de descrever o valor desse objeto

(ANDREW, 2002, p. 30).

Dessa maneira, o autor combina, em sua obra, uma abordagem de

“atitude estética” kantiana, com uma metafísica da arte

schopenhaueriana, como que nos permitindo transcender nosso imediato

contexto espaço-temporal. Ele começa explanando que a tradicional

abordagem mimética – a arte como imitação da natureza – é claramente

inadequada para dar conta dos aspectos da arte. Essa arte não pode ser

simplesmente imitação, já que a imitação como tal não é necessariamente agradável esteticamente. Além do mais, muitas das

artes mais esteticamente impressionantes são não miméticas, como a

arquitetura e a música, ou envolvem decididamente técnicas ou

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mecanismos estéticos não imitativos, como o discurso poético e a

performance dramática (MÜNSTERBERG, 2002, p. 113-115).

Por essa razão, o filme tem sua própria estética, que não pode ser

importada da pintura, da literatura ou do teatro. Tanto das perspectivas

estéticas como das psicológicas, o filme narrativo apresenta uma história

humana “superando as formas do mundo exterior, ou seja, espaço,

tempo e causalidade, e ajustando os eventos em relação às formas do

mundo interior, isto é, a atenção, a memória, a imaginação e a emoção”

(MÜNSTERBERG, 2002, p. 129, tradução nossa).2 Em outras palavras,

a abstração inerente da imagem fílmica (especialmente no filme mudo)

distancia a performance da tela do reino físico e a traz mais perto das

dimensões mentais de experiência.

Podemos dizer, então, que a reivindicação de Münsterberg para

com o cinema não é da ordem metafísica ou epistemológica, porém é

uma afirmação sobre o tipo de experiência estética que o filme

possibilita, em contraste com outras formas de arte, tal como o teatro. A

“performance” cinematográfica não é tão ligada ao espaço, ao tempo e à

causalidade, como é a performance teatral ao vivo, uma vez que esta

última é sempre necessariamente confinada ao espaço-temporal presente

de discursos e ações dos artistas. A imagem do artista na tela, por outro

lado, pode ser justaposta com diversos números de outras imagens de

espaços diferentes, às vezes até mesmo “desafiando” a causalidade

comum por meio do uso criativo da montagem e dos efeitos especiais,

especialmente hoje com o cinema de animação e o cinema digital,

graças a imagens geradas por computador.

Percebemos que o cinema manipula exteriores formas de espaço,

de tempo e de causalidade, com o intuito de destacar que não estamos

lidando com alegações metafísicas extremamente estranhas ou bizarras.

Os dispositivos técnicos e as técnicas estéticas do meio cinematográfico

tornam possível uma manipulação estética de espaço, de tempo e de

causalidade, de maneira que não estão frequentemente disponíveis para

uma performance teatral ou para outras artes. Tal fato é importante, pois

tem relação com uma possível transformação de nossa própria

experiência cinematográfica. Assim, esse é o legado duradouro do

trabalho inovador de Hugo Münsterberg sobre uma filosofia do cinema

ou uma estética fílmica.

2 Na versão original: by overcoming the forms of the outer world, namely, space, time,

and causality, and by adjusting the events to the forms of the inner world, namely,

attention, memory, imagination, and emotion.

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Já o psicólogo e teórico alemão Rudolph Arnheim está

interessado no cinema como arte. Para ele, à semelhança de outros

meios artísticos, como foto, música, dança e literatura, o filme pode

servir a várias funções, uma das quais é a artística. Todavia, a principal

crítica feita a esse entendimento do cinema como arte, está relacioanda à

caracterização da sua capacidade de representação, isto é, como um

meio fotográfico, o filme é meramente uma reprodução da realidade

(ARNHEIM, 1957, p. 2).

Como Noël Carroll observa, tal crítica vem da crescente

tendência artística no final do século XIX e começo do XX em direção à

denominada antimímesis. De Baudelaire a Croce, a principal função da

arte, alegam, não pode ser encontrada na imitação da natureza e,

portanto, o filme, que se destaca em “re-apresentar” a realidade, é

considerado esteticamente inadequado para pertencer ao mundo da arte

(CARROL, 1988a, p. 21).

Uma implicação de tal crítica é que os processos mecânicos

envolvidos na fotografia e no cinema não permitem controles ou

intervenções criativas de seus operadores. Pintores, por exemplo, podem

intervir a qualquer momento durante o processo de pintura, desde a

decisão do tema, composição, desenho e cor do pigmento. Em contraste,

cineastas, fotógrafos têm uma gama limitada de controle – como

iluminação e a colocação de objetos durante o processo de filmagem –

enquanto o restante é submetido por meio de um processo mecânico

mais ou menos automático.

Em sua tentativa de desafiar a crítica estética da fotografia e do

cinema, Arnheim primeiro pergunta se o processo de filmagem é

realmente automático. Uma imagem fotográfica de um objeto simples,

tal como um cubo, observa o autor, não é automaticamente obtida. Pode-

se ter sucesso ou falhar na tentatica de elaborar um objeto reconhecível

para o espectador e, portanto, requer habilidade do fotógrafo ou do

cineasta para encontrar ângulo e iluminação adequados (ARNHEIM,

1957, p. 9-10).

Dessa forma, a capacidade de representação do cinema e da

fotografia não é simplesmente dado, mas é algo que pode ser alcançado

em virtude das habilidades do cineasta e do fotógrafo. Esse autor alemão

não concebe a relação entre uma imagem e seu referente como uma

questão de “verdade” ou correspondência. Pelo contrário, está em jogo a

sensibilidade estética de um fotógrafo, que pode fornecer uma percepção

do objeto. Um artista do cinema captura a essência de um objeto ou um

evento, e não há um conjunto de regras a seguir. É uma questão de

sentimento (ARNHEIM, 1957, p. 10).

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Especificamente em relação ao cinema, Arnheim enumera um

conjunto de atributos de uma obra cinematográfica que diferencia a

percepção fílmica da percepção natural. Da redução da profundidade, à

iluminação, à delimitação da tela, à ausência da continuidade espaço-

tempo e à ausência de cor (filme preto e branco), a transformação

fílmica da realidade fica aquém de prestar uma réplica exata da

percepção natural. Em imagens fílmicas, por exemplo, tamanhos e

formas dos objetos não permanecem constantes do modo que

normalmente vemos dois objetos distantes. Em vez disso, o objeto no

fundo de uma imagem parece desproporcionalmente pequeno, devido à

visão monocular da câmera (ARNHEIM, 1957, p. 13-14).

Além do mais, Arnheim destaca um aspecto que ele acredita que

distingue o cinema da fotografia e do teatro. O filme produz, no

espectador, um singular efeito “espectatorial”. Este autor afirma que a

imagem fílmica não é nem completamente bidimensional, nem

completamente tridimensional, tornando uma ilusão “parcial” do espaço

real. Um dos aspectos relacionados a essa perspectiva está de acordo

com alguns princípios da psicologia da gestalt. Mesmo o processo mais

elementar de visão não recebe passivamente dados do mundo real, mas

criativamente organiza matérias-primas sensoriais em conformidade

com um conjunto de princípios. Na percepção natural, não precisamos

de todos os detalhes para inferir o todo. Da mesma forma, com poucos

aspectos salientes de objetos e eventos representados em um filme,

podemos ainda ter um forte senso do real (ARNHEIM, 1957, p. 28-29).

Essas observações ontológicas e epistemológicas de Arnheim

sobre o cinema levam-no a afirmar que o filme está longe de ser uma

cópia perfeita da realidade, fornecendo ao espectador uma experiência

perceptiva como uma alternativa tanto à percepção natural, como à

percepção dada por outros meios artísticos. Dessa maneira, o objetivo

dos cineastas não é meramente “re-presentar” a realidade, desdobrando-

se em frente à câmera, mas transformar suas restrições materiais na

chamada “expressão cinematográfica”. Aqui o autor enfatiza a natureza

expressiva da percepção visual em geral, considerando que nosso

mecanismo perceptual não se limita a registrar os dados dos sentidos,

mas reconhece-os como expressão (ARNHEIM, 1974, p. 454-455).

Para Arnheim, expressão é uma característica inerente de padrões

de percepção, não é uma projeção ou associação com as qualidades

expressivas do ser humano e os seres animados. A expressão

cinematográfica, além de envolver o processo fílmico de transformação

do real, também reflete e registra a visão artística e a sensibilidade do

cineasta. Portanto a representação cinematográfica não é um veículo de

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transferência do real, não é apenas um instrumento de observação, mas

um meio de traduzir e de comunicar-se através do real. A valorização

estética do filme pode, então, incluir o entendimento de conteúdo e sua

aparência expressiva (ARNHEIM, 1974, p. 452).

A arte cinematográfica não é uma imitação, mas uma

transformação da natureza. Para ser arte, o cinema explora e realça tanto

o espaço formal, como o fenomenal entre natureza e cinema, ou seja,

quanto mais estreita é a diferença entre a reprodução fílmica e a

realidade, maiores são as chances de se tornar um filme de arte. Além do

mais, o cinema requer um tipo de agir diferente do que é desejável em

teatro, por exemplo, uma vez que o tamanho da tela e o close-up

aumentam a legibilidade de ação do personagem. A atuação e os gestos

em cinema contêm precisão e clareza, na medida em que eles podem ser

vistos como não naturais.

Para Arnheim, as qualidades cinematográficas, isto é, os efeitos

produzidos por meio da câmera parecem ter mais significância do que os

efeitos produzidos por outros meios, tais como o cenário, os trajes ou

mesmo a cor. Esse autor nega o potencial artístico do filme colorido, não

só porque ele se aproxima da realidade mais do que o filme em preto e

branco, mas também porque a liberdade artística dos cineastas só pode

ser alcançada por meio da escolha e configuração da cor através da

mise-en-scène. Tal processo é meramente uma “transposição”, não uma

“transformação” da realidade (ARNHEIM, 1957, p. 155).

Assim, a importância da teoria do cinema de Rudolph Arnheim

reside em sua tentativa de construir sistematicamente uma teoria que se

concentra, principalmente, em como a forma fílmica envolve os

mecanismos perceptivos e conceituais do espectador e, além disso, ela

pretende localizar a fonte de potenciais artísticos nas próprias limitações

da obra cinematográfica.

Posteriomente, pôde-se notar uma intersecção mais clara da

Fenomenologia com o estudo do cinema, em meados dos anos 1940, na

França, com a inauguração do movimento denominado de Filmologie,

que durou até a década de 1960 e que teve como tarefa a descrição não

só de filmes, mas também de atividades existenciais, psicológicas e

institucionais do cinema e exibição de filmes. Esse movimento chegou a

publicar uma revista chamada Revue Internationale de Filmologie

(1947-1960), com ensaios que enfatizavam a investigação

fenomenológica na natureza qualitativa e a psicologia da percepção

cinematográfica que diferenciava outras produções de percepção de

consciência, tais como sonhos, lembranças e ilusões (CASETTI, 1999,

p. 91-92).

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Filmologie também forneceu um contexto em que o interesse pelo

cinema aumentou entre os filósofos e os estudiosos não diretamente

relacionados a esse movimento. Houve, por parte deles, uma variedade

de investigações fenomenológicas do cinema que descreveram a sua

“ontologia”, manifestando, todavia, dois interesses temáticos muito

diferentes: um, em uma antropologia existencial e social focada nos

efeitos culturais do cinema como um novo modo de simbolizar o nosso

“mundo da vida”; outro, em uma estética transcendental voltada para o

cinema como uma forma de expressão e de criação mediada

tecnologicamente (CASETTI, 1999, p. 91-92).

Influenciado por Maurice Merleau-Ponty, o antropólogo Edgar

Morin, em sua obra: “O cinema, ou o homem imaginário” (1956), foi

insistente na lógica corporal e afetiva do cinema. Esse autor abre sua

referida obra, chamando a atenção para dois elementos: a fotografia e o

cinema, que são precursores necessários para seu tema principal, ou

seja, o cinema como um fenômeno que podemos compreender em sua

plenitude.

Para ele, as máquinas inovadoras do século XIX de imagens-

capturas automáticas colocam o homem em uma nova relação com o

mundo e consigo mesmo. No entanto, nenhuma delas carrega as

características espaciais e temporais muito mais complexas, específicas

do cinema, quando este surgiu pouco antes da Primeira Guerra Mundial,

como um espetáculo de massa com potencial mítico (MORIN, 1985, p.

3).

Em suas análises, Morin coloca a reflexão filosófica em diálogo

com as descobertas antropológicas. Ele relaciona a ideia da fotogenia

com o movimento de certas imagens gravadas mecanicamente. A magia

da imagem cinematográfica desdobra-se no próprio tempo do

espectador, ou seja, a imagem de um trem move-se rapidamente na tela,

enquanto o espectador assiste com espanto, ou corre rapidamente para

longe da tela, para se proteger. Não se pode dissociar a imagem da

presença do mundo no homem e a presença do homem no mundo, sendo

que a imagem pode ser considerada seu meio de reciprocidade. Tanto as

imagens fotográficas, como as cinematográficas são avatares modernos

(MORIN, 1985, p. 15-17).

Dessa maneira, o cinema introduz uma terceira dimensão, por

assim dizer, em que o espectador participa ativamente daquilo que está

na tela, mais do que apenas olhar maravilhado, ou com medo. Com as

imagens fílmicas, o espectador é puxado para um mundo na tela, por

meio de um processo de identificação. Essa identificação é fundada na

metamorfose da imagem, e não sobre a imagem como dualidade.

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Segundo Morin, foi primeiramente o cineasta George Méliès que usou

as imagens de seus filmes de ficção para produzir não uma réplica da

realidade, mas a realidade como que transformada magicamente

(MORIN, 1985, p. 21).

Morin vê um salto qualitativo, quando o espectador se torna mais

do que um fascinado espectador e, em vez disso, participa de um mundo

transformado em uma tela branca. A preocupação do autor francês

nunca foi a de compreender o cinema como duplo, contudo o cinema

pode ser visto como vivo dentro da imaginação, vivo quase como a

imaginação. Além do mais, o espectador pode ficar mais perto do

pensamento mágico quando participa da identificação quase hipnótica

do filme, principalmente, o de ficção (MORIN, 1985, p. 70).

As ideias de Morin podem parecer datadas, porque seu tema, o

cinema, espalhou-se por toda uma cultura de massa, e sua orientação

teórica foi fortemente marcada, na época, anos de 1950, pelo marxismo

e pela fenomenologia, acima de tudo. Todavia o cinema em si continua a

ser universal, porque cada filme pode usar a realidade para ativar a

imaginação por meio de imagens, ao mesmo tempo, usando a

imaginação para engrossar a realidade com aspiração e propósitos

humanos. O cinema ainda serve como papel heurístico, com seu artefato

cultural-modelo, uma entidade espiritual-material que contém inegável

valor financeiro e imaginário estético.

Fazendo uma analogia entre imagem e mente, Morin diz que esta

última não conhece diretamente a realidade externa. Ela é colocada em

uma caixa preta cerebral, e só recebe, através dos receptores sensoriais e

redes neurais (que são elas próprias representações cerebrais),

excitações (elas mesmas representadas sob a forma de vias ondulantes

ou corpusculares), que se transformam em representações, ou seja, em

imagens. Podemos até dizer que a mente é uma representação do

cérebro; mas, na verdade, o próprio cérebro é uma representação da

mente (MORIN, 1985, p. 220).

Em outras palavras, a única realidade da qual temos certeza é a

representação, isto é, a imagem, que é não realidade, uma vez que a

imagem se refere a uma realidade desconhecida. Certamente, essas

imagens são articuladas, organizadas, não só de acordo com os

estímulos externos, mas também de acordo com a nossa lógica, com a

nossa ideologia, ou seja, a cultura. Tudo o que é percebido como real

passa por uma forma da imagem. Em seguida, ela é renascida como

memória, isto é, uma imagem de uma imagem (MORIN, 1985, p. 221-

223).

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De fato, este pensamento imagético consiste em um circuito

indiscernível de percepção-reflexão, um circuito cinematográfico

envolvendo cérebro e mente, matéria e espírito, corpo e carne, em suma,

envolvendo uma antropologia filosófica. Portanto, do ponto de vista de

Edgar Morin, o homem contemporâneo é impensável sem o cinema,

pois o autor percebe esse meio artístico como ontologicamente revelador

da inerência histórica e social do ser humano no mundo.

Pensamento semelhante pode ser notado em uma segunda

corrente da fenomenologia francesa, focada nas qualidades estéticas e na

experiência do cinema, muitas vezes articulada como uma ontologia

influenciada pela teologia. O filme foi celebrado por sua capacidade

essencial para fornecer aos espectadores uma imediata apreensão do ser

humano, bem como o de prover uma intuição de verdades morais e

espirituais.

Destaque aqui para o teólogo Amédée Ayfre, ex-aluno de

Merleau-Ponty, que vê, no cinema, a capacidade para revelar a

transcendência na imanência. Sua maior intenção é encontrar a maneira

pela qual a expressão do que transcende o homem, o sagrado, toma

forma nas imagens. Ayfre abordará, por exemplo, o neorrealismo

italiano como significativo do aparecimento de um novo tipo de

realismo, que denomina de “realismo fenomenológico”. Pede, como

crítico, que um “sentido total da existência” surja da imagem. Para tal, o

filme não pode ser a exposição de uma tese a priori, mas sim fazer que o

sentido surja das atitudes contidas no que está sendo representado

(AYFRE, 1952, p. 9).

A presença do mundo na imagem surge dentro da liberdade do

diálogo entre espectador e o que se representa, culminado em uma

verdadeira presença de outrem na tela, presença que uma máquina sem

alma, como a câmera, não é capaz de trazer para a fruição. Ela está

reservada ao diálogo entre uma consciência que não constrói, mas

descobre o que mostra, e outra, a espectatorial, que tem acesso à

representação no exercício de sua liberdade. Para que o espectador tenha

acesso à revelação da ambiguidade, o realizador pode minimizar ao

extremo o elemento espetacular, a fim de fazer a obra de maneira que

tenhamos a impressão de que não há uma obra, mas homens. Então a

máquina de filmar revelará a inteireza da presença humana (AYFRE,

1964, p. 180).

Para Ayfre, o denominado “realismo fenomenológico” busca

substituir a descrição pela construção, acreditando que a verdade não se

faz, mas se encontra. Já não se está no domínio do fazer, mas naquele do

ser. Não se quer provar, mas simplesmente revelar, isto é, revelar a

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presença de seres. Essa revelação surge conforme se deixa falar a

ambiguidade dos seres que se está representando, sem a mediação

modeladora de uma interferência. É a inserção plena do ser na

representação que vem caracterizar o neorrealismo de Ayfre, inserção

que não quer significar interferência ou construção de uma significação

(AYFRE, 1964, p. 227-230).

A revelação a que o realismo fenomenológico dá forma, ao

permitir que as coisas emerjam em sua natureza própria, faz que

transpareça sua ambiguidade como mistério e transcendência. É assim

que a evocação da transcendência no realismo fenomenológico é função

da fidelidade à descrição concreta e global do real. Se se consegue

descrever concretamente, em sua globalidade, uma atitude humana ou

um evento, um sentido total da existência necessariamente surge. Logo,

esse sentido total da existência se manifesta na forma de uma

ambiguidade fundamental que é o modo humano da existência do

Mistério, ou seja, lá onde as coisas permanecem profundamente

marcadas de solidez humana, são tão pouco fantásticas que não há

nenhuma dificuldade em reconhecer “o dedo de Deus” (AYFRE, 1964,

p. 175).

A forma pela qual a divindade se expressa tem um colorido

particular, que revela o contexto ideológico de uma época

(fenomenologia mais cristianismo) que desapareceu do horizonte. Os

escritos de Ayfre trazem influência do pensamento que colocou as

nuances do campo da subjetividade no centro de suas preocupações.

Seguindo sua trilha, o mundo surge mediado pela consciência que

constitui seu mostrar-se, expressão do que lhe transcende como matéria.

Aprofundando-se nessa linha de pensamento, encontramos o

teórico Jean Mitry que empreendeu uma meticulosa descrição

fenomenológica das formas de percepção e de expressão

cinematográfica. A sua vida englobou um período de florescimento do

cinema como uma forma de arte totalmente expressiva. Ele escreveu

uma relevante obra chamada Esthétique et Psychologie du cinéma

(1963-1965)3, na qual discute, de maneira aprofundada, as origens, as

formas e os efeitos do cinema no século XX. Esse seu trabalho é, em sua

essência, uma fenomenologia da experiência narrativa cinematográfica;

em segundo lugar, é um argumento muito bem elaborado em defesa

3 Ver: Esthétique et psychologie du cinéma: Les structures. Paris: Éditions

Universitaires, 1963. v.1 e Esthétique et psychologie du cinéma: Les formes. Paris:

Éditions Universitaires, 1965. v.2.

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dessa experiência, como a abertura de uma nova maneira de ver e de

apreender o mundo.

Como um pensador sobre cinema, Mitry está preocupado em

adequar a imagem em movimento (em seu modo específico de trazer

para si o mundo que lhe é exterior) à marca de uma subjetividade que a

funda como representação bidimensional (delimitada por um quadro, um

ritmo, uma montagem). Para o autor, é característico de toda imagem ser

imagem de alguma coisa. Ela é imagem de um espaço, das formas e das

relações entre os elementos que definem esse espaço, de algo que está

no mundo, que tem uma situação, uma dimensão, uma espessura. As

coisas no mundo estão delimitadas, ligadas entre si, por toda uma série

de interdependências e determinações recíprocas, engajadas na

realidade. Esse fato não determina por si só o caráter de realidade das

imagens fílmicas, porém é o fundamento dela (MITRY, 1963, p. 109).

Neste quadro, próximo da reflexão a respeito de cinema de viés

fenomenológico, Mitry introduz um diálogo sobre a problemática da

significação no cinema. Para ele, a imagem significa, mas só quando em

disposição particular, isto é, a imagem de um objeto, quando percebida

em si mesma, apenas coloca o objeto como existente, mostrando o que

ele, em situação de realidade, pode significar. Dessa maneira, como

imagem, como representação, em virtude de sua natureza de imagem,

ela não significa nada; por outro lado, ela mostra tudo. Segundo o autor,

a significação fílmica é completamente outra coisa, não está localizada

na expressão de uma imagem isolada, mas na relação entre as imagens.

Estas, por sua vez, teriam o estatuto do mostrar, da mostração, aquém,

em um primeiro nível, da própria significação (MITRY, 1963, p. 120).

Além do mais, em Mitry, a presença do real na imagem é

recortada pelo enquadramento. Está ligada de maneira intrínseca ao

quadro da imagem, ao contrário, por exemplo, da imagem no espelho,

em que o movimento do observador, observando a imagem, revela

sempre novas parcelas do mundo refletido. A imagem do real para o

sujeito (o real percebido) e a representação do real em imagem

cinematográfica não são a mesma coisa. Como representação, ela é

função de elementos imagéticos, quer dizer, do quadro essencialmente.

Já o real percebido existe de maneira exterior e independente das

determinações da imagem em movimento, embora venha a se oferecer

baseado em suas formas. É valendo-se da noção de “quadro” que Mitry

entende que, se os limites da tela nada são além de uma mostra para o

real representado, eles se tornam um quadro para a representação

(MITRY, 1963, p. 170-171).

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Nesse sentido, é possível dizer que, para esse autor, há um nível

originário da imagem marcando sua singularidade com a imagem

pictórica, que permite a ele lidar com conceitos como imanência e

presença, contrapostos à essência e à transcendência, querendo designar

os vínculos da imagem em movimento com o mundo que lhe deu origem

e o mesmo mundo apreendido já como imagem, como totalidade

compositiva (MITRY, 1963, p. 133).

A noção de imanência corresponde a um nível originário de

relação da imagem com o que lhe foi exterior e a que lhe conformou.

Aqui, a imagem é, em todos os pontos, semelhante ao objeto visado. Ela

não é o resultado do fazer de um artista, porém, poderíamos dizer, é o

feito de um objeto que se reproduz sobre o filme em um duplo

rigorosamente idêntico. Já a imagem é transcendência, pois, como uma

espécie de uma realidade estruturada, transcende como imagem e,

porque é imagem também transcende a realidade da qual ela é,

tornando-se, pois, algo que cristaliza todas as virtualidades, todas as

potências de ser do real representado (MITRY, 1963, p. 133).

Do ponto de vista do autor, no cinema, a imanência se abre para

certa transcendência, mas não para o transcendental. Uma vez que o

mundo surge disposto por um esquema organizador que não é o de nossa

consciência, ele adquire certo coeficiente de estranheza e de irrealidade,

que pode dar origem à impressão de magia e de espiritualidade. Trata-se

de um fenômeno que pode ser analisado com base nas condições de

percepção da imagem, pois constitui-se pela mediação de uma câmera e

de um ator (MITRY, 1963, p. 129-130).

É importante ressaltar que, para Mitry, a imagem é um fora, uma

gestalt, que surge como articulação do mundo e do espaço que se

oferece à nossa percepção, também estruturadora. Procedimentos

fílmicos como profundidade de campo, plano-sequência, tomadas com

câmera móvel em travelling são considerados pelo autor procedimentos

de composição, que têm por objetivo estruturar o espaço em razão de

uma significação determinada. Se aceitarmos alguma obra, submetemos

a algo dado que não é consequência de uma escolha, ou seja, não

podemos reencontrar as condições objetivas da realidade, pois,

novamente, recebemos algo que é dado, que foi escolhido para alguém e

não por esse alguém (MITRY, 1965, p. 46).

Por conseguinte, a imagem pode manifestar uma plenitude de

coisas, consequência de um olhar que não seja a imagem do mundo, mas

um aspecto do mundo. Sem ser modificado como coisa, o mundo, no

cinema, é reproduzido com base em relações espaço-temporais que o

definem de outra maneira. Um enquadramento esgota, por assim dizer, o

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mundo de um determinado ângulo. Uma sequência de planos, por sua

vez, instaura o evento representado em uma temporalidade nova. Por

exemplo, o objeto, quando imagem, é análogo ao objeto real, mas o

espaço-tempo fílmico não é análogo ao espaço-tempo real (MITRY,

1965, p. 413).

O mundo representado é visto como uma verdade observável por

um grupo de indivíduos que ocupa, cada um, um ponto de observação

diferente. Os mesmos objetos do mundo surgem inseridos em disposição

nova, em que há criação de dimensão espaço-temporal nova, quer dizer,

com o tempo real sendo sempre apreendido no nível do plano (MITRY,

1965, p. 414). Mitry, portanto, defende um cinema que chama de

moderno, no qual a articulação espaço-temporal dos planos surja em

estrutura que narre aberta, para uma liberdade que pertence só à vida. É

o cerne de suas colocações teóricas: fazer que os eventos representados

em uma obra cinematográfica não apareçam segundo o decalque de um

roteiro preestabelecido, entretanto eles podem se abrir para a

indeterminação do presente.

Talvez o autor mais conhecido e um dos mais relevantes para se

pensar o cinema do ponto de vista fenomenológico e ontológico seja o

crítico francês André Bazin. Na verdade, o lugar de Bazin no

desenvolvimento da teoria do cinema e da possível passagem entre

fenomenologia e estética cinematográfica merece uma atenção especial.

Para James Dudley Andrew, a noção do papel do cinema e a noção da

arte em geral em Bazin foram fortemente influenciadas por pensadores

como Henri Bergson, Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty

(ANDREW, 1978).

A filosofia de Bergson, menos preocupado com os fatos que

cercam a existência do que com a experiência humana da natureza, viria

a ser um importante trampolim para apropriação de Bazin da

fenomenologia. De Bergson a Merleau-Ponty, as afinidades do crítico

francês envolveram desde a complexidade do mundo à ambiguidade da

nossa experiência. Nos termos desses pensadores, a realidade não é uma

situação disponível para experimentar, mas algo emergente de que a

mente essencialmente participa e que, podemos dizer, existe apenas na

experiência. Já em termos bazinianos, a fenomenologia poderia,

portanto, ser definida como o estudo da interação e do constante

desenvolvimento das relações entre a consciência humana e a realidade

objetiva (ANDREW, 1978, p. 106).

Na influência de Bergson, Sartre e Merleau-Ponty, Bazin

demonstra uma afinidade para a importância central da relação interativa

tanto do cinema como da vida. No entanto, ele dificilmente pode ser

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considerado um “fenomenólogo” ou mesmo um “filósofo”, apesar de

poder ser visto como um teórico da imanência da consciência artística

que compreende o ser humano dentro da complexidade espacial do seu

“estar no mundo”, mas também ligado a uma continuidade temporal que

o torna um constante “vir-a-ser”.

Podemos dizer, ainda, que é na obra de Sartre (1986) acerca do

imaginário que incentivará a ligação de Bazin com arte e a ontologia, e é

na fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty que o governará no

seu enfoque sobre a ambiguidade do lugar do ser humano no mundo. A

partir dessas raízes teóricas, Bazin construiu uma singular abordagem da

crítica cinematográfica repleta de poesia e de lirismo, como era

relevante para o tempo e o local de sua produção.

Dentro do contexto de destruições produzidas pela Segunda

Guerra Mundial, muitos intelectuais e artistas, de repente, passaram a

contestar alguns valores filosóficos e morais e a manipulação da

natureza para fins do indivíduo. Bazin, aproveitando esse momento,

desenvolveu uma teoria complexa do realismo cinematográfico. Ele não

foi, naturalmente, o único, pois também apareceram os escritos do

teórico alemão Siegfried Kracauer, sendo que ambos definiram suas

teorias do realismo sobre suposições principais de que a especificidade

do cinema reside na ontologia da imagem fotográfica (ANDREW, 1978,

p. 131-133).

É relevante ressaltar que, com Siegfried Kracauer (1960), a

relação do cinema com a filosofia é peculiar. A sua teoria do cinema não

é principalmente sobre filmes, cineastas, culturas ou tecnologias de

mídia. Em vez disso, o cinema é, em si, algo comparável à filosofia.

Segundo ele, o cinema é uma abordagem para o mundo, um modo de

existência humana, uma forma ímpar de percepção e de sensação, por

vezes, de iluminação. Na essência, o que resta na arte cinematográfica é

uma espécie de subjetividade que a constitui.

Embora a abordagem de Bazin possa diferenciar-se da abordagem

de Kracauer, os dois são semelhantes em suas insistências com ênfase

em um essencialismo da forma cinematográfica, bem como em uma

avaliação hierárquica de textos fílmicos baseados em suas utilizações de

certos princípios do realismo. A vocação crítica de Bazin (2010) pode

ser vista em muitos dos seus textos, escritos com autoridade e paixão.

No entanto, a sua crítica cinematográfica não existe em um vácuo, há o

contexto de uma política mundial, uma história intelectual local

relacionada ao patamar atingido pelo cinema internacional durante os

anos 1940-1950.

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De fato, as considerações de Bazin sobre a forma do filme só

existem dentro de sua historicização do lugar sóciopolítico do cinema

em todo o mundo e em torno dele. Para entender melhor esse ponto,

olhamos para a fenomenologia subjacente do autor não como uma teoria

da transcendência, mas, como uma múltipla teoria da imanência: a

imanência da história, a imanência da realidade na imagem, a imanência

de uma infinidade de possíveis planos dentro do plano-sequência

cinematográfico e a imanência da consciência artística dentro do texto

fílmico (ANDREW, 1978, p. 145-146).

Nesse entendimento, podemos colocar o trabalho de Bazin em

uma genealogia especificamente francesa do discurso. Muito do seu

conceito de ontologia evoca a memória da conceituação de fotogenia

dos cineastas franceses Louis Delluc e Jean Epstein, que têm uma dívida

comum para com as primeiras teorias do escritor e diretor

cineamatográfico Marcel L'Herbier sobre a imagem fotográfica.

L'Herbier, assim como Delluc e Bazin, via o enquadramento da câmera

como um meio para a reprodução mecânica que, evitando a necessária

interferência humana em outras artes, tem uma conexão objetiva

especial com a realidade que captura. Consequentemente, o cinema

produz uma marca de vida, cuja finalidade é transcrever o mais

fielmente possível uma verdade fenomenal (XAVIER, 2014, p. 20).

Essas ideias contribuem para o embasamento crítico de Bazin que

ainda reconceitua a noção da objetividade da imagem e a sensibilidade

humanitária da câmera, assim como a capacidade do texto para revelar

os valores de uma sociedade e de ser um instrumento para a consciência

do artista. Isso é evidente em numerosos estudos do autor a respeito de

cineastas como Charlie Chaplin, Howard Hawks, Robert Bresson,

Roberto Rossellini e Vittorio De Sica, em que há um esforço para diluir

a distinção entre as obras cinematográficas deles, para fazer emergir a

força criativa de cada cineasta. Dessa maneira, sua crítica fílmica tem a

capacidade de transformar a teoria do cinema em uma teoria da

imanência do filme, algo próximo a uma crítica fenomenológica das

artes (ANDREW, 1978, p. 150).

Nessa esteira, analisamos dois dos seus mais famosos e

importantes ensaios sobre cinema: “Ontologia da imagem fotográfica” e

“A evolução da linguagem cinematográfica”.4 No primeiro texto, Bazin

trabalha para situar o cinema de acordo com seu lugar específico no

desenvolvilmento histórico das artes. Ele seleciona a imagem

fotográfica, como uma reprodução mecânica, como a definitiva

4 Ensaios contidos na obra: Qu'est-ce que le cinéma? Paris: Cerf, 2010. p. 9-17 e 63-80.

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característica do cinema, colocando-o, assim, de acordo com as ideias de

L'Herbier e Kracauer, e estabelece as bases para os futuros escritos de

cinema do filósofo norte-americano Stanley Cavell. Para este último, é

por meio dos dispositivos técnicos da fotografia e do filme, como plano

e enquadramento, que a realidade do mundo pode ser alcançada pelo

sujeito humano. No cinema, espectador e filme se fundem e parecem

estar no mesmo lado da tela (CAVELL, 1979, p. 108-109).

André Bazin afirma, no artigo “Ontologia da imagem

fotográfica”, que, desde o projeto inicial dos sarcófagos no antigo Egito,

ao uso contemporâneo da fotografia, o propósito das artes foi

essencialmente preservar o ser através da aparência, da imagem, ou para

afastar a morte e guardar algum traço sensorial de nossa existência

fenomenal. No entanto, a tentativa de fazer uma reprodução do mundo,

desde o Renascimento, foi contestada pela expressividade das artes ou

pela chegada da estética, principalmente manifestada no uso da pintura

em perspectiva (BAZIN, 2010, p. 9).

Devido a esse fator, houve certa desconfiança ou dúvida relativa à

imagem, pelo menos, até a chegada da máquina fotográfica, um

dispositivo que poderia excluir, em teoria, o ser humano do processo de

reprodução. Ao contrário de outras formas de arte, a fotografia e o filme

realmente podem guardar uma marca fisicamente construída do objeto

real, ou o que Bazin se refere como uma impressão digital. Com isso, o

autor francês chega a uma máxima conclusiva, que serve como base

para sua teoria ontológica do cinema: “A originalidade da fotografia em

relação à pintura reside, pois, na sua objetividade essencial” (BAZIN,

2014, p. 31).5

Nas décadas seguintes, Bazin iria desafiar a alegação de

objetividade de qualquer criação humana, justamente insistindo que

todos os textos são processos de significação que não podem verter ao

peso complexo de fatores ideológicos. Em outras palavras, o filme

também é um processo de significação, sendo possível afirmar que todo

o seu corpo de trabalho é baseado na tentativa de compreender a própria

junção de significação no cinema, a dialética entre a forma e o conteúdo

do texto e entre a imaginação do espectador e a narração

cinematográfica. Todavia ele, clara e veementemente, opôs-se à

produção de significado para além da imanência latente do mundo

filmado e, por isso, foi acusado de construir uma hierarquia arbitrária

baseada em uma estilística específica ou em aspectos formais, como é

5 Na versão original: L'originalité de la photographie par rapport à la peinture réside

donc dans son objectivité essentielle. (BAZIN, 2010, p. 13).

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descrito em seu outro ensaio: “A evolução da linguagem

cinematográfica” (XAVIER, 2014, p. 22-23).

Neste artigo, encontramos as reverberações dos argumentos

estéticos mais essenciais de Bazin, atraídos principalmente em função da

diferença entre capturar e apresentar a realidade como algo significativo,

e usá-la como um fator na produção de um significado secundário. Essa

diferenciação torna-se muito mais pronunciada neste ensaio, em que cita

nomes como Erich von Stroheim, Jean Renoir, Orson Welles, Carl

Theodor Dreyer, Robert Bresson, diretores que acreditam na imagem

como realidade, que creem no conteúdo objetivo de suas imagens, e, por

outro lado, menciona David Wark Griffith e Sergei Eisenstein, diretores

que acreditam na imagem como alusão à algo, que precisam adicionar

significado às imagens, por meio da manipulação plástica da montagem

(BAZIN, 2010, p. 63-66).

Nessa altura, Bazin destaca dois importantes cineastas, Jean

Renoir e Orson Welles, como manifestações de um novo tipo de cinema,

baseado na produção dramática não através da edição, mas, em vez

disso, na apresentação da realidade por meio do plano-sequência, do uso

da profundidade de foco e de campo, processos estilísticos que

respeitam a continuidade do espaço dramático e, naturalmente, de sua

duração. Em relação à profundidade de campo, o autor argumenta que

afeta a relação entre o espectador e a imagem pela recusa de determinar

a atenção do espectador. Além do mais, ela produz uma relação mais

realista com o espaço visto e, assim, possui um papel mental mais ativo

e ainda uma contribuição para o olhar do espectador (BAZIN, 2010, p.

73-75).

A relação entre espectador e imagem é parte integrante, para o

crítico francês, de outro efeito, o da metafísica, ou seja, a presença de

ambiguidade, uma parte imanente do real cuja justa replicação é

possível por meio de certos sistemas formais. Retomando o manto

filosófico do ceticismo, a rejeição de Bazin por certas formas de

montagem reside em dois esquemas: a defesa da polissemia frutífera da

realidade e da defesa do espectador livre e ativo. Chega-se, então, a um

ponto crucial do seu trabalho ontológico e fenomenológico: o louvor da

ambiguidade como uma virtude do real, e o reconhecimento do nosso

lugar não como observadores distantes do mundo, mas como sendo

implicados nele. O autor reforça esse ponto por meio de breves análises

de obras de Renoir e Welles, que, juntos com outros diretores do

neorrealismo italiano, rendem ao cinema o senso de ambiguidade

inerente em nossa experiência do real (BAZIN, 2010, p. 77).

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Essa é uma questão crucial porque põe em movimento dois

principais eixos da crítica de Bazin: uma clara hierarquia estilística e as

obras por meio das quais ele irá desenvolver sua abordagem crítica. Em

seus principais artigos, podemos discernir certa progressão que vai de

seu estudo do desenvolvimento da linguagem cinematográfica a um

interesse particular pelas obras cinematográficas do neorrealismo

italiano, seguido do exame mais apurado de determinados cineastas.

Particularmente, para o autor, o neorrealismo é uma espécie de

humanismo, antes de ser um estilo de cinema (BAZIN, 2010, p. 70).

Nos seus ensaios intitulados “O realismo cinematográfico e a

escola italiana da Libertação” e “De Sica diretor”, o autor apresenta o

objeto de sua análise, que possui bases fenomenológicas, discutindo

cineastas da geração do pós-guerra na Itália, especialmente, Roberto

Rossellini e Vittorio De Sica. Bazin tece elogios ao neorrealismo, pois

ele não se limita a utilizar realidade como um sinal político, mas

preserva o real de tais julgamentos, referindo-se a esse movimento como

um ato de humanismo revolucionário. Mais tarde, acrescenta que o

neorrealismo italiano é a pura aparência dos seres e do mundo,

conhecendo apenas imanência. De fato, para ele, o neorrealismo é uma

fenomenologia (BAZIN, 2010, p. 263 e 314).

Já em outra importante obra de Bazin (1998), denominada “Orson

Welles”, encontramos a mais clara articulação da imanência do gênio

artístico, em sua extensa análise sobre as progressões lógicas da

intenção para formação estética de Welles. Nessas passagens, Bazin

constrói uma noção de multicamadas da imanência, começando com a

noção da imanência do artista na concepção formal do texto. A partir

daqui, ele passa para a imanência da ação e da significação implícitas,

dentro da ação e da significação vistas pelo espectador e, por último,

para a imanência de muitos planos cinematográficos possíveis dentro

desse grande dispositivo do cinema wellesiano: o plano-sequência

(BAZIN, 1998, p. 68).

Plano-seqüência é o termo usado por Bazin para a utilização da

profundidade de foco e os movimentos de câmera, com o intuito de

evitar a necessidade de edição. Originalmente desenvolvido em seus

escritos sobre o filme “Cidadão Kane” (1941), Bazin estende sua

hierarquia do estilo fílmico ainda mais, no que poderia ser visto como a

mais tocante e pessoal obra sua: “Jean Renoir”. Nela, François Truffaut

escreve, no prefácio, que é o melhor livro sobre o cinema, escrito pelo

melhor crítico, sobre o melhor diretor; Bazin se propõe a desenvolver

plenamente a sua noção de realismo cinematográfico (BAZIN, 1971, p.

7).

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A conceituação de realismo de Bazin é um longo caminho desde

a tradição francesa do naturalismo desenvolvido na literatura de Honoré

de Balzac e de Émile Zola; entretanto, seu realismo é baseado na

fenomenologia da percepção cotidiana (ANDREW, 1984, p. 50).

Renoir, bem como outros autores modernos, como André Gide, Ernest

Hemingway e Albert Camus, atestam a noção de que a visão artística

não repousa na transformação da realidade, mas na seleção desde a

realidade do artista. Essa realidade empírica em Bazin consiste em

correspondências e em inter-relações que a câmera pode encontrar,

tornando, assim, o cinema especificamente capaz de capturar a

complexa rede de relações na continuidade espaço-temporal

(ANDREW, 1976, p. 154-155).

Evocando os escritos de Merleau-Ponty e a fenomenologia

gestáltica em geral, André Bazin afirma que a vocação de cineasta e a

genialidade estética de Renoir, residem fortemente na atenção e na

importância dada às coisas individuais em relação umas com as outras.

Essas relações compõem o que, para Bazin, é o essencial, que é

disponibilizar a visibilidade das coisas e de todos os seres em todos os

lugares e para o qual a ação narrativa e o drama são um mero pretexto

(BAZIN, 1971, p. 32 e 84).

Essa essência da rede de relações que compõe o nosso mundo não

é, contudo, disponível para todos os estilos de filmagem, sendo que o

realismo funciona apenas em relação à liberdade da encenação

cinematográfica. Em outras palavras, conforme temos encontrado

constantemente na obra de Bazin, a pureza fenomenológica da imagem

cinematográfica repousa inteiramente dentro do arranjo estilístico dos

elementos fílmicos. É essa conexão entre a forma do filme e a

importância fenomenológica do uso, por exemplo, da profundidade de

campo e de foco que confirma a unidade do ator e a sua relação com o

cenário, isto é, uma total interdependência do todo que é real, desde o

ser humano ao mineral (BAZIN, 1971, p. 29 e 90).

Como está evidente nas páginas da obra de Bazin sobre Jean

Renoir, há uma forte afinidade com a noção metafísica de unidade

existencial, que pode ser encontrada na fenomenologia de Merleau-

Ponty. Do ponto de vista de Bazin, não existe apenas um real que é

externo ao cinema, mas também há uma realidade na qual o cinema

desempenha um papel importante, tanto como um dispositivo de

memória e lembrança, quanto como uma força sociopolítica. Sua noção

do real implica o diretor, o ator e o espectador no mundo que os cerca,

de que são inseparáveis. Dessa forma, André Bazin estava na vanguarda

de sua época, construindo uma filosofia de cinema embasada em uma

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rede de conexões, por meio das quais a arte, a história e a prática de

produção e visualização são imanentes dentro de cada texto.

1.2 O CINEMA É UM PENSAMENTO

Aqui, iremos destacar dois autores, o filósofo Gilles Deleuze e o

cineasta Jean-Luc Godard, que, em ofícios diferentes, defendem as

estreitas afinidades entre filosofia e cinema. Para eles, o cinema não só

coloca o movimento na imagem, ele também coloca em movimento a

mente, o pensamento. Tanto nos filmes, quantos nos escritos, como um

pêndulo, vai-se naturalmente da filosofia para o cinema, mas também do

cinema para a filosofia.

1.2.1 Gilles Deleuze

A arte cinematográfica pode ser avaliada como meio de expressão

de um pensamento peculiar que manifesta não somente um conteúdo de

relações, mas os modos pelos quais essas relações se processam.

Partindo desse viés, o filósofo francês Gilles Deleuze fez outra leitura da

história do cinema, pois, em vez de entendê-la de forma retilínea – a

passagem do mudo para o sonoro, por exemplo, – estabeleceu uma

taxionomia, uma classificação das imagens cinematográficas

(DELEUZE, 1983, p. 7).

Nesse sentido, é essencial analisarmos o conceito de imagem

como sendo tanto o fundamento da arte cinematográfica, como o

elemento primordial da construção de uma narrativa fílmica. A imagem,

incorporada a elementos sonoros, dramáticos, cenográficos, espaciais e

temporais, pode ser distinguida por um objeto ou uma ação registrada e,

pela nossa capacidade de percebê-la, atribuímos-lhe sentidos sob

determinadas visões objetivas e subjetivas do mundo que nos cerca

(BUENO, 2010, p. 28).

É vasto o debate acerca da dicotomia entre ilusão e realidade

quando investigamos uma noção a respeito do conceito de imagem. Para

uns, a imagem busca a retratação da realidade em que vivemos de forma

a direcionar nossos olhares para outro universo, para outra realidade, a

realidade da tela. Para outros, a imagem continuamente será uma

abstração, um conceito filosófico impenetrável, ou seja, uma forma

indefinida de expressar o universo da criação artística (TARKOVSKI,

1998, p. 123).

Já para Gilles Deleuze, a questão da imagem se define como

sendo um organismo de percepção do mundo cujos parâmetros retratam

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o universo cinematográfico. A imagem comporia, no cinema, mais do

que algo visível, algo legível, assim como um diagrama, porque há o

que ver na imagem e por trás dela. O olho faz parte da imagem, é a

visibilidade dela, e o cinema é produtor de uma realidade e de uma

identidade entre movimento e tempo (DELEUZE, 1992, p. 68).

Vemos aqui que, no cinema, o que interessa para esse autor são as

relações entre imagens. Em duas de suas obras (DELEUZE, 1983 e

1985), dois grandes conceitos sobre cinema são criados e investigados;

são eles: “imagem-movimento” e “imagem-tempo”. Dentro dessa

perspectiva, distinguem-se esses dois regimes porque fazem, por meio

de relações entre imagens, uma “imagem indireta do tempo” e uma

“imagem direta do tempo”, respectivamente. Não se trata de uma

diferenciação “histórica” ou uma “evolução” o que diferencia os dois

regimes são os tipos de relações travadas entre o movimento e o tempo,

através dos tipos de imagens e de suas relações na montagem.

Deleuze justamente encontra no filósofo norte-americano Charles

Sanders Peirce a proposição de uma “semiótica não-significante”, isto é,

não baseada em regimes de signos linguísticos ou significantes. Os

livros de Deleuze dedicados ao cinema são livros de filosofia, na medida

em que contêm um pensamento que opera a partir da criação de

conceitos. Quer dizer, ele utiliza as imagens do cinema para criar

conceitos filosóficos. O cinema é pensamento, assim como a filosofia,

com a diferença de que o cinema não cria conceitos, mas sensações por

meio de imagens (DELEUZE; GUATARRI, 1992, p. 217).

Reforçando essa ideia, ele diz o seguinte: As únicas pessoas capazes de refletir efetivamente

sobre o cinema são os cineastas, os críticos de

cinema ou aqueles que amam cinema. Eles não

têm absolutamente necessidade da filosofia para

refletir sobre cinema [...]. Se a filosofia deveria

servir para refletir sobre algo, ela não teria

nenhuma razão de existir. Se a filosofia existe, é

porque ela tem seu próprio conteúdo [...]. Se digo,

vocês que fazem cinema, o que vocês fazem?

Vocês, o que vocês inventam não são conceito

(não é o seu negócio), mas blocos de movimento-

duração [...]. Não se trata de invocar uma história

ou de a recusar. Tudo tem uma história. A

filosofia também conta histórias. Ela conta

histórias com conceitos. O cinema conta história

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com blocos de movimento-duração (DELEUZE,

2012, p. 389-390).6

Podemos ainda antecipar que o regime da imagem-movimento

liga-se indiretamente à representação do denominado cinema narrativo

clássico, com o tempo subordinando-se ao movimento, o fluxo narrativo

sendo contínuo e as personagens agindo e reagindo frente a frente ao

dado. Por sua vez, o regime da imagem-tempo institui o chamado

cinema moderno, ao romper exatamente com o sistema sensório-motor

da imagem-movimento (BUENO, 2010, p. 30).

A questão da imagem “indireta” e “direta” do tempo é encarada

como um problema para o qual o regime da “imagem-movimento” e o

da “imagem-tempo” organizam campos de solução. Deleuze descreve

atos cinematográficos que dão sentido às imagens e que se relacionam

com elas. Esses atos são os seguintes: “enquadrar”, que é o ato de fazer

um quadro cinematográfico; “decupar”, que é o ato de determinar o

plano (o plano é o movimento no quadro e entre quadros); “montar”,

que é a determinação das relações entre os planos na composição do

todo do filme (DELEUZE, 1985a, p. 22, 31 e 44).

No regime da imagem-movimento, as relações entre imagens

seguem o modelo do esquema sensório-motor da percepção humana, no

sentido de que há um esforço em prolongar as imagens segundo um

sistema que pareça normal ao espectador. O esquema sensório-motor é

um processo de normalização do prolongamento de imagens. Nesse

esquema, há três processos imagéticos responsáveis pela formação das

imagens-movimento: a especificação, a diferenciação e a integração

(BUENO, 2010, p. 30).

Na especificação, diante de uma situação real, procede-se a um

enquadramento que especifica o que a personagem vê (imagem-

percepção), o que sente (imagem-afecção) ou o que faz (imagem-ação);

6 Na versão original: [...] les seuls gens capables, effectivement, de réfléchir sur le

cinéma, se sont les cinéastes, ou les critiques de cinéma, ou ceux qui aiment le cinéma.

Ils n’ont absolument pas besoin de la philosophie pour réfléchir sur le cinéma [...]. Si la

philosophie devrait réfléchir sur quelque chose, mais elle n’aurait aucune raison

d’exister. Si la philosophie existe, c’est qu’elle a son propre contenu [...]. Je dis, vous qui

faites du cinéma, qu’est-ce que vous faites? Je dirai juste ce que vous inventez, ce n’est

pas des concepts, ce n’est pas votre affaire, ce que vous inventez c’est ce que l’on

pourrait appeler des blocs de mouvements-durée [...]. Il n’y a pas question d’invoquer

une histoire ou de la récuser. Tout a une histoire. La philosophie aussi raconte des

histoires. Elle raconte des histoires, des histoires avec des concepts. Le cinéma, je pense,

mettons, supposons, qu’il raconte des histoires avec des blocs de mouvements-durée

(DELEUZE, 2003, p. 292).

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na diferenciação, a decupagem escolhe e ordena os tipos de relações

entre os objetos e as ações; por fim, na montagem, a integração dá um

sentido que as relações entre os objetos e as ações não têm por si só,

constituindo o todo que muda (LA SALVIA, 2006, p. 26).

Para Deleuze, há aqui o que ele chama de descrição orgânica: a

câmera enquadra imagens-percepção, imagens-ação ou outros tipos,

prolonga-as por um fio sensório-motor que tem a função de “fazer

como” a percepção humana para criar uma identificação e não confundir

o espectador. Em suas palavras:

Numa descrição orgânica, o real suposto é

reconhecido por sua continuidade, mesmo

interrompida, pelos raccords7 que a restabelecem,

pelas leis que determinam as sucessões, as

simultaneidades, as permanências: é um regime de

relações localizáveis, de encadeamentos atuais,

conexões legais, causais e lógicas (DELEUZE,

1990, p. 156).8

Para o regime da imagem-movimento, Deleuze examina os tipos

de imagens, os signos expressos e as relações entre imagens por meio da

análise da estilística dos autores e divide-os em quatro tendências de

conceber o cinema. Essas tendências, em sua era “clássica”, são a

tendência orgânica da escola americana, a dialética da escola soviética, a

quantitativa da escola francesa pré-guerra e a intensiva da escola

expressionista alemã (DELEUZE, 1985a, p. 45).

Deleuze descreve essas tendências marcando as suas diferenças

ao apresentar os variados autores que as compõem. Essa série de

tendências forma mais uma região que compõe o conceito de imagem-

movimento, como modulações do conceito de montagem e como

grandes casos de solução do problema da “imagem indireta do tempo”.

Como visto, para o autor, a montagem da imagem-movimento tem duas

faces: o intervalo entre planos e a relação entre planos criando o todo.

7 O termo francês raccord, que quer dizer “sutura”, em português, pode ter dois sentidos.

O primeiro corresponde à noção de “corte”, ou “corte” simples, e designa a mudança de

plano. O segundo refere-se à maneira como se dá essa mudança e qualquer elemento de

continuidade entre dois ou mais planos. 8 Na versão original: Dans une description organique, le réel suposé se reconnaît à sa

continuité, même interrompue, aux raccords qui la rétablissent, aux lois qui déterminent

les sucessions, les simultanéités, les permanences: c'est un régime de relations

localisables, d'enchaînements actuels, de connexions légales, causales et logiques

(DELEUZE, 1985. p. 166).

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Nas quatro tendências, há diferentes maneiras de relacionar as

duas faces: intervalo e todo orgânico, na escola americana; o salto

qualitativo e a totalização dialética, nos soviéticos; a unidade numérica e

a totalidade desmedida do sublime matemático, na escola francesa; o

grau intensivo e a totalidade intensiva do sublime mecânico, na escola

alemã (DELEUZE, 1985a, p. 45, 74-75).

A escola americana tem em David Wark Griffith o seu inventor.

O cineasta norte-americano concebeu a obra cinematográfica como um

organismo, uma unidade na diversidade sob a forma de dualismos: bem-

mal, rico-pobre etc. Daí que a denominada “montagem paralela”

estabelece, por meio de relações binárias entre esses pares, um ritmo que

faz a imagem de uma parte suceder a imagem de outra parte. Desse

modo, a montagem à americana compõe a descrição de conjuntos e a

confrontação dos conjuntos. Assim, sempre é necessário alternar a

descrição do conjunto e partes do conjunto (DELEUZE, 1985a, p. 45-

47).

O russo Serguei Eisenstein é o artífice da escola soviética que tem

na “montagem dialética” sua especificidade. Esse cineasta concebe a

unidade dialética para a montagem, em que um se desdobra e volta a ser

uno na síntese. Mas aqui se tem uma “montagem de oposição” que pode

ser qualitativa (as águas/a terra), quantitativa (um/vários), intensiva (a

luz/as trevas) e dinâmica (descida/subida). A chamada “montagem por

saltos qualitativos” faz a passagem de uma para a outra ser qualitativa

quando há o surgimento súbito de uma nova qualidade. A “montagem de

atrações” ajuda nesse efeito através do patético, entendido como pathos,

a paixão, o sentimento de dar-se conta da nova qualidade (LA SALVIA,

2006, p. 38).

Na escola francesa, o principal expoente é o cineasta Abel Gance.

Essa escola fez da quantidade de movimentos e das relações métricas a

sua particularidade. A escola francesa está marcada por certo

cartesianismo na composição mecânica das imagens. Na explicação de

Deleuze (1985a, p. 67):

[...] o intervalo tornou-se unidade numérica

variável e sucessiva que entra em relações

métricas com os outros fatores, definindo em cada

caso a maior quantidade relativa de movimento na

matéria e para a imaginação; o todo tornou-se o

simultâneo, o desmesurado, o imenso, que reduz a

imaginação à impotência e a confronta com o seu

próprio limite, fazendo nascer no espírito o puro

pensamento de uma quantidade de movimento

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absoluto que exprime toda a sua história ou sua

mudança, seu universo.9

Por último, mas não menos importante, considera-se que um

dos mais relevantes aspectos da escola expressionista alemã está na

questão da luz e dos movimentos intensivos da luz e das trevas. A luz

supõe as brumas e as sombras que escondem a vida não orgânica das

coisas e o espírito inconsciente perdido nas trevas. A alternância das

sombras e da luz é o movimento desse cinema que expressa um sublime

dinâmico definido pelo filósofo como:

[...] é a intensidade que se eleva a tal potência, que

ofusca ou aniquila nosso ser orgânico, enche-o de

terror, mas suscita uma faculdade pensante através

da qual sentimo-nos superiores ao que nos

aniquila, para descobrirmos em nós um espírito

supra-orgânico que domina toda a vida orgânica

das coisas: então não temos mais medo, sabendo

que nossa 'destinação' espiritual é propriamente

invencível (DELEUZE, 1985a, p. 73).10

Para Deleuze, a generalidade das montagens descritas

anteriormente reside no fato de elas colocarem a imagem

cinematográfica em relação ao todo. Oferece-se uma imagem indireta do

tempo, tanto na imagem-movimento particular, quanto no todo do filme.

Podemos ver, dessa forma, que a imagem-movimento possui duas faces:

uma se volta para os conjuntos e suas partes, e a outra para o todo e suas

mudanças (DELEUZE, 1985a, p. 75).

9 Na vesão original: [...] l'intervalle est devenu l'unité numérique variable et sucessive

qui entre dans des rapports métriques avec les autres facteurs, définissant dans chaque

cas la plus grande quantité relative de mouvement das la matière e pour l'imagination; le

tout est devenu le Simultané, le démesuré, l'immense, qui réduit l'imagination à

l'impuissance et la confronte à sa propre limite, faisant naître dans l'esprit la pure pensée

d'une quantité de mouvement absolu qui exprime toute son histoire ou son changement,

son univers (DELEUZE, 1983, p. 72). 10 Na versão original: [...] c'est l'intensité qui s'élève à une telle puissance qu'elle éblouit

ou anéantit notre être organique, le frappe de terreur, mais suscite une faculté pensante

par laquelle nous nous sentons supérieur à ce qui nous anéantit, pour découvrir en nous

un esprit supra-organique qui domine toute la vie inorganique des choses: alors nous

n'avons plus peur, sachant que notre destination spirituelle est proprement invincible

(DELEUZE, 1983, p. 79-80).

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Já com referência ao conceito da imagem-tempo, Gilles Deleuze

mostra que a quebra ou o afrouxamento dos vínculos sensório-motores

dá lugar a situações ópticas e sonoras puras, formando assim os

primeiros signos (optsignos e somsignos) de diferenciação de um regime

do outro. Esses são o primeiro aspecto da imagem-tempo ao questionar a

ação, ao fazer nascer a necessidade de ouvir e de ver e ainda por

proliferar espaços vazios ou desconectados. Os novos signos rompem

com o esquema sensório-motor da montagem clássica e exigem o

esforço criativo dos autores na construção de novos estilos (LA

SALVIA, 2006, p. 44).

Para o regime da imagem-tempo, Deleuze trabalha outra série de

elementos que compõe o conceito, organizando outros casos de solução

que agora fazem uma “imagem direta do tempo”. Os dois regimes não

se opõem como diametralmente opostos, porém diferenciam-se através

das diversas relações entre os seus inúmeros elementos, organizando

diferentes soluções para os seus distintos problemas. Os conceitos

entram, assim, em uma relação de diferenciação dinâmica (BUENO,

2010, p. 33).

Na elaboração do conceito de imagem-tempo, há o afrouxamento

dos vínculos sensório-motores e a necessária busca de outras formas de

prolongar as imagens. As situações ópticas e sonoras puras são uma

zona intermediária de vizinhança entre a imagem-movimento e a

imagem-tempo, porque essas situações, impossibilitadas de se

prolongarem através do esquema sensório-motor, deslizam para outros

tipos de prolongamentos e outros tipos de imagens (LA SALVIA, 2006,

p. 46).

A passagem da imagem-movimento a uma imagem-tempo

implica uma outra relação com o real: no cinema, já não se trata mais de

representar ou de reproduzir um real já pronto, mas de produzir

múltiplas realidades, novos mundos possíveis nos quais o tempo já não

esteja subordinado ao movimento ou mesmo a uma sequência

irreversível de passado-presente-futuro.

Podemos dizer ainda que, se antes o movimento recebia sua regra

de um esquema sensório-motor, apresentando, por exemplo, a história

linear de uma personagem que reagia a uma determinada situação, com

o advento da imagem- tempo o esquema sensório-motor desmorona em

favor de movimentos não orientados, desconexos, levando as

personagens a viverem não mais uma história linear, mas devires,

acontecimentos disruptores que transbordam uma apreensão linear ou

causalista do tempo (VASCONCELLOS, 2006, p. 117).

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Será preciso, então, das imagens ópticas e sonoras puras chegar

às imagens vindas do tempo e às imagens vindas do pensamento. Nesse

caso, são as denominadas “imagens-cristal” que dão o tempo e o

pensamento diretamente. Na imagem-cristal, o passado não é sucedido

pelo presente que ele não é mais, ele se conserva e coexiste com o

presente que passa. O presente é a imagem atual e seu passado

contemporâneo é a imagem virtual. A indiscernibilidade dessas imagens

em uma mesma imagem forma a imagem-cristal.

Segundo Deleuze (1990, p. 121):

O que o cristal revela ou faz ver é o fundamento

oculto do tempo, quer dizer, sua diferenciação em

dois jorros, o dos presentes que passam e dos

passados que se conservam. De uma só vez o

tempo faz passar o presente e conserva em si o

passado.11

Podemos notar que a imagem-cristal não é o tempo, entretanto

vê-se o tempo no cristal. Para Deleuze, “na imagem-cristal se vê o

tempo em pessoa, um pouco de tempo em estado puro” (DELEUZE,

1990, p. 103). A imagem-tempo dará o tempo não porque a imagem-

movimento não o dava (a imagem-movimento dava o tempo através do

intervalo mínimo entre imagens do movimento entre os planos e

totalidade aberta ao fazer passar os planos), mas porque a imagem-

tempo oferece outras percepções do tempo.

