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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
Rodrigo Poreli Moura Bueno
O SER DAS IMAGENS EM MOVIMENTO:
CINEMA E ONTOLOGIA NA FILOSOFIA
DE MAURICE MERLEAU-PONTY
Florianópolis
2015
Rodrigo Poreli Moura Bueno
O SER DAS IMAGENS EM MOVIMENTO:
CINEMA E ONTOLOGIA NA FILOSOFIA
DE MAURICE MERLEAU-PONTY
Tese submetida ao Programa de
Pós-Graduação em Filosofia da
Universidade Federal de Santa
Catarina para obtenção do grau de
Doutor em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Marcos José
Müller
Florianópolis
2015
A Deus, que nos ama incondicionalmente
À minha querida esposa Greize
A meus pais Eudes e Vera e aos irmãos Robison e Rógerson
A meu leal escudeiro Boris ...
AGRADECIMENTOS
Ao professor orientador, Dr. Marco José Müller, por seu trabalho
seguro, competente e dedicado.
À minha estimada esposa Greize, pela motivação e carinho em todos os
momentos.
Aos amigos e aos colegas, pelas ocasiões de descontração e de reflexão.
Aos professores, aos colegas e aos funcionários do Programa de Pós-
graduação em Filosofia, por mais uma relevante etapa cumprida.
À CAPES, pela bolsa a mim concedida, importante na realização deste
trabalho.
À parceria da Universidade Federal de Santa Catarina com a
Universidade Federal do Tocantins (Dinter em Filosofia), pela
possibilidade de realização deste trabalho.
Les animaux peints sur la paroi de Lascaux n'y sont pas comme y est la fente ou la
boursouflure du calcaire. Ils ne sont pas davantage ailleurs. Un peu en avant, un peu
en arrière, soutenus par sa masse dont ils se
servent adroitement, ils rayonnent autour
d'elle sans jamais rompre leur insaisissable
amarre. Je serais bien en peine de dire où est le tableau que je regarde. Car je ne le
regarde pas comme on regarde une chose, je
ne le fixe pas en son lieu, mon regard erre en lui comme dans les nimbes de l'Être, je vois
selon ou avec lui plutôt que je ne le vois.
Maurice Merleau-Ponty
O cinema consiste simplesmente em colocar
coisas diante da câmera. Um poeta chamaria
isto de “o olhar das coisas”. Não o olhar
humano das coisas, mas, o olhar das coisas
mesmas. Aqui, a criação artística não
significa pintar a própria alma nas coisas,
porém, pintar a alma das coisas.
Jean-Luc Godard
BUENO, Rodrigo Poreli Moura. O Ser das Imagens em Movimento:
Cinema e Ontologia na Filosofia de Maurice Merleau-Ponty. 2015. 247
f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Centro de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
RESUMO
Neste trabalho, discutimos o pensamento filosófico de Merleau-Ponty
concernente ao cinema como arte ontológica, como experiência de
existência configurada na visibilidade, no corpo e na carne e em
propagação sobre o outro e também sobre o mundo. Para o autor
estudado, as análises de um objeto em geral, são aplicadas igualmente
ao cinema, enquanto este é um objeto a ser percebido, sendo o filme
compreendido como a arte de tornar visíveis e tangíveis objetos e
comportamentos. Vemos “segundo” e “com” as imagens, já que há um
entrelaçamento entre a minha carne, a carne do mundo e a visibilidade,
constituindo, de fato, uma precessão recíproca da visão e do visível. O
ser das imagens em movimento é o ver que não mostra unicamente o
que é, mas mostra o que pode surgir, a imagem latente que pode nascer
da interação, da ligação íntima com um tempo e um espaço
transfigurado por sua ação. Por essa razão, a arte cinematográfica é
“vidência”, ou seja, é o mundo que se torna sua própria imagem e não a
imagem que se torna o mundo. O cinema não é representação, ou
melhor, ele é símbolo e não signo, não remete a nada que não a ele
mesmo, o que faz do filme um sistema carnal. Dessa maneira, o cinema
é uma arte autônoma expressiva; ele produz sua própria essência, seu
próprio pensamento, sua própria ontologia.
Palavras-chave: Cinema e Pensamento. Carne e Ontologia.
Fenomenologia e Percepção.
BUENO, Rodrigo Poreli Moura. The Being of Moving Images:
Cinema and Ontology in Maurice Merleau-Ponty's Philosophy. 2015.
247 f. Thesis (PhD in Philosophy) – Centro de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
ABSTRACT
In this work, we discuss the Merleau-Ponty's philosophical thought
concerning the cinema as ontological art, like existential experience set
in visibility, in body and flesh and in the spread on the other and on the
world too. For the focused author, the analysis of an object in general,
are also applied to the cinema, while it is an object to be perceived.
Then, the film is understood as the art of making visible and tangible
objects and behaviors. We see “according” and “with” the images, since
there is an intertwining of my flesh, the flesh of world and the visibility,
constituting, in fact, a reciprocal precession of the sight and the visible.
The being of moving images is the seeing that not only shows what it is,
but it shows what can arise, the latent image that can born from the
interaction of the intimate connection with a time and a space
transfigured by his action. For this reason, the cinematic art is
“voyance”, that is the world becomes its own image, not the image that
becomes the world. The cinema is not representation, or rather it is a
symbol and no sign, it does not refer to anything other than itself, which
makes the film a carnal system. Therefore, the film is an autonomous
expressive art; it produces its own essence, its own thought, its own
ontology.
Keywords: Cinema and Thought. Flesh and Ontology. Phenomenology
and Perception.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................... ..17
1 A ARTE CINEMATOGRÁFICA EM BASES REFLEXIVAS . ..29 1.1 FILME, FENOMENOLOGIA E ONTOLOGIA: AUTORES E
CONCEITOS ............................................................................................... ..29
1.2 O CINEMA É UM PENSAMENTO .................................................... ..50 1.2.1 Gilles Deleuze ................................................................................... ..50 1.2.2 Jean-Luc Godard ............................................................................. ..62
1.3 NARRATIVA E CINEMA ................................................................... ..65
2 MERLEAU-PONTY E O FILME: NATUREZA E
SIGNIFICAÇÃO .................................................................................. ..81 2.1 CINEMA E PERCEPÇÃO ................................................................... ..81 2.1.1 Comportamento e Fenomenologia .................................................. ..82 2.1.2 A Obra Cinematográfica enquanto Gestalt .................................... ..90 2.2 CORPO, VISÃO E SENTIDO ............................................................. 111
3 DISCURSO, ESTÉTICA E LINGUAGEM ................................... 127 3.1 PINTURA E FENOMENOLOGIA ...................................................... 127 3.2 LEITURA E EXPRESSÃO .................................................................. 133
3.3 LIBERDADE E TEMPORALIDADE .................................................. 149
4 CINEMA, SER E A NOVA PERSPECTIVA ONTOLÓGICA ... 163 4.1 CARNE, MUNDO E VISIBILIDADE ................................................. 163 4.1.1 Quiasma e Rizoma ........................................................................... 170
4.2 FILME, IMAGEM E O VISÍVEL ........................................................ 182
4.2.1 Merleau-Ponty e Godard ................................................................. 192
4.2.2 As Imagens-Carne de: “Zidane: um retrato do século XXI” ....... 202
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 213
REFERÊNCIAS ................................................................................... 221
ANEXO ................................................................................................. 235
17
INTRODUÇÃO
Esta tese tem por escopo central caracterizar e explorar algumas
das principais características da problemática ontológica da filosofia de
Maurice Merleau-Ponty no que concerne à ideia de arte cinematográfica.
O foco principal de nosso trabalho será mostrar de que modo as imagens
fílmicas atuam sobre os nossos sentidos como fragmentos em
movimento que reintroduzem o corpo, a noção de carne e de
temporalidade nos atos de percepção, de visão e de expressão. Esse
relevante aspecto implica uma mudança no estatuto da representação,
sendo que o cinema constitui um evento único e original de
interrogatório perceptual e visual acerca das imagens, conectando
diretamente olhar e expressão, carne e pensamento.
Essas imagens, de fato, são a própria visibilidade, a aparência do
mundo, no sentido fenomenológico do termo. Especialmente no caso de
Merleau-Ponty, luz, iluminação, sombras, reflexos, cor, todos os objetos
que se buscam são objetos não totalmente reais, isto é, eles têm apenas
existências visuais. O que eles fazem, na verdade, é suscitar o ser das
coisas e dos seres, enfim, o que eles fazem compõe o talismã mundano e
carnal, a alquimia cinematográfica, cuja força singular nos faz ver o
visível e o invisível.
Dessa maneira, pensamos a imagem, sem o peso da
representação, como um dado a priori. Carne e matéria se incorporam
em qualidades a partir das quais, damos a conhecer um mundo que nos
era estranho, apesar de convivermos diariamente com ele. A partir
dessas considerações, podemos indagar: o que são as imagens fílmicas?
Como o filme mostra, ou como vemos, por exemplo, a vertigem, o
prazer, a dor, o amor, o ódio, a vida, a morte, com uma precisão, uma
exatidão, uma operacionalidade cirúrgica, uma curiosidade, certa magia,
que o mundo das ciências e o mundo percebido cotidianamente por nós
não saberiam conhecer?
Inicialmente, no que tange ao cinema, é preciso compreender
que, em Merleau-Ponty, procura-se alcançar uma expressão do homem
concreto. Pensar, para ele, significa mergulhar no mundo sensível, em
um sistema carnal, habitá-lo, interrogá-lo e nunca o abandonar. A arte é
expressão autônoma do mundo concreto e é esse mundo que a filosofia
explora ou desvela. Assim, é o contato com o mundo e a presença nele,
muito anterior àquilo que se sabe sobre o mundo, que a filosofia de
Merleau-Ponty tenta empreender.
No cinema e na pintura não se oferece uma imagem do mundo
“como ele é”, mas “vindo a ser”, pois é o mundo que se torna imagem e
18
visibilidade. Como seres encarnados nos envolvemos com o mundo e o
compreendemos de maneira incompleta. Nesse sentido, há um elemento
temporal que conduz às artes e ao indivíduo para a abertura ontológica
de sua subjetividade e liberdade.
Como veremos, o homem é um “ser-no-mundo”. A carne não é
substância do mundo, porém, ela é seu princípio de visibilidade, um
elemento do ser. Entre a minha carne e carne do mundo há uma relação
quiasmática na qual não há fusão, mas reversibilidade entre o vidente-
visível, tocante-tocado, sentiente-sensível. Essa reversibilidade
proporciona ainda uma imbricação (empiètement) e uma transposição
(enjambement) entre visão e tato, visível e tangível.
Dessa maneira, o cinema manifesta esses conceitos, pois a arte
fílmica atua sobre a questão do pensamento sob certa forma de
visibilidade que exprime a minha carne e carne do mundo. A imagem
fílmica não é uma segunda coisa, um decalque da realidade; nessa
imagem há uma precessão recíproca, pois ela evoca uma existência
visual do tangível e uma existência háptica do visual. Essa conceituação
de visibilidade está no coração da ontologia de Merleau-Ponty.
Podemos dizer que, desde suas primeiras obras, como “A
estrutura do comportamento” (1942) e “Fenomenologia da percepção”
(1945), Maurice Merleau-Ponty já se preocupava em formular uma
filosofia que se ligasse a uma forma de experiência do mundo carnal.
Essas obras dizem respeito a um projeto filosófico sobre a lógica
perceptiva, na medida em que se lançam em direção à experiência
vivida, tendo como lugar de reflexão fenômenos que não se reduzem às
explicações que as ciências, em geral, utilizam para explicar as
experiências perceptivas do sujeito no mundo.
Ainda nesta esteira, em entrevista concedida em fevereiro de
1958, Merleau-Ponty (2000, p. 287) afirmava que a vida filosófica não
deve se destacar da vida cotidiana e que o filósofo pensa o mundo de
toda a gente, expressão que se refere à necessidade de a filosofia
dialogar com a cultura, com a experiência vivida e com as produções do
conhecimento. Esse autor irá insistir na abertura da filosofia à vida, à
ciência, à historicidade e à subjetividade.
A sua conferência pronunciada no Institut des Hautes Études
Cinématographiques (IDHEC), em 1945, e intitulada “O cinema e nova
psicologia” já lançava a problemática entre filosofia, cultura e cinema.
Nessa conferência, o autor coloca o essencial questionamento: qual a
afinidade entre filosofia e cinema? Haverá uma interposição da filosofia
no surgimento do cinema, ou terá sido o cinema a persuadir a própria
virada filosófica no século XX? Para ele, o mais acertado será assegurar
19
a recíproca influência originada pelo que será um compartir geracional
em termos do sujeito e do mundo (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 116-
117).
Esse filósofo afirma que a beleza da arte e, consequentemente, do
cinema consiste em mostrar como alguma coisa se põe a significar, não
por menção a ideias já desenvolvidas e adquiridas, mas pela disposição
temporal e espacial dos elementos. Expõe, também, que um filme se
constitui de semelhante maneira que uma coisa perceptiva. No entanto,
para que uma intenção como essa possa ser posta em prática, é
indispensável reconhecer que as tarefas, por exemplo, do cinema, da
literatura e da filosofia não podem mais estar apartadas, porque a
expressão filosófica pode assumir as mesmas ambiguidades e
preocupações que a arte cinematográfica. A propósito, o objetivo do
filósofo sempre foi recolocar o sujeito no berço do sensível
(MERLEAU-PONTY, 1966, p. 48-49).
É neste cenário, no começo dos anos de 1950, que Merleau-Ponty
começa a desenvolver uma espécie de tarefa filosófica que tenha como
centro uma ontologia mais elaborada. Em 1952, em seu curso nominado
de “O mundo sensível e o mundo da expressão”, o filósofo francês
pretende já constituir as linhas mestras de seu estudo ontológico, apesar
de ainda não o chamar dessa forma. Em todo caso, podemos assinalar já
nesse curso os fundamentais aspectos de sua ontologia posterior. Ali,
Merleau-Ponty (1968, p. 11-12) lastima que as filosofias de seu tempo,
não obstante percebessem a singularidade da atividade perceptiva diante
das categorias clássicas, não retiravam dela uma renovada noção do ser
e da subjetividade.
Segundo o ponto de vista de Renaud Barbaras em sua obra De L’Être Du Phénomène: sur l’ontologie de Merleau-Ponty, a noção de
ontologia do autor estudado só se consolida em “O visível e o invisível”,
de maneira que os textos que a precedem não podem ser evocados senão
como caminho, que até lá conduziram. Merleau-Ponty estaria
continuando, em “A prosa do mundo” (1952), o trabalho empreendido
em sua obra “Fenomenologia da percepção”, sendo que esta pode ser
considerada como um trabalho preliminar que esboça a problemática da
ontologia merleau-pontiana (BARBARAS, 1991, p. 12).
Para Marcus Sacrini Ferraz (2009, p. 267-268), há maneiras
diferentes de compreender as ontologias descritas na “Fenomenologia da
percepção” em “O visível e o invisível”. Ele mostra que, na primeira
obra, eram as capacidades perceptivas subjetivas que organizavam a
manifestação do Ser, já na última, essas mesmas capacidades terão sua
gênese nos padrões de organização inerentes ao mundo. Dessa maneira,
20
o Ser não se circunscreve mais àquilo que se fenomeniza para um sujeito
encarnado, porque a própria percepção é, agora, parte de um processo de
manifestação sensível inerente ao próprio ser. Aqui, a subjetividade
deixa de estar no centro organizador da manifestação e podemos
estabelecer uma familiaridade ainda mais fundamental entre o sujeito e o
ser.
Logo, atesta-se, ao longo da obra de Merleau-Ponty, um
sucessivo alargamento do domínio em que se aspira obter uma relação
com o ser: basicamente, versava-se apenas a respeito do mundo
percebido, porém, depois, igualmente se adicionou a investigação da
natureza em geral e, finalmente, os procedimentos histórico-culturais
nos quais a vida humana está abarcada. O acréscimo é bem
considerável, tanto que Merleau-Ponty (1996, p. 37) começa a abordar
sua ontologia, no curso “A filosofia hoje”, de 1958/1959, como
“consideração do todo e de suas articulações”. Isso leva à importância
de que todos os campos do conhecimento humano possam ser
investigados, já que há uma relação com composições ontológicas não
compreendidas pelas divisões clássicas do pensamento.
Neste sentido, Merleau-Ponty (2006, p. 232-233) lembra que só é
admissível chegar ao ser, por meio dos seres ou entes, ou seja, é
indispensável buscar certos domínios ônticos para que específicos
aspectos ontológicos se façam perceber. É por essa razão que o autor
pondera acerca do cinema e da pintura e também sobre alguns eventos
históricos em seus cursos e textos finais. Ele entende que as atividades e
as matérias não filosóficas atuais estão relacionadas com o ser bruto que
a filosofia poderia explicar. É a apreciação das implicações dessas
atividades e disciplinas que permite mencionar, como tese filosófica
positiva, os aspectos das extensões compositivas do ser.
Dessa forma, o diálogo com o cinema e com outras artes
provocou deslocamentos na filosofia de Merleau-Ponty. A exploração
da pintura, da poesia, das imagens do cinema fornece uma nova visão do
tempo e do homem, bem como outras maneiras de perceber a ciência e a
própria filosofia. Em obras como “Signos” (1960), “O olho e o espírito”
(1961), “O visível e o invisível” (1964), o deslocamento de uma
filosofia da consciência para uma profunda meditação, por exemplo,
sobre o corpo e sua experiência sinestésica, será expressiva de uma nova
maneira de fazer filosofia.
Lembramos que as considerações a respeito das artes em
Merleau-Ponty estão mais fortemente ligadas à pintura, sobretudo com
“A dúvida de Cézanne” e com “O olho e o espírito”, textos dedicados a
essa arte pictórica, mesmo que a escultura, o teatro ou o cinema
21
apareçam como temas argumentativamente entrelaçados. A ênfase
atribuída à pintura está presente no autor francês como algo mais
posterior na sua filosofia, em que se distancia de uma análise sobre a
percepção para se acercar mais de uma ponderação a respeito da visão
(VIEGAS, 2010). Já concernente ao cinema, aparecem determinadas
menções, como já foi dito, em “A Fenomenologia da percepção”, mas
há mais ênfase sobre o tema na conferência de 1945, “O cinema e nova
psicologia”, no capítulo “A arte e o mundo percebido”
de Causeries (1948) e nas aulas de estética de 1952/1953 (Résumés de
cours. Collège de France, 1952-1960).
A partir desses referenciais iniciais, como compreender o papel
que o cinema possui na sua filosofia? Stefan Kristensen (2006, p. 123;
135) argumenta que, se Merleau-Ponty percebe a arte pictórica como
linguagem que expõe o início do nosso contato com o mundo, o cinema
é o que faz tornar visível o invisível das nossas afinidades com o outro.
Nesse caso, ambos, a pintura assim como o cinema, admitem um
diálogo entre visível e invisível, possibilitando compreender o
procedimento de tornar visível o invisível. Se a pintura é apreciada
especialmente por manifestar o invisível da natureza ou das coisas, o
cinema admite exibir o invisível da existência humana e seus objetos
sócio-históricos.
Ver é, por conseguinte, adentrar em um mundo de seres que se
manifestam, e eles não se manifestariam se não pudessem estar
ocultados dos outros ou detrás de alguém. Em outras palavras, olhar é
vir habitar o mundo e dali perceber todas as coisas de acordo com a face
que elas volvem para ele. Mas, no ponto em que também podemos vê-
las, elas continuam residências abertas ao olhar e, localizada
virtualmente nelas, notamos, sob distintos ângulos, a intenção
primordial da visão atual (MERLEAU-PONTY, 2006a, p. 104-105).
Na filosofia de Merleau-Ponty (2006a), a percepção é direta,
porque nela já há a significação. A questão é que alguma coisa apenas
existe para o sujeito se começar a fazer sentido em seu mundo, em sua
vida, se for experimentado, e, por adicionar-se a seu mundo, ele pode
procurar experiências prévias para significações atualizadas e especiais.
Outra fisionomia da sua filosofia é que toda imbricação do homem com
o mundo é “estesiológica”, isto é, dá-se por meio do corpo, dos sentidos,
da estesia. E, além disso, o autor assinala a comunicabilidade dos
sentidos como preceito para a percepção do mundo, o que ele nomeia de
sinestesia.
Assim, torna-se imperativo pensar sobre a percepção no cinema
para, após isso, ponderar sobre a significação possível na reprodução
22
fílmica. Se trabalharmos na compreensão de que a percepção é direta,
indo ao encontro do pensamento de Merleau-Ponty, escolhemos
compreender que aquilo que é reproduzido no filme já possui
significação para o indivíduo, mesmo que essa percepção venha
conectada à consciência de que o que se apreende é uma probabilidade
representativa do que se significa.
Podemos afirmar que essas características são reforçadas no
pensamento do conhecido teórico de cinema André Bazin. Esse autor é o
mais significativo representante da noção de que a arte cinematográfica
se fundamenta no seu domínio ontológico. Ele vem realçar a noção de
que a singularidade do filme não está na habilidade de utilização da
montagem, porém no seu contrário, isto é, na adequação modelar da
imagem fílmica ao significado da realidade (BAZIN, 2014, p. 28-29).
Essa característica ontológica marcou, nos anos de 1950, o fazer teórico
e prático do cinema, influenciando intensamente, por exemplo, o
aparecimento de movimentos cinematográficos como a Nouvelle Vague
francesa e o Cinema Novo brasileiro.
Bazin vai racionalizar esse aspecto ontológico não somente como
uma razoabilidade do cinema, mas como o cerne a que a arte fílmica
permanece atrelada. No cinema, diferentemente de outras artes, não há
um afastamento do mundo, uma disparidade no que concerne à
“physis”; o filme é a condição estética da matéria. Por essa razão, a
partir dessa noção, no cinema, há uma mágica autêntica que compõe o
fundamento para o adequado realismo, tanto mais fidedigno quanto mais
o fato é visto (ou se julga visto), através do enquadramento
cinematográfico que permanece total, reverenciado, intocável, pois a sua
mera apresentação é reveladora, o que autentica e salva a ilusão original
(XAVIER, 2005, p. 70).
Observamos que alguma coisa dessa apreciação ontológica do
cinema se localiza já no que o estudioso Ismail Xavier (2005, p. 54)
chama de “realismo crítico”, no momento em que ele busca restabelecer
a realidade à nossa atenção, não por tecnologias microscópicas, como se
raciocinava no princípio do cinema, mas dando-nos a apreender a
realidade cotidiana, fazendo visível e audível o que, na percepção do dia
a dia passa despercebido.
Trata-se de um realismo disposto a arranjar os acontecimentos
narrados em perspectiva e capaz de estabelecer suas relações de maneira
a que se dê um resultado peculiar. Aqui, a imagem e o som não se
ajustam com a intenção de exibir algo, porém com o objetivo de denotar
algo, em nome de uma apreensão do seu sentido sócio-histórico
(MONTEIRO, 1996, p. 66-67).
23
A partir desse viés, as afinidades entre o visível e o invisível, o
intercâmbio entre o dado imediato e suas significações torna-se cada vez
mais entrelaçado. O decurso de imagens elaboradas pela montagem
fornece relações atualizadas a todo momento e somos, na maioria das
vezes, induzidos a estabelecer amarrações propriamente não existentes
na tela. A montagem indica e nós fazemos a dedução. Os sentidos se
entrosam menos pela energia de isolamento e mais por entusiasmo de
contextualizações para as quais a arte cinematográfica possui um livre-
arbítrio apreciável (XAVIER, 1997, p. 367).
Resulta-se, aí, a declaração de que a visão e o mundo convivem
em uma ambiguidade sem solução, ou seja, somente nos identificamos
no nosso pertencimento ao mundo de uma maneira imprecisa, “estar-no-
mundo” como “viver-no-mundo”, e o cinema é, aqui, exemplar. Por
meio da arte fílmica, há um reendereçamento da visão que vê (vidente) a
si mesma enquanto visível, permitindo entender, por um sentido, que o
mundo em si e para mim é um somente e, por outro, que é uma
faculdade de justaposição ao outro tal como ele é em si, atenuando a
separação entre vidente e visível (VIEGAS, 2010).
Dessa maneira, a autora Suzana Viegas (2008, p. 43) destaca no
pensamento de Merleau-Ponty quatro ideias-chave a respeito do cinema,
influenciadas, em maior medida, pela teoria da gestalt, pelo escritor
André Malraux e pelo cineasta Roger Leenhardt1. São elas: a adesão
entre a percepção e o cinema em que este último é um objeto percebido
modelar; a afinidade singular entre visível e invisível; a reversibilidade
entre vidente e visível; por fim, a arte fílmica como forma temporal que
apenas a si própria remete. Todas essas ideias transportam em si fortes
cargas ontológicas, mostrando os traços essenciais entre cinema e
filosofia.
Primeiramente, a noção de gestalt é a ampla inspiração da
exposição que Maurice Merleau-Ponty faz da arte cinematográfica e, por
isso, inicia por diferenciar a psicologia clássica da teoria da gestalt, por
meio da apreciação da percepção do mundo, a partir de exemplos
palpáveis da audição e da visão. Segundo a psicologia clássica,
compreendem-se os objetos da percepção juntando ou reorganizando as
inúmeras partes, o painel do qual é elaborado o campo perceptivo.
1 A grande influência para a reflexão sobre o cinema foi não só de André Malraux e as
análises de base psicológicas sobre a técnica cinematográfica e as categorias da imagem,
som, montagem, etc que Malraux expõe em L'esquise d'une psychologie du cinéma,
escrito em 1940, mas também de Roger Leenhardt e o texto escrito para a Revista
Esprit,em 1936, chamado Le rythme cinématographique.
24
Inversamente a esta teoria, analítica e intelectual, do homem diante do
mundo e dos outros, a psicologia gestalt assegura a percepção do todo
como forma integral de exposição do “estar-já-no-mundo” (VIEGAS,
2010).
Dessa forma, a percepção é contígua e analítica, pois se está, de
maneira inevitável, imerso no mundo, porque, do ponto de vista de
Merleau-Ponty, estar-no-mundo é viver-no-mundo. A percepção natural
diferencia-se da percepção analítica por não apartar os elementos, por
não compor um painel de elementos sobrepostos, antes assegurando a
composição de um código de configurações do todo, da forma sobre o
fundo (VIEGAS, 2008, p. 32-33).
A percepção analítica, que dá o valor absoluto dos elementos
isolados, corresponde, portanto, a uma atitude tardia e excepcional, é
aquela do cientista que observa ou do filósofo que reflete. A percepção
das formas, no seu sentido geral de percepção de estrutura e de conjunto
ou de configuração, pode ser considerada como o modo de percepção
espontâneo. Assim, o cinema, como uma “nova psicologia” evidencia o
caráter sinestésico da percepção.
Podemos dizer, então, que a atenção do filósofo pelo cinema,
enquanto objeto percebido, baseia-se na sua contribuição para a
fenomenologia da percepção e do olhar e também na probabilidade de
uma justaposição em relação aos outros. A circunstância em que o
espectador acede aos dados dos sentidos será de grande relevância,
porque, tal como no princípio de formatação da percepção em que o
todo precede as partes, também o filme é percebido como um todo.
Som, imagem, diálogo, música e montagem são um todo, ou seja, uma
forma de temporalidade (VIEGAS, 2010).
Por essa razão, a visão de quem percebe torna-se uma visão
cinematográfica, uma visão que combina e convive com a própria arte
fílmica. No cinema, o olhar é reendereçado a si mesmo como olhar
visível. A potencialidade filosófica do filme será a de revelar de que
maneira se está mergulhado no mundo e nos outros, de que modo a
própria intencionalidade desponta e torna-se visível através dos recursos
cinematográficos.
Essas características remetem à noção de corpo, que pode ser
entendido como espaço e luz para a visão. O ato de ver se realiza no
mundo por meio da corporeidade, sem destituir da visão sua
especificidade de ser visão. Ela é em si mesma, mas sempre em
consonância com o corpo. É relevante frisar que não é o espaço como
unidade de relações, conforme compreendia René Descartes, que
interessa a Merleau-Ponty. A sua atenção está voltada para o movimento
25
da corporeidade/mundo que, por sua vez, examina as especificidades do
movimento da visão e do corpo.
A experiência corpórea, olhar e ver, expressa um pensamento em
ação, em movimento na experiência vivida. Quando elege a visão em
suas reflexões, Merleau-Ponty evidencia o olhar inerente à corporeidade
e retoma a experiência da visão e do corpo na experiência do
pensamento como vivência da corporeidade e da carnalidade. Logo, o
cinema possui a capacidade de manifestar o interior do corpo vivido por
meio do exterior do corpo visto, como nas emoções reproduzidas pelos
atores e visíveis nos seus sinais e atitudes. É a exterioridade dos corpos,
mas, sobretudo, os comportamentos e os gestos, é uma revelação de uma
concordância intencional, de uma consciência que apalpa as coisas e os
outros (VIEGAS, 2008, p. 41).
No que diz respeito à questão da visibilidade, Merleau-Ponty
(2006, p. 162) profere que “eu, o vidente, sou também visível”. Ele
lança mão do termo quiasma para se referir a esse relacionamento de
intersecção ou de reversibilidade entre o vidente e o visível, o tocante e
o tocado, o falante e o falado e que, na obra “Fenomenologia da
percepção”, aparece como composição ontológica da oposição
reversível de sujeito-objeto, interior-exterior. É o entrecruzamento ou
intersecção do olhar em que me observo do exterior, “é preciso que
aquele que vê não seja ele próprio estrangeiro ao mundo que vê”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 175).
A reversibilidade pode ser levada em conta, já que é a imbricação
entre o tocante e o tangível, entre o vidente e o visível. É uma estrutura
de reversibilidade que manifesta a dificuldade de assimilação simultânea
dos dois estados, passivo e ativo, ver e ser ouvido, pois, nessa
experiência, existe continuamente uma lacuna ou uma distância entre o
olhar que vê e se inclui visto. No exemplo de Merleau-Ponty (2006a, p.
201), a mão direita que apalpa a mão esquerda não pode ser apalpada, já
que, ao ser ativa, não pode, concomitantemente, ser passiva, porque, ao
ser apalpada, a mão direita não é um objeto, e sim a reversibilidade
reflexiva do seu toque.
Ao analisar essa questão, notamos que há uma ligação que
circunvizinha os dois lados, isto é, as naturezas do ser vidente e visível;
contudo não é possível presumir quem observa primeiro ou se o corpo se
percebe antes mesmo de olhar os objetos. A permanente sintonia do
vidente e do visível é inteligível pela sua forma sensível, que é
retribuída por uma afinidade entre o visível e as coisas. Próximos, o
corpo principiado no mundo sensível encontra, na exterioridade, uma
interioridade e, na interioridade, a exterioridade; todavia não estão
26
desunidos, pois os extremos se tornam compreensíveis, partes do
próprio todo. Assim, o corpo atua – possui a capacidade de ver – e seu
ato assenta sobre si mesmo.
O corpo, indivisível, permitindo ser percebido não somente como
aparência, demonstra como a visão com respeito ao corpo é diferente;
decisivamente, o corpo no seu ser, na sua essência, atravessa o mundo,
devido a certo grau de afinidade. Portanto não existem balizas que
constranjam o corpo a ser vidente e o mundo a ser o visível. A carne do
mundo imbrica, transporta o corpo e as coisas, transforma em si as
parcelas comuns dos outros seres, outorgando ao corpo o direito de
conviver com as coisas como se ficassem presas na mesma conjuntura.
A carne não é simplesmente uma conexão, não prediz duas parcelas
afastadas, mas ampara o entrelaçamento do corpo e das coisas, já que é
um elemento do ser.
Desse modo, a arte, nomeadamente, o filme, é o lugar de encontro
do outro e de si próprio, porque o olhar possui a habilidade táctil de
abarcar o mundo e os outros, de apalpar o visível. A reversibilidade
entre o cinema e a sua experiência denota que, nessa arte, o ato de ver
torna-se visível nesse procedimento que não é dialético, mas
coincidente. Na arte fílmica, o espectador não só apreende e entende as
experiências dos outros como, de uma maneira reflexiva, nota e percebe
a sua própria percepção e compreensão. Trata-se de uma imbricação
entre a experiência direta, percepção contígua das experiências dos
outros, e a experiência indireta, percepção intercedida pelas experiências
dos outros (VIEGAS, 2008, p. 35).
Além desses aspectos, o cinema é uma configuração temporal ou
“unidade melódica” de imagem e som. Se, por um viés, o cinema é uma
amostra visível de tudo o que a nova psicologia gestalt expõe acerca da
percepção em geral, por outro, a psicologia pode colaborar para a
apreensão do que está conexo à percepção cinematográfica. “Um filme
não é uma soma de imagens, porém, uma forma temporal” (MERLEAU-
PONTY, 1983, p. 110), isto é, uma coesão temporal visual e sonora, o
que induz Merleau-Ponty a mencionar as conhecidas experiências de
Lev Kuleshov nas quais este autor soviético, utilizando o mesmo plano
do ator Mosjúquin, no entanto, através da montagem de diferentes
sequências, leva o espectador a ver, em sua face, distintas emoções, de
acordo com o decurso das imagens.
Na concepção de um filme como configuração temporal, não se
trata somente de incorporar som a imagens antecipadamente capturadas
ou o inverso, porquanto a relação entre esses dois elementos é essencial.
Merleau-Ponty advoga a verossimilhança narrativa e a sincronia
27
imagem-som de um filme com o objetivo de instituir uma realidade
inteiramente nova, ou seja, se não fossem exibidos em uma tela, não se
teria o ensejo de observar esses fatos na realidade. O autor assevera
ainda que um filme pode expor uma história por imagens e sons,
igualmente como o romance o realiza pelas palavras; o cinema, então, é
uma arte visual e narrativa e, como implicação, assegura que o escopo
da arte cinematográfica não será a de produzir ideias. Não existe uma
realidade para além da tela de projeção, só há uma para ali, onde se
localiza o espectador no desenvolvimento do olhar vidente e visível. O
que é inerente ao filme é a sua visibilidade (MERLEAU-PONTY, 1983,
p. 112-115).
É importante destacar ainda que a questão da visibilidade vincula-
se com temporalidade e esta, por sua vez, relaciona-se com o sujeito e o
mundo. O tempo concentra duas dimensões, sujeito e objeto, no sentido
de que existiria, então, um “tempo sujeito” e um “tempo objeto” e é por
essa razão que ele se torna fundamental para a compreensão das relações
entre sujeito e mundo. Segundo Merleau-Ponty, um dos aspectos básicos
que já aponta para um vínculo entre temporalidade e subjetividade
consiste na constatação comum de que se vivem as experiências umas
após as outras, sempre com um “antes” e um “depois”; porém, segundo
o autor, outro aspecto apresenta uma relação muito mais íntima entre o
tempo e a subjetividade, pois as pessoas não são eternas (MERLEAU-
PONTY, 2006a, p. 549).