É relevante pontuar que uma dessas percepções é a chamada

ordem do tempo, que se divide em dois cronosignos, a partir da

diferenciação elaborada pelo filósofo Henri Bérgson, entre lençóis de

passado e pontas de presente, isto é, a diferenciação entre a coexistência

virtual dos lençóis de passado e as pontas de presente como estados mais

contraídos de toda a memória (LA SALVIA, 2006, p. 58). O

encadeamento de lençóis de passado (diferentes lençóis enquanto fatos

passados que coexistem na memória) ultrapassa a memória psicológica e

atinge a memória-mundo, pois “não é a memória que está em nós,

11 Na versão original: Ce que le cristal révèle ou fait voir, c'est le fondement caché du

temps, c'est-à-dire sa différenciation en deux jets, celui des présents qui passent et celui

des passés qui se conservent. A la fois le temps fait passer le présent et conserve en soi le

passé (DELEUZE, 1985. p. 129).

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somos nós que nos movemos numa memória-ser, memória-mundo”

(DELEUZE, 1990, p. 121).12

Para esses cronosignos, perdeu sentido falar em verdadeiro e

falso, pois, por todo lado, a potência do falso faz o impossível proceder

do possível e o passado não ser necessariamente verdadeiro. A potência

do falso não busca a aspiração ao verídico, pois ela significa a

representação do acontecimento como pré-existindo a sua narração.

Desse modo, a potência do falso é aquela que inventa o acontecimento,

ao mesmo tempo que o narra. É o próprio processo de descrição

cristalina, uma vez que o narrador é pego em “flagrante delito de

fabulação”, inventando suas histórias, mesmo sob a pena de destruí-las

mais tarde em favor de novas construções. Por isso, a potência do falso

está intimamente ligada aos presentes inconciliáveis ou passados não

necessariamente verdadeiros (LA SALVIA, 2006, p. 58-59).

São essas características que podemos constatar principalmente

em produções cinematográficas do pós 2.ª guerra mundial. Nelas, por

exemplo, o tempo passa a ser personagem central, exigindo uma

utilização totalmente nova dos recursos da linguagem audiovisual. Sai

de cena o par “relação sensório-motora/imagem indireta do tempo”,

substituído por uma relação não localizável entre “situação ótica e

sonora pura/imagem direta do tempo” (VASCONCELLOS, 2006, p.

117). O falso raccord13 seria um exemplo disso, ao permitir saltos

espaciais e temporais que romperiam a transparência de uma narrativa

considerada “realista”.

Deleuze observa que, na década de 40, no pós-guerra, surgiram,

nas imagens do cinema, tentativas de romper com a imagem do tempo

subordinada ao movimento, por meio da nouvelle vague francesa, do

neorrealismo italiano, e mesmo no cinema americano, com os filmes de

Orson Welles, por exemplo. De repente, as situações já não se

prolongam em ação ou reação como exigia a imagem-movimento

(BUENO, 2010, p. 35-36).

São puras situações óticas e sonoras, nas quais a personagem não

sabe como responder, espaços desativados nos quais ela deixa de sentir e

agir, para partir para a fuga, a perambulação, o vaivém, vagamente

indiferente ao que lhe acontece, indecisa sobre o que é preciso fazer. A

situação já não mais se prolonga em ação por intermédio das afecções.

12 Na versão original: La mémoire n'est pas en nous, c'est nous qui nous mouvons dans

une mémoire-Être, dans une mémoire-monde (DELEUZE, 1985, p. 102). 13 O falso raccord pode ser entendido como uma mudança de planos dissonantes, que

escapam à lógica da transparência realista. Um exemplo disso é quando um personagem

começa uma frase em uma cena e ela é concluída por outro personagem em outra cena.

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Ela está cortada de todos os seus prolongamentos, só vale por si mesma,

tendo absorvido todas as suas intensidades afetivas, todas as suas

extensões ativas (VASCONCELLOS, 2006, p. 120).

A imagem-tempo do cinema moderno possui uma série de

características a partir das quais é possível pensar uma reversão de uma

imagem representativa do pensamento que se assenta nas imagens-

movimento do cinema clássico: 1) o desmoronamento do esquema

sensório-motor; a recusa da montagem e do extracampo14 como

redimensionamento do Todo; a substituição da narratividade pela

descrição; 2) o reencadeamento dos cortes irracionais no lugar do

encadeamento dos cortes racionais; 3) a imagem-som é configurada pela

“legibilidade” da imagem e pela “visibilidade” do som, que, em outras

palavras, pode ser chamada de disjunção entre a imagem e o som

(VASCONCELLOS, 2006, p. 118).

Um dos mais claros exemplos de imagem-tempo é o roteiro

elaborado pela escritora francesa Marguerite Duras para o filme

“Hiroshima, mon amour”, de 1959, de Alain Resnais. Aliás, tanto a

escritora como o cineasta são citados inúmeras vezes no livro de

Deleuze sobre a imagem-tempo (DELEUZE, 1990, p. 141-153, 248-

251, 305-310). Há, no filme, uma disjunção entre o visual e o sonoro

que, no entanto, são conectados em uma espécie de relação não

totalizável, uma integração irracional e incomensurável entre o visual e

o sonoro.

Na obra de Resnais, vemos uma coisa e a fala nos diz outra coisa.

Distância entre o ver e o falar, entre o visível e o dizível, entre as

palavras e as coisas. O narrador viu tudo, o narrador viu nada. Inventou

tudo, mas também pode não ter inventado nada. A imagem que abre o

filme com os corpos entrelaçados de dois amantes, uma francesa e um

japonês, é entrecortada por imagens do que se supõe ser um

documentário sobre os efeitos da bomba atômica em Hiroshima

(VASCONCELLOS, 2006, p. 130).

No entanto, algumas das cenas do documentário são fictícias. As

palavras ternas dos dois amantes se contrapõem todo tempo à imagem

dos trágicos efeitos de Hiroshima, e a descrição audível dos efeitos da

bomba se contrapõe à visualização de cenas de carícias entre os

amantes. Essa transformação é o convite a uma nova pedagogia do

olhar: não mais uma pedagogia da imagem-movimento, mas uma

pedagogia da imagem-tempo. O olhar, antes habituado a seguir as

14 Remete ao que não se encontra presente na tela. Designa o que existe fora, ao lado ou

em volta do que está enquadrado.

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sequências de imagem-ação, a perseguir o desenrolar de uma trama que

se resolve no final, é convidado a um estado de estranhamento, de

paralisia momentânea, de um não saber o que fazer ou o que seguir. É

nesse espaço que irrompe um novo espaço-tempo para o pensamento e

um novo exercício de subjetivação (VASCONCELLOS, 2006, p. 131-

132).

Segundo Deleuze (1990, p. 330), o cinema moderno cria novas

imagens que evitam os recursos do flashback e do extracampo,

inventando outros recursos que estabelecem novas relações nos planos

do tempo e do espaço cinematográficos. E, nessas relações entre o visual

e o sonoro, estão presentes alguns dos aspectos mais relevantes da

ultrapassagem das imagens-movimento para as imagens-tempo. No seu

dizer:

[...] o cinema moderno matou o flashback, tanto

quanto a voz off e o extra-campo. Ele só pôde

conquistar a imagem sonora impondo uma

dissociação desta e da imagem visual, disjunção

que não deve ser superada: corte irracional entre

ambas. E, no entanto, há uma relação entre elas,

relação indireta livre, ou relação incomensurável,

pois a incomensurabilidade designa uma nova

relação e não uma ausência. Eis que a imagem

sonora enquadra uma massa ou uma continuidade

da qual se vai extrair o ato de fala puro, isto é, um

ato de mito ou fabulação que cria o

acontecimento, que faz ascender o acontecimento

aos ares, e ele próprio (ato) se eleve numa

ascensão espiritual. E a imagem visual, por seu

lado, enquadra um espaço qualquer, espaço vazio

ou desconectado que ganha novo valor, pois vai

enterrar o acontecimento sob camadas

estratográficas, e fazê-lo descer como um fogo

subterrâneo sempre recoberto. Logo, a imagem

visual nunca mostrará o que a imagem sonora

enuncia (DELEUZE, 1990, p. 330).15

15 Na versão original: [...] le cinéma moderne a tué le flash-back, autant que la voix off et

le hors-champ. Il n'a pu conquérir l'image sonore qu'en imposant une dissociation de

celle-ci et de l'image visuelle, une disjonction qui ne doit pas être surmontée: coupure

irrationelle entre les deux. Et pourtant il y a un rapport entre elles, rapport indirect libre,

ou rapport incommensurable, car l'incommensurabilité désigne un nouveau rapport et

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O cinema, na acepção de Gilles Deleuze, não é uma língua

universal ou primitiva, nem mesmo uma linguagem. O cinema pode ser

pensado como materialidade, como uma matéria pensante, autônoma, o

que o filósofo chama de matéria inteligível. Essa matéria inteligível traz

à luz movimentos e processos de pensamento (imagens pré-linguísticas)

e pontos de vista tomados sobre esses movimentos e processos (signos

pré-significantes). Essas imagens pré-linguísticas e esses signos pré-

significantes fazem do cinema uma “psicomecânica” que possui uma

lógica própria.16 Essas imagens e esses signos tornam o cinema uma

poderosa forma de criação espiritual, uma forma de pensamento com

imagens. Em suma, o pensamento do cinema e da arte em Deleuze não

propõe uma visão sobre, ou seja, uma reflexão acerca das expressões

artísticas ou cinematográficas, pois o cinema e a arte configuram-se

como uma singular ontologia (BUENO, 2010, p. 38-39).

Nesse sentido, as relações entre imagens e sons criam uma nova

configuração de cinema que, além de fortalecer sua produção conceitual,

corrobora com uma nova imagem do pensamento. O espaço do cinema

torna-se um espaço de irrupção do diferente, um campo de imanência

para o exercício do pensamento e da alteridade. Uma importante

contribuição trazida por Deleuze é justamente a desconstrução da

afinidade natural entre o pensamento e a verdade. Para ele, o

pensamento não nasce sem algo que o force a pensar, algo que violente

o sujeito e o force a pensar. O pensamento só funciona em relação com

uma força que o faça pensar, força essa que não tem nada a ver com a

força de vontade do sujeito em conhecer (BUENO, 2010, p. 39).

O pensamento busca um mundo diferente do mundo das

significações. As forças que se encontram com o pensamento são as

forças do caos, forças não formadas, forças virtuais ainda informes. O

pensamento tem uma afinidade com o caos. E é o contato com o caos,

ou seja, as diferentes formas de entrar em contato com o caos que vão

singularizar as diferentes formas de pensar, que, para Deleuze, se

non pas une absence. Voilà que l'image sonore cadre une masse ou une continuité d'où

va s'extraire l'acte de parole pur, c'est-à-dire un acte de mythe ou de fabulation qui crée

l'événement, qui fait monter l'événement dans l'air, et qui monte lui-même dans une

ascension spirituelle. Et l'image visuelle de son côté cadre un espace quelconque, espace

vide ou déconnecté qui prend une nouvelle valeur, parce qu'il va enfouir l'événement sous

de couches stratigraphiques, et le faire descendre comme une feu souterrain toujours

recouvert. Jamais, donc l'image visuelle ne montrera ce que l'image sonore énonce

(DELEUZE, 1985. p. 364). 16 O cinema considerado como psicomecânica, ou o autônomo espiritual, reflete-se em

seu próprio conteúdo, em seus temas, situações, personagens (DELEUZE, 1990, p. 311-

312).

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constituem seja no exercício da filosofia, seja no exercício das artes e

também do cinema: “Pensar é pensar por conceitos, ou então por

funções, ou ainda por sensações, e um desses pensamentos não é melhor

que o outro, ou mais plenamente, mais completamente, mais

sinteticamente pensado” (DELEUZE; GUATARRI, 1992, p. 253-254).

Assim, esse pensamento já não pressupõe estruturas

preexistentes, cria suas próprias possibilidades, seus próprios objetos a

pensar e sua própria forma cada vez que ganha a expressão. Ele é um

universo em perpétua expansão. É um pensamento experimental e não

um pensamento analítico. Seu objetivo nunca é descobrir ou resgatar o

real, mas a todo o momento produzi-lo. Um pensamento que jamais se

repete, um pensamento que só se constrói quando produz suas próprias

variações e seu próprio tempo.

1.2.2 Jean-Luc Godard

Faremos aqui uma exposição sucinta da importância do cinesta

Jean-Luc Godard para as reflexões do cinema. No último capítulo,

retomaremos o tema e o mostraremos de forma mais amplificada nas

relações intrínsecas entre o cinema godardiano e as ideias

merleaupontianas.

Godard é membro fundador, com os cineastas François Truffaut,

Jacques Rivette e Eric Rhomer, do movimento Nouvelle Vague francesa,

na década de 1950, fortemente influenciado pelos escritos teóricos de

André Bazin e pela pedagogia crítica do fundador da Cinemateca

francesa, Henri Langlois. Dentre as obras de seus colegas, o cinema

godariano é o menos conhecido, o menos visto e, talvez, o menos

compreendido. No entanto, seu rico acervo de obras, muitas vezes

difíceis, constitui um cinema; incluem-se aí, projetos inacabados e

ensaios sobre vídeo, um corpus que é o mais autoconsciente.17

Essa autoconsciência se faz visível, apresenta-se como o trabalho

da imagem, o que pode explicar a infeliz experiência do espectador

comum, que, por amor à ilusão, desaprendeu a ver precisamente a

imagem. Com o cineasta francês, a questão que anima os escritos de

André Bazin, “O que é cinema?”, torna-se uma busca, uma missão e um

problema permanente para o próprio cinema. De semelhante modo,

como o pintor Cézanne, Godard sabe muito bem que o que é possível

para o cinema não pode ser encontrado, exceto na obra em que ele está

17 Ver: GODARD, Jean-Luc. Godard par Godard. Paris: Cahiers du cinéma, 1950-

1984, v.1, 1984-1988, v.2.

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trabalhando (BLANCHOT, 1955, p. 246). O “verdadeiro cinema”, o do

gesto puramente cinematográfico, pode ser sempre criado e atualizado.

É preciso amá-lo, cegamente, de todo o coração (GODARD;

ISHACHPOUR, 2000, p. 41).

Nesse sentido, o cineasta é um operador principal em seu

trabalho, pois entre som e imagem, imagem e escrita, voz e texto,

música e som ocorre uma nova criação e o efeito de um “cinema puro”,

ou seja, aquele que traz lágrimas aos olhos. (BERGALA, 1999, p. 240).

Todavia, ao mesmo tempo em que há a beleza da criação, é impossível

dissociar do cinema o mal estar em que o trabalho se inscreve, que

diagnostica, lamenta e chora a sua doença, que é o fracasso dessa arte

para cumprir o seu papel, a sua recusa ou o esquecimento que ela é feita

para pensar, é um instrumento poderoso de pensamento. Em suma, o

trabalho de Godard situa-se no limite desse paradoxo, do cinema que

chora o esquecimento do próprio cinema, mas que não aspira negar ou

superar a possibilidade de se pensar com ele e sobre ele.

Esses aspectos podem ser vistos em seu filme intitulado “Duas ou

três coisas que eu sei dela”, 1966 (Deux ou Trois Choses Que Je Sais

d'Elle). Tal filme não pode ser considerado uma ficção, já que não há

enredo, nem forma dramática, nem personagens que sustentem uma

trama narrativa. Essa obra fixa-se, em grande parte do tempo, sobre as

imagens de Paris, com seus prédios em construções, seus conjuntos

habitacionais e seus habitantes despersonalizados. Também não é um

documentário a respeito de Paris, pois há cenas com atores e textos

visivelmente decorados, há ainda montagens, cenas tomadas em estúdio

e um grande número de imagens gráficas tiradas de revistas ou de

embalagens de produtos de consumo (MACHADO, 2004, p. 18).

Trata-se aqui, conscientemente, de um “filme-pensamento” ou de

um “filme-ensaio”, no qual o tema da reflexão pode ser o mundo urbano

sob a égide do consumo e do capitalismo, tomando como pano de fundo

a forma como se dispõe e se organiza a cidade de Paris. É uma espécie

de ensaio filosófico-antropológico em forma de um romance

audiovisual. O curisoso nesse filme é a maneira como Godard passa do

figurativo ao abstrato, ou do visível ao invisível, manejando apenas com

o recorte operado pelo enquadramento da câmera. Por exemplo, vemos,

em um café de Paris, uma pessoa anônima colocar açúcar no seu café e

mexer o líquido com uma colher (MACHADO, 2004, p. 18-19).

Repentinamente, surge um close-up da imagem da xícara, o café

se transforma em uma galáxia infinita, com bolhas explodindo e o

líquido escuro girando em espirais. Mais à frente, uma mulher, em sua

cama, fuma um cigarro antes de dormir, porém um primeiríssimo plano

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transfigura completamente o fumo ardente do cigarro, transformando-o

em um tipo de mandala, um círculo mágico que emite as cores do arco-

íris.

Um dos pontos mais relevantes da preocupação do cineasta

francês com o cinema e o pensamento encontra-se na sua relação com a

pintura, em que o sentido das imagens ‒ ora mescladas entre a película e

o vídeo, ora trabalhadas digitalmente com cores aberrantes em filmes

como Sauve Qui Peut (la Vie) (1979), Passion (1982), Je vous salue Marie (1985) e Éloge de l'amour (2001) ‒ torna-se uma promessa de

imensa esperança no mundo em que habitamos. Por isso, a sua distância

de um tipo de cinema que é sobre e para o desejo do sujeito e o sujeito

do desejo, já que a felicidade de uma imagem para Godard são afetos

impessoais que não passam despercebidos (GODARD; ISHACHPOUR,

2000, p. 32-33).

Assim, de modo mais amplo, afirmamos que Godard pode ser

considerado o autor de cinema que traduz a consciência mais profunda

de sua herança artística, filosófica e pictórica. Dos filmes citados

anteriormente, Passion, Je vous salue Marie, Sauve Qui Peut (la Vie)

são os que mais diretamente trabalham os temas da pintura, do cinema e

da filosofia. O que importa em Passion é que aí são mostrados não

quadros, mas quadros se fazendo e se desfazendo. O autor refaz telas

célebres, explora-as, desmonta e monta, leva-as a seu limite e tenta

variantes, combina-as entre si e as simplifica. Em suma, ele as faz

trabalhar, põe-nas em questão (DUBOIS, 2004, p. 253-254).

Essa relação é ainda mais fortemente atuante em Je vous salue

Marie, Sauve Qui Peut (la Vie), que colocam questões mais imediatas.

Como pintar? Como representar? E, aliás, o que representar? O sol, as

nuvens, a natureza, mas como pintar as coisas novamente, de modo

novo? Questões incansavelmente retomadas e variadas pelo próprio

Godard, no primeiro filmado citado, e que seriam uma das chaves para a

compreensão da obra. Nela, vemos certas imagens de coisas simples,

como as nuvens, uma menina, a Virgem Maria, um raio de sol

atravessando o céu, como analogias, provavelmente, da graça divina

visível.

Apesar da violência e da polêmica que a película Je vous salue

Marie suscitou na crítica cinematográfica dos anos 1980, é relevante

entender a radicalidade e a provocação que ele propõe, não somente com

referência à pintura, ao sagrado, à representação visual e aos mistérios

do mundo. Esses temas, na verdade, só interessam a Godard enquanto

cineasta-pensador de uma obra audiovisual. Por isso, o valor de ruptura

do filme está, antes de mais nada, no esforço incessante para produzir

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imagens que escapem ao domínio estritamente da linguagem, para,

assim, levar o cinema o máximo possível para a esfera do visual, da

visibilidade e da visualidade (DUBOIS, 2004, p. 256).

É nesse sentido que trabalha uma obra sua anterior, Sauve Qui

Peut (la Vie), na qual a pintura não aparece diretamente, mas a reflexão

filosófica sobre a imagem, sobre o movimento, sobre o instante toma

obliquamente toda a própria invenção do cinema. As desacelerações, as

câmeras lentas, as tomadas de pessoas e de paisagens de frente e de

costas e as paradas sobre as imagens-descomposições deste filme tentam

resumir toda a problemática da ontologia temporal da imagem

fotográfica e cinematográfica. O cinema é demonstração, é mostração, é

visual (AUMONT, 2004, p. 229).

Em essência, e subsumindo as diferenças, há uma mesma

preocupação nos três filmes descritos: pictorializar o cinema, injetar nele

questões e problemas de um pintor. Ao mesmo tempo, nessas obras e,

sobretudo, nas entrelinhas do discurso que as acompanha, mostra-se,

fortemente, o sentimento de perda, de fim, a nostalgia de certo tipo de

cinema que deixou de existir, o cinema da pura imagética; mote esse

constante em Godard, há anos. Todavia não só o cinema se perdeu, a

pintura, de certa maneira, tomou o caminho errado. É preciso, então,

voltar ao modelo pictórico, paragmático da arte solitária, o artesão, o

pintor cineasta, figuras-chave do criador (AUMONT, 2004, p. 236-237),

em suma, um ser-imagem de todas as coisas.

O cineasta francês tem repousado inteiramente nessa tensão entre

fazer ainda filmes, ou seja, objetos circunscritos e identificados, e ser

completamente um artista de obras singulares que perscrutam um estado

do olhar, uma escrita do cine-vídeo-pensamento, um ser-imagem total.

Podemos considerar Godard um artista de um projeto desmesurado, no

qual o cinema, como audiovisual, como natureza e como cultura, está

em suas mãos para repercutir os estrondos e os tremores de uma vida

inteira (RANCIÈRE, 2013, p. 178).

Na verdade, não há mais um sujeito-Godard, como criador

autônomo ou um iniciador-manipulador, pois, atualmente, já não se trata

mais de escrever ou de inventar uma imagem, mas de inscrevê-la em um

mundo, ou seja, em uma narrativa cinematográfica, como veremos a

seguir.

1.3 NARRATIVA E CINEMA

Podemos ponderar que a narrativa é o meio pelo qual os

enunciados discursivos orais, escritos ou imagéticos são empregados

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com o escopo de mostrar acontecimentos reais ou fictícios. Por ela,

estabelece-se a composição de uma rede que abrange locutor e

interlocutor. Desse modo, a narrativa é um ato interativo entre aquele

que conta e o agente de interação. Os estilos narratológicos de um

indivíduo partem da apreensão do seu espaço. Essas atitudes derivam da

percepção que ele elabora ao longo de sua experiência social, filosófica

e cultural (SANTOS FILHO, 2007, p. 37). Conforme Merleau-Ponty

(2006, p. 3), tudo que se aprendeu do mundo, mesmo por ciência,

aprendeu-se de um ponto de vista do indivíduo ou de um conhecimento

do mundo sem o qual os elementos da ciência não poderiam expressar

coisa alguma.

Como percebemos, a ciência não vem na primeira posição como

resposta do sujeito em seu mundo, mas a relação sujeito-mundo

constitui-se a partir das interações perceptivas do ser, porque o

indivíduo é quem constrói a ciência e seus símbolos. O mundo é o

sujeito reproduzido em si mesmo, sem compartimentação. Narramos

algo que apreendemos. Narramos algo que agrupa os nossos sentidos

(SANTOS FILHO, 2007, p. 38). Genette (1979. p. 25) designa a história

como o significado, a narrativa como o significante, e a narração como o

ato narrativo criador que aqui se comporão como termos demarcados

para o que está sendo sugerido como análise da narrativa literária e

também da narrativa fílmica.

Ambas as narrativas serão previamente estudadas pelo que elas

possuem em comum. O ato de ler um romance e o ato de ver um filme

alargam o espaço para que o imaginário torne-se visível. Enquanto na

literatura, por exemplo, existe um ambiente pelo qual somos guiados a

sentir os personagens de uma obra, o cinema envolve todos os sentidos e

preenche sensações com imagem e som. As narrativas são histórias que

expressam o discurso do imaginário, tanto do autor, como do leitor e

espectador (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 114-115).

A narrativa também ocorre porque o indivíduo se permite ao

sonho, sonhando consigo e com seu lugar no instante em que ele existe.

Segundo Bachelard (1988) é preciso ser “sonhador de palavras”. As

palavras sonhadas são compreensíveis porque elas se originam das

experiências vivenciadas. Essas palavras experienciadas permitem-se

narráveis. O autor também diz: [...] “sonha-se antes de contemplar.

Antes de ser um espetáculo consciente, toda paisagem é uma

experiência onírica. Só olhamos com uma paixão estética as paisagens

que vimos antes em sonho” (BACHELARD, 2002, p. 5). Portanto as

elaborações narrativas ajustam-se em nós, despertam-nos os eventos e as

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alegorias míticas dos tempos primordiais da constituição do mundo de

nosso imaginário. Enredamos com palavras e imagens nossos destinos.

A literatura e o cinema, como também as outras artes, são

manifestações artísticas, por meio das quais o mito, também, com toda

pujança de seus exemplos, manifesta-se no indivíduo mantendo seu

imaginário. Ainda permite que ele, ao idealizar, institua o belo de sua

alma, o mundo simbólico do encantamento. Ao mito não se dá

esclarecimentos, confia-se nele ou não, e é por esta razão que ele é

íntimo da arte (SANTOS FILHO, 2007, p. 38).

Do ponto de vista de Benedito Nunes (1988, p. 27),

fenomenologicamente nos encontramos com diveros tempos: “[...] na

obra literária de caráter épico ou narrativo, uma vez que a narrativa

possui três planos: o da história, do ponto de vista do conteúdo, o do

discurso, do ponto de vista da forma de expressão, e o da narração, do

ponto de vista do ato de narrar”. Certamente, quanto à história, o tempo

na literatura é de característica imaginária e, no discurso, é situado pela

apresentação de subsídios e de elementos linguísticos que dão sequência

ao enunciado.

Na narrativa cinematográfica, da mesma forma como na narrativa

literária, tempo e espaço são intrínsecos, ocorrendo na atualidade. Uma

projeção na tela pode recuar, antecipar, acelerar ou retardar, tudo está

amarrado ao ritmo que se dê ao filme. O espaço na narrativa literária é

assinalado pela associação espaço-temporal experenciada pelo

indivíduo. Esse espaço é plural. Um espaço apreendido que tem lugar no

presente do imaginário do leitor, onde o passado e o futuro são

presentificados. Os eventos do ontem se passam no agora imaginado no

ato da leitura, assim como o porvir (SANTOS FILHO, 2007, p. 39).

Por outro lado, o filme tem possibilidades visuais que o romance

não possui. Essas possibilidades visuais do cinema encontram pouco

paralelo à altura na literatura. Enquanto a narrativa literária detalha e

filtra, por meio da linguagem, aquilo a que se terá acesso, no filme, tem-

se certo grau de liberdade para escolher se a nossa atenção vai ser

dirigida a determinado detalhe e não a outro. Se, no cinema, o

espectador, inicialmente, possui um acesso mais rico a detalhes da cena

apresentada, por outro lado, o narrador pode ser menos perceptível. Tal

como na literatura, o cinema também distingue entre autor e narrador

(GONÇALVES, 2011, p. 21-22).

Afirma Vernet (2009, p. 111): O narrador “real” não é o autor, porque sua função

não poderia ser confundida com sua própria

pessoa. O narrador é sempre um papel fictício,

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porque age como se a história fosse anterior à sua

narrativa (enquanto é a narrativa que a constrói) e

como se ele próprio e sua narrativa fossem neutros

diante da “verdade” da história. Mesmo na

autobiografia, o narrador não se confunde com a

própria pessoa do autor. [...]. O narrador de fato

produz, ao mesmo tempo, uma narrativa e uma

história, da mesma forma que inventa certos

procedimentos da narrativa ou certas construções

da intriga.

O autor citado julga mais apropriado empregar o termo “instância

narrativa” em vez de narrador, levando em conta que o filme é uma obra

de uma equipe e demanda diversas séries de opções adotadas por muitos

técnicos, como produtor, roteirista, fotógrafo, iluminador, montador

(VERNET, 2009, p. 111). Já Schmidt (2009, p. 212) assinala problemas

na afirmação de que não há narrativa sem narrador no caso dos filmes de

ficção. Segundo ele, ainda que quase todos esses filmes, muitos deles

adaptações da literatura, apresentem numerosas capacidades de contar

histórias e pertençam, assim, a um meio predominantemente narrativo,

seus modos peculiares de apresentação multimídia e sua singular

combinação de elementos espaço-temporais os distinguem de formas

narrativas fundamentadas, sobretudo, na linguagem.

Segundo Schmidt, a falta de um sujeito narrativo é equilibrada

pelo termo “instância visual narrativa”, análoga à denominação que

propõe Vernet. David Bordwell (1985, p. 62), por sua vez, confere o

processo narrativo não a um narrador personificado, mas sim às técnicas

do filme, que atuam erigindo o mundo da história para alguns efeitos

específicos. Esse autor abdica o conceito de narrador em benefício de

uma teoria narrativa que aprecia mais o papel do espectador no processo

narrativo. A situação do filme não é de fato uma situação de

comunicação e, nesse sentido, ele indica que se abandone a preocupação

com a demarcação de um narrador no cinema, já que outorgar a todo

filme um narrador ou um autor implícito é consentir uma ficção

antropomórfica (GONÇALVES, 2011, p. 23).

As reproduções verbais e visuais possuem sua ligação mais forte

na sequencialidade, uma vez que os signos linguísticos e literários são percebidos ininterruptamente por meio do tempo, a maioria adotando

uma ordem sucessiva e causal. Essa sequencialidade, porém, pode ser

arquitetada de diversas maneiras e a narração literária e a

cinematográfica dispõem, ambas, de soluções que permitem a

manipulação do tempo e a inferência a certa causalidade entre eventos

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determinados. No entanto, enquanto o filme apresenta elementos visuais

mais concretos, a arte sem imagens da literatura desenvolve-se

unicamente no tempo e não proporciona um objeto mensurável como,

por exemplo, a pintura (BORDWELL, 1985, p. 8).

Apesar de o cinema e a literatura se aproximarem

admiravelmente no que concerne às suas habilidades narrativas, nem

sempre cinema e narração encontraram-se unidos. Logo que nasceu, o

cinema, segundo Vernet (2009, p. 89), possuía muito mais o aspecto de

instrumento de registro (científico, documental etc.) e o encontro com a

narração deveu-se à sua própria matéria expressiva, a imagem figurativa

em movimento. O referido autor parte da ideia de que qualquer objeto,

mesmo antes de sua representação, já é um discurso em si, uma vez que

possui um valor dentre uma variedade de valores reconhecíveis para a

sociedade.

Nesse sentido, Vernet (2009, p. 89-90) afirma: [...] um objeto é uma amostra social que, por sua

condição, torna-se um iniciador de discurso, de

ficção, pois tende a recriar em torno dele (mais

exatamente, aquele que o vê tende a recriar) o

universo social ao qual pertence. [...]. Assim, a

imagem de um revólver não é apenas o

equivalente do termo “revólver”, mas veicula

implicitamente um enunciado do tipo “eis um

revólver” ou “isto é um revolver”, que deixa

transparecer a ostentação e a vontade de fazer com

que o objeto signifique algo além de sua simples

representação. Desse modo, qualquer figuração,

qualquer representação chama a narração, mesmo

embrionária, pelo peso do sistema social ao qual o

representado pertence e por sua extensão. Para

perceber isso, basta contemplar os primeiros

retratos fotográficos, que instantaneamente se

tornam, para nós, pequenas narrativas.

Vernet (2009, p. 92) distingue, ainda, outros dois elementos

imprescindíveis para que exista narração no cinema: primeiramente, que

o desenrolar da história permaneça à disposição daquele que a conta e

que, dessa maneira, possa utilizar um adequado número de recursos para estabelecer seus efeitos; em segundo lugar, que a história adote um

desenvolvimento organizado, ao mesmo tempo, pelo narrador e pelos

modelos aos quais se adapta.

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No que concerne à relação entre as narrativas literárias e

cinematográficas, Jean Epstein (1983) fala de uma relação recíproca

entre as duas artes, já que, para ele, a literatura moderna está

impregnada de cinema. De forma recíproca, a arte fílmica muito

assimilou da literatura. Para Schmidt (2009, p. 212), é admissível

localizar, no filme, as basilares estratégias narrativas da literatura, em

que pese seus aspectos sejam um tanto diferentes. Esse autor recomenda

como mais adequado o termo “equivalências” para se referir a essas

estratégias comuns, que são muito mais complicadas do que

simplesmente questões de “adaptação” ou de “tradução”, por exemplo,

de um livro em um filme.

Já segundo Vernet (2009, p. 96), as competências narrativas que

avizinham o cinema e a literatura fazem parte de um domínio de estudos

mais abrangente: a narratologia.

Em suas palavras: Por definição, o narrativo é extra-cinematográfico,

pois se refere tanto ao teatro, ao romance, quanto

simplesmente à conversa cotidiana: os sistemas de

narração foram elaborados fora do cinema e bem

antes de seu surgimento. Isso explica o fato de que

as funções dos personagens de filmes possam ser

analisadas com os instrumentos forjados para a

literatura por Vladimir Propp (proibição,

transgressão, partida, retorno, vitória) ou por

Algirdas-Julien Greimas (adjuvante, oponente).

Esses sistemas de narração operam com outros

nos filmes, mas não constituem o cinematográfico

propriamente dito: são o objeto de estudo da

narratologia, cujo campo é bem mais vasto que

apenas o da narrativa cinematográfica [...]. Essa

distinção [...] não deve fazer esquecer que cinema

e narrativa não caminham sem interações e sem

que seja possível estabelecer um modelo próprio

ao narrativo cinematográfico, diferente, segundo

certos aspectos, de um narrativo teatral ou

romanesco (VERNET, 2009, p. 96).

Assim, constituir um padrão de análise da narrativa próprio para o

cinema foi uma preocupação para diversos autores. Uma característica

dessa preocupação são os entraves de ordem material que a análise de

um filme pode abarcar, tais como os abordados por Francis Vanoye e

Anne Goliot-Lété (1994, p. 10).

Na explicação deles:

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Enquanto a análise literária explica o escrito pelo

escrito, a homogeneidade de significantes

permitindo a citação, em suas formas escritas, a

análise fílmica só consegue transpor,

transcodificar o que pertence ao visual (descrição

de objetos filmados, cores, movimentos, luz etc.)

do fílmico (montagem das imagens), do sonoro

(músicas, ruídos, grãos, tons, tonalidade das

vozes) e do audiovisual (relações entre imagens e

sons) (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p. 10).

O cinema, por esse viés, pela sua capacidade de traduzir a

realidade do universo físico, captando todos os seus elementos por meio

da sua particular aptidão para o imagético, estabelece, amiúde, com o

real uma relação de tipo densamente narrativo. Ainda que seja evidente

o aspecto de arranjo espacial e verbal, que o aproxima, por exemplo, do

teatro e da literatura, bem como o imperativo de uma condensação, tais

aspectos, quando bem analisados, manifestam diversidades de grande

importância, nomeadamente pelas relações que a imagem

cinematográfica estabelece com outros elementos fílmicos, o que,

comumente, não acontece na cena teatral ou no discurso literário.

Nesta altura, é relevante frisar que o cinema possui algumas

diferenças e semelhanças com a literatura, como compreendido,

previamente, por Merleau-Ponty (1983, p.14-15). Posteriormente, não

houve por parte desse autor um desenvolvimento mais pormenorizado

sobre esse tema, talvez devido a seu falecimento precoce, como

aconteceu acerca de outras formas artísticas, como a pintura, por

exemplo. Todavia alguns autores que veremos a seguir, trabalhando

algumas teses merleaupontianas, como percepção, sentido, tempo e

espacialidade na arte narrativa do cinema, contribuem para uma

continuidade do pensamento artístico do filósofo francês.

Uma das características mais cruciais a considerarmos na

semelhança ou na distinção entre a literatura e o cinema tem a ver com o

fato de se tratar de dois sistemas de significações distintos, sendo que o

primeiro é de natureza verbal e é apreendido conceptualmente, enquanto

o segundo possui uma natureza heterogênea e é captado sensorialmente,

como fenômeno da percepção. Com a exatidão de análise que caracteriza o seu pensamento, Roman Ingarden (1979) refere-se à

intuição imaginária da leitura literária, por oposição à percepção

sensível da obra cinematográfica. Ambos os sistemas revelam intensa

tendência simbólica, sendo o grau imagético e icônico no cinema mais

notável e mais decisivo do que na literatura. É nesse sentido que

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Bluestone (1966, p. 1) assevera que é entre a percepção da imagem

visual e o conceito da imagem mental que jaz a diferença entre os dois

sistemas.

Já, David Bordwell (1985, p. 29) indica uma teoria da narrativa

cinematográfica entendendo que a narração no cinema não representa

uma condição de comunicação nos modelos linguísticos; este estudioso

admite que o espectador é um ente ativo e consciente, capaz de realizar

as intervenções mentais necessárias para que a narração de fato ocorra.

Partindo desse ponto, Bordwell fundamenta-se na teoria construtivista

da psicologia, para quem pensar e perceber são procedimentos

operacionais designados a uma finalidade. Dessa maneira, o organismo

é que estabelece a percepção, com fundamento em inferências

inconscientes, já que os estímulos sensoriais que ele recebe não

poderiam por si só se incumbirem de tal empreitada, uma vez que são

dúbios e inacabados (GONÇALVES, 2011, p. 26).

A percepção é um procedimento inferencial de comprovação de

hipóteses, por meio do qual a organização dos dados sensoriais se

determina especialmente pela expectativa, pelo conhecimento

armazenado, pelos processos de soluções de problemas e por outras

operações cognitivas. Com a tendência de ser antecipatória, a percepção

confirma ou não a expectativa, baseando-se em hipóteses que são

testadas para depois serem aceitas ou rechaçadas, e, neste último caso,

uma nova hipótese é gerada. As hipóteses baseiam-se, antes de tudo, em

conhecimento armazenado. Os conjuntos organizados desses

conhecimentos são o que Bordwell (1985, p. 29, 31) chama de

“esquemas''. Exemplos de esquema seriam, segundo ele, a imagem

mental de um pássaro, no que diz respeito ao reconhecimento visual, e o

saber andar de bicicleta, um modelo de procedimento.

Todo esse processo é uma atividade aprendida e dominada, um

ciclo de atividades perceptivo-cognitivas, que esclarece a natureza

contínua da percepção. No que diz respeito à percepção da arte,

Bordwell (1985, p. 33) explica que, ao entrarmos em contato com a arte,

em vez de meditarmos nos resultados pragmáticos da percepção,

recuamos a nossa atenção para o próprio processo. O que na vida mental

cotidiana é inconsciente torna-se consciente. Nossos esquemas são

conformados, expandidos e infringidos: um atraso na confirmação de

uma hipótese pode prolongar-se pelo bem do processo em si. E, como

todas as outras atividades psicológicas, a atividade estética possui

efeitos de amplo espectro. A arte pode reforçar, transformar ou até

mesmo questionar nosso repertório perceptivo-cognitivo normal.

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Como procedimento diferente daquele que ocorre na literatura, o

cinema utiliza-se de algumas “deficiências” psicológicas no sistema

visual humano, como, por exemplo, o fato de a retina ser incapaz de

acompanhar as modificações rápidas de luz. É impraticável para os

olhos impedir que ocorra o fenômeno da mobilidade aparente quando

mais de cinquenta flashes por segundo criam a ilusão de uma luz estável

(GONÇALVES, 2011, p. 27).

Além do mais, outro fator que trabalha a favor do cinema é a

própria situação da sala, uma vez que, com pouca luz, há menor

incidência de outros estímulos (que não aqueles que advêm do próprio

filme) embaraçando a concentração do espectador. Esses fatores, ao lado

da nossa competência para nos basearmos em nossas próprias

experiências para testar hipóteses e fazer inferências, agem a favor da

narração no cinema, além, é claro, do próprio material fílmico, que, por

meio de técnicas específicas, incentiva-nos a realizar as atividades

indispensáveis para a constituição do enredo.

Já no que se refere aos aspectos formais da narrativa

cinematográfica, Bordwell (1985, p. 49) conceitua três categorias como

integrantes desse tipo de narrativa: a “história” (fábula), a “trama” ou

intriga (syuzhet) e o “estilo”. A história como conceito da teoria desse

autor não se confunde com a diegese. Segundo ele, a história é a

construção imaginária que criamos, progressiva e retroativamente. A

história alia a ação como uma cadeia cronológica de causa e efeito dos

eventos, que ocorrem em uma duração e espaço dados. Idealmente, a

história pode estar incluída em uma sinopse verbal, tão particularizada

ou geral quanto requeiram as circunstâncias.

A história aqui não pode ser confundida com um acontecimento

pró-fílmico, já que, como aponta Bordwell (1985, p. 49), ela jamais está

materialmente presente em um filme. O que o filme providencia são

informações, ações representadas, que funcionam como pistas para que

o espectador construa a história. Uma mesma informação poderia ser

dada de muitas maneiras e, nesse sentido, há muitas formas de uma

narrativa cinematográfica incentivar o espectador, por meio das

informações que fornece na construção da história. Como se trata de um

procedimento individual e intersubjetivo, a história também será

intersubjetiva, apesar de os espectadores normalmente estarem de

acordo com o que é a história de um filme.

A trama ou intriga, por sua vez, define-se pela coordenação e

exposição atuais da história no filme, isto é, a arquitetura da exposição

da história por parte de um filme. É uma constituição mais abstrata,

aquilo que uma narração passo a passo do filme proporcionaria. A trama

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é um sistema, já que organiza os componentes – os acontecimentos da

história – de acordo com princípios específicos. Claramente, a sua

configuração independe do meio: uma mesma trama poderia ser

apresentada em um romance, em uma peça teatral ou em um filme

(BORDWELL, 1985, p. 50).

O estilo, por seu turno, é também um sistema que mobiliza os

componentes do filme de acordo com princípios de organização e que

interage com a trama. Mas, enquanto este último define quais

informações serão disponibilizadas para possibilitar a construção de uma

história no filme, o estilo define como elas serão dispostas e

apresentadas. Enquanto a trama incorpora o filme como processo

dramatúrgico, o estilo o compreende como um processo técnico. Esse

conceito de estilo não se confunde aqui com aquele usado para

denominar conjuntos de filmes que apresentam as mesmas

características. Bordwell (1985, p. 50) utiliza o termo estilo para

denominar o uso sistemático de recursos cinematográficos em um filme.

Apresentados esses três conceitos, Bordwell detalha as relações

entre história, trama e estilo. Considerando que a trama pode ser inferida

de meios diferentes, como romance, pintura, filme ou peça teatral, a sua

concepção evita a distinção dos fenômenos superficiais, como pessoa,

tempo gramatical e metalinguagem e se apoia em princípios básicos

mais flexíveis para toda a representação narrativa. Sendo assim, a

distinção entre história e trama não será entendida como uma réplica da

distinção entre história e discurso, defendida pelas teorias da

enunciação, porque, para Bordwell (1985, p. 50), a história não é um ato

enunciativo não marcado; não é tampouco um ato de fala, mas sim um

conjunto de inferências, de deduções.

Para explicar o que trabalha a favor da história, Bordwell (1985,

p. 51-52) expõe três princípios: a lógica narrativa, o tempo e o espaço. A

lógica narrativa é essencial para que o espectador defina alguns

fenômenos como acontecimentos, enquanto constrói relações entre eles,

geralmente relações causais. A trama tem o poder de controlar o nível de

facilitação desse processo, dispondo os eventos de forma a encorajar ou

a dificultar uma relação causal entre eles. No que diz respeito ao tempo,

a trama pode fornecer os acontecimentos-chave para a construção da

história em qualquer sequência (ordem), também sugerir que tenham

acontecido em um espaço de tempo virtual (duração) ou, ainda, que

tenham sucedido um determinado número de vezes (frequência).

Também em relação ao espaço, a trama pode facilitar ou não a

sua constituição, à medida que fornece mais ou menos informações

espaciais sobre os eventos na história. Agindo conjuntamente, trama e

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estilo produzem não apenas o acesso do espectador aos dados da

história, mas também envolvem os processos estilísticos que a narração

inclui. A trama molda a construção da história dominando, dessa forma,

a quantidade de informações a que temos acesso, o grau de pertinência

que podemos atribuir a elas e a correspondência formal entre a

apresentação da trama e os dados da história. Assim, em um filme de

investigação policial, por exemplo, a quantidade de informações pode

ser mais insuficiente do que em filmes de outros gêneros, caso o

interesse seja causar efeitos como um clima de mistério ou uma postura

investigativa por parte do espectador (GONÇALVES, 2011, p. 29-30).

Uma vez que nenhuma trama fornece todos os acontecimentos da

história, o espectador, segundo Bordwell (1985, p. 54-55), julga o que

pode ter acontecido entre dois ou mais eventos apresentados no filme.

Há, portanto, lacunas, criadas quando se opta por apresentar certas

informações da história e ocultar outras. Ao deixar as lacunas entre os

acontecimentos, a trama poderia sugerir, por exemplo, que nada de

relevante tenha acontecido entre eles. As lacunas, que podem ser

temporais ou causais, estão entre os palpites mais claros para o

espectador, visto que evocam todo o processo de formação de esquemas

e comprovação de hipóteses.

A teoria da narração no cinema apresentada por David Bordwell

possui sua ênfase maior nos procedimentos psicológico-cognitivos

abrangidos na recepção do filme, porém não deixa de ponderar e de

reforçar que, no cinema, a narração é o processo através do qual a trama

e o estilo do filme interagem para conduzir e canalizar a constituição da

história pelo espectador. Por conseguinte, o filme não narra somente

quando a trama estabelece a informação da história. A narração também

abarca os procedimentos estilísticos (GONÇALVES, 2011, p. 30).

Relacionando com alguns pontos trabalhados anteriormente, a

literatura apresenta ‒ e também o cinema ‒ a característica inalienável

de lidar com o tempo e a transformação, e essas são realidades que

pertencem ao universo sensível e material. A arte da narrativa é

precisamente a de, através do sensível, revelar o insensível. A abstração

escapa ao universo narrativo, o que não equivale a dizer que o imaterial

não seja desejado pela narrativa, mas sim que só por meio da matéria é

que o objeto narrativo exprime o que não é tocável nem sensível.

Peter Szondi (1983, p. 135) amplia, indiretamente, essa noção a

toda a arte, dizendo que “a história da arte não é determinada pelas

ideias, mas sim pela forma em que elas encarnam”. Destacamos aqui o

modo particular como as ideias encarnam na narratividade da literatura e

do cinema, em que o aspecto da temporalidade em ação assume

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particular importância, revelando o aspecto concreto desses objetos

encarnados. Um exemplo notório desse fato é o caso da força

significativa do rosto humano na literatura e, sobretudo, no cinema.

Grande parte do poder do cinema liga-se à poderosa sugestão de

significado que o rosto humano transmite por si só, particularmente

quando ele nos é dado enquanto sujeito, em relação à duração

transformadora da imagem em movimento.

Por essa razão, ambas as narrativas, literária e fílmica, buscando a

sugestão do concreto por meio da palavra, da imagem e do pensamento

encarnado, almejam idêntico objetivo: por meio da sua forma específica,

exprimir uma realidade que tem tanto de material como de imaterial,

tanto de finito como de ilimitado, contudo, sempre através da construção

de um mundo possível, habitado por presenças humanas e por seres

inanimados, todos eles integrados em determinado espaço e em

determinado tempo e, portanto, sujeitos às leis do universo físico,

concreto, mensurável.

Além do mais, ambas as artes procuram transmitir a totalidade da

vida e aspiram à eternidade, razão pela qual o fim de uma história é

tantas vezes sentido como artificial, uma espécie de mal necessário. No

entanto, pela sua natureza mais mental, a literatura é mais apta à

construção do universo interior do indivíduo, tendo mais dificuldade em

reproduzir as propriedades do mundo sensível, que não deixam, no

entanto, de constituir a sua matéria-prima.

O cinema, pelo contrário, identifica-se rapidamente com o mundo

sensível e debate-se com a necessidade de resolver problemas quando

procura a expressão da subjetividade, que não deixa de ser objetivo seu.

Isso não significa que a literatura tenha como vocação a expressão da

interioridade, e o cinema a representação da exterioridade, mas sim que

a palavra escrita parte desse universo interior em direção ao que o

circunda, já que é na materialidade desse universo que tomam corpo as

intuições do artista, enquanto a expressão imagética reproduz o universo

envolvente, captado sensorialmente, como forma de chegar ao íntimo,

ao interior, à essência.

Ingarden (1979, p. 355-357), estabelecendo a diferença entre a

obra literária e o espetáculo cinematográfico, sublinha que este último

tem de dar ênfase aos acontecimentos visíveis, mas apressa-se a

clarificar: “[...] não se deve esquecer que pertence à essência de um

aspecto ser aspecto de alguma coisa”. Isto é, a realidade funciona

sempre como um sinal, cujo conteúdo é suscitado pela palavra ou

revelado pela imagem em movimento. A identificação desse sentido

implica, por parte do espectador que não queira deter-se na mera

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sensação, um trabalho de apreensão mais complexo do que por parte do

leitor. Diz o autor que as coisas e as gentes nos são dadas nos seus

acontecimentos, por assim dizer, de fora, quase em percepção, e tudo o

que viermos a saber delas ou o que elas são afinal pode ter o seu

fundamento na multiplicidade dos aspectos reconstruídos.

Assim, o universo compreendido tanto pela narrativa literária

como pela narrativa cinematográfica é o que diz respeito às

características concretas e sensíveis da experiência humana. Que a

literatura o faça por um processo mais prontamente conceitual e o

cinema por uma via mais inteiramente perceptual não é assunto sem

relevância, pelo contrário, uma vez que, no cinema, exprimem-se as

diversas naturezas dessas duas formas de arte e os aspectos que as pré-

determinam formalmente. Não esqueçamos, porém, uma inegável

vocação comum: a de suscitar a criação de outro mundo possível,

concebido precisamente dentro dos parâmetros da contingência espaço-

temporal, simultaneamente lugar da limitação narrativa e da capacidade

artística de reinventar as regras dessa contingência, sem nunca escapar

ao espetáculo da vida em ação, na sua marcha transformadora e

irreprimível.

Podemos, ainda, atentar para um dos aspectos importantes a

serem discutidos acerca da narrativa, que é a noção de tempo e espaço.

Ingarden (1979, p. 256) analisa o tratamento do tempo literário e conclui

que ele é um tempo próprio e apresentado, sendo apenas um análogo,

uma modificação do chamado tempo concreto, subjetivo e radicalmente

distinto tanto do tempo objetivo do mundo real, que é homogêneo, como

do tempo rigorosamente subjetivo de um sujeito consciente absoluto,

revelando diferenças de natureza ontológica. Além do mais, faz-se

necessária essa distinção pelo fato de os acontecimentos de que os

objetos apresentados participam serem por essência temporais e,

também, apresentados como sucessivos ou simultâneos. Estabelece-se,

assim, entre eles, uma ordem temporal.

Uma das diferenças basilares entre o tempo concreto e o tempo

apresentado é o fato de este último não ser, na maioria das vezes,

homogêneo, mas sim demonstrar sempre a presença de lacunas, de

pontos indeterminados, que correspondem àquela parcela do real não

representada explicitamente na obra literária, mas implicitamente

presente, por meio do trabalho da leitura, que, por assim dizer, preenche

o que falta. No entender de Ingarden (1979, p. 259-260), são sempre

apresentadas apenas fases singulares mais ou menos longas ou só

acontecimentos momentâneos, mas o acontecer que tem lugar entre

essas fases ou acontecimentos fica indeterminado. Por conseguinte, as

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fases temporais apresentadas nunca se integram em uma totalidade una e

contínua. Pelo contrário, o tempo real é um meio contínuo que não

assinala absolutamente lacuna alguma.

O aspecto referido por Ingarden da indeterminação da

representação aplica-se, aliás, a outras dimensões da obra,

principalmente ao nível espacial e na definição das próprias

personagens, e pode enquadrar-se, em termos temporais, dentro do

fenômeno discursivo da elipse, que consiste em uma anisocronia

(diferença de duração entre o tempo diegético e o tempo narrativo),

resultante da exclusão de segmentos diegéticos mais ou menos

pronunciados, fato que dá origem às referidas lacunas ou vazios. Esta é,

aliás, uma das características fundamentais da temporalidade literária: a

não coincidência entre o tempo da história e o tempo do discurso, ao

contrário do que acontece no cinema, em que a isocronia (coincidência

entre a duração do tempo diegético e do tempo narrativo) se verifica

muito mais frequentemente.

Uma característica de grande pertinência, e que aqui

particularmente nos interessa referir, é o fato de o tempo do discurso

literário tender a obedecer necessariamente à linearidade e à

sucessividade que a frase impõe, enquanto o tempo da história pode

apresentar-se de forma múltipla e simultânea. Para alguns teóricos,

como Mitry (1965), a literatura parte do tempo para chegar ao espaço,

enquanto no cinema, geralmente, acontece o inverso: o ponto de partida

é espacial e é no desenvolvimento do filme que se introduz a dimensão

temporal.

O filme coloca-nos na presença de um mundo que ele organiza

conforme certa continuidade. Realmente, no cinema, o tempo “vê-se”, o

espectador está diante do fluir temporal e, ao mesmo tempo, dentro dele,

na medida em que não pode controlar esse tempo que corre – quer seja o

tempo da história, quer o do discurso fílmico, quer o da própria

recepção, que coincide com o fluxo do tempo real e que não pode ser

manipulado, como no caso da literatura – a não ser exercendo algum

tipo de violência sobre o filme, como sair no meio de sua exibição,

retomando-o mais tarde, em dia seguinte. Ao espectador é exigido,

portanto, um respeito por esse tempo que se desenrola diante dos seus

olhos, sob pena de “atentar” contra a obra a que assiste.

Tais aspectos e relações temporais estão como que submetidos a

um implícito pressuposto, que se liga à natureza eminentemente icônica

e imagética do cinema. Analisando as relações que o cinema estabelece

com a realidade, o diretor alemão Wim Wenders (1990, p. 15) diz ser

muito importante que os filmes denotem uma sequência. Os filmes têm

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que respeitar essa sequencialidade. A continuidade do movimento e a

sequência da ação têm simplesmente que ser coerentes, o tempo que é

apresentado de modo linear não pode, sem mais nem menos, dar um

salto. É inteiramente indiferente de que espécie de filmes se trate, mas é

muito importante que haja uma lealdade relativamente à sequência do

tempo. Nos filmes, há sequências de tempo que têm de se ajustar umas

às outras.

O cineasta russo Andrei Tarkovski (1998, p. 64-65), por sua vez,

vai ainda mais longe, afirmando que a especificidade e a força do

cinema consistem, precisamente, na sua particularíssima relação com a

matéria da realidade e com a capacidade que a arte fílmica tem de fixar

o tempo através das suas manifestações factuais. Logo, a força do

cinema está na relação necessária com a matéria da realidade que nos

circunda a cada instante. O tempo fixado nas suas formas e nas suas

manifestações factuais: tal é a ideia de base do cinema enquanto arte,

que deixa entrever um potencial inexplorado, um futuro impressionante.

O cinema – por demonstrar, indiretamente, a nossa defesa de uma

explícita ou implícita narratividade cinematográfica – fixa o tempo nos

seus índices perceptíveis pelos sentidos, o que materializa, portanto, a

experiência humana encarnada do fluxo temporal, isto é, evidencia o

trabalho transformador e ordenado na medida em que segue uma ordem

necessária, um encadeamento causal. Todavia, muitas vezes, o cinema

não leva em conta esse fenômeno, razão pela qual alguns negam que a

sua natureza possa ser definida como narrativa. Se assumirmos a noção

de narrativa como estrutura que organiza aquilo que na experiência

perceptivelmente pode acontecer, não podemos negar ao cinema uma

particularíssima capacidade de concretizá-la.

Enquanto o tempo literário necessita de marcas que o definam (e

daí a importância fundamental dos tempos verbais, dos advérbios e de

outras expressões temporais, como ontem, hoje e amanhã), o tempo

cinematográfico não necessita dessas marcas, embora possa recorrer a

elas, se o desejar. A lógica temporal é captada pelo espectador por um

processo a que David Bordwell (1985, p. 77) chama de inferência ou

dedução e que, em parte, depende da competência e da cultura desse

espectador, a fim de saber, por exemplo, interpretar o valor temporal de

um flashback.

Esse processo afeta os três aspectos do tempo: a ordem dos

eventos, a sua frequência e a sua duração. O próprio ritmo funciona

desse modo, isto é, tem implicações na forma como o espectador,

através de um processo dedutivo, toma consciência do significado

diegético. A demora da câmera sobre o rosto ou sobre o caminhar de

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uma personagem, por exemplo, provoca no espectador uma espécie de

reajustamento das suas expectativas, interpretações, deduções. Desse

modo, a narração cinematográfica controla aquilo que é visto, “o quê” e

o “como”.

O aspecto que confere ao cinema um forte caráter de

aproximação ao real é o fato de tempo e espaço poderem coexistir

explicitamente na tela. O discurso fílmico não é obrigado a separar a

dimensão espacial do temporal, como acontece na literatura, o que pode

ter como consequência uma condensação discursiva que, geralmente, se

constata na passagem de uma obra literária para o cinema. Podemos

dizer que, enquanto o tempo do discurso literário se desdobra, a fim de

exprimir a espacialidade e a temporalidade, o tempo do discurso

cinematográfico tende a uma maior coincidência com o tempo diegético,

sendo, portanto, mais denso e complexo, mais semelhante ao tempo real.

Em linhas gerais, procuramos neste capítulo, analisar algumas

amostras de teorias e de filosofias que têm especial ressonância em

relação ao cinema, que, de uma forma direta ou indireta, dialogam com

a fenomenologia e a ontologia. Nesse ponto, o direcionamento

intencional da consciência subjetiva em direção ao seu objeto pretendido

exige uma descrição da experiência fílmica que inclui o espectador e

apela para o foco não só sobre elementos do filme que é visto, mas

também sobre os possíveis modos de englobá-lo e de vê-lo. No conjunto

de espectador e filme, a dinâmica, as modulações e os efeitos de atos de

percepção cinematográfica visual e auditiva são correlacionados com as

estruturas de expressão cinematográfica.

A partir dessa perspectiva, o cinema pode ser visto como um

exemplar filosófico da intencionalidade e da corporeidade, ou seja, da

relação do ser com o mundo. Com efeito, o cinema encena e dramatiza a

correlação intencional como uma estrutura vivida ativamente, através da

qual o significado é constituído como tal. O que a fenomenologia e a

ontologia demandam é que nós estamos a assistir à experiência

encarnada, real e possível que fundamenta o filme, não como ele é

pensado comumente, mas como ele é percebido.

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2 MERLEAU-PONTY E O FILME: NATUREZA E

SIGNIFICAÇÃO

O objetivo principal deste capítulo é enfocar as principais

relações que o cinema possui com a filosofia de Merleau-Ponty e o

modo como, inicialmente, ele compreende essa arte. As considerações

deste autor permitem compreender o filme como a arte de tornar visíveis

objetos e comportamentos. Dessa maneira, o interesse do filósofo pelo

cinema, enquanto objeto percebido, baseia-se na sua contribuição para a

fenomenologia da percepção e do olhar e também na possibilidade de

uma aproximação em relação aos outros e ao mundo.

2.1 CINEMA E PERCEPÇÃO

Maurice Merleau-Ponty escreveu apenas um ensaio sobre cinema,

mas seu enfoque fenomenológico traz à tona problemas relacionados à

percepção que são centrais para a compreensão do cinema. Tomado por

alguns teóricos como um contrapeso de boas-vindas às teorias marxistas

e psicanalíticas que tendem a considerar o filme como texto, Merleau-

Ponty apresenta uma abordagem fenomenológica que pode fornecer uma

metodologia para se pensar por meio da experiência perceptiva da visão

(SOBCHACK, 1991).

Em sua palestra (que mais tarde foi transformada em um ensaio)18

proferida em 1945, no Institut des Hautes Études Cinématographiques

(IDHEC), intitulada “O Cinema e a Nova Psicologia”, Merleau-Ponty

aponta que o filme é uma das evidências que mostra que a percepção

está ligada mais ao comportamento corporal do que a uma forma de

sensação ou de cognição não mediadas. Esse filósofo francês, ao

interrogar a respeito da chamada “crise histórica” (uma crise

inicialmente dirigida por Edmund Husserl e Henri Bergson que girava

em torno de uma divisão cartesiana entre materialismo e idealismo,

matéria e pensamento), explica que, em uma psicologia clássica, o

campo visual foi considerado como sendo uma soma ou um mosaico de

sensações, ou seja, cada sensação correspondendo a um estímulo

retínico local de que era dependente (MERLEAU-PONTY, 1983, p.

101).

18 Como forma de consulta mais direta e rápida ao texto desta relevante palestra,

encontra-se, em anexo, à esta tese, a versão integral e original de “O cinema e a nova

psicologia”.

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Dessa maneira, a relação entre os elementos do campo visual foi

explicada por uma construção cognitiva, uma unidade providenciada

pela faculdade representativa. O cinema, que estava se desenvolvendo

no momento dessa crise, desafiou diretamente o dualismo corpo-mente e

precisou ser examinado mais profundamente. Elaborando sua

fenomenologia como um projeto ao longo da vida, Merleau-Ponty

procurou superar o dualismo entre materialismo e idealismo, mente e

corpo, por meio de uma intencionalidade corporal do sujeito encarnado,

permitindo encontrar um mundo que existe através da mediação de um

horizonte de indivíduos que é moldado pela experiência subjetiva.

Podemos adiantar que, em “O Cinema e a Nova Psicologia”, o

seu interesse pelo cinema está ligado à noção do filme como um objeto

de percepção, capaz de revelar alguns aspectos essenciais que norteiam

o nosso diálogo com o mundo. Para o autor, a imagem cinematográfica,

enquanto gestalt temporal, demonstra a união natural entre o interior e o

exterior e afirma o olhar como constituição de um sentido anterior à

inteligência.

É nessa esteira que o filósofo vai relacionar cinema e Psicologia

da Forma, colocando a arte cinematográfica em sua crítica à concepção

clássica da percepção. Para se ter uma compreensão mais amplificada da

investida desse autor no campo da teoria cinematográfica, é relevante,

em linhas gerais, apresentar alguns princípios de sua particular

fenomenologia.

2.1.1 Comportamento e Fenomenologia

Podemos afirmar que a vida intelectual de Merleau-Ponty

começa, de fato, na França, no início dos anos de 1940, em um

questionamento com referência à herança do racionalismo moderno de

René Descartes, especialmente a divisão entre o corpóreo, tomado como

pura exterioridade, fonte eterna de desenganos, e o pensamento

reflexivo, ou seja, a consciência como pura interioridade, transparente

em si e para si mesma. Ao recursar o corpóreo e privilegiar a razão,

Descartes teria produzido uma abstração incontornável, reduzindo nossa

relação com o mundo a uma toda intensa consciência.

Segundo o filósofo francês, o autor de “O Discurso sobre o

Método”, infelizmente, não começou do início, pois, quando se inicia

qualquer pensamento, mergulha-se na complexidade e nas incertezas do

mundo sensível. A crença de que se percebe o mundo, de que nele

vivemos de forma concreta e não ilusoriamente, é o primeiro passo para

o conhecimento. Essa é também para Merleau-Ponty a autêntica origem

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de toda e qualquer reflexão. Já notamos tal preocupação em seu livro

inicial, “A estrutura do comportamento”, publicado em 1942, cujo maior

desafio é fornecer uma análise que demonstre a legitimidade dessa

crença veiculada pela percepção.

Nessa obra, retomando o cogito cartesiano, ele diz: O cogito não nos ensina de uma vez por todas que

não conheceríamos coisa alguma, se antes não

conhecêssemos nosso pensamento, e que mesmo a

fuga para o mundo e a resolução de ignorar a

interioridade ou de não abandonar as coisas, que é

a essência do behaviorismo, não poderia ser

formulada sem se transformar em consciência e

sem pressupor a existência para si? O

comportamento é pois feito de relações, ou seja,

ele é pensado e não em si, como qualquer outro

objeto aliás; é isso que nos teria mostrado a

reflexão. Mas por esse caminho curto teríamos

perdido o essencial do fenômeno, o paradoxo que

o constitui: o comportamento não é uma coisa,

mas também não é uma ideia, não é o invólucro de

uma pura consciência e, como testemunha de um

comportamento, não sou uma pura consciência.19

(MERLEAU-PONTY, 2013, p. 199).

Nessa mesma obra, o autor desenvolverá um exame rigoroso das

teorias que tratam o organismo vivo como um amontoado de células e

de ossos que poderiam ser analisados separadamente,

independentemente do todo ao qual pertencem. Merleau-Ponty critica a

concepção de relações lineares e pontuais entre os elementos do mundo

físico e a fisiologia do organismo, procurando mostrar que o organismo

responde aos estímulos e se projeta no meio enquanto totalidade ou

estrutura. O termo “estrutura” é entendido como união de uma ideia e de

uma existência inseparáveis. O conceito torna possível a compreensão 19 Na versão original: Le cogito ne nous apprend-il pas une fois pour toutes que nous

n'aurions la connaissance d'aucune chose si nous n'avions d'abord celle de notre pensée

et que même la fuite dans le monde et la résolution d'ignorer l'intériorité ou de ne pas

quitter les choses, qui est l'essentiel du behaviorisme, ne peut être formulée sans se

transformer en conscience et sans présupposer l'existence pour soi? Le comportement est

donc fait de relations, c'est-à-dire qu'il est pensée et non pas en soi, comme tout autre

objet d'ailleurs, voilà ce que nous aurait montré la réflexion. Mais par cette voie curte,

nous aurions manqué l'essentiel du phénomène, le paradoxe qui en est constitutif: le

comportemnet n'est pas une chose, mais il n'est pas davantage une idée, il n'est pas

l'enveloppe d'une pure conscience et, comme témoin d'un comportement, je ne suis pas

une pure conscience (MERLEAU-PONTY, 1942, p. 138).

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do organismo vivo e do comportamento humano como uma totalidade

em que as partes possuem algum sentido quando atuam em conjunto

com as demais. (MERLEAU-PONTY, 2013. p. 223).

Vemos que alguns temas que o filósofo apresenta na obra citada

demonstram certa influência da Psicologia da Forma: a investigação da

percepção, a noção de campo perceptivo e a tentativa de superar o

dualismo corpo-espírito, homem-mundo. Por exemplo, a noção de

comportamento, pensada como estrutura, permite-lhe justamente

distinguir o físico-químico, o biológico e o simbólico e afirmar que,

apesar de se tratar de ordens irredutíveis umas às outras, elas se

entrelaçam e interagem para produzir a experiência de si e do mundo.

Consequentemente, todo comportamento, mesmo aquele

instintivo, consiste em um modo de organização, em uma forma que une

solidariamente organismo e ambiente. Ou, em outras palavras, todo

comportamento possui uma estrutura que exibe sentido e intenção, não

podendo ser compreendido com simples disparos de mecanismos de

causa e efeito. As estruturas de comportamento dos seres se distribuem

em níveis de complexidade crescente, que correspondem à capacidade

dos organismos de agirem no ambiente não só se adaptando às suas

propriedades físico-químicas, mas também criando para si mundos nos

quais a vida é realmente vivida. Podemos dizer, aqui, que o autor se

serve das pesquisas psicológicas para realizar uma redução

fenomenológica moderada, que não culmina em um sujeito

transcendental puro como condição da experiência, e sim no corpo

fenomenal entrelaçado em um campo de situações concretas

(MERLEAU-PONTY, 2013, p. 224-225).

Já na parte final do livro, Merleau-Ponty faz uma análise

pormenorizada da experiência ingênua do mundo, isto é, aquela em que

se está envolvido em uma situação concreta vivida, sem

questionamentos ou reflexões a respeito de sua natureza ou significação.

Nessa experiência, as pessoas não se sentem limitadas a estados

privados de consciência. Elas creem relacionar-se com as próprias

coisas, sendo que os sistemas perceptivo-motores que tornam essa

experiência possível quase sempre passam despercebidos. Nota-se que

estamos todos submetidos às determinações fisiológicas e estruturais dos

nossos órgãos. No entanto, nessa experiência irrefletida, pré-reflexiva, o

corpo não se mostra como um intermediário entre uma suposta alma ou

consciência e o mundo. De maneira oposta, o corpo é justamente o meio

pelo qual as coisas podem ser conhecidas da forma como são

(MERLEAU-PONTY, 2013, p. 300-307).

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Assim, o autor francês, ao ampliar a noção de intencionalidade,

inscrevendo-a como marca de todo e qualquer fenômeno no interior da

experiência vivida, promove uma verdadeira virada corporal desde a sua

primeira obra. Ele coloca a intencionalidade na experiência primária,

imediata e pré-reflexiva do corpo situado no mundo. Um corpo agora

não mais visto como mero suporte para a atividade da mente ou como

objeto da consciência, mas como fonte de toda experiência possível.

Será esse o caminho a ser explorado em sua segunda e uma das mais

importantes obras, “Fenomenologia da percepção”, publicada em 1945,

três anos após o lançamento do seu primeiro livro.

Em “Fenomenologia da percepção”, Merleau-Ponty começa com

a seguinte pergunta: o que é a fenomenologia? A sua resposta, no

prefácio, delineia um caminho diferente da corrente iniciada por

Edmund Husserl. Pois, se a fenomenologia é o estudo das essências, ela

também é uma filosofia que recoloca as essências na existência e não

pensa que se possa entender o homem e o mundo de outra forma, a não

ser a partir de sua “facticidade”. Em outras palavras, estamos defronte

de um pensamento que revela uma situação característica da existência

humana que, lançada ao mundo, está submetida às injunções e às

necessidades dos fatos.

Continuando sua exposição sobre a fenomenologia, o filósofo diz: É uma filosofia transcendental que coloca em

suspenso, para compreendê-las, as afirmações da

atitude natural, mas é também uma filosofia para a

qual o mundo já está sempre “ali”, antes da

reflexão, como uma presença inalienável, e cujo

esforço todo consiste em reencontrar este contato

ingênuo com o mundo, para dar-lhe enfim um

estatuto filosófico. É a ambição de uma filosofia

que seja uma “ciência exata”, mas é também um

relato do espaço, do tempo, do mundo “vividos”20

(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 1).

A fenomenologia é, para Merleau-Ponty, uma alternativa ao que

ele compreendia como as incoerências tanto das teorias científicas

20 Na versão original: C'est une philosophie transcendantale qui met en suspens pour les

comprendre les affirmations de l'attitude naturelle, mais c'est aussi une phisosophie pour

laquelle le monde est toujours “dejà là” avant la réflexion, comme une présence

inaliénable, et dont tout l'effort est de retrouver ce contact naïf avec le monde pour lui

donner enfin un statut philosophique. C'est l'ambition d'une philosophie qui soit une

“science exacte”, mais c'est aussi un compte rendu de l'espace, du temps, du monde

'vecus' (MERLEAU-PONTY, 1945, p. I).

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quanto das grandes construções racionais, em filosofia, sobre a

percepção e a produção de conhecimento. Seu fundamental argumento é

que os experimentos dos cientistas e suas conclusões, assim como as

teorias filosóficas, não levam em conta que sua origem está na

experiência vivida, evidentemente pré-reflexiva e, por seu turno, essa

experiência funda-se no ato perceptivo, campo privilegiado do

entrelaçamento corpo-mundo.

O autor se volta, portanto, contra o intelectualismo das filosofias

da consciência, que, levando às últimas consequências a separação

cartesiana entre o corpo e o intelecto, afirmam que a subjetividade

constitui a realidade ou põe o mundo a partir de si mesma. Em

“Fenomenologia da percepção”, a invocação de um irrefletido, de um

cogito tácito, anteriores a toda tese posta pelo intelecto, busca encontrar

na própria fenomenologia um meio para sair do campo cerrado da

consciência.

Nas palavras de Merleau-Ponty (2006, p. 14): O mundo é não aquilo que eu penso, mas aquilo

que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-

me indubitavelmente com ele, mas não o possuo,

ele é inesgotável. “Há um mundo”, ou, antes, “há

o mundo”; dessa tese constante de minha vida não

posso nunca inteiramente dar razão. Essa

facticidade do mundo é o que faz a Weltlichkeit

der Welt, o que faz com que o mundo seja mundo,

assim como a facticidade do cogito não é nele

uma imperfeição, mas, ao contrário, aquilo que

me torna certo de minha existência.21

O percurso da fenomenologia merleaupontiana será, então,

norteado pela busca de um encontro com o mundo antecedente ao

conhecimento de que o conhecimento sempre se expressa. Esse fato é

possível porque toda reflexão é uma derivação do plano pré-reflexivo e

originário que lhe é ontológica e cronologicamente anterior, da mesma

maneira como a geografia em referência à paisagem. Para levar esse

desafio a contento, pensamos a experiência não como psicológica ou

21 Na versão original: Le monde est non pas ce que je pense, mais ce que je vis, je suis

ouvert au monde, je communique indubitablement avec lui, mais je ne le possède pas, il

est inépuisable “Il y a un monde” ou plutôt “il y a le monde” de cette thèse constante de

ma vie je ne puis jamais rendre entièrement raison. Cette facticité du monde est ce qui

fait la Weltlichkeit der Welt, ce qui fait que le monde est monde, comme la facticité du

cogito n'est pas une imperfection en lui, mais au contraire ce qui me rend certain de mon

existence (MERLEAU-PONTY, 1945, p. XI-XII).

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introspectiva, muito menos como experimentação passiva de estímulos

do meio, mas como uma abertura para o mundo. Logo, o que se objetiva

estudar é a forma como, por meio de nossa inscrição corporal no mundo,

delineia-se uma experiência de interioridade e de realidade externa que

compõem nosso campo de existência (MERLEAU-PONTY, 2006. p. 4).

É relevante observar que o mundo “que já está sempre lá”, antes

da reflexão, não pode ser visto como um conjunto de objetos e estímulos

determinados. Ele é o horizonte latente da experiência de um indivíduo e

constitui um campo fenomenal que o inclui não só como um objeto que

se percebe junto com os outros, mas também como um sujeito que

percebe. Assim, matéria, vida e significação, assim como psiquismo,

corpo e mundo, nenhum desses polos pode ser pensado fora de suas

relações com os demais. Afinal, nascer é simultaneamente nascer do e

no mundo.

Nas explicações do filósofo francês: O mundo está já constituído, mas também não está

nunca completamente constituído. Sob o primeiro

aspecto, somos solicitados, sob o segundo somos

abertos a uma infinidade de possíveis. Mas esta

análise ainda é abstrata, pois existimos sob os dois

aspectos ao mesmo tempo. Portanto, nunca há

determinismo e nunca há escolha absoluta, nunca

sou coisa e nunca sou consciência nua22

(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 608).

Ao adotar essa perspectiva, Merleau-Ponty é levado a redefinir a

concepção tradicional do corpo como objeto ou como uma simples

entidade biológica autorreguladora, mero suporte para as atividades de

uma instância mental compreendida como sendo imaterial. Em

“Fenomenologia da percepção”, o autor aprofunda a distinção já

trabalhada em sua primeira obra, entre o “corpo objetivo”, o corpo

tomado como uma coisa, matéria extensa situada no espaço, e o “corpo

fenomenal”.

O primeiro é o corpo que observo, um objeto no meio dos outros.

É o corpo em sua existência material e fisiológica, regulada por leis

biológicas de troca com o meio. Já o corpo fenomenal não é apenas o

22 Na versão original: Le monde est déjà constitué, mais aussi jamais complètemente

constitué. Sous le premier rapport, nous sommes sollicités, sous le second nous sommes

ouverts à une infinité de possibles. Mais cette analyse est encore abstraite, car nous

existons sous les deux rapports à la fois. Il n'y a donc jamais déterminisme et jamais

choix absolu, jamais je ne suis chose et jamais conscience nue (MERLEAU-PONTY,

1945, p. 517).

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meu corpo, é também o corpo que eu sou. É o chamado “corpo próprio”

ou “corpo-sujeito”. É por meio dele que me situo no mundo e diante dos

outros. É aquilo que permite a experiência na primeira pessoa, que abre

as portas da percepção, o ponto de referência que me situa no tempo e

no espaço, concebendo com esse fator o mundo que habito.

Segundo Merleau-Ponty (2006, p. 203): O corpo é nosso meio geral de ter um mundo. Ora

ele se limita aos gestos necessários à conservação

da vida e, correlativamente, põe em torno de nós

um mundo biológico; ora, brincando com seus

primeiros gestos e passando de seu sentido próprio

a um sentido figurado, ele manifesta através deles

um novo núcleo de significação: é o caso dos

hábitos motores como a dança. Ora enfim a

significação visada não pode ser alcançada pelos

meios naturais do corpo; é preciso então que ele se

construa um instrumento, e ele projeta em torno

de si um mundo cultural.23

Para o autor, não estamos falando de dois corpos diferentes, um

objetivo e outro subjetivo, porém de duas inscrições diferentes do corpo

na experiência. O mesmo corpo é, simultaneamente, um dos objetos do

mundo e o ponto de vista a partir do qual apreendo todos os objetos do

mundo. Quando observo meu próprio corpo, transito de uma perspectiva

para outra, ora me situando como corpo que observa, ora como corpo

observado. O meu corpo, por suas propriedades e características, como

um ente sensível que se volta a outros entes sensíveis, permite-me passar

de uma posição a outra, fazendo que o centro de gravidade de minha

experiência se movimente de maneira semelhante.

Logo, quando, por exemplo, toco a mão esquerda, eu a

experimento como um objeto do toque, e não como parte do sujeito que

toca. A mão direita, por sua vez, é percebida como sujeito e não como

objeto. Todavia, essa experiência é mutável, já que podemos

perfeitamente inverter a equação. A camada geral sensível da qual corpo

23 Na versão original: Le corps est notre moyen général d'avoir un monde. Tantôt il se

borne aux gestes nécessaires à la conservation de la vie, et corrélativement il pose autour

de nous un monde biologique; tantôt, jouant sur ces premiers gestes et passant de leur

sens propre à un sens figuré, il manifeste à travers eux un noyay de signification

nouveau: c'est le cas des habitudes motrices comme la danse. Tantôt enfin la

signification visée ne peut être rejointe par les moyens naturels du corps; il faut alors

qu'il se construise un instrument, et il projette autour de lui un monde culturel

(MERLEAU-PONTY, 1945, p. 171).

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e coisas participam e que legitima a pretensão ingênua de atingir o

próprio mundo na experiência imediata é chamada de carne, enquanto o

entrelaçamento e a inversão sempre possível entre as posições de sujeito

e objeto são denominados reversibilidade (MERLEAU-PONTY, 2006,

p. 135-136).

As noções de carne e de reversibilidade vão aparecer mais

fortemente em um segundo momento da filosofia de Merleau-Ponty,

quando ele compreende que suas duas primeiras obras não tinham

conseguido conceber a unidade do corpo fenomenal e do corpo objetivo,

pois o campo transcendental era pensado, em última instância, como

pendente do ato de um sujeito, de uma “existência”, de um “espírito”.

Realmente, o autor manteve a delimitação subjetiva da investigação, ou

seja, a consideração do mundo sempre em relação às capacidades do

sujeito. Merleau-Ponty (2006, p. 4) chega a dizer que o ser, em sua

última e única definição, é o ser para mim.

Dessa maneira, o pensamento merleaupontiano permaneceu no

campo da filosofia da consciência, embora esse filósofo jamais tivesse

deixado de apontar as dificuldades de se caminhar no interior desses

parâmetros. Finalmente, a partir dos ensaios de Signes e de “O visível e

o invisível”, encontraremos uma aposta em uma ontologia mais radical,

uma espécie de acerto de contas, aberto e sem conclusões definitivas.

Esse segundo percurso da filosofia de Merleau-Ponty será tratado mais

adiante.

Importante ressaltar que “O cinema e nova psicologia”, como já

citado, data do mesmo ano de publicação de “Fenomenologia da

percepção”, em 1945, e, por isso, compartilha com as duas primeiras

obras do autor uma interrogação a respeito da herança deixada pelo

racionalismo moderno, acerca da cisão entre o corpóreo e o pensamento

reflexivo, sobre o abandono do ver e do sentir em nome do pensamento

do ver e do sentir. Notamos que as críticas ainda permanecem no

interior do quadro teórico aberto pela fenomenologia de Husserl, apesar

de já podermos identificar uma noção diversa de projeto filosófico,

como uma interrogação interminável sobre o mistério do mundo

sensível.

Podemos afirmar, ainda, que as diversas artes são grandes aliadas

de Merleau-Ponty. Elas o ajudam a travar o embate rumo à legitimação

da crença de que estamos em contato direto com o mundo. É preciso

aprender a ver o mundo, ou melhor, aprender a vê-lo sem dele nos

desligarmos. Não é por acaso que o autor se volta, neste período de sua

carreira, para a arte cinematográfica. Para ele, fenomenologia e cinema

convergiam particularmente no que diz respeito aos temas da relação

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dos indivíduos como o mundo e com os outros. O cinema, então,

definiria, em suas linhas gerais, as condições que faziam dessa arte um

lugar privilegiado da expressão de uma visão do mundo, em que a

contingência, a ambiguidade e a concepção do homem como ser

“situacional” constituem elementos-chave.

2.1.2 A Obra Cinematográfica enquanto Gestalt

Os argumentos explanados anteriormente são centrais para

compreendermos “O cinema e nova psicologia”. Esse ensaio se

decompõe, basicamente, em duas partes. No início, Merleau-Ponty

expõe o que ele denomina de “psicologia clássica”, contrapondo-se à

“nova psicologia”, que é a gestalt. A primeira confere uma função

elementar às sensações, apreendidas como resultados precisos de

inquietações localizadas que o intelecto e a memória teriam que arranjar

consecutivamente em um conjunto unitário. Já a segunda manifesta, de

maneira oposta, que o que necessitaria ser adotado como originário é a

percepção arquitetada como compreensão sensível de um fenômeno na

sua inteireza (BEZERRA, 2015).

De acordo com o filósofo francês, a percepção não pode ser

entendida como agente de um afastamento entre a sensação e a

inteligência organizadora, mas como uma atividade estabelecida que

baliza a afinidade corporal com o mundo, uma decifração constituída,

antecedente ao intelecto. Assim, diz Merleau-Ponty (1983, p. 103): A psicologia clássica considera nosso campo

visual como uma soma ou um mosaico de

sensações, onde cada uma delas dependeria, de

modo estrito, da correspondente excitação retínica

local. A nova psicologia, logo de início, faz notar

que, mesmo tomando em conta nossas sensações

mais simples e imediatas, não podemos admitir

esse paralelismo entre elas e o fenômeno nervoso

que as condiciona. Nossa retina está muito aquém

de ser homogênea; ela é cega, por exemplo, em

algumas de suas partes, para o vermelho ou para o

azul e, no entanto, quando eu olho para uma

superfície vermelha ou azul, não vejo, nela,

qualquer zona incolor. É porque, desde o nível da

simples visão das cores, minha percepção não se

limita a registrar aquilo que lhe está prescrito

pelas excitações da retina, porém reorganiza-as

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em função de restabelecer a homogeneidade do

campo.24

Para esse filósofo, o que aparece à nossa percepção, antes de mais

nada, não são dados diferenciados sobrepostos, mas elementos

conjugados, o que nos permite observar um conjunto de estrelas no céu,

por exemplo, ou que nos faz ajuntar letras escritas de maneira separada,

emparelhando os pontos de ajuste entre elas. A característica do mundo

seria confusa se notássemos como coisas os espaços entre essas coisas.

Igualmente ocorre para as percepções do ouvido, não obstante, nesse

caso, estejamos nos ocupando não mais com constituições no espaço e

sim com formas temporais (BEZERRA, 2015).

Na verdade, o que Merleau-Ponty defende é o fato de a percepção

analítica, que nos oferece o valor singular de cada elemento,

corresponder somente a uma atividade posterior. É a percepção das

formas, em um sentido bem geral de estrutura, que entendemos como

nosso meio de percepção mais espontâneo. O filósofo persiste no ataque

à questão por outra perspectiva, sublinhando que nossos cinco sentidos

não podem mais ser pensados como mundos independentes e sem

comunicação entre si. Afinal, como explicaríamos o caso de alguns

cegos que conseguem exprimir cores por meio dos sons que escutam?

Para Merleau-Ponty, isso não pode ser encarado como um fato

excepcional, como faz a psicologia clássica, mas como um fenômeno

geral.

Em suas palavras: Até as pessoas normais falam de cores quentes,

frias, berrantes ou metálicas, de sons claros,

agudos, brilhantes, fanhosos, suaves, de ruídos

mortiços, de perfumes penetrantes. Cézanne dizia

que era possível enxergar o aveludado, a dureza, a

maciez e até o odor dos objetos. Minha percepção,

então, não é uma soma de dados visuais, táteis ou

24 Na versão original: La psychologie classique considère notre champ visuel comme une

somme ou une mosaïque de sensations dont chacune dépendrait strictement de

l'excitation rétinienne locale qui lui correspond. La nouvelle psychologie fait voir

d'abord que, même à considérer nos sensations les plus simples et les plus immédiates,

nous ne pouvons admettre ce parallélisme entre elles et le phénomène nerveux qui les

conditionne. Notre rétine est bien loin d'être homogène, en certaines de ses parties, elle

est aveugle par exemple pour le bleu ou pour le rouge, et cependant, quand je regarde

une surface bleue ou rouge, je n'y vois aucune zone décolorée. C'est que, dès le niveau de

la simple vision des couleurs, ma perception ne se borne pas à enregistrer ce qui lui est

prescrit par les excitations rétiniennes, mais les réorganise de manière à rétablir

l'homogénéité du champ (MERLEAU-PONTY, [1966], 2009, p. 7).

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auditivos: percebo de modo indiviso, mediante

meu ser total, capto uma estrutura única da coisa,

uma maneira única de existir, que fala,

simultaneamente, a todos os meus sentidos25

(MERLEAU-PONTY, 1983, p. 105).

Não é raro notar que as críticas de Merleau-Ponty não convergem

somente ao que ele denomina de psicologia clássica. Verdadeiramente,

em algumas ocasiões, o autor mesmo muda o termo “psicologia”

clássica, para pensamento clássico. Descartes é, indubitavelmente, um

dos maiores alvos desse ensaio, já que este autor baseia a coesão do

campo perceptivo em uma intervenção intelectual. Se observamos

pessoas caminhando pela rua, é porque apreendemos, por meio de um

exame da inteligência, aquilo que raciocinávamos ter visto. Os

elementos diante de nós não são propriamente observados ou vistos,

porém visualizados, e, dessa forma, a percepção vem a ser uma sorte de

decifração intelectual dos dados sensoriais (BEZERRA, 2015).

É contra essa espécie de percepção que Merleau-Ponty se opõe.

Para ele, a percepção não pode ser vista como uma noção de “ciência

embrionária” ou como uma atividade que inaugura a inteligência. Ao

contrário: é imprescindível reestabelecer uma “reversibilidade” com o

mundo, anterior mesmo à própria inteligência. Cézanne vem ao socorro

do filósofo, pois o pintor francês fez da indistinção entre cor e forma ou

substância talvez sua marca mais forte. Como se daria a imposição de

determinados significados a certos signos sensíveis se estes últimos são

inomináveis, em sua mais imediata textura sensível sem a referência

àquilo que significam?

Eis a resposta do filósofo: Quando percebo um cubo, não o faço porque

minha razão reconstrói as perspectivas da

aparência e, a propósito delas, imagina a definição

geométrica do cubo. Longe de corrigi-las, nem

sequer noto as deformações de perspectiva:

através do que vejo, estou diante do cubo em si,

em sua evidência. Do mesmo modo, os objetos

25 Na versão original: Même les sujets normaux parlent de couleurs chaudes, froides,

criardes ou dures, de sons clairs, aigus, éclatants, rugueux ou moelleux, de bruits mous,

de parfums pénétrants. Cézanne disait qu'on voit le velouté, la dureté, la mollesse, et

même l'odeur des objets. Ma perception n'est donc pas une somme de données visuelles,

tactiles, auditives, je perçois d'une manière indivise avec mon être total, je saisis une

structure unique de la chose, une unique manière d'exister qui parle à la fois à tous mes

sens (MERLEAU-PONTY, [1966], 2009, p. 9-10).

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detrás de mim não são representados por qualquer

operação da memória ou do pensamento: eles me

estão presentes, valem para mim, tal como o

fundo que não vejo e continua presente, apesar da

figura que o oculta em parte. Até a percepção do

movimento, que, de início, parecia depender

diretamente do ponto de referência escolhido pela

inteligência, não é mais, por seu turno, do que um

elemento da organização-global do campo26

(MERLEAU-PONTY, 1983, p. 107).

O ensaio segue, nesses termos, em uma crítica à diferença, aceita

sem discussão pela psicologia clássica, entre observação interior e

exterior. Dessa perspectiva, os sentimentos com, amor, cólera, ódio e

vergonha só poderiam ser conhecidos diretamente a partir do interior e

somente por aquele que os sente. Merleau-Ponty, contudo, acredita que,

quando estudamos sentimentos como o amor por meio de uma

investigação introspectiva, encontramos apenas algumas poucas coisas

para descrever, como certa angústia, palpitações etc.

As observações mais interessantes a respeito do amor só são

possíveis quando não nos contentamos em operar a coincidência com

algum sentimento. É na medida em que surgem em sua configuração

exterior para outrem que se constituem sentimentos como o amor ou o

ódio, expressões que tentam dar conta de uma situação vivida como

“encarnação” de um comportamento; portanto a noção de

comportamento é mais uma vez importante para o fenomenólogo. Ela é

a forma legível do “modo de estar no mundo” próprio a cada coisa, o

que nos permite apreender o sentimento de outrem como exterioridade.

Se um sentimento não pode ser concebido como um fato psíquico

interno e sim como uma variação de nossas relações com o mundo,

evidente em nossa atitude corporal, o outrem também pode ser visto

como uma atitude, um comportamento.

26 Na versão original: Quand je perçois un cube, ce n'est pas que ma raison redresse les

apparences perceptives et pense à propos d'elles la définition géométrique du cube. Loin

que je les corrige, je ne remarque pas même les déformations perceptives, à travers ce

que je vois je suis au cube lui-même dans son évidence. Et de même les objets derrière

mon dos ne me sont pas représentés par quelque opération de la mémoire ou du

jugement, ils me sont présents, ils comptent pour moi, comme le fond que je ne vois pas

n'en continue pas moins d'être présent sous la figure qui le masque en partie. Même la

perception du mouvement, qui d'abord paraît dépendre directement du point de repère

que l'intelligence choisit, n'est à son tour qu'un élément dans l'organisation globale du

champ (MERLEAU-PONTY, [1966], 2009, p. 12).

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A nova psicologia traz, segundo Merleau-Ponty, uma concepção

renovada da percepção de outrem. Essa nada mais é do que essa

estrutura ou esse modo particular de estar no mundo. Diz ele: É necessário rejeitar esse preconceito que

transforma o amor, o ódio ou a cólera em

realidades interiores, acessíveis a uma só

testemunha, ou seja, a quem as experimenta.

Cólera, vergonha, ódio ou amor não são fatos

psíquicos ocultos no mais profundo da

consciência de outrem; são tipos de

comportamento ou estilos de conduta, visíveis

pelo lado de fora. Estão sobre este rosto ou nestes

gestos e nunca ocultos por detrás deles27

(MERLEAU-PONTY, 1983, p. 109).

É nessa esteira que Merleau-Ponty vê uma aproximação entre o

cinema e a nova psicologia. Esta demonstra o modo sinestésico da

percepção. Já o cinema, de semelhante modo, busca um olhar renovado

para o mundo e nos permite perceber no homem não uma racionalidade

que edifica o mundo, mas um ser que se descobre disseminado nele. O

filósofo francês cogitava que as considerações mais relevantes

concernentes ao cinema iam ao encontro das novidades apresentadas

pela nova psicologia, algo que o autor procurará comprovar com a

compreensão de um filme como um objeto a percepcionar e não um

somatório de imagens, mas uma forma temporal (MERLEAU-PONTY,

1983, p. 110).

Aqui, é indispensável salientar, como já comentado, que “O

cinema e a nova psicologia” está localizado em um específico momento

da carreira do filósofo francês, ainda caracterizado por uma filosofia da

consciência transcendental que constrói, em norma, a “percepção

natural” e suas categorias. O domínio perceptivo, em que ele objetiva

colocar o cinema, constitui-se em torno de uma consciência intencional

(BEZERRA, 2015).

De fato, o escopo de Merleau-Ponty não é especificamente o

cinema, e sim a nova psicologia, tópico que daria passagem para uma de

suas obras mais célebres: “Fenomenologia da percepção”. A arte

27 Na versão original: Il nous faut rejeter ici ce préjugé qui fait de l'amour, de la haine ou

de la colère des «réalités intérieures» accessibles à un seul témoin, celui qui les éprouve.

Colère, honte, haine, amour ne sont pas des faits psychiques cachés au plus profond de la

conscience d'autrui, ce sont des types de comportement ou des styles de conduite visibles

du dehors. Ils sont sur ce visage ou dans ces gestes et non pas cachés derrière eux

(MERLEAU-PONTY, [1966], 2009, p. 14).

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cinematográfica, nesse ensaio, é analisada em sua generalidade, e o

filósofo menciona poucos filmes, sem fazer ponderações mais

aprofundadas sobre eles. Ainda que a noção de que o cinema decodifica

tacitamente o mundo e os homens tenha ampliado horizontes, é claro o

“[...] balanceamento desigual que leva o cinema a servir como

contrapeso, em um desenvolto exame da psicologia contemporânea”

(RAMOS, 2012, p. 54).

Em última análise, podemos dizer que Merleau-Ponty não

equipara o olho da câmera com o corpo fenomenal, mesmo concluindo

que o filme é arte quando não simplesmente se refere a um significado

estabelecido, mas mostra como ele emerge, como revela a experiência

do filme em relação ao corpo. Há uma sugestão de uma abordagem

fenomenal que revela como o cinema pode contribuir para o cultivo da

percepção.

Gilles Deleuze (1985, p. 69) afirma que Merleau-Ponty tomou o

filme para ser um “aliado ambíguo”, nos poucos exemplos citados na

obra “Fenomenologia da percepção”, na qual o autor trata do filme a fim

de mostrar como ele difere da percepção natural. Contudo, em “O

cinema e a nova psicologia”, ele quer elaborar uma reflexão sobre como

o “[...] cinema está particularmente apto a tornar manifesta a união do

espírito com corpo, do espírito com o mundo e a expressão de um dentro

do outro” (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 116).28

Essa ambiguidade é evidente em suas descrições do horizonte e

da gestalt, que fornecem o campo contextual para a compreensão da

percepção. Para o filósofo, a percepção natural não depende apenas de

cada registro empírico de sensação pelo olho, ou de um cálculo, ou de

interpretação cognitiva do que é percebido. Em vez disso, vemos de

acordo com gestalts, isto é, para ver algo, mergulharmos nele, e esse

objeto aparece a partir de um sistema em que um objeto não pode se

apresentar sem ocultar outros. Isso significa que outros objetos tornam-

se o horizonte contra o qual o objeto específico aparece (MERLEAU-

PONTY, 2006, p. 104).

Assim, vemos segundo sistemas sedimentados através de nossa

participação em um mundo. Vemos pessoas e árvores contra um fundo e

não o fundo ou o intervalo emergindo entre figuras e objetos. As coisas

e as pessoas saltam para nós, tomando forma à medida que tentamos

28 Na versão original: [...] le cinéma est particulièrement apte à faire paraître l'union de

l'esprit et du corps, de l'esprit et du monde et l'expression de l'un dans l'autre

(MERLEAU-PONTY, [1966], 2009, p. 23).

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fazer sentido ao mundo que está diante de nós. Essa é a lógica da

percepção, segundo Merleau-Ponty (2006, p. 105): Ver é entrar em um universo de seres que se

mostram, e eles não se mostrariam se não

pudessem estar escondidos uns atrás dos outros ou

atrás de mim. Em outros termos: olhar um objeto

é vir habitá-lo e dali apreender todas as coisas

segundo a face que elas voltam para ele.29

O filme baseia-se no aspecto fundamental da percepção. Não

somente o filme depende da figura contra um fundo, pois, quando

assistimos a ele, não vemos apenas as cores e o movimento, vemos

também pessoas, edifícios, lugares etc. O próprio filme possui uma

idiossincrasia particular que toma forma através de seu fluxo temporal,

um modo de expressão que não pode ser reduzido a meros fatos ou

ideias. Provendo sua própria gestalt , “[...] o filme não é pensado e sim,

percebido” (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 115).30

Como uma gestalt temporal, a construção simbólica de uma cena

fílmica depende de outras anteriores. Em uma “visão normal”, eu olho

para algo e ele é divulgado como aquela coisa, o horizonte garantindo a

identidade do objeto. Em uma película, no entanto, a câmara pode

mover-se sobre um objeto para focá-lo em close-up. Nesse caso, ''[...]

podemos muito bem lembrar-nos de que se trata do cinzeiro ou da mão

de um personagem, nós não o identificamos efetivamente. Isso ocorre

porque a tela não tem horizontes” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.

104).31

Na verdade, não se trata de dizer que o sentido de uma cena

cinematográfica depende de suas outras anteriores, mas que nela, em sua

atualidade imagética, intervém um passado como fundo, gerando a

ambiguidade, citada por Deleuze. A percepção forma-se nesse

momento, sendo que a ambiguidade mobiliza a produção espontânea de

um novo todo sem síntese, ou seja, a gestalt. Como veremos no último

capítulo, está aqui o germe que, na sua obra tardia, Merleau-Ponty

29 Na versão original: Voir, c'est entrer dans un univers d'êtres qui se montret, et ils ne se

montreraient pas s'ils ne pouvaient être cachés les uns derrière les autres ou derrière

moi. En d'autres termes: regarder un objet c'est venir l'habiter et de là saisir toutes

choses selon la face qu'elles tournent vers lui (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 82). 30 Na versão original: [...] le film ne se pense pas, il se perçoit (MERLEAU-PONTY,

[1966], 2009, p. 22). 31 Na versão original: [...] nous pouvons bien nous rappeler qu'il s'agit du cendrier ou de

la main d'un personnage, nous ne l'identifions pas effectivement. C'est que l'ecran n'a pas

d'horizons (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 82).

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chamará de carne. Um todo em que a diferenciação dos elementos

visíveis forma horizontes invisíveis que se tocam, mas sem jamais

elaborarem uma síntese, pois não podem suprimir a perda ou a ausência

de alguma coisa.

Enquanto o filme poderia, de certa forma, ser um paralelo à visão

humana, não pode ser equiparado a ela. Como Sobchack (1991, p. 243)

argumenta, ele é, afinal, não um corpo humano, mas um aparato

tecnológico com sua própria intencionalidade, com seu próprio corpo

fílmico. Merleau-Ponty (2006, p. 351) explica que a superfície reduzida

e plana da tela de cinema não permite a experiência de profundidade,

disposta na percepção humana.

Nós não calculamos objetivamente que o homem ao longe se

afasta de nós, porque ele se torna menor, porém, como ele se afasta, ele

desliza gradualmente a partir da organização de nosso olhar. Essa

experiência de profundidade emerge sob o olhar de alguém porque ele

busca enxergar alguma coisa que fornece a âncora para o campo visual.

É relevante ressaltar que o uso da tecnologia 3D, já empregada no

século XX, nos filmes contemporâneos, teria por objetivo tornar as

imagens fílmicas mais “reais”, igualando a experiência de profundidade

que o olho humano pode vivenciar.

Ocorre, todavia, que não vemos como vê a câmera em 3D. Para

produzir o efeito a que se propõe, a imagem 3D é uma forma de

duplicação de imagens semelhantes, cabendo selecionar, por parte de

quem faz o filme, que elementos serão destacados e quais ficarão em

segundo plano. Como diz Vieira (2014, p. 7): “O que torna reais as

imagens cinematográficas é sua força e vivacidade sensíveis”. Assim, a

construção, por exemplo de um ponto de vista continua a ser dada pelo

filme em si, tanto em termos narrativos quanto visuais.

Posteriormente, Merleau-Ponty em “O olho e o espírito”

explicitará melhor esta noção de profundidade na arte pictórica e,

extensivamente, na arte fílmica. Diz ele: Da profundidade assim compreendida não se pode mais

dizer que é "terceira dimensão". Para começar, se

houvesse alguma dimensão, seria antes a primeira: só

existem formas, planos definidos se for estipulado a que

distância de mim se encontram suas diferentes partes.

Mas uma dimensão primeira e que contenha as outras não

é uma dimensão, ao menos no sentido ordinário de uma

certa relação segundo a qual se mede. A profundidade

[...] é antes a experiência da reversibilidade das

dimensões, de uma "localidade" global onde tudo é ao

mesmo tempo, cuja altura, largura e distância são

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abstratas, de uma voluminosidade que exprimimos numa

palavra ao dizer que uma coisa está aí.32 (MERLEAU-

PONTY, 2004, p. 35)

Se percebemos de acordo com o conjunto que apela aos nossos

sentidos de uma forma total, para Merleau-Ponty (1983, p. 106), um

filme fornece um sistema que não nos permite distinguir entre signos e o

que eles significam, entre o que é sentido e o que é pensado.

Fenomenologicamente, o autor argumenta que a nossa percepção do

movimento é intencionalmente situada dentro de um mundo. Não é uma

questão de avaliar cognitivamente uma situação, mas de estar ancorado

dentro de um campo de relações. Essa é uma visão que o filme pode

explorar.

No exemplo de Merleau-Ponty (1983, p. 108), sentado em um

vagão de trem na estação jogando cartas com seus companheiros, ele

olha e vê o trem ao lado que começa a se movimentar. Quando, porém,

seu olhar é fixado em alguém ou em alguma atividade ocorrendo no

vagão daquele trem, em seguida, parece-lhe que é o seu próprio trem

que está se afastando da estação. Ele conclui, então, que não é que nós

avaliamos cognitivamente o que realmente está acontecendo, contudo a

experiência é derivada da maneira que nos estabelecemos no mundo e

da situação escolhida dentro dele por nosso corpo. A lente da câmera

pode estar igualmente situada para sugerir movimento tanto do seu

olhar, como também daquele que ela observa. Essa relação corporal com

o mundo é o que precede e que apoia nossas avaliações cognitivas e as

torna possíveis. É por isso que nós somos corporificações que se

envolvem com o mundo, que o percebem e, dessa maneira, podemos

pensar sobre ele.

Entretanto, se não fizermos julgamentos sobre os dados sensoriais

que impingem sobre nossa visão, então como seremos capazes de

reconhecer um objeto a partir de uma situação posterior? Segundo o

32 Na versão original: De la profondeur ainsi comprise, on ne peut plus dire qu'elle est

“troisième dimension”. D'abord, si elle en était une, ce serait plutôt la première: il n'y a

de formes, de plans définis que si l'on stipule à quelle distance de moi se trouvent leurs

différentes parties. Mais une dimension première et qui contient les autres n'est pas une

dimension, du moins au sens ordinaire d'un certain rapport selon lequel on mesure. La

profondeur [...] est plutôt l'expérience de la réversibilité des di-mensions, d'une

“localité” globale où tout est à la fois, dont hau-teur, largeur et distance sont abstraites,

d'une voluminosité qu'on exprime d'un mot en disant qu'une chose est là. (MERLEAU-

PONTY, 1965, p. 65).

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filósofo francês, esse reconhecimento depende da constância de nossa

percepção, apesar de um objeto, por exemplo, variar em diversos níveis

de iluminação.

Não calculamos que o livro azul escuro escondido na sombra da

noite pode ser o mesmo livro azul claro que eu deixei lá em plena luz do

dia, o que logicamente representaria cores contrastantes. Em vez disso,

eu vejo o livro em diferentes níveis de iluminação, porque vejo dentro

de um campo e contra um horizonte. Eu não preciso fazer julgamentos,

pois vejo a coisa em si mesma. “[...] não imagino o mundo: ele se

organiza diante de mim” (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 107).33

Assim, por exemplo, se tomarmos uma caixa preta bem iluminada

e uma caixa branca fracamente iluminada, elas podem aparecer com o

mesmo tom de cinza, a menos que um pedaço de papel branco seja

introduzido tanto na caixa preta, como na branca. Nesse caso, os devidos

campos são apresentados e as diferenças entre as cores com eles

(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 412).

Quando se adentra em um cinema escuro, deixando para trás as

luzes brilhantes da bilheteria, o nosso corpo tenta se ancorar nesse novo

nível de iluminação. Inicialmente, diante da tela, como uma luz que

pisca com a montagem das cenas, temos certa dificuldade para encontrar

o lugar para sentar. Porém, depois de um momento, os olhos começam a

se ajustar a esse novo nível de iluminação, permitindo-nos encontrar o

local correto. Como nosso corpo se ajusta, após um tempo, a tela recua

como luz e torna-se o mundo que habitamos, as relações entre as coisas

e o corpo se reafirmam de acordo com esse novo nível do filme.

Na visão natural, “os objetos e a iluminação formam um sistema

que tende para determinada constância e certo nível de estabilidade [...]”

(MERLEAU-PONTY, 1983, p. 107).34 Essa constância é o aspecto

conservador da visão fenomenológica que necessita de uma lógica

estabelecida de percepção, sem a qual não seria possível fazer o sentido

daquele percebido e que proporciona uma constância desde um nível de

iluminação para outro próximo. No entanto, a visão fílmica, que não

pode depender do horizonte e de uma ancoragem em um campo, pode

tirar proveito do potencial de perturbar a sintaxe cinematográfica e

tentar explicar o que é deixado de fora, por percepções alternadas, para

exigir que nós pensemos sobre o que percebemos.

33 Na versão original: [...] je ne pense pas le monde, il s'organize devant moi

(MERLEAU-PONTY, [1966], 2009, p. 12). 34 Na versão original: Les objets et l'eclairage forment un système qui tend vers une

certaine constance et vers un certain niveau stable [...] (MERLEAU-PONTY, [1966],

2009, p. 12).

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Essa constância que pertence à lógica da percepção é ainda

apoiada, como já comentado, por uma sensual sinestesia. O cinema

depende, inicialmente, da visão e do som, ou seja, apenas dois dos cinco

sentidos. Desses nossos sentidos, que não podem ser recolhidos um no

outro, no entanto, entrelaçam-se, sobrepõem-se e reúnem-se no sistema

sinérgico do estar no mundo, podemos ver a dureza de gelo e ouvir a

fragilidade do vidro quando ele se quebra. Tal fato é plausível se

entendermos os sentidos como a abertura existencial sobre o mundo:

perceber é compreender a estrutura unificada de uma coisa, a sua forma

singular de estar no mundo, que fala, concomitantemente, a todos meus

sentidos (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 105).

Destarte, o cinema pode não fornecer as experiências de cheiro,

de gosto ou de toque, entretanto esses sentidos podem ser evocados e

falados na experiência fílmica simplesmente nos modos que eles

evocam os cheiros e os sabores de uma refeição suntuosa, por exemplo,

no filme “A Festa de Babette” (1987), de Gabriel Axel ou mesmo no

“ouvir o azul” da personagem Julie no filme “A liberdade é Azul”

(1993), de Krysztof Kieslowski. Como Merleau-Ponty (2006, p. 314)

escreve: “Quando digo que vejo um som quero dizer que, à vibração do

som, faço eco através de todo o meu ser sensorial [...]”.35 Assim, quando

um filme é dublado, não é apenas a discrepância entre palavra e imagem

que vem à tona, temos a impressão de que toda uma outra conversa está

acontecendo ali. O texto dublado, para o espectador, não tem nem

mesmo uma existência auditiva.

De semelhante modo, quando há algum problema no som e o

personagem fica sem voz, o seu rosto paralisa e congela e perde sua

aparência animada. Em suma: Junto ao espectador, os gestos e as falas não são

subsumidos a uma significação ideal, mas a fala

retoma o gesto, e o gesto retoma a fala, eles se

comunicam através de meu corpo, assim como os

aspectos sensoriais de meu corpo, eles são

imediatamente simbólicos um do outro, porque

meu corpo é justamente um sistema acabado de

equivalências e de transposições intersensoriais36

(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 315).

35 Na versão original: Quand je dis que je vois un son, je veux dire qu'à la virbration du

son, je fais écho par tout mon être sensoriel [...] (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 271). 36 Na versão original: Chez le spectateur, les gestes et les paroles ne sont pas subsumés

sous une signification idéale, mais la parole reprend le geste et le geste reprend la

parole, ils communiquent à travers mon corps, comme les aspects sensoriels de mon

corps ils sont immédiatement symboliques l'un de l'autre parce que mon corps est

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Para o filme funcionar como um campo de relações, portanto,

como um nível no qual entramos, que molda e ajusta as maneiras que

percebemos, as partes do filme não podem ser adicionadas à sua própria

soma. Elas podem fornecer uma total gestalt temporal. Há, então, uma

ligação entre som e imagem.

Por essa razão, não há divisão clara entre as nossas emoções ou

sentimentos interiores e nossa expressão externa deles. Não mostramos

sinais de medo que podem, então, ser cognitivamente sentidos por outra

pessoa. Em vez disso, incorporamos o medo, e esse medo é percebido

por outros, precisamente porque é uma maneira de se comportar, de

nossos gestos, e isso é visível em nosso próprio comportamento.

É relevante também para Merleau-Ponty (1983, p. 109) o nosso

mundo emocional que não é de uma psiqué interior estirpada do mundo.

Referindo-se ao filósofo francês Paul Janet, ele entende a emoção como

uma “[...] reação de desorganização que intervém quando estamos

engajados num impasse [...]”.37 Emoções são respostas a nosso

engajamento em um mundo e às nossas relações com os outros. Elas

variam conforme nos relacionamos com os outros e conforme as formas

de nos comportarmos com eles.

A partir desse ponto de vista, não podemos entender, como já

visto, as emoções em termos de signos de amor ou de raiva fornecendo

uma indicação de um fato psíquico interior, mas, sim, “[...] deve-se dizer

que o outrem me é dado como evidência, como comportamento”

(MERLEAU-PONTY, 1983, p. 109).38 É também por isso que não

podemos fielmente compreender o amor desde um exame dos nossos

próprios sentimentos interiores, desde a essência do amor que emerge

em nossas relações de amor, de nossas relações com os outros.

Mesmo sabendo que o filme move-se além dos borrões, manchas

e elementos supérfluos da nossa realidade cotidiana para fornecer a

precisão de um pensamento cuidadosamente elaborado, na verdade,

estamos percebendo seres que aprenderam po meio de nossas

experiências corporais para entender a lógica da percepção. Dessa

forma, somos capazes de compreender, como seres encarnados, o que

perceptivamente o filme apresenta. E o cinema apresenta raiva e

vertigens, isto é, um mundo emocional. Apreendemos a relação do

justement un système tout fait d'equivalences et de transpositions intersensorielles

(MERLEAU-PONTY, 1945, p. 271). 37 Na versão original: [...] réaction de désorganisation qui intervient lorsque nous

sommes engagés dans une impasse [...] (MERLEAU-PONTY, [1966], 2009, p. 15). 38 Na versão original: [...] il faut dire qu'autrui m'est donné avec évidence comme

comportement (MERLEAU-PONTY, [1966], 2009, p. 15).

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interior para o exterior por meio de nossa percepção dos modos pelos

quais os personagens se comportam, e é, de fato, como percebemos o

mundo: “[...] um filme significa da mesma forma que uma coisa

significa: um e outro não falam a uma inteligência isolada, porém,

dirigem-se ao nosso poder de decifrar tacitamente o mundo e os homens

e de coexistir com eles” (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 115).39

Para esse autor, filmes, assim como a filosofia fenomenológica e

existencial, são uma tentativa de fazer ver a ligação entre o indivíduo e o

universo, entre o indivíduo e os semelhantes, ao invés de explicar. Por

conseguinte, Merleau-Ponty não hesita em estabelecer ligações entre

filmes, obras de arte e filosofia com o intuito de mostrar quais

significados podem surgir, ser criados com essa relação, em vez de

apenas explicar ou descrever ideias já estabelecidas. O cinema utiliza

uma linguagem particular, uma sintaxe que faz parte do significado do

gesto do filme como um todo.

Geralmente, não se lê ou se interpreta uma raiva no rosto

contorcido de alguém, podemos ver e sentir uma pessoa com raiva,

assim também podemos experimentar mais do que a representação em

um filme, por meio de músicas, diálogos e imagens que revelam

significados que poderiam ser reduzidos a nenhuma explicação

cognitiva ou replicação da realidade. O cinema pode permitir-nos sentir

palpável, como seres encarnados que somos, os sentimentos que ele

explora. Por esse motivo, todas as partes do filme, como diálogo, música

e cenas, trabalham não na direção de traduzir essas emoções, mas no

sentido de dar-lhes uma existência em nossos próprios corpos. Na

verdade, o cinema, como arte, não reproduz ou representa a realidade,

porém, criando-a, traz novos significados ao ser.

Em suma, o filme que é arte, como a fenomenologia, cultiva a

percepção. Aprendemos a ver o mundo de forma diferente, de acordo,

por exemplo, com a visão cinematográfica de Kieslowski, em seu já

citado filme “A Liberdade é Azul”. A cor azul assume uma nova

vitalidade e reverbera com significado corpóreo nessa obra. Uma cor só

pode ser totalmente explorada e vivenciada corporalmente, assim como

a palavra “azul” em si mesma torna-se saturada com as emoções e os

sentimentos que a acompanham e que se sobrepõem à função de

designação da palavra. O azul assume uma função ontológica,

39 Na versão original: [...] un film signifie comme nous avons vu plus haut qu'une chose

signifie: l'un et l'autre ne parlent pas à un entendement séparé, mais s'adressent à notre

pouvoir de déchiffrer tacitement le monde ou les hommes et de coexister avec eux

(MERLEAU-PONTY, [1966], 2009, p. 22).

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estabelecendo um nível ou campo de relações como o pano de fundo do

filme.

Como Merleau-Ponty (2006, p. 314-316) explica, nossos corpos

têm uma enorme capacidade de se mover para novas situações e de levá-

las para outros níveis. Da mesma maneira como mudamos para uma

nova situação de iluminação para que os nossos olhos se acostumem a

ela, também podemos passar para o nível de um filme. Durante uma

projeção cinematográfica, nossos olhos se acostumam a determinado

modo de ver, a certo modo de ouvir, que, na verdade, são nossas

próprias percepções, sob a orientação de um experiente diretor de

fotografia e do diretor do filme.

Esse corpo fenomenológico que o filósofo anteriormente citado

descreve com tanto cuidado, como alguém que se move para dentro de

um mundo e o habita, é um tanto problemático. Enquanto, para Merleau-

Ponty, o cinema possui o potencial para revelar a ligação entre o sujeito

e o mundo, para Gilles Deleuze, esse é precisamente o problema com a

fenomenologia. Deleuze (1990, p. 31) identifica o corpo

fenomenológico com o chamado esquema sensório-motor que ele

associa com clichês. Esse esquema permite que nosso corpo se esquive

de algo muito desagradável, resigne-se quando alguma coisa é terrível e

assimile aquilo que é muito bonito. Em outras palavras, a percepção é

moldada por um mundo criado por outros e está relacionada a interesses

dos mais diversos.

Para Deleuze (1990, p. 31), via Bergson, a gestalt está ligada aos

“[...] nossos interesses econômicos, nossas crenças ideológicas e nossas

exigências psicológicas”40, em outras palavras, aos clichês, pois “[...]

nós não percebemos a coisa ou a imagem inteira, percebemos sempre

menos, percebemos apenas o que estamos interessados a perceber, ou

melhor, o que temos interesse em perceber [...]”.41 A percepção é a

tentativa de fazer sentido do que está lá, e essa produção de sentido

depende de estruturas perceptivas sedimentadas, então a estratégia do

cinema é, como Deleuze (1990, p. 31) coloca, bloquear ou quebrar os

esquemas, permitindo: [...] uma imagem ótico-sonora pura, a imagem

inteira e sem metáfora, que faz surgir a coisa em si

mesma, literalmente, em seu excesso de horror ou

40 Na versão original: [...] de nos intérêts économiques, de nos croyances idéologiques,

de nos exigences psychologiques (DELEUZE, 1985, p. 22). 41 Na versão original: [...] nous ne percevons pas la chose ou l'image entière, nous en

percevons toujours moins, nous ne percevons que ce que nous sommes intéressés à

percevoir, ou plutôt ce que nous avons intérêt à percevoir [..] (DELEUZE, 1985, p. 22).

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beleza, em seu caráter radical ou injustificável,

pois ela não tem mais que ser “justificada”, como

bem ou como mal...42

No cinema europeu do pós-guerra, Deleuze (1990, p. 55) vê

certos diretores quebrando esses esquemas de dentro, cortando os laços

entre percepção e ação. Diz ele: “Personagens, envolvidas em situações

óticas e sonoras puras, encontram-se condenadas à deambulação ou

perambulação”.43 Da parte de Merleau-Ponty, em seu desafio ao

dualismo mente-corpo, o problema é aquele da mediação entre o reino

puramente empírico da sensação e o mundo representacional do

idealismo, mas o problema, como Deleuze (1985a, p. 68) o entende, é: Como explicar que movimentos de repente

produzam uma imagem, como na percepção, ou

que a imagem produza um movimento, como na

ação voluntária? Se invocarmos o cérebro, é

preciso dotá-lo de um poder miraculoso. E como

impedir que o movimento já não seja imagem pelo

menos virtual, e que a imagem já não seja

movimento pelo menos possível? O que parecia

sem saída, afinal, era o confronto do materialismo

com o idealismo, um querendo reconstituir a

ordem da consciência com puros movimentos

materiais, o outro, a ordem do universo com puras

imagens na consciência.44

Para este autor, portanto, o cinema fornece evidência de uma

imagem-movimento efetivamente entrando em colapso com alguma

fronteira artificial. Ele chega a essa conclusão baseando-se em Bergson,

que procurou ir além dos dualismos estabelecidos pela psicologia

42 Na versão original: [...] une image optique-sonore pure, l'image entière et sans

métaphore, qui fait surgir la chose en elle-même, littéralement, dans son excès d'horreur

ou de beauté, dans son caractère radical ou injustifiable, car elle n'a plus à être

'justifiée', en bien ou en mal... (DELEUZE, 1985, p. 22). 43 Na versão original: Des personnages, pris dans des situations optiques et sonores

pures, se trouvent condamnés à errance ou à la balade (DELEUZE, 1985, p. 43). 44 Na versão original: Comment expliquer que des mouvements produisent tout d'un coup

une image, comme dans la perception, ou que l'image produise un mouvement, comme

dans l'action volontaire? Si l'on invoque le cerveau, il faut le doter d'un pouvoir

miraculeux. Et comment empêcher que le mouvement ne soit dejà image au moins

virtuelle, et que l'image ne soit dejà mouvement au moins possible? Ce qui paraissait

sans issue, finalement, c'était l'affrotement du matérialisme et de l'idealisme, l'un voulant

reconstituer l'ordre de la conscience avec de purs mouvements matériels, l'autre, l'ordre

de l'univers avec de pures images dans la conscience (DELEUZE, 1983, p. 64).

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clássica e, com base criticamente na física quântica emergente, entendeu

que a imagem-movimento e a matéria fluente são basicamente a mesma

coisa. Ainda nesse entendimento, a identidade da imagem e do

movimento tem sua razão de ser na identidade da matéria e da luz. A

imagem é movimento, assim como a matéria é luz (DELEUZE, 1985a,

p. 71-73).

Para Merleau-Ponty (2006, p. 415), no entanto, a luz é que

ilumina, mas, quando é captada no cinema (por exemplo, na imagem de

um filme de alguém descendo para uma adega com uma lâmpada na

mão), a luz não aparece como uma entidade imaterial explorando a

escuridão e escolhendo os objetos, permanecendo discretamente em

segundo plano para que ela possa conduzir o nosso olhar em vez de retê-

lo, pelo contrário, ela aparece como um objeto sólido na superfície da

tela.

O exemplo da luz conduzindo o nosso olhar e iluminando-o, faz

paralelo com a compreensão de Deleuze sobre a noção de consciência

defendida por Merleau-Ponty, que é, argumenta Deleuze (1985a, p. 73),

ainda diretamente situada na tradição filosófica, “[...] que situava a luz

antes do lado do espírito e fazia da consciência um feixe luminoso que

tirava as coisas de sua obscuridade nativa”.45 Notamos, entretanto, que,

em escritos posteriores de Merleau-Ponty, como “O visível e o

invisível”, ele se aproxima da compreensão de Deleuze a respeito da

sensação e do afeto como fluxos materiais que não estão vinculados ao

sujeito intencional.

Por outro lado, mais do que vendo o aspecto consciente e

reflexivo da descrição fenomenológica como um negativo, para Vivian

Sobchack (1991, p. 4), é na reflexão que a experiência é dada, é falada e

é escrita. Essa autora encontra na fenomenologia uma abordagem para a

teoria fílmica que direciona a experiência pré-reflexiva fundamental

para o cinema, uma experiência que não é nem verbal, nem literária. Na

verdade, um filme é, em si mesmo, uma expressão da experiência pela

experiência, isto é, uma redução fenomenológica. Ao refletir sobre essa

experiência, o que é encontrado no filme é esse “poder original” para

significar, para dar sentido.

Sobchack está interessada na maneira como filme proporciona

uma reversibilidade ou um quiasma entre percepção e expressão. Ele

45 Na versão original: [...] qui mettait plutôt la lumière du côté de l'esprit, et faisait de la

conscience un faisceau lumineux qui tirait les choses de leur obscurité native

(DELEUZE, 1983, p. 68).

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desenha no ser selvagem ou na experiência corporal o que precede

significação e reflexão. De fato, um filme tem em si um tipo de ser

selvagem que antecipa sua dissecção na linguagem de análises críticas e

teóricas. Há, como nota Sobchack (1991, p. 5), uma espécie de

linguagem cinematográfica, mas essa linguagem é fundamentada nas

estruturas da existência corporal pré-reflexiva compartilhada pelo

cineasta, pelo filme e pelo espectador.

Da mesma forma como Merleau-Ponty é crítico de uma tradição

filosófica que pressupõe o corpo em suas avaliações cognitivas, a

preocupação de Sobchack (1991, p. 19-23) é que a teoria do cinema

presumiu o ato de ver, tomando o próprio filme como um objeto que é

visto mais do que como um sujeito da visão, com a qual corporalmente

nós nos engajamos. Além disso, na expressão visível de sua percepção,

o filme torna visível a troca intrasubjetiva entre a percepção da câmera e

a expressão do projetor, ambas como sujeitos da visão e como objetos

visíveis. Como Merleau-Ponty (2009a, p. 16) diz: [...] é verdade que o mundo é o que vemos e que,

contudo, precisamos aprender a vê-lo. No sentido

de que, em primeiro lugar, é mister nos

igualarmos, pelo saber, a essa visão, tomar posse

dela, dizer o que é nós e o que é ver, fazer, pois,

como se nada soubéssemos, como se a esse

respeito tivéssemos que aprender tudo.46

Como seres encarnados, os seres humanos podem ver o mundo,

mas são como seres humanos que eles têm a capacidade especial de ver

com seus “próprios olhos”, como sujeitos da visão, uma vez que se

exige uma “consciência reflexiva e refletiva” (SOBCHACK, 1991. p.