Podemos, então, levar em consideração a relevância da arte
fílmica para além dos estudos a respeito da percepção de cunho
psicológico, quando se diz que o cinema não consente unicamente em
mostrar ideias. Do ponto de vista de Merleau-Ponty, a intenção do
cinema está na sua percepção, no fato de manifestar abertamente modos
e atitudes humanas, maneiras de estar no mundo, características
ontológicas de se relacionar com o outro e com as próprias coisas, já que
os estados emotivos são, tanto no cinema como nessa nova psicologia,
atitudes e comportamentos.
Para a ampliação e a compreensão de todos esses aspectos,
organizamos a estrutura do trabalho da seguinte maneira: no capítulo 1,
faremos uma exposição geral acerca de relações entre cinema e filosofia
e da importância de alguns autores cujos vários sistemas e abordagens
são tomados para problematizar o cinema como fenomenologia e como
ontologia, dando destaque para o filósofo Gilles Deleuze e o cineasta
Jean-Luc Godard. No capítulo 2, daremos ênfase a algumas ideias de
Merleau-Ponty referentes à natureza e à significação do filme, pois, para
esse autor, as análises de um objeto em geral, aplicam-se igualmente ao
28
cinema, enquanto este é um objeto a se perceber e não a se pensar, isto
é, quando se percebe um filme, cinema e mundo se organizam perante o
indivíduo.
Já no capítulo 3, examinaremos as relações entre arte, linguagem
e cinema, buscando compreender a arte, especificamente como
manifestação de liberdade, indivisibilidade e mistério do sensível e da
temporalidade, analisando o que daí decorre em direção à futura
instituição de uma nova forma de ontologia. Por fim, no capítulo 4,
analisaremos a constituição do filme e do ser como elementos
intrínsecos diante de uma nova perspectiva ontológica, na qual cinema,
carne e mundo gravitam um sobre o outro, para abertura do processo
cabal de visibilidade, fenômeno que vemos, notadamente, no cinema
moderno (como mostraremos nas relações de Godard como Merleau-
Ponty) e mais especificamente em obras contemporâneas, como no filme
“Zidane: um retrato do século XXI (2006), em que a dimensão
ontológica merleaupontiana pode ser amplamente manifesta.
Levando ao máximo as ponderações de Merleau-Ponty,
compreendemos mais claramente que, entre o pensamento filosófico e a
arte fílmica, não existe uma primazia de uma em relação à outra, porém
há uma convivência: o cinema mostra e torna visível a maneira de
ponderarmos as afinidades com os outros, com o mundo, e a filosofia dá
a possibilidade de reflexão a respeito do que se exibe nas imagens, isto
é, a sua visibilidade (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 117). Existe,
portanto, uma relação inerente e autônoma entre a arte e o pensar que se
imbrica com a minha carne e a carne do mundo. Assim, permite-se que
o olhar que vê se descubra a si mesmo como visível e invisível, e que o
cinema seja iminentemente uma expressão ontológica por excelência.
29
1 A ARTE CINEMATOGRÁFICA EM BASES REFLEXIVAS
Optamos por realizar, neste capítulo, uma exposição geral acerca
das relações entre cinema e filosofia e da importância de alguns autores
cujos vários sistemas e abordagens são tomados para problematizar o
cinema como fenomenologia e como ontologia. Nossa intenção, neste
momento, não é traçar um rol numeroso de estudiosos que trataram
dessas questões, mas apontar algumas linhas de pensamento que nos
auxiliarão no posterior aprofundamento desses temas.
1.1 FILME, FENOMENOLOGIA E ONTOLOGIA: AUTORES E
CONCEITOS
O cinema pode ser considerado um meio criativo, um produtor de
novas e diferentes coisas. O que o governa, o que o impulsiona, o que o
produz são as questões que muitos teóricos do cinema e filósofos
procuraram articular. Cinema envolve também outras formas
audiovisuais, tais como a televisão, jogos de computador, indústrias de
mídia on-line que remodelam o conhecimento do mundo por meio de
várias categorizações, gêneros, campos de investigação, diferentes
métodos de representação, intervenção ou provocação. Por meio dos
seus vários pressupostos e finalidades diferentes, o cinema mostra e
indaga as formas como nós agimos sobre as coisas do mundo, incluindo
a própria natureza do pensamento que é, de uma forma ou de outra, uma
atividade perceptiva, mas também corpórea e carnal.
Dessa maneira, a pergunta “O que é o cinema?” é uma questão
ontológica, já que é uma indagação acerca das formas pelas quais o
cinema pode reunir partes diferentes, expressões, tecnologias e eventos e
produzir uma unidade inteira: um filme, uma obra audiovisual. Mas é
também uma questão fenomenológica, em que estão situadas as
explorações de consciência e de ser cinematograficamente produzidas
por meio da percepção e do movimento.
No que tange a esse aspecto, a fenomenologia pensada por
Edmund Husserl (1988) é uma volta ao mundo vivido, ao mundo da
experiência, o ponto de partida de todas as ciências. A fenomenologia
propõe descrever o fenômeno, e não explicá-lo ou buscar relações
causais; volta-se para as coisas mesmas como elas se manifestam. Voltar
às coisas mesmas significa voltar ao mundo da experiência,
considerando que, antes da realidade objetiva, há um sujeito que a
vivencia; antes da objetividade, há um mundo pré-dado, e, antes de todo
conhecimento, há uma vida que o fundamentou.
30
Husserl faz da fenomenologia uma investigação filosófica que
pretende elucidar de que maneira a possibilidade de conhecer eventos e
objetos mundanos se funda nas estruturas de consciência. Essa
investigação situa-se no conceito de “intencionalidade”. Diz ele: “A
palavra intencionalidade não significa nada mais que essa
particularidade fundamental e geral que a consciência tem de ser
consciência de alguma coisa, de conter, em sua qualidade de cogito, seu
cogitatum em si mesma” (HUSSERL, 2001, p. 51).
Esse conceito de intencionalidade indica que o aspecto primordial
da consciência é seu atributo de se referir constantemente a algo que não
ela mesma: ter consciência é sempre ter consciência de alguma coisa.
Explicitando melhor, a consciência é uma atividade composta por atos
(percepção, imaginação, paixão etc.), com os quais objetiva algo. A
percepção é percepção de um percebido, a imaginação é a imaginação
de um objeto imaginado, o desejo é desejo de um desejado. Logo, a
consciência somente é consciência estando voltada para um objeto,
assim como o objeto só pode ser definido em relação com a consciência
(CARMO, 2011, p. 17-18).
É importante dizer que o mundo fenomenológico é composto
pelos modos de doação dos objetos em correlação com os atos de
consciência. É por essa razão que a investigação husserliana partilha do
idealismo transcendental. Em virtude do conceito de intencionalidade,
Husserl entrevê, entre sujeito e objeto, ou consciência e mundo, uma
correlação mais amplificada que a dualidade sujeito-objeto do
pensamento cartesiano. Na verdade, esse filósofo alemão quer
demonstrar um método de cognição que, enquanto mantém uma espécie
de análise imanente aos conteúdos da consciência, poderia ainda chegar
a um conhecimento mais “absoluto” e “universal”.
As noções de Husserl a respeito de uma consciência que não está
circunscrita a si mesma, porém relaciona-se abertamente com o mundo,
foram compreendidas, por exemplo, por Jean-Paul Sartre como as bases
de uma filosofia da ação. Já Maurice Merleau-Ponty (filósofo sobre o
qual nos aprofundaremos em capítulos subsequentes) empreendeu uma
virada corporal na fenomenologia, ampliando a ideia de
intencionalidade, inscrevendo-a como marca de todo e qualquer
fenômeno no interior da experiência vivida, enraizando-a na experiência
primária, imediata e pré-reflexiva do corpo situado no mundo. Agora, o
corpo não mais como mero suporte para atividade da mente, mas como
fonte de toda experiência possível (CARMO, 2011, p. 8-9 e 19-20).
O alcance da fenomenologia não se restringiu somente ao campo
da filosofia, pois diversos pensadores das ciências humanas buscavam
31
nela um suporte, um diálogo e subsídios metodológicos. Nesse contexto,
autores alemães como Hugo Münsterberg e Rudolf Arnheim,
ligeiramente influenciados pela fenomenologia e mais preocupados com
as relações entre psicologia e percepção visual, irão tecer relevantes
reflexões sobre a noção de cinema.
O filósofo e psicólogo Hugo Münsterberg, em 1916, publicou
uma obra intitulada The Photoplay: A Psychological Study, livro que
muitos consideram como um inovador trabalho da teoria do cinema e o
primeiro a considerar as potencialidades específicas de cinema como
uma forma de arte independente (LANGDALE, 2002, p. 2).
Infelizmente, a edição do seu texto inovador esgotou-se logo após a
Primeira Guerra Mundial e só foi relançada em 1970. Embora ainda hoje
pouco conhecido, Münsterberg é considerado como uma das principais
figuras intelectuais de sua época, um dos fundadores da psicologia
aplicada (ANDREW, 1976, p. 14-15).
O autor em tela foi um incansável defensor do cinema,
promovendo-o como uma forma de arte legítima capaz de sintetizar, em
seu bojo, fotografia, drama, literatura e música. Como muitos teóricos
iniciais do cinema, Münsterberg tentou identificar as especificidades
artísticas desse novo meio, defendendo a validade do cinema como uma
forma de arte diferente do romance e, de certa maneira, superior ao
teatro e à fotografia. Ele também articulou, de forma distinta, dimensões
psicológicas da experiência cinematográfica, com o paralelo sugestivo
entre técnicas cinematográficas e experiência perceptiva, antecipando
assim sua própria estética psicológica do filme (CARROL, 1988, p.
490).
De fato, Münsterberg chamou o cinema, mantendo um paralelo
teatral comum em sua época, de photoplay (peça cinematográfica,
literalmente uma peça de teatro filmada, ainda que ele argumente que o
cinema não pode ser reduzido ao teatro). Sua principal contribuição para
a teoria do cinema envolve seu apurado exame do paralelo entre
dispositivos cinematográficos (close-up, flashback, movimentos de
câmera, cortes etc.) e atos psicológicos de consciência (atenção,
lembrança, imaginação, estados emocionais etc.). Podemos, portanto,
entender o poder estético do filme, uma vez que assistimos ao modo
como ele influencia a mente do espectador, o que significa analisar o
processo mental que essa forma específica de atividade artística produz
em nós (MÜNSTERBERG, 2002, p. 65).
Nas análises de James Dudley Andrew (2002, p. 30), importante
teórico do cinema, nos diz o seguinte:
32
Münsterberg foi em primeiro lugar um filósofo,
um idealista da escola neokantiana. E é a estética
kantiana que ele nos entrega pré-embrulhada no
início da parte II de seu livro. Seguindo Kant,
Münsterberg utiliza um tipo inteiramente diferente
de análise quando se volta da psicologia para a
estética. A psicologia é parte de um modo de
pensar científico. Tenta explicar aspectos do que
Kant chamou de “domínio fenomênico”, o
domínio do senso de experiência onde as coisas
são ligadas no tempo, no espaço e na causalidade.
A introdução histórica de Münsterberg descreveu
a epiderme do cinema, tratando-o como um objeto
in natura. A parte I concentrou-se na psicologia
porque Münsterberg considerava o cinema um
objeto para experiência exigindo que o
relacionemos com o local da experiência, a mente
(ANDREW, 2002, p. 30).
Para Münsterberg, a história do cinema divide-se entre
desenvolvimentos cinematográficos externos e internos, isto é, entre a
história tecnológica do meio e o desenvolvimento do uso, pela
sociedade, desse meio. A história descreveu o objeto que geralmente
chamamos de cinema, e a psicologia revelou como o objeto externo
concebe o objeto interno, que é, na verdade, o filme. Juntas, essas
explanações elucidam os aspectos “fenomênicos” do cinema. A segunda
metade de seu livro vai da ciência para a filosofia, explicando a forma e
a função do cinema, isto é, o “domínio numênico”. Ainda que a ciência
seja hábil em mostrar como uma coisa ganhou existência e como
funciona em nossas vidas, é incapaz de descrever o valor desse objeto
(ANDREW, 2002, p. 30).
Dessa maneira, o autor combina, em sua obra, uma abordagem de
“atitude estética” kantiana, com uma metafísica da arte
schopenhaueriana, como que nos permitindo transcender nosso imediato
contexto espaço-temporal. Ele começa explanando que a tradicional
abordagem mimética – a arte como imitação da natureza – é claramente
inadequada para dar conta dos aspectos da arte. Essa arte não pode ser
simplesmente imitação, já que a imitação como tal não é necessariamente agradável esteticamente. Além do mais, muitas das
artes mais esteticamente impressionantes são não miméticas, como a
arquitetura e a música, ou envolvem decididamente técnicas ou
33
mecanismos estéticos não imitativos, como o discurso poético e a
performance dramática (MÜNSTERBERG, 2002, p. 113-115).
Por essa razão, o filme tem sua própria estética, que não pode ser
importada da pintura, da literatura ou do teatro. Tanto das perspectivas
estéticas como das psicológicas, o filme narrativo apresenta uma história
humana “superando as formas do mundo exterior, ou seja, espaço,
tempo e causalidade, e ajustando os eventos em relação às formas do
mundo interior, isto é, a atenção, a memória, a imaginação e a emoção”
(MÜNSTERBERG, 2002, p. 129, tradução nossa).2 Em outras palavras,
a abstração inerente da imagem fílmica (especialmente no filme mudo)
distancia a performance da tela do reino físico e a traz mais perto das
dimensões mentais de experiência.
Podemos dizer, então, que a reivindicação de Münsterberg para
com o cinema não é da ordem metafísica ou epistemológica, porém é
uma afirmação sobre o tipo de experiência estética que o filme
possibilita, em contraste com outras formas de arte, tal como o teatro. A
“performance” cinematográfica não é tão ligada ao espaço, ao tempo e à
causalidade, como é a performance teatral ao vivo, uma vez que esta
última é sempre necessariamente confinada ao espaço-temporal presente
de discursos e ações dos artistas. A imagem do artista na tela, por outro
lado, pode ser justaposta com diversos números de outras imagens de
espaços diferentes, às vezes até mesmo “desafiando” a causalidade
comum por meio do uso criativo da montagem e dos efeitos especiais,
especialmente hoje com o cinema de animação e o cinema digital,
graças a imagens geradas por computador.
Percebemos que o cinema manipula exteriores formas de espaço,
de tempo e de causalidade, com o intuito de destacar que não estamos
lidando com alegações metafísicas extremamente estranhas ou bizarras.
Os dispositivos técnicos e as técnicas estéticas do meio cinematográfico
tornam possível uma manipulação estética de espaço, de tempo e de
causalidade, de maneira que não estão frequentemente disponíveis para
uma performance teatral ou para outras artes. Tal fato é importante, pois
tem relação com uma possível transformação de nossa própria
experiência cinematográfica. Assim, esse é o legado duradouro do
trabalho inovador de Hugo Münsterberg sobre uma filosofia do cinema
ou uma estética fílmica.
2 Na versão original: by overcoming the forms of the outer world, namely, space, time,
and causality, and by adjusting the events to the forms of the inner world, namely,
attention, memory, imagination, and emotion.
34
Já o psicólogo e teórico alemão Rudolph Arnheim está
interessado no cinema como arte. Para ele, à semelhança de outros
meios artísticos, como foto, música, dança e literatura, o filme pode
servir a várias funções, uma das quais é a artística. Todavia, a principal
crítica feita a esse entendimento do cinema como arte, está relacioanda à
caracterização da sua capacidade de representação, isto é, como um
meio fotográfico, o filme é meramente uma reprodução da realidade
(ARNHEIM, 1957, p. 2).
Como Noël Carroll observa, tal crítica vem da crescente
tendência artística no final do século XIX e começo do XX em direção à
denominada antimímesis. De Baudelaire a Croce, a principal função da
arte, alegam, não pode ser encontrada na imitação da natureza e,
portanto, o filme, que se destaca em “re-apresentar” a realidade, é
considerado esteticamente inadequado para pertencer ao mundo da arte
(CARROL, 1988a, p. 21).
Uma implicação de tal crítica é que os processos mecânicos
envolvidos na fotografia e no cinema não permitem controles ou
intervenções criativas de seus operadores. Pintores, por exemplo, podem
intervir a qualquer momento durante o processo de pintura, desde a
decisão do tema, composição, desenho e cor do pigmento. Em contraste,
cineastas, fotógrafos têm uma gama limitada de controle – como
iluminação e a colocação de objetos durante o processo de filmagem –
enquanto o restante é submetido por meio de um processo mecânico
mais ou menos automático.
Em sua tentativa de desafiar a crítica estética da fotografia e do
cinema, Arnheim primeiro pergunta se o processo de filmagem é
realmente automático. Uma imagem fotográfica de um objeto simples,
tal como um cubo, observa o autor, não é automaticamente obtida. Pode-
se ter sucesso ou falhar na tentatica de elaborar um objeto reconhecível
para o espectador e, portanto, requer habilidade do fotógrafo ou do
cineasta para encontrar ângulo e iluminação adequados (ARNHEIM,
1957, p. 9-10).
Dessa forma, a capacidade de representação do cinema e da
fotografia não é simplesmente dado, mas é algo que pode ser alcançado
em virtude das habilidades do cineasta e do fotógrafo. Esse autor alemão
não concebe a relação entre uma imagem e seu referente como uma
questão de “verdade” ou correspondência. Pelo contrário, está em jogo a
sensibilidade estética de um fotógrafo, que pode fornecer uma percepção
do objeto. Um artista do cinema captura a essência de um objeto ou um
evento, e não há um conjunto de regras a seguir. É uma questão de
sentimento (ARNHEIM, 1957, p. 10).
35
Especificamente em relação ao cinema, Arnheim enumera um
conjunto de atributos de uma obra cinematográfica que diferencia a
percepção fílmica da percepção natural. Da redução da profundidade, à
iluminação, à delimitação da tela, à ausência da continuidade espaço-
tempo e à ausência de cor (filme preto e branco), a transformação
fílmica da realidade fica aquém de prestar uma réplica exata da
percepção natural. Em imagens fílmicas, por exemplo, tamanhos e
formas dos objetos não permanecem constantes do modo que
normalmente vemos dois objetos distantes. Em vez disso, o objeto no
fundo de uma imagem parece desproporcionalmente pequeno, devido à
visão monocular da câmera (ARNHEIM, 1957, p. 13-14).
Além do mais, Arnheim destaca um aspecto que ele acredita que
distingue o cinema da fotografia e do teatro. O filme produz, no
espectador, um singular efeito “espectatorial”. Este autor afirma que a
imagem fílmica não é nem completamente bidimensional, nem
completamente tridimensional, tornando uma ilusão “parcial” do espaço
real. Um dos aspectos relacionados a essa perspectiva está de acordo
com alguns princípios da psicologia da gestalt. Mesmo o processo mais
elementar de visão não recebe passivamente dados do mundo real, mas
criativamente organiza matérias-primas sensoriais em conformidade
com um conjunto de princípios. Na percepção natural, não precisamos
de todos os detalhes para inferir o todo. Da mesma forma, com poucos
aspectos salientes de objetos e eventos representados em um filme,
podemos ainda ter um forte senso do real (ARNHEIM, 1957, p. 28-29).
Essas observações ontológicas e epistemológicas de Arnheim
sobre o cinema levam-no a afirmar que o filme está longe de ser uma
cópia perfeita da realidade, fornecendo ao espectador uma experiência
perceptiva como uma alternativa tanto à percepção natural, como à
percepção dada por outros meios artísticos. Dessa maneira, o objetivo
dos cineastas não é meramente “re-presentar” a realidade, desdobrando-
se em frente à câmera, mas transformar suas restrições materiais na
chamada “expressão cinematográfica”. Aqui o autor enfatiza a natureza
expressiva da percepção visual em geral, considerando que nosso
mecanismo perceptual não se limita a registrar os dados dos sentidos,
mas reconhece-os como expressão (ARNHEIM, 1974, p. 454-455).
Para Arnheim, expressão é uma característica inerente de padrões
de percepção, não é uma projeção ou associação com as qualidades
expressivas do ser humano e os seres animados. A expressão
cinematográfica, além de envolver o processo fílmico de transformação
do real, também reflete e registra a visão artística e a sensibilidade do
cineasta. Portanto a representação cinematográfica não é um veículo de
36
transferência do real, não é apenas um instrumento de observação, mas
um meio de traduzir e de comunicar-se através do real. A valorização
estética do filme pode, então, incluir o entendimento de conteúdo e sua
aparência expressiva (ARNHEIM, 1974, p. 452).
A arte cinematográfica não é uma imitação, mas uma
transformação da natureza. Para ser arte, o cinema explora e realça tanto
o espaço formal, como o fenomenal entre natureza e cinema, ou seja,
quanto mais estreita é a diferença entre a reprodução fílmica e a
realidade, maiores são as chances de se tornar um filme de arte. Além do
mais, o cinema requer um tipo de agir diferente do que é desejável em
teatro, por exemplo, uma vez que o tamanho da tela e o close-up
aumentam a legibilidade de ação do personagem. A atuação e os gestos
em cinema contêm precisão e clareza, na medida em que eles podem ser
vistos como não naturais.
Para Arnheim, as qualidades cinematográficas, isto é, os efeitos
produzidos por meio da câmera parecem ter mais significância do que os
efeitos produzidos por outros meios, tais como o cenário, os trajes ou
mesmo a cor. Esse autor nega o potencial artístico do filme colorido, não
só porque ele se aproxima da realidade mais do que o filme em preto e
branco, mas também porque a liberdade artística dos cineastas só pode
ser alcançada por meio da escolha e configuração da cor através da
mise-en-scène. Tal processo é meramente uma “transposição”, não uma
“transformação” da realidade (ARNHEIM, 1957, p. 155).
Assim, a importância da teoria do cinema de Rudolph Arnheim
reside em sua tentativa de construir sistematicamente uma teoria que se
concentra, principalmente, em como a forma fílmica envolve os
mecanismos perceptivos e conceituais do espectador e, além disso, ela
pretende localizar a fonte de potenciais artísticos nas próprias limitações
da obra cinematográfica.
Posteriomente, pôde-se notar uma intersecção mais clara da
Fenomenologia com o estudo do cinema, em meados dos anos 1940, na
França, com a inauguração do movimento denominado de Filmologie,
que durou até a década de 1960 e que teve como tarefa a descrição não
só de filmes, mas também de atividades existenciais, psicológicas e
institucionais do cinema e exibição de filmes. Esse movimento chegou a
publicar uma revista chamada Revue Internationale de Filmologie
(1947-1960), com ensaios que enfatizavam a investigação
fenomenológica na natureza qualitativa e a psicologia da percepção
cinematográfica que diferenciava outras produções de percepção de
consciência, tais como sonhos, lembranças e ilusões (CASETTI, 1999,
p. 91-92).
37
Filmologie também forneceu um contexto em que o interesse pelo
cinema aumentou entre os filósofos e os estudiosos não diretamente
relacionados a esse movimento. Houve, por parte deles, uma variedade
de investigações fenomenológicas do cinema que descreveram a sua
“ontologia”, manifestando, todavia, dois interesses temáticos muito
diferentes: um, em uma antropologia existencial e social focada nos
efeitos culturais do cinema como um novo modo de simbolizar o nosso
“mundo da vida”; outro, em uma estética transcendental voltada para o
cinema como uma forma de expressão e de criação mediada
tecnologicamente (CASETTI, 1999, p. 91-92).
Influenciado por Maurice Merleau-Ponty, o antropólogo Edgar
Morin, em sua obra: “O cinema, ou o homem imaginário” (1956), foi
insistente na lógica corporal e afetiva do cinema. Esse autor abre sua
referida obra, chamando a atenção para dois elementos: a fotografia e o
cinema, que são precursores necessários para seu tema principal, ou
seja, o cinema como um fenômeno que podemos compreender em sua
plenitude.
Para ele, as máquinas inovadoras do século XIX de imagens-
capturas automáticas colocam o homem em uma nova relação com o
mundo e consigo mesmo. No entanto, nenhuma delas carrega as
características espaciais e temporais muito mais complexas, específicas
do cinema, quando este surgiu pouco antes da Primeira Guerra Mundial,
como um espetáculo de massa com potencial mítico (MORIN, 1985, p.
3).
Em suas análises, Morin coloca a reflexão filosófica em diálogo
com as descobertas antropológicas. Ele relaciona a ideia da fotogenia
com o movimento de certas imagens gravadas mecanicamente. A magia
da imagem cinematográfica desdobra-se no próprio tempo do
espectador, ou seja, a imagem de um trem move-se rapidamente na tela,
enquanto o espectador assiste com espanto, ou corre rapidamente para
longe da tela, para se proteger. Não se pode dissociar a imagem da
presença do mundo no homem e a presença do homem no mundo, sendo
que a imagem pode ser considerada seu meio de reciprocidade. Tanto as
imagens fotográficas, como as cinematográficas são avatares modernos
(MORIN, 1985, p. 15-17).
Dessa maneira, o cinema introduz uma terceira dimensão, por
assim dizer, em que o espectador participa ativamente daquilo que está
na tela, mais do que apenas olhar maravilhado, ou com medo. Com as
imagens fílmicas, o espectador é puxado para um mundo na tela, por
meio de um processo de identificação. Essa identificação é fundada na
metamorfose da imagem, e não sobre a imagem como dualidade.
38
Segundo Morin, foi primeiramente o cineasta George Méliès que usou
as imagens de seus filmes de ficção para produzir não uma réplica da
realidade, mas a realidade como que transformada magicamente
(MORIN, 1985, p. 21).
Morin vê um salto qualitativo, quando o espectador se torna mais
do que um fascinado espectador e, em vez disso, participa de um mundo
transformado em uma tela branca. A preocupação do autor francês
nunca foi a de compreender o cinema como duplo, contudo o cinema
pode ser visto como vivo dentro da imaginação, vivo quase como a
imaginação. Além do mais, o espectador pode ficar mais perto do
pensamento mágico quando participa da identificação quase hipnótica
do filme, principalmente, o de ficção (MORIN, 1985, p. 70).
As ideias de Morin podem parecer datadas, porque seu tema, o
cinema, espalhou-se por toda uma cultura de massa, e sua orientação
teórica foi fortemente marcada, na época, anos de 1950, pelo marxismo
e pela fenomenologia, acima de tudo. Todavia o cinema em si continua a
ser universal, porque cada filme pode usar a realidade para ativar a
imaginação por meio de imagens, ao mesmo tempo, usando a
imaginação para engrossar a realidade com aspiração e propósitos
humanos. O cinema ainda serve como papel heurístico, com seu artefato
cultural-modelo, uma entidade espiritual-material que contém inegável
valor financeiro e imaginário estético.
Fazendo uma analogia entre imagem e mente, Morin diz que esta
última não conhece diretamente a realidade externa. Ela é colocada em
uma caixa preta cerebral, e só recebe, através dos receptores sensoriais e
redes neurais (que são elas próprias representações cerebrais),
excitações (elas mesmas representadas sob a forma de vias ondulantes
ou corpusculares), que se transformam em representações, ou seja, em
imagens. Podemos até dizer que a mente é uma representação do
cérebro; mas, na verdade, o próprio cérebro é uma representação da
mente (MORIN, 1985, p. 220).
Em outras palavras, a única realidade da qual temos certeza é a
representação, isto é, a imagem, que é não realidade, uma vez que a
imagem se refere a uma realidade desconhecida. Certamente, essas
imagens são articuladas, organizadas, não só de acordo com os
estímulos externos, mas também de acordo com a nossa lógica, com a
nossa ideologia, ou seja, a cultura. Tudo o que é percebido como real
passa por uma forma da imagem. Em seguida, ela é renascida como
memória, isto é, uma imagem de uma imagem (MORIN, 1985, p. 221-
223).
39
De fato, este pensamento imagético consiste em um circuito
indiscernível de percepção-reflexão, um circuito cinematográfico
envolvendo cérebro e mente, matéria e espírito, corpo e carne, em suma,
envolvendo uma antropologia filosófica. Portanto, do ponto de vista de
Edgar Morin, o homem contemporâneo é impensável sem o cinema,
pois o autor percebe esse meio artístico como ontologicamente revelador
da inerência histórica e social do ser humano no mundo.
Pensamento semelhante pode ser notado em uma segunda
corrente da fenomenologia francesa, focada nas qualidades estéticas e na
experiência do cinema, muitas vezes articulada como uma ontologia
influenciada pela teologia. O filme foi celebrado por sua capacidade
essencial para fornecer aos espectadores uma imediata apreensão do ser
humano, bem como o de prover uma intuição de verdades morais e
espirituais.
Destaque aqui para o teólogo Amédée Ayfre, ex-aluno de
Merleau-Ponty, que vê, no cinema, a capacidade para revelar a
transcendência na imanência. Sua maior intenção é encontrar a maneira
pela qual a expressão do que transcende o homem, o sagrado, toma
forma nas imagens. Ayfre abordará, por exemplo, o neorrealismo
italiano como significativo do aparecimento de um novo tipo de
realismo, que denomina de “realismo fenomenológico”. Pede, como
crítico, que um “sentido total da existência” surja da imagem. Para tal, o
filme não pode ser a exposição de uma tese a priori, mas sim fazer que o
sentido surja das atitudes contidas no que está sendo representado
(AYFRE, 1952, p. 9).
A presença do mundo na imagem surge dentro da liberdade do
diálogo entre espectador e o que se representa, culminado em uma
verdadeira presença de outrem na tela, presença que uma máquina sem
alma, como a câmera, não é capaz de trazer para a fruição. Ela está
reservada ao diálogo entre uma consciência que não constrói, mas
descobre o que mostra, e outra, a espectatorial, que tem acesso à
representação no exercício de sua liberdade. Para que o espectador tenha
acesso à revelação da ambiguidade, o realizador pode minimizar ao
extremo o elemento espetacular, a fim de fazer a obra de maneira que
tenhamos a impressão de que não há uma obra, mas homens. Então a
máquina de filmar revelará a inteireza da presença humana (AYFRE,
1964, p. 180).
Para Ayfre, o denominado “realismo fenomenológico” busca
substituir a descrição pela construção, acreditando que a verdade não se
faz, mas se encontra. Já não se está no domínio do fazer, mas naquele do
ser. Não se quer provar, mas simplesmente revelar, isto é, revelar a
40
presença de seres. Essa revelação surge conforme se deixa falar a
ambiguidade dos seres que se está representando, sem a mediação
modeladora de uma interferência. É a inserção plena do ser na
representação que vem caracterizar o neorrealismo de Ayfre, inserção
que não quer significar interferência ou construção de uma significação
(AYFRE, 1964, p. 227-230).
A revelação a que o realismo fenomenológico dá forma, ao
permitir que as coisas emerjam em sua natureza própria, faz que
transpareça sua ambiguidade como mistério e transcendência. É assim
que a evocação da transcendência no realismo fenomenológico é função
da fidelidade à descrição concreta e global do real. Se se consegue
descrever concretamente, em sua globalidade, uma atitude humana ou
um evento, um sentido total da existência necessariamente surge. Logo,
esse sentido total da existência se manifesta na forma de uma
ambiguidade fundamental que é o modo humano da existência do
Mistério, ou seja, lá onde as coisas permanecem profundamente
marcadas de solidez humana, são tão pouco fantásticas que não há
nenhuma dificuldade em reconhecer “o dedo de Deus” (AYFRE, 1964,
p. 175).
A forma pela qual a divindade se expressa tem um colorido
particular, que revela o contexto ideológico de uma época
(fenomenologia mais cristianismo) que desapareceu do horizonte. Os
escritos de Ayfre trazem influência do pensamento que colocou as
nuances do campo da subjetividade no centro de suas preocupações.
Seguindo sua trilha, o mundo surge mediado pela consciência que
constitui seu mostrar-se, expressão do que lhe transcende como matéria.
Aprofundando-se nessa linha de pensamento, encontramos o
teórico Jean Mitry que empreendeu uma meticulosa descrição
fenomenológica das formas de percepção e de expressão
cinematográfica. A sua vida englobou um período de florescimento do
cinema como uma forma de arte totalmente expressiva. Ele escreveu
uma relevante obra chamada Esthétique et Psychologie du cinéma
(1963-1965)3, na qual discute, de maneira aprofundada, as origens, as
formas e os efeitos do cinema no século XX. Esse seu trabalho é, em sua
essência, uma fenomenologia da experiência narrativa cinematográfica;
em segundo lugar, é um argumento muito bem elaborado em defesa
3 Ver: Esthétique et psychologie du cinéma: Les structures. Paris: Éditions
Universitaires, 1963. v.1 e Esthétique et psychologie du cinéma: Les formes. Paris:
Éditions Universitaires, 1965. v.2.
41
dessa experiência, como a abertura de uma nova maneira de ver e de
apreender o mundo.
Como um pensador sobre cinema, Mitry está preocupado em
adequar a imagem em movimento (em seu modo específico de trazer
para si o mundo que lhe é exterior) à marca de uma subjetividade que a
funda como representação bidimensional (delimitada por um quadro, um
ritmo, uma montagem). Para o autor, é característico de toda imagem ser
imagem de alguma coisa. Ela é imagem de um espaço, das formas e das
relações entre os elementos que definem esse espaço, de algo que está
no mundo, que tem uma situação, uma dimensão, uma espessura. As
coisas no mundo estão delimitadas, ligadas entre si, por toda uma série
de interdependências e determinações recíprocas, engajadas na
realidade. Esse fato não determina por si só o caráter de realidade das
imagens fílmicas, porém é o fundamento dela (MITRY, 1963, p. 109).
Neste quadro, próximo da reflexão a respeito de cinema de viés
fenomenológico, Mitry introduz um diálogo sobre a problemática da
significação no cinema. Para ele, a imagem significa, mas só quando em
disposição particular, isto é, a imagem de um objeto, quando percebida
em si mesma, apenas coloca o objeto como existente, mostrando o que
ele, em situação de realidade, pode significar. Dessa maneira, como
imagem, como representação, em virtude de sua natureza de imagem,
ela não significa nada; por outro lado, ela mostra tudo. Segundo o autor,
a significação fílmica é completamente outra coisa, não está localizada
na expressão de uma imagem isolada, mas na relação entre as imagens.
Estas, por sua vez, teriam o estatuto do mostrar, da mostração, aquém,
em um primeiro nível, da própria significação (MITRY, 1963, p. 120).