54). É essa consciência reflexiva e refletiva da visão com sua estrutura

reversível que permite a possibilidade da experiência fílmica.

Já a autora Laura Marks (2000, p. 141-143), baseando-se nas

ideias de Merleau-Ponty sobre sinestesia, vê a percepção como uma

experiência multissensorial que surge de nossas histórias pessoais e

coletivas. Para ela, certas imagens estão compactadas com algumas

experiências sensuais, experiências que serão diferentes dependendo do

corpo sedimentado e habitual que trazemos a elas.

46 Na versão original: Il est vrai [...] que le monde est 'ce que nous voyons' et que,

pourtant, il nous faut apprende à le voir. En ce sens d'abord que nous devons égaler par

le savoir cette vision, en prendre possession, dire ce que c'est que nous et ce que c'est que

voir, faire donc comme si nous n'en savions rien, comme si nous avions là-dessus tout à

apprendre (MERLEAU-PONTY, 2006a, p. 18).

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No cinema, portanto, certos objetos podem ser carregados com os

traços de memórias corpóreas, repentinamente evocadas através de uma

percepção visual ou auditiva. O olfato, por exemplo, é talvez o mais

indescritível à memória intencional. Nossas percepções são

temporalmente sedimentadas, moldadas por meio de percepções

passadas. Elas nos preparam para o mundo, permitindo-nos entender o

que está lá, encontrar o que é novo, enfim, aprendemos a perceber

(MARKS, 2000, p. 148).

As noções de Merleau-Ponty acerca do corpo fenomenal revelam

a lógica da visão e, consequentemente, como sujeitos encarnados,

submetem-se à experiência do cinema. Em seu desafio ao dualismo

corpo-mente, ele explana como o nosso pensamento mais abstrato está

ancorado na percepção encarnada. Pensamos já que temos um corpo

porque os nossos corpos têm a sua própria lógica, suas próprias formas

de interpretar e se mover em direção a um mundo que não é processado

por meio da representação cognitiva.

O cinema, como intuído por esse autor, mostra precisamente

como as ideias são retomadas corporalmente no próprio filme e nas

maneiras que espectadores experienciam e respondem corporalmente.

Esse não é um mundo da interioridade, mas do comportamento. A

crítica de Deleuze, embora significativa, não demite ou exclui o corpo

fenomenal, somente o seu potencial para a mudança radical e para a

criatividade, o que pode se dar com a abertura do corpo fenomenal para

o cultivo de percepção, permitindo, portanto, que ele seja transformado.

Podemos afirmar que as considerações explicitadas anteriormente

mostram-se aliadas a um elogio à montagem, especialmente ao “efeito-

Kulechov”, referido, erroneamente, por Merleau-Ponty, como “efeito-

Pudovkin”. A montagem e os seus efeitos atraem o filósofo como

exemplo de uma forma que transcende a soma de seus elementos. O

efeito-Kulechov ilustra a unidade do campo visual, sua organização

sistêmica.

O sentido de uma imagem depende daquelas que a precedem e a

sucessão delas cria uma outra realidade, não equivalente à simples

adição dos itens empregados. O som também é analisado pelo autor não

como reprodução fonográfica de ruídos e de palavras, mas como

composição de um “estar no mundo” de seus elementos. Para Merleau-

Ponty, som e imagem não podem ser vistos isoladamente. Ambos

consumam uma totalidade nova e irredutível.

Quando se aventura pela teoria cinematográfica, Merleau-Ponty

apresenta duas grandes influências: as análises de base psicológica sobre

a técnica e os estudos sobre as categorias de som, imagem e montagem

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desenvolvidos por Andre Malraux ao longo dos anos 1940, em L'esquise

d'une psychologie du cinema, além do ensaio que Roger Leenhardt

escreveu para a revista Esprit, em 1936, Le rythme cinematographique.

Este último reforça a necessidade de acrescentarmos ao processo de

criação de sentido não somente as imagens que antecedem e se sucedem,

como também a duração de cada uma delas.

A montagem não é, então, destacada exatamente pelo seu caráter

construtivo, como ocorreria de forma ampla a partir dos anos 1960, mas

como prova de que o cinema seria, como já visto, uma forma temporal

em que as imagens significam em seu modo inerente de se expor na

duração. Ou seja: o cinema, arte temporal, só pode ser descrito, tal como

a percepção, no seu pertencimento ao transcorrer do mundo.

Por esse entendimento, não quer dizer que Merleau-Ponty

defenda a possibilidade de uma reprodução direta do mundo. Ele chama

de equívoco a noção de que um filme seria a representação visual e

sonora mais fiel e completa possível de um drama, o qual a literatura só

poderia sugerir com palavras. Esse equívoco persiste, segundo ele,

justamente porque o realismo seria um elemento fundamental das

imagens em movimento. A força do realismo efetivada pelo cinema

torna destoante a menor estilização.

Por essa razão, os atores deveriam atuar com naturalidade. A

direção precisa ser o mais verossímil possível, embora um filme não

esteja destinado a nos fazer ver e ouvir o que veríamos e ouviríamos

caso tivéssemos as situações narradas diante de nós. Merleau-Ponty

esboça um conceito de realismo no cinema, mas seria um exagero falar

em uma antecipação a André Bazin e à noção de ontologia da imagem

cinematográfica. A explanação do filósofo visa, em uma aproximação

com a poesia, destacar que a arte de um filme não consiste em descrever

didaticamente as coisas ou expor ideias, mas em criar uma espécie de

máquina de linguagem com o intuito de instalar o espectador em um

certo estado sensível.

Em suas palavras: O sentido de uma fita está incorporado a seu

ritmo, assim como o sentido de um gesto vem,

nele, imediatamente legível. O filme não deseja

exprimir nada além do que ele próprio. A ideia

fica, aqui, restituída ao estado nascente, ela

emerge da estrutura temporal do filme, como, num

quadro, da coexistência de suas partes. Trata-se do

privilégio da arte em demonstrar como qualquer

coisa passa a ter significado, não devido a alusões,

a ideias já formadas e adquiridas, mas através da

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disposição temporal ou espacial dos elementos47

(MERLEAU-PONTY, 1983, p. 115).

Assim, conforme já referido, um filme possui significação da

mesma forma que uma coisa possui significado. Nas palavras

conclusivas de Bezerra (2015): Tanto um quanto outro não se dirigem a uma

inteligência isolada, mas a capacidade de

descobrir implicitamente o mundo e os homens e

de conviver com eles. O cinema não nos oferece

os pensamentos de um personagem. O que vemos

são gestos, olhares, mímicas. Um personagem se

faz visível por meio de seu comportamento, seu

modo singular de estar no mundo, de lidar com

aquilo que o cerca. Se um diretor deseja nos

mostrar um personagem tomado pela vertigem, ele

não deveria tentar conferir a visão interior da

vertigem, e sim apreciá-la exteriormente,

contemplando um corpo desequilibrado,

contorcendo-se à beira de um precipício. O

espectador, por sua vez, está numa relação de

imediatismo com o mundo através do filme. Ver

um filme não é ler, nem sequer compreender, mas,

acima de tudo, sentir, aceitar que me mostrem

algo cujo sentido não nos é claramente dado. Ou

seja, um filme não deve ser considerado como um

suporte para determinadas ideias ou temas, nem

apenas como uma obra plástica, e sim como um

composto de forma e sentido ao qual só podemos

acessar por meio do exercício da percepção.

“O cinema e nova psicologia” finda com uma hipótese importante

a respeito da convergência entre o filme e a gestalt: a afinidade

geracional. De fato, a fenomenologia provaria ser uma base rica a partir

da qual se desenvolveriam teorias e críticas a respeito do cinema no final

dos anos 1940 e ao longo dos anos 1950. Como exposto anteriormente,

André Bazin e Aymédée Ayfre são dois dos autores que surgiram neste 47 Na versão original: Le sens du film est incorporé à son rythme comme le sens d'un

geste est immédiatement lisible dans le geste, et le film ne veut rien dire que lui-même.

L'idée est ici rendue à l'état naissant, elle émerge de la structure temporelle du film,

comme dans un tableau de la coexistence de ses parties. C'est le bonheur de l'art de

montrer comment quelque chose se met à signifier, non par allusion à des idées déjà

formées et acquises, mais par l'arrangement temporel ou spatial des éléments

(MERLEAU-PONTY, [1966], 2009, p. 22).

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contexto. Bazin e Ayfre acreditam, assim como Merleau-Ponty, que a

significação em um filme emana de uma organização das aparências.

Ambos se empenham em torno do tema da ambiguidade da imagem e da

realidade.

Cada um a seu estilo, esses autores vão ao cinema como uma

maneira diferente de se aproximar da realidade, para dentro das riquezas

da experiência. É bem verdade que, embora, tenham em comum uma

enorme variedade de premissas, Bazin e Ayfre caminhariam em direções

diferentes da de Merleau-Ponty, especialmente no que diz respeito à

estética cinematográfica.

Percebemos, portanto, que, em nenhuma ocasião, o autor francês

se avizinha de uma crítica a subsídios especificamente cinematográficos,

como a decupagem clássica e, muito menos, de uma justificativa do uso

da profundidade de campo ou do plano-sequência. Pelo contrário,

Merleau-Ponty exalta a tendência de sua filosofia com as ponderações

dos teóricos da montagem, algo que será aventado unicamente como

negação em outros autores importantes, como Bazin, Ayfre e Michel

Mourlet (BEZERRA, 2015).

“O cinema e a nova psicologia” é um dos primeiros ensaios a

fazer um diálogo entre cinema e fenomenologia. Sua originalidade,

como observa Fernão Ramos (2012, p. 57), manifesta-se inclusive por

uma lacuna a respeito da questão do neorrealismo italiano. Se, por um

lado, podemos dizer que essa conferência de Merleau-Ponty é anterior à

explosão desse movimento pela Europa, por outro, não é muito

complicado notar a pouca intimidade do filósofo com a produção

cinematográfica em voga em sua época.

É importante destacar, todavia, que, por ocasião da sua morte, em

1961, Merleau-Ponty trabalhava em um livro, que permaneceria

inacabado, chamado “O visível e o invisível”, cuja apenas a primeira

parte e algumas notas se encontravam redigidas, testemunhando um

esforço para dar uma nova expressão ao seu pensamento. Nos capítulos

seguintes, iremos dar destaque a essas suas ideias e nos aprofundar um

pouco mais nessa obra.

Se, no livro “Fenomenologia da percepção”, a apreciação do

fenômeno perceptivo possibilitava ao filósofo delinear o conhecimento

apontando a vinculação entre sujeito e objeto, entre corpo e mundo,

partindo da disparidade entre estes polos para harmonizá-los na união do

campo experiencial, em “O visível e o invisível”, como analisaremos

mais à frente, a experiência é vista como “deiscência”, como uma

abertura espontânea. Refletimos, portanto, sobre nossa afinidade com o

ser como deiscência e não mais idealizá-lo como atrelamento, síntese ou

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coincidência, mas como fissão que, a partir da unidade primordial da

carne, faz nascer, um para o outro, corpo e mundo, observador e

observado, eu e outro (BEZERRA, 2015).

Como veremos, posteriormente, essas noções serão aprofundadas

por Merleau-Ponty na direção de uma nova proposta ontológica, uma

maneira de se incorporar à experiência existencial e encarnada do

espectador e de repensar a relação deste com a obra cinematográfica e

seu realizador, em um processo reversível de constituição recíproca que

se utiliza dos modos e das estruturas da experiência perceptiva direta e

reflexiva.

2.2 CORPO, VISÃO E SENTIDO

O pensamento merleaupontiano a respeito da noção de corpo, de

filme e de percepção toma como base a experiência particular,

adaptando-se à maneira de olhar para a experiência cinematográfica

fundada na mecânica corpo-olho-câmera. Esse fato é importante, já que

o corpo não pode ser tomado apenas como um mero recipiente ou até

mesmo como uma marca de presença. O corpo não pode ser objetivado,

pois, para isso acontecer, teríamos que separá-lo da mente, nem pode ser

classificado como um mero invólucro.

Por esse viés, o olho da câmera e o corpo do filme são igualmente

a pré-condição situada para o fazer cinematográfico, uma presença

perceptual imperceptível provocando uma visão do mundo. Além disso,

como parte da experiência intencional dentro da obra estética, o olho da

câmera serve para criar imagens que posteriormente tornarão habitação

temporária do espectador como corpo virtual. Pela concentração sobre a

significância do corpo como uma sensibilidade unificada de consciência

encarnada, Merleau-Ponty argumenta que a experiência mental, que

parece ser interna e hermeticamente selada, é sempre expressa

externamente em comportamento corporal e por vias dirigidas.

Percepções internas imediatamente tornam-se expressões exteriores

como uma realização do corpo.

O campo de sentido é um plano, um patamar no qual qualquer

coisa dentro dele é uma vontade diferente que entra em destaque,

chamando a atenção para si mesmo. Em um modo semelhante à noção

de encontro de Husserl, Merleau-Ponty esclareceu os processos no

mundo da vida, em termos de reciprocidade do corpo dentro desse

mundo. Assim diz ele: “Nem o corpo 'nem a existência' podem passar

pelo original do ser humano, já que cada um pressupõe o outro e já que

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o corpo é a existência imobilizada ou generalizada, e a existência uma

encarnação perpétua”48 (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 229-230).

A fenomenologia de Merleau-Ponty prevê uma modalidade

sinestésica de personificação incluindo o tempo e a profundidade

espacial. Mudando o foco da percepção, a partir do visível, da visão, do

sentir e do sensível, adquirimos uma ideia totalmente nova de

subjetividade que desperta a consciência de sensibilidade. É relevante

dizer que, para esse autor, a descrição tradicional de profundidade

resultou na abstração artificial. Ao fazer o sentido de profundidade,

mesmo uma projeção plana ou um ato subjetivo de sintetizar as

multiplicidades, espessura e dimensionalidade são transformadas em

uma visão lateral alongada ou em um nivelamento abreviado

(MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 239-241).

Todavia as coisas do mundo envolvendo corporeidade não devem

ser vistas sem profundidade ou dimensão. Elas perduram em um estado

de coexistência, dando origem à interconectividade e à confiança mútua

e às relações indissolúveis. Profundidade espacial é a dimensão

fundadora do mundo da vida. Nas palavras do filósofo francês: “Mais

diretamente do que as outras dimensões do espaço, a profundidade nos

obriga a rejeitar o prejuízo do mundo e a reencontrar a experiência

primordial onde ele brota; entre todas as dimensões, ela é, por assim

dizer, a mais 'existencial' [...]”49 (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 345).

A descrição do espaço em termos de interconexão e profundidade

é fundamental para a experiência do mundo da vida como a presença

fundada invisível que perpassa todas as coisas. A transposição única do

filme da realidade concreta cria seu próprio estilo estético que inclui a

sensação de autoexpresssão da profundidade através da figura e fundo

internos. Por meio do movimento filmado, a dimensão fundamental da

profundidade emerge de uma estrutura de figura-fundo constantemente

variável. Figuras mudam a forma de acordo com cenários que são

campos de força fluidos. O cinema possui uma fluidez imbutida por

meio de sua capacidade inerente para mostrar o movimento. Por essa

razão, não se podia descrever o processo de gravação como um órgão do

48 Na versão original: Ni le corps 'ni l'existence' ne peuvent passer pour l'original de

l'être humain, puisque chacun présuppose l'autre et que le corps est l'existence figée ou

généralisée et l'existence une incarnation perpétuelle (MERLEAU-PONTY, 1945, p.

194). 49 Na versão original: Plus directement que les autres dimensions de l'espace, la

profondeur nous oblige à rejeter le préjugé du monde et à retrouver l'expérience

primordiale où il jaillit; elle est, pour ainsi dire, de toutes les dimensions, la plus

'existentielle' [...] (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 296).

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sentido bombardeado por uma série de sensações atomísticas ou como,

por exemplo, o mecanismo sintético, que está faltando, para decodificar

átomos irredutíveis.

Em vez disso, o filme em movimento explora a qualidade

quimérica do campo fenomenal e mostra uma remodelação do ambiente

através da criação de um sistema combinado de matrizes e contextos.

Temas da percepção são indeterminados, parte do constantemente

reinventado momento no qual o significado somente toma forma dentro

de um renovado e disseminado contexto. A completude é

impossibilitada pela própria natureza das perspectivas que têm de estar

inter-relacionadas para outras perspectivas, e assim por diante,

indefinidamente. É de dentro da profundidade primordial que a visão

integrada emerge para compreender o significado (MERLEAU-PONTY,

2006, p. 443).

No mundo da vida pré-dado, estamos juntos espacializados em

nosso meio e, no mundo do cinema, é o poder de autoprojeção dentro do

movimento que dá essa mesma sensação de inclusão, colocando o

espectador no meio das coisas. O movimento no espaço cria a sensação

de profundidade real. O cinema se fixa na primordialidade da

profundidade como uma abertura de significado e, ao fazer isso, traz

consigo uma grande variedade de técnicas para dar impressões

tridimensionais. O objetivo é ter sempre em mente que a profundidade é

uma sensação vivida e total não baseada em padrões fixos. É uma

expressão da maneira como o campo fenomenal global se abre à

consciência. O ser-do-mundo não é uma construção imposta, mas uma

configuração e um pano de fundo a partir do qual nossos fenômenos

perceptivos surgem.

No âmbito da experiência de profundidade, experimentamos o

mundo como incorporado e dimensional em uma forma de operar, sem

recuar para criar conscientemente uma terceira dimensão. Não podemos

ver a profundidade dimensional, mas a habitamos, e isso abrange nossa

pequena espacialidade. Cada movimento da câmera de cinema é também

um ajuste de profundidade e a correlação figura-fundo, um reajuste do

visto e do ato de ver, uma alteração simultânea de perspectiva criando

abertura para o significado. Se realinhamentos fossem experimentados

como fragmentos, eles resultariam em experiências dissonantes, porém,

com a mobilidade fílmica, deslocamentos espaciais ocorrem fornecendo

a mesma experiência da vida real, entrelaçados no campo fenomenal.

Consequentemente, a relação entre tema e horizonte e a maneira

como essas formas significam são o princípio de uma organização

independente, uma autofiguração fluida dinamicamente desdobrando no

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tempo. Essa dinâmica significa que figuras não são coisas a priori,

contudo elas emergem da trajetória corporal, criando ativamente

configurações em um vívido campo de atividade. Antes, a percepção

pode ser embasada ou feita um objeto de consciência, sendo que ele

próprio fornece o horizonte e o fundo sobre os quais o embasamento é

possível (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 443-444).

Como a articulação emerge de horizontes indeterminados e ainda

não formados, a correlação figura-fundo é vista como reversível e

irredutível, o que, ao mesmo tempo, constitui um alicerce para figuração

de outro tempo que emerge para se tornar um ponto de origem para que,

em seguida, desapareça. O próprio corpo perceptivo é indicativo desse

fato, tanto quanto um ponto de origem, como um fundo, uma vez que

emerge conscientemente em relevo ou desaparece na pré-reflexão.

A profundidade subsiste não intencionada pela consciência

reflexiva, invisível, porque, novamente, não intencionada. O filme

corrige essa invisibilidade no seu próprio senso de profundidade, que é

visceralmente comunicado como um modo de ser-no-mundo. Com a

capacidade do filme de gravar o movimento pelo movimento, de mover-

se pela remoção, temos não só um novo objetivo tomado na realidade,

mas mudando as relações de figura e fundo que originam novos

significados. No cinema, essa estrutura pode ser expressa como o acerto

do foco de acordo com o que é pedido ou requerido no contexto

cinematográfico. A atividade de regular o foco é parte da consciência

direta, que inclui o primeiro plano do imediatamente visual, bem como o

reconhecimento direto para a posição subjetiva, uma espécie de

consciência anestésica ou realização existencial. Em ambos os casos, o

papel da visão é duplo, pois é passivamente reflexiva e ativamente

inflexiva.

A análise de Merleau-Ponty acerca da profundidade e da

percepção espacial é parte de uma preocupação concernente ao

significado da visão em todas as artes. É uma aproximação que nos

ajuda a dar sentido ao filme como uma consciência automatizada, uma

sensibilidade perceptiva e receptiva não autoconscientemente

participando, como veremos melhor, posteriormente, da chamada carne

do mundo. Como diz o autor: “A carne do mundo não é 'sentir-se' como

carne minha ‒ é sensível e não sentiente [...]''50 (MERLEAU-PONTY,

2009a, p. 227).

50 Na versão original: La chair du monde n'est pas se sentir comme ma chair ‒ Elle est

sensible et non sentant [...] (MERLEAU-PONTY, [1964], 2006a, p. 298).

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Essa é uma sensibilidade que joga para trás uma imagem ativa do

comportamento de superfície e capta no invisível a maneira de tornar-se

ativada, não por meio da autorrealização, mas pela posição dentro do

circuito da carne. Logo, a percepção atinge o seu objeto porque ela é o

toque da carne e o ver a si própria. Assim, não há representação ao nível

da percepção, há somente a carne no toque com ela mesma. O ser de

uma árvore, por exemplo, é uma quase-percepção de um indivíduo, o ser

dela testemunha o fato de que ele é visível do ponto de vista da árvore,

como ambos são carne do mundo como uma experiência visual

imediata.

A partir dessa perspectiva, a consciência fílmica, assim como a

intuição, é ampliada, é a visão também ampliada, incluindo pontos de

vista e o invisível. Ela toma forma e se realiza na áspera e desordenada

exterioridade visível, no reino perceptivo de texturas e de expressão,

pois há um círculo do visível e do vidente, o vidente não existe sem

existência visível. Então, a experiência fílmica se materializa pela

conjugação de diferentes níveis de posições do sujeito em um circuito de

carne. O sujeito vendo o filme, ao mesmo tempo, está vendo uma cena

representada em que existem temas da visão sendo sujeitos-objetos

visíveis um para o outro (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 139).

A maneira como o espectador está incluído nesse circuito

cinematográfico de visão é comparável à imersão dos seres sentientes no

campo fenomenal. O campo no qual o entendimento ocorre é aquele da

difusão, da descoberta e da ligação, tudo aberto para a exploração na

obra de arte. Sua base é da opacidade mais do que da transparência,

tanto que expressões criativas nunca são totalmente apreensíveis, apenas

parcialmente realizáveis. Isso significa que a experiência fílmica é

caracterizada menos pela permanência de um objeto dado à visão do que

pela experiência na qual o processo da visão implica. Ultrapassamos o

quadro encarnado específico da referência para incluir novas

perspectivas em um campo fenomenal cada vez maior. A recepção de

dados visuais é determinada dentro desse campo fenomenal pela

interação de horizontes que compõem disputados níveis de presença e de

ausência.

O visível é em si uma correlação, não um objeto fixo, e isso o

torna uma teia, unindo os horizontes interiores e exteriores. Por sua vez,

os horizontes não permanecem fixos, mas são bem mais do que

horizontes de possibilidade, tanto que cada visível é impedido de ser um

objeto e de adquirir a positividade autoidêntica que define o objeto. A

intencionalidade está trabalhando aqui, mas sem fundamentar a

identidade consistente (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 129).

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Quando vemos um filme, nós também trazemos horizontes

latentes que estão relacionados com a profundidade do nosso corpo, a

densidade corporal que não é removida simplesmente porque nós

aparecemos imóveis em uma situação de visualização. Na experiência

fílmica, a intencionalidade está ligada a uma noção de corpo que é

visualmente flexível, articulada em torno do visível e invisível e do

observador e observado. Merleau-Ponty sustenta suas observações sobre

o substrato invisível em termos de um mistério, em que os objetos

adquirem presença não como identidade invariável, mas através de uma

relativa indefinição.

Nas palavras do filósofo: Bem entendido, a ipseidade nunca é 'atingida':

cada aspecto da coisa que cai sob nossa percepção

é novamente apenas um convite a perceber para

além e uma parada momentânea no processo

perceptivo. Se a coisa mesma fosse atingida,

doravante ela estaria exposta diante de nós e sem

mistério. Ela deixaria de existir como coisa no

momento mesmo em que acreditaríamos possuí-

la. Portanto, o que faz a 'realidade' da coisa é

justamente aquilo que a subtrai à nossa posse51

(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 313).

Neste sentido, cada imagem fílmica é recebida em um movimento

que desaloja estados estáveis e que se relaciona a uma corporalidade

móvel baseada em perspectivas sucessivas. O invisível é transcendente

na medida em que ele ultrapassa o visível, mas não é inacessível ou

inatingível, e sim uma tarefa constante a ser realizada. O visível tem o

que é próprio para isso como uma superfície, mas uma superfície com

uma profundidade inesgotável, abrindo visões diferentes da nossa. O

invisível, portanto, fornece as bases para o visível e não é apenas uma

condição, mas também um conteúdo do ato de ver. Capturamos o

impensado e o não dito, extrapolados de sua posição no mundo da vida,

trazendo para a luz como se eletricamente carregados (SOBCHACK,

1991, p. 86).

51 Na versão original: L'ipséité n'est, bien entendu, jamais 'atteinte': chaque aspect de la

chose qui tombe sous notre perception n'est encore qu'une invitation à percevoir au delà

et qu'un arrêt momentané dans le processus perceptif. Si la chose même était atteinte,

elle serait désormais étalée devant nous et sans mystère. Elle cesserait d'exister comme

chose au moment même où nous croirions la poseéder. Ce qui fait la 'réalité' de la chose

est donc justement ce qui la dérobe à notre possession (MERLEAU-PONTY, 1945, p.

269-270).

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Dessa forma, a duplicação fílmica não torna a reprodução, mas a

indução invisível, dando início a uma expressão do mundo através do

invisível. Acena-se uma intencionalidade mecânica como se sente e faz

todo o sentido do mundo. Da indução obtemos a possibilidade de notar o

potencial que se manifesta como uma visibilidade em potencial. Como

uma revelação do seu ser, a visão será a força ontológica do filme.

Merleau-Ponty descreveu a forte fé na visão como algo semelhante a

uma imediata e inquestionável condição de saber com certeza. A

experiência da nossa presença perceptiva deixa óbvia a necessidade de

escolher ou mesmo de distinguir entre a garantia de ver e a garantia de

ver a verdade, porque, em princípio, elas são uma mesma coisa

(MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 38).

A fenomenologia de Merleau-Ponty é uma mudança para uma

intencionalidade operativa que é, ao mesmo tempo, experimental e não

reflexiva. O estudioso complementa noções de visão, de profundidade e

do corpo dentro da dimensão pré-dada e nos ajuda a entender como o

cinema reflexivamente mostra a condição pré-predicativa irrefletida e a

presença de material do corpo como atividade concreta. O corpo não é

apenas o domínio em que faculdades perceptivas são localizadas, é

também o campo no qual poderes são vistos para serem exercidos e

expressados por outros.

Por essa razão, a estética poderosa do cinema encarna

mecanicamente todo o conjunto de esquema perceptivo em que se

envolveu no campo fenomenológico. Ela apresenta e simboliza,

assemelha-se e se reconstrói, ou seja, é, ao mesmo tempo, uma visão do

mundo e a visualização do mundo. Como um corpo colocado

mecanicamente entre outras materialidades, o olho fílmico apresenta a

perspectiva sobre as perspectivas de visualização como uma visão-em-

ação. Contudo, enquanto os seres humanos usam a comunicação

corporal como parte do sentido primordial do ser-no-mundo, uma

significação imediatamente expressiva-perceptiva, com uma afinidade

para interesses semelhantes dos indivíduos, o filme, por sua vez, não

tem essa casca exterior para direcionar a intencionalidade, já que ele

mantém a sua invisibilidade corporal para criar a visualização.

Junto a esses aspectos, é indispensável dizer que Merleau-Ponty

(2006, p. 18) deixou claro que, com a percepção encarnada, há sempre já

um sentido, um significado, “porque estamos no mundo, estamos

'condenados ao sentido', e não podemos fazer nada nem dizer nada que

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não adquira um nome na história''.52 A partir desse ponto básico inicial,

o cinema é corporalmente posicionado em um mundo para ver as coisas

e trazê-las à vida.

Nas explicações do filósofo: Não temos outra maneira de saber o que é um

quadro ou uma coisa senão olhá-los, e a

'significação' deles só se revela se nós os olhamos

de um certo ponto de vista, de uma certa distância

e em um certo 'sentido'; em uma palavra, se

colocamos nossa conivência com o mundo a

serviço do espetáculo.53 (MERLEAU-PONTY,

2006, p. 575).

Essa é, no entanto, uma visão que, por necessidade, torna-se

liberada no tempo e na transcendência, “[...] assim sempre somos

levados à concepção do sujeito como ek-stase e a uma relação de

transcendência ativa entre o sujeito e o mundo.”54 (MERLEAU-

PONTY, 2006, p. 576). Em termos fílmicos, isso é naturalmente

ajudado pelo fato de que o filme se comunica visualmente em uma

forma extremamente direta. Embora presente, a palavra falada no

cinema não é necessária para explicar as imagens. O ato de filmar

responde à comensurabilidade do corpo fílmico e à corporeidade

humana, compartilhando um compromisso encarnado no mundo, que é

imediatamente expressivo.

A imagem em movimento também percebe e se expressa de

modo selvagem e incisivo antes de articular seus significados, como um

tropo ou figura cinematográfica significativa, um conjunto específico de

configurações genéricas, uma convenção sintática específica. Um filme

faz sentido em virtude de sua própria ontologia. O mundo

prematuramente significa e a corporalidade do filme reflete esse fato.

Temos, então, atos de percepção e trabalho de expressão corporal por

52 Na versão original: Parce que nous sommes au monde, nous sommes condamnés au

sens, et nous ne pouvons rien faire ni rien dire que ne prenne un nom dans l'histoire

(MERLEAU-PONTY, 1945, p. XIV-XV). 53 Na versão original: Nous n'avons pas d'autre manière de savoir ce que c'est qu'un

tableau ou une chose que de les regarder et leur 'signification' ne se révèle que si nous

les regardons d'un certain point de vue, d'une certaine distance et dans un certain 'sens',

en un mot si nous mettons au service du spectacle notre connivence avec le monde

(MERLEAU-PONTY, 1945, p. 491). 54 Na versão original: [...] nous sommes ainsi toujours amenés à une conception du sujet

comme ek-tase et à un rapport de transcendence active entre le sujet et le monde

(MERLEAU-PONTY, 1945, p. 491).

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meio de uma significativa existência encarnada (SOBCHACK, 1991, p.

12).

A falta de deliberação autoconsciente permite uma equivalência a

ser estabelecida entre a condição primordial da percepção humana e a

mecanicamente funcional, raiz inconsciente do cinema. Filmar é colocar

um comparável pedestal consciente pela virtude de ter uma comparável

plataforma de consciência, ou seja, o corpo-no-mundo como expressão

perceptiva. Essa plataforma de visão existencial tem a capacidade de

localizar, de unificar, ou de centralizar o invisível, comutação

intrasubjetiva de percepção e expressão e torná-lo visível e

intersubjetivamente disponível para os outros (SOBCHACK, 1991, p.

21).

Originário comércio com o mundo, um natural ser-no-mundo

precisa sempre ser redescoberto. Para entendermos o comportamento no

mundo concreto, olhamos para as expressões daquele comportamento.

Em termos existenciais, uma obra cinematográfica acomoda a expressão

de sentimentos e de emoções internas precisamente porque são

comportamentalmente observáveis. Para os estados internos serem

percebidos, na verdade, para significativamente exisirem, eles podem

ser expressos por meio de comportamentos e de padrões observáveis

através do corpo.

Emoções e atitudes tomam forma como manifestações físicas.

Elas não estão trancadas nos recessos psíquicos da mente, mas se tornam

significativas quando manifestadas no mundo da vida. Os imagéticos

movimentos do filme captam o imediatismo da expressão por meio da

ação corporal. A expressão de emoção em manifesto comportamento e

gesto é parte da estrutura que define os indivíduos em geral como um

estilo de ser-no-mundo.

Esse aspecto pode ser visto, como já trabalhado anteriormente,

quando Merleau-Ponty relaciona diretamente o filme ao que ele chamou

de “nova psicologia”, referindo-se ao papel de padronização da

percepção gestáltica. Dados visuais não são vistos como um mosaico de

sensações que necessitam de raciocínio subjetivo para fazer-se

inteligível. Na gestalt, a relação do organismo com seus pares não é

explicada pela ação causal de estímulos externos sobre o organismo,

porque, em termos fenomenológicos, o sujeito está reagindo em um

ambiente que não tem existência puramente objetiva fora da

consciência.

A gestalt se relaciona diretamente com o que é sentido. Por esse

motivo, o significado do mundo concreto não é uma criação mediada,

mas uma proximidade envolvente. Esse é o ponto crucial no qual o filme

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se diferencia por ser um ato de ver que se faz ver, um ato de ouvir que se

faz ouvir, e um ato de movimento físico que se faz reflexivamente

sentido e compreendido (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 107).

Ao contrário da comunicação humana individual, a obra de arte

cinematográfica concretiza sua facilidade perceptivo-comunicativa pela

projeção pública; porém o filme possui significância da mesma forma

como o corpo humano, pelo fornecimento de um ponto de apoio para a

subsequente tomada de sentido. Sua presença primordial é suficiente

para estender a expressão em seu olhar abrangente, uma espécie de visão

de rastreamento exploratório que acompanha o movimento.

Assim, cinema e filosofia se unem na definição do processo pelo

qual a percepção torna-se expressão, em que a atividade de percepção

como algo intrínseco à atividade no mundo da vida torna-se visível em

termos do que é percebido e em termos de como ela é percebida para se

tornar significado. O fato de que filme, reconhecidamente, mostra e

expressa a mesma realidade concreta vista como percepção humana,

bem como o processo intencional de trazer sentido a essa visão, permite

para a obra fílmica funcionar como um espaço único para o espectador.

A percepção é parte de um trabalho em andamento, no qual o

corpo e os sentidos já têm uma natural e primitiva familiaridade com o

mundo, nascido do hábito e identificável através do conhecimento

sedimentado. O filme trabalha e explora o conhecimento implícito e a

familiaridade de experiência. Mesmo que seja conscientemente posto

em movimento pelo cineasta, a obra fílmica automaticamente coloca em

movimento as suas próprias percepções ativo-receptivas, tanto como um

canal para o significado, como um fornecedor de sentido. A

sensibilidade mecanizada do corpo fílmico, que automatica e

inconscientemente atua na vida real, é um pouco diferente de um mesmo

ser humano automático.

Nas palavras de Merleau-Ponty (2006, p. 290): [...] se eu quisesse traduzir exatamente a

experiência perceptiva, deveria dizer que 'se'

percebe em mim e não que eu percebo [...]. Sem

dúvida, o conhecimento me ensina que a sensação

não aconteceria sem uma adaptação de meu corpo,

por exemplo que não haveria contato determinado

sem um movimento de minha mão. Mas essa

atividade se desenrola na periferia de meu ser, não

tenho mais consciência de ser o verdadeiro sujeito

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de minha sensação do que de meu nascimento ou

de minha morte.55

É esse nível direto e operativo da percepção a que teóricos

realistas do cinema estão se referindo quando afirmam que a realidade

em sua existência bruta pode ser filmada, sem manipulação, para torná-

la significativa. A suposição é que o espectador entende a linguagem

natural do filme como uma estrutura tácita pré-linguística fundada sobre

as estruturas de experiência do mundo da vida. Essas estruturas de

experiência não são, todavia, simplistas; elas são complicadas, são zonas

flutuantes que a todo tempo tentam se ultrapassar. Não fixáveis e

incontroláveis, elas ainda virão a ser enquadradas pela câmera.

A ontologia do filme é dinâmica e vibrante como o mundo da

vida em que ela se origina, como uma encarnação viva é significativa

porque é simultaneamente um receptor de sentido e um sujeito

performático de sentido com tentáculos que se infiltram no reino vital da

indeterminação. O cinema reflete o excesso de significação dos objetos

e situações pertencentes ao amplo campo de força da vida fenomenal.

Esse é o mundo de fenômenos tomados como um campo e uma força

transbordando com potencial de significados. A gravação de um filme,

por exemplo, é sincronizada mecanicamente a uma taxa a ser

comparável com esse campo de força, com o poder para sincronizar os

processos da própria vida fenomenal. O campo de força como processo

está oculto, retido, mas, mesmo assim, possui a condição para a

naturalidade dos fenômenos.

Dessa maneira, seria um erro descrever o processo

cinematográfico de uma forma semelhante a um órgão dos sentidos

neutro, bombardeado de fora por uma série de sensações atomísticas.

Seria igualmente uma incoerência vê-lo com uma função imanente de

dar sentido ao mundo. Ambas as posições foram rejeitadas por Merleau-

Ponty quando ele descreveu a condição humana. Não existe um

processo para registrar mensagens de elementos determinados ou

irredutíveis em um mundo objetivo. Também não existe qualquer

55 Na versão original: [...] si je voulais traduire exactement l'expérience perceptive, je

devrais dire qu'on perçoit en moi et no pas que je perçois [...]. Sans doute la

connaissance m'apprend bien que la sensation n'aurait pas lieu sans une adaptation de

mon corps, par exemple qu'il n'y aurait pas de contact déterminé sans un mouvement de

ma main. Mais cette activité se déroule á la périphérie de mon être, je n'ai pas plus

conscience d'être le vrai sujet de ma sensation que de ma naissance ou de ma mort

(MERLEAU-PONTY, 1945, p. 249).

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mecanismo para uma posterior síntese que poderia decodificar ou

processar átomos irredutíveis como eles são originalmente encontrados.

Tanto a percepção humana como o cinema, por meio de

movimentos imagéticos, exploram a qualidade quimérica do campo

fenomenal, visualmente remodelando o ambiente pelo estabelecimento

de um sistema combinado de matrizes e contextos. Todos os temas da

percepção são indeterminados, sendo parte do constantemente

reinventado momento. O significado somente toma forma dentro de um

já renovado e disseminado contexto, minando pedidos para o seu

encerramento no mundo objetivo.

Segundo o ponto de vista de Merleau-Ponty (2006, p. 443): [...] parece que somos levados a uma contradição:

a crença na coisa e no mundo só pode significar a

presunção de uma síntese acabada, e todavia este

acabamento é tornado impossível pela própria

natureza das perspectivas a ligar, já que cada uma

delas reenvia indefinidamente, por seus

horizontes, a outras perspectivas.56

Podemos dizer que essa abertura de significado foi englobada

pelo conceito “sentido selvagem” de Merleau-Ponty, em que essa

expressão possui relevância antes do uso de discretos sistemas

simbólicos. Diz o autor: “[...] a filosofia consiste em reconstituir uma

potência de significar, um nascimento do sentido ou um sentido

selvagem, uma expressão de experiência pela experiência que ilumina,

precipuamente, o domínio especial da linguagem”57 (MERLEAU-

PONTY, 2009a, p. 150).

O sentido selvagem é o significado indiferenciado da existência,

uma vez que é vivida ao invés de refletir sobre alguma coisa, em que o

corpo, a ação e a linguagem vêm juntos, como expressão direta. É uma

área que reflete diretamente a ontologia do filme como ele se refere a

uma materialidade bruta, tendo um encontro do humano e do não-

humano e, por assim dizer, uma peça de comportamento do mundo. O

56 Na versão original: [...] il semble que nous soyons conduits à une contradiction: la

croyance à la chose et au monde ne peut signifier que la présomption d'une synthèse

achevée e cependant cet achèvement est rendu impossible par la nature même des

perspectives à relier, puisque chacune d'elles renvoie indéfinement par ses horizons à

d'autres perspectives (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 381). 57 Na versão original: [...] toute la philosophie consiste á restituer une puissance de

signifier, une naissance du sens ou un sens sauvage, une expression de l'éxpérience par

l'expérience qui éclaire notamment le domaine spécial du langage (MERLEAU-PONTY,

[1964], 2006a, p. 201).

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cinema, como encarnação mecânica, funcionando como uma gravação

posicionada de modulação, é linguagem, nesse selvagem e

indiferenciado sentido, porque o direcionamento do filme e a duplicação

automatizada refletem o significado existencial de comportamento.

Por esse viés, com as formas simbólicas, uma conduta aparece

que expressa os estímulos por ela mesma, que está aberta à verdade e ao

valor adequado das coisas, o que tende para a adequação do significante

e do significado, da intenção e daquilo que ela tem por objetivo. Aqui, o

comportamento não só tem uma significação, ele mesmo é significação

(MERLEAU-PONTY, 1942, p. 133). Para esse autor, no campo

fenomenal, tudo já fala para todas as coisas. O signo é compreensível

contextualmente e em termos de outros signos. Por esse motivo, o signo

é sempre um signo em uso, ou seja, o significado presente nos signos

não é um fenômeno referencial, porém o próprio significado são os

signos dentro de uma existência fenomenal.

Com Merleau-Ponty, o signo é o resultado sinótico da imanência

e da transcendência. A mudança de percepção para a expressão ocorre

por meio da fusão da intencionalidade e do mundo operatório em

constante fluxo, modificação e constituição. Quebra-se o pré-

predicativo, uma vez que as superfícies entram em um diálogo embutido

com as coisas. É nesse nível da superfície onde o discurso é sustentado

pelo falar, onde há dicas de invisibilidade sobre o visível, onde o campo

fenomenal dá à luz à visão, que, finalmente, o cinema toma o seu lugar

(LANIGAN, 1991, p. 85).

No filme, a imagem está lá antes das palavras, mesmo que as

palavras se esforcem para criar novas imagens. Esse é um meio de

comunicação, um sistema diacrítico, sistema que é compartilhado

comunitariamente, embora ele seja unicamente experimentado a partir

de perspectivas individuais. Expressões cinematográficas são recebidas

nessa forma perceptiva, imediatamente advindas desse sedimentado

conjunto de significado cultural, pelo qual a psiqué dos outros, bem

como a percepção da psiqué do filme, é lida. Aqui, por meio da

consciência fílmica, o processo de percepção fala através de signos

materialmente externalizados, em uma forma direta do pensar com a sua

própria significação, sem os meios de reflexão como um ato de

recuperação (ANDREW, 1984, p. 75-76).

Nessa esteira, o discurso sai do silêncio do primordial sentido do

silenciar do mundo perceptivo. O filme se relaciona com esse tipo de

sentido, refletindo-o como ser bruto, em silêncio, mas expressivo,

permitindo que o silenciar fale pelo contato diretamente com ele, na

corporalidade compartilhada e na definição concreta. Ele traz a

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expressão para o mundo a partir da profundidade de silêncio, abrindo o

inerentemente pré-linguístico para sua própria significação visual. O

fazer cinematográfico é o imaginar o mundo já expresso no seu interior,

uma abertura para o mundo e um catalisador para o surgimento do ser-

no-mundo.

Ao contrário da transmutação do original que se vê na arte

pictórica, o cinema é uma submissão ao total apagamento diante do

mundo, como negando a si mesmo para coincidir com a objetividade.

Um filme fala visualmente a linguagem do mundo porque ele carrega,

através da especificidade do mundo fenomenal, intercomunicações que

se abrem. Essa é a condição primordial do filme, indiferente em relação

à autonomia do mundo, mas por sua instrumentalidade interpenetrada

por ele. A pronúncia da imagem fílmica faz possível o paradoxo de que

o mundo revela a si mesmo, como é nele revelado, pronuncia-se, então,

antes de toda linguagem humana (ANDREW, 1984, p. 22-23).

A submissão ao mundo da vida permite que o próprio mundo

torne-se linguagem no mesmo sentido silenciador de uma percepção.

Tudo isso conduz para o silêncio em que a única palavra pronunciada

seria aquela do mundo mudo, inaudível, sem precedentes. Para nós,

nenhuma palavra é falada. Esta é a imagem fascinante: um mundo do

qual estamos aparentemente ainda excluídos, no entanto, estamos

magicamente entrenhados no meio das coisas. Estamos transfixados e

encantados por um complexo de imaginário e de real.

Nesses termos, a imagem fílmica é apresentação sem mediação,

um logos imediato e uma linguagem direta. Consequentemente, o

imaginário, o reino do espírito humano, torna-se também logos puro.

Essa é a simples presença da natureza capturada pelo cinema em um ato

mostrado para indefinidamente repetir a captura. A experiência fílmica

específica que acompanha esse ato pode ser comparada a uma busca do

conhecimento, que é como um estrangeiro para linguagem, que clama

por outra forma de conceber, exigindo um desenvolvimento da mente

óptica (SOBCHACK, 1991, p. 92).

A ligação entre percepção e expressão, como a alternância e o

esquema dependente mutuamente da figura e fundo da gestalt tem

características detectadas ao longo da fenomenologia. Isso é chamado de

Fundierung, ou seja, a relação do fundado para a fundante, ambas

ambíguas e recíprocas.

Na explicação de Merleau-Ponty (2006, p. 527): A relação entre a razão e o fato, entre a eternidade

e o tempo, assim como aquela entre a reflexão e o

irrefletido, entre o pensamento e a linguagem ou

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entre o pensamento e a percepção, é aquela

relação com dupla direção que a fenomenologia

chamou de “Fundierung”[...].58

Essa é uma maneira de olhar para a prioridade da percepção sobre

o conceitual, enquanto reconhecendo um ser que pode ter

autoconhecimento. Tal fato é igualmente aplicável à relação indivisível

da corporeidade cinestésica, à natureza material, bem como a

dependência do mundo da mídia fílmica em relação ao real. Assim, a

percepção expressiva e a expressão perceptiva coexistem, mutuamente,

como um quiasma ou reversibilidade, conceitos que trabalharemos mais

à frente, e que norteiam o pensamento de Merleau-Ponty sobre

expressão e experiência, cinema, sentido e percepção, arte e discurso.

58 Na versão original: Le rapport de la raison et du fait, de l'éternité et du temps, comme

celui de la réflexion et de l'irréfléchi, de la pensée et du langage ou de la pensée et de la

perception est ce rapport à double sens que que la phénoménologie a appelé

“Fundierung”. (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 451).

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3 DISCURSO, ESTÉTICA E LINGUAGEM

Neste capítulo, examinaremos as relações entre arte, linguagem e

cinema, buscando compreender a arte, especificamente como

manifestação da liberdade, da indivisibilidade e mistério do sensível, da

temporalidade e do pensamento, e analisar o que daí decorre em direção

à futura instituição de uma nova ontologia. Dessa maneira, Merleau-

Ponty pensa a arte com mais consistência no âmbito da tematização da

linguagem e da imbricação signo e sentido, vidente e visível, expressão

e expresso, sendo que o próprio da arte é a situação imperiosa no

mundo, a criação e a abertura e, com isso, a impossibilidade de

compreensão racional exaustiva do ser.

3.1 PINTURA E FENOMENOLOGIA

Merleau-Ponty (2004, p. 26), em “O olho e o espírito” (1961), seu

último grande ensaio filosófico acerca das artes visuais, ao abordar a

natureza da representação, seu conteúdo, significados e fins, e a relação

do artista com o mundo, afirma que uma teoria da pintura implica uma

metafísica, ou seja, uma concepção de como o eu, o corpo, a mente e o

mundo inter-relacionam-se. Em seus outros ensaios, como “A dúvida de

Cézanne” (1945) e “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”

(1952), o filósofo recorre também a essa relação interna entre as teorias

da pintura e da metafísica para desafiar algumas correntes filosóficas e

científicas que discorriam sobre a ideia de percepção, sentido,

imaginação e subjetividade humana.

É importante notar que, se toda teoria da pintura implica uma

teoria metafísica, nem toda teoria metafísica oferece uma teoria da

pintura. A noção de arte desempenha um papel central nos esforços de

Merleau-Ponty para elaborar sua fenomenologia, no entanto, mesmo,

por exemplo, na intensa reflexão de “A dúvida de Cézanne” a respeito

da vida e da obra deste pintor, não está tão claro que, a partir dessa

investigação fenomenológica, emerge uma filosofia da arte. Na verdade,

há uma tensão, nos ensaios do autor, entre a tentativa de, por um lado,

oferecer uma teoria filosófica geral e, por outro, fornecer explicações e

interpretações particulares sobre o fenômeno artístico.

Em “A dúvida de Cézanne”, Merleau-Ponty (2004, p. 121-124)

irá rejeitar a diferenciação entre o eu e seus atributos externos, ações e

experiências. No domínio da arte, o filósofo francês evitará a dicotomia

entre explicações internalistas da arte, que encontram o seu significado

na vida ou nas intenções do artista, e explicações externalistas, que

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olham para o social e o contexto do artista como fontes de significado

das artes. Para esse autor, a arte, o artista e a vida dele são

interdependentes, pois cada parte pode ou não explicar a outra, ou vice-

versa. Além do mais, Merleau-Ponty vai apresentar uma forma de

conceber a arte, como refletindo a vida de seu criador, mas não de modo

transparente. Em outras palavras, ele vai argumentar que há uma relação

interna entre trabalho e vida, mas que essa relação reflete contingências

no modo como trabalho e vida se desenrolam.

A pintura de Cézanne é tanto um objeto para um estudo

fenomenológico do filósofo, quanto fonte de uma análise

fenomenológica em si mesma. Na interpretação de Merleau-Ponty

(2004, p. 131-133), este pintor não ofereceu uma imagem do mundo

“como ele é”, mas uma imagem do mundo “vindo a ser”, a partir da

perspectiva do próprio pintor, não antes ou depois, mas como os

atributos associados com o uso, o significado e o valor que lhe são

aplicados. Aqui, o autor também contesta algumas teorias positivistas de

percepção, segundo as quais o mundo se apresenta a nós como dados

dos sentidos que são, então, interpretados e pré-configurados na mente.

Ele argumenta, ainda, que a perspectiva particular de consciência de

alguém não deve ser entendida apenas como uma tela de subjetividade

que, ao retirá-la, permitiria o acesso ao próprio objeto, já que esse objeto

de experiência, como compreendido pela fenomenologia, é, em parte,

constituído pela perspectiva da consciência.

Merleau-Ponty toma o que foi uma disputa artística de longa data

entre aqueles que construíram a “verdade” da pintura em termos do

naturalismo, e os que encontraram essa “verdade” na expressão de uma

inspirada mente criativa e a levantaram ao nível de sistemas metafísicos.

Nenhum sistema ou dicotomia que se constituem juntos serão

suficientes como síntese da compreensão humana do mundo. Além

disso, porque justamente a fenomenologia rejeitou a dicotomia entre

realismo e idealismo, Cézanne é descrito por Merleau Ponty (2004, p.

126-127) como se recusando a ser fixado entre os pólos do

impressionismo e do simbolismo, entre uma noção de arte que mostra

apenas as aparências e uma noção dela como fundamentada na vida de

uma artista. Talvez, esse entendimento seja uma resposta idiossincrática

ao mundo.

Ainda nessa esteira, Merleau-Ponty (2004, p. 131-133) não

afirma que Cézanne tinha alguma capacidade especial para a visão que

lhe permitiu mostrar o que os outros não podiam ver. Realmente, se o

filósofo francês está certo de que este pintor nos mostra algo sobre como

chegamos a ver o mundo, isso poderia, em princípio, ser verdade com

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relação à visão do mundo dos impressionistas. Em vez disso, Cézanne

mostra-nos, via sentido pictórico, que Merleau-Ponty poderia descrever,

por meios filosóficos, que a nossa relação com o mundo se dá através de

seres encarnados, com uma compreensão incompleta do mundo. Dessa

maneira, o significado que experimentamos deste mundo, não surge de

alguma paisagem determinada e imutável de objetos que nossa

percepção segue passivamente, nem da nossa mente impondo

preexistentes categorias sobre o mundo.

Mais do que isso, o significado de nossa experiência vem de

nossa confrontação perceptiva e corporal com o mundo, a partir de

dentro dele. Tal sentido é dado ao mundo antes de qualquer sentido ou

significado que possa advir de nosso julgamento intelectual do que

encontramos à nossa volta. Os objetos estão plenos de significados, por

causa da nossa relação sensório-motora para com eles, pois o fato de

estarmos defronte de um objeto implica, para os seres que podem se

mover através do espaço, que podemos estar atrás dele também.

A descrição fenomenológica expressa que os significados dos

objetos têm como consequência pertencer à órbita de tais seres

encarnados, isto é, a experiência de uma coisa real não pode ser

explicada pela ação dessa coisa em minha mente: o único caminho para

uma coisa a agir sobre uma mente é o oferecer a ela um significado para

se automanisfestar a ela, para constituir-se defronte à mente em suas

articulações inteligíveis (MERLEAU-PONTY, 1942, p. 215). Esse é o

motivo pelo qual a atividade organizadora de nossa percepção encarnada

se esconde em sua operação, deixando-nos ver as coisas do mundo,

habitualmente, como se determinadas e existentes independentemente de

nós.

O filósofo francês interpreta Cézanne como se recusando a

render-se a essa forma habitual de ver. Na pintura de Cézanne, não

vemos a revelação de alguma característica do mundo a que visões

anteriores tinham sido cegas, como, por exemplo, a cor que os

impressionistas mostraram estar inerente nas sombras. Em vez disso,

vemos as condições sob as quais a nossa visão do mundo é almejada. Na

verdade, Merleau-Ponty (2004, p. 122, 125) assinala um número de

técnicas pictóricas pelas quais a geração da nossa experiência é

representada; entretanto essas técnicas pictóricas ou características não

ocupam algum lugar específico no mundo real. Assim, por exemplo,

Cézanne pinta uma multiplicidade de contornos em torno de uma figura

para minar a impressão habitual de que as arestas das coisas existem

antes da nossa percepção que atribui sentido a elas.

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Pinturas que representam as coisas do mundo são as próprias

coisas no mundo, e Merleau-Ponty não explica como a imagem do

mundo que Cézanne apresenta vai escapar de ser vista por nós, da

mesma forma que o resto do mundo é. Ou seja, se os objetos no mundo

tomam a forma como os percebemos, da mesma maneira que os objetos

em uma pintura tomam a forma como os percebemos, então o que

poderia a pintura nos mostrar, já que, olhando para o mundo real, ele já

nos mostrou, ou supostamente, mostrou?

Uma resposta sugerida, mas não explicitamente defendida por

Merleau-Ponty, é que as técnicas de Cézanne constituem descobertas

pelas quais ele é capaz de fazer notório ou evidente algo que faz parte da

experiência visual, mas não recriamos, devidamente, essa experiência

visual. Assim, Merleau-Ponty (2004, p. 127-128) distingue entre uma

pintura de uma paisagem de Cézanne em que ele mostra a “natureza

pura” e uma fotografia da mesma cena que, invariavelmente, sugere o

trabalho de um homem, suas realizações e sua presença imediata. Se a

reprodução mecânica mostra um já categorizado e habitado mundo, isso

não seria porque o fotógrafo pretende que seja assim, mas porque esse

fotográfo, na comparação de Merleau-Ponty, não possui os meios

técnicos para mostrar o mundo de qualquer maneira, exceto como

estamos habituados a vê-lo.

Se a pintura de Cézanne impede a experiência de ver uma

imagem, justamente como se vê o mundo, não é porque sua descrição da

paisagem deixa fora características que a fotografia deixaria dentro, é

porque o pintor, ao contrário do fotógrafo, emprega uma técnica que

chama a atenção para as formas em que os objetos são dados em sua

individuação, significado e forma. Portanto, na referência de Merleau-

Ponty (2004, p. 126-127) ao que Émile Bernard descreveu como

“suicídio de Cézanne”, apontando para a realidade enquanto negando-se

os meios para alcançá-la, frisamos que não são algumas técnicas

pictóricas que são negadas, mas aquelas como a perspectiva matemática,

pela qual uma pré-formada, familiar e ordem natural é imposta ao fluxo

da experiência.

O que Cézanne faz, na visão de Merleau-Ponty, é tematizar esse

uso da perspectiva, isto é, o pintor faz a artificialidade da perspectiva

marcante em sua obra, divulgando-a de uma forma que permite que ela

seja refletida como uma convenção. A sua revogação da perspectiva

também é importante para o caminho em que demonstra o pintor desistir

de um tipo de controle, abandonando a si mesmo ao caos das sensações.

Aqui, Merleau-Ponty (2004, p. 124-125) refere-se a mais do que

sensações exclusivamente visuais. Ele argumenta que as sensações não

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são experimentadass individualmente, uma após a outra, mas de modo

global, cada qual condicionadas às outras, de acordo como elas todas

são reveladas.

Merleau-Ponty ainda se refere à observação de que Cézanne pode

mesmo ser capaz de pintar até odores, para destacar que existe uma

unidade das propriedades sensíveis das coisas na experiência, antes de

serem submetidas às distinções da mente. Tais sensações holísticas

implicam o papel do corpo na constituição dos objetos da experiência.

Isso não é a experiência de alguém afetada pela sinestesia, mas um

armazenamento dos fundamentos da experiência da perspectiva vivida

de alguém, antes que seja submetida aos julgamentos categorizados e

individualizados do intelecto.

Já em sua discussão sobre a técnica de Cézanne, Merleau-Ponty

(2004, p. 124) sugere que aqueles artistas que continuam uma tradição

tendem a ser cometidos a essas dicotomias, como entre sensação e

compreensão, enquanto aqueles que iniciam novas tradições tendem a

renunciar a essas dicotomias. Podemos perceber, portanto, que Cézanne

não escolhe entre representar as coisas como elas são e a forma como

elas aparecem. Em vez disso, ele irá representar a matéria da maneira

que ela toma forma, o nascimento da ordem através de uma organização

espontânea.

Esse fato significa que, inicialmente, Cézanne desenha os

contornos dos objetos em uma natureza morta, sem o emprego de uma

linha contínua, para qual se fará um objeto da forma (MERLEAU-

PONTY, 2004, p. 128-129). Mais tarde, no lugar disso, ele trata o

contorno como o limite ideal para o qual os lados de uma maçã

diminuem. Esses lados visíveis, logo, referem, como presenças para

ausências, aos lados da maçã que não vemos, mas para o qual a nossa

presença sensório-motora no mundo está orientada.

Aqui, e novamente no final do ensaio, Merleau-Ponty (2004, p.

135, 140) refere-se a filósofos e pintores, como tal, iniciadores de uma

tradição, sugerindo que o filósofo e o pintor estão envolvidos no mesmo

tipo de projeto, apesar das diferenças no método e no material. A

importante diferença, então, entre as investigações de Cézanne e as de

Merleau-Ponty não é o resultado, mas o fato de que o pintor pode não

estar ciente ou, no mínimo, não ser capaz de articular a sua consciência

da verdade da experiência que ele tem revelado, ao passo que o filósofo

pode ser capaz de articular a verdade da experiência que ele tem

descoberto, descortinado.

Entretanto, ao contrário do sucesso do pintor em trazer recursos

daquela experiência para uma inteligibilidade, a articulação da

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experiência do filósofo lida com o risco de distorcê-la. Os riscos da

articulação da experiência do filósofo introduzem distorções, pois

lançam a experiência justamente naquelas representações explícitas e

objetivas que a descrição científica emprega, mas que a fenomenologia

tem sublinhado é estranha à experiência, uma vez que ocorre a uma

consciência encarnada. Na sua tardia e inacabada obra “O visível e o

invisível”, Merleau-Ponty parece buscar resolver essa diferença entre a

experiência e a sua articulação linguística, sugerindo que as duas

estruturas são interdependentes.

Nesse ponto, pelo menos, o seu tratamento serve como uma

recusa à acusação de que a filosofia da arte invariavelmente subordina

arte à filosofia ou deforma a arte, fazendo-a amoldável às análises

filosóficas. Na verdade, Merleau-Ponty reconhece, de certa maneira, que

o artista pode se envolver em uma espécie de análise filosófica da

experiência que não é totalmente aberta ao filósofo. A distinção entre o

filósofo e o pintor se coloca novamente em “O olho e o espírito”, em

que Merleau-Ponty (2004, p. 12) descreve o ponto de vista científico

que trata objetos e seres no mundo como essencialmente suscetíveis à

manipulação e ao controle. Ele diz, por outro lado, que o domínio de

investigação que pertence às artes é precisamente este mundo humano

que o operacionalismo, forma de fundição do mundo em termos

instrumentais, ignora.

Enquanto a literatura e a filosofia avaliam o que elas tratam,

podem ter uma relação de julgamento para com seu tema, o pintor está

encarregado de olhar para tudo, sem ser obrigado a avaliar o que ele vê.

Merleau Ponty (2004, p. 13-14) diz que o pintor sozinho pode ficar fora

da esfera de ação e juízo, como se na vocação do pintor houvesse

alguma urgência acima de todos os outros direitos sobre ele. Embora

aqui ele pareça invocar uma noção modernista da autonomia artística, na

qual a arte é, em sua essência, considerada imune às exigências da

prática, da moral e das esferas políticas, Merleau-Ponty entende

autonomia artística não como uma rejeição das reivindicações do mundo

sobre o artista, mas como a busca de uma reivindicação muito maior.

A reivindicação que Merleau-Ponty desenvolve em “O olho e o

espírito”, que representa uma mudança de sua predominante

preocupação com a visão nos ensaios anteriores, aborda o papel do

artista em expressar um modo de existir no mundo que não é apenas

próprio dele, mas é o do grupo coletivo, sociedade ou o meio ao qual ele

pertence. Porém é precisamente em ausentar-se de uma forma de

existência autônoma, a partir das demandas de ação e de julgamento que

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definem o pertencimento a uma sociedade, que o artista é capaz de

alcançar tal expressão geral e não individualista.

3.2 LEITURA E EXPRESSÃO

Podemos assegurar que uma das fundamentais preocupações do

filósofo francês concernente ao estudo da linguagem em geral é tratá-la

como peça fundamental na existência humana, pois a linguagem age,

constrói e dá significação ao pensamento. Para Merleau-Ponty (2004, p.