Além do mais, em Mitry, a presença do real na imagem é
recortada pelo enquadramento. Está ligada de maneira intrínseca ao
quadro da imagem, ao contrário, por exemplo, da imagem no espelho,
em que o movimento do observador, observando a imagem, revela
sempre novas parcelas do mundo refletido. A imagem do real para o
sujeito (o real percebido) e a representação do real em imagem
cinematográfica não são a mesma coisa. Como representação, ela é
função de elementos imagéticos, quer dizer, do quadro essencialmente.
Já o real percebido existe de maneira exterior e independente das
determinações da imagem em movimento, embora venha a se oferecer
baseado em suas formas. É valendo-se da noção de “quadro” que Mitry
entende que, se os limites da tela nada são além de uma mostra para o
real representado, eles se tornam um quadro para a representação
(MITRY, 1963, p. 170-171).
42
Nesse sentido, é possível dizer que, para esse autor, há um nível
originário da imagem marcando sua singularidade com a imagem
pictórica, que permite a ele lidar com conceitos como imanência e
presença, contrapostos à essência e à transcendência, querendo designar
os vínculos da imagem em movimento com o mundo que lhe deu origem
e o mesmo mundo apreendido já como imagem, como totalidade
compositiva (MITRY, 1963, p. 133).
A noção de imanência corresponde a um nível originário de
relação da imagem com o que lhe foi exterior e a que lhe conformou.
Aqui, a imagem é, em todos os pontos, semelhante ao objeto visado. Ela
não é o resultado do fazer de um artista, porém, poderíamos dizer, é o
feito de um objeto que se reproduz sobre o filme em um duplo
rigorosamente idêntico. Já a imagem é transcendência, pois, como uma
espécie de uma realidade estruturada, transcende como imagem e,
porque é imagem também transcende a realidade da qual ela é,
tornando-se, pois, algo que cristaliza todas as virtualidades, todas as
potências de ser do real representado (MITRY, 1963, p. 133).
Do ponto de vista do autor, no cinema, a imanência se abre para
certa transcendência, mas não para o transcendental. Uma vez que o
mundo surge disposto por um esquema organizador que não é o de nossa
consciência, ele adquire certo coeficiente de estranheza e de irrealidade,
que pode dar origem à impressão de magia e de espiritualidade. Trata-se
de um fenômeno que pode ser analisado com base nas condições de
percepção da imagem, pois constitui-se pela mediação de uma câmera e
de um ator (MITRY, 1963, p. 129-130).
É importante ressaltar que, para Mitry, a imagem é um fora, uma
gestalt, que surge como articulação do mundo e do espaço que se
oferece à nossa percepção, também estruturadora. Procedimentos
fílmicos como profundidade de campo, plano-sequência, tomadas com
câmera móvel em travelling são considerados pelo autor procedimentos
de composição, que têm por objetivo estruturar o espaço em razão de
uma significação determinada. Se aceitarmos alguma obra, submetemos
a algo dado que não é consequência de uma escolha, ou seja, não
podemos reencontrar as condições objetivas da realidade, pois,
novamente, recebemos algo que é dado, que foi escolhido para alguém e
não por esse alguém (MITRY, 1965, p. 46).
Por conseguinte, a imagem pode manifestar uma plenitude de
coisas, consequência de um olhar que não seja a imagem do mundo, mas
um aspecto do mundo. Sem ser modificado como coisa, o mundo, no
cinema, é reproduzido com base em relações espaço-temporais que o
definem de outra maneira. Um enquadramento esgota, por assim dizer, o
43
mundo de um determinado ângulo. Uma sequência de planos, por sua
vez, instaura o evento representado em uma temporalidade nova. Por
exemplo, o objeto, quando imagem, é análogo ao objeto real, mas o
espaço-tempo fílmico não é análogo ao espaço-tempo real (MITRY,
1965, p. 413).
O mundo representado é visto como uma verdade observável por
um grupo de indivíduos que ocupa, cada um, um ponto de observação
diferente. Os mesmos objetos do mundo surgem inseridos em disposição
nova, em que há criação de dimensão espaço-temporal nova, quer dizer,
com o tempo real sendo sempre apreendido no nível do plano (MITRY,
1965, p. 414). Mitry, portanto, defende um cinema que chama de
moderno, no qual a articulação espaço-temporal dos planos surja em
estrutura que narre aberta, para uma liberdade que pertence só à vida. É
o cerne de suas colocações teóricas: fazer que os eventos representados
em uma obra cinematográfica não apareçam segundo o decalque de um
roteiro preestabelecido, entretanto eles podem se abrir para a
indeterminação do presente.
Talvez o autor mais conhecido e um dos mais relevantes para se
pensar o cinema do ponto de vista fenomenológico e ontológico seja o
crítico francês André Bazin. Na verdade, o lugar de Bazin no
desenvolvimento da teoria do cinema e da possível passagem entre
fenomenologia e estética cinematográfica merece uma atenção especial.
Para James Dudley Andrew, a noção do papel do cinema e a noção da
arte em geral em Bazin foram fortemente influenciadas por pensadores
como Henri Bergson, Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty
(ANDREW, 1978).
A filosofia de Bergson, menos preocupado com os fatos que
cercam a existência do que com a experiência humana da natureza, viria
a ser um importante trampolim para apropriação de Bazin da
fenomenologia. De Bergson a Merleau-Ponty, as afinidades do crítico
francês envolveram desde a complexidade do mundo à ambiguidade da
nossa experiência. Nos termos desses pensadores, a realidade não é uma
situação disponível para experimentar, mas algo emergente de que a
mente essencialmente participa e que, podemos dizer, existe apenas na
experiência. Já em termos bazinianos, a fenomenologia poderia,
portanto, ser definida como o estudo da interação e do constante
desenvolvimento das relações entre a consciência humana e a realidade
objetiva (ANDREW, 1978, p. 106).
Na influência de Bergson, Sartre e Merleau-Ponty, Bazin
demonstra uma afinidade para a importância central da relação interativa
tanto do cinema como da vida. No entanto, ele dificilmente pode ser
44
considerado um “fenomenólogo” ou mesmo um “filósofo”, apesar de
poder ser visto como um teórico da imanência da consciência artística
que compreende o ser humano dentro da complexidade espacial do seu
“estar no mundo”, mas também ligado a uma continuidade temporal que
o torna um constante “vir-a-ser”.
Podemos dizer, ainda, que é na obra de Sartre (1986) acerca do
imaginário que incentivará a ligação de Bazin com arte e a ontologia, e é
na fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty que o governará no
seu enfoque sobre a ambiguidade do lugar do ser humano no mundo. A
partir dessas raízes teóricas, Bazin construiu uma singular abordagem da
crítica cinematográfica repleta de poesia e de lirismo, como era
relevante para o tempo e o local de sua produção.
Dentro do contexto de destruições produzidas pela Segunda
Guerra Mundial, muitos intelectuais e artistas, de repente, passaram a
contestar alguns valores filosóficos e morais e a manipulação da
natureza para fins do indivíduo. Bazin, aproveitando esse momento,
desenvolveu uma teoria complexa do realismo cinematográfico. Ele não
foi, naturalmente, o único, pois também apareceram os escritos do
teórico alemão Siegfried Kracauer, sendo que ambos definiram suas
teorias do realismo sobre suposições principais de que a especificidade
do cinema reside na ontologia da imagem fotográfica (ANDREW, 1978,
p. 131-133).
É relevante ressaltar que, com Siegfried Kracauer (1960), a
relação do cinema com a filosofia é peculiar. A sua teoria do cinema não
é principalmente sobre filmes, cineastas, culturas ou tecnologias de
mídia. Em vez disso, o cinema é, em si, algo comparável à filosofia.
Segundo ele, o cinema é uma abordagem para o mundo, um modo de
existência humana, uma forma ímpar de percepção e de sensação, por
vezes, de iluminação. Na essência, o que resta na arte cinematográfica é
uma espécie de subjetividade que a constitui.
Embora a abordagem de Bazin possa diferenciar-se da abordagem
de Kracauer, os dois são semelhantes em suas insistências com ênfase
em um essencialismo da forma cinematográfica, bem como em uma
avaliação hierárquica de textos fílmicos baseados em suas utilizações de
certos princípios do realismo. A vocação crítica de Bazin (2010) pode
ser vista em muitos dos seus textos, escritos com autoridade e paixão.
No entanto, a sua crítica cinematográfica não existe em um vácuo, há o
contexto de uma política mundial, uma história intelectual local
relacionada ao patamar atingido pelo cinema internacional durante os
anos 1940-1950.
45
De fato, as considerações de Bazin sobre a forma do filme só
existem dentro de sua historicização do lugar sóciopolítico do cinema
em todo o mundo e em torno dele. Para entender melhor esse ponto,
olhamos para a fenomenologia subjacente do autor não como uma teoria
da transcendência, mas, como uma múltipla teoria da imanência: a
imanência da história, a imanência da realidade na imagem, a imanência
de uma infinidade de possíveis planos dentro do plano-sequência
cinematográfico e a imanência da consciência artística dentro do texto
fílmico (ANDREW, 1978, p. 145-146).
Nesse entendimento, podemos colocar o trabalho de Bazin em
uma genealogia especificamente francesa do discurso. Muito do seu
conceito de ontologia evoca a memória da conceituação de fotogenia
dos cineastas franceses Louis Delluc e Jean Epstein, que têm uma dívida
comum para com as primeiras teorias do escritor e diretor
cineamatográfico Marcel L'Herbier sobre a imagem fotográfica.
L'Herbier, assim como Delluc e Bazin, via o enquadramento da câmera
como um meio para a reprodução mecânica que, evitando a necessária
interferência humana em outras artes, tem uma conexão objetiva
especial com a realidade que captura. Consequentemente, o cinema
produz uma marca de vida, cuja finalidade é transcrever o mais
fielmente possível uma verdade fenomenal (XAVIER, 2014, p. 20).
Essas ideias contribuem para o embasamento crítico de Bazin que
ainda reconceitua a noção da objetividade da imagem e a sensibilidade
humanitária da câmera, assim como a capacidade do texto para revelar
os valores de uma sociedade e de ser um instrumento para a consciência
do artista. Isso é evidente em numerosos estudos do autor a respeito de
cineastas como Charlie Chaplin, Howard Hawks, Robert Bresson,
Roberto Rossellini e Vittorio De Sica, em que há um esforço para diluir
a distinção entre as obras cinematográficas deles, para fazer emergir a
força criativa de cada cineasta. Dessa maneira, sua crítica fílmica tem a
capacidade de transformar a teoria do cinema em uma teoria da
imanência do filme, algo próximo a uma crítica fenomenológica das
artes (ANDREW, 1978, p. 150).
Nessa esteira, analisamos dois dos seus mais famosos e
importantes ensaios sobre cinema: “Ontologia da imagem fotográfica” e
“A evolução da linguagem cinematográfica”.4 No primeiro texto, Bazin
trabalha para situar o cinema de acordo com seu lugar específico no
desenvolvilmento histórico das artes. Ele seleciona a imagem
fotográfica, como uma reprodução mecânica, como a definitiva
4 Ensaios contidos na obra: Qu'est-ce que le cinéma? Paris: Cerf, 2010. p. 9-17 e 63-80.
46
característica do cinema, colocando-o, assim, de acordo com as ideias de
L'Herbier e Kracauer, e estabelece as bases para os futuros escritos de
cinema do filósofo norte-americano Stanley Cavell. Para este último, é
por meio dos dispositivos técnicos da fotografia e do filme, como plano
e enquadramento, que a realidade do mundo pode ser alcançada pelo
sujeito humano. No cinema, espectador e filme se fundem e parecem
estar no mesmo lado da tela (CAVELL, 1979, p. 108-109).
André Bazin afirma, no artigo “Ontologia da imagem
fotográfica”, que, desde o projeto inicial dos sarcófagos no antigo Egito,
ao uso contemporâneo da fotografia, o propósito das artes foi
essencialmente preservar o ser através da aparência, da imagem, ou para
afastar a morte e guardar algum traço sensorial de nossa existência
fenomenal. No entanto, a tentativa de fazer uma reprodução do mundo,
desde o Renascimento, foi contestada pela expressividade das artes ou
pela chegada da estética, principalmente manifestada no uso da pintura
em perspectiva (BAZIN, 2010, p. 9).
Devido a esse fator, houve certa desconfiança ou dúvida relativa à
imagem, pelo menos, até a chegada da máquina fotográfica, um
dispositivo que poderia excluir, em teoria, o ser humano do processo de
reprodução. Ao contrário de outras formas de arte, a fotografia e o filme
realmente podem guardar uma marca fisicamente construída do objeto
real, ou o que Bazin se refere como uma impressão digital. Com isso, o
autor francês chega a uma máxima conclusiva, que serve como base
para sua teoria ontológica do cinema: “A originalidade da fotografia em
relação à pintura reside, pois, na sua objetividade essencial” (BAZIN,
2014, p. 31).5
Nas décadas seguintes, Bazin iria desafiar a alegação de
objetividade de qualquer criação humana, justamente insistindo que
todos os textos são processos de significação que não podem verter ao
peso complexo de fatores ideológicos. Em outras palavras, o filme
também é um processo de significação, sendo possível afirmar que todo
o seu corpo de trabalho é baseado na tentativa de compreender a própria
junção de significação no cinema, a dialética entre a forma e o conteúdo
do texto e entre a imaginação do espectador e a narração
cinematográfica. Todavia ele, clara e veementemente, opôs-se à
produção de significado para além da imanência latente do mundo
filmado e, por isso, foi acusado de construir uma hierarquia arbitrária
baseada em uma estilística específica ou em aspectos formais, como é
5 Na versão original: L'originalité de la photographie par rapport à la peinture réside
donc dans son objectivité essentielle. (BAZIN, 2010, p. 13).
47
descrito em seu outro ensaio: “A evolução da linguagem
cinematográfica” (XAVIER, 2014, p. 22-23).
Neste artigo, encontramos as reverberações dos argumentos
estéticos mais essenciais de Bazin, atraídos principalmente em função da
diferença entre capturar e apresentar a realidade como algo significativo,
e usá-la como um fator na produção de um significado secundário. Essa
diferenciação torna-se muito mais pronunciada neste ensaio, em que cita
nomes como Erich von Stroheim, Jean Renoir, Orson Welles, Carl
Theodor Dreyer, Robert Bresson, diretores que acreditam na imagem
como realidade, que creem no conteúdo objetivo de suas imagens, e, por
outro lado, menciona David Wark Griffith e Sergei Eisenstein, diretores
que acreditam na imagem como alusão à algo, que precisam adicionar
significado às imagens, por meio da manipulação plástica da montagem
(BAZIN, 2010, p. 63-66).
Nessa altura, Bazin destaca dois importantes cineastas, Jean
Renoir e Orson Welles, como manifestações de um novo tipo de cinema,
baseado na produção dramática não através da edição, mas, em vez
disso, na apresentação da realidade por meio do plano-sequência, do uso
da profundidade de foco e de campo, processos estilísticos que
respeitam a continuidade do espaço dramático e, naturalmente, de sua
duração. Em relação à profundidade de campo, o autor argumenta que
afeta a relação entre o espectador e a imagem pela recusa de determinar
a atenção do espectador. Além do mais, ela produz uma relação mais
realista com o espaço visto e, assim, possui um papel mental mais ativo
e ainda uma contribuição para o olhar do espectador (BAZIN, 2010, p.
73-75).
A relação entre espectador e imagem é parte integrante, para o
crítico francês, de outro efeito, o da metafísica, ou seja, a presença de
ambiguidade, uma parte imanente do real cuja justa replicação é
possível por meio de certos sistemas formais. Retomando o manto
filosófico do ceticismo, a rejeição de Bazin por certas formas de
montagem reside em dois esquemas: a defesa da polissemia frutífera da
realidade e da defesa do espectador livre e ativo. Chega-se, então, a um
ponto crucial do seu trabalho ontológico e fenomenológico: o louvor da
ambiguidade como uma virtude do real, e o reconhecimento do nosso
lugar não como observadores distantes do mundo, mas como sendo
implicados nele. O autor reforça esse ponto por meio de breves análises
de obras de Renoir e Welles, que, juntos com outros diretores do
neorrealismo italiano, rendem ao cinema o senso de ambiguidade
inerente em nossa experiência do real (BAZIN, 2010, p. 77).
48
Essa é uma questão crucial porque põe em movimento dois
principais eixos da crítica de Bazin: uma clara hierarquia estilística e as
obras por meio das quais ele irá desenvolver sua abordagem crítica. Em
seus principais artigos, podemos discernir certa progressão que vai de
seu estudo do desenvolvimento da linguagem cinematográfica a um
interesse particular pelas obras cinematográficas do neorrealismo
italiano, seguido do exame mais apurado de determinados cineastas.
Particularmente, para o autor, o neorrealismo é uma espécie de
humanismo, antes de ser um estilo de cinema (BAZIN, 2010, p. 70).
Nos seus ensaios intitulados “O realismo cinematográfico e a
escola italiana da Libertação” e “De Sica diretor”, o autor apresenta o
objeto de sua análise, que possui bases fenomenológicas, discutindo
cineastas da geração do pós-guerra na Itália, especialmente, Roberto
Rossellini e Vittorio De Sica. Bazin tece elogios ao neorrealismo, pois
ele não se limita a utilizar realidade como um sinal político, mas
preserva o real de tais julgamentos, referindo-se a esse movimento como
um ato de humanismo revolucionário. Mais tarde, acrescenta que o
neorrealismo italiano é a pura aparência dos seres e do mundo,
conhecendo apenas imanência. De fato, para ele, o neorrealismo é uma
fenomenologia (BAZIN, 2010, p. 263 e 314).
Já em outra importante obra de Bazin (1998), denominada “Orson
Welles”, encontramos a mais clara articulação da imanência do gênio
artístico, em sua extensa análise sobre as progressões lógicas da
intenção para formação estética de Welles. Nessas passagens, Bazin
constrói uma noção de multicamadas da imanência, começando com a
noção da imanência do artista na concepção formal do texto. A partir
daqui, ele passa para a imanência da ação e da significação implícitas,
dentro da ação e da significação vistas pelo espectador e, por último,
para a imanência de muitos planos cinematográficos possíveis dentro
desse grande dispositivo do cinema wellesiano: o plano-sequência
(BAZIN, 1998, p. 68).
Plano-seqüência é o termo usado por Bazin para a utilização da
profundidade de foco e os movimentos de câmera, com o intuito de
evitar a necessidade de edição. Originalmente desenvolvido em seus
escritos sobre o filme “Cidadão Kane” (1941), Bazin estende sua
hierarquia do estilo fílmico ainda mais, no que poderia ser visto como a
mais tocante e pessoal obra sua: “Jean Renoir”. Nela, François Truffaut
escreve, no prefácio, que é o melhor livro sobre o cinema, escrito pelo
melhor crítico, sobre o melhor diretor; Bazin se propõe a desenvolver
plenamente a sua noção de realismo cinematográfico (BAZIN, 1971, p.
7).
49
A conceituação de realismo de Bazin é um longo caminho desde
a tradição francesa do naturalismo desenvolvido na literatura de Honoré
de Balzac e de Émile Zola; entretanto, seu realismo é baseado na
fenomenologia da percepção cotidiana (ANDREW, 1984, p. 50).
Renoir, bem como outros autores modernos, como André Gide, Ernest
Hemingway e Albert Camus, atestam a noção de que a visão artística
não repousa na transformação da realidade, mas na seleção desde a
realidade do artista. Essa realidade empírica em Bazin consiste em
correspondências e em inter-relações que a câmera pode encontrar,
tornando, assim, o cinema especificamente capaz de capturar a
complexa rede de relações na continuidade espaço-temporal
(ANDREW, 1976, p. 154-155).
Evocando os escritos de Merleau-Ponty e a fenomenologia
gestáltica em geral, André Bazin afirma que a vocação de cineasta e a
genialidade estética de Renoir, residem fortemente na atenção e na
importância dada às coisas individuais em relação umas com as outras.
Essas relações compõem o que, para Bazin, é o essencial, que é
disponibilizar a visibilidade das coisas e de todos os seres em todos os
lugares e para o qual a ação narrativa e o drama são um mero pretexto
(BAZIN, 1971, p. 32 e 84).
Essa essência da rede de relações que compõe o nosso mundo não
é, contudo, disponível para todos os estilos de filmagem, sendo que o
realismo funciona apenas em relação à liberdade da encenação
cinematográfica. Em outras palavras, conforme temos encontrado
constantemente na obra de Bazin, a pureza fenomenológica da imagem
cinematográfica repousa inteiramente dentro do arranjo estilístico dos
elementos fílmicos. É essa conexão entre a forma do filme e a
importância fenomenológica do uso, por exemplo, da profundidade de
campo e de foco que confirma a unidade do ator e a sua relação com o
cenário, isto é, uma total interdependência do todo que é real, desde o
ser humano ao mineral (BAZIN, 1971, p. 29 e 90).
Como está evidente nas páginas da obra de Bazin sobre Jean
Renoir, há uma forte afinidade com a noção metafísica de unidade
existencial, que pode ser encontrada na fenomenologia de Merleau-
Ponty. Do ponto de vista de Bazin, não existe apenas um real que é
externo ao cinema, mas também há uma realidade na qual o cinema
desempenha um papel importante, tanto como um dispositivo de
memória e lembrança, quanto como uma força sociopolítica. Sua noção
do real implica o diretor, o ator e o espectador no mundo que os cerca,
de que são inseparáveis. Dessa forma, André Bazin estava na vanguarda
de sua época, construindo uma filosofia de cinema embasada em uma
50
rede de conexões, por meio das quais a arte, a história e a prática de
produção e visualização são imanentes dentro de cada texto.
1.2 O CINEMA É UM PENSAMENTO
Aqui, iremos destacar dois autores, o filósofo Gilles Deleuze e o
cineasta Jean-Luc Godard, que, em ofícios diferentes, defendem as
estreitas afinidades entre filosofia e cinema. Para eles, o cinema não só
coloca o movimento na imagem, ele também coloca em movimento a
mente, o pensamento. Tanto nos filmes, quantos nos escritos, como um
pêndulo, vai-se naturalmente da filosofia para o cinema, mas também do
cinema para a filosofia.
1.2.1 Gilles Deleuze
A arte cinematográfica pode ser avaliada como meio de expressão
de um pensamento peculiar que manifesta não somente um conteúdo de
relações, mas os modos pelos quais essas relações se processam.
Partindo desse viés, o filósofo francês Gilles Deleuze fez outra leitura da
história do cinema, pois, em vez de entendê-la de forma retilínea – a
passagem do mudo para o sonoro, por exemplo, – estabeleceu uma
taxionomia, uma classificação das imagens cinematográficas
(DELEUZE, 1983, p. 7).
Nesse sentido, é essencial analisarmos o conceito de imagem
como sendo tanto o fundamento da arte cinematográfica, como o
elemento primordial da construção de uma narrativa fílmica. A imagem,
incorporada a elementos sonoros, dramáticos, cenográficos, espaciais e
temporais, pode ser distinguida por um objeto ou uma ação registrada e,
pela nossa capacidade de percebê-la, atribuímos-lhe sentidos sob
determinadas visões objetivas e subjetivas do mundo que nos cerca
(BUENO, 2010, p. 28).
É vasto o debate acerca da dicotomia entre ilusão e realidade
quando investigamos uma noção a respeito do conceito de imagem. Para
uns, a imagem busca a retratação da realidade em que vivemos de forma
a direcionar nossos olhares para outro universo, para outra realidade, a
realidade da tela. Para outros, a imagem continuamente será uma
abstração, um conceito filosófico impenetrável, ou seja, uma forma
indefinida de expressar o universo da criação artística (TARKOVSKI,
1998, p. 123).
Já para Gilles Deleuze, a questão da imagem se define como
sendo um organismo de percepção do mundo cujos parâmetros retratam
51
o universo cinematográfico. A imagem comporia, no cinema, mais do
que algo visível, algo legível, assim como um diagrama, porque há o
que ver na imagem e por trás dela. O olho faz parte da imagem, é a
visibilidade dela, e o cinema é produtor de uma realidade e de uma
identidade entre movimento e tempo (DELEUZE, 1992, p. 68).
Vemos aqui que, no cinema, o que interessa para esse autor são as
relações entre imagens. Em duas de suas obras (DELEUZE, 1983 e
1985), dois grandes conceitos sobre cinema são criados e investigados;
são eles: “imagem-movimento” e “imagem-tempo”. Dentro dessa
perspectiva, distinguem-se esses dois regimes porque fazem, por meio
de relações entre imagens, uma “imagem indireta do tempo” e uma
“imagem direta do tempo”, respectivamente. Não se trata de uma
diferenciação “histórica” ou uma “evolução” o que diferencia os dois
regimes são os tipos de relações travadas entre o movimento e o tempo,
através dos tipos de imagens e de suas relações na montagem.
Deleuze justamente encontra no filósofo norte-americano Charles
Sanders Peirce a proposição de uma “semiótica não-significante”, isto é,
não baseada em regimes de signos linguísticos ou significantes. Os
livros de Deleuze dedicados ao cinema são livros de filosofia, na medida
em que contêm um pensamento que opera a partir da criação de
conceitos. Quer dizer, ele utiliza as imagens do cinema para criar
conceitos filosóficos. O cinema é pensamento, assim como a filosofia,
com a diferença de que o cinema não cria conceitos, mas sensações por
meio de imagens (DELEUZE; GUATARRI, 1992, p. 217).
Reforçando essa ideia, ele diz o seguinte: As únicas pessoas capazes de refletir efetivamente
sobre o cinema são os cineastas, os críticos de
cinema ou aqueles que amam cinema. Eles não
têm absolutamente necessidade da filosofia para
refletir sobre cinema [...]. Se a filosofia deveria
servir para refletir sobre algo, ela não teria
nenhuma razão de existir. Se a filosofia existe, é
porque ela tem seu próprio conteúdo [...]. Se digo,
vocês que fazem cinema, o que vocês fazem?
Vocês, o que vocês inventam não são conceito
(não é o seu negócio), mas blocos de movimento-
duração [...]. Não se trata de invocar uma história
ou de a recusar. Tudo tem uma história. A
filosofia também conta histórias. Ela conta
histórias com conceitos. O cinema conta história
52
com blocos de movimento-duração (DELEUZE,
2012, p. 389-390).6
Podemos ainda antecipar que o regime da imagem-movimento
liga-se indiretamente à representação do denominado cinema narrativo
clássico, com o tempo subordinando-se ao movimento, o fluxo narrativo
sendo contínuo e as personagens agindo e reagindo frente a frente ao
dado. Por sua vez, o regime da imagem-tempo institui o chamado
cinema moderno, ao romper exatamente com o sistema sensório-motor
da imagem-movimento (BUENO, 2010, p. 30).
A questão da imagem “indireta” e “direta” do tempo é encarada
como um problema para o qual o regime da “imagem-movimento” e o
da “imagem-tempo” organizam campos de solução. Deleuze descreve
atos cinematográficos que dão sentido às imagens e que se relacionam
com elas. Esses atos são os seguintes: “enquadrar”, que é o ato de fazer
um quadro cinematográfico; “decupar”, que é o ato de determinar o
plano (o plano é o movimento no quadro e entre quadros); “montar”,
que é a determinação das relações entre os planos na composição do
todo do filme (DELEUZE, 1985a, p. 22, 31 e 44).
No regime da imagem-movimento, as relações entre imagens
seguem o modelo do esquema sensório-motor da percepção humana, no
sentido de que há um esforço em prolongar as imagens segundo um
sistema que pareça normal ao espectador. O esquema sensório-motor é
um processo de normalização do prolongamento de imagens. Nesse
esquema, há três processos imagéticos responsáveis pela formação das
imagens-movimento: a especificação, a diferenciação e a integração
(BUENO, 2010, p. 30).
Na especificação, diante de uma situação real, procede-se a um
enquadramento que especifica o que a personagem vê (imagem-
percepção), o que sente (imagem-afecção) ou o que faz (imagem-ação);
6 Na versão original: [...] les seuls gens capables, effectivement, de réfléchir sur le
cinéma, se sont les cinéastes, ou les critiques de cinéma, ou ceux qui aiment le cinéma.
Ils n’ont absolument pas besoin de la philosophie pour réfléchir sur le cinéma [...]. Si la
philosophie devrait réfléchir sur quelque chose, mais elle n’aurait aucune raison
d’exister. Si la philosophie existe, c’est qu’elle a son propre contenu [...]. Je dis, vous qui
faites du cinéma, qu’est-ce que vous faites? Je dirai juste ce que vous inventez, ce n’est
pas des concepts, ce n’est pas votre affaire, ce que vous inventez c’est ce que l’on
pourrait appeler des blocs de mouvements-durée [...]. Il n’y a pas question d’invoquer
une histoire ou de la récuser. Tout a une histoire. La philosophie aussi raconte des
histoires. Elle raconte des histoires, des histoires avec des concepts. Le cinéma, je pense,
mettons, supposons, qu’il raconte des histoires avec des blocs de mouvements-durée
(DELEUZE, 2003, p. 292).
53
na diferenciação, a decupagem escolhe e ordena os tipos de relações
entre os objetos e as ações; por fim, na montagem, a integração dá um
sentido que as relações entre os objetos e as ações não têm por si só,
constituindo o todo que muda (LA SALVIA, 2006, p. 26).
Para Deleuze, há aqui o que ele chama de descrição orgânica: a
câmera enquadra imagens-percepção, imagens-ação ou outros tipos,
prolonga-as por um fio sensório-motor que tem a função de “fazer
como” a percepção humana para criar uma identificação e não confundir
o espectador. Em suas palavras:
Numa descrição orgânica, o real suposto é
reconhecido por sua continuidade, mesmo
interrompida, pelos raccords7 que a restabelecem,
pelas leis que determinam as sucessões, as
simultaneidades, as permanências: é um regime de
relações localizáveis, de encadeamentos atuais,
conexões legais, causais e lógicas (DELEUZE,
1990, p. 156).8
Para o regime da imagem-movimento, Deleuze examina os tipos
de imagens, os signos expressos e as relações entre imagens por meio da
análise da estilística dos autores e divide-os em quatro tendências de
conceber o cinema. Essas tendências, em sua era “clássica”, são a
tendência orgânica da escola americana, a dialética da escola soviética, a
quantitativa da escola francesa pré-guerra e a intensiva da escola
expressionista alemã (DELEUZE, 1985a, p. 45).
Deleuze descreve essas tendências marcando as suas diferenças
ao apresentar os variados autores que as compõem. Essa série de
tendências forma mais uma região que compõe o conceito de imagem-
movimento, como modulações do conceito de montagem e como
grandes casos de solução do problema da “imagem indireta do tempo”.
Como visto, para o autor, a montagem da imagem-movimento tem duas
faces: o intervalo entre planos e a relação entre planos criando o todo.
7 O termo francês raccord, que quer dizer “sutura”, em português, pode ter dois sentidos.
O primeiro corresponde à noção de “corte”, ou “corte” simples, e designa a mudança de
plano. O segundo refere-se à maneira como se dá essa mudança e qualquer elemento de
continuidade entre dois ou mais planos. 8 Na versão original: Dans une description organique, le réel suposé se reconnaît à sa
continuité, même interrompue, aux raccords qui la rétablissent, aux lois qui déterminent
les sucessions, les simultanéités, les permanences: c'est un régime de relations
localisables, d'enchaînements actuels, de connexions légales, causales et logiques
(DELEUZE, 1985. p. 166).
54
Nas quatro tendências, há diferentes maneiras de relacionar as
duas faces: intervalo e todo orgânico, na escola americana; o salto
qualitativo e a totalização dialética, nos soviéticos; a unidade numérica e
a totalidade desmedida do sublime matemático, na escola francesa; o
grau intensivo e a totalidade intensiva do sublime mecânico, na escola
alemã (DELEUZE, 1985a, p. 45, 74-75).
A escola americana tem em David Wark Griffith o seu inventor.
O cineasta norte-americano concebeu a obra cinematográfica como um
organismo, uma unidade na diversidade sob a forma de dualismos: bem-
mal, rico-pobre etc. Daí que a denominada “montagem paralela”
estabelece, por meio de relações binárias entre esses pares, um ritmo que
faz a imagem de uma parte suceder a imagem de outra parte. Desse
modo, a montagem à americana compõe a descrição de conjuntos e a
confrontação dos conjuntos. Assim, sempre é necessário alternar a
descrição do conjunto e partes do conjunto (DELEUZE, 1985a, p. 45-
47).
O russo Serguei Eisenstein é o artífice da escola soviética que tem
na “montagem dialética” sua especificidade. Esse cineasta concebe a
unidade dialética para a montagem, em que um se desdobra e volta a ser
uno na síntese. Mas aqui se tem uma “montagem de oposição” que pode
ser qualitativa (as águas/a terra), quantitativa (um/vários), intensiva (a
luz/as trevas) e dinâmica (descida/subida). A chamada “montagem por
saltos qualitativos” faz a passagem de uma para a outra ser qualitativa
quando há o surgimento súbito de uma nova qualidade. A “montagem de
atrações” ajuda nesse efeito através do patético, entendido como pathos,
a paixão, o sentimento de dar-se conta da nova qualidade (LA SALVIA,
2006, p. 38).
Na escola francesa, o principal expoente é o cineasta Abel Gance.
Essa escola fez da quantidade de movimentos e das relações métricas a
sua particularidade. A escola francesa está marcada por certo
cartesianismo na composição mecânica das imagens. Na explicação de
Deleuze (1985a, p. 67):
[...] o intervalo tornou-se unidade numérica
variável e sucessiva que entra em relações
métricas com os outros fatores, definindo em cada
caso a maior quantidade relativa de movimento na
matéria e para a imaginação; o todo tornou-se o
simultâneo, o desmesurado, o imenso, que reduz a
imaginação à impotência e a confronta com o seu
próprio limite, fazendo nascer no espírito o puro
pensamento de uma quantidade de movimento
55
absoluto que exprime toda a sua história ou sua
mudança, seu universo.9
Por último, mas não menos importante, considera-se que um
dos mais relevantes aspectos da escola expressionista alemã está na
questão da luz e dos movimentos intensivos da luz e das trevas. A luz
supõe as brumas e as sombras que escondem a vida não orgânica das
coisas e o espírito inconsciente perdido nas trevas. A alternância das
sombras e da luz é o movimento desse cinema que expressa um sublime
dinâmico definido pelo filósofo como:
[...] é a intensidade que se eleva a tal potência, que
ofusca ou aniquila nosso ser orgânico, enche-o de
terror, mas suscita uma faculdade pensante através
da qual sentimo-nos superiores ao que nos
aniquila, para descobrirmos em nós um espírito
supra-orgânico que domina toda a vida orgânica
das coisas: então não temos mais medo, sabendo
que nossa 'destinação' espiritual é propriamente
invencível (DELEUZE, 1985a, p. 73).10
Para Deleuze, a generalidade das montagens descritas
anteriormente reside no fato de elas colocarem a imagem
cinematográfica em relação ao todo. Oferece-se uma imagem indireta do
tempo, tanto na imagem-movimento particular, quanto no todo do filme.