70), no que tange ao sentido, é ele ambiente que funde um signo a outro

signo e os faz significar. No ensaio “A linguagem indireta e as vozes do

silêncio”, o sentido é entendido como o cruzamento ou o intervalo entre

as palavras. Não haveria uma distinção possível entre sentido e

linguagem, porque o sentido não seria nem transcendente, nem imanente

em relação aos signos.

Em suas palavras: Na verdade, não é assim que o sentido habita a

cadeia verbal, nem assim que se distingue dela. Se

o signo só quer dizer algo na medida em que se

destaca dos outros signos, seu sentido está

totalmente envolvido na linguagem, a palavra

intervém sempre sobre um fundo de palavra,

nunca é senão uma dobra no imenso tecido da

fala. Para compreendê-la, não temos de consultar

algum léxico interior que nos proporcionasse, com

relação às palavras ou às formas, puros

pensamentos que estas recobririam: basta que nos

deixemos envolver por sua vida, por seu

movimento de diferenciação e de articulação, por

sua gesticulação eloquente. Logo, há uma

opacidade da linguagem: ela não cessa em parte

alguma para dar lugar ao sentido puro, nunca é

limitada senão pela própria linguagem, e o sentido

só aparece nela engastado nas palavras59

(MERLEAU-PONTY, 2004, p. 71).

59 Na versão original: À la vérité, ce n'est pas ainsi que le sens habite la chaîne verbale et

pas ainsi qu'il s'en distingue. Si le si-gne ne veut dire quelque chose qu'en tant qu'il se

profile sur les autres signes, son sens est tout engagé dans le langage, la parole joue

toujours sur fond de parole, elle n'est jamais qu'un pli dans l'immense tissu du parler.

Nous n'avons pas, pour la comprendre, à consulter quelque lexique intérieur qui nous

donnât, en regard des mots ou des formes, de pures pensées qu’ils recouvriraient: il suffit

que nous nous prêtions à sa vie, à son mouvement de différenciation et d'articulation, à

sa gesticulation éloquente. Il y a donc une opacité du langage: nulle part il ne cesse pour

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O sentido seria a multiplicação de signo a signo, algo que dobra

os signos e os agrupa na linguagem. Em “A Experiência Interior”, o

autor George Bataille (1992, p. 100-101), por exemplo, faz referência à

cena que se desenvolve quando uma piada é contada e as pessoas riem

por contágio. Existe algo que atrela as consciências e que está além dos

signos ou da interpretação do conteúdo significado. Bataille pensa em

uma conexão que se estende entre um ser e outro, já que as palavras, os

livros, os monumentos, os símbolos, os risos são apenas passagens desse

contágio, dessas passagens. O movimento que liga as unidades relaciona

o sentido de cada objeto.

Ao contrário da piada, Merleau-Ponty (2004, p. 71) pensa na

charada, exclusivamente compreendida no intercâmbio dos signos.

Quando agrupados, a trivialidade dos signos dá lugar ao sentido que

atrela aquele que fala e aquele que escuta. Não é uma técnica de cifração

ou decifração de significações já acabadas, pois o sentido não se

depreenderia da produção de significados dos signos. Ele seria dado

antecipadamente como entidade de referência entre os gestos

linguísticos, um entrecruzamento ou malha dos signos.

Consequentemente, as palavras não buscam um sentido nem são

engendradas a partir dele, sendo que não existe nem transcendência,

nem imanência. Não há também um texto ideal que as frases traduzem.

Merleau-Ponty (2004, p. 71-72) expõe que nenhum autor pensa em um

texto que reflete seu escrito, que não existe linguagem alguma antes da

linguagem. De acordo com esse autor, a palavra se faz por um

balanceamento estabelecido pelas condições internas na linguagem, por

uma perfeição sem modelo.

A compreensão de sentido que o filósofo apresenta fica mais

óbvia se pensarmos a linguagem como um ser e não como um meio.

Quando um amigo ou um colega nos diz algo, sua linguagem está

envolvida naquele ser, ela se constitui na particular maneira de

interpelar e de despedir-se, de iniciar e de concluir as frases, de

caminhar pelas coisas não ditas. O sentido é o movimento cabal da

palavra, e é por essa razão que nosso pensamento se demora na

linguagem. O sentido atravessaria a linguagem e dar-se-ia nessa

composição de elementos que, como a duração, não podem ser

decompostos. Ele liga a linguagem às mentes que participam e não deixa

espaço para um pensamento fora de sua vibração particular

(MERLEAU-PONTY, 2004, p. 71).

laisser place à du sens pur, il n'est jamais limité que par du langage encore et le sens ne

paraît en lui que serti dans les mots (MERLEAU- PONTY, 1960, p. 53).

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135

É importante notar que, nessa composição da linguagem, está

subentendido o núcleo elementar da percepção, em que figura e fundo

são indissociáveis, pois algo só passa a expressar um sentido porque faz

parte de um campo: uma figura só pode ser apreendida sobre um fundo.

São essas relações que exprimem um sentido. Se a figura só pode ganhar

um sentido porque é apresentada sobre um fundo, logo, até as mais

simples experiências são sobre relações. E todo elemento da cultura tem

implícita essa maneira de composição (BASTOS, 2010, p. 92).

Por esse motivo, quando mergulhamos na linguagem, ela vai

além dos signos, em direção ao sentido deles. Não existe nada que nos

afaste desse sentido, pois tampouco a linguagem implica uma

correspondência ou modelo exterior. Ela produz e desvela seus próprios

segredos. Como queria, por exemplo, Wittgenstein, ela é inteiramente

mostração. A opacidade e a obstinada autoreferência da linguagem se

explicar-se-iam pela natureza autóctone do sentido. Assim, o conceito

de sentido em Merleau-Ponty é concomitantemente linguístico e não

proposicional. O filósofo francês investe contra a ideia de existir um

texto para o qual a linguagem se remeteria, espécie de transdução entre

diversos planos de pensamento e produção de sentido (BASTOS, 2010,

p. 92).

A linguagem não é representacional, mas indireta e remissiva. A

afinidade entre sentido e palavra não é assinalada por correspondências

ponto a ponto. As palavras não se atrelam aos pensamentos como

unidades duplamente condicionadas. A linguagem não imita o

pensamento, ela se faz e se refaz por ele (BASTOS, 2010, p. 92). Essa

hipótese de um sentido intercalado nos corpos e na linguagem fica mais

evidente quando Merleau-Ponty (2004, p. 72-73) explica as observações

de Saussure acerca da frase the man I love (o homem que eu amo). A

frase em inglês seria tão significativa quanto sua versão francesa,

l’homme que j’aime, não obstante a lacuna do pronome relativo na

versão inglesa.

Merleau-Ponty expõe que um francês tende a traduzir a frase para

o inglês por the man 'that' I love, colocando um pronome relativo que a

composição gramatical do inglês entende dispensável. Não se trata de

elipse, diz o autor, porém de um branco entre as palavras que denota

alguma coisa. Também não se refere a um elemento subentendido, como

uma tradução ingênua poderia arriscar. Merleau-Ponty (2004, p. 73)

indica que temos a tendência de pensar que as outras línguas capturam o

mundo como uma variante da nossa língua natal, uma variação que

utilizaria instrumentos análogos aos da nossa língua. É que nossa língua

natal parece alicerçada nas coisas de maneira mais real.

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Na explicação de Bastos (2010, p. 92-93): Essa é a ilusão do sentido, que costura as relações

internas de signo a signo. Mas the man I love, em

que pese a ausência do pronome relativo, expressa

essa realidade tão bem quanto seu par românico.

A ausência de um signo não altera a expressão

porque não existe correlação dos elementos do

discurso com os elementos do sentido, mas uma

operação da linguagem sobre a linguagem cujo

fundamento é antes o descentramento do sentido.

Nem as palavras seriam desmembradas dos

pensamentos nem os pensamentos seriam

substituídos por índices verbais. Os pensamentos

seriam incorporados nas palavras, tornando-se

disponíveis no poder das palavras. Poder que

funciona na linguagem de maneira global e não

atomística, havendo um movimento oblíquo e

autônomo na linguagem. Se a linguagem significa

alguma coisa, é porque sua vida interior, esse

rastro que não tem centro, o sentido, rodeia a

exterioridade objetiva dos signos.

Na verdade, o filósofo francês ratifica aqui a diferença entre

representação e expressão. No livro “A prosa do mundo”, Merleau-

Ponty (2002, p. 52) fala em um morfema gramatical que não se

confunde com o que ele denomina de morfema de expressão, em que

afirmação e negação admitem um sentido irônico que está para além da

letra. Seria um intuito de significar que estimula os acidentes

linguísticos e faz da língua um sistema que coincide consigo mesmo.

Um objetivo que se atenua e que nunca se realiza por completo, pois,

para que qualquer coisa seja dita, é necessário que jamais o seja

definitivamente.

Nessa esteira, a força significativa dos signos dever-se-ia a um

sistema de convivência com outros signos, o que nos remete à teoria do

valor de Ferdinand de Saussure. A diferença é que Merleau-Ponty

(2002, p. 59) vê o sentido como uma dobra no sistema da língua e no

valor de uso, uma dobra que não tem núcleo e que inaugura a

significação. E não existiria correspondência ponto a ponto entre significação e sentido, polaridades que esse autor retoma como

exprimido e expressão. O sentido só se daria integralmente, ou seja, é o

todo que possui um sentido, não cada parte. As palavras acoplar-se-iam

aos coeficientes que lhes emprestam um valor de emprego e não uma

significação. Esse valor de emprego não poderia ser destacável e só teria

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competência significante quando totalmente agregado na cadeia verbal

(BASTOS, 2010, p. 93-94).

Dessa forma, Merleau-Ponty (2002, p, 50-51) antevê uma crítica

à imagem chomskyana de uma gramática preexistente, porque vê a

urdidura da linguagem se fazendo em uma constante junção de

elementos da carne do mundo. A linguagem estabelecer-se-ia em uma

duração que não possui propriamente um sistema de referência, porém

uma amplitude de sentido. Sua fenomenologia admite ainda que nem se

expressa de todo a expressão, nem se exprime completamente o

exprimido. Então, a opacidade da linguagem, cuja lógica de construção

assume o filósofo, é contrária a conceitos. (BASTOS, 2010, p. 93). Ela

unicamente transparece essa lógica ambígua de um sistema de

expressão. Fala-se com o escopo de sair das coisas ditas e alcançar as

coisas mesmas, mas esse salto não é verificável pela análise semântica,

já que, como a duração, só pode ser alcançado como um movimento

incondicional que não se sintetiza às suas partes. A língua, por exemplo,

não se estabeleceria propriamente como sistema nem como estrutura, e a

linguística teria aberta uma dimensão que paradoxalmente lhe coloca em

posição antagônica a todo positivismo (MERLEAU-PONTY, 2002, p.

60-61).

Assim como em Deleuze, o sentido possuiria outra natureza

concernente à significação. Merleau-Ponty recorda que, na maioria das

vezes, adotamos como modelo da fala o enunciado ou o indicativo,

esquecendo que há muito fora da enunciação. Existe todo um universo

de implicações, de acordos implícitos não tematizados, não ordenados,

que contribuem para tecer o sentido. Se a significação se funde com a

fala, é porque há o prosseguimento de um discurso continuamente já

principiado, de uma língua já constituída. É o caso da expressão

literária, que anota uma sobre-significação e um sobre-sentido

(BASTOS, 2010, p. 94-95).

O sentido linguístico nos guia para um além da linguagem e,

quando o explanamos pelo seu início, perdemos de vista sua

processualidade. Seria um fantasma ou um espectro da linguagem. Se,

na geometria, um esboço não é dado pela sua constituição física,

tampouco os sons na linguagem, o esquema no papel ou a acepção dada

no dicionário são satisfatórios para produzir o sentido. Haveria uma

intervenção interior à sequência de palavras, um sulco que sugere seus

pontos de passagem. Os termos adquirem uma significação nova através

de uma racionalidade que possui o descentramento como alicerce do

sentido (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 68).

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Damo-nos conta dessa racionalidade quando buscamos uma

expressão para exprimir nosso pensamento. Merleau-Ponty (2002, p. 35-

36) fala que, da multidão de termos do léxico de uma língua, há apenas

uma que é adequada. Localizá-la é sair da afonia que quer significar e

penetrar o fluxo de sentido das palavras. Sentido é aquilo que completa

a mudez pré-expressiva, o silêncio que antecipa a prosa. Ele restitui ao

escritor um pensamento que se pensava esquecido, porque é como se

esse pensamento já fosse discorrido no avesso do mundo. Escrever,

produzir sentido, seria essa empreitada de aprofundar frases que

repousam no limbo da linguagem, palavras encobertas que o corpo

murmura (BASTOS, 2010, p. 95).

Quando acordamos o termo que repousava, a expressão e o

exprimido se equivalem, descobrem-se e reconhecem-se. O poder da

linguagem estaria nessa intervenção descentrada. Nomeadamente

equilíbrio, a linguagem arranjar-se-ia e refar-se-ia por uma operação de

descentramento que instrui ao leitor e ao autor alguma coisa que eles

desconheciam. Quando ela nos transporta às coisas mesmas, diz

Merleau-Ponty (2002, p. 36), ela deixa de “ter” significação para “ser”

significação. Quando há expressão, os signos se diluem e só se conserva

o sentido.

A significação acontece disfarçando aos nossos olhos suas

operações. Ao se apagar, temos acesso ao além das palavras, ao próprio

pensamento do autor, de tal maneira que retrospectivamente cremos ter

conversado com ele sem termos proferido palavra alguma, de espírito a

espírito. É como se existissem duas linguagens: uma que é adquirida e

que esvanece diante do sentido de que se tornou portadora, e a outra que

se faz no momento da expressão, que vai precisamente nos fazer passar

dos signos ao sentido — a linguagem falada e a linguagem falante

(MERLEAU-PONTY, 2002, p. 32).

Quando, por exemplo, lemos um livro, ele começa a existir como

um indivíduo singular para além das páginas. Mesmo a leitura gradual

da obra finaliza em um todo; a apreensão de cada frase, no compasso da

narrativa, resulta em uma imagem integral, e o livro nasce de ponta a

ponta e não aos pedaços. Na expressão literária, a linguagem não é uma

exterioridade que o pensamento manifesta (BASTOS, 2010, p. 95). O

sentido de um livro não é oferecido pelas ideias e sim por uma variante

sistemática e incomum dos modos de linguagem e de narrativa, uma

reinvenção das formas literárias existentes. A expressão é bem acertada

quando uma particular modulação do discurso contamina o leitor e lhe

torna acessível um pensamento que lhe era indiferente (LEFORT, 2002,

p. 9).

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Assim, o sentido adentra sem ser percebido, e o escritor não se

remete a um banco de significações que fazem parte de um a priori do

espírito humano. Ao contrário, as significações são provocadas pela

incidência enviesada do sentido. O texto literário não se dirige a um

sistema da linguagem, mas cria seu próprio sistema: o escritor é ele

próprio um novo idioma que se estabelece, que idealiza meios de

expressão e se diversifica de acordo com seu próprio sentido (LEFORT,

2002, p. 9).

Para Merleau-Ponty (2002, p. 35-36): A leitura é um confronto entre os corpos gloriosos

e impalpáveis de minha fala e da fala do autor

[...]. Mas esse poder de ultrapassar-me pela

leitura, devo-o ao fato de ser sujeito falante,

gesticulação linguística, assim como minha

percepção só é possível por meu corpo. Essa

mancha de luz que se marca em dois pontos

diferentes sobre minhas duas retinas, vejo-a como

uma única mancha à distância porque tenho um

olhar e um corpo ativo, que tomam diante das

mensagens exteriores a atitude conveniente para

que o espetáculo se organize, se escalone e se

equilibre. Do mesmo modo, passo direto ao livro

através da algaravia, porque montei dentro de

mim esse estranho aparelho de expressão que é

capaz não apenas de interpretar as palavras

segundo as acepções aceitas e a técnica do livro

segundo os procedimentos já conhecidos, mas

também de deixar-se transformar por ele e dotar-

se por ele de novos órgãos.60

60 Na versão original: La lecture est un affrontement entre les corps glorieux et

impalpables de ma parole et de celle de l'auteur [...]. Mais ce pouvoir même de me

dépasser par la lecture je le tiens du fait que je suis sujet parlant, gesticulation

linguistique, comme ma perception n'est possible que par mon corps. Cette tache de

lumière qui se marque en deux points différents sur mes deux rétines, je la vois comme

une seule tache à distance parce que j'ai un regard, un corps agissant qui prennent en

face des messages extérieurs l'attitude qui convient pour que le spectacle s'organise,

s'échelonne et s'équilibre. De même, je vais droit au livre à travers le grimoire, parce que

j'ai monté en moi cet étrange appareil d'expression qui est capable, non seulement

d'interpréter les mots selon les acceptions reçues et la technique du livre selon les

procédés déjà connus, mais encore de se laisser transformer par lui et douer par lui de

nouveaux organes (MERLEAU-PONTY, 1969, p. 21-22).

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Diante dessa constatação, na leitura, vamos além do pensamento

do autor, de tal modo que retrospectivamente acreditamos ter

conversado com ele sem termos dito palavra alguma, verdadeiramente

foram as palavras que nos falaram durante a leitura, sustentadas pelo

movimento de nosso olhar e de nosso desejo, mas também sustentando-

o. Posto que o leitor traga consigo a linguagem falada, isto é, a

linguagem que adquiriu ao longo da vida, a expressão ocorre quando o

livro instiga o leitor, quando o texto dá margem à dimensão criativa do

leitor, quando, amparado pelo autor, o leitor decompõe as significações

conhecidas em novas significações (CALDIN, 2009, p. 101).

Há, dessa maneira, uma união no processo da leitura: o texto, que

apresenta signos, genes da significação; o autor, que apresenta ideias,

signos transformados em significações; e o leitor, que compartilha dos

signos fornecidos pelo autor e, em parceria com este, modifica a

linguagem falada em linguagem falante. Esse fato significa que as

palavras do autor são disseminadas no texto com calor e paixão, sendo

apoiadas pelo desejo do leitor, ou, dito de outra forma, as palavras

gravadas no texto deixam de ser simples signos para se transformar em

linguagem falante, a linguagem que extrapolou o signo e passou a ser

significado (CALDIN, 2009, p. 101-102).

Simplesmente por incorporar detalhes da narrativa como um todo

e transformar signos em significados, o leitor pode ter a impressão de ter

criado o livro de ponta a ponta, como queria Sartre (MERLEAU-

PONTY, 2002, p. 33). Todavia é relevante frisar que isso é uma ilusão

retrospectiva. O leitor que pensa desse modo não leva em conta o

momento da expressão. São essas justamente as acusações que Merleau-

Ponty faz a Sartre em suas análises a respeito do objeto literário, pois o

último autor não considera o momento da expressão.

Na concepção de Sartre (2004), exposto em seu livro “O que é

literatura?”, o texto só adquire sentido estético quando o leitor, pela sua

consciência imaginante, cria um significado para as frases. Por lapidar o

texto com sua imaginação criadora, pode o leitor tornar-se uma espécie

de criador e, consequentemente, atuar como maestro do texto literário.

Como o artista se confunde com a obra, é o olhar imaginante do leitor

que se responsabiliza pela criação.

Aqui, o essencial é que os valores e os costumes mostrados na

obra literária tenham sido dialogados por autor e leitor. Por essa razão,

Sartre considera o encargo do autor assinalar os fatos históricos sem se

ocultar sob a capa da neutralidade, ou seja, ele advoga o engajamento do

escritor, sua liberdade de opinar, já que, como os acontecimentos,

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escritor e leitor são históricos, não podendo viver apartados das questões

sociais presentes em sua época (SARTRE, 2004, p. 20).

Na explicação de Caldin (2009, p. 95): Assim, por valer-se das palavras como meio de

persuasão, o escritor se engaja, quer dizer, ele tem

um motivo para escrever, ele tem um público a

quem deseja atingir. Para o filósofo, não é gratuita

a verbosidade do escritor. Embutidas no texto

estão a intenção de comunicar e a intenção de

modificar comportamentos – portanto, o escritor

não é imparcial e utiliza as palavras como armas

poderosas de convencimento. Além do mais, para

Sartre, escrever é um trabalho, exige esforço e

comprometimento do autor, ao passo que ler é um

prazer, o leitor se desvincula de compromissos

assumidos com a finalidade de se deliciar com o

texto. Sendo trabalho, o escritor labuta para

colocar no papel sua subjetividade, ou seja,

projeta na escritura suas ideias e seus valores, seu

saber consolidado e cristalizado. Por outro lado, o

leitor vê o texto como um objeto a ser apreciado e

lapidado.

Essa prioridade do leitor, na visão de Merleau-Ponty, é uma

ilusão sartriana, porque, realmente, o leitor se doa ao texto, crê no que o

texto fala e habita o pensamento do autor. Todavia, isso se dá devido aos

signos com os quais o autor e o leitor concordam; já que falam a mesma

língua, o autor faz o leitor justamente acreditar que estão no terreno

comum das significações adquiridas e disponíveis. O autor se utiliza dos

signos conhecidos para revesti-los de significados que compartilha com

o leitor, pois as palavras inscritas no texto são a voz do autor, porém a

experiência da leitura atravessa o livro, aparato de gerar significações,

sendo o momento da expressão aquele no qual o livro se apodera do

leitor (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 33-34).

Nesse sentido, autor e leitor participam dos mesmos signos, mas

não dos mesmos significados. Isso acontece pela conotação própria da

linguagem literária, que permite às palavras do texto um sentido

subjetivo. Apesar de o autor influenciar o pensamento do leitor, admite

que este último construa um sentido próprio do que lê, ou seja, confere

liberdade ao leitor para que ele mesmo providencie seu significado ao

texto. É aqui que se dá o acesso da linguagem falada para a linguagem

falante, isto é, o leitor, inquirido pelo livro, produz uma nova linguagem,

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uma nova significação. Esse é o momento da expressão (CALDIN,

2009, p. 102-103).

Merleau-Ponty (2002, p. 33) explana esse acontecimento que

ocorre na leitura: Assim, ponho-me a ler preguiçosamente,

contribuo apenas com algum pensamento – e de

repente algumas palavras me despertam, o fogo

pega, meus pensamentos flamejam, não há mais

nada no livro que me deixe indiferente, o fogo se

alimenta de tudo que a leitura lança nele. Recebo

e dou no mesmo gesto. Dei meu conhecimento da

língua, contribuí com o que eu sabia sobre o

sentido dessas palavras, dessas formas, dessa

sintaxe. Dei também toda uma experiência dos

outros e dos acontecimentos, todas as

interrogações que ela deixou em mim, as situações

ainda abertas, não liquidadas, e também aquelas

cujo modo ordinário de resolução conheço bem

demais. Mas o livro não me interessaria tanto se

me falasse apenas do que conheço. De tudo que eu

trazia ele serviu-se para atrair-me para mais

além.61

Frisamos que mais importante do que a linguagem utilizada pelo

autor para a produção de sentido para o leitor é o que Merleau-Ponty

(2002, p. 83) denomina de “estilo”. Segundo o autor, o pintor, por

exemplo, é tão inábil em notar seus quadros quanto o escritor em se ler,

porquanto as telas e os livros igualmente possuem, com o horizonte e o

fundo da própria vida deles, uma similaridade bastante imediata para

que um e outro se permitam experimentar, em todo o seu prestígio, o

fenômeno da expressão. O estilo é o aspecto do autor no texto. Contudo,

por se encontrar mesclado no texto, o autor se decompõe no corpo do

61 Na versão original: Ainsi je me mets à lire paresseusement, je n'apporte qu'un peu de

pensée- et soudain quelques mots m'éveillent, le feu prend, mes pensées flambent il n'est

plus rien dans le livre qui me laisse indifférent: le feu se nourrit de tout ce que la lecture

y jette. Je reçois et je donne du même geste. J'ai donné ma connaissance de la langue, j'ai

apporté ce que je savais sur le sens de ces mots, de ces formes, de cette syntaxe. J'ai

donné aussi toute une expérience des autres et des événements, toutes les interrogations

qu'elle a laissées en moi, ces situations encore ouvertes, non liquidées et aussi celles dont

je ne connais que trop l'ordinaire mode de résolution. Mais le livre ne m'intéresserait pas

tant s'il ne me parlait que de ce que je sais. De tout ce que j'appor tais, il s'est servi pour

m'attirer au-delà (MERLEAU-PONTY, 1969, p. 18).

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texto e, dessa forma, ele não possui o distanciamento indispensável para

ler o texto, já que ele é o próprio texto.

Na condição de espectador, o leitor compreende o sistema de

equivalências que o escritor, pelo seu estilo, elegeu, ora alterando a

figura em fundo, ora modificando o fundo em figura, de tal maneira que

o texto apresente significações e expresse o que o autor quis dizer. Há,

por essa razão, uma conivência implícita entre o escritor e o leitor: pelo

estilo, o escritor se expressa, e, por abarcar tal estilo, o leitor obtém do

texto não palavras esparsas e ocas, porém frases completas, com sentido,

que são, não um aglomerado de signos, mas a marca do autor no texto

(CALDIN, 2009, p. 105-106).

Ainda no entendimento de Caldin (2009, p. 106): Pode-se dizer, então, que o autor faz um apelo ao

leitor valendo-se da sintaxe da língua e do seu

estilo de linguagem para propiciar, a este último, a

expressão. Como Merleau-Ponty (ao contrário de

Sartre) assevera não haver uma linguagem pura,

os signos são arbitrários, e, assim, na operação

expressiva da leitura os signos transmudam-se em

significados na medida em que autor e leitor

permitem o descentramento e, dessa forma, se

comunicam, de tal sorte que a leitura adquire um

caráter de universalidade expressiva [...]. Portanto,

na posição de co-autor do texto, o leitor interage

com o autor quando, atendendo ao chamamento

deste último, fornece contribuição ao texto, isto é,

põe sua subjetividade a serviço do que uma

palavra pode dar a entender.

No que se refere à leitura, é admissível cogitar que cada um

retoma o ato particular do outro. Do ponto de vista de Merleau-Ponty

(2006, p. 243), as palavras de um texto complexo suscitam em nós

pensamentos que antes nos pertenciam, contudo, algumas vezes, esses

significados se conectam em um pensamento inédito que recompõe as

palavras a todos, e somos conduzidos para o cerne do livro, localizando,

consequentemente, a sua fonte. Entre as ações de uma pessoa e as de

seus pares, cria-se um campo comum, mas não de identidade. Tal

domínio é tão exclusivamente o desimpedimento temporal das ações

pretéritas e das ações remotas, porém, de maneira alguma, a

coincidência deles está em torno de um único sentido.

Ainda no palco das ideias já apresentadas, para Gilles Deleuze

(1992), procuramos, na literatura, uma maneira singular de estilhaçar os

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códigos da língua. A escrita como suplantação da linguagem remete aos

fluxos que rebatem no esquema do sentido: o livro conta uma história

produzida no plano de organização, mas a história rebate no plano de

consistência. A ida e a vinda entre os planos produz sentido. Merleau-

Ponty (2002, p. 34-35) possui um entendimento semelhante da produção

literária. Comentando a obra “O Vermelho e o Negro”, de Stendhal

(2003), fala que a expressão contida no livro subverte as regras de

composição. Escritor e leitor são transportados para um universo de

significações novas. Há, na leitura que o filósofo faz de Stendhal, um

microcosmo da sua concepção de linguagem e de sentido.

Essa obra conta a história de Julien Sorel, um jovem astuto, de

origem humilde, à procura de promoção social. Vermelho pode denotar

a paixão pelas mulheres ricas ou o meio de ascensão social. Negro, pode

representar o entusiasmo por Napoleão, símbolo da promoção, por meio

da carreira militar. Na mesma derivação metonímica, vermelho é ainda a

cor do sangue vertido nas guerras, e o negro, a cor da batina dos padres,

da igreja à qual Julien recorre na busca por elevação social (BASTOS,

2010, p. 95). Há, no personagem, essas forças que se travam durante o

romance: poder e paixão, guerra e igreja, sangue e batina, pulsão de

morte e pulsão de vida. São múltiplas séries que rebatem a história e

produzem sentido literário.

Merleau-Ponty (2002, p. 117) lembra que a morte pulsa durante o

romance, cujo apogeu é seu desenlace sangrento. Uma pulsão que não

está em parte alguma nas palavras, mas sim nos intervalos entre as

palavras, isto é, nos espaços entre as significações. Não há propriamente

uma alusão à morte ou à destruição. O sentido dessa pulsão de morte é

notado durante o romance sem que apareçam objetos devidamente

significantes dessas forças.

Como já visto, inicia-se, de forma lenta, a ler o romance,

colaborando com alguns pensamentos. De repente, as palavras acordam

o leitor e seus pensamentos cintilam. Ele é arremetido na narrativa e o

livro deixar de ser a ele indiferente. É como um artifício: primeiro, há

um encontro entre os signos que o autor usa e aqueles que fazem parte

do seu mundo (BASTOS, 2010, p. 95-96). Assim, o leitor é levado a

acreditar que está no mesmo universo, e o livro se aloja em seu mundo;

mas, em seguida, o livro passa a repelir os signos de seu sentido

ordinário, arrastando-o para um turbilhão de sentidos desconhecidos.

Por exemplo: quando Stendhal diz que o fiscal Rossi é um canalha,

sabemos o que isso quer significar, entendemos o que é um canalha.

Mas quando o fiscal Rossi começa a viver, quando a canalhice do fiscal

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toma bojo em seu personagem, não é mais ele quem é um canalha, é o

canalha que é um fiscal Rossi (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 34-35).

Nesse instante, abre-se um campo de inferências que não se

controla: a canalhice e o fiscal Rossi podem infiltrar no leitor

significações intrigantes. Ele foi fisgado pelo sentido literário: tudo isso

se iniciou pela cumplicidade entre fala e seu eco ou, para usar o termo

enérgico que Husserl aplica à percepção de outrem, pelo acasalamento

da linguagem. Em retrospectiva, tudo se passa como se não tivesse

havido linguagem entre o leitor e Stendhal, como se nossos sistemas de

pensamento fossem idênticos (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 35).

Cede-se ao escritor, então, com moderação, algum crédito pela

criação desse mundo, mas o leitor também se crê senhor da obra. Isso

porque o escritor soube instalar o leitor dentro dele, fazendo que ele crie

e seja Stendhal ao lê-lo. O leitor se pensa no comando da narrativa,

acredita que seus pensamentos são autônomos em relação à prosa. Mas

um e outro se fundem na máquina infernal que é um livro, esse aparelho

de criar significações.

Diz Merleau-Ponty (2002, p. 34-35): A linguagem falada é aquela que o leitor trazia

consigo, é a massa das relações de signos

estabelecidos com significações disponíveis, sem

a qual, com efeito, ele não teria podido começar a

ler, que constitui a língua e o conjunto dos escritos

dessa língua, e é também a obra de Stendhal, uma

vez que seja compreendida e se acrescente à

herança da cultura. Mas a linguagem falante é a

interpretação que o livro dirige ao leitor

desprevenido, é aquela operação pela qual um

certo arranjo dos signos e das significações já

disponíveis passa a alterar e depois transfigurar

cada um deles, até finalmente secretar uma

significação nova, estabelecendo no espírito do

leitor, como um instrumento doravante disponível,

a linguagem de Stendhal.62

62 Na versão original: Le langage parlé, c'est celui que le lecteur apportait avec lui, c'est

la masse des rapports de signes établis à significations disponibles, sans laquelle, en

effet, il n'aurait pas pu commencer de lire, qui constitue la langue et l'ensemble des écrits

de cette langue, c'est donc aussi l'oeuvre de Stendhal une fois qu'elle aura été comprise et

viendra s'ajouter à l'héritage de la culture. Mais le langage parlant, c'est l'interpellation

que le livre adresse au lecteur non prévenu, c'est cette opération par laquelle un certain

arrangement des signes et des significations déjà disponibles en vient à altérer, puis à

transfigurer chacun d'eux et finalement à sécréter une signification neuve, à établir dans

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Merleau-Ponty retoma uma vez mais aqui o nexo da duração para

explanar esse sentido literário. Da mesma maneira que o movimento do

cinema se faz entre imagens imóveis, o movimento da literatura se faz

por vazios brancos apenas indicados vagamente. O sentido literário se

prolonga sobre o leitor, conferindo-lhe um corpo imaginário mais vivo

que seu próprio corpo. Vivemos como numa segunda vida as viagens de

Julien, somos ritmados pelas paixões visíveis e invisíveis que o romance

aprimora. Estabelece-se entre leitor e Stendhal uma linguagem de

iniciados: o que se tem a dizer, supõe-se conhecido. O escritor instala o

leitor dentro do personagem, que responde à convocação e se agrupa

com ele no centro desse mundo imaginário (BASTOS, 2010, p. 96-97).

Essa incorporação de mundos entre leitor e romance fica evidente

quando pensamos que o conteúdo da obra literária não é

representacional, mas expressivo. Também aí o sentido é latente e

implícito. Stendhal nos diz que Julien Sorel, ao saber que foi traído pela

Senhora de Renal, vai a Verrières para matá-la; mas em parte alguma

está descrito o silêncio de Julien após a notícia, sua viagem onírica

dentro de pensamentos sem certeza, sua resolução e tristeza. Não há

necessidade de “Julien pensava” ou “Julien queria”, conclui Merleau-

Ponty (2002, p. 35).

Stendhal não representa, mas exprime essa gama de sentimentos

insinuados pela velocidade da viagem, pelos objetos e pelos obstáculos;

ele opta por descrever os meios e os acasos. A velocidade da viagem

está implícita em uma narrativa condensada em uma única página, ao

invés de cinco, e a grandeza dos elementos omitidos é proporcional às

coisas ditas, nem que o sejam efetivamente. O sentido perambula entre o

visível e o invisível, entre o que há para ser dito e o que há para ser

calado (MERLEAU-PONTY, 2004, p.110).

Dessa maneira, a produção do sentido vincular-se-ia como já

notado, mais ao estilo do que à mecânica dos signos. O romance, que é

um operador de estilos, desnuda realidades insuspeitas. É precisamente

isso que Marx teria visto em Balzac: uma maneira de mostrar o mundo

do dinheiro e os conflitos da sociedade moderna que compreendia e

ultrapassava as teses econômicas, políticas e sociais, não obstante o que

Balzac pudesse pensar a respeito delas. O romance ofereceria uma visão

l'esprit du lecteur, comme un instrument désormais disponible, le langage de Stendhal

(MERLEAU-PONTY, 1969, p. 20).

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que, uma vez adquirida, traria suas consequências com ou sem o

consentimento do autor (MERLEAU-PONTY, 2004, p.111).

Sobre esse aspecto, discorre Merleau-Ponty (2004, p. 122): O sentido do romance de início só é perceptível,

também ele, como uma deformação coerente

imposta ao visível. E será sempre assim. Decerto a

crítica poderá confrontar o modo de expressão de

um romancista com o de outro, fazer determinado

tipo de narrativa entrar numa família de outras

possíveis. Tal trabalho só será legítimo se for

precedido de uma percepção do romance, em que

as particularidades da técnica se confundem com

as do projeto global e do sentido, e se for

destinado simplesmente a explicar a nós mesmos

o que havíamos percebido.63

Podemos dizer que a teoria do romance de Merleau-Ponty se

encontra com a teoria do sentido de Deleuze. O romance como obra de

arte, para ambos os autores, é uma narrativa que vincula as

circunstâncias ao invisível ou, como teoriza Deleuze, a efetuação à

contraefetuação, a ação pessoal à impessoal, o plano de organização ao

de consistência. O acontecimento contraefetua os personagens do

romance na mesma medida em que inconscientemente vivemos o

mundo do personagem. Um mundo imparcial em relação às descrições,

imparcial porque sempre acontece de diferentes maneiras, de acordo

com diferentes leitores.

Finalmente, Merleau-Ponty (2009a) formula sua filosofia a partir

daquilo que Husserl chamava de presente vivo da fala, uma língua que

integra o que foi dito antes de mim ao mundo da minha língua. Sua

reflexão sobre a linguagem se choca com o pressuposto da virada

linguística, a ideia de que a filosofia pode ser conduzida por uma análise

da linguagem. Isso só seria possível se a linguagem contivesse em si

mesma sua evidência. A fenomenologia do filósofo francês, pelo

contrário, entende a linguagem como instrumento de concepção do

63 Na versão original: Le sens du roman n'est d'abord perceptible, lui aussi, que comme

une déformation cohérente imposée au visible. Et il ne le sera jamais qu'ainsi. La cri-

tique pourra bien confronter le mode d'expression d'un romancier avec celui d'un autre,

faire rentrer tel type de récit dans une famille d'autres possibles. Ce travail n'est légitime

que s'il est précédé par une perception du roman, où les particulari-tés de la « technique

» se confondent avec celles du projet d'ensemble et du sens, et s'il est destiné seulement à

nous expliquer à nous-mêmes ce que nous avons perçu (MERLEAU-PONTY, 1960, p.

97-98).

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mundo cuja função não se esgota na mecânica dos signos, na análise

possível de significados e de léxicos.

Sua fenomenologia da linguagem oferece um conceito de sentido

original e descolado do entendimento linguístico. Sentido e significado

não estariam ligados às relações linguísticas, seriam antes imanentes a

todos os modos de vivência (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 37). Nisso

sua teoria fenomenológica se reencontra com o conceito husserliano de

intencionalidade, pois a linguagem seria permeada pela experiência do

vivido atual e comum. Ainda que Merleau-Ponty negue a consciência

doadora de sentido formulada por Husserl, sua fenomenologia adere a

uma intencionalidade constitutiva de sentido. É um sentido que se move

entre o horizonte de percepções possíveis e o campo aberto de

interpretações textuais.

Merleau-Ponty também recorre à linguística de Saussure. Este

linguista, em sua obra “Curso de Linguística Geral” (1973), teria

apontado que os signos, um a um, nada significam, apenas apontam os

desvios de sentido entre si mesmo e os outros. A intuição de Saussure

seria prontamente percebida pela criança que apreende essa malha de

signos e de sentidos. Assim, com as iniciais oposições fonêmicas, a

criança principia-se no elo lateral do signo com o signo como alicerce de

uma afinidade última do signo com o sentido. É a língua inteira como

estilo de expressão, como forma única de utilizar-se da palavra, que é

antecipada pela criança como as elementares oposições fonêmicas

(MERLEAU-PONTY, 2004, p. 68-69).

O sistema da língua aludido por Saussure fez Merleau-Ponty

pensar a linguagem em termos de um domínio cujos portões só se abrem

do interior. Domínio no qual o signo se arranja e se organiza consigo

mesmo, de cujas bordas se reclama o sentido. Todavia seus comentários

sobre Saussure desdenham o abismo que separa sua fenomenologia das

ciências da linguagem: a filosofia da linguagem já não se opõe à

linguística empírica; pelo contrário, ela é a redescoberta do sujeito

falante em exercício, em contraposição a uma ciência da linguagem que

o trata inevitavelmente como uma coisa (MERLEAU-PONTY, 1991, p.

111-112).

De certa forma, o filósofo francês quer ampliar a abordagem

linguística ao fenômeno do sentido, operação que extrapola o registro

visível de signos em direção ao regime invisível do sentido. Mas a

operação dilata as bases epistemológicas da linguística, pois estabelece

entre linguagem e sentido uma relação autônoma não condicionada, pois

a linguagem não está a serviço do sentido e não conduz o sentido. Não

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há subordinação entre ela e ele. Aqui ninguém manda e ninguém

obedece (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 118).

Na explicação de Bastos (2010, p. 98-99): Por conseguinte, Merleau-Ponty entende por

significação um pensamento desprovido de

linguagem que orienta o indivíduo rumo ao

exprimido; e por signo, um invólucro inanimado,

uma manifestação exterior ao pensamento

especificamente próxima da significação [...]. Não

haveria um sistema abstrato da língua para o qual

nos remetemos como sujeitos da língua, mas uma

linguagem atuante que se dobra entre os sujeitos.

Só aprenderíamos a linguagem por dentro, pela

experiência da língua em nós que é sua expressão

criadora. Isto é, por meio do corpo senciente,

variação conceitual que compreende a

intencionalidade fenomenológica.

Estendendo a intencionalidade para o âmbito motor, afetivo e

orgânico, Merleau-Ponty (1991, p. 94) pensa a constituição de sentido

substituindo o “eu penso” cartesiano por um “eu posso” embrionário.

Sua intencionalidade fundada no corpo permite unificar as acepções de

sentido interior e exterior, debate que Husserl não havia resolvido. Isso

porque ela estabelece um contínuo entre a organização física da

percepção e a interpretação simbólica dos textos da cultura.

Haveria uma adjacência entre percepção corpórea e circulação

sígnica, aliança que transforma a intencionalidade em uma intuição

total. Assim, a intencionalidade adota tanto o sentido sensível como o

sentido proposicional, operação que acaba por extenuar os limites

conceituais entre sentido e significado. Essa ação corporal transita de

um sentido corporal para um significado linguístico, e o conceito mesmo

de sentido deixa de ter uma substância teórica própria.

3.3 LIBERDADE E TEMPORALIDADE

A partir de algumas análises de Merleau-Ponty sobre as artes

visuais e literária, podemos chegar a conclusão de que o cinema é uma forma de arte narrativa que potencializa não somente as relações entre o

ser e o mundo, entre criador e criação, leitor e espectador, como também

produz algumas implicações nesse ser inserido no mundo. Uma das

relevantes implicações diz respeito à temporalidade, que brevemente

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expusemos anteriormente e que agora iremos aprofundar um pouco

mais, e a seu corolário, que é noção de liberdade, em múltiplos sentidos.

O tema da temporalidade percorre todas as análises de Merleau-

Ponty, sugerindo um ser ao mesmo tempo engajado e livre, ativo e

passivo em seu diálogo constante com um mundo ele próprio

concomitantemente subjetivo e objetivo, incumbindo ao tempo

responder por um logos e uma unidade mais originários, que se

ajustassem não na separação substancial entre homem e mundo, porém

em sua fusão, na estrutura híbrida que a temporalidade revela. Diz o

filósofo francês que é através do tempo que se pensa o ser, já que é pelas

afinidades entre o tempo sujeito e o tempo objeto que, compreendemos

as relações entre o sujeito e o mundo (MERLEAU-PONTY, 2006, p.

577).

No dizer de Moura (2006, p. 131): [...] a temporalidade constitui o lugar privilegiado

para a compreensão e realização de um ser que

não mantém as dualidades clássicas, sobretudo

aquela que afirma a oposição ontológica entre o

subjetivo e o objetivo. Ela permite conceber uma

relação de ser entre homem e mundo, que se

realiza como tensão entre abertura e situação,

constituição recíproca de um pelo outro. É dessa

relação que tratará um dos eixos das descrições de

Merleau-Ponty que será retomado agora: a

questão do sentido, do logos, portanto, pois sua

compreensão como objeto inteiramente

determinado posto por uma atividade doadora de

significação [...], é um dos pressupostos que

permite afirmar a dicotomia entre homem e

mundo e a decorrente relação epistemológica

entre eles como posse e constituição, fazendo do

sujeito uma atividade sintética que opera sobre

uma matéria informe, responsável por conferir-lhe

uma unidade que lhe é totalmente externa.

É exatamente por essa fusão que o sujeito é exposto como não

sendo nem um legítimo constituinte, porque ele pressupõe o mundo,

nem um autêntico constituído, pois ele é na mesma medida pressuposto

por esse mundo, incumbindo ao tempo dar acesso à estrutura concreta de

uma subjetividade cujo sentido se encontra na dialógica interna à própria

temporalidade entre o constituinte e o constituído. Trata-se de

compreender que o homem não é nem inteiramente passivo (um ser

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determinado), nem inteiramente ativo (um nada absoluto), mas o ponto

de imbricação e de partilha dessas duas dimensões, tornado possível

pela própria temporalidade, estrutura híbrida a que o sujeito se refere por

uma necessidade interna, uma vez que é por ela que se realiza essa ponte

entre liberdade e situação (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 549).

O tempo não é nem um evento objetivo constatado, nem uma

ideia engendrada por um sujeito. Ele não pode ser um puro objeto

porque a completude do mundo objetivo o torna incapaz de trazer a

dinâmica própria à temporalidade. Enquanto ser absoluto, conjunto sem

qualquer negatividade ou fissura, o mundo objetivo recusa a diferença e

a abertura imprescindíveis à temporalidade, rejeitando o não ser que lhe

é próprio. Nas palavras de Merleau-Ponty (2006, p. 552): “O passado e

o porvir existem em demasia no mundo, eles existem no presente, e

aquilo que falta ao próprio ser para ser temporal é o não ser do alhures,

do outrora e do amanhã”.64

Na explicação de Moura (2006, p. 132): A temporalidade não é um processo real porque

ela implica também uma dimensão negativa, de

abertura e transcendência, um mundo e um sujeito

que não repousem em si. Entretanto, ela também

não é um processo ideal, o produto de uma

consciência constituinte que depositaria diante de

si todos os momentos temporais, pois também

aqui desapareceria a transcendência e a diferença

necessárias à temporalidade. Em ambos os casos –

o idealismo e o realismo – perde-se precisamente

a compreensão do ser “em trânsito”, em passagem

e em mudança, pois a positividade dos momentos

temporais exclui tanto sua diferenciação quanto

sua ligação interna, a dupla dimensão que

responde pela “contradição” da dinâmica

temporal.

É um ponto ontológico que dirige a descrição de Merleau-Ponty

(2006, p. 551-552), pois sua crítica refere-se ao fato de que, em ambos

os casos, a temporalidade torna-se impossível, porque se mantém o dano

do ser pleno, inteiramente determinado, que, pela falta do negativo, não

pode tolerar a deiscência temporal e sua unidade em curso. O isolamento

entre um mundo objetivo – puro ser – e as expectativas subjetivas que

64 Na versão original: Le passé et l'avenir n'existent que trop dans le monde, ils existent

au présent, et ce qui manque à l'être lui-même pour être temporel, c'est le non-être de

l'ailleurs, de l'autrefois et du demain (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 471).

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versam sobre ele – puro nada – assegura uma positividade incapaz de

manter a abertura e a síntese temporais, de maneira que a temporalidade

provoca uma imbricação entre o ser e o nada, entre o para si e o em si, já

que nem o puro ser, nem o puro nada podem responder pela diferença

interna e unitária, atributo do tempo, sendo na relação entre eles, que

essa diferença pode ter lugar.

Nem objetivo, nem subjetivo, o tempo se faz no espaço entre eles,

de maneira que nenhuma das dimensões pode conservar-se pura ou

fechada sobre si, determinando que o originário seja não a dualidade,

senão a abertura e a relação. A dimensão subjetiva não é um puro não

ser, não é a atividade posicional do passado e do futuro, nem a alteração

deles em dimensões reais da consciência, porque isso expressaria, no

limite, repô-los no ser, torná-los presentes, extinguindo novamente a

própria ideia de temporalidade; ela constitui apenas a sincronização

graças à qual a natureza inerente ao passado e ao porvir pode realizar-se

(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 552).

A subjetividade não é posicional, porque ela não gera um objeto

ou um ser determinado; antes, ela é fissura no ser e para o ser,

“cavidade” que impede o mundo de assentar-se em si, mas que nem por

isso o organiza ou esgota pois, por essa mesma lacuna, ela mesma se

distancia de si, difundindo-se em um mundo cuja lógica espontânea

afirma e ratifica sua posição finita, mas jamais institui ou recusa. O

negativo aqui é precisamente o que evita que o tempo seja objeto para

uma consciência, ser integral livre de toda indeterminação, puro

constituído correspondente a um sujeito constituinte. No entender de

Merleau-Ponty (2006, p. 556), somente existe tempo se ele não está

completamente estendido, se passado, presente e futuro não continuam na mesma significação. É essencial ao tempo fazer-se e não ser, nunca

estar completamente constituído.

Do ponto de vista de Moura (2006, p. 133-134): O trânsito e a passagem implicam uma

compreensão do ser em que o nada não seja aquilo

que lhe é contrário, e sim uma dimensão

estruturante, porque demandam uma abertura e

uma indeterminação intrínsecas sem as quais ele

jamais poderia deixar de ser, transformar-se, vir a

ser abrindo-se ao que lhe é outro, ou seja, sem as

quais não haveria sequer temporalidade, apenas a

plenitude sem diferença de um ser absoluto posto

por um nada constituinte. É dessa imbricação

entre o ser e o nada que tratará a noção de síntese

passiva, formulando uma existência que é ao

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mesmo tempo “ser em” e “potência de niilizar”. A

principal questão é mostrar justamente que se o

tempo não se realiza sem uma subjetividade, um

“campo de presença”, isso não significa, e mesmo

exclui, a ideia de uma pura atividade constituinte,

indicando uma compreensão da presença (a si e ao

mundo) que não implica posse ou identidade, mas

coexistência e co-participação entre os termos.

No domínio de presença, o sujeito distingue a passagem

irrefletida de uma dimensão à outra; nele, essas dimensões se

apresentam “em pessoa”, todavia isso não significa que elas sejam

postas, oferecendo-se, ao contrário, como uma espécie de adjacência,

dimensão que continua e pesa sobre o sujeito, como um aspecto não

totalmente determinável ou atual, mas que conta para ele e o abrange.

Reafirmando a negatividade estrutural do tempo, essa presença é a de

um passado que está ainda aqui, de um futuro que está também ali e, no

limite, do próprio presente, que ainda não é posto, ou seja, ele é uma

presença perpetrada de horizontes e de fissura, que só se apresenta por

meio da transição irrefletida do ser ao não ser (MERLEAU-PONTY,

2006, p. 558).

Dessa maneira, não existe, no domínio de presença, uma

percepção explícita, e sim uma sorte de distensão, de horizontes

indefinidos que se esquivam do sujeito e o modulam, dimensão à qual

ele está, de propósito, ligado. Intencionalidade, portanto, não no sentido

de uma atividade constituinte, mas, ao contrário, como aquilo mesmo

que afasta o presente do apresentado, negatividade e estrutura

constitutivas do mundo, fazendo do presente transcendência e interstício

espontâneos, asseverando o não ser e os horizontes que apartam a

consciência de si e a fazem ser no mundo.

É por essa razão que a presença a si é presença ao mundo, porque

o presente não se dá sem abertura e horizontes, a abertura de um a outro

é a própria composição temporal, e não existe presença sem

“despresentação”: o deslizamento que uma subjetividade constituinte é

incapaz de gerar é aquilo mesmo que a lógica impensada do mundo

alcança, garantindo a transição que, se não se corta do tempo vivido, ao

menos o evita de ser absolutamente presente e desdobrado, objeto para

uma consciência (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 568).

O que garante a coesão do tempo não é uma intervenção de

identificação, pois ele não é uma pluralidade de períodos extrínsecos,

mas um só fenômeno de saída, que se assegura e conserva por sua

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própria dissolução. A intencionalidade espontânea, a abertura direta e

natural de cada instante e de cada horizonte aos demais faz que o tempo

afirme, ele próprio seu prosseguimento, porque cada um de seus

momentos não é senão certa maneira de abreviar e de reter os demais: o

presente já é o caminho de um futuro ao presente e deste ao passado, em

um singular movimento que age, diferenciando-se de si mesmo

(MOURA, 2006, p. 135).

Logo, cada instante não é uma positividade controlada, um ser

determinado que faria que o tempo fosse total, que sua unidade não é

aquela baseada na oposição entre o um e o múltiplo, o objeto e a

consciência que lhe dá sentido, uma vez que aqui a referência que liga o

diverso é estrutura intrínseca a esse diverso, é a própria qualidade

ontológica de um fluxo que se afiança como abertura interna, não ser

constitutivo que o faz passagem e dissolução contínua, configurando a

“unidade primordial e natural” de uma composição feita pela afinidade

originária entre o ser e o nada. O tempo é a passagem oferecida a tudo

aquilo que haverá de ser com a finalidade de não ser mais. Ele não é

outra coisa senão a evasão geral para fora do si, a lei única desses

movimentos centrífugos (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 562).

O tempo é o ser ou a unidade que se assegura e sustenta

precisamente como abertura e transcendência, negatividade intrínseca:

os momentos conservam-se porque eles não são senão o seu próprio

passar, de maneira que sua deiscência não é uma pura negação, porém a

realização mesma de seu ser, fundamento que nada pode recusar, e se o

tempo não é um puro ser, ele também não é um puro nada.

Nas palavras de Merleau-Ponty (2006, p. 563): Dessa forma, quando esta se realiza e o impele

para o passado, ela não o priva bruscamente de

ser, e sua desintegração é para sempre o avesso ou

a consequência de sua maturação. Em suma, como

no tempo ser e passar são sinônimos, tornando-se

passado o acontecimento não deixa de ser. [...]. O

tempo conserva aquilo que faz ser no próprio

momento em que o expulsa do ser, porque o novo

ser era anunciado pelo precedente como devendo

ser e porque para este era a mesma coisa tornar-se

presente e ser destinado a passar.65

65 Na versão original: De sorte que, quand celle-ci se réalise et le pousse au passé, elle ne

le prive pas brusquement de l'être et que sa désintégration est pour toujours l'envers ou

laconséquence de sa maturation. En un mot, puisque dans le temps être et passer sont

synonymesm en devenant passé, l'événement ne cesse pas d'être. Le temps maintient ce

qu'il a fait être, au moment même où il le chasse de l'être, parce que le nouvel être était

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Se existe distinção interna, há sempre um investimento, um

delineamento geral e uma direção privilegiada, um ser estabelecido de

uma vez por todas que une o homem e o impede de ser uma simples

liberdade desengajada e imotivada, que colocaria sua situação ao invés

de responder-lhe. Se a temporalidade oferece-nos outra medida do ser, é

justamente por realizar essa relação em que o ser e o nada não se

contrapõem, em que o vir a ser e o deixar de ser são dois momentos

estruturais de um singular ser que se afirma e se conserva exatamente

enquanto passagem.

O ser temporal é o ser cujo significado é o de deixar de ser sem

tornar-se coisa alguma, cooptando por sua própria “fluxão”, não estando

fechado em si, porém transcendendo-se em direção a esses horizontes,

cada presente traceja naturalmente uma integração e uma estabilidade:

há um só tempo que se aceita a si mesmo, que não pode trazer nada à

existência sem já tê-lo repousado como presente e como passado por vir,

e que se estabelece por um só movimento. Aquisição e abertura, o tempo

é movimento simultâneo de dissolução e de fundação, ou antes, ele é o

movimento que torna um e outro mutuamente constitutivos: é por uma

fissura que o ser se mantém e é pelo ser que o nada se realiza. Afirmará

Merleau-Ponty (2006, p. 606) que, se é pela subjetividade que nenhuma

coisa aparece no mundo, podemos notar ainda que é pelo mundo que

essa nenhuma coisa vem ao ser.

Segundo a análise de Moura (2006, p. 137): É por isso que o Cogito não é, e mesmo exclui, a

imanência do sujeito, pois a subjetividade só se

realiza através de sua transcendência e de seu ser

no mundo. Se o presente é, como afirma Merleau-

Ponty, a principal dimensão do tempo, justamente

porque nele o ser e a consciência coincidem, resta

que isso não significa uma posse objetiva de si e

do mundo, uma reposição da imanência como

fundamento primeiro da experiência: o presente

não é puro, não é um objeto posto, pois a presença

a que ele dá acesso envolve sempre a abertura a

horizontes que, não apenas não dependem do eu,

como o fazem transcender e envolver-se em uma

situação da qual não é o autor, fazendo da

presença a si necessariamente presença ao mundo.

annoncé par le précédent comme devant être et que c'était la même chose pour celui-ci

de devenir présent et d'être destiné à passer (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 480).

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A subjetividade afirma o não ser da experiência, rompendo a

plenitude do ser em si, projetando uma perspectiva finita, uma gestalt e

uma composição, que permitem o movimento de deiscência temporal.

Contudo não se trata de uma posição, mas somente da consideração e da

concreção de uma intencionalidade e de um acesso que se fazem

diretamente pela estrutura de cada momento: o tempo sugere um sujeito

porque é necessária alguma pessoa para que a abertura e a lógica de

horizontes possam concretizar-se.

A união ou a constância que replica pela subjetividade não é,

assim, nem uma dimensão extrínseca ao fluxo e nem um ato posicional,

mas é a implicação mesma existente na relação intrínseca à

multiplicidade dos instantes temporais. Longe de ser identidade ou

imanência, o sujeito é justamente a deiscência que não se assegura senão

em suas realizações ou aparições concretas, em que se caracteriza e se

afasta de si mesmo.

A temporalidade é exatamente essa espécie de dialógica entre o

constituinte e o constituído: o tempo enquanto precipitação geral é

intrínseco às suas realizações palpáveis e singulares e, por aqui, começa-

se a especificar a maneira pela qual a temporalidade garante,

concomitantemente, a passividade e a atividade humanas.

No dizer do filósofo francês: É aqui que a temporalidade ilumina a

subjetividade. Nunca compreenderemos como um

sujeito pensante ou constituinte pode pôr-se ou

perceber-se a si mesmo no tempo [...]. Mas, se o

sujeito é temporalidade, então a autoposição deixa

de ser uma contradição, porque ela exprime a

essência do tempo vivo. O tempo é ‘afecção de si

por si’: aquele que afeta é o tempo enquanto

ímpeto e passagem para um porvir, aquele que é

afetado é o tempo enquanto série desenvolvida

dos presentes; o afetante e o afetado são um e o

mesmo, porque o ímpeto do tempo é apenas a

transição de um presente a um presente66

(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 270-271).

66 Na versão original: C'est ici que la temporalité éclaire la subjectivité. Nous ne

comprendrons jamais commet un sujet pensant ou constituant peut se poser ou

s'apercevoir lui-même dans le temps. [...] Mais si le sujet est temporalité, alors

l'autoposition cesse d'être une contradiction, parce qu'elle exprime exactement l'essence

du temps vivant. Le temps est 'affection de soi para soi': celui qui affecte est le temps

comme poussée et passage vers un avenir; celui qui est affecté est le temps comme série

développée des présents; l'affectant et l'affecté ne font qu'un, parce que la poussée du

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É desse modo que a temporalidade sustém a tensão de uma

subjetividade ao mesmo tempo subordinada e indeclinável: a

precipitação indivisa que se alcança como projeção na multiplicidade e

da multiplicidade funda, ao mesmo tempo, uma presença a si e uma

presença ao mundo, uma atividade e uma inclusão em uma síntese cujo

processo se dá fluentemente. É isso que indicava a noção de síntese

passiva, ao ensinar que o tempo instaura concomitantemente nossa

abertura ao mundo e, por ela mesma, nossa abertura a nós mesmos e

nossa probabilidade de agir.

Abertura ao mundo e a si, o privilégio, já apontado, do presente

na temporalidade transcorre justamente de ser ele essa extensão em que

o ser e a transcendência se cruzam, garantindo concomitantemente o

peso de um passado, de um adquirido, e a força humana de abri-lo e

polarizá-lo ao porvir. Um tempo que não possuísse, por seu presente,

raízes no passado e uma aquisição, nem sequer seria tempo, pois

reforçaria uma espontaneidade independente, uma atividade

incondicional e, com elas, a eternidade de uma subjetividade sem

engajamento. Ao contrário, o presente certifica que toda transcendência

e toda abertura envolvam continuamente nosso acordo com o ser e com

sua lógica espontânea, impedindo que existam decisões puras e

imotivadas.

Segundo o ponto de vista de Moura (2006, p. 144): É por essa razão que a temporalidade ilumina a

compreensão da liberdade humana, pois ela nos

ensina uma imbricação ontológica entre a

transcendência e o engajamento que não pode

deixar intacta o sentido desses termos. Enquanto

temporalidade, a atividade humana deixa de ser

uma espontaneidade pura ou uma negação

absoluta sem vínculos com o ser e com o mundo,

para tornar-se uma espécie de deslizamento pelo

qual uma situação aberta é modulada e assumida,

realizando-se como o avesso constitutivo de nosso

engajamento, negatividade adquirida, que é

preservada pelo ser e o preserva na mesma

medida.

Como expõe Merleau-Ponty (2006, p. 584), é precisamente a

concepção do ser e do nada como definitivamente diversos e opostos o

pressuposto da reflexão que delimita a liberdade como um poder temps n'est rien d'autre que la transition d'un présent à un présent (MERLEAU-PONTY,

1945, p. 486-487).

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incomensurável de evasão, compreendendo-a como uma pura

negatividade ou transcendência, operação incondicional de significação

que nada deve ao dado ou ao ser. Partindo da dissensão integral entre o

ser e o nada, colocamos a alternativa de que ou a liberdade é total (uma

pura negatividade) e, portanto, nada pode atuar sobre ela (os motivos

são apenas símbolos de sua onipotência) ou não existe liberdade, porque

qualquer restrição, qualquer consideração de uma influência externa,

prontamente a coloca na região do ser e a recusa. Se há liberdade, é

necessário que ela seja total, só podendo ser balizada por aquilo que ela

própria gerou como limite, fazendo do que lhe é exterior não mais que

um produto de sua atividade constituinte, um ser constituído

definitivamente distinto dela própria (MOURA, 2006, p. 144).

Todavia, por isso mesmo, essa espécie de liberdade a inviabiliza,

porque, opondo homem e mundo como ontologicamente diferentes, ela

torna impraticável a abertura e a relação entre eles, sem as quais a

liberdade não pode vir a ser um acontecimento concreto, uma realidade

palpável que se concretiza como fazer e ação: entendida como puro não

ser, a liberdade não pode surgir no mundo, transformando-se em uma

abstração; a própria ideia de ação livre apaga-se, devido à carência de

um fundo em que ela possa manifestar-se, de uma distinção que ela

possa realizar e na qual possa se assegurar; ela se torna, enfim, uma

espécie de aquisição ou de natureza, negando-se, assim, como liberdade

(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 585).