Podemos ver, dessa forma, que a imagem-movimento possui duas faces:
uma se volta para os conjuntos e suas partes, e a outra para o todo e suas
mudanças (DELEUZE, 1985a, p. 75).
9 Na vesão original: [...] l'intervalle est devenu l'unité numérique variable et sucessive
qui entre dans des rapports métriques avec les autres facteurs, définissant dans chaque
cas la plus grande quantité relative de mouvement das la matière e pour l'imagination; le
tout est devenu le Simultané, le démesuré, l'immense, qui réduit l'imagination à
l'impuissance et la confronte à sa propre limite, faisant naître dans l'esprit la pure pensée
d'une quantité de mouvement absolu qui exprime toute son histoire ou son changement,
son univers (DELEUZE, 1983, p. 72). 10 Na versão original: [...] c'est l'intensité qui s'élève à une telle puissance qu'elle éblouit
ou anéantit notre être organique, le frappe de terreur, mais suscite une faculté pensante
par laquelle nous nous sentons supérieur à ce qui nous anéantit, pour découvrir en nous
un esprit supra-organique qui domine toute la vie inorganique des choses: alors nous
n'avons plus peur, sachant que notre destination spirituelle est proprement invincible
(DELEUZE, 1983, p. 79-80).
56
Já com referência ao conceito da imagem-tempo, Gilles Deleuze
mostra que a quebra ou o afrouxamento dos vínculos sensório-motores
dá lugar a situações ópticas e sonoras puras, formando assim os
primeiros signos (optsignos e somsignos) de diferenciação de um regime
do outro. Esses são o primeiro aspecto da imagem-tempo ao questionar a
ação, ao fazer nascer a necessidade de ouvir e de ver e ainda por
proliferar espaços vazios ou desconectados. Os novos signos rompem
com o esquema sensório-motor da montagem clássica e exigem o
esforço criativo dos autores na construção de novos estilos (LA
SALVIA, 2006, p. 44).
Para o regime da imagem-tempo, Deleuze trabalha outra série de
elementos que compõe o conceito, organizando outros casos de solução
que agora fazem uma “imagem direta do tempo”. Os dois regimes não
se opõem como diametralmente opostos, porém diferenciam-se através
das diversas relações entre os seus inúmeros elementos, organizando
diferentes soluções para os seus distintos problemas. Os conceitos
entram, assim, em uma relação de diferenciação dinâmica (BUENO,
2010, p. 33).
Na elaboração do conceito de imagem-tempo, há o afrouxamento
dos vínculos sensório-motores e a necessária busca de outras formas de
prolongar as imagens. As situações ópticas e sonoras puras são uma
zona intermediária de vizinhança entre a imagem-movimento e a
imagem-tempo, porque essas situações, impossibilitadas de se
prolongarem através do esquema sensório-motor, deslizam para outros
tipos de prolongamentos e outros tipos de imagens (LA SALVIA, 2006,
p. 46).
A passagem da imagem-movimento a uma imagem-tempo
implica uma outra relação com o real: no cinema, já não se trata mais de
representar ou de reproduzir um real já pronto, mas de produzir
múltiplas realidades, novos mundos possíveis nos quais o tempo já não
esteja subordinado ao movimento ou mesmo a uma sequência
irreversível de passado-presente-futuro.
Podemos dizer ainda que, se antes o movimento recebia sua regra
de um esquema sensório-motor, apresentando, por exemplo, a história
linear de uma personagem que reagia a uma determinada situação, com
o advento da imagem- tempo o esquema sensório-motor desmorona em
favor de movimentos não orientados, desconexos, levando as
personagens a viverem não mais uma história linear, mas devires,
acontecimentos disruptores que transbordam uma apreensão linear ou
causalista do tempo (VASCONCELLOS, 2006, p. 117).
57
Será preciso, então, das imagens ópticas e sonoras puras chegar
às imagens vindas do tempo e às imagens vindas do pensamento. Nesse
caso, são as denominadas “imagens-cristal” que dão o tempo e o
pensamento diretamente. Na imagem-cristal, o passado não é sucedido
pelo presente que ele não é mais, ele se conserva e coexiste com o
presente que passa. O presente é a imagem atual e seu passado
contemporâneo é a imagem virtual. A indiscernibilidade dessas imagens
em uma mesma imagem forma a imagem-cristal.
Segundo Deleuze (1990, p. 121):
O que o cristal revela ou faz ver é o fundamento
oculto do tempo, quer dizer, sua diferenciação em
dois jorros, o dos presentes que passam e dos
passados que se conservam. De uma só vez o
tempo faz passar o presente e conserva em si o
passado.11
Podemos notar que a imagem-cristal não é o tempo, entretanto
vê-se o tempo no cristal. Para Deleuze, “na imagem-cristal se vê o
tempo em pessoa, um pouco de tempo em estado puro” (DELEUZE,
1990, p. 103). A imagem-tempo dará o tempo não porque a imagem-
movimento não o dava (a imagem-movimento dava o tempo através do
intervalo mínimo entre imagens do movimento entre os planos e
totalidade aberta ao fazer passar os planos), mas porque a imagem-
tempo oferece outras percepções do tempo.
É relevante pontuar que uma dessas percepções é a chamada
ordem do tempo, que se divide em dois cronosignos, a partir da
diferenciação elaborada pelo filósofo Henri Bérgson, entre lençóis de
passado e pontas de presente, isto é, a diferenciação entre a coexistência
virtual dos lençóis de passado e as pontas de presente como estados mais
contraídos de toda a memória (LA SALVIA, 2006, p. 58). O
encadeamento de lençóis de passado (diferentes lençóis enquanto fatos
passados que coexistem na memória) ultrapassa a memória psicológica e
atinge a memória-mundo, pois “não é a memória que está em nós,
11 Na versão original: Ce que le cristal révèle ou fait voir, c'est le fondement caché du
temps, c'est-à-dire sa différenciation en deux jets, celui des présents qui passent et celui
des passés qui se conservent. A la fois le temps fait passer le présent et conserve en soi le
passé (DELEUZE, 1985. p. 129).
58
somos nós que nos movemos numa memória-ser, memória-mundo”
(DELEUZE, 1990, p. 121).12
Para esses cronosignos, perdeu sentido falar em verdadeiro e
falso, pois, por todo lado, a potência do falso faz o impossível proceder
do possível e o passado não ser necessariamente verdadeiro. A potência
do falso não busca a aspiração ao verídico, pois ela significa a
representação do acontecimento como pré-existindo a sua narração.
Desse modo, a potência do falso é aquela que inventa o acontecimento,
ao mesmo tempo que o narra. É o próprio processo de descrição
cristalina, uma vez que o narrador é pego em “flagrante delito de
fabulação”, inventando suas histórias, mesmo sob a pena de destruí-las
mais tarde em favor de novas construções. Por isso, a potência do falso
está intimamente ligada aos presentes inconciliáveis ou passados não
necessariamente verdadeiros (LA SALVIA, 2006, p. 58-59).
São essas características que podemos constatar principalmente
em produções cinematográficas do pós 2.ª guerra mundial. Nelas, por
exemplo, o tempo passa a ser personagem central, exigindo uma
utilização totalmente nova dos recursos da linguagem audiovisual. Sai
de cena o par “relação sensório-motora/imagem indireta do tempo”,
substituído por uma relação não localizável entre “situação ótica e
sonora pura/imagem direta do tempo” (VASCONCELLOS, 2006, p.
117). O falso raccord13 seria um exemplo disso, ao permitir saltos
espaciais e temporais que romperiam a transparência de uma narrativa
considerada “realista”.
Deleuze observa que, na década de 40, no pós-guerra, surgiram,
nas imagens do cinema, tentativas de romper com a imagem do tempo
subordinada ao movimento, por meio da nouvelle vague francesa, do
neorrealismo italiano, e mesmo no cinema americano, com os filmes de
Orson Welles, por exemplo. De repente, as situações já não se
prolongam em ação ou reação como exigia a imagem-movimento
(BUENO, 2010, p. 35-36).
São puras situações óticas e sonoras, nas quais a personagem não
sabe como responder, espaços desativados nos quais ela deixa de sentir e
agir, para partir para a fuga, a perambulação, o vaivém, vagamente
indiferente ao que lhe acontece, indecisa sobre o que é preciso fazer. A
situação já não mais se prolonga em ação por intermédio das afecções.
12 Na versão original: La mémoire n'est pas en nous, c'est nous qui nous mouvons dans
une mémoire-Être, dans une mémoire-monde (DELEUZE, 1985, p. 102). 13 O falso raccord pode ser entendido como uma mudança de planos dissonantes, que
escapam à lógica da transparência realista. Um exemplo disso é quando um personagem
começa uma frase em uma cena e ela é concluída por outro personagem em outra cena.
59
Ela está cortada de todos os seus prolongamentos, só vale por si mesma,
tendo absorvido todas as suas intensidades afetivas, todas as suas
extensões ativas (VASCONCELLOS, 2006, p. 120).
A imagem-tempo do cinema moderno possui uma série de
características a partir das quais é possível pensar uma reversão de uma
imagem representativa do pensamento que se assenta nas imagens-
movimento do cinema clássico: 1) o desmoronamento do esquema
sensório-motor; a recusa da montagem e do extracampo14 como
redimensionamento do Todo; a substituição da narratividade pela
descrição; 2) o reencadeamento dos cortes irracionais no lugar do
encadeamento dos cortes racionais; 3) a imagem-som é configurada pela
“legibilidade” da imagem e pela “visibilidade” do som, que, em outras
palavras, pode ser chamada de disjunção entre a imagem e o som
(VASCONCELLOS, 2006, p. 118).
Um dos mais claros exemplos de imagem-tempo é o roteiro
elaborado pela escritora francesa Marguerite Duras para o filme
“Hiroshima, mon amour”, de 1959, de Alain Resnais. Aliás, tanto a
escritora como o cineasta são citados inúmeras vezes no livro de
Deleuze sobre a imagem-tempo (DELEUZE, 1990, p. 141-153, 248-
251, 305-310). Há, no filme, uma disjunção entre o visual e o sonoro
que, no entanto, são conectados em uma espécie de relação não
totalizável, uma integração irracional e incomensurável entre o visual e
o sonoro.
Na obra de Resnais, vemos uma coisa e a fala nos diz outra coisa.
Distância entre o ver e o falar, entre o visível e o dizível, entre as
palavras e as coisas. O narrador viu tudo, o narrador viu nada. Inventou
tudo, mas também pode não ter inventado nada. A imagem que abre o
filme com os corpos entrelaçados de dois amantes, uma francesa e um
japonês, é entrecortada por imagens do que se supõe ser um
documentário sobre os efeitos da bomba atômica em Hiroshima
(VASCONCELLOS, 2006, p. 130).
No entanto, algumas das cenas do documentário são fictícias. As
palavras ternas dos dois amantes se contrapõem todo tempo à imagem
dos trágicos efeitos de Hiroshima, e a descrição audível dos efeitos da
bomba se contrapõe à visualização de cenas de carícias entre os
amantes. Essa transformação é o convite a uma nova pedagogia do
olhar: não mais uma pedagogia da imagem-movimento, mas uma
pedagogia da imagem-tempo. O olhar, antes habituado a seguir as
14 Remete ao que não se encontra presente na tela. Designa o que existe fora, ao lado ou
em volta do que está enquadrado.
60
sequências de imagem-ação, a perseguir o desenrolar de uma trama que
se resolve no final, é convidado a um estado de estranhamento, de
paralisia momentânea, de um não saber o que fazer ou o que seguir. É
nesse espaço que irrompe um novo espaço-tempo para o pensamento e
um novo exercício de subjetivação (VASCONCELLOS, 2006, p. 131-
132).
Segundo Deleuze (1990, p. 330), o cinema moderno cria novas
imagens que evitam os recursos do flashback e do extracampo,
inventando outros recursos que estabelecem novas relações nos planos
do tempo e do espaço cinematográficos. E, nessas relações entre o visual
e o sonoro, estão presentes alguns dos aspectos mais relevantes da
ultrapassagem das imagens-movimento para as imagens-tempo. No seu
dizer:
[...] o cinema moderno matou o flashback, tanto
quanto a voz off e o extra-campo. Ele só pôde
conquistar a imagem sonora impondo uma
dissociação desta e da imagem visual, disjunção
que não deve ser superada: corte irracional entre
ambas. E, no entanto, há uma relação entre elas,
relação indireta livre, ou relação incomensurável,
pois a incomensurabilidade designa uma nova
relação e não uma ausência. Eis que a imagem
sonora enquadra uma massa ou uma continuidade
da qual se vai extrair o ato de fala puro, isto é, um
ato de mito ou fabulação que cria o
acontecimento, que faz ascender o acontecimento
aos ares, e ele próprio (ato) se eleve numa
ascensão espiritual. E a imagem visual, por seu
lado, enquadra um espaço qualquer, espaço vazio
ou desconectado que ganha novo valor, pois vai
enterrar o acontecimento sob camadas
estratográficas, e fazê-lo descer como um fogo
subterrâneo sempre recoberto. Logo, a imagem
visual nunca mostrará o que a imagem sonora
enuncia (DELEUZE, 1990, p. 330).15
15 Na versão original: [...] le cinéma moderne a tué le flash-back, autant que la voix off et
le hors-champ. Il n'a pu conquérir l'image sonore qu'en imposant une dissociation de
celle-ci et de l'image visuelle, une disjonction qui ne doit pas être surmontée: coupure
irrationelle entre les deux. Et pourtant il y a un rapport entre elles, rapport indirect libre,
ou rapport incommensurable, car l'incommensurabilité désigne un nouveau rapport et
61
O cinema, na acepção de Gilles Deleuze, não é uma língua
universal ou primitiva, nem mesmo uma linguagem. O cinema pode ser
pensado como materialidade, como uma matéria pensante, autônoma, o
que o filósofo chama de matéria inteligível. Essa matéria inteligível traz
à luz movimentos e processos de pensamento (imagens pré-linguísticas)
e pontos de vista tomados sobre esses movimentos e processos (signos
pré-significantes). Essas imagens pré-linguísticas e esses signos pré-
significantes fazem do cinema uma “psicomecânica” que possui uma
lógica própria.16 Essas imagens e esses signos tornam o cinema uma
poderosa forma de criação espiritual, uma forma de pensamento com
imagens. Em suma, o pensamento do cinema e da arte em Deleuze não
propõe uma visão sobre, ou seja, uma reflexão acerca das expressões
artísticas ou cinematográficas, pois o cinema e a arte configuram-se
como uma singular ontologia (BUENO, 2010, p. 38-39).
Nesse sentido, as relações entre imagens e sons criam uma nova
configuração de cinema que, além de fortalecer sua produção conceitual,
corrobora com uma nova imagem do pensamento. O espaço do cinema
torna-se um espaço de irrupção do diferente, um campo de imanência
para o exercício do pensamento e da alteridade. Uma importante
contribuição trazida por Deleuze é justamente a desconstrução da
afinidade natural entre o pensamento e a verdade. Para ele, o
pensamento não nasce sem algo que o force a pensar, algo que violente
o sujeito e o force a pensar. O pensamento só funciona em relação com
uma força que o faça pensar, força essa que não tem nada a ver com a
força de vontade do sujeito em conhecer (BUENO, 2010, p. 39).
O pensamento busca um mundo diferente do mundo das
significações. As forças que se encontram com o pensamento são as
forças do caos, forças não formadas, forças virtuais ainda informes. O
pensamento tem uma afinidade com o caos. E é o contato com o caos,
ou seja, as diferentes formas de entrar em contato com o caos que vão
singularizar as diferentes formas de pensar, que, para Deleuze, se
non pas une absence. Voilà que l'image sonore cadre une masse ou une continuité d'où
va s'extraire l'acte de parole pur, c'est-à-dire un acte de mythe ou de fabulation qui crée
l'événement, qui fait monter l'événement dans l'air, et qui monte lui-même dans une
ascension spirituelle. Et l'image visuelle de son côté cadre un espace quelconque, espace
vide ou déconnecté qui prend une nouvelle valeur, parce qu'il va enfouir l'événement sous
de couches stratigraphiques, et le faire descendre comme une feu souterrain toujours
recouvert. Jamais, donc l'image visuelle ne montrera ce que l'image sonore énonce
(DELEUZE, 1985. p. 364). 16 O cinema considerado como psicomecânica, ou o autônomo espiritual, reflete-se em
seu próprio conteúdo, em seus temas, situações, personagens (DELEUZE, 1990, p. 311-
312).
62
constituem seja no exercício da filosofia, seja no exercício das artes e
também do cinema: “Pensar é pensar por conceitos, ou então por
funções, ou ainda por sensações, e um desses pensamentos não é melhor
que o outro, ou mais plenamente, mais completamente, mais
sinteticamente pensado” (DELEUZE; GUATARRI, 1992, p. 253-254).
Assim, esse pensamento já não pressupõe estruturas
preexistentes, cria suas próprias possibilidades, seus próprios objetos a
pensar e sua própria forma cada vez que ganha a expressão. Ele é um
universo em perpétua expansão. É um pensamento experimental e não
um pensamento analítico. Seu objetivo nunca é descobrir ou resgatar o
real, mas a todo o momento produzi-lo. Um pensamento que jamais se
repete, um pensamento que só se constrói quando produz suas próprias
variações e seu próprio tempo.
1.2.2 Jean-Luc Godard
Faremos aqui uma exposição sucinta da importância do cinesta
Jean-Luc Godard para as reflexões do cinema. No último capítulo,
retomaremos o tema e o mostraremos de forma mais amplificada nas
relações intrínsecas entre o cinema godardiano e as ideias
merleaupontianas.
Godard é membro fundador, com os cineastas François Truffaut,
Jacques Rivette e Eric Rhomer, do movimento Nouvelle Vague francesa,
na década de 1950, fortemente influenciado pelos escritos teóricos de
André Bazin e pela pedagogia crítica do fundador da Cinemateca
francesa, Henri Langlois. Dentre as obras de seus colegas, o cinema
godariano é o menos conhecido, o menos visto e, talvez, o menos
compreendido. No entanto, seu rico acervo de obras, muitas vezes
difíceis, constitui um cinema; incluem-se aí, projetos inacabados e
ensaios sobre vídeo, um corpus que é o mais autoconsciente.17
Essa autoconsciência se faz visível, apresenta-se como o trabalho
da imagem, o que pode explicar a infeliz experiência do espectador
comum, que, por amor à ilusão, desaprendeu a ver precisamente a
imagem. Com o cineasta francês, a questão que anima os escritos de
André Bazin, “O que é cinema?”, torna-se uma busca, uma missão e um
problema permanente para o próprio cinema. De semelhante modo,
como o pintor Cézanne, Godard sabe muito bem que o que é possível
para o cinema não pode ser encontrado, exceto na obra em que ele está
17 Ver: GODARD, Jean-Luc. Godard par Godard. Paris: Cahiers du cinéma, 1950-
1984, v.1, 1984-1988, v.2.
63
trabalhando (BLANCHOT, 1955, p. 246). O “verdadeiro cinema”, o do
gesto puramente cinematográfico, pode ser sempre criado e atualizado.
É preciso amá-lo, cegamente, de todo o coração (GODARD;
ISHACHPOUR, 2000, p. 41).
Nesse sentido, o cineasta é um operador principal em seu
trabalho, pois entre som e imagem, imagem e escrita, voz e texto,
música e som ocorre uma nova criação e o efeito de um “cinema puro”,
ou seja, aquele que traz lágrimas aos olhos. (BERGALA, 1999, p. 240).
Todavia, ao mesmo tempo em que há a beleza da criação, é impossível
dissociar do cinema o mal estar em que o trabalho se inscreve, que
diagnostica, lamenta e chora a sua doença, que é o fracasso dessa arte
para cumprir o seu papel, a sua recusa ou o esquecimento que ela é feita
para pensar, é um instrumento poderoso de pensamento. Em suma, o
trabalho de Godard situa-se no limite desse paradoxo, do cinema que
chora o esquecimento do próprio cinema, mas que não aspira negar ou
superar a possibilidade de se pensar com ele e sobre ele.
Esses aspectos podem ser vistos em seu filme intitulado “Duas ou
três coisas que eu sei dela”, 1966 (Deux ou Trois Choses Que Je Sais
d'Elle). Tal filme não pode ser considerado uma ficção, já que não há
enredo, nem forma dramática, nem personagens que sustentem uma
trama narrativa. Essa obra fixa-se, em grande parte do tempo, sobre as
imagens de Paris, com seus prédios em construções, seus conjuntos
habitacionais e seus habitantes despersonalizados. Também não é um
documentário a respeito de Paris, pois há cenas com atores e textos
visivelmente decorados, há ainda montagens, cenas tomadas em estúdio
e um grande número de imagens gráficas tiradas de revistas ou de
embalagens de produtos de consumo (MACHADO, 2004, p. 18).
Trata-se aqui, conscientemente, de um “filme-pensamento” ou de
um “filme-ensaio”, no qual o tema da reflexão pode ser o mundo urbano
sob a égide do consumo e do capitalismo, tomando como pano de fundo
a forma como se dispõe e se organiza a cidade de Paris. É uma espécie
de ensaio filosófico-antropológico em forma de um romance
audiovisual. O curisoso nesse filme é a maneira como Godard passa do
figurativo ao abstrato, ou do visível ao invisível, manejando apenas com
o recorte operado pelo enquadramento da câmera. Por exemplo, vemos,
em um café de Paris, uma pessoa anônima colocar açúcar no seu café e
mexer o líquido com uma colher (MACHADO, 2004, p. 18-19).
Repentinamente, surge um close-up da imagem da xícara, o café
se transforma em uma galáxia infinita, com bolhas explodindo e o
líquido escuro girando em espirais. Mais à frente, uma mulher, em sua
cama, fuma um cigarro antes de dormir, porém um primeiríssimo plano
64
transfigura completamente o fumo ardente do cigarro, transformando-o
em um tipo de mandala, um círculo mágico que emite as cores do arco-
íris.
Um dos pontos mais relevantes da preocupação do cineasta
francês com o cinema e o pensamento encontra-se na sua relação com a
pintura, em que o sentido das imagens ‒ ora mescladas entre a película e
o vídeo, ora trabalhadas digitalmente com cores aberrantes em filmes
como Sauve Qui Peut (la Vie) (1979), Passion (1982), Je vous salue Marie (1985) e Éloge de l'amour (2001) ‒ torna-se uma promessa de
imensa esperança no mundo em que habitamos. Por isso, a sua distância
de um tipo de cinema que é sobre e para o desejo do sujeito e o sujeito
do desejo, já que a felicidade de uma imagem para Godard são afetos
impessoais que não passam despercebidos (GODARD; ISHACHPOUR,
2000, p. 32-33).
Assim, de modo mais amplo, afirmamos que Godard pode ser
considerado o autor de cinema que traduz a consciência mais profunda
de sua herança artística, filosófica e pictórica. Dos filmes citados
anteriormente, Passion, Je vous salue Marie, Sauve Qui Peut (la Vie)
são os que mais diretamente trabalham os temas da pintura, do cinema e
da filosofia. O que importa em Passion é que aí são mostrados não
quadros, mas quadros se fazendo e se desfazendo. O autor refaz telas
célebres, explora-as, desmonta e monta, leva-as a seu limite e tenta
variantes, combina-as entre si e as simplifica. Em suma, ele as faz
trabalhar, põe-nas em questão (DUBOIS, 2004, p. 253-254).
Essa relação é ainda mais fortemente atuante em Je vous salue
Marie, Sauve Qui Peut (la Vie), que colocam questões mais imediatas.
Como pintar? Como representar? E, aliás, o que representar? O sol, as
nuvens, a natureza, mas como pintar as coisas novamente, de modo
novo? Questões incansavelmente retomadas e variadas pelo próprio
Godard, no primeiro filmado citado, e que seriam uma das chaves para a
compreensão da obra. Nela, vemos certas imagens de coisas simples,
como as nuvens, uma menina, a Virgem Maria, um raio de sol
atravessando o céu, como analogias, provavelmente, da graça divina
visível.
Apesar da violência e da polêmica que a película Je vous salue
Marie suscitou na crítica cinematográfica dos anos 1980, é relevante
entender a radicalidade e a provocação que ele propõe, não somente com
referência à pintura, ao sagrado, à representação visual e aos mistérios
do mundo. Esses temas, na verdade, só interessam a Godard enquanto
cineasta-pensador de uma obra audiovisual. Por isso, o valor de ruptura
do filme está, antes de mais nada, no esforço incessante para produzir
65
imagens que escapem ao domínio estritamente da linguagem, para,
assim, levar o cinema o máximo possível para a esfera do visual, da
visibilidade e da visualidade (DUBOIS, 2004, p. 256).
É nesse sentido que trabalha uma obra sua anterior, Sauve Qui
Peut (la Vie), na qual a pintura não aparece diretamente, mas a reflexão
filosófica sobre a imagem, sobre o movimento, sobre o instante toma
obliquamente toda a própria invenção do cinema. As desacelerações, as
câmeras lentas, as tomadas de pessoas e de paisagens de frente e de
costas e as paradas sobre as imagens-descomposições deste filme tentam
resumir toda a problemática da ontologia temporal da imagem
fotográfica e cinematográfica. O cinema é demonstração, é mostração, é
visual (AUMONT, 2004, p. 229).
Em essência, e subsumindo as diferenças, há uma mesma
preocupação nos três filmes descritos: pictorializar o cinema, injetar nele
questões e problemas de um pintor. Ao mesmo tempo, nessas obras e,
sobretudo, nas entrelinhas do discurso que as acompanha, mostra-se,
fortemente, o sentimento de perda, de fim, a nostalgia de certo tipo de
cinema que deixou de existir, o cinema da pura imagética; mote esse
constante em Godard, há anos. Todavia não só o cinema se perdeu, a
pintura, de certa maneira, tomou o caminho errado. É preciso, então,
voltar ao modelo pictórico, paragmático da arte solitária, o artesão, o
pintor cineasta, figuras-chave do criador (AUMONT, 2004, p. 236-237),
em suma, um ser-imagem de todas as coisas.
O cineasta francês tem repousado inteiramente nessa tensão entre
fazer ainda filmes, ou seja, objetos circunscritos e identificados, e ser
completamente um artista de obras singulares que perscrutam um estado
do olhar, uma escrita do cine-vídeo-pensamento, um ser-imagem total.
Podemos considerar Godard um artista de um projeto desmesurado, no
qual o cinema, como audiovisual, como natureza e como cultura, está
em suas mãos para repercutir os estrondos e os tremores de uma vida
inteira (RANCIÈRE, 2013, p. 178).
Na verdade, não há mais um sujeito-Godard, como criador
autônomo ou um iniciador-manipulador, pois, atualmente, já não se trata
mais de escrever ou de inventar uma imagem, mas de inscrevê-la em um
mundo, ou seja, em uma narrativa cinematográfica, como veremos a
seguir.
1.3 NARRATIVA E CINEMA
Podemos ponderar que a narrativa é o meio pelo qual os
enunciados discursivos orais, escritos ou imagéticos são empregados
66
com o escopo de mostrar acontecimentos reais ou fictícios. Por ela,
estabelece-se a composição de uma rede que abrange locutor e
interlocutor. Desse modo, a narrativa é um ato interativo entre aquele
que conta e o agente de interação. Os estilos narratológicos de um
indivíduo partem da apreensão do seu espaço. Essas atitudes derivam da
percepção que ele elabora ao longo de sua experiência social, filosófica
e cultural (SANTOS FILHO, 2007, p. 37). Conforme Merleau-Ponty
(2006, p. 3), tudo que se aprendeu do mundo, mesmo por ciência,
aprendeu-se de um ponto de vista do indivíduo ou de um conhecimento
do mundo sem o qual os elementos da ciência não poderiam expressar
coisa alguma.
Como percebemos, a ciência não vem na primeira posição como
resposta do sujeito em seu mundo, mas a relação sujeito-mundo
constitui-se a partir das interações perceptivas do ser, porque o
indivíduo é quem constrói a ciência e seus símbolos. O mundo é o
sujeito reproduzido em si mesmo, sem compartimentação. Narramos
algo que apreendemos. Narramos algo que agrupa os nossos sentidos
(SANTOS FILHO, 2007, p. 38). Genette (1979. p. 25) designa a história
como o significado, a narrativa como o significante, e a narração como o
ato narrativo criador que aqui se comporão como termos demarcados
para o que está sendo sugerido como análise da narrativa literária e
também da narrativa fílmica.
Ambas as narrativas serão previamente estudadas pelo que elas
possuem em comum. O ato de ler um romance e o ato de ver um filme
alargam o espaço para que o imaginário torne-se visível. Enquanto na
literatura, por exemplo, existe um ambiente pelo qual somos guiados a
sentir os personagens de uma obra, o cinema envolve todos os sentidos e
preenche sensações com imagem e som. As narrativas são histórias que
expressam o discurso do imaginário, tanto do autor, como do leitor e
espectador (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 114-115).
A narrativa também ocorre porque o indivíduo se permite ao
sonho, sonhando consigo e com seu lugar no instante em que ele existe.
Segundo Bachelard (1988) é preciso ser “sonhador de palavras”. As
palavras sonhadas são compreensíveis porque elas se originam das
experiências vivenciadas. Essas palavras experienciadas permitem-se
narráveis. O autor também diz: [...] “sonha-se antes de contemplar.
Antes de ser um espetáculo consciente, toda paisagem é uma
experiência onírica. Só olhamos com uma paixão estética as paisagens
que vimos antes em sonho” (BACHELARD, 2002, p. 5). Portanto as
elaborações narrativas ajustam-se em nós, despertam-nos os eventos e as
67
alegorias míticas dos tempos primordiais da constituição do mundo de
nosso imaginário. Enredamos com palavras e imagens nossos destinos.
A literatura e o cinema, como também as outras artes, são
manifestações artísticas, por meio das quais o mito, também, com toda
pujança de seus exemplos, manifesta-se no indivíduo mantendo seu
imaginário. Ainda permite que ele, ao idealizar, institua o belo de sua
alma, o mundo simbólico do encantamento. Ao mito não se dá
esclarecimentos, confia-se nele ou não, e é por esta razão que ele é
íntimo da arte (SANTOS FILHO, 2007, p. 38).
Do ponto de vista de Benedito Nunes (1988, p. 27),
fenomenologicamente nos encontramos com diveros tempos: “[...] na
obra literária de caráter épico ou narrativo, uma vez que a narrativa
possui três planos: o da história, do ponto de vista do conteúdo, o do
discurso, do ponto de vista da forma de expressão, e o da narração, do
ponto de vista do ato de narrar”. Certamente, quanto à história, o tempo
na literatura é de característica imaginária e, no discurso, é situado pela
apresentação de subsídios e de elementos linguísticos que dão sequência
ao enunciado.
Na narrativa cinematográfica, da mesma forma como na narrativa
literária, tempo e espaço são intrínsecos, ocorrendo na atualidade. Uma
projeção na tela pode recuar, antecipar, acelerar ou retardar, tudo está
amarrado ao ritmo que se dê ao filme. O espaço na narrativa literária é
assinalado pela associação espaço-temporal experenciada pelo
indivíduo. Esse espaço é plural. Um espaço apreendido que tem lugar no
presente do imaginário do leitor, onde o passado e o futuro são
presentificados. Os eventos do ontem se passam no agora imaginado no
ato da leitura, assim como o porvir (SANTOS FILHO, 2007, p. 39).
Por outro lado, o filme tem possibilidades visuais que o romance
não possui. Essas possibilidades visuais do cinema encontram pouco
paralelo à altura na literatura. Enquanto a narrativa literária detalha e
filtra, por meio da linguagem, aquilo a que se terá acesso, no filme, tem-
se certo grau de liberdade para escolher se a nossa atenção vai ser
dirigida a determinado detalhe e não a outro. Se, no cinema, o
espectador, inicialmente, possui um acesso mais rico a detalhes da cena
apresentada, por outro lado, o narrador pode ser menos perceptível. Tal
como na literatura, o cinema também distingue entre autor e narrador
(GONÇALVES, 2011, p. 21-22).
Afirma Vernet (2009, p. 111): O narrador “real” não é o autor, porque sua função
não poderia ser confundida com sua própria
pessoa. O narrador é sempre um papel fictício,
68
porque age como se a história fosse anterior à sua
narrativa (enquanto é a narrativa que a constrói) e
como se ele próprio e sua narrativa fossem neutros
diante da “verdade” da história. Mesmo na
autobiografia, o narrador não se confunde com a
própria pessoa do autor. [...]. O narrador de fato
produz, ao mesmo tempo, uma narrativa e uma
história, da mesma forma que inventa certos
procedimentos da narrativa ou certas construções
da intriga.
O autor citado julga mais apropriado empregar o termo “instância
narrativa” em vez de narrador, levando em conta que o filme é uma obra
de uma equipe e demanda diversas séries de opções adotadas por muitos
técnicos, como produtor, roteirista, fotógrafo, iluminador, montador
(VERNET, 2009, p. 111). Já Schmidt (2009, p. 212) assinala problemas
na afirmação de que não há narrativa sem narrador no caso dos filmes de
ficção. Segundo ele, ainda que quase todos esses filmes, muitos deles
adaptações da literatura, apresentem numerosas capacidades de contar
histórias e pertençam, assim, a um meio predominantemente narrativo,
seus modos peculiares de apresentação multimídia e sua singular
combinação de elementos espaço-temporais os distinguem de formas
narrativas fundamentadas, sobretudo, na linguagem.
Segundo Schmidt, a falta de um sujeito narrativo é equilibrada
pelo termo “instância visual narrativa”, análoga à denominação que
propõe Vernet. David Bordwell (1985, p. 62), por sua vez, confere o
processo narrativo não a um narrador personificado, mas sim às técnicas
do filme, que atuam erigindo o mundo da história para alguns efeitos
específicos. Esse autor abdica o conceito de narrador em benefício de
uma teoria narrativa que aprecia mais o papel do espectador no processo
narrativo. A situação do filme não é de fato uma situação de
comunicação e, nesse sentido, ele indica que se abandone a preocupação
com a demarcação de um narrador no cinema, já que outorgar a todo
filme um narrador ou um autor implícito é consentir uma ficção
antropomórfica (GONÇALVES, 2011, p. 23).
As reproduções verbais e visuais possuem sua ligação mais forte
na sequencialidade, uma vez que os signos linguísticos e literários são percebidos ininterruptamente por meio do tempo, a maioria adotando
uma ordem sucessiva e causal. Essa sequencialidade, porém, pode ser
arquitetada de diversas maneiras e a narração literária e a
cinematográfica dispõem, ambas, de soluções que permitem a
manipulação do tempo e a inferência a certa causalidade entre eventos
69
determinados. No entanto, enquanto o filme apresenta elementos visuais
mais concretos, a arte sem imagens da literatura desenvolve-se
unicamente no tempo e não proporciona um objeto mensurável como,
por exemplo, a pintura (BORDWELL, 1985, p. 8).
Apesar de o cinema e a literatura se aproximarem
admiravelmente no que concerne às suas habilidades narrativas, nem
sempre cinema e narração encontraram-se unidos. Logo que nasceu, o
cinema, segundo Vernet (2009, p. 89), possuía muito mais o aspecto de
instrumento de registro (científico, documental etc.) e o encontro com a
narração deveu-se à sua própria matéria expressiva, a imagem figurativa
em movimento. O referido autor parte da ideia de que qualquer objeto,
mesmo antes de sua representação, já é um discurso em si, uma vez que
possui um valor dentre uma variedade de valores reconhecíveis para a
sociedade.
Nesse sentido, Vernet (2009, p. 89-90) afirma: [...] um objeto é uma amostra social que, por sua
condição, torna-se um iniciador de discurso, de
ficção, pois tende a recriar em torno dele (mais
exatamente, aquele que o vê tende a recriar) o
universo social ao qual pertence. [...]. Assim, a
imagem de um revólver não é apenas o
equivalente do termo “revólver”, mas veicula
implicitamente um enunciado do tipo “eis um
revólver” ou “isto é um revolver”, que deixa
transparecer a ostentação e a vontade de fazer com
que o objeto signifique algo além de sua simples
representação. Desse modo, qualquer figuração,
qualquer representação chama a narração, mesmo
embrionária, pelo peso do sistema social ao qual o
representado pertence e por sua extensão. Para
perceber isso, basta contemplar os primeiros
retratos fotográficos, que instantaneamente se
tornam, para nós, pequenas narrativas.
Vernet (2009, p. 92) distingue, ainda, outros dois elementos
imprescindíveis para que exista narração no cinema: primeiramente, que
o desenrolar da história permaneça à disposição daquele que a conta e
que, dessa maneira, possa utilizar um adequado número de recursos para estabelecer seus efeitos; em segundo lugar, que a história adote um
desenvolvimento organizado, ao mesmo tempo, pelo narrador e pelos
modelos aos quais se adapta.
70
No que concerne à relação entre as narrativas literárias e
cinematográficas, Jean Epstein (1983) fala de uma relação recíproca
entre as duas artes, já que, para ele, a literatura moderna está
impregnada de cinema. De forma recíproca, a arte fílmica muito
assimilou da literatura. Para Schmidt (2009, p. 212), é admissível
localizar, no filme, as basilares estratégias narrativas da literatura, em
que pese seus aspectos sejam um tanto diferentes. Esse autor recomenda
como mais adequado o termo “equivalências” para se referir a essas
estratégias comuns, que são muito mais complicadas do que
simplesmente questões de “adaptação” ou de “tradução”, por exemplo,
de um livro em um filme.
Já segundo Vernet (2009, p. 96), as competências narrativas que
avizinham o cinema e a literatura fazem parte de um domínio de estudos
mais abrangente: a narratologia.
Em suas palavras: Por definição, o narrativo é extra-cinematográfico,
pois se refere tanto ao teatro, ao romance, quanto
simplesmente à conversa cotidiana: os sistemas de
narração foram elaborados fora do cinema e bem
antes de seu surgimento. Isso explica o fato de que
as funções dos personagens de filmes possam ser
analisadas com os instrumentos forjados para a
literatura por Vladimir Propp (proibição,
transgressão, partida, retorno, vitória) ou por
Algirdas-Julien Greimas (adjuvante, oponente).
Esses sistemas de narração operam com outros
nos filmes, mas não constituem o cinematográfico
propriamente dito: são o objeto de estudo da
narratologia, cujo campo é bem mais vasto que
apenas o da narrativa cinematográfica [...]. Essa
distinção [...] não deve fazer esquecer que cinema
e narrativa não caminham sem interações e sem
que seja possível estabelecer um modelo próprio
ao narrativo cinematográfico, diferente, segundo
certos aspectos, de um narrativo teatral ou
romanesco (VERNET, 2009, p. 96).
Assim, constituir um padrão de análise da narrativa próprio para o
cinema foi uma preocupação para diversos autores. Uma característica
dessa preocupação são os entraves de ordem material que a análise de
um filme pode abarcar, tais como os abordados por Francis Vanoye e
Anne Goliot-Lété (1994, p. 10).
Na explicação deles:
71
Enquanto a análise literária explica o escrito pelo
escrito, a homogeneidade de significantes
permitindo a citação, em suas formas escritas, a
análise fílmica só consegue transpor,
transcodificar o que pertence ao visual (descrição
de objetos filmados, cores, movimentos, luz etc.)
do fílmico (montagem das imagens), do sonoro
(músicas, ruídos, grãos, tons, tonalidade das
vozes) e do audiovisual (relações entre imagens e
sons) (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p. 10).
O cinema, por esse viés, pela sua capacidade de traduzir a
realidade do universo físico, captando todos os seus elementos por meio
da sua particular aptidão para o imagético, estabelece, amiúde, com o
real uma relação de tipo densamente narrativo. Ainda que seja evidente
o aspecto de arranjo espacial e verbal, que o aproxima, por exemplo, do
teatro e da literatura, bem como o imperativo de uma condensação, tais
aspectos, quando bem analisados, manifestam diversidades de grande
importância, nomeadamente pelas relações que a imagem
cinematográfica estabelece com outros elementos fílmicos, o que,
comumente, não acontece na cena teatral ou no discurso literário.
Nesta altura, é relevante frisar que o cinema possui algumas
diferenças e semelhanças com a literatura, como compreendido,
previamente, por Merleau-Ponty (1983, p.14-15). Posteriormente, não
houve por parte desse autor um desenvolvimento mais pormenorizado
sobre esse tema, talvez devido a seu falecimento precoce, como
aconteceu acerca de outras formas artísticas, como a pintura, por
exemplo. Todavia alguns autores que veremos a seguir, trabalhando
algumas teses merleaupontianas, como percepção, sentido, tempo e
espacialidade na arte narrativa do cinema, contribuem para uma
continuidade do pensamento artístico do filósofo francês.
Uma das características mais cruciais a considerarmos na
semelhança ou na distinção entre a literatura e o cinema tem a ver com o
fato de se tratar de dois sistemas de significações distintos, sendo que o
primeiro é de natureza verbal e é apreendido conceptualmente, enquanto
o segundo possui uma natureza heterogênea e é captado sensorialmente,
como fenômeno da percepção. Com a exatidão de análise que caracteriza o seu pensamento, Roman Ingarden (1979) refere-se à
intuição imaginária da leitura literária, por oposição à percepção
sensível da obra cinematográfica. Ambos os sistemas revelam intensa
tendência simbólica, sendo o grau imagético e icônico no cinema mais
notável e mais decisivo do que na literatura. É nesse sentido que
72
Bluestone (1966, p. 1) assevera que é entre a percepção da imagem
visual e o conceito da imagem mental que jaz a diferença entre os dois
sistemas.
Já, David Bordwell (1985, p. 29) indica uma teoria da narrativa
cinematográfica entendendo que a narração no cinema não representa
uma condição de comunicação nos modelos linguísticos; este estudioso
admite que o espectador é um ente ativo e consciente, capaz de realizar
as intervenções mentais necessárias para que a narração de fato ocorra.
Partindo desse ponto, Bordwell fundamenta-se na teoria construtivista
da psicologia, para quem pensar e perceber são procedimentos
operacionais designados a uma finalidade. Dessa maneira, o organismo
é que estabelece a percepção, com fundamento em inferências
inconscientes, já que os estímulos sensoriais que ele recebe não
poderiam por si só se incumbirem de tal empreitada, uma vez que são
dúbios e inacabados (GONÇALVES, 2011, p. 26).
A percepção é um procedimento inferencial de comprovação de
hipóteses, por meio do qual a organização dos dados sensoriais se
determina especialmente pela expectativa, pelo conhecimento
armazenado, pelos processos de soluções de problemas e por outras
operações cognitivas. Com a tendência de ser antecipatória, a percepção
confirma ou não a expectativa, baseando-se em hipóteses que são
testadas para depois serem aceitas ou rechaçadas, e, neste último caso,
uma nova hipótese é gerada. As hipóteses baseiam-se, antes de tudo, em
conhecimento armazenado. Os conjuntos organizados desses
conhecimentos são o que Bordwell (1985, p. 29, 31) chama de
“esquemas''. Exemplos de esquema seriam, segundo ele, a imagem
mental de um pássaro, no que diz respeito ao reconhecimento visual, e o
saber andar de bicicleta, um modelo de procedimento.
Todo esse processo é uma atividade aprendida e dominada, um
ciclo de atividades perceptivo-cognitivas, que esclarece a natureza
contínua da percepção. No que diz respeito à percepção da arte,
Bordwell (1985, p. 33) explica que, ao entrarmos em contato com a arte,
em vez de meditarmos nos resultados pragmáticos da percepção,
recuamos a nossa atenção para o próprio processo. O que na vida mental
cotidiana é inconsciente torna-se consciente. Nossos esquemas são
conformados, expandidos e infringidos: um atraso na confirmação de
uma hipótese pode prolongar-se pelo bem do processo em si. E, como
todas as outras atividades psicológicas, a atividade estética possui
efeitos de amplo espectro. A arte pode reforçar, transformar ou até
mesmo questionar nosso repertório perceptivo-cognitivo normal.
73
Como procedimento diferente daquele que ocorre na literatura, o
cinema utiliza-se de algumas “deficiências” psicológicas no sistema
visual humano, como, por exemplo, o fato de a retina ser incapaz de
acompanhar as modificações rápidas de luz. É impraticável para os
olhos impedir que ocorra o fenômeno da mobilidade aparente quando
mais de cinquenta flashes por segundo criam a ilusão de uma luz estável
(GONÇALVES, 2011, p. 27).
Além do mais, outro fator que trabalha a favor do cinema é a
própria situação da sala, uma vez que, com pouca luz, há menor
incidência de outros estímulos (que não aqueles que advêm do próprio
filme) embaraçando a concentração do espectador. Esses fatores, ao lado
da nossa competência para nos basearmos em nossas próprias
experiências para testar hipóteses e fazer inferências, agem a favor da
narração no cinema, além, é claro, do próprio material fílmico, que, por
meio de técnicas específicas, incentiva-nos a realizar as atividades
indispensáveis para a constituição do enredo.
Já no que se refere aos aspectos formais da narrativa
cinematográfica, Bordwell (1985, p. 49) conceitua três categorias como
integrantes desse tipo de narrativa: a “história” (fábula), a “trama” ou
intriga (syuzhet) e o “estilo”. A história como conceito da teoria desse
autor não se confunde com a diegese. Segundo ele, a história é a
construção imaginária que criamos, progressiva e retroativamente. A
história alia a ação como uma cadeia cronológica de causa e efeito dos
eventos, que ocorrem em uma duração e espaço dados. Idealmente, a
história pode estar incluída em uma sinopse verbal, tão particularizada
ou geral quanto requeiram as circunstâncias.
A história aqui não pode ser confundida com um acontecimento
pró-fílmico, já que, como aponta Bordwell (1985, p. 49), ela jamais está
materialmente presente em um filme. O que o filme providencia são
informações, ações representadas, que funcionam como pistas para que
o espectador construa a história. Uma mesma informação poderia ser
dada de muitas maneiras e, nesse sentido, há muitas formas de uma
narrativa cinematográfica incentivar o espectador, por meio das
informações que fornece na construção da história. Como se trata de um
procedimento individual e intersubjetivo, a história também será
intersubjetiva, apesar de os espectadores normalmente estarem de
acordo com o que é a história de um filme.
A trama ou intriga, por sua vez, define-se pela coordenação e
exposição atuais da história no filme, isto é, a arquitetura da exposição
da história por parte de um filme. É uma constituição mais abstrata,
aquilo que uma narração passo a passo do filme proporcionaria. A trama
74
é um sistema, já que organiza os componentes – os acontecimentos da
história – de acordo com princípios específicos. Claramente, a sua
configuração independe do meio: uma mesma trama poderia ser
apresentada em um romance, em uma peça teatral ou em um filme
(BORDWELL, 1985, p. 50).
O estilo, por seu turno, é também um sistema que mobiliza os
componentes do filme de acordo com princípios de organização e que
interage com a trama. Mas, enquanto este último define quais
informações serão disponibilizadas para possibilitar a construção de uma
história no filme, o estilo define como elas serão dispostas e
apresentadas. Enquanto a trama incorpora o filme como processo
dramatúrgico, o estilo o compreende como um processo técnico. Esse
conceito de estilo não se confunde aqui com aquele usado para
denominar conjuntos de filmes que apresentam as mesmas
características. Bordwell (1985, p. 50) utiliza o termo estilo para
denominar o uso sistemático de recursos cinematográficos em um filme.
Apresentados esses três conceitos, Bordwell detalha as relações
entre história, trama e estilo. Considerando que a trama pode ser inferida
de meios diferentes, como romance, pintura, filme ou peça teatral, a sua
concepção evita a distinção dos fenômenos superficiais, como pessoa,
tempo gramatical e metalinguagem e se apoia em princípios básicos
mais flexíveis para toda a representação narrativa. Sendo assim, a
distinção entre história e trama não será entendida como uma réplica da
distinção entre história e discurso, defendida pelas teorias da
enunciação, porque, para Bordwell (1985, p. 50), a história não é um ato
enunciativo não marcado; não é tampouco um ato de fala, mas sim um
conjunto de inferências, de deduções.
Para explicar o que trabalha a favor da história, Bordwell (1985,
p. 51-52) expõe três princípios: a lógica narrativa, o tempo e o espaço. A
lógica narrativa é essencial para que o espectador defina alguns
fenômenos como acontecimentos, enquanto constrói relações entre eles,
geralmente relações causais. A trama tem o poder de controlar o nível de
facilitação desse processo, dispondo os eventos de forma a encorajar ou
a dificultar uma relação causal entre eles. No que diz respeito ao tempo,
a trama pode fornecer os acontecimentos-chave para a construção da
história em qualquer sequência (ordem), também sugerir que tenham
acontecido em um espaço de tempo virtual (duração) ou, ainda, que
tenham sucedido um determinado número de vezes (frequência).
Também em relação ao espaço, a trama pode facilitar ou não a
sua constituição, à medida que fornece mais ou menos informações
espaciais sobre os eventos na história. Agindo conjuntamente, trama e
75
estilo produzem não apenas o acesso do espectador aos dados da
história, mas também envolvem os processos estilísticos que a narração
inclui. A trama molda a construção da história dominando, dessa forma,
a quantidade de informações a que temos acesso, o grau de pertinência
que podemos atribuir a elas e a correspondência formal entre a
apresentação da trama e os dados da história. Assim, em um filme de
investigação policial, por exemplo, a quantidade de informações pode
ser mais insuficiente do que em filmes de outros gêneros, caso o
interesse seja causar efeitos como um clima de mistério ou uma postura
investigativa por parte do espectador (GONÇALVES, 2011, p. 29-30).
Uma vez que nenhuma trama fornece todos os acontecimentos da
história, o espectador, segundo Bordwell (1985, p. 54-55), julga o que
pode ter acontecido entre dois ou mais eventos apresentados no filme.
Há, portanto, lacunas, criadas quando se opta por apresentar certas
informações da história e ocultar outras. Ao deixar as lacunas entre os
acontecimentos, a trama poderia sugerir, por exemplo, que nada de
relevante tenha acontecido entre eles. As lacunas, que podem ser
temporais ou causais, estão entre os palpites mais claros para o
espectador, visto que evocam todo o processo de formação de esquemas
e comprovação de hipóteses.
A teoria da narração no cinema apresentada por David Bordwell
possui sua ênfase maior nos procedimentos psicológico-cognitivos
abrangidos na recepção do filme, porém não deixa de ponderar e de
reforçar que, no cinema, a narração é o processo através do qual a trama
e o estilo do filme interagem para conduzir e canalizar a constituição da
história pelo espectador. Por conseguinte, o filme não narra somente
quando a trama estabelece a informação da história. A narração também
abarca os procedimentos estilísticos (GONÇALVES, 2011, p. 30).
Relacionando com alguns pontos trabalhados anteriormente, a
literatura apresenta ‒ e também o cinema ‒ a característica inalienável
de lidar com o tempo e a transformação, e essas são realidades que
pertencem ao universo sensível e material. A arte da narrativa é
precisamente a de, através do sensível, revelar o insensível. A abstração
escapa ao universo narrativo, o que não equivale a dizer que o imaterial
não seja desejado pela narrativa, mas sim que só por meio da matéria é
que o objeto narrativo exprime o que não é tocável nem sensível.
Peter Szondi (1983, p. 135) amplia, indiretamente, essa noção a
toda a arte, dizendo que “a história da arte não é determinada pelas
ideias, mas sim pela forma em que elas encarnam”. Destacamos aqui o
modo particular como as ideias encarnam na narratividade da literatura e
do cinema, em que o aspecto da temporalidade em ação assume
76
particular importância, revelando o aspecto concreto desses objetos
encarnados. Um exemplo notório desse fato é o caso da força
significativa do rosto humano na literatura e, sobretudo, no cinema.
Grande parte do poder do cinema liga-se à poderosa sugestão de
significado que o rosto humano transmite por si só, particularmente
quando ele nos é dado enquanto sujeito, em relação à duração
transformadora da imagem em movimento.
Por essa razão, ambas as narrativas, literária e fílmica, buscando a
sugestão do concreto por meio da palavra, da imagem e do pensamento
encarnado, almejam idêntico objetivo: por meio da sua forma específica,
exprimir uma realidade que tem tanto de material como de imaterial,
tanto de finito como de ilimitado, contudo, sempre através da construção
de um mundo possível, habitado por presenças humanas e por seres
inanimados, todos eles integrados em determinado espaço e em
determinado tempo e, portanto, sujeitos às leis do universo físico,
concreto, mensurável.
Além do mais, ambas as artes procuram transmitir a totalidade da
vida e aspiram à eternidade, razão pela qual o fim de uma história é
tantas vezes sentido como artificial, uma espécie de mal necessário. No
entanto, pela sua natureza mais mental, a literatura é mais apta à
construção do universo interior do indivíduo, tendo mais dificuldade em
reproduzir as propriedades do mundo sensível, que não deixam, no
entanto, de constituir a sua matéria-prima.
O cinema, pelo contrário, identifica-se rapidamente com o mundo
sensível e debate-se com a necessidade de resolver problemas quando
procura a expressão da subjetividade, que não deixa de ser objetivo seu.
Isso não significa que a literatura tenha como vocação a expressão da
interioridade, e o cinema a representação da exterioridade, mas sim que
a palavra escrita parte desse universo interior em direção ao que o
circunda, já que é na materialidade desse universo que tomam corpo as
intuições do artista, enquanto a expressão imagética reproduz o universo
envolvente, captado sensorialmente, como forma de chegar ao íntimo,
ao interior, à essência.
Ingarden (1979, p. 355-357), estabelecendo a diferença entre a
obra literária e o espetáculo cinematográfico, sublinha que este último
tem de dar ênfase aos acontecimentos visíveis, mas apressa-se a
clarificar: “[...] não se deve esquecer que pertence à essência de um
aspecto ser aspecto de alguma coisa”. Isto é, a realidade funciona
sempre como um sinal, cujo conteúdo é suscitado pela palavra ou
revelado pela imagem em movimento. A identificação desse sentido
implica, por parte do espectador que não queira deter-se na mera
77
sensação, um trabalho de apreensão mais complexo do que por parte do
leitor. Diz o autor que as coisas e as gentes nos são dadas nos seus
acontecimentos, por assim dizer, de fora, quase em percepção, e tudo o
que viermos a saber delas ou o que elas são afinal pode ter o seu
fundamento na multiplicidade dos aspectos reconstruídos.
Assim, o universo compreendido tanto pela narrativa literária
como pela narrativa cinematográfica é o que diz respeito às
características concretas e sensíveis da experiência humana. Que a
literatura o faça por um processo mais prontamente conceitual e o
cinema por uma via mais inteiramente perceptual não é assunto sem
relevância, pelo contrário, uma vez que, no cinema, exprimem-se as
diversas naturezas dessas duas formas de arte e os aspectos que as pré-
determinam formalmente. Não esqueçamos, porém, uma inegável
vocação comum: a de suscitar a criação de outro mundo possível,
concebido precisamente dentro dos parâmetros da contingência espaço-
temporal, simultaneamente lugar da limitação narrativa e da capacidade
artística de reinventar as regras dessa contingência, sem nunca escapar
ao espetáculo da vida em ação, na sua marcha transformadora e
irreprimível.
Podemos, ainda, atentar para um dos aspectos importantes a
serem discutidos acerca da narrativa, que é a noção de tempo e espaço.
Ingarden (1979, p. 256) analisa o tratamento do tempo literário e conclui
que ele é um tempo próprio e apresentado, sendo apenas um análogo,
uma modificação do chamado tempo concreto, subjetivo e radicalmente
distinto tanto do tempo objetivo do mundo real, que é homogêneo, como
do tempo rigorosamente subjetivo de um sujeito consciente absoluto,
revelando diferenças de natureza ontológica. Além do mais, faz-se
necessária essa distinção pelo fato de os acontecimentos de que os
objetos apresentados participam serem por essência temporais e,
também, apresentados como sucessivos ou simultâneos. Estabelece-se,
assim, entre eles, uma ordem temporal.
Uma das diferenças basilares entre o tempo concreto e o tempo
apresentado é o fato de este último não ser, na maioria das vezes,
homogêneo, mas sim demonstrar sempre a presença de lacunas, de
pontos indeterminados, que correspondem àquela parcela do real não
representada explicitamente na obra literária, mas implicitamente
presente, por meio do trabalho da leitura, que, por assim dizer, preenche
o que falta. No entender de Ingarden (1979, p. 259-260), são sempre
apresentadas apenas fases singulares mais ou menos longas ou só
acontecimentos momentâneos, mas o acontecer que tem lugar entre
essas fases ou acontecimentos fica indeterminado. Por conseguinte, as
78
fases temporais apresentadas nunca se integram em uma totalidade una e
contínua. Pelo contrário, o tempo real é um meio contínuo que não
assinala absolutamente lacuna alguma.
O aspecto referido por Ingarden da indeterminação da
representação aplica-se, aliás, a outras dimensões da obra,
principalmente ao nível espacial e na definição das próprias
personagens, e pode enquadrar-se, em termos temporais, dentro do
fenômeno discursivo da elipse, que consiste em uma anisocronia
(diferença de duração entre o tempo diegético e o tempo narrativo),
resultante da exclusão de segmentos diegéticos mais ou menos
pronunciados, fato que dá origem às referidas lacunas ou vazios. Esta é,
aliás, uma das características fundamentais da temporalidade literária: a
não coincidência entre o tempo da história e o tempo do discurso, ao
contrário do que acontece no cinema, em que a isocronia (coincidência
entre a duração do tempo diegético e do tempo narrativo) se verifica
muito mais frequentemente.
Uma característica de grande pertinência, e que aqui
particularmente nos interessa referir, é o fato de o tempo do discurso
literário tender a obedecer necessariamente à linearidade e à
sucessividade que a frase impõe, enquanto o tempo da história pode
apresentar-se de forma múltipla e simultânea. Para alguns teóricos,
como Mitry (1965), a literatura parte do tempo para chegar ao espaço,
enquanto no cinema, geralmente, acontece o inverso: o ponto de partida
é espacial e é no desenvolvimento do filme que se introduz a dimensão
temporal.
O filme coloca-nos na presença de um mundo que ele organiza
conforme certa continuidade. Realmente, no cinema, o tempo “vê-se”, o
espectador está diante do fluir temporal e, ao mesmo tempo, dentro dele,
na medida em que não pode controlar esse tempo que corre – quer seja o
tempo da história, quer o do discurso fílmico, quer o da própria
recepção, que coincide com o fluxo do tempo real e que não pode ser
manipulado, como no caso da literatura – a não ser exercendo algum
tipo de violência sobre o filme, como sair no meio de sua exibição,
retomando-o mais tarde, em dia seguinte. Ao espectador é exigido,
portanto, um respeito por esse tempo que se desenrola diante dos seus
olhos, sob pena de “atentar” contra a obra a que assiste.
Tais aspectos e relações temporais estão como que submetidos a
um implícito pressuposto, que se liga à natureza eminentemente icônica
e imagética do cinema. Analisando as relações que o cinema estabelece
com a realidade, o diretor alemão Wim Wenders (1990, p. 15) diz ser
muito importante que os filmes denotem uma sequência. Os filmes têm
79
que respeitar essa sequencialidade. A continuidade do movimento e a
sequência da ação têm simplesmente que ser coerentes, o tempo que é
apresentado de modo linear não pode, sem mais nem menos, dar um
salto. É inteiramente indiferente de que espécie de filmes se trate, mas é
muito importante que haja uma lealdade relativamente à sequência do
tempo. Nos filmes, há sequências de tempo que têm de se ajustar umas
às outras.
O cineasta russo Andrei Tarkovski (1998, p. 64-65), por sua vez,
vai ainda mais longe, afirmando que a especificidade e a força do
cinema consistem, precisamente, na sua particularíssima relação com a
matéria da realidade e com a capacidade que a arte fílmica tem de fixar
o tempo através das suas manifestações factuais. Logo, a força do
cinema está na relação necessária com a matéria da realidade que nos
circunda a cada instante. O tempo fixado nas suas formas e nas suas
manifestações factuais: tal é a ideia de base do cinema enquanto arte,
que deixa entrever um potencial inexplorado, um futuro impressionante.
O cinema – por demonstrar, indiretamente, a nossa defesa de uma
explícita ou implícita narratividade cinematográfica – fixa o tempo nos
seus índices perceptíveis pelos sentidos, o que materializa, portanto, a
experiência humana encarnada do fluxo temporal, isto é, evidencia o
trabalho transformador e ordenado na medida em que segue uma ordem
necessária, um encadeamento causal. Todavia, muitas vezes, o cinema
não leva em conta esse fenômeno, razão pela qual alguns negam que a
sua natureza possa ser definida como narrativa. Se assumirmos a noção
de narrativa como estrutura que organiza aquilo que na experiência
perceptivelmente pode acontecer, não podemos negar ao cinema uma
particularíssima capacidade de concretizá-la.
Enquanto o tempo literário necessita de marcas que o definam (e
daí a importância fundamental dos tempos verbais, dos advérbios e de
outras expressões temporais, como ontem, hoje e amanhã), o tempo
cinematográfico não necessita dessas marcas, embora possa recorrer a
elas, se o desejar. A lógica temporal é captada pelo espectador por um
processo a que David Bordwell (1985, p. 77) chama de inferência ou
dedução e que, em parte, depende da competência e da cultura desse
espectador, a fim de saber, por exemplo, interpretar o valor temporal de
um flashback.
Esse processo afeta os três aspectos do tempo: a ordem dos
eventos, a sua frequência e a sua duração. O próprio ritmo funciona
desse modo, isto é, tem implicações na forma como o espectador,
através de um processo dedutivo, toma consciência do significado
diegético. A demora da câmera sobre o rosto ou sobre o caminhar de
80
uma personagem, por exemplo, provoca no espectador uma espécie de
reajustamento das suas expectativas, interpretações, deduções. Desse
modo, a narração cinematográfica controla aquilo que é visto, “o quê” e
o “como”.
O aspecto que confere ao cinema um forte caráter de
aproximação ao real é o fato de tempo e espaço poderem coexistir
explicitamente na tela. O discurso fílmico não é obrigado a separar a
dimensão espacial do temporal, como acontece na literatura, o que pode
ter como consequência uma condensação discursiva que, geralmente, se
constata na passagem de uma obra literária para o cinema. Podemos
dizer que, enquanto o tempo do discurso literário se desdobra, a fim de
exprimir a espacialidade e a temporalidade, o tempo do discurso
cinematográfico tende a uma maior coincidência com o tempo diegético,
sendo, portanto, mais denso e complexo, mais semelhante ao tempo real.
Em linhas gerais, procuramos neste capítulo, analisar algumas
amostras de teorias e de filosofias que têm especial ressonância em
relação ao cinema, que, de uma forma direta ou indireta, dialogam com
a fenomenologia e a ontologia. Nesse ponto, o direcionamento
intencional da consciência subjetiva em direção ao seu objeto pretendido
exige uma descrição da experiência fílmica que inclui o espectador e
apela para o foco não só sobre elementos do filme que é visto, mas
também sobre os possíveis modos de englobá-lo e de vê-lo. No conjunto
de espectador e filme, a dinâmica, as modulações e os efeitos de atos de
percepção cinematográfica visual e auditiva são correlacionados com as
estruturas de expressão cinematográfica.
A partir dessa perspectiva, o cinema pode ser visto como um
exemplar filosófico da intencionalidade e da corporeidade, ou seja, da
relação do ser com o mundo. Com efeito, o cinema encena e dramatiza a
correlação intencional como uma estrutura vivida ativamente, através da
qual o significado é constituído como tal. O que a fenomenologia e a
ontologia demandam é que nós estamos a assistir à experiência
encarnada, real e possível que fundamenta o filme, não como ele é
pensado comumente, mas como ele é percebido.
81
2 MERLEAU-PONTY E O FILME: NATUREZA E
SIGNIFICAÇÃO
O objetivo principal deste capítulo é enfocar as principais
relações que o cinema possui com a filosofia de Merleau-Ponty e o
modo como, inicialmente, ele compreende essa arte. As considerações
deste autor permitem compreender o filme como a arte de tornar visíveis
objetos e comportamentos. Dessa maneira, o interesse do filósofo pelo
cinema, enquanto objeto percebido, baseia-se na sua contribuição para a
fenomenologia da percepção e do olhar e também na possibilidade de
uma aproximação em relação aos outros e ao mundo.
2.1 CINEMA E PERCEPÇÃO
Maurice Merleau-Ponty escreveu apenas um ensaio sobre cinema,
mas seu enfoque fenomenológico traz à tona problemas relacionados à
percepção que são centrais para a compreensão do cinema. Tomado por
alguns teóricos como um contrapeso de boas-vindas às teorias marxistas
e psicanalíticas que tendem a considerar o filme como texto, Merleau-
Ponty apresenta uma abordagem fenomenológica que pode fornecer uma
metodologia para se pensar por meio da experiência perceptiva da visão
(SOBCHACK, 1991).
Em sua palestra (que mais tarde foi transformada em um ensaio)18
proferida em 1945, no Institut des Hautes Études Cinématographiques
(IDHEC), intitulada “O Cinema e a Nova Psicologia”, Merleau-Ponty
aponta que o filme é uma das evidências que mostra que a percepção
está ligada mais ao comportamento corporal do que a uma forma de
sensação ou de cognição não mediadas. Esse filósofo francês, ao
interrogar a respeito da chamada “crise histórica” (uma crise
inicialmente dirigida por Edmund Husserl e Henri Bergson que girava
em torno de uma divisão cartesiana entre materialismo e idealismo,
matéria e pensamento), explica que, em uma psicologia clássica, o
campo visual foi considerado como sendo uma soma ou um mosaico de
sensações, ou seja, cada sensação correspondendo a um estímulo
retínico local de que era dependente (MERLEAU-PONTY, 1983, p.
101).
18 Como forma de consulta mais direta e rápida ao texto desta relevante palestra,
encontra-se, em anexo, à esta tese, a versão integral e original de “O cinema e a nova
psicologia”.
82
Dessa maneira, a relação entre os elementos do campo visual foi
explicada por uma construção cognitiva, uma unidade providenciada
pela faculdade representativa. O cinema, que estava se desenvolvendo
no momento dessa crise, desafiou diretamente o dualismo corpo-mente e
precisou ser examinado mais profundamente. Elaborando sua
fenomenologia como um projeto ao longo da vida, Merleau-Ponty
procurou superar o dualismo entre materialismo e idealismo, mente e
corpo, por meio de uma intencionalidade corporal do sujeito encarnado,
permitindo encontrar um mundo que existe através da mediação de um
horizonte de indivíduos que é moldado pela experiência subjetiva.
Podemos adiantar que, em “O Cinema e a Nova Psicologia”, o
seu interesse pelo cinema está ligado à noção do filme como um objeto
de percepção, capaz de revelar alguns aspectos essenciais que norteiam
o nosso diálogo com o mundo. Para o autor, a imagem cinematográfica,
enquanto gestalt temporal, demonstra a união natural entre o interior e o
exterior e afirma o olhar como constituição de um sentido anterior à
inteligência.
É nessa esteira que o filósofo vai relacionar cinema e Psicologia
da Forma, colocando a arte cinematográfica em sua crítica à concepção
clássica da percepção. Para se ter uma compreensão mais amplificada da
investida desse autor no campo da teoria cinematográfica, é relevante,
em linhas gerais, apresentar alguns princípios de sua particular
fenomenologia.
2.1.1 Comportamento e Fenomenologia
Podemos afirmar que a vida intelectual de Merleau-Ponty
começa, de fato, na França, no início dos anos de 1940, em um
questionamento com referência à herança do racionalismo moderno de
René Descartes, especialmente a divisão entre o corpóreo, tomado como
pura exterioridade, fonte eterna de desenganos, e o pensamento
reflexivo, ou seja, a consciência como pura interioridade, transparente
em si e para si mesma. Ao recursar o corpóreo e privilegiar a razão,
Descartes teria produzido uma abstração incontornável, reduzindo nossa
relação com o mundo a uma toda intensa consciência.
Segundo o filósofo francês, o autor de “O Discurso sobre o
Método”, infelizmente, não começou do início, pois, quando se inicia
qualquer pensamento, mergulha-se na complexidade e nas incertezas do
mundo sensível. A crença de que se percebe o mundo, de que nele
vivemos de forma concreta e não ilusoriamente, é o primeiro passo para
o conhecimento. Essa é também para Merleau-Ponty a autêntica origem
83
de toda e qualquer reflexão. Já notamos tal preocupação em seu livro
inicial, “A estrutura do comportamento”, publicado em 1942, cujo maior
desafio é fornecer uma análise que demonstre a legitimidade dessa
crença veiculada pela percepção.