Contrariamente, é exatamente na conexão entre o ser e o nada que

a temporalidade estabelece a liberdade, e é por isso que cabe a ela

replicar a probabilidade de uma ação livre e concreta que se faça no

mundo, porque é o tempo quem escora a liberdade, pois é ele quem a faz

ser no mundo, respondendo pelo contrassenso sempre reencontrado

entre inserção e abertura. Sob o ponto de vista temporal, cada ação

singular, cada instante individual não se compõe senão como abertura e

referência a um fluxo e a uma integração que não são gerados por ela,

que fluem facilmente de seu presente, fornecendo a consistência e a

espessura necessárias para que ela possa ser e fazer-se no mundo

(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 586).

Enquanto lugar de presença, o sujeito só se realiza através da

síntese espontânea do mundo, “sendo em” uma situação que o extrapola,

mas que, por isso mesmo, o abre para si e para horizontes que, não

sendo fornecidos, abarcam e solicitam sua ação. Ele não é, desse modo,

uma intencionalidade de ato que colocaria seu objeto, porém um tipo de

projeto ou de abertura existencial que “está” no termo que visa, que nele

se perde e se realiza. O tempo nos proporciona uma lógica e uma

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imbricação recíproca entre o constituinte, o ímpeto indiviso e o

estabelecido, suas revelações palpáveis em um mundo, segundo as quais

um não se realiza senão como certa expressão ou declaração do outro; o

ímpeto indiviso, a abertura ou a deiscência do presente ao porvir são a

própria realização da estrutura ontológica desse presente, enquanto ele

não é senão uma passagem ao porvir e certa dissolução do todo, de

modo que é na abertura intrínseca ao fluxo que se abriga a

transcendência, tornada expressão da transição espontânea e constitutiva

de um “ser em” a outro (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 598).

Esse fato acontece porque cada circunstância e cada presente não

são seres puros, mas abertura e transcendência, que a liberdade só pode

realizar-se “esposando” a lógica espontânea do mundo, adotando uma

situação que, exatamente porque a limita, abre-a ao porvir e ao possível.

Nosso engajamento ampara nossa potência, e não há liberdade sem

alguma potência. Longe da alternativa entre o ser e o nada, o que a

temporalidade manifesta é a relação constitutiva entre eles, o negativo

como estrutura inerente de um ser que se afiança como passagem e

dissolução, de modo que a apreensão da liberdade só pode fazer-se na

intersecção entre o “ser em” um mundo e a “potência de niilizar” que

nos é dada por esse próprio ser (MOURA, 2006, p. 146-147).

Na própria explanação de Merleau-Ponty (2006, p. 608): O que é então a liberdade? Nascer é ao mesmo

tempo nascer do mundo e nascer no mundo. O

mundo já está constituído, mas também não está

nunca completamente constituído. Sob o primeiro

aspecto, somos solicitados, sob o segundo somos

abertos a uma infinidade de possíveis. Mas esta

análise ainda é abstrata, pois existimos sob os dois

aspectos ao mesmo tempo.67

É a condição negativa do ser, sua composição ontológica híbrida,

que sustém a dupla dimensão da existência: o homem é passivo porque o

mundo se apresenta para ele como mensageiro de uma ecceidade

própria, síntese em curso que se assevera por sua própria dissolução,

pela abertura interna que a desdobra e a mantém; no entanto, por isso

mesmo, essa união não é um dado, seus horizontes não estão fundados,

sugerindo uma dimensão subjetiva para poderem se concretizar, de 67 Na versão original: Qu'est-ce donc que la liberté? Naître, c'est à la fois naître du

monde et naître au monde. Le monde est déjà constitué, mais aussi jamais complètement

constitué. Sous le premier rapport, nous sommes sollicetés, sous le second nous sommes

ouverts à une infinité de possibles. Mais cette analyse est encore abstraite, car nous

existons sous le deux rapports à la fois (MERLEAU- PONTY, 1945, p. 517).

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modo que, se o mundo requer e situa o sujeito, ele, no mesmo

movimento, abre-o e afirma sua liberdade. Enquanto não é um ser puro

ou determinado, o mundo pode ser, ao mesmo tempo, uma unificação e

uma abertura, uma síntese que se faz e uma latência que pede a atividade

que a retome. Ele próprio traz a contradição existencial à qual o sujeito

remete, organizando-se como um misto de passividade e atividade,

generalidade e singularidade (MOURA, 2006, p. 147).

Todavia essa apresentação original e geral do mundo, seu modo

óbvio que faz do próprio sujeito uma presença geral dada a si própria,

não se assegura como um puro fato que decidiria o comportamento e a

liberdade, e sim como a concreção espontânea entre um presente, um

passado e um porvir, como o primeiro delineamento de um fluxo e de

uma unidade temporais, aludindo, por isso mesmo, a uma dimensão

subjetiva: a generalidade do mundo, e correlativamente a do eu, se

ajusta na abertura originária de um ao outro, garantida por um tempo ele

próprio generalizado, encarregado de responder pela fusão entre homem

e mundo, mediação originária entre o para si e o em si (MERLEAU-

PONTY, 2006, p. 608).

Segundo Moura (2006, p. 148-149): Enquanto se afirma espontaneamente pela relação

natural do homem com o mundo, do corpo com

seu ambiente, o tempo assegura o solo de toda

unidade, ao mesmo tempo como dado e como

abertura: afirmando-se como dissolução, o tempo

“pré-pessoal” pode apenas esboçar um

envolvimento efetivo e uma subjetividade pessoal,

mas por isso mesmo, ele impede que estes

repousem em uma pura atividade constituinte,

oferecendo-se como fundo sempre presente [...].

Se não há liberdade absoluta é justamente porque

não há um puro nada que sustentaria um puro ser,

mas o envolvimento de um no outro sustentado

pela temporalidade, garantindo uma síntese e uma

unificação em curso, existência originária de algo,

unidade aberta que ao mesmo tempo situa e

implica a liberdade humana [...]. Assim, a

comunicação entre a generalidade e o singular não

pode repousar em um puro ato, pois isso reporia a

cisão entre situação e liberdade, alojando-se ao

contrário, na própria dinâmica temporal, enquanto

esta responde por um singular que não é senão

uma certa expressão da deiscência total, e,

reciprocamente, por essa deiscência que se unifica

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justamente enquanto passagem e transcendência

constitutiva de cada singularidade às demais.

O que a temporalidade instrui é a alusão espontânea e estrutural

de uma perspectiva às outras, de uma singularidade à unidade ou ao

sentido geral do fluxo, proporcionando-nos um movimento cujo

protótipo não encontramos em uma subjetividade autônoma, mas

exatamente no mundo, enquanto núcleo do tempo, que aparta o presente

do apresentado e, ao mesmo tempo, compõe-nos, isto é, enquanto

estrutura que faz do particular abertura ao geral, do “ser em” abertura ao

sentido e ao ímpeto único e, mutuamente, que faz desse ímpeto e desse

geral aberturas do “ser em” e do singular, graças às quais eles se

realizam e se mantêm (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 445).

Por esse viés, não é preciso escolher entre situação e liberdade,

pois, sob o aspecto temporal, uma se torna constitutiva da outra:

enquanto presente, o ser no mundo já é abertura e transcendência;

enquanto abertura, a liberdade já é uma circunstância e sua passagem à

outra; o ser já é certa asseveração da transcendência, e esta é uma certa

extensão do ser, de modo que um não se faz senão como declaração

implícita e realização indireta do outro. Afinal, se não existe liberdade

sem campo, distensão sem inserção, é porque o tempo atua em uma

intercessão estrutural entre o ser e o nada, entre a aquisição e a

espontaneidade.

É por essa razão que incumbe ao tempo, finalmente, tornar

compreensível a afinidade entre o exterior e o interior, entre a natureza e

a consciência, admitindo formular outra noção de sentido que não

acarrete a oposição entre o para si e o em si. Se o sentido, não pode ser o

objeto arquitetado por uma atividade centrífuga de significação, se o

corpo e a percepção nos mostram uma relação com o objeto que não

realiza atualmente sua síntese – uma abertura que o encontra em sua

ecceidade, afirmando a “presença do mundo” no interior do sujeito – e

se, enfim, a fenomenologia desponta agora um logos centrado em uma

união espontânea que ignora a cisão entre sujeito e objeto, é

precisamente porque o homem não é senão ek-stase e temporalidade

(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 575).

Enquanto união espontânea estruturada na própria multiplicidade,

a temporalidade atinge aquela referência natural da matéria à forma, da

existência ao sentido e, na fronteira, do homem ao mundo, atando cada

perspectiva finita à lógica espontânea dos horizontes que escoram toda

unificação e toda síntese. Se o sentido implica o sujeito, é justamente

enquanto esse não é senão “o alguém” que visa e apoia a abertura por

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meio da qual o fluxo se diferencia internamente e se assegura como

dissolução – isto é, exatamente enquanto abertura à abertura do mundo:

negatividade comum que impede os horizontes de repousarem em si,

afirmando o mundo como síntese em curso que depende e solicita uma

generalidade e uma atividade humanas, e o homem como fuga geral do

si, que se realiza tomando lugar na passagem espontânea de um

momento ao outro pelo qual a sua generalidade e a consistência do

mundo se realizam (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 576).

É, pois, aquela relação de ser que a temporalidade certifica,

estabelecendo um logos mais originário do que aquele fincado na

oposição entre o ser e o nada. Evitando o homem de “fingir ser um

nada” que se elege perpetuamente, e o mundo de ser um puro em si

totalmente determinado, a temporalidade traz para o núcleo da

existência a dialógica entre situação e liberdade, aquisição e abertura,

replicando a contradição sempre localizada no cerne das descrições do

filósofo. Enquanto ponto de intersecção dessas duas dimensões,

mediação entre o para si e o em si, ela ampara a imbricação que torna

homem e mundo ontologicamente coesos, ao mostrar um ser que só se

concretiza como abertura, e um nada que só se efetiva como estrutura

própria ao ser: é o tempo, enfim, o designado por responder pela

afinidade de ser entre homem e mundo (MERLEAU-PONTY, 2006, p.

577).

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4 CINEMA, SER E A NOVA PERSPECTIVA ONTOLÓGICA

Neste último capítulo, iremos analisar a ideia de que o corpo, o

filme, a imagem e o visível e o invisível, enquanto elementos da minha

carne e carne do mundo, mostram e são a dimensão ontológica do ser e

das coisas. A experiência do cinema constitui, portanto, abertura e

atração recíproca entre o vidente e o visível, o ser e o mundo, como

expresso na relação entre filósofo e cineasta, e em certa obra

cinematográfica contemporânea.

4.1 CARNE, MUNDO E VISIBILIDADE

Presente nas primeiras páginas da obra “O visível e o invisível”, o

termo “carne”, ou a expressão “a carne do mundo” indica uma nova

dimensão da análise fenomenológica feita por Merleau-Ponty. Podemos

considerar que a teoria ontológica desse livro aponta certa ruptura com

seus trabalhos anteriores. A questão se essa ontologia representa um

abandono da fenomenologia parece um ponto relevante.

Observamos que, ao expor como pretende desenvolver seu

enfoque ontológico, nesse seu livro, Merleau-Ponty (2009a, p. 155) diz

ser imprescindível abandonar expressões como “atos de consciência”,

“matéria”, “forma” e “percepção”. Para esta última, por exemplo, pode-

se utilizar “fé perceptiva”. As razões para tal rejeição residem no fato de

que a percepção supõe um corte da experiência em ações descontínuas,

um correspondente espacial e material, e parece eliminar um domínio do

invisível, isto é, na atividade perceptiva, o sujeito só se referiria ao

regime daquilo que é presente, sem nem mesmo reconhecer a existência

de extensões que se afastam da doação sensível. O emprego da

expressão “fé perceptiva” viria resolver esses problemas. A fé

perceptiva é uma espécie de doação em carne.

Entre os autores que acreditam que “O visível e o invisível” traça

uma mudança da fenomenologia para a ontologia, podemos destacar

Dillon (1997, p. 34-36), para quem Merleau-Ponty estabelece um ponto

máximo na ontologia ocidental, pois essa ontologia difere da ontologia

sustentada por Kant, Hegel, Husserl, Heidegger ou Sartre, ou seja, os

principais filósofos que influenciaram Merleau-Ponty, porque, em linhas

gerais, ele conseguiu elaborar o desenvolvimento do fenômeno da sua

esfera imanente e restaurar o transcendente.

Uma ideia que vamos sublinhar é a preocupação obsessiva de

Merleau-Ponty para superar a dicotomia cartesiana entre corpo e alma.

A natureza misteriosa do corpo não parece ser algo da natureza de uma

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substância medida e imperfeita (res extensa), tal como a alma não

parece ser uma substância pensante (res cogitans). O principal

argumento é que, se há duas substâncias separadas uma da outra,

necessitamos de alguma coisa que possa explicar a união de corpo e

alma para se ter um ser humano, um indivíduo.

A união do corpo e da alma implica uma unidade do ser, não uma

separação das duas substâncias, então consideramos, nessa perspectiva

ontológica, um fundamento para rejeitar a dicotomia da aparência e da

realidade. As coisas em torno de nós, o mundo no qual vivemos (o

mundo vivido) possui uma película pela que passamos os olhos quando

entramos em contato com a coisas. Mas todos sabem que não é apenas

uma aparência, e que, em cada coisa, há uma profundidade, uma

espessura que nossa percepção pode capturar.

Se, do ponto de vista epistemológico, a dicotomia cartesiana

conduz à separação entre o sujeito de conhecimento e o objeto de

conhecimento (uma dicotomia presente na filosofia moderna), do ponto

de vista fenomenológico, a distinção entre o fenômeno e a essência é

muito importante para o tema aqui proposto. Podemos acrescentar a

esses elementos teóricos e históricos a célebre dicotomia sartreana entre

o ser das coisas (o ser em si) e o ser de consciência (o ser para si).

Merleau-Ponty não aceita essa distinção, mostrando que o homem

está essencialmente no mundo. O homem não é um corpo unido com

uma alma, mas é uma verdadeira unidade. O homem não é uma junção

de duas substâncias; assim temos necessidade de uma explicação dessa

unidade do indivíduo. Em outras palavras, o corpo não é uma coisa (o

ser em si), como uma mesa ou uma caneta, mesmo que, às vezes, seja

verdade que ele é utilizado assim. Também a alma não é um simples ser

para si, mesmo que o mundo da consciência possa existir à parte de

alguma coisa, como é o caso da cultura, por exemplo.

De acordo com Merleau-Ponty (2009a, p. 18-19), o “ser em si” e

o “ser para si”podem ser superados pela noção do “ser-no-mundo” (être

au monde). O homem está essencialmente no mundo, em termos

ontológicos, epistemológicos ou fenomenológicos. Nosso acesso ao

mundo se faz exatamente do interior do mundo. Não podemos estar fora

do mundo, quando queremos conhecer o mundo, perceber o mundo e

falar do mundo. Esse acesso ao mundo, este “ser-no-mundo” é

exatamente a corporalidade.

Percebemos que, em “O visível e o invisível”, o problema da

corporeidade é aprofundado pela noção de carnalidade; mas a carne não

é a célebre matéria dos filósofos, a saber, corpúsculos do ser que se

ajuntam para formar todos os seres. A carne não é também algo psíquico

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que seria feito pelas coisas existentes, nem tampouco a matéria, nem a

mente; a carne é um tipo de elemento, no sentido usado pelos gregos,

quando eles se referiam à água, ao ar, à terra e ao fogo. Longe de ser a

substância do mundo, a carne é seu princípio, um elemento do ser

(MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 135-136).

Notamos que o ser é fundamentalmente carnal. Quando vemos,

tocamos, percebemos as coisas ao nosso redor, elas estão, ao mesmo

tempo, muito próximas de nós, por essa unidade de mundo vibrante,

distante pela espessura do nosso olhar. O olhar revela-nos as coisas, mas

também as esconde. A aproximação e o distanciamento entre o

observador e o observado mostram também uma espessura da carne, que

de fato é uma possibilidade de comunicação, e não um obstáculo

(MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 131-132).

Está claro porque o visível aparece como a qualidade impregnada

de uma textura, a área de uma profundidade, um corte sobre um único

ser, um grão ou uma partícula transportada por uma onda de ser. O

totalmente visível está sempre atrás de nós, ou entre os aspectos que

vemos; de modo que um acesso para o visível é feito de uma experiência

localizada fora. O corpo comanda, assim, o visível, mas não o ilumina,

se estamos considerando as duas partes (folhas) do nosso corpo: o corpo

sensível e o corpo sentiente, ou seja, o corpo objetivo e o corpo

fenomenal (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 133).

Se a carne é o princípio do mundo e se o ser carnal pode ser

percebido, pode ser sentido, parece, então, que, entre a carne e o visível,

existe uma relação de identidade. Notamos que a teoria merleaupontiana

é mais complexa: entre a carne, de um lado, e o visível e o invisível, de

outro, há um vínculo especial, nomeado de “entrelaçamento”, o

“quiasma”. Assim, não podemos dizer simplesmente que a carne é o

visível do mundo, mas a carne é um invólucro do visível sobre o corpo

vidente, um envelopamento do tangível sobre o corpo tangente.

Essas duas características do ser carnal podem ser vistas muito

claramente nesta imagem: como tangível, o corpo é uma coisa como

outra coisa, o corpo “descente” entre as coisas; em troca, como tangente,

o corpo é diferente das coisas (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 137-

138). O autor utiliza, nesse contexto, um termo biológico (ou, mais

precisamente, uma expressão da Botânica), que é a “deiscência”, ou

seja, a abertura espontânea de uma fruta quando ela atingiu a sua

maturidade. A carne, portanto, é a deiscência do vidente no visível e do

visível no vidente.

Segundo Merleau-Ponty (2009a, p. 141):

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[...] a carne de que falamos não é a matéria.

Consiste no enovelamento do visível sobre o

corpo vidente, do tangível sobre o corpo tangente,

atestado sobretudo quando o corpo se vê, se toca

vendo e tocando as coisas, de forma que,

simultaneamente, como tangível, desce entre elas,

como tangente, domina-as todas, extraindo de si

próprio essa relação, e mesmo essa dupla relação,

por deiscência ou fissão de sua massa.68

Essa a noção de carne tem por objetivo ultrapassar as barreiras

dos primeiros trabalhos no entendimento do ser, extrapolar os limites

que a noção de consciência ainda infligia à noção de corpo fenomenal,

ao colocar nele uma diferença intransponível com o corpo objetivo, que

a “Fenomenologia da percepção”, todavia, buscava suplantar. Em suma,

a carne é princípio de diferenciação sensível entre o dentro e o fora, de

um mesmo corpo ou de um corpo e outro: meu corpo (e o do outro) é

um tocante-tocado, vidente-visível, sentiente-sensível, sem que esses

dois lados possam se fundir um no outro, o que extinguiria a

manifestação que se faz entre eles (FURLAN, 2011, p.101-102).

O corpo é uma coisa entre as coisas no sentido de que faz parte

das coisas sensíveis; não é simplesmente uma coisa visível, mas ele é o

visível; não é uma coisa visível de facto, mas é o visível de jure. Se o

corpo toca e vê, não é simplesmente pelo fato de que há visíveis diante

dele, mas pelo fato de que esses visíveis entram nele, em outras

palavras, porque eles já estão nele. Como o visível e o tangível são de

uma mesma família, o corpo usa seu ser como um utensílio para

participar do ser deles, cada um dos dois seres sendo um arquétipo, um

para o outro. Os corpos reportam-se à ordem das coisas, de semelhante

modo como o mundo é a carne universal (MERLEAU-PONTY, 2009a,

p. 134).

No entendimento de Furlan (2011. p. 102): A visibilidade e o tato, manifestações exemplares

da carne, é o que nos separa das coisas, abre

distância ou espaço, e nos une a elas, à sua

68 Na versão original: [...] la chair dont nous parlons n'est pas la matière. Elle est

l'enroulement du visibel sur le corps voyant, du tangible sur le corps touchant, qui est

attesté notamment quand le corps se voit, se touche en train de voir et de toucher les

choses, de sorte que, simultanément, comme tangible il descend parmi elles, comme

touchant el les domine toutes e tire de lui-même ce rapport, et même ce double rapport,

par déhiscence ou fission de sa masse (MERLEAU-PONTY, 2006a, p. 189).

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presença. [...]. Em outros termos, o princípio de

diferenciação sensível, operado pela carne,

também é princípio de integração, Ineinander (um

no outro) ou ser de indivisão. O lado de dentro

surge do lado de fora, como uma espécie de

invaginação sensível, que inaugura uma tensão e

um movimento no lado de dentro de “integração”

com o lado de fora, formando uma [...] “unidade”

ou campo de uma vida [...].

Aqui é importante destacar e aprofundar a ideia merleaupontiana

das duas folhas. Vemos o mundo sem deixar o mundo e

simultaneamente percebemos o mundo sem sair de nós mesmos. A razão

para esse desempenho é que o corpo sentiente e o corpo sentido são

como a face e o reverso de uma moeda, ou como dois segmentos de uma

única trajetória circular que, visto de cima de uma corrida, está se

movendo da esquerda para a direita, e, visto de baixo, caminha da direita

para a esquerda; porém há um único movimento nessas duas fases.

Se o corpo é a carne do mundo, onde está o limite de mundo? O

mundo está no meu corpo? O corpo está no mundo visível? Novamente

temos aqui a ideia do entrelaçamento, do quiasma que, como já foi dito,

será pormenorizado posteriormente. Quando percebemos as coisas,

nosso olhar varre a película superficial do visível, mas essa película não

é apenas para minha visão, ela está disposta em relação ao meu corpo

(porque eu não tenho a capacidade de ver para dentro das coisas). No

entanto, a profundidade das coisas contém o corpo e contém minha

visão. Assim, o corpo como visível é contido nesse espetáculo

grandioso. O corpo vidente estende por baixo o corpo visível e também,

ao mesmo tempo, todos os visíveis com ele. Há, dessa forma, uma

imbricação de um no outro (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 134-135).

Para abolir a dicotomia do “ser em si” e “ser para si”, Merleau-

Ponty analisa a relação da carne com a ideia entre o visível e a armadura

interior que a mostra e que a esconde. Para isso, o autor recorre a uma

ideia de Proust, quando ele fala de ideias musicais, produções culturais

ou da essência do amor. Trata-se da noção de sintagma, de composição,

a frase que mostra o amor do personagem Swann e que é assim

comunicada a todos que a escutam. A literatura, a música, o cinema, as

paixões e, em geral, as experiências do mundo visível, representam,

tanto quanto exploram, um invisível que vai desvendar um mundo das

ideias (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 144-145).

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O invisível não pode ser separado da sua aparência sensível, de

modo que a ideia musical, a ideia literária ou o amor têm a grande

vantagem de falar a nós; eles têm sua própria lógica, sua coerência, seu

corte e sua concordância. Essas ideias não poderiam ser mais bem

conhecidas sem o nosso corpo e sem a nossa sensibilidade; elas não

podem ser dadas sem uma experiência carnal (MERLEAU-PONTY,

2009a, p. 146).

As ideias são o invisível deste mundo, aquele que o habita, que o

mantém e o torna visível. Quando falamos, tocamos ou quando o músico

executa as notas musicais, uma lacuna é eliminada, como se produzisse

uma iluminação de algo que já foi presente. Os modos de exibição do

som e do tato falam-nos, possuem sua lógica própria, sua coerência, suas

concordâncias.

De acordo com Merleau-Ponty (2009a, p. 147-148), são as ideias

que nos possuem e não o contrário. Aqui vemos o mesmo resultado

referente ao caso das coisas: quando percebemos as coisas e, em

seguida, as explicamos, não somos nós que falamos das coisas, mas são

as coisas que falam por nós. E também não é o intérprete que canta uma

canção, mas ele se sente a serviço da canção: ela se canta por ele. Há, de

fato, um tipo de idealidade que não é tão estranho à carne, mas que lhe

dá as coordenadas, a profundidade e as dimensões.

Dizemos ainda que mesmo essa espécie de idealidade não ocorre

sem a carne, não se constitui sem as estruturas de horizonte; a idealidade

vive realmente nelas, mesmo que se trate de outra carne, de outros

horizontes. É como se a visibilidade que anima o mundo sensível

emigrasse em um corpo menos pesado, porém mais transparente; como

se a visibilidade mudasse a carne, abandonasse a carne do corpo em

favor da carne da linguagem.

Nas palavras de Furlan (2011, p. 102-103): Ora, a despeito dessa tentativa de unificação

ontológica através da noção de sensível, há um

privilégio de minha carne em relação à carne do

mundo, porque é através dela que o sensível se

reflete, se sente, se toca ou se vê. É através da

vida humana que a noção de carne ganha sentido

pleno, ou que a relação entre o lado de dentro e o

lado de fora aparece, enfim, como dimensão

ontológica do sensível [...]. Por isso o lado de

dentro da carne do mundo aparece como

“profundidade”, “invisível”, “ideia”, que não é a

mesma coisa que o lado de dentro de minha carne,

que, além de comportar tais termos, pressupõe

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uma estesiologia privilegiada porque se abre para

a carne do mundo [...].

Desse modo, a carne é uma dimensionalidade marcada tanto por

uma imanência, como por uma transcendência, isto é, por uma estrutura

profunda de entrelaçamento. Como “deiscência” ou explosão

(éclatement), ela se recusa a ser fixada e possuída; ela funciona como

uma desapropriação. Essa densidade quiasmática da carne é também

constitutiva da visibilidade, o emblema, para Merleau-Ponty, da

sensibilidade como tal. Já a invisibilidade que é coextensiva com a

presença visual é, por assim dizer, o seu outro lado. A invisibilidade

pertence, então, à presença visual como tal e, por isso, não nega a ela. O

invisível é aqui pura transcendência sem uma máscara ôntica. E os

próprios visíveis estão, em última análise, somente centrados sobre um

núcleo de ausência (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 210-211).

Podemos agora retornar à questão colocada no início, a respeito

de uma teoria ontológica contida no livro “O visível e o invisível”.

Podemos afirmar que Merleau-Ponty não abandona totalmente a

fenomenologia, embora a principal preocupação seja a ontologia.

Mesmo com muitas análises de grande riqueza metafísica, o filósofo

francês segue as principais linhas mestras traçadas no prefácio da obra

“Fenomenologia da percepção”, em que mostra principalmente que

fenomenologia é o estudo das essências reintegradas na existência.

Como filosofia transcendental, a fenomenologia suspende as

afirmações da atitude natural, mas também é uma filosofia que sustenta

com propriedade que o mundo está sempre lá. Por seu entendimento de

que o maior ganho é o de unir, na noção de mundo, o extremo

subjetivismo e o extremo objetivismo, Merleau-Ponty faz uma

importante delimitação teórica, tanto em comparação com Husserl,

como em comparação com Heidegger. Assim como o mundo, a

racionalidade é a intersecção de perspectivas, combinação mútua de

percepções, conduzindo ao sentido, conduzindo à significação. O mundo

não é uma pura existência, mas o sentido que aparece na intersecção de

nossas experiências com aquelas de outrem (MERLEAU-PONTY,

2006, p. 19).

Sabemos que a principal preocupação de Merleau-Ponty foi, tanto

na “Fenomenologia da percepção”, como em “O visível e o invisível”, a

ontologia fenomenológica, talvez mostrada pelo fato de que ele realçou

fortemente a dimensão ontológica de sua abordagem fenomenológica. Já

em sua conferência, “O filósofo e sua sombra” (1959), ele argumenta

que a fenomenologia não é nem materialismo, nem uma filosofia do

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espírito. Sua operação principal é a de revelar a camada pré-teórica, em

que as duas idealizações encontram seu direito relativo e sua

ultrapassagem (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 268).

Dessa perspectiva, a “Fenomenologia da percepção” é uma

tentativa de responder à pergunta: como sair do idealismo sem cair na

ingenuidade? A filosofia tem, portanto, como principal preocupação, a

exploração da percepção, da arte ou da religião, a exploração do mundo

percebido e do mundo vivido, isto é, um mundo que não pode ser

considerado como menos real. A redescoberta deste mundo nos conduz

à conclusão de que, na distinção consciência-objeto, a consciência é

extremamente turva e nossos relacionamentos com os outros não são

mais as relações de um puro pensamento com outro puro pensamento.

De maneira geral, a filosofia encontra a espessura e a relação com os

problemas concretos que ela havia perdido devido às simples reflexões

sobre a ciência (MERLEAU-PONTY, 1997, p. 66).

4.1.1 Quiasma e Rizoma

Podemos dizer que é no quarto capítulo da obra “O visível e o

invisível”, intitulado “O Entrelaçamento ‒ o Quiasma” que a noção

desse conceito será desenvolvida mais intensamente. Aqui Merleau-

Ponty traça inter-relações sutis e complexas, em uma tentativa de

mergulhar mais a fundo na análise do indivíduo, articulando, neste

capítulo, a própria essência de seu pensamento fenomenológico anterior.

O que faz o filósofo francês é traçar os principais aspectos que

compõem uma estrutura quiasmática, e de onde e como ela se inscreve

na multiplicidade do ser.

O que ele chama de quiasma, marca o próprio movimento de

fenomenalização, que não é uma relação superveniente estática entre

coisas e indivíduos. Eles, em sua rica diversidade, articulam-se somente

dentro do dinamismo quiasmático da interimbricação (empiétement) e

diferenciação que faz que a deiscência ou o explodir fenomenal (éclat) seja chamada de carne. Por essa razão, qualquer análise que procure

resolver ou separar o que é aqui entrelaçado, somente conseguirá torná-

lo ininteligível, o que implica que uma filosofia que reconheça o

quiasma dependerá de um novo tipo de inteligibilidade (MERLEAU-

PONTY, 2009a, p. 240).

Falar de quiasma é realmente heterogenizar e singularizar um

movimento e uma articulação que, sendo difundida, toma múltiplas

formas. Podemos falar, por exemplo, da inter-relação quiasmática do

sentiente e do sensível, do corpo e do mundo, das modalidades

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sensoriais umas com as outras, da visibilidade e do invisível, do eu-

mesmo e de outrem, da ideia e da carne, ou do discurso e do significado.

Estas inter-relações podem ser compreendidas em unidade apenas na

medida em que são elas próprias interligações quiasmáticas, o que

implica que não podem ser colapsadas em qualquer identidade ou

coincidência fundamental.

No entender de Merleau-Ponty (2009a, p. 235), esses múltiplos

quiasmas se amontoam em um único somente, não em termos de síntese,

de uma singular unidade sintética, mas sempre no sentido de

Uebertragung, de invasão, de imbricação, isto é, da propagação do ser.

Por essa razão, ele pode descrever o quiasma como a verdade da

harmonia preestabelecida leibniziana, uma verdade, para além disso, que

não se limita a uma singular unificação de perspectivas monádicas, mas

há uma interligação de totalidades unificadas com antecedência, por

meio da diferenciação, o que quer dizer, na verdade, articulações

quiasmáticas.

Considerando que essa harmonia preestabelecida pertence a uma

positiva ou clássica ontologia, ou seja, em uma ontologia da substância,

o pivô do quiasma é insubstancial, um “nada”. Todavia não é um nada

absoluto, um puro nada, pois há uma intimidade entre o visível e a visão,

e também essa proximidade não é recolhida a uma coincidência. As

coisas não estão lá fora por si só, já que meu olhar envolve as coisas e as

interage com a sua própria carne. Mas o que é ver uma cor, por

exemplo? Levando adiante a adoção da psicologia da gestalt, Merleau-

Ponty (2009a, p.128-129) sugere que o vermelho que vejo não pode ser

um simples choque pontual ou uma qualidade, porque, para ver o

vermelho, exige-se uma focalização, no entanto, breve.

Além disso, sua particularidade é internamente estruturada de

acordo com a sua textura ou configuração, como uma modalidade de

“plano” ou de “quente”. Esse vermelho é também uma pontuação no

campo das coisas vermelhas, o que lhe confere um significado através

de sua diferença estrutural de todos os outros vermelhos. O mesmo

comprimento de onda ou quale (película de ser sem espessura)

simplesmente não é o mesmo vermelho quando participa da bandeira da

Revolução ou das vestes de um promotor público. O sentido desse

vermelho visível é estruturado de acordo com uma imensa estratificação

invisível de relações que, silenciosamente, pesam sobre e através do

nosso olhar invisível (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 129).

Do lado do ver, o nosso olhar envolve e apalpa a coisa “como

uma coisa”, tal como sua face. Assim como uma mão antecipa a forma

do objeto que está prestes a agarrar, o olhar possui uma pré-possessão

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do visível, uma arte de interrogação ou uma inspirada exegese. O

parentesco que permite essa solicitação é forjado por meio do estatuto

essencial do corpo como palpado e palpante ou como visto e vidente.

Como salienta o autor, em seu retorno à imagem husserliana, há mais

coisas em jogo do que uma simples mudança de atenção. Quando um

sujeito que toca desce ao nível das coisas, o palpante é revelado como

uma atividade inegavelmente mundana, consumada por uma consciência

corporal (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 130).

Assim, a reversibilidade do palpante e do palpado é o

distanciamento, o espaçamento ou uma imbricação (empiétement) por

meio da qual a experiência é possível, um espaçamento a priori antes da

existência e da essência. Outra imbricação, ou mesmo certo tipo de

transposição (enjambemet), ocorre entre a visão e o tato, o visível e o

tangível, e o corpo, que é o lugar dessa dobra, desvio ou quiasma. Isso

leva à necessária conclusão de que o vidente não pode possuir o visível,

a menos que aquele que vê seja possuído pelo visível. De fato, a coisa só

pode aparecer porque o vidente não é nada, e isso se deve à espessura da

carne entre o vidente e a coisa. O corpo não é apenas uma conexão entre

o “em si” e “para si”, porém é um sensível para si ou um exemplar

sensível (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 131-132).

Todo o ser corporal envolve profundidades e latências, e o corpo

humano, sensível e sentiente, é uma variante notável. Assim, a

reversibilidade do ser corporal revela um paradoxo do ser, e não um

paradoxo do homem. Diferentemente da ontologia clássica de um puro

em si mesmo e de um puro para si mesmo, o corpo pode ser

compreendido como um nó, uma intriga no tecido do mundo que é,

simultaneamente, sujeito e objeto, como uma estrutura de visibilidade.

Portanto, entre o mundo e meu corpo, há uma recíproca inserção e

entrelaçamento de um no outro (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 133-

134).

Nesse sentido, a articulação quiasmática é multidimensional. O

que Merleau-Ponty (2009a, p. 145-146) insiste é sobre o não fechamento

que permanece característica do quiasma. É esse vazio, perda não

intencional, ou hiato que permite as linhas de vigor e as dimensões da

visibilidade, sendo que o que vem à tona aqui é ausente de toda a carne,

uma negatividade que permeia essa carne e o corpo e que não é, como já

vimos, um puro nada. Na verdade, há uma deiscência do que vê no

visível, e do visível no que vê, marcando uma abertura diferenciada, um

ponto de passagem do quiasma, que é um núcleo vazio.

É importante notar que há outro conceito filosófico que seguiria,

aparentemente, algumas dessas características, mas, no fundo, diverge

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em muitos aspectos. Trata-se do rizoma, que é uma palavra advinda da

Botânica, alusiva aos bulbos e aos tubérculos, órgãos geradores de

outras plantas, e que, quando apropriado pelos filósofos Deleuze e

Guattari (1995), significa a conexão por todos os lados e a feitura de

alianças, como uma linha do meio. O rizoma descreve as conexões que

ocorrem entre os mais diferentes e os mais semelhantes objetos, lugares

e pessoas.

Na palavra dos autores: Um rizoma não cessaria de conectar cadeias

semióticas, organizações de poder, ocorrências

que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais.

Uma cadeia semiótica é como um tubérculo que

aglomera atos muito diversos, linguísticos, mas

também, perceptivos, mímicos, gestuais,

cogitativos [...]. (DELEUZE; GUATTARI, 1995,

p. 16).

O rizoma mapeia um processo de pensamento relacional,

transversal, de rede, um modo de ser sem localização da construção

desse mapa como uma entidade fixa. Linhagens ordenadas de corpos e

ideias que seguem sua base originária e individual são consideradas

como formas de pensamento arborescente, e essa metáfora de uma

árvore como a estrutura que ordena epistemologias, enquadramentos

históricos e esquemas homogêneos é invocada pelos filósofos franceses

para descrever tudo o que o pensamento rizomático não é.

Esse conceito pode ser compreendido como um manifesto, uma

nova imagem do pensamento destinada a combater o privilégio secular

da árvore que desfigura o ato de pensar e dele nos desvia. Para os

autores, é flagrante que muitas pessoas têm uma árvore plantada na

cabeça, quer se trate de se buscar raízes ou ancestrais, de situar a chave

de uma existência na infância mais remota, ou ainda destinar o

pensamento ao culto da origem, do nascimento, do aparecer em geral

(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 34).

Diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta

um ponto qualquer com outro ponto qualquer, e cada um de seus traços

não remete necessariamente a traços de mesma natureza; ele põe em

jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não

signos. O rizoma não se deixa reduzir nem ao uno nem ao múltiplo. Ele

não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções

movediças. Não tem começo nem fim, mas sempre um meio, pelo qual

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ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades (DELEUZE;

GUATTARI, 1995, p. 31).

Na explicação de Carvalho (2010, p. 161-162): O rizoma possui vários princípios, que dizem

respeito à sua forma de interagir dentro de um

sistema. Os dois primeiros são os princípios de

conexão e heterogeneidade, que requerem que

qualquer ponto de um sistema rizoma pode ser

ligado a outro ponto qualquer, ou seja, o sistema

não é uma estrutura hierárquica. O terceiro

princípio respeita a multiplicidade, cuja

importância está, não nos pontos terminais das

relações, mas no modo como essas ligações têm

lugar, ou seja, no relacionamento intersubjectivo

entre os elementos das regiões, ou seja, as linhas

entre os pontos é que são importantes. O quarto

princípio é chamado de princípio de apontamento

de ruptura e diz-nos que num rizoma pode

acontecer uma ruptura num dado ponto, mas o que

estava em curso não será interrompido e

recomeçará novamente numa das antigas linhas ou

em novas linhas [...]. O quinto e sexto princípio do

rizoma são os de cartografia e decalcomania que

nos dizem que o rizoma não é um mecanismo

traçador, mas que é à partida um mapa com

múltiplos pontos de entrada. Podemos dizer, que

pelo facto de ser um mapa encaminha a

construção do nosso subconsciente de forma

orientada no sentido de uma experimentação de

contacto com o real, reproduzindo também

sucessivamente esta experimentação pela

circulação ou intersecção em cada fase espaço em

cada ponto de entrada do rizoma. O rizoma é

portanto um sistema sem centros, não hierárquico,

um sistema não significante sem um guia e sem

uma memória organizada, ou uma central de

automação, definido somente pela circulação dos

estados, ou seja, paradigmas ou conceitos em

articulação.

Deleuze e Guattari (1995, p. 10) descrevem o rizoma como uma

ação de muitas entidades abstratas do mundo, incluindo música,

matemática, economia, política, ciência, arte, ecologia. O rizoma

concebe como cada coisa e cada corpo (todos os aspectos de concreto,

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entidades abstratas e atividades virtuais) podem ser vistos como

múltiplos nos seus movimentos inter-relacionais com outras coisas e

corpos. A natureza do rizoma é a de uma matriz em movimento,

composta de peças orgânicas e não orgânicas, formando conexões

simbióticas de acordo com rotas transitórias e ainda indeterminadas.

Aqui, podemos falar em um pensamento rizomático, como

método do antimétodo, que comporta, pelo menos, três reflexões,

analisadas sucintamente pelo autor François Zourabichvili (2004, p. 99).

Ele diz: [...] 1) pensar não é representar (não se busca uma

adequação a uma suposta realidade objetiva, mas

um efeito real que relance a vida e o pensamento,

desloque o que está em jogo para eles, os relance

mais longe e alhures); 2) não há começo real

senão no meio, ali onde a palavra “gênese”

readquire plenamente seu valor etimológico de

“devir”, sem relação com uma origem; 3) se todo

encontro é “possível” no sentido em que não há

razão para desqualificar a priori certos caminhos e

não outros, todo encontro nem por isso é

selecionado pela experiência (certas montagens,

certos acoplamentos não produzem nem mudam).

Nesse sentido, formações rizomáticas podem servir para superar e

transformar estruturas de pensamento e de julgamento rígido, fixo ou

binário. O rizoma é antigenealogia. Um rizoma contribui para a

formação de um planalto através de suas linhas de devir, que formam

ligações agregadas. Não há posições singulares nas linhas de rede de um

rizoma, apenas pontos conectados que formam conexões entre as coisas.

Um platô rizomático de pensamento, sugerem Deleuze e Guattari, pode

ser alcançado por meio da consideração do potencial de ideias e corpos

múltiplos e relacionais (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 11).

Aqui, a noção de devir pode ser vista como uma série de

cruzamentos e de linhas a que faltam coesão, centro, retenção

(memória), expectativa ou significação que são, portanto, praticamente

impossíveis de localizar ou de destruir (em distinção de uma estrutura

composta de pontos). Temos a figura do mapa de um devir, ou seja, uma linha de fuga que envolve a deformação das formas de conteúdos,

formas de expressão e de uma rede de intensidades, movimentos e

sensações.

Esse fato implica um processo transformativo ou distributivo

horizontalmente, sem começo ou fim, em distinção daquilo que é

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organizado verticalmente, enraizado em um único local.

Matematicamente, é o que não faz distinção entre o um e o múltiplo,

porque opera por subtração de qualquer ponto de partida dado, e não por

adição. Ainda, consideramos que o rizoma não é redutível nem ao um

nem ao múltiplo. Ele não tem começo nem fim, mas possui sempre um

meio, a partir do qual ele cresce e se extravasa.

Mais do que a realidade que está sendo pensada e escrita como

uma ordenada série de totalidades estruturais, em que conexões

semióticas ou taxonomias podem ser compiladas a partir da raiz em

direção à árvore, a história do mundo e de seus componentes pode ser

comunicada por meio de operações rizomáticas de coisas, movimentos,

intensidades e formações polimórficas. Rizomas não têm nenhuma

ordem hierárquica em relação às suas redes de capitalização, já que o

pensamento rizomático funciona como uma configuração produtiva no

estilo aberto-fechado, em que associações e conexões randômicas

impulsionam desvios e abstratas relações entre componentes. Qualquer

parte dentro de um rizoma pode ser ligada à outra parte, formando um

meio que está descentrado, sem fim distintivo ou ponto de entrada.

Como uma sequência não homogênea, o rizoma descreve uma

série que pode ser composta de causalidade, acaso e ligações aleatórias.

Conexões rizomáticas entre corpos e forças produzem uma energia ou

entropia afetivas. Consequentemente, a interação de uma força

determinada social, politica ou culturalmente e qualquer corpo dado

produz associações de ideias. A corrente descontínua é o meio para a

rede de expansão do rizoma, assim como é também a circunstância

contextual para a produção da cadeia.

Deleuze e Guatarri (1995, p. 46) entendem que cada operação no

mundo, como a troca afetiva de intensidades rizomaticamente

produzidas, cria órgãos, sistemas, economias, máquinas e pensamentos.

Cada corpo é impelido e perpetuado por inúmeros níveis de forças

afetivas de desejo e suas materializações de ressonância. Variações para

cada sistema dado podem ocorrer por causa de intervenções no âmbito

da repetição cíclica e sistemática. Como o rizoma pode ser constituído

de um corpo existente, incluindo pensamentos existentes que podem

exercer influência sobre outro corpo, ele é necessariamente um tópico

que está relacionado a princípios de diversidade e de diferença através

da ideia de repetição.

Desse modo, a escrita rizomática, o ser ou o devir não são

simplesmente um processo que assimila coisas, mas sim um meio de

transformação perpétua. O meio relacional que o rizoma cria dá forma a

ambientes evolucionários, onde diversas relações alteraram o curso de

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como fluxos e desejos coletivos desenvolvem-se. Não há nenhuma

função de estabilização produzida pelo meio rizomático, nem há criação

de um conjunto de partes virtuais e dispersas. Em vez disso, através do

rizoma, pontos formam agrupamentos, múltiplos sistemas associam

topologias possivelmente desconectadas ou quebradas; por sua vez, os

agrupamentos e as tipologias alteram, dividem e multiplicam por meio

de encontros e de gestos díspares e complexos.

O rizoma é qualquer rede de coisas postas em contato com um

outro, funcionando como uma máquina de montagem para novos

conceitos, novos órgãos, novos pensamentos. A rede rizomática é um

mapeamento das forças que se movem e imobilizam organismos. Corpos

e coisas, incessantemente, assumem novas dimensões através de seu

contato com entidades diferentes e divergentes ao longo do tempo. O

rizoma assinala uma maneira divergente de conceituar o mundo que é

uma das características da filosofia de Deleuze e Guatarri como um

todo.

Assim, o rizoma é uma importante forma de pensar sem recorrer

à analogia ou às construções binárias. Pensar em termos de rizoma é

revelar as múltiplas formas pelas quais podemos abordar qualquer

pensamento, atividade ou conceito. O que sempre trazemos conosco

mesmos são muitas e diversas maneiras de entrar em qualquer corpo, de

pensamento múltiplo e de ação através do mundo.

Voltando à noção de quiasma, é importante detalhar, neste

momento, um fundamental princípio ontológico, que é o da

reversibilidade, que o autor francês nomeia de “verdade última” (vérité

ultime) (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 150). Essa noção emerge de

suas explorações anteriores a respeito da ambiguidade do ser-no-mundo

e dos enigmas do palpante e palpado (tocante e tocado), do vidente e

visível. Ele explora a noção de Ineinander (um no outro), ou

entrelaçamento, e a estrutura paradoxal do envolvente e envolvido como

fundamental fato de que o corpo é, ao mesmo tempo, um poder de

explorar o mundo e é, necessariamente, do mundo.

Percebemos que essa característica não se encontra na noção de

rizoma, que está aberto aos devires-intenso, aos devires-animal, e versa

a respeito dos devires em nossas semelhanças com os outros, as coisas,

os animais ou os vegetais. Logo, há, em um plano de imanência,

exclusivamente o caos, ou o ser já é uma instauração do caos, gênese no

caos, e toda essa criação é sempre especial (DELEUZE-GUATTARI,

1992, p.15).

Já o quiasma é atraído por uma transcendência (distância) de ser

que não se completa como um transcendente na imanência. É uma

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imanência não intencional que, como diz Merleau-Ponty (2009a, p.

121), não é nem composição, nem separação incondicional (positivismo

e negativismo) ao ser. Seguramente, toda descrição do ser para Merleau-

Ponty não exaure sua infinitude nem suprime sua transcendência.

Pontuamos aqui que o termo transcendência a que se refere o autor

francês é a disparidade na imanência da experiência, e não o

transcendente a que se reportam Deleuze-Guattari (FURLAN, 2011, p.

117).

Prosseguindo na análise a respeito da reversibilidade, podemos

ver que, na “Fenomenologia da percepção”, Merleau-Ponty discute a

relação entre vidente e visível, junto com a noção de tocante e tocado.

Justamente como o meu corpo pode, em princípio, reverter a sua atitude

entre tocante e ser tocado, assim como entre as minhas duas mãos, o

meu corpo é também um poder para ver e, em tese, visível em si mesmo.

No entanto, essa reversibilidade potencial nunca é realizada, e meu

corpo não é em si visível, na medida em que ele está vendo. Invocando a

ideia de um espelho, podemos vislumbrar o meu olhar vivo quando um

espelho na rua inesperadamente reflete minha própria imagem de volta

para mim (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 135).

Nossas estruturas são de natureza visível, como Merleau-Ponty

(2006, p. 8) entende, na medida em que o indivíduo pode ser seu

exterior, e o corpo do outro pode ser o outro dessa própria pessoa. Dessa

forma, o outro aparece através de comportamentos do corpo visível, sem

realmente estar contido lá, e a visão é o olhar se preparando para o

mundo visível, e é por isso que o outro olhar não pode existir sem algum

indivíduo. Há uma ambiguidade aqui que não é um raciocínio por

analogia. Outra pessoa pode aparecer precisamente porque todo ser é

uma visão encarnada e nunca transparente para ele mesmo (MERLEAU-

PONTY, 2006, p. 471-472).

Esse aspecto sugere que o corpo é o lugar de uma fundamental

imbricação (empiètement) entre sentiente e sentido, uma essencial

sensibilidade pela qual o ser em si e outros podem aparecer. Na obra “O

olho e o espírito”, por exemplo, o filósofo discute como a pintura tem

um acesso privilegiado à reversibilidade entre aquele que vê e o que é

visto, bem como a possibilidade de uma compreensão de uma

reversibilidade entre as dimensões da imagem e das coisas (MERLEAU-

PONTY, 2004, p. 22 e 34).

A estrutura de proliferação de reversibilidades se repete em “O

visível e o invisível”, tal qual um elemento basilar da carne, como o

lugar de toda relação quiasmática, sendo capaz de estruturar uma

completa ontologia e um novo entendimento da intersubjetividade,

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como também da intercorporeidade. Em ambos os casos, a

reversibilidade pode ser reconhecida como um princípio possível, porém

nunca como um fato estanque, acabado e completo, pois uma

coincidência entre os dois polos seria negar o espaçamento, o

distanciamento (écart) pelo qual o ser aparece como o invisível de todo

visível.

Por conseguinte, notamos que essa reversibilidade acende a

centelha de um incessante cruzamento/transposição (enjambement) ou

imbricação (empiètement) entre atividade e passividade. Merleau-Ponty

usa esses dois termos, enjambement e empiètement, para expressar uma

figura topológica associada ao quiasma, na qual nenhuma ramificação

ou espaço possui privilégio sobre o outro (RODRIGO, 2013, p. 34).

Como veremos mais adiante, a figura temporal, e não espacial associada

ao quiasma é a da precessão recíproca (précession reciproque), analisada no que se refere ao estatuto ontológico da imagem

cinematográfica.

Compreender esses importantes termos é perceber que o quiasma

do visível, do tangível e também do sonoro é alguma coisa que não

subsiste em uma identidade fechada, mas se abre a um “paradigma de

alteridade”, segundo a expressão do filósofo Paul Ricoeur (1990 apud

RODRIGO, 2013, p. 34). Daí a evocação de uma existência visual do

tangível e a existência háptica do visual, mostradas nas qualidades

tácteis e ópticas dos seres e das coisas. O sentido ontológico de

enjambement e de empiètement configura-se como uma espécie de

“cavidade dentro do ser” (creux dans l'être) que não é um vazio de ser,

mas que organiza, na maioria das vezes, a possibilidade do princípio de

um entrelaçamento, de um entrecruzamento daquilo que é o ser. De fato,

o que aparece como visível é sempre uma intriga, um tecido de

múltiplos não visíveis (RODRIGO, 2013, p. 34 e 37).

Nesse sentido, a pintura não é mais do que a expressão do enigma

do vidente e do visível, ou seja, da visibilidade. Essa característica leva

Merleau-Ponty (2009a, p. 86 e 102) a colocar a noção de visibilidade no

coração de sua ontologia. A reversibilidade do ver e do tocar revela o

que o autor chama de uma “relação carnal” com a “carne do mundo”,

que ele volta a analisar como extremas categorias como, por exemplo, o

ser e o nada. Essas categorias permanecem para sempre no horizonte de

um entrelaçamento mais primordial do visível e do invisível, daquele

que vê e é visto. Todavia a impossibilidade de atualizar a

reversibilidade, de ser, simultaneamente, visível e vidente é o que abre o

espaçamento, o distanciamento (écart) do ser a se manifestar. O quiasma

entre ver e ser visto institui uma reversibilidade na carne do mundo.

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Entre a minha carne e a carne do mundo, não há desigualdade,

contudo existe uma espécie de circulação, isto é, penetramos na carne do

mundo que mutuamente nos penetra. É o recruzamento de um sobre o

outro, desses dois movimentos opostos que constituem o quiasma. Esse

pensamento do quiasma culmina em uma metáfora absolutamente

notável, que é a de dois movimentos circulares, como turbilhões.

Minha carne e a carne do mundo são como dois movimentos

circulares de sentidos inversos; cada turbilhão enovela o sensível sobre o

sentir e entra em outro turbilhão que se move em direção oposta. Minha

carne sentiente se exterioriza no mundo sensível e a carne sentiente do

mundo é exteriorizada no meu corpo sensível. Cada carne penetra, dessa

maneira, na espessura do outro, que se manifesta na forma do

enjambement, do empiètement recíprocos, isto é, perfeitamente

reversíveis.

A noção de carne retorna como um momento fundamental nas

reflexões ontológicas do visível e do invisível. Tocante e tocado são,

sem dúvida, uma atividade mundana carnal, que isola a investigação

ontológica da ameaça de qualquer filosofia de consciência. Além disso,

o espaçamento inicial, que é também caracterizado como quiasma, é o

que permite a reversibilidade como tal. O tocante e o tocado revelam

uma tangibilidade que ocorre entre um evento passivo (passividade) e

uma constituição ativa (atividade) para a qual a filosofia tradicional não

tem nome e que nós chamamos de carne (MERLEAU-PONTY, 2009a,

p. 135; 142).

Observamos que a atividade que se pressupõe no ato do tato e,

também, da visão não é sinal de arbitrariedade de concepção de sentido,

porém de consentimento ou acordo com o sensível a ser percebido. Sem

isso, não existe efetividade do corpo no mundo. Assim, atividade e

passividade não são palavras inconciliáveis, mas reversíveis, dois lados

da mesma experiência. E é o que leva o filósofo francês a dizer,

finalmente, que o quiasma é a “[...] verdade da harmonia preestabelecida

‒ Bem mais exata que ela: porque ela está entre fatos locais ‒

individuados, e o quiasma liga como avesso e direito conjuntos

antecipadamente unificados em vias de diferenciação [...]”69

(MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 236).

69 Na versão original: [...] vérité de l'harmonie préétablie - Beaucoup plus exacte

que'elle: car elle est entre faits locaux-individués, et le chiasme lie comme envers et

endroit des ensembles d'avance unifiés en voie de différenciation [...] (MERLEAU-

PONTY, 2006a, p. 310).

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Por essa razão, a carne do mundo ou a minha não é contingência,

caos, contudo é trama ou intriga que volve a si e ajusta a si mesma, uma

massa intimamente trabalhada. Refletimos acerca da carne não a partir

de elementos como corpo e espírito, porquanto ela seria o casamento de

contraditórios, mas como substância, insígnia concreta. Em suma, em

que pese a presença da atividade na passividade da percepção ou de todo

sentir, ela acontece a favor da anuência entre o lado de dentro e o lado

de fora da minha carne (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 142-143).

A carne não é uma condição primordial que é superada através da

instituição de sujeitos e objetos, mas é o princípio de cada momento de

visibilidade. E, como uma coisa geral, a carne é reversível de outras

maneiras, enquanto outros corpos são lugares de enovelamento sobre o

visível, na medida em que também são sensível e sentiente. Existe uma

reversibilidade entre a nossa experiência que garante uma

intercorporeidade, não havendo uma contradição em dizer que dois

corpos genuinamente se comunicam. A partir do momento que nossa

visão não é consumada por uma constituição ativa, o “eu”, o anonimato

da visibilidade, na verdade, habita-nos por meio da estrutura primordial

da carne como reversibilidade, todavia, sem negar nossas perspectivas

individuais de dentro da carne.

Já a visibilidade e a tangibilidade revelam nada menos do que

uma ontologia do entrelaçamento e, nessa comunicação corporal com o

outro, começa o “paradoxo da expressão”. Assim, a partir dessa

estrutura inicial, as camadas e as dobras proliferam em outras

reversibilidades que passam definitivamente para além do círculo do

visível. Entre o meu corpo sonoro e a audição da minha própria voz,

emerge uma carne como expressão que é nada menos que o ponto de

encontro, de cruzamento do ato de falar e do pensar no mundo do

silêncio. A coincidência indefinida ou o eclipsar incessante que aparece

na experiência é o que assegura o já conhecido distanciamento (écart)

(MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 140).

O distanciamento revela um dos pontos de maior dificuldade, ou

seja, o vínculo entre a carne e a ideia, entre o visível e a armadura

interior que se manifesta e que se esconde. Uma ideia não é o oposto do

visível, é a profundidade ou o revestimento de uma superfície visível

que o anuncia e sem a qual ele não seria nada. Essa é uma relevante

continuação da noção de expressão de Merleau-Ponty. O pensamento

não está separado da expressão; não é necessária uma tradução do

discurso para a pureza de pensamento, pois, para o pensamento, já está

presente a profundidade invisível da expressão visível.

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Para conhecer um pensamento, é preciso falar ou falar

novamente; um empréstimo do corpo de alguém para a voz do outro são

as boas-vindas ao invisível da frase sonora, através de uma nova dobra

na carne. O que a tradicional filosofia tem denominado de idealidade ou

essências não são estranhas à carne, mas são precisamente seus eixos,

suas profundezas, suas dimensões (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 146-

147). Não há puras idealidades fora de toda carne e livres de quaisquer

horizontes, uma vez que mesmo as idealidades da geometria são

nascidas na história. O reversível entre o discurso e o que ele significa é,

justamente, uma reversibilidade que nunca se resolve em uma

coincidência.

Assim, o invisível de cada discurso é a riqueza percebida de seu

sentido, e o ato de reverter-se é o ato de definir ou de determinar que o

discurso, exatamente, significava. Essa definição nunca esgota a riqueza

do falar originário e sempre espera para ser retomada em uma nova

leitura ou em um novo discurso. Merleau-Ponty pretende elaborar esse

movimento a partir de um mundo mudo ao mundo que fala. Contudo ele

aqui se contenta em estabelecer que o silêncio não é nem destruído, nem

conservado, mas entra em uma nova reversibilidade entre percepção e

discurso na presença carnal de ideias invisíveis. Embora o filósofo

francês não tenha concluído suas descrições ontológicas, vislumbramos

a reversibilidade do sensível e dos sentidos, que é, de fato, como já

citado, a verdade última.

4.2 FILME, IMAGEM E O VISÍVEL

O pensamento de Merleau-Ponty confere uma prerrogativa capital

às noções de visão, visível e imagem. Notamos aqui que o visível, por

exemplo, não é a mesma coisa que a visibilidade ou o visual.

Primeiramente, não poderemos compreender a visualidade do mundo se

não fizermos a diferenciação entre a imagem e o visível, e, nesse

sentido, é o filósofo francês que reconhece que a imagem não é mais a

única ordem de grandeza do mundo visual. A imagem é, em efeito, a

manifestação de uma visão, e, portanto, de um visível que se manifesta

nas coisas ou na própria matéria (FAHLE, 2013, p. 16).

Desse ponto de vista, a imagem é, por assim dizer, sempre

enquadrada, construída em uma visibilidade que a engloba. A imagem e

o visível se situam em uma relação de troca mútua, sendo impossível

pensar um sem o outro. Nas palavras de Merleau-Ponty (2009a, p. 128):

“O visível à nossa volta parece repousar em si mesmo. É como se a

visão se formasse em seu âmago ou como se houvesse entre ele e nós

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uma familiaridade tão estreita como a do mar e da praia”.70

Identificamos a visão, isto é, o olhar focalizado e enquadrado em uma

imagem.

Já o visível constitui o movimento transversal que participa do

nascimento de cada visão. O visível está presente em cada imagem e

concebe, por sua vez, o horizonte que recua e nos escapa

permanentemente. Merleau-Ponty não faz mais que “visualizar” suas

ideias ontológicas, enviesando uma nova maneira de conceituar a

imagem e o visível. O visível é múltiplo e variado, ele constitui um

campo do possível e da simultaneidade, um lugar do qual saem as

imagens e para onde elas retornam. A imagem é, então, atravessada por

um visível que a ultrapassa, pois ela é uma parte do visível, e o visível,

às vezes, encontra-se presente e ausente da imagem (FAHLE, 2013, p.

21-22).

Na verdade, Merleau-Ponty (1996, p. 173) inscreve o visível em

um contexto ontológico, sendo o olhar humano a expressão da dinâmica

de toda a realidade, pois ver é precisamente não ter necessidade de

definir algo, de pensar sobre algo. É a presença de uma ausência,

pregnância do invisível no visível, porque o que permite o visível é o

que receberá precisamente o nome de invisível. Logo, o poder

ontológico da pintura e do cinema aparece ligado ao âmbito ontológico

da própria visão, de maneira que, assim como a percepção se estiliza, o

olhar nunca é absorvido no que é visto e no que é representado, ele

permanece sempre algo invisível no visível, algo irrepresentável no

representado, de modo que o acontecer da expressão nunca se finda.

O visível é o poder fundamental de mostrar mais do que ele

mesmo, já que é o reencontro, como uma encruzilhada de todos os

aspectos do ser. Voltar a visibilidade visível, isso seria a beleza

cinematográfica, mas a exposição do visível só é possível conquanto a

exibição seja também a do invisível. Como bem observado por Jacques

Aumont (2004a, p. 74-75), na teoria dos cineastas, praticamente não há

escolha; ou alguém confronta abertamente a relação entre cinema,

pintura e a história comum a ambos, ou se adota mais ou menos

francamente uma das versões essencialistas que fazem da imagem um

sinônimo de ideia. No primeiro caso, o filme refere-se ao visível, busca,

olhando depois a pintura e a sua mão, soluções representativas; já no

70 Na versão original: Le visible autour de nous semble reposer en lui-même. C'est comme

si notre vision se formait en sou coeur, ou comme s'il y avait de lui à nous une accoitance

aussi étroite que celle de la mer et de la plage. (MERLEAU-PONTY, 2006a, p. 171).

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segundo, refere-se ao invisível, na esperança de poder dar conta,

mediante a imagem ou contra ela, o que supera toda a visibilidade. Os

cineastas Tarkovski e Godard, são exemplos de autores dessa imagem

que é quase religiosa.

Por essa razão, o olhar ausente e, às vezes, presente é o signo de

uma presença “divina”, ao mesmo tempo visível e invisível, da qual o

cinema redireciona a noção de quiasma. É o invisível mesmo que

garante a visibilidade, sendo essa invisibilidade a própria textura do

visível. A imagem é uma ultrapassagem constante em direção a um

visível longínquo, indefinido, invisível, mas definitivamente presente

(FAHLE, 2013, p. 24).

Nesse sentido, a percepção nunca é percepção apenas do visível,

mas também, e ao mesmo tempo, do invisível, cuja necessária

antecipação o constitui, tanto se não é ainda algo dado à percepção,

como ocorre com tudo que não é visível no momento, mas poderá ser

mais tarde, como se nunca pudesse sê-lo, como na experiência do outro,

cujas experiências vividas nunca serão acessíveis aos olhos. Em ambos

os casos, o invisível não é o oposto absoluto do visível, mas sim, como

entende Merleau-Ponty (2009a, p. 200), é sua contrapartida secreta sem

a qual não poderia existir a visibilidade.

Se, na primeira fase de seu pensamento, o filósofo francês

considerava que toda percepção está subordinada a um horizonte

soberano e, portanto, ultrapassa a própria experiência do percebido ao

apresentar-se como uma abertura à “coisa mesma”, seu posterior foco

ontológico no ato de ver remete à profundidade secreta e inesgotável de

todo “visível” que Merleau-Ponty designa como “invisível”. Nos

últimos anos de sua produção filosófica, a imanência é, de alguma

forma, “devolvida” à transcendência e a noção de “invisível absoluto”

adquire cada vez mais relevo (DILLON, 1997, p. 35-37).

Merleau-Ponty (2004, p. 21) vem restaurar a experiência pré-

predicativa do sentido humano, o “oculto” como uma ausência positiva

que, inevitavelmente, forma parte do mundo, na medida em que o

sustenta e o torna visível, sendo que a pintura visa, em todo caso, a essa

gênese secreta. A questão toda está aqui: na parte detrás, opaca e

indescritível, que se abriga dentro dos limites do exprimível e que nos

impede de possuir e de cercar completamente o real. Assim, Merleau-

Ponty (2004, p. 44), ao final da obra “O olho e o espírito”, recolhe as

palavras de Paul Klee que foram registradas em seu túmulo: “[...] 'Sou

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inapreensível na imanência'...”.71 Nesse período, ele argumenta que o

propósito comum de pintura e da literatura é fazer ver.

Cada experiência perceptiva carrega alguns perfis potencialmente

perceptíveis, contudo eles se subtraem à nossa percepção efetiva. Em

geral, tudo o que vemos possui uma “face oculta” que escapa ao nosso

olhar, mas poderíamos ver se ocorressem as circunstâncias apropriadas.

Cada visão carrega sua própria visibilidade (o vidente tem que ser

visível para ser capaz de ver), com a ressalva de que essa visibilidade é

invisível para o próprio vidente, circunstâncias que levaram a conceber

qualquer visibilidade como a face oculta de um princípio de

invisibilidade. Com o advento do ato de ver, em suma, a imanência é

devolvida à transcendência (CARBÓ, 2011, p. 144).

Todavia, mesmo quando o visível dá acesso a um invisível que é

seu relevo e estrutura, ao mesmo tempo, o invisível pode ser pensado

como princípio do visível. Assim, o invisível, na verdade, torna possível

a própria visão. Por sua vez, a intervenção do invisível no visível (o

invisível é o principio do visível) é esclarecida pela relevante intuição

merleaupontiana segundo a qual o invisível da visão é um invisível de

jure, seu punctum caecum, isto é, seu ponto cego (MERLEAU-PONTY,

2009a, p. 230).

Essa visão de que o pintor, o poeta e o cineasta dão testemunho é,

para Merleau-Ponty, voyance, algo como uma singular “vidência”. O

pensador francês usa esse termo diversas vezes em suas obras

posteriores: designa um ato de ver, um visível que excede a vista, mas

que não é o oposto dela; um ver no qual atividade e passividade,

presente e passado, percepção e imaginação mantêm uma relação de

familiaridade recíproca. Uma visão realmente binocular em que o visível

está fora dos pontos de vista comuns, isto é, óptico-representativos, para

receber relevo e profundidade do fundo do invisível, que dobra o visível

e isso com necessidade. É uma visão na qual o poeta, o pintor, o cineasta

tornam-se videntes unicamente por aceitarem o desafio de uma singular

cegueira (CARBÓ, 2011, p. 144-145).

Jacques Derrida (2001 apud CARBÓ, 2011, p. 146), que toma

como referência o pensamento merleaupontiano, desenrola as ideias

aplicadas ao campo cinematográfico. Para ele, o que conta na imagem

não é simplesmente aquilo que é imediatamente visível, mas também as

palavras que habitam as imagens, a invisibilidade que determina a lógica

71 Na versão original: [...] 'Je suis insaisissable dans l'immanence'... (MERLEAU-

PONTY, 1964, p. 87).

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das imagens, isto é, a interrupção, a elipse temporal, todo esse campo de

invisibilidade que faz violência e ativa a visibilidade. A imagem,

portanto, enquanto imagem, é trabalhada materialmente pela

invisibilidade. O que vemos no filme possui, sem dúvida, menos

importância do que o não dito, o invisível.

Essa constatação terá influência no estatuto da imagem moderna e

contemporânea, principalmente no cinema e na pintura, como

detalharemos mais adiante. Na explicação de Merleau-Ponty (2004, p.

18-19): A palavra imagem é mal-afamada porque se

julgou irrefletidamente que um desenho fosse um

decalque, uma cópia, uma segunda coisa, e a

imagem mental um desenho desse gênero em

nosso bricabraque privado. Mas se de fato ela não

é nada disso, o desenho e o quadro não pertencem

mais que ela ao em si. Eles são o dentro do fora e

o fora do dentro, que a duplicidade do sentir torna

possível, e sem os quais jamais se compreenderá a

quase-presença e a visibilidade iminente que

constituem todo o problema do imaginário.72

O problema merleaupontiano acerca da ausência se prolonga

continuamente na teoria do invisível em sua relação com o visível. O

invisível não é apenas o não visível, já que sua ausência conta no

mundo, está atrás do visível; é a visibilidade imanente ou eminente. Por

essa causa, o invisível consiste na transcendência pura, sem a máscara

ôntica. Expressando sucintamente a complementaridade de horizonte, o

autor francês conclui que a visão está habitada por uma não visão

irredutível (BARBARAS, 1991, p. 185).

Certamente não se contempla a possibilidade de que a não visão

ou a não coincidência ou o distanciamento (écart) podem chegar a ser

totais. Não é possível, por exemplo, que a não visão venha a prevalecer,

porque em todo processo perceptivo, no final, há sempre alguma

72 Na versão original: Le mot d'image est mal famé parce qu'on a cru étourdiment qu'un

dessin était un décalque, une copie, une seconde chose, et l'image mentale un dessin de

ce genre dans notre bric-à-brac privé. Mais si en effet elle n'est rien de pareil, le dessin

et le tableau n'appartien-nent pas plus qu'elle à l'en soi. Ils sont le dedans du dehors et le

de-hors du dedans, que rend possible la duplicité du sentir, et sans les-quels on ne

comprendra jamais la quasi-présence et la visibilité im-minente qui font tout le problème

de l'imaginaire (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 87).

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realidade que solicita a nossa capacidade de perceber. Se, na primeira

etapa do seu pensamento, Merleau-Ponty considerava que toda

percepção está subordinada a um horizonte soberano e, portanto,

ultrapassa a experiência do percebido ao apresentar-se como uma

abertura para a coisa mesma, a sua ênfase subsequente na noção do

visível remeterá à profundidade secreta inesgotável de todo visível que o

autor designa como o invisível.

Efetivamente, nessa orientação, a experiência do visível não é

mais apresentada como a experiência de uma abertura à coisa mesma.

Agora, o visível aparece separado da experiência perceptiva por um

motivo duplo: prescinde da coisa-objeto e desentende-se com o seu

correlato, a saber, o corpo-sujeito. Merleau-Ponty, nessa fase de seu

pensamento, concentra tão intensamente suas análises na transcendência

que deixa de se vincular à subjetividade entendida no sentido de

contratranscendência e imanência (CARBÓ, 2011, p. 145).

Nesse momento, a imanência é, de alguma forma, devolvida à

transcendência. Havendo-se iniciado de uma transcendência na

imanência, característica da fenomenologia, podemos dizer que

Merleau-Ponty aborda, nessa etapa posterior de sua trajetória, uma

imanência na transcendência, característica da ontologia.

No que concerne aos questionamentos ontológicos relacionados à

imagem e, mais especificamente, à imagem cinematográfica,

consideramos que, sob o ponto de vista de Merleau-Ponty, em suas

últimas obras, ela tem se tornado um tecido do mundo, uma intriga da

visibilidade do visível e do invisível. Anteriormente, na sua célebre

conferência “O cinema e a nova psicologia”, já havia a preocupação do

filósofo francês em ver uma convergência íntima entre a gestalt e

algumas correntes artísticas e filosóficas contemporâneas; o seu intuito

comum parece ser a de fazer-nos reaprender a ver o mundo

(CARBONE, 2011, p. 96).

Para Merleau-Ponty (1983, p. 117), essa convergência seria

viável porque, se a filosofia e o cinema se ajustam, se a reflexão e o

trabalho técnico derivam no mesmo sentido, constitui que o filósofo e o

cineasta possuem como afinidade certa maneira de ser, certa forma de

ver o mundo, que é aquela de uma geração.

Contudo, como explica Mauro Carbone (2011, p. 101), a análise

merleaupontiana a respeito da convergência aproximava-se da hipótese

da semelhança e da proximidade de gerações. Essa hipótese irá se alterar

algum tempo depois, reforçando seu caráter ontológico, nas notas

organizadas por Merleau-ponty para o curso intitulado L’ontologie

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cartésienne et l’ontologie d’aujourd’hui, que ele iria ministrar no

Collège de France, em 1961.

Esse curso almejava atribuir uma elaboração filosófica à

ontologia contemporânea, que até aquele momento, havia localizado a

sua expressão sobretudo na literatura. Nas artes, o autor acrescenta que o

relevante para a pintura e para o cinema, mais especificamente para a

ontologia do cinema é a questão do movimento nessa arte

cinematográfica. Em linhas gerais, as notas do curso prenunciavam os

pontos convergentes com aqueles da pintura, do cinema e da literatura

contemporâneas, emergindo, dessa maneira, uma nova ontologia

(RODRIGO, 2013a, p. 18).

O fio condutor para essas análises seria realmente a noção do

movimento no cinema e também em outras expressões artísticas, análise

que foi ampliada no livro “O olho e o espírito”. Assim diz Merleau-

Ponty (2004, p. 40-41): As fotografias de Marey, as análises cubistas, a

Noiva de Duchamp não se mexem: elas oferecem

um devaneio zenoniano sobre o movimento.

Vemos um corpo rígido como uma armadura que

faz funcionar suas articulações, ele está aqui e está

ali, magicamente, mas não vai daqui até ali. O

cinema oferece o movimento, mas de que

maneira? Será, como se pensa, copiando mais de

perto a mudança de lugar? Pode-se presumir que

não, pois a câmera lenta mostra um corpo

flutuando entre os objetos como uma alga, e que

não se move.73

Vemos aqui uma preocupação ontológica da imagem como

característica não mimética, fato que só será trabalhado de forma um

pouco mais intensa no resumo do curso intitulado Le monde sensible et

le monde de l’expression (1952-1953). Nesse curso, Merleau-Ponty

parece sinalizar uma futura preocupação como o estatuto ontológico do

filme. Em referência à questão da utilização do movimento no cinema, o

73 Na versão original: Les photographies de Marey, les analyses cubistes, la Mariée de

Duchamp ne bougent pas: elles donnent une rêverie zénonienne sur le mouvement. On

voit un corps rigide comme une armure qui fait jouer ses articulations, il est ici et il est

là, magiquement, mais il ne va pas d'ici à là. Le cinéma donne le mouvement, mais

comment? Est-ce, comme on croit, en copiant de plus près le changement de lieu? On

peut présumer que non, puisque le ralenti donne un corps flottant entre les objets comme

une algue, et qui ne se meut pas (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 78).

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autor a qualifica como a identidade daquilo que chamamos de a arte do

cinema (CARBONE, 2011, p. 112-113).

Merleau-Ponty elucida que o cinema concebido como modo de

fotografar os objetos em movimento ou como aspecto do movimento

revelou com este muito mais do que a modificação de lugar: uma atitude

nova de simbolizar os pensamentos, um movimento da representação,

sendo esta não mimética. A ideia de representação pode ser

compreendida como negação de uma intervenção de pensamento que

organizaria perante o espírito um quadro ou uma representação

tradicional do mundo (MERLEAU-PONTY, 1968 apud CARBONE,

2011, p. 115).

É relevante afirmar que o cinema expressa e opera um

pensamento encarnado diferente ao da fotografia, na medida em que sua

imagem é uma imagem movimento e não uma imagem meramente fixa.

O movimento é inerente à imagem cinematográfica que reenvia sempre

a um visível que a supera. Os elementos fílmicos, como o extracampo,

as operações e as técnicas de montagem, do movimento da câmera, do

enquadramento, constituem, talvez, a categoria estética mais importante

da imagem moderna e contemporânea. O cinema clássico, por exemplo,

esforça-se para fechar a imagem e evitar toda superexposição ou

superprodução do visível. Já no cinema moderno e contemporâneo, a

mudança entre visível e imagem torna-a todo um programa estético

(FAHLE, 2013, p. 26).

Por essa razão, há uma manifestação amplificada e renovada da

visão: uma consideração que recusa qualquer diferença entre o estatuto

de ser do vidente e do visível, de semelhante modo, como deste último e

do invisível, que por sua vez se apreenderá, seja como inteligível, seja

como memória ou como imaginação (RODRIGO, 2013a, p. 23-24).

Essa característica implica reconhecer, na imagem, sua refutação

mimética com o real, pois a visão é “Essa precessão do que é sobre o

que se vê e faz ver, do que se vê e faz ver sobre o que é [...]”74

(MERLEAU-PONTY, 2004, p. 44).

Destaque para a palavra precessão (précession) que o autor

Mauro Carbone (2011, p. 120-121) irá analisar com propriedade. Para

ele, o termo precessão é usado na obra “O olho e o espírito” e nos

manuscritos do próprio Merleau-Ponty que são ainda inéditos. Nesses

manuscritos, a palavra aparece diversas vezes ao lado da definição de

visão. Então, o seu interesse pela ideia de precessão reside no fato de

74 Na versão original: Cette précession de ce qui est sur ce qu'on voit et fait voir, de ce

qu'on voit et fait voir sur ce qui est (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 87).

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que ela delineia uma afinidade temporal entre os termos que reaproxima,

diferentemente das figuras topológicas como enjambement e

empiètement que foram postas ao lado de precessão e, depois, trocadas,

nos rascunhos de “O olho e o espírito”.

Lembramos que enjambement e empiètement são termos

utilizados por Merleau-Ponty, principalmente em “O visível e o

invisível”, para a análise da noção de quiasma e da questão da

reversibilidade entre a carne do mundo e a minha própria, entre vidente

e visível, tocante e tocado etc. Parece-nos que, na questão da imagem e

do visível, o filósofo francês preferirá a palavra “precessão”, por melhor

dimensionar os aspectos ontológicos, como ser, tempo, suscitados pelas

artes imagéticas, como pintura e, essencialmente, cinema.

A precessão detalha uma temporalidade demasiadamente singular

que se notabiliza pelo mover de anterioridade dos termos relacionados.

No manuscrito do Grand Résumé, de “O visível e o invisível”, Merleau-

Ponty procura esclarecer o significado da palavra precessão por meio de

seu uso na Astronomia, ou seja, influência gravitacional de um astro

exercida em torno de outro, um procedimento que indica uma afinidade

recíproca, mesmo que espacial, entre estes termos implicados

(CARBONE, 2011, p. 121-122).

É fundamentalmente devido à “reciprocidade de antecipação”

(réciprocité d'anticipation) que o autor se serve da noção de precessão

para mostrar as intersecções e as convergências entre “o que é” e “o que

se vê e o que faz ver”, expressões que estão intrínsecas à ideia

merleaupontiana de visão. Assim, há uma precessão do olhar em torno

dos objetos, tal como dos objetos em torno do olhar, ainda, uma

precessão do imaginário em torno do atual, uma vez que o imaginário

conduz e abastece nosso olhar, propiciando-nos ver o atual, da mesma

maneira como a precessão do atual em torno do imaginário

(CARBONE, 2011, p. 122).

A ideia da precessão recíproca admite uma profundidade

temporal realmente especial. Nesse sentido, diz Merleau-Ponty (2009a

p. 221): A ideia freudiana do inconsciente e do passado

como “indestrutíveis”, como “intemporais” =

eliminação da ideia comum do tempo como 'série

dos Erlebnisse': - Existe passado arquitetônico. cf.

Proust: Os verdadeiros espinheiros são os do

passado [...]. Esse “passado” pertence a um tempo

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mítico, ao tempo antes do tempo, à vida anterior,

“mais longínquo que a Índia e a China”.75

É a espessura desse tempo mítico que é fundada pela precessão

do que é sobre o que se vê e o que faz ver, do que se vê e do que faz ver

sobre o que é. Essa espécie de tempo imemorial, que não é cronológico,

age em nosso inconsciente de maneira não voluntária, por uma sorte de

amnésia ativa de profundezas carnais e de ideias sensíveis. Além disso,

é no tempo mítico que vivem as ideias que são ligadas intrinsecamente a

seu aspecto sensível, ou seja, às suas imagens visuais, por exemplo

(CARBONE, 2011, p. 124-125).

Explanando sobre essas características, Merleau-Ponty (2004, p.

23) diz o seguinte: O sorriso de um monarca morto há tantos anos, do

qual falava a Náusea, e que continua a se produzir

e a se reproduzir na superfície de uma tela, é

muito pouco dizer que está ali em imagem ou em

essência: ele próprio está ali no que teve de mais

vivo, assim que olho o quadro. O “instante do

mundo” que Cézanne queria pintar e que há muito

transcorreu, suas telas continuam a lançá-lo para

nós, e sua montanha Santa Vitória se faz e se refaz

de uma ponta a outra do mundo, de outro modo,

mas não menos energicamente que na rocha dura

acima de Aix.76

Para Carbone (2011, p. 216), é o tempo mítico que entra em ação

sobre as imagens cinematográficas, lembrando ainda que o cinema é

uma arte temporal por excelência. Entre o real e o imaginário, entre a

imagem fílmica e o ser no mundo, há uma precessão recíproca,

experiência singular, que Merleau-Ponty (2004, p.18) expõe acerca da

75 Na versão original: L'idée freudienne de l'inconsciente et du passé comme

“indestructibles”, comme “intemporels” = élimination de l'idée commune du temps

comme “série de Erlebnisse” - Il y a du passé architectonique. cf. Proust: les vraies

aubépines sont les aubépines du passé [...]. Ce “passé” appartient à un temps mythique,

au temps d'avant le temps, à la vie antérieure, “plus loin que l'Indie ete que la Chine”

(MERLEAU-PONTY, 2006a, p. 291-292). 76 Na versão original: Le sourire d'un monarque mort depuis tant d'années, dont parlait

la Nausée, et qui continue de se produire et de se reproduire à la surface d'une toile, c'est

trop peu de dire qu'il y est en image ou en essence: il y est lui-même en ce qu'il eut de

plus vivant, dès que je regarde le tableau. L'« instant du monde » que Cézanne voulait

peindre et qui est depuis longtemps passé, ses toiles continuent de nous le jeter, et sa

montagne Sainte-Victoire se fait et se refait d'un bout a l'autre du monde, autrement,

mais non moins énergiquement que dans la roche dure au-dessus d'Aix (MERLEAU-

PONTY, 1964, p. 35).

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arte pictórica: “Eu teria muita dificuldade de dizer onde está o quadro

que olho. Pois não o olho como se olha uma coisa, não o fixo em seu

lugar, meu olhar vagueia nele como nos nimbos do Ser, vejo segundo

ele ou com ele mais do que o vejo”.77

Aqui a ideia da suposta representação da imagem

cinematográfica, cara ao cinema clássico e colocada em dúvida pelo

cinema moderno e contemporâneo, é substituída pela noção, já citada,

de voyance. Essa noção marca um tipo de analogia ao visível na qual é

refutado o isolamento dos campos sensoriais e do logos, das dimensões

de atividade e de passividade. A voyance abriga a revelação do sensível

e de sua lógica própria, não de acordo com um abrigo passivo, mas,

contrariamente, como um fazer ou como a atividade de fazer ver isto

que se dá a ver por meio de nós.

Assim, o caráter ontológico da imagem cinematográfica pode ser

visto e pensado como figura de precessão recíproca, porque vemos

“segundo” ou “com” as imagens. O cinema torna manifesto todas as

nossas experiências sensoriais, já que a imagem e o visível orbitam nos

seres e no mundo, não como uma segunda coisa concernente ao real,

mas como uma figura que nos permite ver o real e que, ao mesmo

tempo, compartilha certa reversibilidade com ele.

4.2.1 Merleau-Ponty e Godard

Como vimos, brevemente, no primeiro capítulo, o cineasta-

pensador Jean-Luc Godard é uma das figuras mais relevantes dentro do

contexto da arte cinematográfica, influenciando diversos artistas com

seus filmes-pensamento. Aqui, iremos mostrar o seu diálogo mais

estreito com Merleau-Ponty, pois muito das ideias desse filósofo

tornam-se manifestas e visíveis por meio do cinema godardiano.

Para Michael Witt, Godard leu muito cedo o texto de Merleau-

Ponty sobre o cinema (O cinema e a nova psicologia), sendo que uma

boa parte de seus filmes pode ser vista como uma aplicação do trecho

que expõe que o cinema é essencialmente uma técnica consistente a

fazer ver as conexões e as relações entre as coisas e não somente as

coisas em si mesmas (WITT, 1999 apud KRISTENSEN, 2013, p. 160).

77 Na versão original: Je serais bien en peine de dire où est le tableau que je regarde. Car

je ne le regarde pas comme on regarde une chose, je ne le fixe pas en son lieu, mon

regard erre en lui comme dans les nimbes de l'Être, je vois selon ou avec lui plutôt que je

ne le vois (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 23).

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A obra de Godard constitui não somente uma contraprova de

algumas das teses ontológicas de Merleau-Ponty, mas também ajuda a

compreender o seu sentido ético e político. Mais precisamente, o

trabalho de Godard com temas a respeito da experiência, da indiferença,

da opressão, da violência e do trauma, em muitas de seus filmes, faz-

nos, por exemplo, compreender melhor as implicações da carne no

mundo da vida. A questão da possibilidade de o cinema ver as coisas e

os seres se coloca também como interrogação da perda, do prejuízo, de

tudo o que rasga a imagem (KRISTENSEN, 2014, p. 135).

Godard está interessado não somente em fazer aparecerem as

coisas (percepção), porém em fazer aparecer o fundo sobre o qual elas

aparecem, ou seja, a ontologia da imagem, a sua visibilidade. Podemos

dizer que Godard, em termos semelhantes aos de Paul Klee, um pintor

que, para Merleau-Ponty é uma referência particular, interroga-se sobre

o que pode ver no visível o invisível que se tem tornado visível. Nesse

sentido, as realidades da arte não reproduzem o visível com maior ou

menor temperamento, mas fazem visível uma visão secreta; o interior e

o exterior aparecem juntos, convivendo em sua poética, em uma

harmonia que parecem fundir-se todos os contrários.

O objetivo desse cineasta é ver as fronteiras, ou seja, tornar

visível o invisível, o imperceptível, como um anel que une o visível e o

invisível, iluminar a escuridão, ou escurecer a luz, negar as evidências

para submergir no interior das coisas. Para falar acerca do sentido último

da imagem, Godard, no filme Histoire(s) du cinéma, volta-se para

Maurice Blanchot, para quem a imagem é o interstício de um dentro e de

um fora, pois tenta adicionar várias imagens que são capazes de negar

qualquer coisa. O principal escopo de Godard é mostrar e esconder, ao

mesmo tempo, a graça, o milagre, o invisível, o impalpável.

Exemplo maior de sua teoria da imagem e do pensamento é esta

sua obra monumental: Histoire(s) du cinéma (1988-1998), espécie de

vídeo pessoal, obra audiovisual-pensamento, como um livro de

memórias. Godard, trabalhando sozinho em seu estúdio em Rolle, na

Suíça, revolve todas as suas ideias, seus croquis, seus projetos, suas

anotações para um curso de cinema em Montreal. Recolhe os recortes de

material impresso, os livros, as revistas, as fotos, os vídeos, os cadernos

de recordações, todo o material iconográfico e sonoro que ele foi

colecionando durante a vida (DUBOIS, 2004, p. 286).

Já na mesa de edição, variando as velocidades, o cineasta associa

lembranças, fragmentos de textos, amarra ideias, enfrenta suas

obsessões, combina, dissocia, recombina materiais audiovisuais, na

tentativa de fazer um balanço de sua paixão e de seu ódio pelo cinema.

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Godard estilhaça as infinitas combinações de imagens e de sons vindos

de toda a história do cinema e das artes. É uma extraordinária emoção

que nasce da galáxia de possíveis mesclas de uns com os outros. Nada

que possa buscar ou entender verbalmente é uma radical investida em

direção a um pensamento audiovisual pleno, construído com imagens,

sons e palavras que se associam em uma unidade indecomponível.

Com essa obra, chegamos ao ponto culminante daquela

contaminação e justaposição entre película, vídeo e escrita, algo como

um entrelaçamento imagético. Aqui, o trabalho de montagem de

imagens e de sons de diversos filmes transforma a percepção em

sensação. Godard colapsa todo o sentido do espaço discernível e

localizável na dimensão da temporalidade. Não se trata mais de falar em

um filme, nem de fazer falar um filme, nem ainda de falar de um filme.

Na verdade, trata-se de uma constatação e de uma imersão, de um “eis

aí”, de um “basta abrir os olhos”, deixando-se levar pelos ecos vindos de

toda parte, vibrando em harmonia com tudo o que se quer mostrar

(DUBOIS, 2004, p. 286).

Em Histoire(s) du cinéma, Godard realiza uma escrita da história

do cinema por meio de imagens e de sons próprios do cinema,

repetidamente, insistindo na irrelevância de que alguém possa contar a

história do cinema. São as próprias imagens que escrevem ou narram

sua própria história escondida. Essa espécie de rememoração das

imagens cinematográficas, no entanto, não imita a recordação humana,

ou seja, a memória da imagem não é a do indivíduo ou da coletividade,

mas de outras imagens (RANCIÈRE, 2013, p. 171).

Diante de tal perspectiva, Godard mergulha em uma espécie de

absoluto do ser-imagem, no qual o cinema, o vídeo, a película, a tela de

cinema, enquanto estados, maneiras de ser, pensar e agir, tornaram-se

sua segunda pele, seu segundo corpo. Histoire(s) du cinéma é um corpo

de imagens, um pensamento de imagens, uma escrita de imagens, um

universo de imagens. Logo, para o cineasta, o importante não é uma

imagem justa, é justo uma imagem (FAHLE, 2013, p. 26).

O cinema de Godard assume o mistério da linguagem paradoxal,

característica da poesia e da mística. No pensamento de Merleau-Ponty,

o enigma, o mistério, a maravilha são deixados intactos, isso porque,

precisamente, corpo e alma, o visível e o invisível, sentido e sem-

sentido, razão e sem-razão estão singularmente unidos, e essa união, que

alguém não pode senão experimentar, sentir ou constatar, escapa a toda

conceitualização pelo entendimento. O sagrado é o que se situa do outro

lado da imagem (BERGALA, 1999, p. 263-264).

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Assim, em Scénario du film “Passion” (1982), o próprio Godard,

sentado de costas para uma tela branca vazia, tenta, com sua mão,

apalpar o impalpável, auxiliar a passagem do invisível para o visível, da

mesma maneira como nas profundidades sombrias do mar de Prénom

Carmen (1982), sobre o qual se desenham linhas brancas fugazes de

onda que se dissolvem rapidamente no escuro abissal. Já sobre a luz que

habita no escuro, o cineasta se propõe a gravar o silêncio do mistério, o

imperceptível, acompanhado dos últimos quartetos de Beethoven.

Através do mar opaco do filme, podemos imaginar que, quando o

músico alemão compôs esses quartetos, já era completamente surdo,

sendo, então, uma música totalmente pensada, projetada já para outro

universo, o do inaudível. O recurso em Godard da fusão para a tela preta

ou mesmo a tela escura sobre um fundo de silêncio, constituem o

contraponto visual para a escura melancolia desses quartetos que o

cineasta tanto ama. Nesse filme, há um momento em que não se tem

mais necessidade de ver a imagem. A música pode nos ajudar; como

espectadores, tornamo-nos cegos, sem ver nada (GODARD, 1989, p.

101-102).

O olho atravessa, portanto, o umbral do ser para o não ser, para

ver aquilo que não se apresenta. Percebemos, em Merleau-Ponty, o ser,

que é precisamente o invisível do visível, o que está presente em todo

visível, mas que não é um visível, nem ao menos oculto, não pode ser

objeto de consciência mais que negativamente, isto é, indiretamente. Ele

não pode ser visto, mas pode ser interpretado, decifrado; não está

presente e não é apreensível mais do que em sua ausência. Para o ser,

não é outra coisa que a transcendência na imanência (CARBÓ, 2011, p.

150).

A tensão entre a matéria visível e a matéria fantasma tem por

finalidade mostrar o irrepresentável. É a matéria escura, a do mundo

invisível, a que faz referência, por exemplo, à voz em off de Hélas pour

moi (1993), em que alguém fala que havia nascido a matéria escura,

onipresente, mas invisível. O homem de cinema se oculta na pureza da

sua ausência. É, portanto, uma escuridão original, de orientação comum:

o Deus que se oculta. Deus além do ser, ou o Deus sem o ser. A margem

do lago, o limite entre a água e a terra, esse é o lugar à parte em que,

durante anos, Godard busca o sagrado que falta, que desvanece, que foi

retirado, o lugar onde o pensamento chega ao extremo, ao limite

(BERGALA, 1999, p, 284).

Neste sentido, Wittgenstein (1949 apud CARBÓ, 2011, p. 151),

para se referir ao inexplicável de que o mundo é, empregava o termo

“enigma” e, na mesma perspectiva, Merleau-Ponty (2009a, p. 50) dizia

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que a nossa relação com o mundo se situa na ordem do mistério

incompreensível. No entanto, para que o secreto seja secreto, deve ser

desvelado e, assim, por natureza, ele é algo que não podemos guardar.

Vemos, dessa maneira, a luz rasgando as nuvens, que em Je vous salue,

Marie (1985) mostra uma sabedoria oculta, que se preserva,

precisamente, manifestando-se.

Nesse mesmo filme, as nuvens, os raios do sol se pondo e o

ligeiro tremor do vento sobre as flores dos campos mostram menos, e

querem, ao mesmo tempo, revelar mais. Já em Nouvelle Vague (1990), o

cineasta veio ao encontro dos mistérios do mundo, filmando os galhos

das árvores, o movimento de uma onda e nuvens passageiras a esconder

o sol. Novamente em Hélas pour moi (1993), há uma cena em que o

rosto de uma mulher é escurecido pela subexposição da luz de fundo.

Aqui, o diálogo visível e invisível volta a estar presente por meio do

recurso habitual à tela preta, ou seja, a ausência de imagem, voltando

depois para a tela branca (AUMONT, 2004a, p. 56-57).

Notamos que há uma imbricação (empiètement) ou uma

transposição/transbordamento (enjambemet), ou mais precisamente uma

precessão recíproca (précession reciproque) entre o visível da imagem e

o seu invisível, entre atividade e passividade, isto é, a presença e

ausência de imagem ficam orbitando em torno do filme, participando o

próprio espectador deste momento, percebendo que a obra

cinematográfica manifesta o fundo da própria visibilidade dela e dele

também.

A visibilidade, portanto, mostra as relações entre imagens e não

imagens do filme e suas implicações para aquele que a vê. Essas

relações são mais fortemente mostradas no cinema contemporâneo

(cineastas como Abbas Kiarostami e Hou Hsiao-Hsien são exemplares),

como é o caso também do filme “Zidane: um retrato do século XXI”

(2006), dos diretores Douglas Gordon e Philippe Parreno, que iremos

analisar logo mais à frente.

Voltando a Godard, por meio do uso recorrente, em sua obra, da

tela preta, que ora mostra o aparecimento da imagem, ora exibe sua

ausência, a luz se apaga e a imagem faz sombras nas outras diante do

que não pode ser mostrado, mas essa escuridão, em vez de supor uma

limitação, ilumina o invisível do visível. Esses são principalmente, em

Helas pour moi, a apresentação e o desenvolvimento do problema da

percepção do mistério e da vista que não alcança a visão.

Godard também se aproxima do mistério no filme Je vous salue,

Marie. Com essa obra, o cineasta francês queria remontar até às raízes

mais mágicas, mais inefáveis da imagem, e voltar também quase a uma

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imagem metafísica da imagem: a imagem é uma manifestação, ou não é

imagem. E, apesar da violência suscitada por esse filme, ainda se mede

mal a diferenciação e a provocação do retorno à “representação” da

imagem e ao mistério que o filme propõe, se somente se lhe referir à

pintura e ao sagrado (AUMONT, 2004, p. 168-169).

A dinâmica da ausência e da presença, o paradoxo de mostrar a

figura do ausente, a evocação e a abertura do cerco hermético, ou seja,

simbólico, obrigam a liberar o olhar da opressão do próprio ato de ver.

Mergulho na noite do visível e, em seu reverso escuro, a luminescência

opaca ilumina desde seu fundo escuro. Esse cinema extremo, expressão

da violência originária, como procedimento violento de enunciação, é

um processo para expressar o outro, completamente (CARBÓ, 2011, p.

152-153).

O vazio irrepresentável quer um sacrifício, a subtração da

imagem até perder por completo a noção de imagem; há um

estremecimento da representação que surge do confronto entre dois

pontos de vista, semelhantes e diferentes ao mesmo tempo. Em Godard,

o visível ganha, com efeito, uma nova possibilidade, ou seja, a de

encontrar-se ali onde nada existe, um lugar do invisível.

São pertinentes as palavras deste cineasta francês: [...] eu sempre pensei que fazia filosofia, e que o

cinema é feito para fazer filosofia. Mas uma

filosofia mais interessante que aquela que se faz

nos livros, pois [no cinema] não precisamos

pensar, somos pensados. A tela pensa. Devemos

pois recolher [tal pensamento]. (...) Eis por que só

o cinema pode mostrar a história, se é que existe

uma. Basta olhá-la, pois [ela já] está filmada. Não

temos que escrever a história, pois somos escritos

por ela. O cinema é um traço. Ele registrou

imagens e isto não é uma re-elaboração literária

mais ou menos romanesca, ligada àquele que

escreve. É a tela que pensa, não o escriba. Há um

frase de São Paulo, tão importante para mim

quanto certas frases de Mao [Tse-tung], segundo a

qual “a imagem virá no dia da ressureição”. Antes

não havia imagem, mas apenas ensaios com os

milagres. O cinema é de algum modo a

ressureição do real (GODARD, 1989 apud

DUBOIS, 2004, p. 288).

A questão primordial do cinema em Godard não é nem da

representação (do mundo, ou do real, ou da sociedade ou do homem),

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nem da narração. É uma questão do pensamento sob certa forma do

visível. No conjunto de sua obra, Godard insiste que o meio

cinematográfico é uma forma de pensamento, ou melhor, uma forma que

pensa. Mas pensamento de quê? A qual conceito de pensamento o

cinema corresponde? De fato, com referência ao diálogo entre cinema e

pensamento, Godard se aproxima de Deleuze, no qual o pensamento não

representa, ou ilumina, ou reflete o significado de algo que é. Justamente

como a criação da filosofia, do conceito, da forma-cinema, ele cria um

mundo possível. Logo, criar um filme não é criar um mundo, mas a

possibilidade de um mundo, que, em seguida, a câmera irá atualizar

(GODARD; ISHACHPOUR, 2000, p. 38).

Ainda nessa esteira, é a noção de movimento que liga o cinema

ao pensamento. Na medida em que o cinema é uma forma que pensa, é

também uma busca, uma “oração” para o movimento, isto é, o cineasta,

efetuando um movimento de câmera, é como se estivesse em constante

oração (GODARD; ISHACHPOUR, 2000, p. 28). Pensamento e

espetáculo cinematográfico se encontram na dimensão ou no registro do

movimento, não suas identidades, mas suas profundas afinidades. Nesse

registro, que é temporal e não espacial, imagem e pensamento

comunicam-se, ou melhor, transformam-se, intercambiam-se,

metamorfoseam-se, um dentro do outro, incessantemente.

Na verdade, o que se move não é o pensamento como um todo.

Consequentemente, o que se pode tirar do movimento do pensamento é

que ele pode sempre acontecer, tomar lugar na imagem cinematográfica,

na medida em que o movimento é algo que não está representado, mas

está inserido no próprio tempo presente. É a qualidade de

presentificação, em vez de presença, de ter lugar no presente, na tela,

que também podemos buscar e procurar no cinema de Godard.

A obra cinematográfica de Godard é atravessada pela questão da

carne, como a possibilidade de compartilhar o mundo. No filme

JLG/JLG ‒ Autoportrait de décembre (1995), o autor reflete sobre o

sentido da produção artística no cinema e sobre a sua postura de cineasta

que pensa. Não se trata de uma autobiografia, porém de um autorretrato,

uma vez que se assiste, em cada sequência fílmica, a tópicos

relacionados à decisão de fazer um filme. Há uma sequência cujo tema

dominante é o da montagem, e a personagem de uma jovem cega surge

para ajudar Godard a efetuar uma montagem, e toda a cena se desenrola

em torno de uma mesa de edições. De repente, ouvimos uma longa

passagem do livro “O visível e o invisível”, de Merleau-Ponty (2009a, p.

137) que é aquela da mão direita que toca a esquerda e vice-versa.

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199

Esse trecho, ligeiramente modificado por Godard, provém de um

momento decisivo do capítulo sobre o entrelaçamento, o quiasma, em

que Merleau-Ponty começa a colocar o problema da presença do outrem

e de nosso acesso a outras paisagens que não são somente as nossas. O

fato de que nosso acesso à presença de outrem seja baseado sobre a

reversibilidade do sensível, faz com que a nossa a experiência do tocar,

torne-se também impessoal.

Dessa maneira, não há nenhum problema de alter ego, porque não

somos nós quem vê, nem aquele que vê, ambos somos habitados por

uma visibilidade anônima, uma visão em geral, sob a propriedade

primordial que pertence à carne, de estar aqui e agora, irradiar em todos

os lugares e sempre ser individual e ser como dimensão universal

(MERLEUA-PONTY, 2009a, p. 139). A universalidade do singular

perpassa todo o filme de Godard que é tão somente um retrato universal

de si mesmo.

Para Godard, na linha do pensamento de Merleau-Ponty, além da

mera percepção exterior, “a visão” conduz ao encontro do inesgotável,

daquilo que nunca nos será totalmente dado e, finalmente, do ponto

culminante dos horizontes soberanos que Merleau-Ponty denomina o

invisível. Se na percepção estava centrado o interesse inicial do filósofo

francês, o compromisso com a visão protagoniza a etapa final de seu

pensamento.

A visão é um invisível que sustenta enquanto se insinua nele, em

forma de algo como uma ausência. De acordo com Merleau-Ponty

(2004, p. 20), a pintura é a colocação em ação da redução

transcendental, pois ela coloca em suspenso o visível comum; ela rompe

nossa relação cotidiana com o mundo para mostrá-lo sob um novo dia.

A pintura (Klee), como o cinema (Godard, a partir de Klee), dá

existência visível ao que a visão profana crê invisível.

Notamos que, se a pintura está no cinema de Godard, não é

apenas pela retomada de certas imagens e representações, menos ainda,

unicamente, pela citação fetichista de certos quadros, nem de certos

pintores; porém ela está presente pela apropriação, pela renovação e

pelo desvio de problemáticas pictóricas. Talvez, ousar seja a palavra de

ordem, ousar, e não se deter na pintura, nem no cinema. Ousar

questionar, pensar, o mais profundamente, a própria relação da

representação com o visível.

Aqui, Godard embarcou em uma busca por transparência e

sombra, pois o cineasta não mostra nenhum interesse em representar

personagens ou situações bem definidas. Em vez disso, o seu olhar

transforma a sua atividade de ver, de volta sobre si mesmo, olhando não

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para o que parece tão visível, mas ao modo do invisível no visível. No

nível mais fundamental, os tableaux vivants existentes em várias de suas

obras conduzem sua investigação de aparência, sublinhando a confiança

compartilhada na iluminação de ambas as artes: pintura e o cinema.

Godard medita sobre a ontologia da imagem pintada e a imagem

cinematográfica, como objetos semelhantes (AUMONT, 2004, p. 225-

226).

Nas explicações do autor Jacques Aumont (2004, p. 218): O conjunto de tais operações poderia,

comodamente, ser designado com uma palavra: é

uma cinematização, um devir cinema da pintura.

“Cinematização” e não cinetização: devir cinema,

e não simplesmente um vago devir movimento.

Exatamente no sentido em que Eisenstein,

propunha chamar “cinematismo” a retroação

conceitural e analítica do cinema sobre as artes

tradicionais (sobretudo a pintura e a literatura).

A partir desse viés, o cineasta francês materializa o sentido da

personificação do olhar pictórico, permitindo, por exemplo, que as

figuras se movam e mudem de posição em frente da câmera. Essa

mobilidade, promulgada com uma série de entradas e saídas, aparições e

desaparecimentos das figuras humanas, recria, na forma

cinematográfica, os estágios intermediários do processo de criação

pictórica, isto é, suas hesitações invisíveis, bem como as suas escolhas

visíveis. Porém, mesmo mais importante, a “alteridade” dos tableaux

fílmicos em relação às pinturas encontra-se na diferença conceitual entre

a pintura e a sua encenação como evento performativo (DUBOIS, 2004,

p. 254-255).

Godard desejou toda a sua vida empregar o cinema para “dar a

ver”, iluminar a escuridão, ou escurecer a luz, negar as evidências para

mergulhar no coração das coisas. Como já visto, a tela em branco da

obra Scenário du film “Passion” ou o céu e os ramos de árvores em Je

vous salue, Marie são a expressão de uma presença na ausência; esses

filmes apresentam a presença como ausência, deserção, a retirada no que

esta presença se mantêm, a região da presença ausente que em outro

tempo foi chamada de sagrado: a invisibilidade de um deus apartado em

sua unicidade (BERGALA, 1999, p. 265-266).

O cineasta desenvolve, assim, suas preocupações metafísicas por

meio de assédios ao cerco hermético da noção de segredo, de secreto.

Ele, através dos olhos fechados da personagem Olga do filme Notre

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musique (2004), a jovem mártir do olhar angelical, faz da ideia do

contracampo a visão que escapa à própria vista. A última imagem de

Olga, que encerra o filme, é o primeiro plano dos seus olhos fechados.

No mesmo momento em que Olga, mulher de luz, entra em cena

correndo pelas ruas de Sarajevo, ouvimos uma voz em off que diz: “A

luz é o primeiro animal visível no visível” (GODARD, 2004 apud CARBÓ, 2011, 160). Depois disso, temos a tela preta, que é a imagem

no cinema que melhor reflete o mistério, o segredo do inescrutável. A

arte cinematográfica godardiana coloca a imagem no limite entre a

vidência, uma espécie de voyance merleaupontiana, e a cegueira, ou

seja, ver o invisível. Fechar os olhos, ou não fechar. Godard nos instrui à

visão interior.

“Ver o invisível esgota”, diz a voz do anjo no filme Hélas pour

moi. (GODARD, 1993 apud CARBÓ, 2011, 160). Vemos a tela em

branco, luminosa deserção do que está por ver em Scénario du film

“Passion”, os lençóis bem iluminados da cama vazia de Marie,

incandescência do invisível em Je vous salue, Marie, o rosto turvado

pela escuridão, a luz queimada do mistério em Hélas pour moi, o ícone

da Virgem de Cambrai em que somente vemos o nada em Notre

musique. Imagens do “silêncio primordial”, insaisissables,

imperceptíveis, inapreensíveis, nas palavras de Merleau-Ponty (2004, p.

44), a partir da expressão lapidar de Paul Klee.

Tanto para Merleau-Ponty como para Godard, essa imagem pode

ser compreendida como ícone, aquela que solicita o imaginário da

pintura, sendo uma forma de visível que comporta seu invisível. O ícone

é a imagem que associa ao visível seu invisível visível. É o duplo

interno das coisas que descendem nelas, é a visão que retornou, é a que a

reveste interiormente descendendo no visível. A visão, então, é ek-stase

(MERLEAU-PONTY, 1996, p. 174). O ícone é o lugar onde os olhares

se cruzam, o lugar do quiasma, de ver e de ser visto, do visível e do

invisível.

Podemos perceber que Merleau-Ponty (2004, p. 44) utiliza,

algumas vezes, o termo “ícone” para indicar o estatuto ontológico da

imagem na arte. O ícone como entrecruzamento do visível no invisível

equivale ao visível pictórico. A característica primordial do visível é ter

uma duplicação invisível, no sentido estrito, que a torna presente como

certa ausência. Trata-se de uma iconografia de visão entendida como a

ontologia do invisível no visível, contrariamente à ontologia de

representação.

Ver, portanto, é não ver; a verdade é aquela totalmente velada

(MERLEAU-PONTY, 1996, p. 268 e 278). É o mesmo sentido dos dois

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extremos aparentemente opostos da visão que, para Godard, é o

paradoxo da imagem como pegada do invisível, os dois milagres de

nossos olhos cegos. O que podemos dizer além das imagens? Ouvimos

no final do filme Je vous salue, Marie: “No amor não se vê nada: nem

olhar, nem traços, ou algo parecido. Não, nossos corações tremem

somente diante da luz” (GODARD, 1985 apud CARBÓ, 2011, p. 162).

4.2.2 As Imagens-Carne de “Zidane: um retrato do século XXI”

Como já temos visto, para Merleau-Ponty, a potencialidade do

cinema está, principalmente, em sua capacidade para direcionar o nosso

ser-no-mundo. Embora o cinema moderno e contemporâneo ou a arte

midiática não estivesem na mente do filósofo quando ele dissertou, em

algumas ocasiões, sobre o cinema, uma capacidade semelhante pode ser

encontrada em diversas obras audiovisuais de fins do século XX e

começo do XXI. Este aspecto torna-se manifesto em um filme de 2006,

denominado “Zidane: um retrato do século XXI” (Zidane, un portrait

du XXIe siècle), uma produção francesa de dois artistas contemporâneos,

o escocês Douglas Gordon e o francês Philippe Parreno. Em linhas

gerais, é um retrato muito singular do francês Zinédine Zidane, um

jogador de futebol, que se aposentou em 2006 (BEUGNET, 2007, p.

171).

As imagens dessa obra fílmica são a de uma partida de futebol de

90 minutos, desde o pontapé inicial até o apito final. Foi mostrado, de

uma maneira muito peculiar, um jogo realizado em 23 de abril de 2005,

na cidade de Madrid, no Estádio Santiago Bernabéu, entre as equipes do

Real Madrid e do Villareal pelo Campeonato Espanhol de Futebol.

Gordon e Parreno conseguiram reunir uma equipe com os melhores

cinegrafistas, com dezessete câmeras instaladas ao redor do campo,

combinando o formato digital de Alta Definição (HD) com o da película

de 35 milímetros, incluindo duas câmeras, portando uma extremamente

poderosa lente teleobjetiva. O resultado final tem pouco a ver com uma

transmissão habitual de uma partida de futebol (HACKLIN, 2012, p.

177).

Aparecendo na tela como um objeto estranho, o filme de Gordon

e Parreno trabalha precisamente na junção entre diversas texturas de

imagens. Não pode ser considerado um típico documentário, nem um

convencional retrato filmado de uma pessoa. Entre o experimental e o

popular (a partida de futebol), o filme é uma espécie de poema, ou uma

pintura audiovisual, uma obra total sem síntese, sem precedentes, um

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trabalho que abraça tudo o que a tecnologia de som e imagem tem para

oferecer para aquela data de produção.

É como um pensamento provocativo, uma profundamente

evocação corporal e carnal do mundo das imagens do final do século

XX e começo do XXI. Não é tanto a imagem de um sonho coletivo, mas

o sonho acordado de imagem, ou seja, o filme não é a representação de

um sonho, ou mesmo de uma realização ou materialização, mas a obra

cinematográfica sonhando-se, realizando-se, materializando-se,

tornando-se carne do mundo.

Os diretores comentaram que eles queriam aproximar-se do

jogador, para ficar sob sua pele, para seguir os seus passos no campo de

futebol, para entender o que é ser Zidane. Gordon e Parreno enfatizaram

que eles escolheram Zidane como protagonista deles, antes de começar

as filmagens, explicando que o jogador possuía certas qualidades, tais

como um rosto inacessível, que fez dele a escolha evidente e possível

para esse projeto audiovisual realmente inovador (HACKLIN, 2012, p.

179).

Podemos entender, ainda, que os diretores localizam a fonte de

seu projeto em sua experiência compartilhada de crescer com o futebol,

em um mundo cuja percepção era cada vez mais moldada pela televisão

nas décadas de 1970 a 1980. Vemos essas características nas primeiras

legendas baseadas na infância de Zidane e na experiência desse jogador

de assistir a futebol na TV. Todos esses fatos expressam uma mistura de

nostalgia e fascínio que conta tanto para a invocação do poder do filme

quanto para a força da expressão audiovisual, dando a ele um

surpreendentemente tom melancólico (BEUGNET, 2007, p. 172).

Para Colard (2006, p. 54), concentrando esse olhar múltiplo

unicamente em um jogador, Douglas Gordon e Philippe Parreno

operaram o que poderia ser chamado de uma pequena revolução

copernicana audiovisual, pois não são os jogadores que giram em torno

da bola, televisionados pela imagem de uma câmera onisciente e

onipotente, que abraça algo como uma “futesfera”, é pelo contrário, a

galáxia do estádio e sua maquinaria espetacular imagética que gira em

torno de um único jogador.

Está aqui uma fórmula fulgurante que ilumina nossa relação

contemporânea com as imagens, de modo que podemos afirmar que

vemos “segundo” ou “com” (selon ou avec) as imagens que povoam

nossa percepção, assim como o nosso imaginário. Essa concepção geral

da visão é uma tentativa de exprimir as relações do homem e do ser,

uma manifestação da visibilidade enquanto a minha carne e a carne do

mundo. Há uma imersão e inversão do olhar que revela nosso

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pertencimento ao visível, assim como o parentesco entre o visível e os

videntes. Nas imagens fílmicas, há manifestação da precessão recíproca

(précession reciproque) da visão e do visível (CARBONE, 2011, p. 14-

16).

Nesse sentido, as imagens de “Zidane” orbitam em torno dele, do

espectador, da multidão e do próprio mundo. Mesmo considerando que

Zidane seja um dos jogadores mais famosos e melhores do mundo

naquele momento no tempo, o filme não procura enfatizar ou investigar

o mistério de uma lenda, de um mito, embora, em termos estritamente

cinematográficos, evoque o mundo épico ocidental. De fato, por meio de

empréstimos sob a forma do “Homem Vitruviano” de Leonardo da

Vinci, o logotipo composto por letras do nome do jogador, no início e

no final do filme, anuncia um campo muito mais flexível e mais amplo

de exploração do futebol e do corpo cinematográfico do jogador de

futebol, como a evocação da cosmografia imagética de um microcosmo

em órbita e em movimentos perfeitos.

Os realizadores, assim, constroem um retrato que é, em primeiro

lugar, uma experiência física e sensorial expansiva, um filme que abre

um espaço para várias imbricações e entrelaçamentos, precessões

temporais entre imagens e que funciona como um corpo, como uma

escultura em movimento audiovisual que acena para o espectador. Uma

maneira de ver, de viver futebol, de viver cinema de modo diferente,

como se viesse de dentro, da carne das imagens, um ser-imagem, uma

imagem-carne. E, de fato, nós, os espectadores, deixamo-nos, somos

levados, somos atraídos à experiência da visibilidade. Há uma

sobrecarga sensorial, um evento de expansão da percepção em que o

campo externo, embora nunca visto, é sempre sentido, sensível e

recomposto através das alterações na intensidade que afetam o domínio

audiovisual.

O corpo é um visível que vê, um visível que se torna vidente no

cerne da visibilidade. Ele não se conta exclusivamente entre as coisas,

no tecido do mundo, porém as sustenta como extensões dele mesmo,

inscritas em um mesmo estofo. A essa característica Merleau-Ponty

(2009a, p. 231), como já analisamos, atribuiu o nome de “carne”. O

termo expressa a unidade essencial entre corpo e mundo, a irresolução

do ser sensível que eu sou e de todo o resto que se sente em mim. Essa

espécie de ausência de divisão, contudo, é também a fissão que faz

nascer a massa sensível do corpo na massa sensível do mundo.

Por essa razão, a ideia de quiasma enfatiza a reversibilidade

primordial entre corpo e mundo, recobrindo a diferença fenomenológica

entre o sentido de ser da interioridade e o sentido de ser da

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exterioridade, e rejeitando, ao mesmo tempo, considera-os como

apartados ou separáveis. Ambos os termos, carne e quiasma, auxiliam-

nos diante do filme. Ele parece trabalhar precisamente nesse

entrelaçamento, dessa precessão recíproca do visível com o invisível, de

uma presença que se afirma a partir de uma ausência.

Em “O visível e o invisível”, em meio a um movimento mais

radical de renúncia aos dualismos, Merleau-Ponty (2009a, p. 119-121)

se detém exatamente em um plano de comunhão sensível entre os

corpos, indivisos, ainda não sujeitos às diferenciações que os

enquadram. A carne é a espessura entre o que é visto e quem vê. Há uma

conexão em torno da carne que não está fundamentalmente vinculada à

sua visibilidade, mas, sim, tanto a visibilidade quanto a invisibilidade

configuram o entrelaçamento entre os seres. Os realizadores fazem eco a

essas afirmações quando filmam o jogador de futebol, em uma partida,

como um processo contínuo de interação entre corpos, em uma dinâmica

em que organismos e meio, ao invés de serem postulados como

autônomos e externos um ao outro, entrelaçam-se em um processo de

constituição recíproca.

Sair de si e entrar em si, entrar na imagem e sair dela, e vice-

versa: essa é a relação quiasmática que “Zidane” nos impõe. O vidente

não pode possuir o visível (que se afasta na sua transcendência) a tal

ponto em que ele mesmo pertence ao visível e está nele. Vidente e

visível, signo e sentido, interior e exterior, cada um desses termos,

frequentemente considerados como separados, só são eles mesmos

sendo o outro. O jogador Zidane não é um corpo que não diz “eu

penso”, mas “eu posso”. Entretanto, o “eu posso” ou “eu quero” só se

materializa agindo, realizando uma experiência, sendo essa própria

experiência. A experiência criadora da existência de uma falta, de uma

lacuna.

Merleau-Ponty enfatiza, a todo o instante, que é por transitividade

que vemos e tocamos e, ainda, vemo-nos e tocamo-nos. Os sentidos

atuam no quiasma: o olho tateia, as mãos observam, os olhos se

movimentam com o tato, o tato sustém pelos olhos nossa imobilidade e

mobilidade, compensando as duas coisas. Ou seja: o ponto principal é a

maneira como o corpo de Zidane absorve a exterioridade da experiência

e, concomitantemente, a razão reflexiva e a intencionalidade subjetiva,

criando uma composição que se nota ao efetivarem-se as transformações

que acontecem, não entre o exterior e o interior, mas na diluição dessa

diferença. O visível é um transcendente ao qual só é plausível

aproximar-se por uma experiência igualmente transcendente,

absolutamente fora de si, sem sair de si.

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O que existe na obra fílmica são as sensações e a consciência que

temos de as estarmos sentindo. “Zidane” nos propõe um olhar não mais

diante do mundo, mas mergulhado nele, próximo em excesso, a ponto

de, às vezes, não enxergarmos com clareza os contornos das imagens,

sempre preenchidos de margens imprecisas. O que se estabelece com o

espectador não é um mecanismo de assimilação ou de empatia para com

o jogador/personagem e para com as situações em que ele está

envolvido dentro de campo, tampouco é uma afinidade fundamentada

em um raciocínio intelectual ou na comunicação de um discurso.

“Zidane” é uma obra que espelha a percepção de mundo típica do

indivíduo contemporâneo: confusão e miscelânea sensorial própria a

tudo aquilo que vem ao mundo como evento completamente novo,

particular, diferente. O impulso que o filme nos causa é da ordem do

sonho, no qual pensamentos, sentimentos e sensações ainda não

ganharam forma dentro de um corpus bem coordenado e coerente. Os

diretores jamais abrem mão, seja da plasticidade da imagem, seja da

narrativa imagética, antes revelam nelas uma pujança afetiva, uma força

sensível, que parece brotar de maneira análoga ao processo pictórico,

pelo qual passam os corpos do pintor Francis Bacon e as paisagens de

Cézanne, por exemplo.

O empenho maior é a composição de uma “abertura-às-coisas

sem conceito”, na inquirição dos modos como a imagem e seus

múltiplos elementos podem apresentar-nos coisas, corpos, um campo

verde, pessoas, em uma palavra, o mundo, como caso particular de uma

capacidade ontológica mais dilatada. O que se percebe no filme é que

somente nos sentimos estranhos e experimentamos profundamente uma

sensação quando não a compreendemos, isto é, quando não a vestimos

com o quer que seja e nos admitimos submergir em todos os seus

admissíveis nomes e caminhos. Desse modo, o filme, com seu

hibridismo de imagens, opera uma espécie de transgressão da

representação pela sensação.

“Zidane” redescobre a potência radiante do cinema dos primeiros

tempos, ou seja, um cinema de atrações e espetacular, e faz reviver o

poder evocativo dessa arte de registro. O filme vibra a cada imagem

com a possibilidade de uma vinculação latente a qualquer momento. É

um regresso à origem, todavia não é uma tábula rasa, pois não pretende

negar o legado imagético de um século de cinema, pintura, literatura e

artes visuais. Merleau-Ponty (2004, p. 35) vê algo parecido na busca de

Cézanne por outro tipo de profundidade. Em suas palavras: É a sua exterioridade conhecida em seu

envoltório, e sua dependência mútua em sua

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autonomia. Da profundidade assim compreendida

não se pode mais dizer que é “terceira dimensão”.

Para começar, se houvesse alguma dimensão,

seria antes a primeira: só existem formas, planos

definidos se for estipulado a que distância de mim

se encontram suas diferentes partes. Mas uma

dimensão primeira e que contenha as outras não é

uma dimensão, ao menos no sentido ordinário de

uma certa relação segundo a qual se mede. A

profundidade assim compreendida é antes a

experiência da reversibilidade das dimensões, de

uma “localidade” global onde tudo é ao mesmo

tempo, cuja altura, largura e distância são

abstratas, de uma voluminosidade que exprimimos

numa palavra ao dizer que uma coisa está aí.78

Trabalhando em escala e textura, combinando uma multiplicidade

de ângulos, de planos e as qualidades visuais e sonoras, o filme toma a

questão do audiovisual de um extremo do espectro figural a outro, do

figurativo ao abstrato, de um ponto de vista de grandes angulares do

campo de jogo para ampliadas imagens que a tela torna um campo de

colorido “pixelizado”. A abertura dos créditos iniciais começa com

imagens de baixa resolução de todo o campo, filmado em uma tela de

TV e acompanhada pelo som de uma voz de um comentarista espanhol,

misturando-se com alguns acordes de uma guitarra elétrica. À medida

que a câmara chega progressivamente mais perto, a imagem se

transforma em uma composição abstrata, uma superfície tátil que lembra

os fios entrelaçados coloridos de tecido ou o efeito cintilante de uma

pintura do pontilhismo, ou seja, as imagens tornam-se pequenos pontos

ou manchas (BEUGNET, 2007, 173-174).

A música cresce lentamente, incorporando a trilha do filme: uma

atmosférica e melancólica melodia tocada pela banda de rock escocesa

“Mogwai”. A mudança para a visão de Alta Definição efetua uma súbita

78 Na versão original: C'est leur extériorité connue dans leur enveloppement et leur dé-

pendance mutuelle dans leur autonomie. De la profondeur ainsi comprise, on ne peut

plus dire qu'elle est “troisième dimension”. D'abord, si elle en était une, ce serait plutôt

la première: il n'y a de formes, de plans définis que si l'on stipule à quelle distance de

moi se trouvent leurs différentes parties. Mais une dimension première et qui contient les

autres n'est pas une dimension, du moins au sens ordinaire d'un certain rapport selon

lequel on mesure. La profon-deur ainsi comprise est plutôt l'expérience de la réversibilité

des di-mensions, d'une “localité” globale où tout est à la fois, dont hau-teur, largeur et

distance sont abstraites, d'une voluminosité qu'on exprime d'un mot en disant qu'une

chose est là (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 65).

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mudança de regime ou camada visual, a mudança de uma forma de

“hapticidade” (a baixa resolução e a sensação granulada) para outra

(claras e detalhada com uma fina textura). A trilha sonora sofre uma

mudança semelhante, pois, de repente, o ruído da multidão

abruptamente estoura com um imediatismo forte. No entanto, isso não é

a passagem da TV para o cinema, mas a entrada na espessura da

imagem, dando-nos um sonhar acordado, uma manifestação cintilar. A

partir de então, o filme alternará de outro regime visual para outro,

combinando planos de imagens de transmissão televisiva com imagens

capturadas diretamente em campo, pelas dezessete câmeras, e dando

uma crescente preeminência às imagens cinematográficas, a medida que

o tempo passa.