Nessa obra, retomando o cogito cartesiano, ele diz: O cogito não nos ensina de uma vez por todas que
não conheceríamos coisa alguma, se antes não
conhecêssemos nosso pensamento, e que mesmo a
fuga para o mundo e a resolução de ignorar a
interioridade ou de não abandonar as coisas, que é
a essência do behaviorismo, não poderia ser
formulada sem se transformar em consciência e
sem pressupor a existência para si? O
comportamento é pois feito de relações, ou seja,
ele é pensado e não em si, como qualquer outro
objeto aliás; é isso que nos teria mostrado a
reflexão. Mas por esse caminho curto teríamos
perdido o essencial do fenômeno, o paradoxo que
o constitui: o comportamento não é uma coisa,
mas também não é uma ideia, não é o invólucro de
uma pura consciência e, como testemunha de um
comportamento, não sou uma pura consciência.19
(MERLEAU-PONTY, 2013, p. 199).
Nessa mesma obra, o autor desenvolverá um exame rigoroso das
teorias que tratam o organismo vivo como um amontoado de células e
de ossos que poderiam ser analisados separadamente,
independentemente do todo ao qual pertencem. Merleau-Ponty critica a
concepção de relações lineares e pontuais entre os elementos do mundo
físico e a fisiologia do organismo, procurando mostrar que o organismo
responde aos estímulos e se projeta no meio enquanto totalidade ou
estrutura. O termo “estrutura” é entendido como união de uma ideia e de
uma existência inseparáveis. O conceito torna possível a compreensão 19 Na versão original: Le cogito ne nous apprend-il pas une fois pour toutes que nous
n'aurions la connaissance d'aucune chose si nous n'avions d'abord celle de notre pensée
et que même la fuite dans le monde et la résolution d'ignorer l'intériorité ou de ne pas
quitter les choses, qui est l'essentiel du behaviorisme, ne peut être formulée sans se
transformer en conscience et sans présupposer l'existence pour soi? Le comportement est
donc fait de relations, c'est-à-dire qu'il est pensée et non pas en soi, comme tout autre
objet d'ailleurs, voilà ce que nous aurait montré la réflexion. Mais par cette voie curte,
nous aurions manqué l'essentiel du phénomène, le paradoxe qui en est constitutif: le
comportemnet n'est pas une chose, mais il n'est pas davantage une idée, il n'est pas
l'enveloppe d'une pure conscience et, comme témoin d'un comportement, je ne suis pas
une pure conscience (MERLEAU-PONTY, 1942, p. 138).
84
do organismo vivo e do comportamento humano como uma totalidade
em que as partes possuem algum sentido quando atuam em conjunto
com as demais. (MERLEAU-PONTY, 2013. p. 223).
Vemos que alguns temas que o filósofo apresenta na obra citada
demonstram certa influência da Psicologia da Forma: a investigação da
percepção, a noção de campo perceptivo e a tentativa de superar o
dualismo corpo-espírito, homem-mundo. Por exemplo, a noção de
comportamento, pensada como estrutura, permite-lhe justamente
distinguir o físico-químico, o biológico e o simbólico e afirmar que,
apesar de se tratar de ordens irredutíveis umas às outras, elas se
entrelaçam e interagem para produzir a experiência de si e do mundo.
Consequentemente, todo comportamento, mesmo aquele
instintivo, consiste em um modo de organização, em uma forma que une
solidariamente organismo e ambiente. Ou, em outras palavras, todo
comportamento possui uma estrutura que exibe sentido e intenção, não
podendo ser compreendido com simples disparos de mecanismos de
causa e efeito. As estruturas de comportamento dos seres se distribuem
em níveis de complexidade crescente, que correspondem à capacidade
dos organismos de agirem no ambiente não só se adaptando às suas
propriedades físico-químicas, mas também criando para si mundos nos
quais a vida é realmente vivida. Podemos dizer, aqui, que o autor se
serve das pesquisas psicológicas para realizar uma redução
fenomenológica moderada, que não culmina em um sujeito
transcendental puro como condição da experiência, e sim no corpo
fenomenal entrelaçado em um campo de situações concretas
(MERLEAU-PONTY, 2013, p. 224-225).
Já na parte final do livro, Merleau-Ponty faz uma análise
pormenorizada da experiência ingênua do mundo, isto é, aquela em que
se está envolvido em uma situação concreta vivida, sem
questionamentos ou reflexões a respeito de sua natureza ou significação.
Nessa experiência, as pessoas não se sentem limitadas a estados
privados de consciência. Elas creem relacionar-se com as próprias
coisas, sendo que os sistemas perceptivo-motores que tornam essa
experiência possível quase sempre passam despercebidos. Nota-se que
estamos todos submetidos às determinações fisiológicas e estruturais dos
nossos órgãos. No entanto, nessa experiência irrefletida, pré-reflexiva, o
corpo não se mostra como um intermediário entre uma suposta alma ou
consciência e o mundo. De maneira oposta, o corpo é justamente o meio
pelo qual as coisas podem ser conhecidas da forma como são
(MERLEAU-PONTY, 2013, p. 300-307).
85
Assim, o autor francês, ao ampliar a noção de intencionalidade,
inscrevendo-a como marca de todo e qualquer fenômeno no interior da
experiência vivida, promove uma verdadeira virada corporal desde a sua
primeira obra. Ele coloca a intencionalidade na experiência primária,
imediata e pré-reflexiva do corpo situado no mundo. Um corpo agora
não mais visto como mero suporte para a atividade da mente ou como
objeto da consciência, mas como fonte de toda experiência possível.
Será esse o caminho a ser explorado em sua segunda e uma das mais
importantes obras, “Fenomenologia da percepção”, publicada em 1945,
três anos após o lançamento do seu primeiro livro.
Em “Fenomenologia da percepção”, Merleau-Ponty começa com
a seguinte pergunta: o que é a fenomenologia? A sua resposta, no
prefácio, delineia um caminho diferente da corrente iniciada por
Edmund Husserl. Pois, se a fenomenologia é o estudo das essências, ela
também é uma filosofia que recoloca as essências na existência e não
pensa que se possa entender o homem e o mundo de outra forma, a não
ser a partir de sua “facticidade”. Em outras palavras, estamos defronte
de um pensamento que revela uma situação característica da existência
humana que, lançada ao mundo, está submetida às injunções e às
necessidades dos fatos.
Continuando sua exposição sobre a fenomenologia, o filósofo diz: É uma filosofia transcendental que coloca em
suspenso, para compreendê-las, as afirmações da
atitude natural, mas é também uma filosofia para a
qual o mundo já está sempre “ali”, antes da
reflexão, como uma presença inalienável, e cujo
esforço todo consiste em reencontrar este contato
ingênuo com o mundo, para dar-lhe enfim um
estatuto filosófico. É a ambição de uma filosofia
que seja uma “ciência exata”, mas é também um
relato do espaço, do tempo, do mundo “vividos”20
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 1).
A fenomenologia é, para Merleau-Ponty, uma alternativa ao que
ele compreendia como as incoerências tanto das teorias científicas
20 Na versão original: C'est une philosophie transcendantale qui met en suspens pour les
comprendre les affirmations de l'attitude naturelle, mais c'est aussi une phisosophie pour
laquelle le monde est toujours “dejà là” avant la réflexion, comme une présence
inaliénable, et dont tout l'effort est de retrouver ce contact naïf avec le monde pour lui
donner enfin un statut philosophique. C'est l'ambition d'une philosophie qui soit une
“science exacte”, mais c'est aussi un compte rendu de l'espace, du temps, du monde
'vecus' (MERLEAU-PONTY, 1945, p. I).
86
quanto das grandes construções racionais, em filosofia, sobre a
percepção e a produção de conhecimento. Seu fundamental argumento é
que os experimentos dos cientistas e suas conclusões, assim como as
teorias filosóficas, não levam em conta que sua origem está na
experiência vivida, evidentemente pré-reflexiva e, por seu turno, essa
experiência funda-se no ato perceptivo, campo privilegiado do
entrelaçamento corpo-mundo.
O autor se volta, portanto, contra o intelectualismo das filosofias
da consciência, que, levando às últimas consequências a separação
cartesiana entre o corpo e o intelecto, afirmam que a subjetividade
constitui a realidade ou põe o mundo a partir de si mesma. Em
“Fenomenologia da percepção”, a invocação de um irrefletido, de um
cogito tácito, anteriores a toda tese posta pelo intelecto, busca encontrar
na própria fenomenologia um meio para sair do campo cerrado da
consciência.
Nas palavras de Merleau-Ponty (2006, p. 14): O mundo é não aquilo que eu penso, mas aquilo
que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-
me indubitavelmente com ele, mas não o possuo,
ele é inesgotável. “Há um mundo”, ou, antes, “há
o mundo”; dessa tese constante de minha vida não
posso nunca inteiramente dar razão. Essa
facticidade do mundo é o que faz a Weltlichkeit
der Welt, o que faz com que o mundo seja mundo,
assim como a facticidade do cogito não é nele
uma imperfeição, mas, ao contrário, aquilo que
me torna certo de minha existência.21
O percurso da fenomenologia merleaupontiana será, então,
norteado pela busca de um encontro com o mundo antecedente ao
conhecimento de que o conhecimento sempre se expressa. Esse fato é
possível porque toda reflexão é uma derivação do plano pré-reflexivo e
originário que lhe é ontológica e cronologicamente anterior, da mesma
maneira como a geografia em referência à paisagem. Para levar esse
desafio a contento, pensamos a experiência não como psicológica ou
21 Na versão original: Le monde est non pas ce que je pense, mais ce que je vis, je suis
ouvert au monde, je communique indubitablement avec lui, mais je ne le possède pas, il
est inépuisable “Il y a un monde” ou plutôt “il y a le monde” de cette thèse constante de
ma vie je ne puis jamais rendre entièrement raison. Cette facticité du monde est ce qui
fait la Weltlichkeit der Welt, ce qui fait que le monde est monde, comme la facticité du
cogito n'est pas une imperfection en lui, mais au contraire ce qui me rend certain de mon
existence (MERLEAU-PONTY, 1945, p. XI-XII).
87
introspectiva, muito menos como experimentação passiva de estímulos
do meio, mas como uma abertura para o mundo. Logo, o que se objetiva
estudar é a forma como, por meio de nossa inscrição corporal no mundo,
delineia-se uma experiência de interioridade e de realidade externa que
compõem nosso campo de existência (MERLEAU-PONTY, 2006. p. 4).
É relevante observar que o mundo “que já está sempre lá”, antes
da reflexão, não pode ser visto como um conjunto de objetos e estímulos
determinados. Ele é o horizonte latente da experiência de um indivíduo e
constitui um campo fenomenal que o inclui não só como um objeto que
se percebe junto com os outros, mas também como um sujeito que
percebe. Assim, matéria, vida e significação, assim como psiquismo,
corpo e mundo, nenhum desses polos pode ser pensado fora de suas
relações com os demais. Afinal, nascer é simultaneamente nascer do e
no mundo.
Nas explicações do filósofo francês: O mundo está já constituído, mas também não está
nunca completamente constituído. Sob o primeiro
aspecto, somos solicitados, sob o segundo somos
abertos a uma infinidade de possíveis. Mas esta
análise ainda é abstrata, pois existimos sob os dois
aspectos ao mesmo tempo. Portanto, nunca há
determinismo e nunca há escolha absoluta, nunca
sou coisa e nunca sou consciência nua22
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 608).
Ao adotar essa perspectiva, Merleau-Ponty é levado a redefinir a
concepção tradicional do corpo como objeto ou como uma simples
entidade biológica autorreguladora, mero suporte para as atividades de
uma instância mental compreendida como sendo imaterial. Em
“Fenomenologia da percepção”, o autor aprofunda a distinção já
trabalhada em sua primeira obra, entre o “corpo objetivo”, o corpo
tomado como uma coisa, matéria extensa situada no espaço, e o “corpo
fenomenal”.
O primeiro é o corpo que observo, um objeto no meio dos outros.
É o corpo em sua existência material e fisiológica, regulada por leis
biológicas de troca com o meio. Já o corpo fenomenal não é apenas o
22 Na versão original: Le monde est déjà constitué, mais aussi jamais complètemente
constitué. Sous le premier rapport, nous sommes sollicités, sous le second nous sommes
ouverts à une infinité de possibles. Mais cette analyse est encore abstraite, car nous
existons sous les deux rapports à la fois. Il n'y a donc jamais déterminisme et jamais
choix absolu, jamais je ne suis chose et jamais conscience nue (MERLEAU-PONTY,
1945, p. 517).
88
meu corpo, é também o corpo que eu sou. É o chamado “corpo próprio”
ou “corpo-sujeito”. É por meio dele que me situo no mundo e diante dos
outros. É aquilo que permite a experiência na primeira pessoa, que abre
as portas da percepção, o ponto de referência que me situa no tempo e
no espaço, concebendo com esse fator o mundo que habito.
Segundo Merleau-Ponty (2006, p. 203): O corpo é nosso meio geral de ter um mundo. Ora
ele se limita aos gestos necessários à conservação
da vida e, correlativamente, põe em torno de nós
um mundo biológico; ora, brincando com seus
primeiros gestos e passando de seu sentido próprio
a um sentido figurado, ele manifesta através deles
um novo núcleo de significação: é o caso dos
hábitos motores como a dança. Ora enfim a
significação visada não pode ser alcançada pelos
meios naturais do corpo; é preciso então que ele se
construa um instrumento, e ele projeta em torno
de si um mundo cultural.23
Para o autor, não estamos falando de dois corpos diferentes, um
objetivo e outro subjetivo, porém de duas inscrições diferentes do corpo
na experiência. O mesmo corpo é, simultaneamente, um dos objetos do
mundo e o ponto de vista a partir do qual apreendo todos os objetos do
mundo. Quando observo meu próprio corpo, transito de uma perspectiva
para outra, ora me situando como corpo que observa, ora como corpo
observado. O meu corpo, por suas propriedades e características, como
um ente sensível que se volta a outros entes sensíveis, permite-me passar
de uma posição a outra, fazendo que o centro de gravidade de minha
experiência se movimente de maneira semelhante.
Logo, quando, por exemplo, toco a mão esquerda, eu a
experimento como um objeto do toque, e não como parte do sujeito que
toca. A mão direita, por sua vez, é percebida como sujeito e não como
objeto. Todavia, essa experiência é mutável, já que podemos
perfeitamente inverter a equação. A camada geral sensível da qual corpo
23 Na versão original: Le corps est notre moyen général d'avoir un monde. Tantôt il se
borne aux gestes nécessaires à la conservation de la vie, et corrélativement il pose autour
de nous un monde biologique; tantôt, jouant sur ces premiers gestes et passant de leur
sens propre à un sens figuré, il manifeste à travers eux un noyay de signification
nouveau: c'est le cas des habitudes motrices comme la danse. Tantôt enfin la
signification visée ne peut être rejointe par les moyens naturels du corps; il faut alors
qu'il se construise un instrument, et il projette autour de lui un monde culturel
(MERLEAU-PONTY, 1945, p. 171).
89
e coisas participam e que legitima a pretensão ingênua de atingir o
próprio mundo na experiência imediata é chamada de carne, enquanto o
entrelaçamento e a inversão sempre possível entre as posições de sujeito
e objeto são denominados reversibilidade (MERLEAU-PONTY, 2006,
p. 135-136).
As noções de carne e de reversibilidade vão aparecer mais
fortemente em um segundo momento da filosofia de Merleau-Ponty,
quando ele compreende que suas duas primeiras obras não tinham
conseguido conceber a unidade do corpo fenomenal e do corpo objetivo,
pois o campo transcendental era pensado, em última instância, como
pendente do ato de um sujeito, de uma “existência”, de um “espírito”.
Realmente, o autor manteve a delimitação subjetiva da investigação, ou
seja, a consideração do mundo sempre em relação às capacidades do
sujeito. Merleau-Ponty (2006, p. 4) chega a dizer que o ser, em sua
última e única definição, é o ser para mim.
Dessa maneira, o pensamento merleaupontiano permaneceu no
campo da filosofia da consciência, embora esse filósofo jamais tivesse
deixado de apontar as dificuldades de se caminhar no interior desses
parâmetros. Finalmente, a partir dos ensaios de Signes e de “O visível e
o invisível”, encontraremos uma aposta em uma ontologia mais radical,
uma espécie de acerto de contas, aberto e sem conclusões definitivas.
Esse segundo percurso da filosofia de Merleau-Ponty será tratado mais
adiante.
Importante ressaltar que “O cinema e nova psicologia”, como já
citado, data do mesmo ano de publicação de “Fenomenologia da
percepção”, em 1945, e, por isso, compartilha com as duas primeiras
obras do autor uma interrogação a respeito da herança deixada pelo
racionalismo moderno, acerca da cisão entre o corpóreo e o pensamento
reflexivo, sobre o abandono do ver e do sentir em nome do pensamento
do ver e do sentir. Notamos que as críticas ainda permanecem no
interior do quadro teórico aberto pela fenomenologia de Husserl, apesar
de já podermos identificar uma noção diversa de projeto filosófico,
como uma interrogação interminável sobre o mistério do mundo
sensível.
Podemos afirmar, ainda, que as diversas artes são grandes aliadas
de Merleau-Ponty. Elas o ajudam a travar o embate rumo à legitimação
da crença de que estamos em contato direto com o mundo. É preciso
aprender a ver o mundo, ou melhor, aprender a vê-lo sem dele nos
desligarmos. Não é por acaso que o autor se volta, neste período de sua
carreira, para a arte cinematográfica. Para ele, fenomenologia e cinema
convergiam particularmente no que diz respeito aos temas da relação
90
dos indivíduos como o mundo e com os outros. O cinema, então,
definiria, em suas linhas gerais, as condições que faziam dessa arte um
lugar privilegiado da expressão de uma visão do mundo, em que a
contingência, a ambiguidade e a concepção do homem como ser
“situacional” constituem elementos-chave.
2.1.2 A Obra Cinematográfica enquanto Gestalt
Os argumentos explanados anteriormente são centrais para
compreendermos “O cinema e nova psicologia”. Esse ensaio se
decompõe, basicamente, em duas partes. No início, Merleau-Ponty
expõe o que ele denomina de “psicologia clássica”, contrapondo-se à
“nova psicologia”, que é a gestalt. A primeira confere uma função
elementar às sensações, apreendidas como resultados precisos de
inquietações localizadas que o intelecto e a memória teriam que arranjar
consecutivamente em um conjunto unitário. Já a segunda manifesta, de
maneira oposta, que o que necessitaria ser adotado como originário é a
percepção arquitetada como compreensão sensível de um fenômeno na
sua inteireza (BEZERRA, 2015).
De acordo com o filósofo francês, a percepção não pode ser
entendida como agente de um afastamento entre a sensação e a
inteligência organizadora, mas como uma atividade estabelecida que
baliza a afinidade corporal com o mundo, uma decifração constituída,
antecedente ao intelecto. Assim, diz Merleau-Ponty (1983, p. 103): A psicologia clássica considera nosso campo
visual como uma soma ou um mosaico de
sensações, onde cada uma delas dependeria, de
modo estrito, da correspondente excitação retínica
local. A nova psicologia, logo de início, faz notar
que, mesmo tomando em conta nossas sensações
mais simples e imediatas, não podemos admitir
esse paralelismo entre elas e o fenômeno nervoso
que as condiciona. Nossa retina está muito aquém
de ser homogênea; ela é cega, por exemplo, em
algumas de suas partes, para o vermelho ou para o
azul e, no entanto, quando eu olho para uma
superfície vermelha ou azul, não vejo, nela,
qualquer zona incolor. É porque, desde o nível da
simples visão das cores, minha percepção não se
limita a registrar aquilo que lhe está prescrito
pelas excitações da retina, porém reorganiza-as
91
em função de restabelecer a homogeneidade do
campo.24
Para esse filósofo, o que aparece à nossa percepção, antes de mais
nada, não são dados diferenciados sobrepostos, mas elementos
conjugados, o que nos permite observar um conjunto de estrelas no céu,
por exemplo, ou que nos faz ajuntar letras escritas de maneira separada,
emparelhando os pontos de ajuste entre elas. A característica do mundo
seria confusa se notássemos como coisas os espaços entre essas coisas.
Igualmente ocorre para as percepções do ouvido, não obstante, nesse
caso, estejamos nos ocupando não mais com constituições no espaço e
sim com formas temporais (BEZERRA, 2015).
Na verdade, o que Merleau-Ponty defende é o fato de a percepção
analítica, que nos oferece o valor singular de cada elemento,
corresponder somente a uma atividade posterior. É a percepção das
formas, em um sentido bem geral de estrutura, que entendemos como
nosso meio de percepção mais espontâneo. O filósofo persiste no ataque
à questão por outra perspectiva, sublinhando que nossos cinco sentidos
não podem mais ser pensados como mundos independentes e sem
comunicação entre si. Afinal, como explicaríamos o caso de alguns
cegos que conseguem exprimir cores por meio dos sons que escutam?
Para Merleau-Ponty, isso não pode ser encarado como um fato
excepcional, como faz a psicologia clássica, mas como um fenômeno
geral.
Em suas palavras: Até as pessoas normais falam de cores quentes,
frias, berrantes ou metálicas, de sons claros,
agudos, brilhantes, fanhosos, suaves, de ruídos
mortiços, de perfumes penetrantes. Cézanne dizia
que era possível enxergar o aveludado, a dureza, a
maciez e até o odor dos objetos. Minha percepção,
então, não é uma soma de dados visuais, táteis ou
24 Na versão original: La psychologie classique considère notre champ visuel comme une
somme ou une mosaïque de sensations dont chacune dépendrait strictement de
l'excitation rétinienne locale qui lui correspond. La nouvelle psychologie fait voir
d'abord que, même à considérer nos sensations les plus simples et les plus immédiates,
nous ne pouvons admettre ce parallélisme entre elles et le phénomène nerveux qui les
conditionne. Notre rétine est bien loin d'être homogène, en certaines de ses parties, elle
est aveugle par exemple pour le bleu ou pour le rouge, et cependant, quand je regarde
une surface bleue ou rouge, je n'y vois aucune zone décolorée. C'est que, dès le niveau de
la simple vision des couleurs, ma perception ne se borne pas à enregistrer ce qui lui est
prescrit par les excitations rétiniennes, mais les réorganise de manière à rétablir
l'homogénéité du champ (MERLEAU-PONTY, [1966], 2009, p. 7).
92
auditivos: percebo de modo indiviso, mediante
meu ser total, capto uma estrutura única da coisa,
uma maneira única de existir, que fala,
simultaneamente, a todos os meus sentidos25
(MERLEAU-PONTY, 1983, p. 105).
Não é raro notar que as críticas de Merleau-Ponty não convergem
somente ao que ele denomina de psicologia clássica. Verdadeiramente,
em algumas ocasiões, o autor mesmo muda o termo “psicologia”
clássica, para pensamento clássico. Descartes é, indubitavelmente, um
dos maiores alvos desse ensaio, já que este autor baseia a coesão do
campo perceptivo em uma intervenção intelectual. Se observamos
pessoas caminhando pela rua, é porque apreendemos, por meio de um
exame da inteligência, aquilo que raciocinávamos ter visto. Os
elementos diante de nós não são propriamente observados ou vistos,
porém visualizados, e, dessa forma, a percepção vem a ser uma sorte de
decifração intelectual dos dados sensoriais (BEZERRA, 2015).
É contra essa espécie de percepção que Merleau-Ponty se opõe.
Para ele, a percepção não pode ser vista como uma noção de “ciência
embrionária” ou como uma atividade que inaugura a inteligência. Ao
contrário: é imprescindível reestabelecer uma “reversibilidade” com o
mundo, anterior mesmo à própria inteligência. Cézanne vem ao socorro
do filósofo, pois o pintor francês fez da indistinção entre cor e forma ou
substância talvez sua marca mais forte. Como se daria a imposição de
determinados significados a certos signos sensíveis se estes últimos são
inomináveis, em sua mais imediata textura sensível sem a referência
àquilo que significam?
Eis a resposta do filósofo: Quando percebo um cubo, não o faço porque
minha razão reconstrói as perspectivas da
aparência e, a propósito delas, imagina a definição
geométrica do cubo. Longe de corrigi-las, nem
sequer noto as deformações de perspectiva:
através do que vejo, estou diante do cubo em si,
em sua evidência. Do mesmo modo, os objetos
25 Na versão original: Même les sujets normaux parlent de couleurs chaudes, froides,
criardes ou dures, de sons clairs, aigus, éclatants, rugueux ou moelleux, de bruits mous,
de parfums pénétrants. Cézanne disait qu'on voit le velouté, la dureté, la mollesse, et
même l'odeur des objets. Ma perception n'est donc pas une somme de données visuelles,
tactiles, auditives, je perçois d'une manière indivise avec mon être total, je saisis une
structure unique de la chose, une unique manière d'exister qui parle à la fois à tous mes
sens (MERLEAU-PONTY, [1966], 2009, p. 9-10).
93
detrás de mim não são representados por qualquer
operação da memória ou do pensamento: eles me
estão presentes, valem para mim, tal como o
fundo que não vejo e continua presente, apesar da
figura que o oculta em parte. Até a percepção do
movimento, que, de início, parecia depender
diretamente do ponto de referência escolhido pela
inteligência, não é mais, por seu turno, do que um
elemento da organização-global do campo26
(MERLEAU-PONTY, 1983, p. 107).
O ensaio segue, nesses termos, em uma crítica à diferença, aceita
sem discussão pela psicologia clássica, entre observação interior e
exterior. Dessa perspectiva, os sentimentos com, amor, cólera, ódio e
vergonha só poderiam ser conhecidos diretamente a partir do interior e
somente por aquele que os sente. Merleau-Ponty, contudo, acredita que,
quando estudamos sentimentos como o amor por meio de uma
investigação introspectiva, encontramos apenas algumas poucas coisas
para descrever, como certa angústia, palpitações etc.
As observações mais interessantes a respeito do amor só são
possíveis quando não nos contentamos em operar a coincidência com
algum sentimento. É na medida em que surgem em sua configuração
exterior para outrem que se constituem sentimentos como o amor ou o
ódio, expressões que tentam dar conta de uma situação vivida como
“encarnação” de um comportamento; portanto a noção de
comportamento é mais uma vez importante para o fenomenólogo. Ela é
a forma legível do “modo de estar no mundo” próprio a cada coisa, o
que nos permite apreender o sentimento de outrem como exterioridade.
Se um sentimento não pode ser concebido como um fato psíquico
interno e sim como uma variação de nossas relações com o mundo,
evidente em nossa atitude corporal, o outrem também pode ser visto
como uma atitude, um comportamento.
26 Na versão original: Quand je perçois un cube, ce n'est pas que ma raison redresse les
apparences perceptives et pense à propos d'elles la définition géométrique du cube. Loin
que je les corrige, je ne remarque pas même les déformations perceptives, à travers ce
que je vois je suis au cube lui-même dans son évidence. Et de même les objets derrière
mon dos ne me sont pas représentés par quelque opération de la mémoire ou du
jugement, ils me sont présents, ils comptent pour moi, comme le fond que je ne vois pas
n'en continue pas moins d'être présent sous la figure qui le masque en partie. Même la
perception du mouvement, qui d'abord paraît dépendre directement du point de repère
que l'intelligence choisit, n'est à son tour qu'un élément dans l'organisation globale du
champ (MERLEAU-PONTY, [1966], 2009, p. 12).
94
A nova psicologia traz, segundo Merleau-Ponty, uma concepção
renovada da percepção de outrem. Essa nada mais é do que essa
estrutura ou esse modo particular de estar no mundo. Diz ele: É necessário rejeitar esse preconceito que
transforma o amor, o ódio ou a cólera em
realidades interiores, acessíveis a uma só
testemunha, ou seja, a quem as experimenta.
Cólera, vergonha, ódio ou amor não são fatos
psíquicos ocultos no mais profundo da
consciência de outrem; são tipos de
comportamento ou estilos de conduta, visíveis
pelo lado de fora. Estão sobre este rosto ou nestes
gestos e nunca ocultos por detrás deles27
(MERLEAU-PONTY, 1983, p. 109).
É nessa esteira que Merleau-Ponty vê uma aproximação entre o
cinema e a nova psicologia. Esta demonstra o modo sinestésico da
percepção. Já o cinema, de semelhante modo, busca um olhar renovado
para o mundo e nos permite perceber no homem não uma racionalidade
que edifica o mundo, mas um ser que se descobre disseminado nele. O
filósofo francês cogitava que as considerações mais relevantes
concernentes ao cinema iam ao encontro das novidades apresentadas
pela nova psicologia, algo que o autor procurará comprovar com a
compreensão de um filme como um objeto a percepcionar e não um
somatório de imagens, mas uma forma temporal (MERLEAU-PONTY,
1983, p. 110).
Aqui, é indispensável salientar, como já comentado, que “O
cinema e a nova psicologia” está localizado em um específico momento
da carreira do filósofo francês, ainda caracterizado por uma filosofia da
consciência transcendental que constrói, em norma, a “percepção
natural” e suas categorias. O domínio perceptivo, em que ele objetiva
colocar o cinema, constitui-se em torno de uma consciência intencional
(BEZERRA, 2015).
De fato, o escopo de Merleau-Ponty não é especificamente o
cinema, e sim a nova psicologia, tópico que daria passagem para uma de
suas obras mais célebres: “Fenomenologia da percepção”. A arte
27 Na versão original: Il nous faut rejeter ici ce préjugé qui fait de l'amour, de la haine ou
de la colère des «réalités intérieures» accessibles à un seul témoin, celui qui les éprouve.
Colère, honte, haine, amour ne sont pas des faits psychiques cachés au plus profond de la
conscience d'autrui, ce sont des types de comportement ou des styles de conduite visibles
du dehors. Ils sont sur ce visage ou dans ces gestes et non pas cachés derrière eux
(MERLEAU-PONTY, [1966], 2009, p. 14).
95
cinematográfica, nesse ensaio, é analisada em sua generalidade, e o
filósofo menciona poucos filmes, sem fazer ponderações mais
aprofundadas sobre eles. Ainda que a noção de que o cinema decodifica
tacitamente o mundo e os homens tenha ampliado horizontes, é claro o
“[...] balanceamento desigual que leva o cinema a servir como
contrapeso, em um desenvolto exame da psicologia contemporânea”
(RAMOS, 2012, p. 54).
Em última análise, podemos dizer que Merleau-Ponty não
equipara o olho da câmera com o corpo fenomenal, mesmo concluindo
que o filme é arte quando não simplesmente se refere a um significado
estabelecido, mas mostra como ele emerge, como revela a experiência
do filme em relação ao corpo. Há uma sugestão de uma abordagem
fenomenal que revela como o cinema pode contribuir para o cultivo da
percepção.
Gilles Deleuze (1985, p. 69) afirma que Merleau-Ponty tomou o
filme para ser um “aliado ambíguo”, nos poucos exemplos citados na
obra “Fenomenologia da percepção”, na qual o autor trata do filme a fim
de mostrar como ele difere da percepção natural. Contudo, em “O
cinema e a nova psicologia”, ele quer elaborar uma reflexão sobre como
o “[...] cinema está particularmente apto a tornar manifesta a união do
espírito com corpo, do espírito com o mundo e a expressão de um dentro
do outro” (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 116).28
Essa ambiguidade é evidente em suas descrições do horizonte e
da gestalt, que fornecem o campo contextual para a compreensão da
percepção. Para o filósofo, a percepção natural não depende apenas de
cada registro empírico de sensação pelo olho, ou de um cálculo, ou de
interpretação cognitiva do que é percebido. Em vez disso, vemos de
acordo com gestalts, isto é, para ver algo, mergulharmos nele, e esse
objeto aparece a partir de um sistema em que um objeto não pode se
apresentar sem ocultar outros. Isso significa que outros objetos tornam-
se o horizonte contra o qual o objeto específico aparece (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 104).
Assim, vemos segundo sistemas sedimentados através de nossa
participação em um mundo. Vemos pessoas e árvores contra um fundo e
não o fundo ou o intervalo emergindo entre figuras e objetos. As coisas
e as pessoas saltam para nós, tomando forma à medida que tentamos
28 Na versão original: [...] le cinéma est particulièrement apte à faire paraître l'union de
l'esprit et du corps, de l'esprit et du monde et l'expression de l'un dans l'autre
(MERLEAU-PONTY, [1966], 2009, p. 23).
96
fazer sentido ao mundo que está diante de nós. Essa é a lógica da
percepção, segundo Merleau-Ponty (2006, p. 105): Ver é entrar em um universo de seres que se
mostram, e eles não se mostrariam se não
pudessem estar escondidos uns atrás dos outros ou
atrás de mim. Em outros termos: olhar um objeto
é vir habitá-lo e dali apreender todas as coisas
segundo a face que elas voltam para ele.29
O filme baseia-se no aspecto fundamental da percepção. Não
somente o filme depende da figura contra um fundo, pois, quando
assistimos a ele, não vemos apenas as cores e o movimento, vemos
também pessoas, edifícios, lugares etc. O próprio filme possui uma
idiossincrasia particular que toma forma através de seu fluxo temporal,
um modo de expressão que não pode ser reduzido a meros fatos ou
ideias. Provendo sua própria gestalt , “[...] o filme não é pensado e sim,
percebido” (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 115).30
Como uma gestalt temporal, a construção simbólica de uma cena
fílmica depende de outras anteriores. Em uma “visão normal”, eu olho
para algo e ele é divulgado como aquela coisa, o horizonte garantindo a
identidade do objeto. Em uma película, no entanto, a câmara pode
mover-se sobre um objeto para focá-lo em close-up. Nesse caso, ''[...]
podemos muito bem lembrar-nos de que se trata do cinzeiro ou da mão
de um personagem, nós não o identificamos efetivamente. Isso ocorre
porque a tela não tem horizontes” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.
104).31
Na verdade, não se trata de dizer que o sentido de uma cena
cinematográfica depende de suas outras anteriores, mas que nela, em sua
atualidade imagética, intervém um passado como fundo, gerando a
ambiguidade, citada por Deleuze. A percepção forma-se nesse
momento, sendo que a ambiguidade mobiliza a produção espontânea de
um novo todo sem síntese, ou seja, a gestalt. Como veremos no último
capítulo, está aqui o germe que, na sua obra tardia, Merleau-Ponty
29 Na versão original: Voir, c'est entrer dans un univers d'êtres qui se montret, et ils ne se
montreraient pas s'ils ne pouvaient être cachés les uns derrière les autres ou derrière
moi. En d'autres termes: regarder un objet c'est venir l'habiter et de là saisir toutes
choses selon la face qu'elles tournent vers lui (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 82). 30 Na versão original: [...] le film ne se pense pas, il se perçoit (MERLEAU-PONTY,
[1966], 2009, p. 22). 31 Na versão original: [...] nous pouvons bien nous rappeler qu'il s'agit du cendrier ou de
la main d'un personnage, nous ne l'identifions pas effectivement. C'est que l'ecran n'a pas
d'horizons (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 82).
97
chamará de carne. Um todo em que a diferenciação dos elementos
visíveis forma horizontes invisíveis que se tocam, mas sem jamais
elaborarem uma síntese, pois não podem suprimir a perda ou a ausência
de alguma coisa.
Enquanto o filme poderia, de certa forma, ser um paralelo à visão
humana, não pode ser equiparado a ela. Como Sobchack (1991, p. 243)
argumenta, ele é, afinal, não um corpo humano, mas um aparato
tecnológico com sua própria intencionalidade, com seu próprio corpo
fílmico. Merleau-Ponty (2006, p. 351) explica que a superfície reduzida
e plana da tela de cinema não permite a experiência de profundidade,
disposta na percepção humana.
Nós não calculamos objetivamente que o homem ao longe se
afasta de nós, porque ele se torna menor, porém, como ele se afasta, ele
desliza gradualmente a partir da organização de nosso olhar. Essa
experiência de profundidade emerge sob o olhar de alguém porque ele
busca enxergar alguma coisa que fornece a âncora para o campo visual.
É relevante ressaltar que o uso da tecnologia 3D, já empregada no
século XX, nos filmes contemporâneos, teria por objetivo tornar as
imagens fílmicas mais “reais”, igualando a experiência de profundidade
que o olho humano pode vivenciar.
Ocorre, todavia, que não vemos como vê a câmera em 3D. Para
produzir o efeito a que se propõe, a imagem 3D é uma forma de
duplicação de imagens semelhantes, cabendo selecionar, por parte de
quem faz o filme, que elementos serão destacados e quais ficarão em
segundo plano. Como diz Vieira (2014, p. 7): “O que torna reais as
imagens cinematográficas é sua força e vivacidade sensíveis”. Assim, a
construção, por exemplo de um ponto de vista continua a ser dada pelo
filme em si, tanto em termos narrativos quanto visuais.
Posteriormente, Merleau-Ponty em “O olho e o espírito”
explicitará melhor esta noção de profundidade na arte pictórica e,
extensivamente, na arte fílmica. Diz ele: Da profundidade assim compreendida não se pode mais
dizer que é "terceira dimensão". Para começar, se
houvesse alguma dimensão, seria antes a primeira: só
existem formas, planos definidos se for estipulado a que
distância de mim se encontram suas diferentes partes.
Mas uma dimensão primeira e que contenha as outras não
é uma dimensão, ao menos no sentido ordinário de uma
certa relação segundo a qual se mede. A profundidade
[...] é antes a experiência da reversibilidade das
dimensões, de uma "localidade" global onde tudo é ao
mesmo tempo, cuja altura, largura e distância são
98
abstratas, de uma voluminosidade que exprimimos numa
palavra ao dizer que uma coisa está aí.32 (MERLEAU-
PONTY, 2004, p. 35)
Se percebemos de acordo com o conjunto que apela aos nossos
sentidos de uma forma total, para Merleau-Ponty (1983, p. 106), um
filme fornece um sistema que não nos permite distinguir entre signos e o
que eles significam, entre o que é sentido e o que é pensado.
Fenomenologicamente, o autor argumenta que a nossa percepção do
movimento é intencionalmente situada dentro de um mundo. Não é uma
questão de avaliar cognitivamente uma situação, mas de estar ancorado
dentro de um campo de relações. Essa é uma visão que o filme pode
explorar.
No exemplo de Merleau-Ponty (1983, p. 108), sentado em um
vagão de trem na estação jogando cartas com seus companheiros, ele
olha e vê o trem ao lado que começa a se movimentar. Quando, porém,
seu olhar é fixado em alguém ou em alguma atividade ocorrendo no
vagão daquele trem, em seguida, parece-lhe que é o seu próprio trem
que está se afastando da estação. Ele conclui, então, que não é que nós
avaliamos cognitivamente o que realmente está acontecendo, contudo a
experiência é derivada da maneira que nos estabelecemos no mundo e
da situação escolhida dentro dele por nosso corpo. A lente da câmera
pode estar igualmente situada para sugerir movimento tanto do seu
olhar, como também daquele que ela observa. Essa relação corporal com
o mundo é o que precede e que apoia nossas avaliações cognitivas e as
torna possíveis. É por isso que nós somos corporificações que se
envolvem com o mundo, que o percebem e, dessa maneira, podemos
pensar sobre ele.
Entretanto, se não fizermos julgamentos sobre os dados sensoriais
que impingem sobre nossa visão, então como seremos capazes de
reconhecer um objeto a partir de uma situação posterior? Segundo o
32 Na versão original: De la profondeur ainsi comprise, on ne peut plus dire qu'elle est
“troisième dimension”. D'abord, si elle en était une, ce serait plutôt la première: il n'y a
de formes, de plans définis que si l'on stipule à quelle distance de moi se trouvent leurs
différentes parties. Mais une dimension première et qui contient les autres n'est pas une
dimension, du moins au sens ordinaire d'un certain rapport selon lequel on mesure. La
profondeur [...] est plutôt l'expérience de la réversibilité des di-mensions, d'une
“localité” globale où tout est à la fois, dont hau-teur, largeur et distance sont abstraites,
d'une voluminosité qu'on exprime d'un mot en disant qu'une chose est là. (MERLEAU-
PONTY, 1965, p. 65).
99
filósofo francês, esse reconhecimento depende da constância de nossa
percepção, apesar de um objeto, por exemplo, variar em diversos níveis
de iluminação.
Não calculamos que o livro azul escuro escondido na sombra da
noite pode ser o mesmo livro azul claro que eu deixei lá em plena luz do
dia, o que logicamente representaria cores contrastantes. Em vez disso,
eu vejo o livro em diferentes níveis de iluminação, porque vejo dentro
de um campo e contra um horizonte. Eu não preciso fazer julgamentos,
pois vejo a coisa em si mesma. “[...] não imagino o mundo: ele se
organiza diante de mim” (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 107).33
Assim, por exemplo, se tomarmos uma caixa preta bem iluminada
e uma caixa branca fracamente iluminada, elas podem aparecer com o
mesmo tom de cinza, a menos que um pedaço de papel branco seja
introduzido tanto na caixa preta, como na branca. Nesse caso, os devidos
campos são apresentados e as diferenças entre as cores com eles
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 412).
Quando se adentra em um cinema escuro, deixando para trás as
luzes brilhantes da bilheteria, o nosso corpo tenta se ancorar nesse novo
nível de iluminação. Inicialmente, diante da tela, como uma luz que
pisca com a montagem das cenas, temos certa dificuldade para encontrar
o lugar para sentar. Porém, depois de um momento, os olhos começam a
se ajustar a esse novo nível de iluminação, permitindo-nos encontrar o
local correto. Como nosso corpo se ajusta, após um tempo, a tela recua
como luz e torna-se o mundo que habitamos, as relações entre as coisas
e o corpo se reafirmam de acordo com esse novo nível do filme.
Na visão natural, “os objetos e a iluminação formam um sistema
que tende para determinada constância e certo nível de estabilidade [...]”
(MERLEAU-PONTY, 1983, p. 107).34 Essa constância é o aspecto
conservador da visão fenomenológica que necessita de uma lógica
estabelecida de percepção, sem a qual não seria possível fazer o sentido
daquele percebido e que proporciona uma constância desde um nível de
iluminação para outro próximo. No entanto, a visão fílmica, que não
pode depender do horizonte e de uma ancoragem em um campo, pode
tirar proveito do potencial de perturbar a sintaxe cinematográfica e
tentar explicar o que é deixado de fora, por percepções alternadas, para
exigir que nós pensemos sobre o que percebemos.
33 Na versão original: [...] je ne pense pas le monde, il s'organize devant moi
(MERLEAU-PONTY, [1966], 2009, p. 12). 34 Na versão original: Les objets et l'eclairage forment un système qui tend vers une
certaine constance et vers un certain niveau stable [...] (MERLEAU-PONTY, [1966],
2009, p. 12).
100
Essa constância que pertence à lógica da percepção é ainda
apoiada, como já comentado, por uma sensual sinestesia. O cinema
depende, inicialmente, da visão e do som, ou seja, apenas dois dos cinco
sentidos. Desses nossos sentidos, que não podem ser recolhidos um no
outro, no entanto, entrelaçam-se, sobrepõem-se e reúnem-se no sistema
sinérgico do estar no mundo, podemos ver a dureza de gelo e ouvir a
fragilidade do vidro quando ele se quebra. Tal fato é plausível se
entendermos os sentidos como a abertura existencial sobre o mundo:
perceber é compreender a estrutura unificada de uma coisa, a sua forma
singular de estar no mundo, que fala, concomitantemente, a todos meus
sentidos (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 105).
Destarte, o cinema pode não fornecer as experiências de cheiro,
de gosto ou de toque, entretanto esses sentidos podem ser evocados e
falados na experiência fílmica simplesmente nos modos que eles
evocam os cheiros e os sabores de uma refeição suntuosa, por exemplo,
no filme “A Festa de Babette” (1987), de Gabriel Axel ou mesmo no
“ouvir o azul” da personagem Julie no filme “A liberdade é Azul”
(1993), de Krysztof Kieslowski. Como Merleau-Ponty (2006, p. 314)
escreve: “Quando digo que vejo um som quero dizer que, à vibração do
som, faço eco através de todo o meu ser sensorial [...]”.35 Assim, quando
um filme é dublado, não é apenas a discrepância entre palavra e imagem
que vem à tona, temos a impressão de que toda uma outra conversa está
acontecendo ali. O texto dublado, para o espectador, não tem nem
mesmo uma existência auditiva.
De semelhante modo, quando há algum problema no som e o
personagem fica sem voz, o seu rosto paralisa e congela e perde sua
aparência animada. Em suma: Junto ao espectador, os gestos e as falas não são
subsumidos a uma significação ideal, mas a fala
retoma o gesto, e o gesto retoma a fala, eles se
comunicam através de meu corpo, assim como os
aspectos sensoriais de meu corpo, eles são
imediatamente simbólicos um do outro, porque
meu corpo é justamente um sistema acabado de
equivalências e de transposições intersensoriais36
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 315).
35 Na versão original: Quand je dis que je vois un son, je veux dire qu'à la virbration du
son, je fais écho par tout mon être sensoriel [...] (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 271). 36 Na versão original: Chez le spectateur, les gestes et les paroles ne sont pas subsumés
sous une signification idéale, mais la parole reprend le geste et le geste reprend la
parole, ils communiquent à travers mon corps, comme les aspects sensoriels de mon
corps ils sont immédiatement symboliques l'un de l'autre parce que mon corps est
101
Para o filme funcionar como um campo de relações, portanto,
como um nível no qual entramos, que molda e ajusta as maneiras que
percebemos, as partes do filme não podem ser adicionadas à sua própria
soma. Elas podem fornecer uma total gestalt temporal. Há, então, uma
ligação entre som e imagem.
Por essa razão, não há divisão clara entre as nossas emoções ou
sentimentos interiores e nossa expressão externa deles. Não mostramos
sinais de medo que podem, então, ser cognitivamente sentidos por outra
pessoa. Em vez disso, incorporamos o medo, e esse medo é percebido
por outros, precisamente porque é uma maneira de se comportar, de
nossos gestos, e isso é visível em nosso próprio comportamento.
É relevante também para Merleau-Ponty (1983, p. 109) o nosso
mundo emocional que não é de uma psiqué interior estirpada do mundo.
Referindo-se ao filósofo francês Paul Janet, ele entende a emoção como
uma “[...] reação de desorganização que intervém quando estamos
engajados num impasse [...]”.37 Emoções são respostas a nosso
engajamento em um mundo e às nossas relações com os outros. Elas
variam conforme nos relacionamos com os outros e conforme as formas
de nos comportarmos com eles.
A partir desse ponto de vista, não podemos entender, como já
visto, as emoções em termos de signos de amor ou de raiva fornecendo
uma indicação de um fato psíquico interior, mas, sim, “[...] deve-se dizer
que o outrem me é dado como evidência, como comportamento”
(MERLEAU-PONTY, 1983, p. 109).38 É também por isso que não
podemos fielmente compreender o amor desde um exame dos nossos
próprios sentimentos interiores, desde a essência do amor que emerge
em nossas relações de amor, de nossas relações com os outros.
Mesmo sabendo que o filme move-se além dos borrões, manchas
e elementos supérfluos da nossa realidade cotidiana para fornecer a
precisão de um pensamento cuidadosamente elaborado, na verdade,
estamos percebendo seres que aprenderam po meio de nossas
experiências corporais para entender a lógica da percepção. Dessa
forma, somos capazes de compreender, como seres encarnados, o que
perceptivamente o filme apresenta. E o cinema apresenta raiva e
vertigens, isto é, um mundo emocional. Apreendemos a relação do
justement un système tout fait d'equivalences et de transpositions intersensorielles
(MERLEAU-PONTY, 1945, p. 271). 37 Na versão original: [...] réaction de désorganisation qui intervient lorsque nous
sommes engagés dans une impasse [...] (MERLEAU-PONTY, [1966], 2009, p. 15). 38 Na versão original: [...] il faut dire qu'autrui m'est donné avec évidence comme
comportement (MERLEAU-PONTY, [1966], 2009, p. 15).
102
interior para o exterior por meio de nossa percepção dos modos pelos
quais os personagens se comportam, e é, de fato, como percebemos o
mundo: “[...] um filme significa da mesma forma que uma coisa
significa: um e outro não falam a uma inteligência isolada, porém,
dirigem-se ao nosso poder de decifrar tacitamente o mundo e os homens
e de coexistir com eles” (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 115).39
Para esse autor, filmes, assim como a filosofia fenomenológica e
existencial, são uma tentativa de fazer ver a ligação entre o indivíduo e o
universo, entre o indivíduo e os semelhantes, ao invés de explicar. Por
conseguinte, Merleau-Ponty não hesita em estabelecer ligações entre
filmes, obras de arte e filosofia com o intuito de mostrar quais
significados podem surgir, ser criados com essa relação, em vez de
apenas explicar ou descrever ideias já estabelecidas. O cinema utiliza
uma linguagem particular, uma sintaxe que faz parte do significado do
gesto do filme como um todo.
Geralmente, não se lê ou se interpreta uma raiva no rosto
contorcido de alguém, podemos ver e sentir uma pessoa com raiva,
assim também podemos experimentar mais do que a representação em
um filme, por meio de músicas, diálogos e imagens que revelam
significados que poderiam ser reduzidos a nenhuma explicação
cognitiva ou replicação da realidade. O cinema pode permitir-nos sentir
palpável, como seres encarnados que somos, os sentimentos que ele
explora. Por esse motivo, todas as partes do filme, como diálogo, música
e cenas, trabalham não na direção de traduzir essas emoções, mas no
sentido de dar-lhes uma existência em nossos próprios corpos. Na
verdade, o cinema, como arte, não reproduz ou representa a realidade,
porém, criando-a, traz novos significados ao ser.
Em suma, o filme que é arte, como a fenomenologia, cultiva a
percepção. Aprendemos a ver o mundo de forma diferente, de acordo,
por exemplo, com a visão cinematográfica de Kieslowski, em seu já
citado filme “A Liberdade é Azul”. A cor azul assume uma nova
vitalidade e reverbera com significado corpóreo nessa obra. Uma cor só
pode ser totalmente explorada e vivenciada corporalmente, assim como
a palavra “azul” em si mesma torna-se saturada com as emoções e os
sentimentos que a acompanham e que se sobrepõem à função de
designação da palavra. O azul assume uma função ontológica,
39 Na versão original: [...] un film signifie comme nous avons vu plus haut qu'une chose
signifie: l'un et l'autre ne parlent pas à un entendement séparé, mais s'adressent à notre
pouvoir de déchiffrer tacitement le monde ou les hommes et de coexister avec eux
(MERLEAU-PONTY, [1966], 2009, p. 22).
103
estabelecendo um nível ou campo de relações como o pano de fundo do
filme.
Como Merleau-Ponty (2006, p. 314-316) explica, nossos corpos
têm uma enorme capacidade de se mover para novas situações e de levá-
las para outros níveis. Da mesma maneira como mudamos para uma
nova situação de iluminação para que os nossos olhos se acostumem a
ela, também podemos passar para o nível de um filme. Durante uma
projeção cinematográfica, nossos olhos se acostumam a determinado
modo de ver, a certo modo de ouvir, que, na verdade, são nossas
próprias percepções, sob a orientação de um experiente diretor de
fotografia e do diretor do filme.
Esse corpo fenomenológico que o filósofo anteriormente citado
descreve com tanto cuidado, como alguém que se move para dentro de
um mundo e o habita, é um tanto problemático. Enquanto, para Merleau-
Ponty, o cinema possui o potencial para revelar a ligação entre o sujeito
e o mundo, para Gilles Deleuze, esse é precisamente o problema com a
fenomenologia. Deleuze (1990, p. 31) identifica o corpo
fenomenológico com o chamado esquema sensório-motor que ele
associa com clichês. Esse esquema permite que nosso corpo se esquive
de algo muito desagradável, resigne-se quando alguma coisa é terrível e
assimile aquilo que é muito bonito. Em outras palavras, a percepção é
moldada por um mundo criado por outros e está relacionada a interesses
dos mais diversos.
Para Deleuze (1990, p. 31), via Bergson, a gestalt está ligada aos
“[...] nossos interesses econômicos, nossas crenças ideológicas e nossas
exigências psicológicas”40, em outras palavras, aos clichês, pois “[...]
nós não percebemos a coisa ou a imagem inteira, percebemos sempre
menos, percebemos apenas o que estamos interessados a perceber, ou
melhor, o que temos interesse em perceber [...]”.41 A percepção é a
tentativa de fazer sentido do que está lá, e essa produção de sentido
depende de estruturas perceptivas sedimentadas, então a estratégia do
cinema é, como Deleuze (1990, p. 31) coloca, bloquear ou quebrar os
esquemas, permitindo: [...] uma imagem ótico-sonora pura, a imagem
inteira e sem metáfora, que faz surgir a coisa em si
mesma, literalmente, em seu excesso de horror ou
40 Na versão original: [...] de nos intérêts économiques, de nos croyances idéologiques,
de nos exigences psychologiques (DELEUZE, 1985, p. 22). 41 Na versão original: [...] nous ne percevons pas la chose ou l'image entière, nous en
percevons toujours moins, nous ne percevons que ce que nous sommes intéressés à
percevoir, ou plutôt ce que nous avons intérêt à percevoir [..] (DELEUZE, 1985, p. 22).
104
beleza, em seu caráter radical ou injustificável,
pois ela não tem mais que ser “justificada”, como
bem ou como mal...42
No cinema europeu do pós-guerra, Deleuze (1990, p. 55) vê
certos diretores quebrando esses esquemas de dentro, cortando os laços
entre percepção e ação. Diz ele: “Personagens, envolvidas em situações
óticas e sonoras puras, encontram-se condenadas à deambulação ou
perambulação”.43 Da parte de Merleau-Ponty, em seu desafio ao
dualismo mente-corpo, o problema é aquele da mediação entre o reino
puramente empírico da sensação e o mundo representacional do
idealismo, mas o problema, como Deleuze (1985a, p. 68) o entende, é: Como explicar que movimentos de repente
produzam uma imagem, como na percepção, ou
que a imagem produza um movimento, como na
ação voluntária? Se invocarmos o cérebro, é
preciso dotá-lo de um poder miraculoso. E como
impedir que o movimento já não seja imagem pelo
menos virtual, e que a imagem já não seja
movimento pelo menos possível? O que parecia
sem saída, afinal, era o confronto do materialismo
com o idealismo, um querendo reconstituir a
ordem da consciência com puros movimentos
materiais, o outro, a ordem do universo com puras
imagens na consciência.44
Para este autor, portanto, o cinema fornece evidência de uma
imagem-movimento efetivamente entrando em colapso com alguma
fronteira artificial. Ele chega a essa conclusão baseando-se em Bergson,
que procurou ir além dos dualismos estabelecidos pela psicologia
42 Na versão original: [...] une image optique-sonore pure, l'image entière et sans
métaphore, qui fait surgir la chose en elle-même, littéralement, dans son excès d'horreur
ou de beauté, dans son caractère radical ou injustifiable, car elle n'a plus à être
'justifiée', en bien ou en mal... (DELEUZE, 1985, p. 22). 43 Na versão original: Des personnages, pris dans des situations optiques et sonores
pures, se trouvent condamnés à errance ou à la balade (DELEUZE, 1985, p. 43). 44 Na versão original: Comment expliquer que des mouvements produisent tout d'un coup
une image, comme dans la perception, ou que l'image produise un mouvement, comme
dans l'action volontaire? Si l'on invoque le cerveau, il faut le doter d'un pouvoir
miraculeux. Et comment empêcher que le mouvement ne soit dejà image au moins
virtuelle, et que l'image ne soit dejà mouvement au moins possible? Ce qui paraissait
sans issue, finalement, c'était l'affrotement du matérialisme et de l'idealisme, l'un voulant
reconstituer l'ordre de la conscience avec de purs mouvements matériels, l'autre, l'ordre
de l'univers avec de pures images dans la conscience (DELEUZE, 1983, p. 64).
105
clássica e, com base criticamente na física quântica emergente, entendeu
que a imagem-movimento e a matéria fluente são basicamente a mesma
coisa. Ainda nesse entendimento, a identidade da imagem e do
movimento tem sua razão de ser na identidade da matéria e da luz. A
imagem é movimento, assim como a matéria é luz (DELEUZE, 1985a,
p. 71-73).
Para Merleau-Ponty (2006, p. 415), no entanto, a luz é que
ilumina, mas, quando é captada no cinema (por exemplo, na imagem de
um filme de alguém descendo para uma adega com uma lâmpada na
mão), a luz não aparece como uma entidade imaterial explorando a
escuridão e escolhendo os objetos, permanecendo discretamente em
segundo plano para que ela possa conduzir o nosso olhar em vez de retê-
lo, pelo contrário, ela aparece como um objeto sólido na superfície da
tela.
O exemplo da luz conduzindo o nosso olhar e iluminando-o, faz
paralelo com a compreensão de Deleuze sobre a noção de consciência
defendida por Merleau-Ponty, que é, argumenta Deleuze (1985a, p. 73),
ainda diretamente situada na tradição filosófica, “[...] que situava a luz
antes do lado do espírito e fazia da consciência um feixe luminoso que
tirava as coisas de sua obscuridade nativa”.45 Notamos, entretanto, que,
em escritos posteriores de Merleau-Ponty, como “O visível e o
invisível”, ele se aproxima da compreensão de Deleuze a respeito da
sensação e do afeto como fluxos materiais que não estão vinculados ao
sujeito intencional.
Por outro lado, mais do que vendo o aspecto consciente e
reflexivo da descrição fenomenológica como um negativo, para Vivian
Sobchack (1991, p. 4), é na reflexão que a experiência é dada, é falada e
é escrita. Essa autora encontra na fenomenologia uma abordagem para a
teoria fílmica que direciona a experiência pré-reflexiva fundamental
para o cinema, uma experiência que não é nem verbal, nem literária. Na
verdade, um filme é, em si mesmo, uma expressão da experiência pela
experiência, isto é, uma redução fenomenológica. Ao refletir sobre essa
experiência, o que é encontrado no filme é esse “poder original” para
significar, para dar sentido.
Sobchack está interessada na maneira como filme proporciona
uma reversibilidade ou um quiasma entre percepção e expressão. Ele
45 Na versão original: [...] qui mettait plutôt la lumière du côté de l'esprit, et faisait de la
conscience un faisceau lumineux qui tirait les choses de leur obscurité native
(DELEUZE, 1983, p. 68).
106
desenha no ser selvagem ou na experiência corporal o que precede
significação e reflexão. De fato, um filme tem em si um tipo de ser
selvagem que antecipa sua dissecção na linguagem de análises críticas e
teóricas. Há, como nota Sobchack (1991, p. 5), uma espécie de
linguagem cinematográfica, mas essa linguagem é fundamentada nas
estruturas da existência corporal pré-reflexiva compartilhada pelo
cineasta, pelo filme e pelo espectador.
Da mesma forma como Merleau-Ponty é crítico de uma tradição
filosófica que pressupõe o corpo em suas avaliações cognitivas, a
preocupação de Sobchack (1991, p. 19-23) é que a teoria do cinema
presumiu o ato de ver, tomando o próprio filme como um objeto que é
visto mais do que como um sujeito da visão, com a qual corporalmente
nós nos engajamos. Além disso, na expressão visível de sua percepção,
o filme torna visível a troca intrasubjetiva entre a percepção da câmera e
a expressão do projetor, ambas como sujeitos da visão e como objetos
visíveis. Como Merleau-Ponty (2009a, p. 16) diz: [...] é verdade que o mundo é o que vemos e que,
contudo, precisamos aprender a vê-lo. No sentido
de que, em primeiro lugar, é mister nos
igualarmos, pelo saber, a essa visão, tomar posse
dela, dizer o que é nós e o que é ver, fazer, pois,
como se nada soubéssemos, como se a esse
respeito tivéssemos que aprender tudo.46
Como seres encarnados, os seres humanos podem ver o mundo,
mas são como seres humanos que eles têm a capacidade especial de ver
com seus “próprios olhos”, como sujeitos da visão, uma vez que se
exige uma “consciência reflexiva e refletiva” (SOBCHACK, 1991. p.
54). É essa consciência reflexiva e refletiva da visão com sua estrutura
reversível que permite a possibilidade da experiência fílmica.
Já a autora Laura Marks (2000, p. 141-143), baseando-se nas
ideias de Merleau-Ponty sobre sinestesia, vê a percepção como uma
experiência multissensorial que surge de nossas histórias pessoais e
coletivas. Para ela, certas imagens estão compactadas com algumas
experiências sensuais, experiências que serão diferentes dependendo do
corpo sedimentado e habitual que trazemos a elas.
46 Na versão original: Il est vrai [...] que le monde est 'ce que nous voyons' et que,
pourtant, il nous faut apprende à le voir. En ce sens d'abord que nous devons égaler par
le savoir cette vision, en prendre possession, dire ce que c'est que nous et ce que c'est que
voir, faire donc comme si nous n'en savions rien, comme si nous avions là-dessus tout à
apprendre (MERLEAU-PONTY, 2006a, p. 18).
107
No cinema, portanto, certos objetos podem ser carregados com os
traços de memórias corpóreas, repentinamente evocadas através de uma
percepção visual ou auditiva. O olfato, por exemplo, é talvez o mais
indescritível à memória intencional. Nossas percepções são
temporalmente sedimentadas, moldadas por meio de percepções
passadas. Elas nos preparam para o mundo, permitindo-nos entender o
que está lá, encontrar o que é novo, enfim, aprendemos a perceber
(MARKS, 2000, p. 148).
As noções de Merleau-Ponty acerca do corpo fenomenal revelam
a lógica da visão e, consequentemente, como sujeitos encarnados,
submetem-se à experiência do cinema. Em seu desafio ao dualismo
corpo-mente, ele explana como o nosso pensamento mais abstrato está
ancorado na percepção encarnada. Pensamos já que temos um corpo
porque os nossos corpos têm a sua própria lógica, suas próprias formas
de interpretar e se mover em direção a um mundo que não é processado
por meio da representação cognitiva.
O cinema, como intuído por esse autor, mostra precisamente
como as ideias são retomadas corporalmente no próprio filme e nas
maneiras que espectadores experienciam e respondem corporalmente.
Esse não é um mundo da interioridade, mas do comportamento. A
crítica de Deleuze, embora significativa, não demite ou exclui o corpo
fenomenal, somente o seu potencial para a mudança radical e para a
criatividade, o que pode se dar com a abertura do corpo fenomenal para
o cultivo de percepção, permitindo, portanto, que ele seja transformado.
Podemos afirmar que as considerações explicitadas anteriormente
mostram-se aliadas a um elogio à montagem, especialmente ao “efeito-
Kulechov”, referido, erroneamente, por Merleau-Ponty, como “efeito-
Pudovkin”. A montagem e os seus efeitos atraem o filósofo como
exemplo de uma forma que transcende a soma de seus elementos. O
efeito-Kulechov ilustra a unidade do campo visual, sua organização
sistêmica.
O sentido de uma imagem depende daquelas que a precedem e a
sucessão delas cria uma outra realidade, não equivalente à simples
adição dos itens empregados. O som também é analisado pelo autor não
como reprodução fonográfica de ruídos e de palavras, mas como
composição de um “estar no mundo” de seus elementos. Para Merleau-
Ponty, som e imagem não podem ser vistos isoladamente. Ambos
consumam uma totalidade nova e irredutível.
Quando se aventura pela teoria cinematográfica, Merleau-Ponty
apresenta duas grandes influências: as análises de base psicológica sobre
a técnica e os estudos sobre as categorias de som, imagem e montagem
108
desenvolvidos por Andre Malraux ao longo dos anos 1940, em L'esquise
d'une psychologie du cinema, além do ensaio que Roger Leenhardt
escreveu para a revista Esprit, em 1936, Le rythme cinematographique.
Este último reforça a necessidade de acrescentarmos ao processo de
criação de sentido não somente as imagens que antecedem e se sucedem,
como também a duração de cada uma delas.
A montagem não é, então, destacada exatamente pelo seu caráter
construtivo, como ocorreria de forma ampla a partir dos anos 1960, mas
como prova de que o cinema seria, como já visto, uma forma temporal
em que as imagens significam em seu modo inerente de se expor na
duração. Ou seja: o cinema, arte temporal, só pode ser descrito, tal como
a percepção, no seu pertencimento ao transcorrer do mundo.
Por esse entendimento, não quer dizer que Merleau-Ponty
defenda a possibilidade de uma reprodução direta do mundo. Ele chama
de equívoco a noção de que um filme seria a representação visual e
sonora mais fiel e completa possível de um drama, o qual a literatura só
poderia sugerir com palavras. Esse equívoco persiste, segundo ele,
justamente porque o realismo seria um elemento fundamental das
imagens em movimento. A força do realismo efetivada pelo cinema
torna destoante a menor estilização.
Por essa razão, os atores deveriam atuar com naturalidade. A
direção precisa ser o mais verossímil possível, embora um filme não
esteja destinado a nos fazer ver e ouvir o que veríamos e ouviríamos
caso tivéssemos as situações narradas diante de nós. Merleau-Ponty
esboça um conceito de realismo no cinema, mas seria um exagero falar
em uma antecipação a André Bazin e à noção de ontologia da imagem
cinematográfica. A explanação do filósofo visa, em uma aproximação
com a poesia, destacar que a arte de um filme não consiste em descrever
didaticamente as coisas ou expor ideias, mas em criar uma espécie de
máquina de linguagem com o intuito de instalar o espectador em um
certo estado sensível.
Em suas palavras: O sentido de uma fita está incorporado a seu
ritmo, assim como o sentido de um gesto vem,
nele, imediatamente legível. O filme não deseja
exprimir nada além do que ele próprio. A ideia
fica, aqui, restituída ao estado nascente, ela
emerge da estrutura temporal do filme, como, num
quadro, da coexistência de suas partes. Trata-se do
privilégio da arte em demonstrar como qualquer
coisa passa a ter significado, não devido a alusões,
a ideias já formadas e adquiridas, mas através da
109
disposição temporal ou espacial dos elementos47
(MERLEAU-PONTY, 1983, p. 115).
Assim, conforme já referido, um filme possui significação da
mesma forma que uma coisa possui significado. Nas palavras
conclusivas de Bezerra (2015): Tanto um quanto outro não se dirigem a uma
inteligência isolada, mas a capacidade de
descobrir implicitamente o mundo e os homens e
de conviver com eles. O cinema não nos oferece
os pensamentos de um personagem. O que vemos
são gestos, olhares, mímicas. Um personagem se
faz visível por meio de seu comportamento, seu
modo singular de estar no mundo, de lidar com
aquilo que o cerca. Se um diretor deseja nos
mostrar um personagem tomado pela vertigem, ele
não deveria tentar conferir a visão interior da
vertigem, e sim apreciá-la exteriormente,
contemplando um corpo desequilibrado,
contorcendo-se à beira de um precipício. O
espectador, por sua vez, está numa relação de
imediatismo com o mundo através do filme. Ver
um filme não é ler, nem sequer compreender, mas,
acima de tudo, sentir, aceitar que me mostrem
algo cujo sentido não nos é claramente dado. Ou
seja, um filme não deve ser considerado como um
suporte para determinadas ideias ou temas, nem
apenas como uma obra plástica, e sim como um
composto de forma e sentido ao qual só podemos
acessar por meio do exercício da percepção.
“O cinema e nova psicologia” finda com uma hipótese importante
a respeito da convergência entre o filme e a gestalt: a afinidade
geracional. De fato, a fenomenologia provaria ser uma base rica a partir
da qual se desenvolveriam teorias e críticas a respeito do cinema no final
dos anos 1940 e ao longo dos anos 1950. Como exposto anteriormente,
André Bazin e Aymédée Ayfre são dois dos autores que surgiram neste 47 Na versão original: Le sens du film est incorporé à son rythme comme le sens d'un
geste est immédiatement lisible dans le geste, et le film ne veut rien dire que lui-même.
L'idée est ici rendue à l'état naissant, elle émerge de la structure temporelle du film,
comme dans un tableau de la coexistence de ses parties. C'est le bonheur de l'art de
montrer comment quelque chose se met à signifier, non par allusion à des idées déjà
formées et acquises, mais par l'arrangement temporel ou spatial des éléments
(MERLEAU-PONTY, [1966], 2009, p. 22).
110
contexto. Bazin e Ayfre acreditam, assim como Merleau-Ponty, que a
significação em um filme emana de uma organização das aparências.
Ambos se empenham em torno do tema da ambiguidade da imagem e da
realidade.
Cada um a seu estilo, esses autores vão ao cinema como uma
maneira diferente de se aproximar da realidade, para dentro das riquezas
da experiência. É bem verdade que, embora, tenham em comum uma
enorme variedade de premissas, Bazin e Ayfre caminhariam em direções
diferentes da de Merleau-Ponty, especialmente no que diz respeito à
estética cinematográfica.
Percebemos, portanto, que, em nenhuma ocasião, o autor francês
se avizinha de uma crítica a subsídios especificamente cinematográficos,
como a decupagem clássica e, muito menos, de uma justificativa do uso
da profundidade de campo ou do plano-sequência. Pelo contrário,
Merleau-Ponty exalta a tendência de sua filosofia com as ponderações
dos teóricos da montagem, algo que será aventado unicamente como
negação em outros autores importantes, como Bazin, Ayfre e Michel
Mourlet (BEZERRA, 2015).