No meio do filme, isto é, no segundo tempo do jogo, Gordon e

Parreno inserem uma montagem de cinejornais: imagens com

intertítulos, extraídas de notícias de televisão, transmissões para formar

uma evocação caleidoscópica de eventos que ocorreram no mesmo dia

da partida. Podemos ver desde fotos de inundações em Montenegro a

imagens de Elián González, jornalista de uma TV cubana, do anúncio de

venda de uma nave espacial do filme “Guerras nas Estrelas” no E-bay à

notícia da gravação de ondas de plasma pela sonda espacial Voyager, e a

descrição de um ataque terrorista em Najaf, no Iraque, que inclui uma

rápida imagem de um transeunte que ostenta uma camiseta do Real

Madrid, com o nome de Zidane.

“Zidane” consiste, por esse viés, em diversos sentidos de tempo.

Em primeiro lugar, há o tempo da percepção. Do ponto de vista de

Merleau-Ponty, é o tempo daquele que percebe, que conecta tanto o

passado quanto futuro. No cinema, como em outras artes temporais, a

memória do espectador é desafiada, uma vez que a obra de arte se

desenvolve em uma temporalidade. Dessa maneira, o significado das

imagens é dependente das imagens que a precedem, e a sucessão delas

cria uma nova realidade. Contudo essa totalidade não é simplesmente

uma soma dos elementos, porque o que conta em um filme não é

simplesmente a sua capacidade de “gravar” o tempo; o significado do

filme é incorporado também ao seu ritmo.

O filme sobrepõe uma variedade de tendências e de camadas

temporais: a triste evocação do século XX, por meio da televisão com

antigas transmissões, combinando com um eixo futurista de

interconexões globais e de imagens em alta definição, bem como o

enquadramento preciso do jogo capturado em “tempo real” e a

apaixonante, flutuante imbricação do filme como evento presente. Em

vez de construir uma convencional narrativa, com o drama do jogo

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dominado pelo placar, pelo gol, pela ação, Gordon e Parreno usam o

ângulo múltiplo do material audiovisual, como matéria esculpida,

literalmente moldando o filme como um corpo de mudança de texturas e

intensidades, cheio de esquisitices, de buracos e de regiões obscuras

(COLARD, 2006, p. 54).

Concentrar-se em um único jogador é transformar o jogo em um

acontecimento incomum, um evento que está cheio de calmarias,

momentos de esperança, quebrado por mudanças abruptas de ritmo e de

tempo. O poder afetivo do filme é gerado menos pelo drama do jogo

como uma sequência de eventos do que pelo drama da transformação do

material imagético do filme. A obra é construída sobre uma série de

alternâncias, mudanças de direção dentro dos planos, mudanças na

escala e no foco, em ângulos e pontos de vista reunidos através da

montagem e da edição virtuosa a que correspondem diversos planos da

mesma ação em combinações rítmicas e tonais.

Essas alternâncias, como em uma composição musical, são

entrelaçadas com ou sem as flutuações da trilha sonora. O mais

impressionante é a passagem de composições sem forma ou quase

abstratas para percepções nítidas e cristalinas, por um corte seco, de um

extremo close-up para uma visão de grande-angular, do rugido

incipiente da multidão para o som de uma voz isolada ou da respiração

de Zidane, ou ele pedindo a bola para chutar. Operado pelo “olho

telelente” e a trilha sonora, o desaparecimento e o reaparecimento da

figura, aparentemente sob a dissolução de um feixe concentrado de

milhares de olhares, ou fundindo-se com o fundo, com o fervilhante

corpo coletivo da multidão, geram uma sensação de euforia em vez de

ameaça.

É a emoção de um potencial infinito para o quiasma, para a

visibilidade, que é encapsulado nestas flutuações, no foco e na mixagem

de som, e que é ecoado na descrição de Zidane de sua percepção, que

pode ser também a nossa, de seu ambiente quando está no campo de

jogo, dada em uma breve série de legendas e de intertítulos. Para

Zidane, quando você está profundamente dentro do jogo, realmente não

ouve a multidão. Ao mesmo tempo, você pode quase escolher o que

quer ouvir.

Os realizadores fazem uso acentuado das lentes teleobjetivas,

alternando o foco ampliado, close-up, ora para o jogador, ora para

multidão. O filme inclui estranhamente inserções pungentes de detalhes

visuais e sonoros, como os planos repetidos dos pés do jogador, as

pontas de suas chuteiras roçando a grama, uma mão suspensa em pleno

ar, o som de um suspiro. Esse dispositivo dá uma estranha sensação de

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intimidade para certas cenas, esvaindo a sensação de profundidade para

o ponto no qual sentimos o olhar da câmera literalmente tocar o corpo

do jogador (BEUGNET, 2007, p. 174).

De fato, existem vários close-up do pescoço, do rosto e dos pés

de Zidane. Um close-up, o plano de detalhe, contém uma oposição

binária de proximidade e distância, bem como a noção de amplidão e

pequenez. Tradicionalmente, ao close-up tem sido conectada a ideia de

atraso: ele interrompe ou retarda a narração e a ação. Ele também

oferece um detalhe, de preferência o rosto de um ator, para o espectador

perceber algum ponto específico a que se queira dar ênfase. O close-up

também força o espectador a perder uma visão geral da situação, e esse

aspecto sugere uma proximidade com a abordagem merleaupontiana,

que sublinha a importância de perder a posição de um observador de

fora.

A partir da perspectiva fenomenológica, o close-up reivindica

para o corpo os sentidos do tato e do cheiro, especialmente quando a

câmera focaliza diferentes texturas, tais como a grama do campo. Em

outras palavras, há cenas em que o filme apresenta certa visão háptica.

Laura Marks (2000, p. 162) utiliza a distinção entre visão háptica e visão

óptica, mas hapticidade e opticidade não estão meramente nos olhos do

espectador. Pelo contrário, a obra de arte também pode oferecer imagens

táteis ou ópticas. Muitas vezes, as imagens hápticas não revelam uma

figura singular e identificável, porém mais ou menos impressões

ambivalentes. As imagens podem encorajar uma relação física entre o

espectador e a própria imagem.

Em “Zidane”, o entrelaçamento das imagens consiste de um ritmo

de visões hápticas e ópticas. A obra nega uma perspectiva em que o jogo

seria visto como um todo, dando apenas lampejos da partida. Podemos

sublinhar ainda que a visão háptica supera a distância, já que ela

incentiva um contato com o tato e reversível com o corpo do jogador,

tanto nas imagens como nos espectadores.

Os close-ups de “Zidane” podem ser vistos como uma visão

háptica, mas os planos fechadíssimos e a visão háptica não são

necessariamente idênticos. Há também outros tipos de planos

cinematográficos que podem trazer a visão háptica, como quando,

ocasionalmente, os close-ups ficam em paralelo com os jogadores e as

notícias e os comerciais virtualmente digitalizados circundam o campo

de jogo. Efeitos similares são alcançados quando a câmara filma o jogo

através de um monitor de televisão, ou nos momentos em que a imagem

está fora de foco e, assim, o jogador, de repente, rompe em pedaços,

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girando as imagens fílmicas em uma miscelânea irreconhecível de pixels

(HACKLIN, 2013, p. 188).

Surpreendentemente, no extremo close-up no rosto, a gravação de

um minuto de movimentos faciais, o derramando de suor e, nos

momentos de ação, em particular, a forma como a telelente esmaga a

figura no fundo recordam o mundo dos filmes de western e, em

particular, os efeitos imagéticos destacados pelo cineasta Sergio Leone.

Nas acelerações brutais da velocidade, o tumulto de corpos se

acotovelando, o som de golpes, encontramos o eco repentino de

cavalgadas e tiroteios, de grupos de cavalos e cascos martelando o chão.

Além disso, a presença carismática de Zidane, com uma a mistura de

gentileza e temperamento explosivo, responsáveis por suas reações

imprevisíveis, lembra, às vezes, as figuras heroicas ambivalentes dos

filmes norte-americanos de caubóis.

O filme finaliza com Zidane recebendo um cartão vermelho

depois de uma briga ou discussão com o jogador do time adversário e

sendo expulso de campo. É um presságio curioso para o evento que

marcou a partida final de Copa do Mundo de 2006, em que também

Zidane foi expulso depois de agredir um jogador italiano com uma

cabeçada.

Podemos dizer que, no filme, há um quiasma que se torna visível

por meio da precessão recíproca que afeta e conecta os diversos

componentes/corpos que se encontram por meio do campo de

intensidade dessa obra: espectador do filme, jogador, time, multidão

dentro do estádio. Apesar de, ou graças ao seu jogo de escalas e texturas

e seu formato montagem, o filme não efetua uma fragmentação do

corpo, mas constrói novos distintivos agenciamentos que combinam o

corpo como carne, a imagem-carne (individual e coletiva, na tela e fora

da tela), e como uma entidade abstrata, espectador, jogador, equipe e

multidão são conectados como construções culturais, sociais e

históricas.

“Zidane” destaca sempre um momento em que nosso próprio

olhar, nosso desejo de olhar, é espelhado para voltar a nós. O filme é

capaz desse movimento, em que nós, como espectadores, mostramos

nosso próprio voyeurismo, nossos próprios desejos e esperanças que dão

suporte ao filme. De fato, o filme é uma inscrição do nosso olhar: a

tecnologia é um adjunto ao nosso desejo de ver, mas ela também se

volta contra nós, fazendo-nos e tornando-nos hesitantes em perguntar se

podemos encontrar sinais de nós mesmos no campo de futebol, saber se

o nosso desejo de alguma forma muda e afeta o que vemos (BEUGNET,

2007, p. 174-175).

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Em última análise, essa obra cinematográfica se abre a um espaço

onde o pensamento dual (dentro/fora, corpo subjetivo/mundo objetivo,

significado abstrato/experiência concreta) deixa de fazer sentido. Para a

duração do filme, pelo menos, o espectador pode estar no passado e no

presente, atuar no campo de jogo como uma lenda ou em equipe; ele se

torna imagem, câmera, multidão, mundo ou, simplesmente, podemos

deixá-lo ser imerso no intenso campo sensorial do filme.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

As luzes diminuem ou apagam-se. Portas, cortinas, passos e

vozes, como pálpebras pesadas, fecham-se ou abafam-se, garantindo um

silêncio parcial das sombras do mundo, quase abandonado no exterior

de uma sala de projeção. Há uma erupção de luzes e de brilhos que

surgem na tela. Poltronas ou sofás geralmente confortáveis abrigam

certo repouso do corpo, porém não permitindo um total desativamento

do polo motor da ação. Contemplamos as imagens e somos, ao mesmo

tempo, contemplados por elas, que nos conduzem ao enigma do

possível. Entre a tela de imagens e o mundo, há uma reciprocidade. O

resultado dessa experiência é uma abertura para a percepção. O

espectador, então, pode-se entregar às impressões visuais, auditivas e

sinestésicas evocadas a partir dela. Impressões que lhe atravessam e

constituem o ser.

As artes, em suas múltiplas manifestações, e, especialmente, o

cinema, têm esse poder. A manifestação artística não surge como um

exame ou uma avaliação do mundo, porém como um procedimento

dinâmico e duradouro de criação, de recriação e de experimentação de

um mundo. Um processo que sugere uma coincidência de presença e

ausência, visibilidade e invisibilidade, perfeição e inacabamento,

totalidade e abertura. Uma experiência irreduzível à generalização,

experiência que, precisamente, por localizar-se além de nossas

possibilidades, estimula a pensar em uma unidade claramente paradoxal

entre o provisório e o transitório por natureza e o extemporâneo, sempre

análogo a si mesmo.

Esse talvez seja o compromisso que as artes levam consigo no

horizonte, e o cinema veio intensificar todos esses aspectos. Os autores

que trabalhamos no primeiro capítulo preocupavam-se em dizê-lo. De

maneira geral, para André Bazin, Amedee Ayfre, Jean Mitry e Rudolf

Arnheim, a imagem cinematográfica, intensificando as rupturas

apresentadas pela fotografia, dissolvia todas as incoerências da pintura,

do teatro e da literatura e assegurava, enfim, uma reprodução objetiva,

mecânica, autêntica da realidade a ponto de embaraçar-se com ela. Essa

relação singular, única, com o mundo poderia ser reverenciada, seguida

e cultivada. A partir dos irmãos Lumière, curiosamente, a permanente

inovação do mundo, cerne de todas as artes, ganhou em intensidade e,

ao mesmo tempo, banalizou-se.

Vimos que, em 1945, o filósofo Merleau-Ponty, na sua

conferência “O cinema e a nova psicologia”, entendia a imagem

cinematográfica enquanto uma gestalt, uma forma temporal, um todo

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sem síntese, evidenciando a ligação natural entre o interior e o exterior,

e assegurando o olhar como composição de um sentido anterior à

inteligência. É nesta esteira que o filósofo mostrará as afinidades entre a

sétima arte e a psicologia da forma, colocando o cinema em sua crítica à

concepção clássica da percepção.

Daí a busca por uma noção de ser na existência fenomênica do

mundo, que não faz referência puramente a algo anterior à imagem, mas

que descreve e narra, e coloca em movimento, ao mesmo tempo, em um

ir e vir característico de nossa imaginação. O cinema, sob essa ótica,

pode ser visto como uma espécie de animação, abalizado pela natureza

flexível de seus elementos e procedimentos, em que corpos,

personagens, objetos, emoções e dramas estão continuamente em

formação, em um nascimento ininterrupto da matéria, da forma, do

sentido.

Nas suas primeiras obras, como “Fenomenologia da percepção”,

com as noções de corpo, visão e comportamento, Merleau-Ponty nos

auxilia a refletir acerca da arte fílmica como um movimento que não se

restringe, de maneira alguma, ao almejar artístico de um autor, nem ao

resultado obtido sobre o espectador, nem, ainda menos, a uma carga

intrínseca a obra, fora de contexto. Vemos um cinema capaz de

circunscrever a essência dos corpos, de fazer expressar o espaço e a luz

que lá estão, de capturar o olhar das coisas, dos objetos, dos seres, em

um exercício da faculdade de sentir que nos proporciona modos

diferenciados e imprevisíveis de resistirmos ao mundo.

Ao amplificarmos esse viés, a visão acarretará essencialmente a

possibilidade de se ver e de ser visto. Visível e móvel, o corpo computa-

se entre as coisas, como uma delas, aprisionado ao tecido do mundo.

Porém, exatamente porque vê e se move, o corpo conserva as coisas ao

seu redor, como uma espécie de anexo ou prolongamento. É isso que

induzirá o filósofo a dizer, posteriormente, não ser mais admissível

pensar de acordo com a separação entre sujeito e objeto.

Consequentemente, Merleau-Ponty buscará, na noção de carne e

de quiasma, de traço propriamente ontológico, uma maneira de

nomearmos em um movimento próprio, o ser aparentemente paradoxal

de nosso corpo como ser de “duas faces”, uma coisa entre as coisas e

aquilo que as vê e as toca (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 133). A carne

designa, ao mesmo tempo, a natureza reversível do corpo (visível e

vidente, corpo fenomenal e corpo objetivo, dentro e fora) e do mundo

(superfície e profundeza, visível e invisível, fato e “essência carnal”,

fenômeno e “ser de latência”, doação e contração, luz e trevas) e a

unidade fundamental entre corpo e mundo.

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A noção de carne e sua estrutura quiasmática de reversibilidade

estabelece um equilíbrio entre a intimidade e alteridade, bem como entre

a identidade e a diferença e entre a unidade e a pluralidade. O que

Merleau-Ponty mostra é ainda maior do que o equilíbrio entre elas, algo

que estava intrínseco no diálogo entre sujeito e objeto na

“Fenomenologia da percepção”. Esse filósofo pretende, desse modo,

integrar também a carne dentro de sua ênfase sobre a criação do sentido

e do primado tanto da percepção, quanto da fenomenologia.

Já em “O olho e o espírito”, como examinamos, Merleau-Ponty

discute como a pintura possui um acesso privilegiado à reversibilidade

entre vidente e visível. Nesse sentido, o quiasma entre vidente e visível

institui uma reversibilidade na carne do mundo, denominada, nesse caso,

de visibilidade. Como visto, essa proliferação de reversibilidades ecoa-

se em “O visível e o invisível”, tal como um componente essencial da

carne, como o local de infinitas relações quiasmáticas, capaz de

estruturar uma cabal ontologia.

Nessa imersão no sensível, nesse movimento que aponta para

uma nova forma de compreender o ser, o mundo e a sua visibilidade,

Merleau-Ponty tracejou uma reaproximação com o cinema que não pôde

realizar-se cabalmente. Em algumas de suas últimas notas de trabalho, é

possível identificar a intenção do filósofo por uma investida filosófica

do cinema, não mais para esclarecer um pensamento pré-elaborado, o

cinema, agora, como a promoção da presença viva de nossa especular

carnalidade, uma forma particular de expressar o ser, uma estética que

se situa dentro de intenso diálogo do visível e do invisível.

As notas e os últimos ensaios do filósofo, como “O olho e o

espírito” e “O visível e o invisível” parecem entrever, ou pelo menos

inferir, as orientações por meio das quais a última fase do pensamento

de Merleau-Ponty teria podido desenvolver uma consideração

ontológica do cinema, realçando, mormente, seu caráter não mimético,

como uma apresentação de um inapresentável. Essa reaproximação

abarca a questão da visão, como existência visual, como a

reversibilidade da carne, isto é: “essa precessão do que é sobre o que se

vê e faz ver, do que se vê e faz ver sobre o que é” como “encontro,

como numa encruzilhada, de todos os aspectos do ser” (MERLEAU-

PONTY, 2004, p. 44).

Desse modo, a questão da reprodução objetiva ou subjetiva do

mundo que tanto interrompeu um novo pensamento da imagem e do

imaginário é totalmente revista, restituindo a visão sua força basilar de

manifestar mais do que ela própria. Para Merleau-Ponty, a visão é a

transformação das coisas mesmas em visão, visibilidade e também

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vidência (voyance). Ser ou não ser visto são atributos das coisas, de seu

tornar-se presente. O que se pressupõe é a compreensão do filme não

como pura representação.

Ao colocar na tela um campo de árvores e flores, o cineasta não

as copia ou as reproduz. É impossível afastar sujeito de objeto, o ver do

que é visto, ambos compõem-se nessa relação de equivalência. Ao

mesmo tempo em que a paisagem sugere e o cineasta a filma, sua obra

compõe-se, buscando, nessa paisagem, o que falta à imagem para

alcançar sua integral expressão. Não temos aqui uma relação de causa e

efeito, assim também como não podemos considerar o cinema como

simples fabricação segundo a vontade do artista.

O cinema se constitui uma visibilidade, uma doação em carne

imprescindível para expressar o ser, capaz de pensar sobre nossa

amalgamação com o mundo e as coisas. Temos aqui um cinema que se

estabelece pela carnalidade e que se dirige a seu espectador de forma

direta e constante, procurando um ornamento de sensorialidade que dê a

ele atributos para realizar-se como discurso. O filme, então, cria um

tempo outro, em um fluxo de imagens sonoras e visuais que se atrelam

ou se interrompem, corpos que se avizinham e se distanciam, aparecem

e desaparecem. Além do mais, há o insurgir da imagem envolta em um

vai e vem das coisas à forma, do fato ao sentido, e vice-versa.

Essa característica faz ver um cinema que coloca em movimento,

por meio de todos os procedimentos e estratégias disponíveis, sem

hierarquizá-los, sem fazer diferença entre os termos e as naturezas, todos

imbricados e reversíveis, uma espécie de perseguição ou regresso a algo

mais elementar. Sendo assim, a profundidade, a cor, a forma, o traço, as

linhas, os corpos, os personagens, a intriga, o olhar são galhos do ser e

estão em precessão recíproca uns com os outros. Se cada um deles traz

consigo toda a folhagem, não existem questões apartadas, nem caminhos

ou estéticas categoricamente opostas, nem apostas parciais ou opções

sem recuo. (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 45).

Ver o cinema como ontologia do ser não é afirmar simplesmente

o primado da sensibilidade em detrimento das funções narrativas ou

discursivas do filme. Constitui-se uma maneira diferente de olhar para o

mundo, acolhendo uma demanda que vem dos filmes, uma lógica em

espiral, em que reconhecemos o aquém a que o cinema remete, uma

região de seres densos, compactos, interdependentes, abertos e

despedaçados, e direcionar sua procedência para esse informe, no

indeterminado dos traços, das forças, dos corpos, na produção de outra

temporalidade, de outra fruição.

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Dessa maneira, Merleau-Ponty nos ajuda a compreender o cinema

moderno e também o contemporâneo, quando revela que a sobreposição

que oculta e torna virtual a visibilidade das coisas associa-se à

manifestação visível no mundo. Em outras palavras, as técnicas

cinematográficas têm, como eficácia a ser explorada, a solicitação de

uma abertura às coisas sem conceito: a intensidade de um rosto que um

close-up enfatiza, o plano-sequência que expressa a possibilidade sem

par de sentido, o sussurro indeciso dos movimentos, dos olhares, das

cores, dos cenários, tudo está conectado, interdependente, distintos,

porém simultâneos.

Um pintor, assim como um cineasta, faz regressar à luz aquilo

que dela desabrocha e, por isso, a visão do pintor é um nascimento

contínuo. As imagens de “Zidane: um retrato do século XXI” parecem

mesmo interrogar as coisas que dão acesso à visibilidade e se mostram

como existentes. Essa interrogação se faz na imagem, por meio dela, e

se dilata em nós espectadores, como uma celebração da origem

emblemática e febril das coisas em nosso corpo, que supõe, em

Merleau-Ponty, uma unidade ontológica e não uma rachadura entre ver e

pensar.

Não é sem motivo que, ao ponderar a respeito da pintura de

Cézanne, Merleau-Ponty defenderia a incoerência dessa dissensão e o

diálogo entre as artes. Para o filósofo, a primeira das pinturas vai até o

profundo do porvir, cada obra de arte cria, antecipadamente, todas as

outras. Portanto, para um cineasta como Jean-Luc Godard, o mundo

estará sempre por ser filmado, acabará sem ter sido findado. O cinema,

como a pintura, caminha por desvios, transgressões, imbricações e

quiasmas, o que não significa dizer que o pintor ou o cineasta não

saibam o que querem, “mas que o que eles querem está aquém dos

objetivos e dos meios, e comanda do alto toda a nossa atividade útil”

(MERLEAU-PONTY, 2004, p. 45).

Nesse sentido, as imagens godardianas incomodam nosso olhar

com suas arestas, reivindicando-nos uma presença absoluta, em virtude

de um sentido de configuração cuja ideia não nos é dada pelo “sentido

teorético”. É um mundo curioso que se vê instituído, renovado, ainda

não domesticado por nenhuma cultura e que nos pede para criar,

novamente, a cultura. Por isso, seus filmes dão a impressão da natureza

em origem, sua presença iminente.

Ao buscar um reencontro com um contato mais simples entre as

formas, as cores, os planos, os movimentos e o que propagam para nós,

ao desconstruir essas camadas de significados para poder reconstituí-las

na própria imagem, em seu fluxo e refluxo, Godard faz da experiência

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cinematográfica uma experiência criadora que nos admite pensar não o

que já foi pensado, mas o que se esconde encoberto ao pensado. É o

impensado encarnado de Merleau-Ponty, fundo inexaurível do sensível.

O filme “Zidane: um retrato do século XXI” faz vir ao ser aquilo

que sem ele nos privaria de experimentá-lo, ou seja, o mundo de

imagens em profusão. Ele tateia ao redor de uma finalidade de exprimir

algo para o qual não possuímos um arquétipo, pois é o próprio filme, em

ato, que acende a via de acesso para o contato pelo qual é possível haver

experiência. Se “o Ser é aquilo que exige de nós criação para que dela

tenhamos experiência” (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 187), o trabalho

do cineasta é justamente captar as imagens como criação autônoma.

O cinema, portanto, é uma arte que nos faz ver ao invés de

explicar, em uma relação excepcional com a realidade, que atravessa

noções como mistério, ambiguidade, revelação e sentimento. Ao longo

desse processo, a imagem cinematográfica necessita ser vista como uma

não redução da realidade, movimentando-se cada vez mais próxima

dela, para sempre dependente dela. Os cineastas podem estar atentos

para a dimensão ontológica do cinema por meio, talvez, de uma

elaboração sempre situada e contextual, para além dos estilos, estéticas e

teorias.

Contudo o mais importante aqui é a compreensão de que um

filme, antes do que quer que seja, propõe-nos uma formulação

ontológica. Essa compreensão, que pode sobrepujar muitos dos dilemas

nos quais várias autores e cineastas se veem enredados, diz respeito

também a nós espectadores, porque a relação ontológica entre a imagem

e a realidade não se constitui em si mesma e se assegura no processo de

se oferecer, sem predeterminações.

Ao assistirmos às imagens fílmicas, algumas delas nos apanham,

arrastam-nos, como em um furacão, para algo que insiste como um

evento em suspensão. Elas simplesmente nos invadem. Pensamos de

dentro delas, como carne, e não apenas com elas. O filme se pensa em

mim ao expressar em mim com imagens para cujo sentido não tenho

modelos. Nisso, alguns cineastas elaboram narrativas para além das

causas ou dos efeitos, sem ênfase psicológica, moral ou ideológica, com

atenção diferenciada aos espaços, à caracterização dos personagens, à

acentuação hiperbólica da materialidade dos corpos, à relação carnal e

quiasmática entre estes e a paisagem e o cenário.

Podemos dizer que a aproximação com os diversos conceitos

filosóficos de Merleau-Ponty se faz sempre como um meio para se

provocar e produzir ideias encarnadas e aberturas investigativas. A

atitude desse diálogo está em não reduzir cinema à verificação de leis

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preestabelecidas ou torná-lo um campo de exemplificação de conceitos e

de teses filosóficas. Uma imagem clama pelo imperativo irreprimível de

outra imagem. Esse ímpeto poderia garantir que o pensamento

encarnado sobre o cinema esteja sempre atento às transformações dos

meios e das formas, obrigando-nos a colocar, invariavelmente em

questão, nossa posição, nossas maneiras de ver e de pensar.

Por todas essas razões, o poder e o endereçamento da imagem,

sua aptidão de propor relações, suas possibilidades de causar

deslocamentos, de concretizar conceitos como carne e corpo não podem

ser tomados como meros produtos rejeitáveis depois de consumidos,

ainda que sejam permissíveis a essas ações. Discorrendo sobre a obra de

Cézanne, Merleau-Ponty (2004, p.121-126) pondera que esse pintor não

considerou ter que escolher entre a sensação e o pensamento, como entre

a ordem e o caos.

De fato, ele não almejava afastar as coisas fixas que brotavam ao

nosso olhar e sua maneira fugaz de vir ao mundo; ambicionava, sim,

pintar a matéria em vias de se formar, a ordem surgindo por uma

disposição irrefletida e impensada. O filósofo pontua que uma maçã

pintada de Cézanne é mais autêntica que todas as maçãs possíveis

reunidas. Ela “inventa” todas as outras maçãs, pois essa fruta, antes de

ter sido elaborada pictoricamente por Cézanne, ainda não era o que

passou a ser.

Entendemos que o filme entrega ao espectador a potência do

mundo que se torna imagem. Trança sua atenção em um domínio da

visibilidade, produzindo nela uma mistura dosada de fascinação,

sideração, mostração e curiosidade. O cinema, pelo arranjo importante

dos espaços e do tempo, afirma seu poder expressivo diante das coisas e

das pessoas, percebendo condutas, estilos de comportamento, ou seja,

maneiras de se estar no mundo que especificam o humano.

O pensamento filosófico de Merleau-Ponty consiste em revelar

sucessivamente que a obra cinematográfica não é, de forma alguma,

redutível àquilo que a motivou, pois envolve essencialmente

procedimentos específicos que ela mesma induz e mobiliza. Em outras

palavras, o filme pode ser apreendido estética e não didaticamente, já

que as ideias e os fatos são apenas os materiais da arte.

O filme não consiste em descrever as coisas ou em expor ideias,

mas em criar mecanismos próprios de uma visibilidade imagética, que,

de uma maneira quase infalível, situa o espectador em certo estado

fílmico. Nessa esteira, concluimos que o filme não significa nada além

de si mesmo. Assim, o cinema produz sua própria essência, sua

ontologia e, nesse sentido, permanece irredutível às outras artes.

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ANEXO

MERLEAU-PONTY, Maurice. Le Cinéma et la Nouvelle Psychologie.

Paris: Folio/Gallimard, 2009. p. 5-24.79

La psychologie classique considère notre champ visuel comme

une somme ou une mosaïque de sensations dont chacune dépendrait

strictement de l'excitation rétinienne locale qui lui correspond. La

nouvelle psychologie fait voir d'abord que, même à considérer nos

sensations les plus simples et les plus immédiates, nous ne pouvons

admettre ce parallélisme entre elles et le phénomène nerveux qui les

conditionne. Notre rétine est bien loin d'être homogène, en certaines de

ses parties, elle est aveugle par exemple pour le bleu ou pour le rouge, et

cependant, quand je regarde une surface bleue ou rouge, je n'y vois

aucune zone décolorée. C'est que, dès le niveau de la simple vision des

couleurs, ma perception ne se borne pas à enregistrer ce qui lui est

prescrit par les excitations rétiniennes, mais les réorganise de manière à

rétablir l'homogénéité du champ. D'une manière générale, nous devons

la concevoir, non comme une mosaïque, mais comme un système de

configurations. Ce qui est premier et vient d'abord dans notre perception,

ce ne sont pas des éléments juxtaposés, mais des ensembles. Nous

groupons les étoiles en constellations comme le faisaient déjà les

anciens, et pourtant beaucoup d'autres tracés de la carte céleste sont, a

priori, possibles. Si l'on nous présente la série:

a b c d e f g h i j

. . . . . . . . . .

nous accouplons toujours les points selon la formule a-b, c-d, e-f, etc.,

alors que le groupement b-c, d-e, f-g, etc., est en principe également

probable. Le malade qui contemple la tapisserie de sa chambre la voit

soudain se transformer si le dessin et la figure deviennent fond, pendant

que ce qui est vu d'ordinaire comme fond devient figure. L'aspect du

monde pour nous serait bouleversé si nous réussissions à voir comme

choses les intervalles entre les choses - par exemple l'espace entre les

arbres sur le boulevard - et réciproquement comme fond les choses

elles-mêmes -les arbres du boulevard. C'est ce qui arrive dans les

devinettes: le lapin ou le chasseur n'étaient pas visibles, parce que les

79 Publicado, inicialmente, na obra Sens et Non-sens (1966).

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éléments de ces figures étaient disloqués et intégrés à d'autres formes:

par exemple ce qui sera l'oreille du lapin n'était encore que l'intervalle

vide entre deux arbres de la forêt. Le lapin et le chasseur apparaissent

par une nouvelle ségrégation du champ, par une nouvelle organisation

du tout. Le camouflage est l'art de masquer une forme en introduisant les

lignes principales qui la définissent dans d'autres formes plus

impérieuses.

Nous pouvons appliquer le même genre d'analyse aux perceptions

de l'ouïe. Simplement, il ne s'agira plus maintenant de formes dans

l'espace, mais de formes temporelles. Par exemple, une mélodie est une

figure sonore, elle ne se mêle pas aux bruits de fond qui peuvent

l'accompagner, comme le bruit d'un klaxon que l'on entend au loin

pendant un concert. La mélodie n'est pas une somme de notes: chaque

note ne compte que par la fonction qu'elle exerce dans l'ensemble, et

c'est pourquoi la mélodie n'est pas sensiblement changée si on la

transpose, c'est-à-dire si l'on change toutes les notes qui la composent,

en respectant les rapports et la structure de l'ensemble. Par contre un

seul changement dans ces rapports suffit à modifier la physionomie

totale de la mélodie. Cette perception de l'ensemble est plus naturelle et

plus primitive que celle des éléments isolés: dans les expériences sur le

réflexe conditionné où l'on dresse des chiens à répondre par une

sécrétion salivaire à une lumière ou à un son, en associant fréquemment

cette lumière ou ce son à la présentation d'un morceau de viande, on

constate que le dressage acquis à l'égard d'une certaine suite de notes est

acquis du même coup à l'égard de toute mélodie de même structure. La

perception analytique, qui nous donne la valeur absolue des éléments

isolés, correspond donc à une attitude tardive et exceptionnelle, c'est

celle du savant qui observe ou du philosophe qui réfléchit, la perception

des formes, au sens très général de: structure, ensemble ou

configuration, doit être considérée comme notre mode de perception

spontané.

Sur un autre point encore, la psychologie moderne renverse les

préjugés de la physiologie et de la psychologie classiques. C'est un lieu

commun de dire que nous avons cinq sens et, à première vue, chacun

d'eux est comme un monde sans communication avec les autres. La

lumière ou les couleurs qui agissent sur l’oeil n'agissent pas sur les

oreilles ni sur le toucher. Et cependant on sait depuis longtemps que

certains aveugles arrivent à se représenter les couleurs qu'ils ne voient

pas par le moyen des sons qu'ils entendent. Par exemple un aveugle

disait que le rouge devait être quelque chose comme un coup de

trompette. Mais on a longtemps pensé qu'il s'agissait là de phénomènes

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exceptionnels. En réalité le phénomène est général. Dans l'intoxication

par la mescaline, les sons sont régulièrement accompagnés par des

taches de couleur dont la nuance, la forme et la hauteur varient avec le

timbre, l'intensité et la hauteur des sons. Même les sujets normaux

parlent de couleurs chaudes, froides, criardes ou dures, de sons clairs,

aigus, éclatants, rugueux ou moelleux, de bruits mous, de parfums

pénétrants. Cézanne disait qu'on voit le velouté, la dureté, la mollesse, et

même l'odeur des objets. Ma perception n'est donc pas une somme de

données visuelles, tactiles, auditives, je perçois d'une manière indivise

avec mon être total, je saisis une structure unique de la chose, une

unique manière d'exister qui parle à la fois à tous mes sens.

Naturellement la psychologie classique savait bien qu'il y a des

relations entre les différentes parties de mon champ visuel comme entre

les données de mes différents sens. Mais pour elle cette unicité était

construite, elle la rapportait à l'intelligence et à la mémoire. Je dis que je

vois des hommes passer dans la rue, écrit Descartes dans un célèbre

passage des Méditations, mais en réalité que vois-je au juste? Je ne vois

que des chapeaux et des manteaux, qui pourraient aussi bien recouvrir

des poupées qui ne se remuent que par ressorts, et si je dis que je vois

des hommes, c'est que je saisis «par une inspection de l'esprit ce que je

croyais voir de mes yeux ». Je suis persuadé que les objets continuent

d'exister quand je ne les vois pas, et par exemple derrière mon dos. Mais

de toute évidence, pour la pensée classique, ces objets invisibles ne

subsistent pour moi que parce que mon jugement les maintient présents.

Même les objets devant moi ne sont pas proprement vus, mais seulement

pensés. Ainsi je ne saurais voir un cube, c'est-à-dire un solide formé de

six faces et de douze arêtes égales, je ne vois jamais qu'une figure

perceptive dans laquelle les faces latérales sont déformées et la face

dorsale complètement cachée. Si je parle de cubes, c'est que mon esprit

redresse ces apparences, restitue la face cachée. Je ne peux voir le cube

selon sa définition géométrique, je ne puis que le penser. La perception

du mouvement montre encore mieux à quel point l'intelligence intervient

dans la prétendue vision. Au moment où mon train, arrêté en gare, se

met en marche, il arrive souvent que je croie voir démarrer celui qui est

arrêté à côté du mien. Les données sensorielles par elles-mêmes sont

donc neutres et capables de recevoir différentes interprétations selon

l'hypothèse à laquelle mon esprit s'arrêtera. D'une manière générale, la

psychologie classique fait donc de la perception un véritable déchiffrage

par l'intelligence des données sensibles et comme un commencement de

science. Des signes me sont donnés, et il faut que j'en dégage la

signification, un texte m'est offert et il faut que je le lise ou l'interprète.

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Même quand elle tient compte de l'unité du champ perceptif, la

psychologie classique reste encore fidèle à la notion de sensation, qui

fournit le point de départ de l'analyse; c'est parce qu'elle a d'abord conçu

les données visuelles comme une mosaïque de sensation qu'elle a besoin

de fonder l'unité du champ perceptif sur une opération de l'intelligence.

Que nous apporte sur ce point la théorie de la Forme? En rejetant

résolument la notion de sensation, elle nous apprend à ne plus distinguer

les signes et leur signification, ce qui est senti et ce qui est jugé.

Comment pourrions-nous définir exactement la couleur d'un objet sans

mentionner la substance dont il est fait, par exemple la couleur bleue de

ce tapis sans dire que c'est un «bleu laineux»? Cézanne avait posé la

question: comment distinguer dans les choses leur couleur et leur

dessin? il ne saurait être question de comprendre la perception comme

l'imposition d'une certaine signification à certains signes sensibles,

puisque ces signes ne sauraient être décrits dans leur texture sensible la

plus immédiate sans référence à l'objet qu'ils signifient. Si nous

reconnaissons sous un éclairage changeant un objet défini par des

propriétés constantes, ce n'est pas que l'intelligence fasse entrer en

compte la nature de la lumière incidente et en déduise la couleur réelle

de l'objet, c'est que la lumière dominante du milieu, agissant comme

éclairage, assigne immédiatement à l'objet sa vraie couleur. Si nous

regardons deux assiettes inégalement éclairées, elles nous paraissent

également blanches et inégalement éclairées tant que le faisceau de

lumière qui vient de la fenêtre figure dans notre champ visuel. Si, au

contraire, nous observons les mêmes assiettes à travers un écran percé

d'un trou, aussitôt l'une d'elles nous paraît grise et l'autre blanche, et

même si nous savons que ce n'est là qu'un effet d'éclairage, aucune

analyse intellectuelle des apparences ne vous fera voir la vraie couleur

des deux assiettes. La permanence des couleurs et des objets n'est donc

pas construite par l'intelligence, mais saisie par le regard en tant qu'il

épouse ou adopte l'organisation du champ visuel. Quand nous allumons

à la tombée du jour, la lumière électrique nous paraît d'abord jaune, un

moment plus tard elle tend à perdre toute couleur définie, et

corrélativement les objets, qui d'abord étaient sensiblement modifiés

dans leur couleur, reprennent un aspect comparable à celui qu'ils ont

pendant la journée. Les objets et l'éclairage forment un système qui tend

vers une certaine constance et vers un certain niveau stable, non par

l'opération de l'intelligence, mais par la configuration même du champ.

Quand je perçois, je ne pense pas le monde, il s'organise devant moi.

Quand je perçois un cube, ce n'est pas que ma raison redresse les

apparences perceptives et pense à propos d'elles la définition

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géométrique du cube. Loin que je les corrige, je ne remarque pas même

les déformations perceptives, à travers ce que je vois je suis au cube lui-

même dans son évidence. Et de même les objets derrière mon dos ne me

sont pas représentés par quelque opération de la mémoire ou du

jugement, ils me sont présents, ils comptent pour moi, comme le fond

que je ne vois pas n'en continue pas moins d'être présent sous la figure

qui le masque en partie. Même la perception du mouvement, qui d'abord

paraît dépendre directement du point de repère que l'intelligence choisit,

n'est à son tour qu'un élément dans l'organisation globale du champ. Car

s'il est vrai que mon train et le train voisin peuvent tour à tour

m'apparaître en mouvement au moment où l'un d'eux démarre, il faut

remarquer que l'illusion n'est pas arbitraire et que je ne puis la provoquer

à volonté par le choix tout intellectuel et désintéressé d'un point de

repère. Si je joue aux cartes dans mon compartiment, c'est le train voisin

qui démarre. Si, au contraire, je cherche des yeux quelqu'un dans le train

voisin, c'est alors le mien qui démarre. À chaque fois nous apparaît fixe

celui des deux où nous avons élu domicile et qui est notre milieu du

moment. Le mouvement et le repos se distribuent pour nous dans notre

entourage, non pas selon les hypothèses qu'il plaît à notre intelligence de

construire, mais selon la manière dont nous nous fixons dans le monde

et selon la situation que notre corps y assume. Tantôt je vois le clocher

immobile dans le ciel et les nuages qui volent au-dessus de lui - tantôt au

contraire les nuages semblent immobiles et le clocher tombe à travers

l'espace, mais ici encore le choix du point fixe n'est pas le fait de

l'intelligence: l'objet que je regarde et où je jette l'ancre m'apparaît

toujours fixe et je ne puis lui ôter cette signification qu'en regardant

ailleurs. Je ne la lui donne donc pas non plus par la pensée. La

perception n'est pas une sorte de science commençante, et un premier

exercice de l'intelligence, il nous faut retrouver un commerce avec le

monde et une présence au monde plus vieux que l'intelligence.

Enfin la nouvelle psychologie apporte aussi une conception neuve

de la perception d'autrui. La psychologie classique acceptait sans

discussion la distinction de l'observation intérieure ou introspection et de

l'observation extérieure. Les « faits psychiques» -la colère, la peur par

exemple - ne pouvaient être directement connus que du dedans et par

celui qui les éprouvait. On tenait pour évident que je ne puis, du dehors,

saisir que les signes corporels de la colère ou de la peur, et que, pour

interpréter ces signes, je dois recourir à la connaissance que j'ai de la

colère ou de la peur en moi-même et par introspection. Les

psychologues d'aujourd'hui font remarquer que l'introspection, en réalité,

ne me donne presque rien. Si j'essaye d'étudier l'amour ou la haine par la

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pure observation intérieure, je ne trouve que peu de choses à décrire:

quelques angoisses, quelques palpitations de coeur, en somme des

troubles banaux qui ne me révèlent pas l'essence de l'amour ni de la

haine. Chaque fois que j'arrive à des remarques intéressantes, c'est que je

ne me suis pas contenté de coïncider avec mon sentiment, c'est que j'ai

réussi à l'étudier comme un comportement, comme une modification de

mes rapports avec autrui et avec le monde, c'est que je suis parvenu à le

penser comme je pense le comportement d'une autre personne dont je

me trouve être témoin. En fait les jeunes enfants comprennent les gestes

et les expressions de physionomie bien avant d'être capables de les

reproduire pour leur compte, il faut donc que le sens de ces conduites

leur soit pour ainsi dire adhérent. Il nous faut rejeter ici ce préjugé qui

fait de l'amour, de la haine ou de la colère des «réalités intérieures»

accessibles à un seul témoin, celui qui les éprouve. Colère, honte, haine,

amour ne sont pas des faits psychiques cachés au plus profond de la

conscience d'autrui, ce sont des types de comportement ou des styles de

conduite visibles du dehors. Ils sont sur ce visage ou dans ces gestes et

non pas cachés derrière eux. La psychologie n'a commencé de se

développer que le jour où elle a renoncé à distinguer le corps et l'esprit,

où elle a abandonné les deux méthodes corrélatives de l'observation

intérieure et de la psychologie physiologique. On ne nous apprenait rien

sur l'émotion tant qu'on se bornait à mesurer la vitesse de la respiration

ou celle des battements du coeur dans la colère - et on ne nous apprenait

rien non plus sur la colère quand on essayait de rendre la nuance

qualitative et indicible de la colère vécue. Faire la psychologie de la

colère, c'est chercher à fixer le sens de la colère, c'est se demander

quelle en est la fonction dans une vie humaine et en quelque sorte à quoi

elle sert. On trouve ainsi que l'émotion est, comme dit Janet, une

réaction de désorganisation qui intervient lorsque nous sommes engagés

dans une impasse - plus profondément, on trouve, comme l'a montré

Sartre, que la colère est une conduite magique par laquelle, renonçant à

l'action efficace dans le monde, nous nous donnons dans l'imaginaire

une satisfaction toute symbolique, comme celui qui, dans une

conversation, ne pouvant convaincre son interlocuteur, en vient aux

injures qui ne prouvent rien, ou comme celui qui, n'osant pas frapper son

ennemi, se contente de lui montrer le poing de loin. Puisque l'émotion

n'est pas un fait psychique et interne, mais une variation de nos rapports

avec autrui et avec le monde lisible dans notre attitude corporelle, il ne

faut pas dire que seuls les signes de la colère ou de l'amour sont donnés

au spectateur étranger et qu'autrui est saisi indirectement et par une

interprétation de ces signes, il faut dire qu'autrui m'est donné avec

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évidence comme comportement. Notre science du comportement va

beaucoup plus loin que nous le croyons. Si l'on présente à des sujets non

prévenus la photographie de plusieurs visages, de plusieurs silhouettes,

la reproduction de plusieurs écritures et l'enregistrement de plusieurs

voix, et si on leur demande d'assembler un visage, une silhouette, une

voix, une écriture, on constate que, d'une manière générale, l'assemblage

est fait correctement ou qu'en tout cas le nombre des assortiments

corrects l'emporte de beaucoup sur celui des assortiments erronés.

L'écriture de Michel-Ange est attribuée à Raphaël dans 36 cas, mais elle

est correctement identifiée dans 221 cas. C'est donc que nous

reconnaissons une certaine structure commune à la voix, à la

physionomie, aux gestes et à l'allure de chaque personne, chaque

personne n'est rien d'autre pour nous que cette structure ou cette manière

d'être au monde.

On entrevoit comment ces remarques pourraient être appliquées à la

psychologie du langage: de même que le corps et l’«âme» d'un homme

ne sont que deux aspects de sa manière d'être au monde, de même le mot

et la pensée qu'il désigne ne doivent pas être considérés comme deux

termes extérieurs et le mot porte sa signification comme le corps est

l'incarnation d'un comportement.

D'une manière générale, la nouvelle psychologie nous fait voir

dans l'homme, non pas un entendement qui construit le monde, mais un

être qui y est jeté et qui y est attaché comme par un lien naturel. Par

suite elle nous réapprend à voir ce monde avec lequel nous sommes en

contact par toute la surface de notre être, tandis que la psychologie

classique délaissait le monde vécu pour celui que l'intelligence

scientifique réussit à construire.

Si maintenant nous considérons le film comme un objet à

percevoir, nous pouvons appliquer à la perception du film tout ce qui

vient d'être dit de la perception en général. Et l'on va voir que, de ce

point de vue, la nature et la signification du film s'éclairent et que la

nouvelle psychologie nous conduit précisément aux remarques des

meilleurs des esthéticiens du cinéma.

Disons d'abord qu'un film n'est pas une somme d'images mais une

forme temporelle. C'est le moment de rappeler la fameuse expérience de

Poudovkine qui met en évidence l'unité mélodique du film. Poudovkine

prit un jour un gros plan de Mosjoukine impassible, et le projeta précédé

d'abord d'une assiette de potage, ensuite d'une jeune femme morte dans

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son cercueil et enfin d'un enfant jouant avec un ourson de peluche. On

s'aperçut d'abord que Mosjoukine avait l'air de regarder l'assiette, la

jeune femme et l'enfant, et ensuite qu'il regardait l'assiette d'un air

pensif, la femme avec douleur, l'enfant avec un lumineux sourire, et le

public fut émerveillé par la variété de ses expressions, alors qu'en réalité

la même vue avait servi trois fois et qu'elle était remarquablement

inexpressive. Le sens d'une image dépend donc de celles qui la

précèdent dans le film, et leur succession crée une réalité nouvelle qui

n'est pas la simple somme des éléments employés. R. Leenhardt ajoutait,

dans un excellent article (Esprit, année 1936), qu'il fallait encore faire

intervenir la durée de chaque image: une courte durée convient au

sourire amusé, une durée moyenne au visage indifférent, une longue

durée à l'expression douloureuse. De là Leenhardt tirait cette définition

du rythme cinématographique: «Un ordre des vues tel, et, pour chacune

de ces vues ou “plans”, une durée telle que l'ensemble produise

l'impression cherchée avec le maximum d'effet. » il y a donc une

véritable métrique cinématographique dont l'exigence est très précise et

très impérieuse. «Voyant un film, essayez-vous à deviner l'instant où

une image ayant donné son plein, elle va, elle doit finir, être remplacée

(que ce soit changement d'angle, de distance ou de champ). Vous

apprendrez à connaître ce malaise à la poitrine que produit une vue trop

longue qui “freine” le mouvement ou ce délicieux acquiescement intime

lorsqu'un plan, “passe” exactement...» (Leenhardt). Comme il y a dans

le film, outre la sélection des vues (ou plans), de leur ordre et de leur

durée, qui constitue le montage, une sélection des scènes ou séquences,

de leur ordre et de leur durée, qui constitue le découpage, le film

apparaît comme une forme extrêmement complexe à l'intérieur de

laquelle des actions et des réactions extrêmement nombreuses s'exercent

à chaque moment, dont les lois restent à découvrir et n'ont été jusqu'ici

que devinées par le flair ou le tact du metteur en scène qui manie le

langage cinématographique comme l'homme parlant manie la syntaxe,

sans y penser expressément, et sans être toujours en mesure de formuler

les règles qu'il observe spontanément.

Ce que nous venons de dire du film visuel s'applique aussi au film

sonore, qui n'est pas une somme de mots ou de bruits, mais lui aussi une

forme. Il y a un rythme du son comme de l'image. Il y a un montage des

bruits et des sons, dont Leenhardt trouvait un exemple dans un vieux

film sonore Broadway Melody. «Deux acteurs sont en scène. Du haut

des galeries on les entend déclamer. Puis immédiatement, gros plan,

timbre de chuchotement, on perçoit un mot qu'ils échangent à voix

basse... » La force expressive de ce montage consiste en ce qu'il nous

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fait sentir la coexistence, la simultanéité des vies dans le même monde,

les acteurs pour nous et pour eux-mêmes - comme tout à l'heure le

montage visuel de Poudovkine liait l'homme et son regard aux

spectacles qui l'entourent. Comme le film visuel n'est pas la simple

photographie en mouvement d'un drame, et comme le choix et

l'assemblage des images constituent pour le cinéma un moyen

d'expression original, de même le son au cinéma n'est pas la simple

reproduction phonographique des bruits et des paroles, mais comporte

une certaine organisation interne que le créateur du film doit inventer.

Le véritable ancêtre du son cinématographique n'est pas le phonographe,

mais le montage radiophonique.

Ce n'est pas tout. Nous venons de considérer l'image et le son tour

à tour. Mais en réalité leur assemblage fait encore une fois un tout

nouveau et irréductible aux éléments qui entrent dans sa composition.

Un film sonore n'est pas un film muet agrémenté de sons et de paroles

qui ne seraient destinés qu'à compléter l'illusion cinématographique. Le

lien du son et de l'image est beaucoup plus étroit et l'image est

transformée par le voisinage du son. Nous nous en apercevons bien à la

projection d'un film doublé où l'on fait parler des maigres avec des voix

de gras, des jeunes avec des voix de vieux, des grands avec des voix de

minuscules, ce qui est absurde, si, comme nous l'avons dit, la voix. la

silhouette et le caractère forment un tout . . indécomposable. Mais

l'union du son et de l'image ne se fait pas seulement dans chaque

personnage, elle se fait dans le film entier. Ce n'est pas par hasard qu'à

tel moment les personnages se taisent et qu'à tel autre moment ils

parlent. L'alternance des paroles et du silence est ménagée pour le plus

grand effet de l'image. Comme le disait Malraux (Verve, 1940), il y a

trois sortes de dialogues. D'abord le dialogue d'exposition, destiné à

faire connaître les circonstances de l'action dramatique. Le roman et le

cinéma l'évitent d'un commun accord. Ensuite le dialogue de ton qui

nous donne l'accent de chaque personnage, et qui domine, par exemple,

chez Proust, dont les personnages se voient très mal et par contre se

reconnaissent admirablement dès qu’ils commencent à parler. La

prodigalité ou l'avarice des mots, la plénitude ou le creux des paroles,

leur exactitude ou leur affectation font sentir l'essence d'un personnage

plus sûrement que beaucoup de descriptions. Il n'y a guère de dialogue

de ton au cinéma, la présence visible de l'acteur avec son comportement

propre ne s'y prête qu'exceptionnellement. Enfin il y a un dialogue de

scène, qui nous présente le débat et la confrontation des personnages,

c'est le principal du dialogue au cinéma. Or, il est loin d'être constant.

Au théâtre on parle sans cesse, mais non au cinéma. «Dans les derniers

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films, disait Malraux, le metteur en scène passe au dialogue après de

grandes parties de muet exactement comme un romancier passe au

dialogue après de grandes parties de récit. » La répartition des silences

et du dialogue constitue donc, par~delà la métrique visuelle et la

métrique sonore, une métrique plus complexe qui superpose ses

exigences à celles des deux premières.

Encore faudrait-il, pour être complet, analyser le rôle de la musique à

l'intérieur de cet ensemble. Disons seulement qu'elle doit s'y incorporer

et non pas s'y juxtaposer. Elle ne devra donc pas servir à boucher les

trous sonores. ni à commenter d'une manière tout extérieure les

sentiments et les images, comme il arrive dans tant de films où l'orage

de la colère déclenche l'orage des cuivres et où la musique imite

laborieusement un bruit de pas ou la chute d'une pièce de monnaie sur le

sol. Elle interviendra pour marquer un changement de style du film, par

exemple le passage d'une scène d'action à 1'« intérieur» du personnage,

à un rappel de scènes antérieures ou à la description d'un paysage; d'une

manière générale elle accompagne et elle contribue à réaliser, comme

disait Jaubert (Esprit, année 1936), une «rupture d'équilibre sensoriel».

Enfin, il ne faut pas qu'elle soit un autre moyen d'expression juxtaposé à

l'expression visuelle, mais que «par des moyens rigoureusement

musicaux - rythme, forme, instrumentation - elle recrée, sous la matière

plastique de l'image, une matière sonore, par une mystérieuse alchimie

de correspondances qui devrait être le fondement même du métier de

compositeur de film; qu'elle nous rende enfin physiquement sensible le

rythme interne de l'image sans pour cela s'efforcer d'en traduire le

contenu sentimental, dramatique ou poétique » (Jaubert). La parole, au

cinéma, n'est pas chargée d'ajouter des idées aux images, ni la musique

des sentiments. L'ensemble nous dit quelque chose de très précis qui

n'est ni une pensée, ni un rappel des sentiments de la vie.

Que signifie, que veut donc dire le film? Chaque film raconte une

histoire, c'est-à-dire un certain nombre d'événements qui mettent aux

prises des personnages et qui peuvent être aussi racontés en prose,

comme ils le sont effectivement dans le scénario d'après lequel le film

est fait. Le cinéma parlant, avec son dialogue souvent envahissant,

complète notre illusion. On conçoit donc souvent le film comme la

représentation visuelle et sonore, la reproduction aussi fidèle que

possible d'un drame que la littérature ne pourrait évoquer qu'avec des

mots et que le cinéma a la bonne fortune de pouvoir photographier. Ce

qui entretient l'équivoque, c'est qu'il y a en effet un réalisme

fondamental du cinéma: les acteurs doivent jouer naturel, la mise en

scène doit être aussi vraisemblable que possible car «la puissance de

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réalité que dégage l'écran, dit Leenhardt, est telle que la moindre

stylisation détonnerait ». Mais cela ne veut pas dire que le film soit

destiné à nous faire voir et entendre ce que nous verrions et entendrions

si nous assistions dans la vie à l'histoire qu'il nous raconte, ni d'ailleurs à

nous suggérer comme une histoire édifiante quelque conception générale

de la vie. Le problème que nous rencontrons ici, l'esthétique l'a déjà

rencontré à propos de la poésie ou du roman. Il y a toujours, dans un

roman, une idée qui peut se résumer en quelques mots, un scénario qui

tient en quelques lignes. Il y a toujours dans un poème allusion à des

choses ou à des idées. Et cependant le roman pur, la poésie pure n'ont

pas simplement pour fonction de nous signifier ces faits, ces idées ou

ces choses, car alors le poème pourrait se traduire exactement en prose

et le roman ne perdrait rien à être résumé. Les idées et les faits ne sont

que les matériaux de l'art et l'art du roman consiste dans le choix de ce

que l'on dit et de ce que l'on tait, dans le choix des perspectives (tel

chapitre sera écrit du point de vue de tel personnage, tel autre du point

de vue d'un autre), dans le tempo variable du récit; l'art de la poésie ne

consiste pas à décrire didactiquement des choses ou à exposer des idées,

mais à créer une machine de langage qui, d'une manière presque

infaillible, place le lecteur dans un certain état poétique. De la même

manière, il y a toujours dans un film une histoire, et souvent une idée

(par exemple, dans l'Étrange Sursis: la mort n'est terrible que pour qui

n'y a pas consenti), mais la fonction du film n'est pas de nous faire

connaître les faits ou l'idée.

Kant dit avec profondeur que dans la connaissance l'imagination

travaille au profit de l'entendement, tandis que dans l'art l'entendement

travaille au profit de l'imagination. C'est-à-dire: l'idée ou les faits

prosaïques ne sont là que pour « donner au créateur l'occasion de leur

chercher des emblèmes sensibles et d'en tracer le monogramme visible

et sonore. Le sens du film est incorporé à son rythme comme le sens

d'un geste est immédiatement lisible dans le geste, et le film ne veut rien

dire que lui-même. L'idée est ici rendue à l'état naissant, elle émerge de

la structure temporelle du film, comme dans un tableau de la coexistence

de ses parties. C'est le bonheur de l'art de montrer comment quelque

chose se met à signifier, non par allusion à des idées déjà formées et

acquises, mais par l'arrangement temporel ou spatial des éléments. Un

film signifie comme nous avons vu plus haut qu'une chose signifie: l'un

et l'autre ne parlent pas à un entendement séparé, mais s'adressent à

notre pouvoir de déchiffrer tacitement le monde ou les hommes et de

coexister avec eux. Il est vrai que, dans l'ordinaire de la vie, nous

perdons de vue cette valeur esthétique de la moindre chose perçue. Il est

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vrai aussi que jamais dans le réel la forme perçue n'est parfaite, il y a

toujours du bougé, des bavures et comme un excès de matière. Le drame

cinématographique a, pour ainsi dire, un grain plus serré que les drames

de la vie réelle, il se passe dans un monde plus exact que le monde réel.

Mais enfin c'est par la perception que nous pouvons comprendre la

signification du cinéma: le film ne se pense pas, il se perçoit.

Voilà pourquoi l'expression de l'homme peut être au cinéma si

saisissante: le cinéma ne nous donne pas, comme le roman l'a fait

longtemps, les pensées de l'homme, il nous donne sa conduite ou son

comportement, il nous offre directement cette manière spéciale d'être au

monde, de traiter les choses et les autres, qui est pour nous visible dans

les gestes, le regard, la mimique, et qui définit avec évidence chaque

personne que nous connaissons. Si le cinéma veut nous montrer un

personnage qui a le vertige, il ne devra pas essayer de rendre le paysage

intérieur du vertige, comme Daquin dans Premier de cordée et Malraux

dans Sierra de Terruel ont voulu le faire. Nous sentirons beaucoup

mieux le vertige en le voyant de l'extérieur, en contemplant ce corps

déséquilibré qui se tord sur un rocher, ou cette marche vacillante qui

tente de s'adapter à on ne sait quel bouleversement de l'espace. Pour le

cinéma comme pour la psychologie moderne, le vertige, le plaisir, la

douleur, l'amour, la haine sont des conduites.

Cette psychologie et les philosophies contemporaines ont pour

commun caractère de nous présenter, non pas, comme les philosophies

classiques, l'esprit et le monde, chaque conscience et les autres, mais la

conscience jetée dans le monde, soumise au regard des autres et

apprenant d'eux ce qu'elle est. Une bonne part de la philosophie

phénoménologique ou existentielle consiste à s'étonner de cette

inhérence du moi au monde et du moi à autrui, à nous décrire ce

paradoxe et cette confusion, à faire voir le lien du sujet et du monde, du

sujet et des autres, au lieu de l'expliquer, comme le faisaient les

classiques, par quelques recours à l'esprit absolu. Or, le cinéma est

particulièrement apte à faire paraître l'union de l'esprit et du corps, de

l'esprit et du monde et l'expression de l'un dans l'autre. Voilà pourquoi il

n'estpas surprenant que le critique puisse, à propos d'un film, évoquer la

philosophie. Dans un compte rendu du Défunt récalcitrant, Astruc

raconte le film en termes sartriens: ce mort qui survit à son corps et est

obligé d'en habiter un autre, il demeure le même pour soi, mais il est

autre pour autrui et ne saurait demeurer en repos jusqu'à ce que l'amour

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d'une jeune fille le reconnaisse à travers sa nouvelle enveloppe et que

soit rétablie la concordance du pour soi et du pour autrui. Là-dessus le

Canard enchaîné se fâche et veut renvoyer Astruc à ses recherches

philosophiques. La vérité est qu'ils ont tous deux raison: l'un parce que

l'art n'est pas fait pour exposer des idées - et l'autre parce que la

philosophie contemporaine ne consiste pas à enchaîner des concepts,

mais à décrire le mélange de la conscience avec le monde, son

engagement dans un corps, sa coexistence avec les autres, et que ce

sujet-là est cinématographique par excellence.

Si enfin nous nous demandons pourquoi cette philosophie s'est

développée justement à l'âge du cinéma, nous ne devrons évidemment

pas dire que le cinéma vient d'elle. Le cinéma est d'abord une invention

technique où la philosophie n'est pour rien. Mais nous ne devrons pas

dire davantage que cette philosophie vient du cinéma et le traduit sur le

plan des idées. Car on peut mal user du cinéma, et l'instrument

technique une fois inventé doit être repris par une volonté artistique et

comme inventé une seconde fois, avant que l'on parvienne à faire de

véritables films. Si donc la philosophie et le cinéma sont d'accord, si la

réflexion et le travail technique vont dans le même sens, c'est parce que

le philosophe et le cinéaste ont en commun une certaine manière d'être,

une certaine vue du monde qui est celle d'une génération. Encore une

occasion de vérifier que la pensée et les techniques se correspondent et

que, selon le mot de Goethe, «ce qui est au-dedans est aussi au-dehors ».