“O cinema e a nova psicologia” é um dos primeiros ensaios a
fazer um diálogo entre cinema e fenomenologia. Sua originalidade,
como observa Fernão Ramos (2012, p. 57), manifesta-se inclusive por
uma lacuna a respeito da questão do neorrealismo italiano. Se, por um
lado, podemos dizer que essa conferência de Merleau-Ponty é anterior à
explosão desse movimento pela Europa, por outro, não é muito
complicado notar a pouca intimidade do filósofo com a produção
cinematográfica em voga em sua época.
É importante destacar, todavia, que, por ocasião da sua morte, em
1961, Merleau-Ponty trabalhava em um livro, que permaneceria
inacabado, chamado “O visível e o invisível”, cuja apenas a primeira
parte e algumas notas se encontravam redigidas, testemunhando um
esforço para dar uma nova expressão ao seu pensamento. Nos capítulos
seguintes, iremos dar destaque a essas suas ideias e nos aprofundar um
pouco mais nessa obra.
Se, no livro “Fenomenologia da percepção”, a apreciação do
fenômeno perceptivo possibilitava ao filósofo delinear o conhecimento
apontando a vinculação entre sujeito e objeto, entre corpo e mundo,
partindo da disparidade entre estes polos para harmonizá-los na união do
campo experiencial, em “O visível e o invisível”, como analisaremos
mais à frente, a experiência é vista como “deiscência”, como uma
abertura espontânea. Refletimos, portanto, sobre nossa afinidade com o
ser como deiscência e não mais idealizá-lo como atrelamento, síntese ou
111
coincidência, mas como fissão que, a partir da unidade primordial da
carne, faz nascer, um para o outro, corpo e mundo, observador e
observado, eu e outro (BEZERRA, 2015).
Como veremos, posteriormente, essas noções serão aprofundadas
por Merleau-Ponty na direção de uma nova proposta ontológica, uma
maneira de se incorporar à experiência existencial e encarnada do
espectador e de repensar a relação deste com a obra cinematográfica e
seu realizador, em um processo reversível de constituição recíproca que
se utiliza dos modos e das estruturas da experiência perceptiva direta e
reflexiva.
2.2 CORPO, VISÃO E SENTIDO
O pensamento merleaupontiano a respeito da noção de corpo, de
filme e de percepção toma como base a experiência particular,
adaptando-se à maneira de olhar para a experiência cinematográfica
fundada na mecânica corpo-olho-câmera. Esse fato é importante, já que
o corpo não pode ser tomado apenas como um mero recipiente ou até
mesmo como uma marca de presença. O corpo não pode ser objetivado,
pois, para isso acontecer, teríamos que separá-lo da mente, nem pode ser
classificado como um mero invólucro.
Por esse viés, o olho da câmera e o corpo do filme são igualmente
a pré-condição situada para o fazer cinematográfico, uma presença
perceptual imperceptível provocando uma visão do mundo. Além disso,
como parte da experiência intencional dentro da obra estética, o olho da
câmera serve para criar imagens que posteriormente tornarão habitação
temporária do espectador como corpo virtual. Pela concentração sobre a
significância do corpo como uma sensibilidade unificada de consciência
encarnada, Merleau-Ponty argumenta que a experiência mental, que
parece ser interna e hermeticamente selada, é sempre expressa
externamente em comportamento corporal e por vias dirigidas.
Percepções internas imediatamente tornam-se expressões exteriores
como uma realização do corpo.
O campo de sentido é um plano, um patamar no qual qualquer
coisa dentro dele é uma vontade diferente que entra em destaque,
chamando a atenção para si mesmo. Em um modo semelhante à noção
de encontro de Husserl, Merleau-Ponty esclareceu os processos no
mundo da vida, em termos de reciprocidade do corpo dentro desse
mundo. Assim diz ele: “Nem o corpo 'nem a existência' podem passar
pelo original do ser humano, já que cada um pressupõe o outro e já que
112
o corpo é a existência imobilizada ou generalizada, e a existência uma
encarnação perpétua”48 (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 229-230).
A fenomenologia de Merleau-Ponty prevê uma modalidade
sinestésica de personificação incluindo o tempo e a profundidade
espacial. Mudando o foco da percepção, a partir do visível, da visão, do
sentir e do sensível, adquirimos uma ideia totalmente nova de
subjetividade que desperta a consciência de sensibilidade. É relevante
dizer que, para esse autor, a descrição tradicional de profundidade
resultou na abstração artificial. Ao fazer o sentido de profundidade,
mesmo uma projeção plana ou um ato subjetivo de sintetizar as
multiplicidades, espessura e dimensionalidade são transformadas em
uma visão lateral alongada ou em um nivelamento abreviado
(MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 239-241).
Todavia as coisas do mundo envolvendo corporeidade não devem
ser vistas sem profundidade ou dimensão. Elas perduram em um estado
de coexistência, dando origem à interconectividade e à confiança mútua
e às relações indissolúveis. Profundidade espacial é a dimensão
fundadora do mundo da vida. Nas palavras do filósofo francês: “Mais
diretamente do que as outras dimensões do espaço, a profundidade nos
obriga a rejeitar o prejuízo do mundo e a reencontrar a experiência
primordial onde ele brota; entre todas as dimensões, ela é, por assim
dizer, a mais 'existencial' [...]”49 (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 345).
A descrição do espaço em termos de interconexão e profundidade
é fundamental para a experiência do mundo da vida como a presença
fundada invisível que perpassa todas as coisas. A transposição única do
filme da realidade concreta cria seu próprio estilo estético que inclui a
sensação de autoexpresssão da profundidade através da figura e fundo
internos. Por meio do movimento filmado, a dimensão fundamental da
profundidade emerge de uma estrutura de figura-fundo constantemente
variável. Figuras mudam a forma de acordo com cenários que são
campos de força fluidos. O cinema possui uma fluidez imbutida por
meio de sua capacidade inerente para mostrar o movimento. Por essa
razão, não se podia descrever o processo de gravação como um órgão do
48 Na versão original: Ni le corps 'ni l'existence' ne peuvent passer pour l'original de
l'être humain, puisque chacun présuppose l'autre et que le corps est l'existence figée ou
généralisée et l'existence une incarnation perpétuelle (MERLEAU-PONTY, 1945, p.
194). 49 Na versão original: Plus directement que les autres dimensions de l'espace, la
profondeur nous oblige à rejeter le préjugé du monde et à retrouver l'expérience
primordiale où il jaillit; elle est, pour ainsi dire, de toutes les dimensions, la plus
'existentielle' [...] (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 296).
113
sentido bombardeado por uma série de sensações atomísticas ou como,
por exemplo, o mecanismo sintético, que está faltando, para decodificar
átomos irredutíveis.
Em vez disso, o filme em movimento explora a qualidade
quimérica do campo fenomenal e mostra uma remodelação do ambiente
através da criação de um sistema combinado de matrizes e contextos.
Temas da percepção são indeterminados, parte do constantemente
reinventado momento no qual o significado somente toma forma dentro
de um renovado e disseminado contexto. A completude é
impossibilitada pela própria natureza das perspectivas que têm de estar
inter-relacionadas para outras perspectivas, e assim por diante,
indefinidamente. É de dentro da profundidade primordial que a visão
integrada emerge para compreender o significado (MERLEAU-PONTY,
2006, p. 443).
No mundo da vida pré-dado, estamos juntos espacializados em
nosso meio e, no mundo do cinema, é o poder de autoprojeção dentro do
movimento que dá essa mesma sensação de inclusão, colocando o
espectador no meio das coisas. O movimento no espaço cria a sensação
de profundidade real. O cinema se fixa na primordialidade da
profundidade como uma abertura de significado e, ao fazer isso, traz
consigo uma grande variedade de técnicas para dar impressões
tridimensionais. O objetivo é ter sempre em mente que a profundidade é
uma sensação vivida e total não baseada em padrões fixos. É uma
expressão da maneira como o campo fenomenal global se abre à
consciência. O ser-do-mundo não é uma construção imposta, mas uma
configuração e um pano de fundo a partir do qual nossos fenômenos
perceptivos surgem.
No âmbito da experiência de profundidade, experimentamos o
mundo como incorporado e dimensional em uma forma de operar, sem
recuar para criar conscientemente uma terceira dimensão. Não podemos
ver a profundidade dimensional, mas a habitamos, e isso abrange nossa
pequena espacialidade. Cada movimento da câmera de cinema é também
um ajuste de profundidade e a correlação figura-fundo, um reajuste do
visto e do ato de ver, uma alteração simultânea de perspectiva criando
abertura para o significado. Se realinhamentos fossem experimentados
como fragmentos, eles resultariam em experiências dissonantes, porém,
com a mobilidade fílmica, deslocamentos espaciais ocorrem fornecendo
a mesma experiência da vida real, entrelaçados no campo fenomenal.
Consequentemente, a relação entre tema e horizonte e a maneira
como essas formas significam são o princípio de uma organização
independente, uma autofiguração fluida dinamicamente desdobrando no
114
tempo. Essa dinâmica significa que figuras não são coisas a priori,
contudo elas emergem da trajetória corporal, criando ativamente
configurações em um vívido campo de atividade. Antes, a percepção
pode ser embasada ou feita um objeto de consciência, sendo que ele
próprio fornece o horizonte e o fundo sobre os quais o embasamento é
possível (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 443-444).
Como a articulação emerge de horizontes indeterminados e ainda
não formados, a correlação figura-fundo é vista como reversível e
irredutível, o que, ao mesmo tempo, constitui um alicerce para figuração
de outro tempo que emerge para se tornar um ponto de origem para que,
em seguida, desapareça. O próprio corpo perceptivo é indicativo desse
fato, tanto quanto um ponto de origem, como um fundo, uma vez que
emerge conscientemente em relevo ou desaparece na pré-reflexão.
A profundidade subsiste não intencionada pela consciência
reflexiva, invisível, porque, novamente, não intencionada. O filme
corrige essa invisibilidade no seu próprio senso de profundidade, que é
visceralmente comunicado como um modo de ser-no-mundo. Com a
capacidade do filme de gravar o movimento pelo movimento, de mover-
se pela remoção, temos não só um novo objetivo tomado na realidade,
mas mudando as relações de figura e fundo que originam novos
significados. No cinema, essa estrutura pode ser expressa como o acerto
do foco de acordo com o que é pedido ou requerido no contexto
cinematográfico. A atividade de regular o foco é parte da consciência
direta, que inclui o primeiro plano do imediatamente visual, bem como o
reconhecimento direto para a posição subjetiva, uma espécie de
consciência anestésica ou realização existencial. Em ambos os casos, o
papel da visão é duplo, pois é passivamente reflexiva e ativamente
inflexiva.
A análise de Merleau-Ponty acerca da profundidade e da
percepção espacial é parte de uma preocupação concernente ao
significado da visão em todas as artes. É uma aproximação que nos
ajuda a dar sentido ao filme como uma consciência automatizada, uma
sensibilidade perceptiva e receptiva não autoconscientemente
participando, como veremos melhor, posteriormente, da chamada carne
do mundo. Como diz o autor: “A carne do mundo não é 'sentir-se' como
carne minha ‒ é sensível e não sentiente [...]''50 (MERLEAU-PONTY,
2009a, p. 227).
50 Na versão original: La chair du monde n'est pas se sentir comme ma chair ‒ Elle est
sensible et non sentant [...] (MERLEAU-PONTY, [1964], 2006a, p. 298).
115
Essa é uma sensibilidade que joga para trás uma imagem ativa do
comportamento de superfície e capta no invisível a maneira de tornar-se
ativada, não por meio da autorrealização, mas pela posição dentro do
circuito da carne. Logo, a percepção atinge o seu objeto porque ela é o
toque da carne e o ver a si própria. Assim, não há representação ao nível
da percepção, há somente a carne no toque com ela mesma. O ser de
uma árvore, por exemplo, é uma quase-percepção de um indivíduo, o ser
dela testemunha o fato de que ele é visível do ponto de vista da árvore,
como ambos são carne do mundo como uma experiência visual
imediata.
A partir dessa perspectiva, a consciência fílmica, assim como a
intuição, é ampliada, é a visão também ampliada, incluindo pontos de
vista e o invisível. Ela toma forma e se realiza na áspera e desordenada
exterioridade visível, no reino perceptivo de texturas e de expressão,
pois há um círculo do visível e do vidente, o vidente não existe sem
existência visível. Então, a experiência fílmica se materializa pela
conjugação de diferentes níveis de posições do sujeito em um circuito de
carne. O sujeito vendo o filme, ao mesmo tempo, está vendo uma cena
representada em que existem temas da visão sendo sujeitos-objetos
visíveis um para o outro (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 139).
A maneira como o espectador está incluído nesse circuito
cinematográfico de visão é comparável à imersão dos seres sentientes no
campo fenomenal. O campo no qual o entendimento ocorre é aquele da
difusão, da descoberta e da ligação, tudo aberto para a exploração na
obra de arte. Sua base é da opacidade mais do que da transparência,
tanto que expressões criativas nunca são totalmente apreensíveis, apenas
parcialmente realizáveis. Isso significa que a experiência fílmica é
caracterizada menos pela permanência de um objeto dado à visão do que
pela experiência na qual o processo da visão implica. Ultrapassamos o
quadro encarnado específico da referência para incluir novas
perspectivas em um campo fenomenal cada vez maior. A recepção de
dados visuais é determinada dentro desse campo fenomenal pela
interação de horizontes que compõem disputados níveis de presença e de
ausência.
O visível é em si uma correlação, não um objeto fixo, e isso o
torna uma teia, unindo os horizontes interiores e exteriores. Por sua vez,
os horizontes não permanecem fixos, mas são bem mais do que
horizontes de possibilidade, tanto que cada visível é impedido de ser um
objeto e de adquirir a positividade autoidêntica que define o objeto. A
intencionalidade está trabalhando aqui, mas sem fundamentar a
identidade consistente (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 129).
116
Quando vemos um filme, nós também trazemos horizontes
latentes que estão relacionados com a profundidade do nosso corpo, a
densidade corporal que não é removida simplesmente porque nós
aparecemos imóveis em uma situação de visualização. Na experiência
fílmica, a intencionalidade está ligada a uma noção de corpo que é
visualmente flexível, articulada em torno do visível e invisível e do
observador e observado. Merleau-Ponty sustenta suas observações sobre
o substrato invisível em termos de um mistério, em que os objetos
adquirem presença não como identidade invariável, mas através de uma
relativa indefinição.
Nas palavras do filósofo: Bem entendido, a ipseidade nunca é 'atingida':
cada aspecto da coisa que cai sob nossa percepção
é novamente apenas um convite a perceber para
além e uma parada momentânea no processo
perceptivo. Se a coisa mesma fosse atingida,
doravante ela estaria exposta diante de nós e sem
mistério. Ela deixaria de existir como coisa no
momento mesmo em que acreditaríamos possuí-
la. Portanto, o que faz a 'realidade' da coisa é
justamente aquilo que a subtrai à nossa posse51
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 313).
Neste sentido, cada imagem fílmica é recebida em um movimento
que desaloja estados estáveis e que se relaciona a uma corporalidade
móvel baseada em perspectivas sucessivas. O invisível é transcendente
na medida em que ele ultrapassa o visível, mas não é inacessível ou
inatingível, e sim uma tarefa constante a ser realizada. O visível tem o
que é próprio para isso como uma superfície, mas uma superfície com
uma profundidade inesgotável, abrindo visões diferentes da nossa. O
invisível, portanto, fornece as bases para o visível e não é apenas uma
condição, mas também um conteúdo do ato de ver. Capturamos o
impensado e o não dito, extrapolados de sua posição no mundo da vida,
trazendo para a luz como se eletricamente carregados (SOBCHACK,
1991, p. 86).
51 Na versão original: L'ipséité n'est, bien entendu, jamais 'atteinte': chaque aspect de la
chose qui tombe sous notre perception n'est encore qu'une invitation à percevoir au delà
et qu'un arrêt momentané dans le processus perceptif. Si la chose même était atteinte,
elle serait désormais étalée devant nous et sans mystère. Elle cesserait d'exister comme
chose au moment même où nous croirions la poseéder. Ce qui fait la 'réalité' de la chose
est donc justement ce qui la dérobe à notre possession (MERLEAU-PONTY, 1945, p.
269-270).
117
Dessa forma, a duplicação fílmica não torna a reprodução, mas a
indução invisível, dando início a uma expressão do mundo através do
invisível. Acena-se uma intencionalidade mecânica como se sente e faz
todo o sentido do mundo. Da indução obtemos a possibilidade de notar o
potencial que se manifesta como uma visibilidade em potencial. Como
uma revelação do seu ser, a visão será a força ontológica do filme.
Merleau-Ponty descreveu a forte fé na visão como algo semelhante a
uma imediata e inquestionável condição de saber com certeza. A
experiência da nossa presença perceptiva deixa óbvia a necessidade de
escolher ou mesmo de distinguir entre a garantia de ver e a garantia de
ver a verdade, porque, em princípio, elas são uma mesma coisa
(MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 38).
A fenomenologia de Merleau-Ponty é uma mudança para uma
intencionalidade operativa que é, ao mesmo tempo, experimental e não
reflexiva. O estudioso complementa noções de visão, de profundidade e
do corpo dentro da dimensão pré-dada e nos ajuda a entender como o
cinema reflexivamente mostra a condição pré-predicativa irrefletida e a
presença de material do corpo como atividade concreta. O corpo não é
apenas o domínio em que faculdades perceptivas são localizadas, é
também o campo no qual poderes são vistos para serem exercidos e
expressados por outros.
Por essa razão, a estética poderosa do cinema encarna
mecanicamente todo o conjunto de esquema perceptivo em que se
envolveu no campo fenomenológico. Ela apresenta e simboliza,
assemelha-se e se reconstrói, ou seja, é, ao mesmo tempo, uma visão do
mundo e a visualização do mundo. Como um corpo colocado
mecanicamente entre outras materialidades, o olho fílmico apresenta a
perspectiva sobre as perspectivas de visualização como uma visão-em-
ação. Contudo, enquanto os seres humanos usam a comunicação
corporal como parte do sentido primordial do ser-no-mundo, uma
significação imediatamente expressiva-perceptiva, com uma afinidade
para interesses semelhantes dos indivíduos, o filme, por sua vez, não
tem essa casca exterior para direcionar a intencionalidade, já que ele
mantém a sua invisibilidade corporal para criar a visualização.
Junto a esses aspectos, é indispensável dizer que Merleau-Ponty
(2006, p. 18) deixou claro que, com a percepção encarnada, há sempre já
um sentido, um significado, “porque estamos no mundo, estamos
'condenados ao sentido', e não podemos fazer nada nem dizer nada que
118
não adquira um nome na história''.52 A partir desse ponto básico inicial,
o cinema é corporalmente posicionado em um mundo para ver as coisas
e trazê-las à vida.
Nas explicações do filósofo: Não temos outra maneira de saber o que é um
quadro ou uma coisa senão olhá-los, e a
'significação' deles só se revela se nós os olhamos
de um certo ponto de vista, de uma certa distância
e em um certo 'sentido'; em uma palavra, se
colocamos nossa conivência com o mundo a
serviço do espetáculo.53 (MERLEAU-PONTY,
2006, p. 575).
Essa é, no entanto, uma visão que, por necessidade, torna-se
liberada no tempo e na transcendência, “[...] assim sempre somos
levados à concepção do sujeito como ek-stase e a uma relação de
transcendência ativa entre o sujeito e o mundo.”54 (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 576). Em termos fílmicos, isso é naturalmente
ajudado pelo fato de que o filme se comunica visualmente em uma
forma extremamente direta. Embora presente, a palavra falada no
cinema não é necessária para explicar as imagens. O ato de filmar
responde à comensurabilidade do corpo fílmico e à corporeidade
humana, compartilhando um compromisso encarnado no mundo, que é
imediatamente expressivo.
A imagem em movimento também percebe e se expressa de
modo selvagem e incisivo antes de articular seus significados, como um
tropo ou figura cinematográfica significativa, um conjunto específico de
configurações genéricas, uma convenção sintática específica. Um filme
faz sentido em virtude de sua própria ontologia. O mundo
prematuramente significa e a corporalidade do filme reflete esse fato.
Temos, então, atos de percepção e trabalho de expressão corporal por
52 Na versão original: Parce que nous sommes au monde, nous sommes condamnés au
sens, et nous ne pouvons rien faire ni rien dire que ne prenne un nom dans l'histoire
(MERLEAU-PONTY, 1945, p. XIV-XV). 53 Na versão original: Nous n'avons pas d'autre manière de savoir ce que c'est qu'un
tableau ou une chose que de les regarder et leur 'signification' ne se révèle que si nous
les regardons d'un certain point de vue, d'une certaine distance et dans un certain 'sens',
en un mot si nous mettons au service du spectacle notre connivence avec le monde
(MERLEAU-PONTY, 1945, p. 491). 54 Na versão original: [...] nous sommes ainsi toujours amenés à une conception du sujet
comme ek-tase et à un rapport de transcendence active entre le sujet et le monde
(MERLEAU-PONTY, 1945, p. 491).
119
meio de uma significativa existência encarnada (SOBCHACK, 1991, p.
12).
A falta de deliberação autoconsciente permite uma equivalência a
ser estabelecida entre a condição primordial da percepção humana e a
mecanicamente funcional, raiz inconsciente do cinema. Filmar é colocar
um comparável pedestal consciente pela virtude de ter uma comparável
plataforma de consciência, ou seja, o corpo-no-mundo como expressão
perceptiva. Essa plataforma de visão existencial tem a capacidade de
localizar, de unificar, ou de centralizar o invisível, comutação
intrasubjetiva de percepção e expressão e torná-lo visível e
intersubjetivamente disponível para os outros (SOBCHACK, 1991, p.
21).
Originário comércio com o mundo, um natural ser-no-mundo
precisa sempre ser redescoberto. Para entendermos o comportamento no
mundo concreto, olhamos para as expressões daquele comportamento.
Em termos existenciais, uma obra cinematográfica acomoda a expressão
de sentimentos e de emoções internas precisamente porque são
comportamentalmente observáveis. Para os estados internos serem
percebidos, na verdade, para significativamente exisirem, eles podem
ser expressos por meio de comportamentos e de padrões observáveis
através do corpo.
Emoções e atitudes tomam forma como manifestações físicas.
Elas não estão trancadas nos recessos psíquicos da mente, mas se tornam
significativas quando manifestadas no mundo da vida. Os imagéticos
movimentos do filme captam o imediatismo da expressão por meio da
ação corporal. A expressão de emoção em manifesto comportamento e
gesto é parte da estrutura que define os indivíduos em geral como um
estilo de ser-no-mundo.
Esse aspecto pode ser visto, como já trabalhado anteriormente,
quando Merleau-Ponty relaciona diretamente o filme ao que ele chamou
de “nova psicologia”, referindo-se ao papel de padronização da
percepção gestáltica. Dados visuais não são vistos como um mosaico de
sensações que necessitam de raciocínio subjetivo para fazer-se
inteligível. Na gestalt, a relação do organismo com seus pares não é
explicada pela ação causal de estímulos externos sobre o organismo,
porque, em termos fenomenológicos, o sujeito está reagindo em um
ambiente que não tem existência puramente objetiva fora da
consciência.
A gestalt se relaciona diretamente com o que é sentido. Por esse
motivo, o significado do mundo concreto não é uma criação mediada,
mas uma proximidade envolvente. Esse é o ponto crucial no qual o filme
120
se diferencia por ser um ato de ver que se faz ver, um ato de ouvir que se
faz ouvir, e um ato de movimento físico que se faz reflexivamente
sentido e compreendido (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 107).
Ao contrário da comunicação humana individual, a obra de arte
cinematográfica concretiza sua facilidade perceptivo-comunicativa pela
projeção pública; porém o filme possui significância da mesma forma
como o corpo humano, pelo fornecimento de um ponto de apoio para a
subsequente tomada de sentido. Sua presença primordial é suficiente
para estender a expressão em seu olhar abrangente, uma espécie de visão
de rastreamento exploratório que acompanha o movimento.
Assim, cinema e filosofia se unem na definição do processo pelo
qual a percepção torna-se expressão, em que a atividade de percepção
como algo intrínseco à atividade no mundo da vida torna-se visível em
termos do que é percebido e em termos de como ela é percebida para se
tornar significado. O fato de que filme, reconhecidamente, mostra e
expressa a mesma realidade concreta vista como percepção humana,
bem como o processo intencional de trazer sentido a essa visão, permite
para a obra fílmica funcionar como um espaço único para o espectador.
A percepção é parte de um trabalho em andamento, no qual o
corpo e os sentidos já têm uma natural e primitiva familiaridade com o
mundo, nascido do hábito e identificável através do conhecimento
sedimentado. O filme trabalha e explora o conhecimento implícito e a
familiaridade de experiência. Mesmo que seja conscientemente posto
em movimento pelo cineasta, a obra fílmica automaticamente coloca em
movimento as suas próprias percepções ativo-receptivas, tanto como um
canal para o significado, como um fornecedor de sentido. A
sensibilidade mecanizada do corpo fílmico, que automatica e
inconscientemente atua na vida real, é um pouco diferente de um mesmo
ser humano automático.
Nas palavras de Merleau-Ponty (2006, p. 290): [...] se eu quisesse traduzir exatamente a
experiência perceptiva, deveria dizer que 'se'
percebe em mim e não que eu percebo [...]. Sem
dúvida, o conhecimento me ensina que a sensação
não aconteceria sem uma adaptação de meu corpo,
por exemplo que não haveria contato determinado
sem um movimento de minha mão. Mas essa
atividade se desenrola na periferia de meu ser, não
tenho mais consciência de ser o verdadeiro sujeito
121
de minha sensação do que de meu nascimento ou
de minha morte.55
É esse nível direto e operativo da percepção a que teóricos
realistas do cinema estão se referindo quando afirmam que a realidade
em sua existência bruta pode ser filmada, sem manipulação, para torná-
la significativa. A suposição é que o espectador entende a linguagem
natural do filme como uma estrutura tácita pré-linguística fundada sobre
as estruturas de experiência do mundo da vida. Essas estruturas de
experiência não são, todavia, simplistas; elas são complicadas, são zonas
flutuantes que a todo tempo tentam se ultrapassar. Não fixáveis e
incontroláveis, elas ainda virão a ser enquadradas pela câmera.
A ontologia do filme é dinâmica e vibrante como o mundo da
vida em que ela se origina, como uma encarnação viva é significativa
porque é simultaneamente um receptor de sentido e um sujeito
performático de sentido com tentáculos que se infiltram no reino vital da
indeterminação. O cinema reflete o excesso de significação dos objetos
e situações pertencentes ao amplo campo de força da vida fenomenal.
Esse é o mundo de fenômenos tomados como um campo e uma força
transbordando com potencial de significados. A gravação de um filme,
por exemplo, é sincronizada mecanicamente a uma taxa a ser
comparável com esse campo de força, com o poder para sincronizar os
processos da própria vida fenomenal. O campo de força como processo
está oculto, retido, mas, mesmo assim, possui a condição para a
naturalidade dos fenômenos.
Dessa maneira, seria um erro descrever o processo
cinematográfico de uma forma semelhante a um órgão dos sentidos
neutro, bombardeado de fora por uma série de sensações atomísticas.
Seria igualmente uma incoerência vê-lo com uma função imanente de
dar sentido ao mundo. Ambas as posições foram rejeitadas por Merleau-
Ponty quando ele descreveu a condição humana. Não existe um
processo para registrar mensagens de elementos determinados ou
irredutíveis em um mundo objetivo. Também não existe qualquer
55 Na versão original: [...] si je voulais traduire exactement l'expérience perceptive, je
devrais dire qu'on perçoit en moi et no pas que je perçois [...]. Sans doute la
connaissance m'apprend bien que la sensation n'aurait pas lieu sans une adaptation de
mon corps, par exemple qu'il n'y aurait pas de contact déterminé sans un mouvement de
ma main. Mais cette activité se déroule á la périphérie de mon être, je n'ai pas plus
conscience d'être le vrai sujet de ma sensation que de ma naissance ou de ma mort
(MERLEAU-PONTY, 1945, p. 249).
122
mecanismo para uma posterior síntese que poderia decodificar ou
processar átomos irredutíveis como eles são originalmente encontrados.
Tanto a percepção humana como o cinema, por meio de
movimentos imagéticos, exploram a qualidade quimérica do campo
fenomenal, visualmente remodelando o ambiente pelo estabelecimento
de um sistema combinado de matrizes e contextos. Todos os temas da
percepção são indeterminados, sendo parte do constantemente
reinventado momento. O significado somente toma forma dentro de um
já renovado e disseminado contexto, minando pedidos para o seu
encerramento no mundo objetivo.
Segundo o ponto de vista de Merleau-Ponty (2006, p. 443): [...] parece que somos levados a uma contradição:
a crença na coisa e no mundo só pode significar a
presunção de uma síntese acabada, e todavia este
acabamento é tornado impossível pela própria
natureza das perspectivas a ligar, já que cada uma
delas reenvia indefinidamente, por seus
horizontes, a outras perspectivas.56
Podemos dizer que essa abertura de significado foi englobada
pelo conceito “sentido selvagem” de Merleau-Ponty, em que essa
expressão possui relevância antes do uso de discretos sistemas
simbólicos. Diz o autor: “[...] a filosofia consiste em reconstituir uma
potência de significar, um nascimento do sentido ou um sentido
selvagem, uma expressão de experiência pela experiência que ilumina,
precipuamente, o domínio especial da linguagem”57 (MERLEAU-
PONTY, 2009a, p. 150).
O sentido selvagem é o significado indiferenciado da existência,
uma vez que é vivida ao invés de refletir sobre alguma coisa, em que o
corpo, a ação e a linguagem vêm juntos, como expressão direta. É uma
área que reflete diretamente a ontologia do filme como ele se refere a
uma materialidade bruta, tendo um encontro do humano e do não-
humano e, por assim dizer, uma peça de comportamento do mundo. O
56 Na versão original: [...] il semble que nous soyons conduits à une contradiction: la
croyance à la chose et au monde ne peut signifier que la présomption d'une synthèse
achevée e cependant cet achèvement est rendu impossible par la nature même des
perspectives à relier, puisque chacune d'elles renvoie indéfinement par ses horizons à
d'autres perspectives (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 381). 57 Na versão original: [...] toute la philosophie consiste á restituer une puissance de
signifier, une naissance du sens ou un sens sauvage, une expression de l'éxpérience par
l'expérience qui éclaire notamment le domaine spécial du langage (MERLEAU-PONTY,
[1964], 2006a, p. 201).
123
cinema, como encarnação mecânica, funcionando como uma gravação
posicionada de modulação, é linguagem, nesse selvagem e
indiferenciado sentido, porque o direcionamento do filme e a duplicação
automatizada refletem o significado existencial de comportamento.
Por esse viés, com as formas simbólicas, uma conduta aparece
que expressa os estímulos por ela mesma, que está aberta à verdade e ao
valor adequado das coisas, o que tende para a adequação do significante
e do significado, da intenção e daquilo que ela tem por objetivo. Aqui, o
comportamento não só tem uma significação, ele mesmo é significação
(MERLEAU-PONTY, 1942, p. 133). Para esse autor, no campo
fenomenal, tudo já fala para todas as coisas. O signo é compreensível
contextualmente e em termos de outros signos. Por esse motivo, o signo
é sempre um signo em uso, ou seja, o significado presente nos signos
não é um fenômeno referencial, porém o próprio significado são os
signos dentro de uma existência fenomenal.
Com Merleau-Ponty, o signo é o resultado sinótico da imanência
e da transcendência. A mudança de percepção para a expressão ocorre
por meio da fusão da intencionalidade e do mundo operatório em
constante fluxo, modificação e constituição. Quebra-se o pré-
predicativo, uma vez que as superfícies entram em um diálogo embutido
com as coisas. É nesse nível da superfície onde o discurso é sustentado
pelo falar, onde há dicas de invisibilidade sobre o visível, onde o campo
fenomenal dá à luz à visão, que, finalmente, o cinema toma o seu lugar
(LANIGAN, 1991, p. 85).
No filme, a imagem está lá antes das palavras, mesmo que as
palavras se esforcem para criar novas imagens. Esse é um meio de
comunicação, um sistema diacrítico, sistema que é compartilhado
comunitariamente, embora ele seja unicamente experimentado a partir
de perspectivas individuais. Expressões cinematográficas são recebidas
nessa forma perceptiva, imediatamente advindas desse sedimentado
conjunto de significado cultural, pelo qual a psiqué dos outros, bem
como a percepção da psiqué do filme, é lida. Aqui, por meio da
consciência fílmica, o processo de percepção fala através de signos
materialmente externalizados, em uma forma direta do pensar com a sua
própria significação, sem os meios de reflexão como um ato de
recuperação (ANDREW, 1984, p. 75-76).
Nessa esteira, o discurso sai do silêncio do primordial sentido do
silenciar do mundo perceptivo. O filme se relaciona com esse tipo de
sentido, refletindo-o como ser bruto, em silêncio, mas expressivo,
permitindo que o silenciar fale pelo contato diretamente com ele, na
corporalidade compartilhada e na definição concreta. Ele traz a
124
expressão para o mundo a partir da profundidade de silêncio, abrindo o
inerentemente pré-linguístico para sua própria significação visual. O
fazer cinematográfico é o imaginar o mundo já expresso no seu interior,
uma abertura para o mundo e um catalisador para o surgimento do ser-
no-mundo.
Ao contrário da transmutação do original que se vê na arte
pictórica, o cinema é uma submissão ao total apagamento diante do
mundo, como negando a si mesmo para coincidir com a objetividade.
Um filme fala visualmente a linguagem do mundo porque ele carrega,
através da especificidade do mundo fenomenal, intercomunicações que
se abrem. Essa é a condição primordial do filme, indiferente em relação
à autonomia do mundo, mas por sua instrumentalidade interpenetrada
por ele. A pronúncia da imagem fílmica faz possível o paradoxo de que
o mundo revela a si mesmo, como é nele revelado, pronuncia-se, então,
antes de toda linguagem humana (ANDREW, 1984, p. 22-23).
A submissão ao mundo da vida permite que o próprio mundo
torne-se linguagem no mesmo sentido silenciador de uma percepção.
Tudo isso conduz para o silêncio em que a única palavra pronunciada
seria aquela do mundo mudo, inaudível, sem precedentes. Para nós,
nenhuma palavra é falada. Esta é a imagem fascinante: um mundo do
qual estamos aparentemente ainda excluídos, no entanto, estamos
magicamente entrenhados no meio das coisas. Estamos transfixados e
encantados por um complexo de imaginário e de real.
Nesses termos, a imagem fílmica é apresentação sem mediação,
um logos imediato e uma linguagem direta. Consequentemente, o
imaginário, o reino do espírito humano, torna-se também logos puro.
Essa é a simples presença da natureza capturada pelo cinema em um ato
mostrado para indefinidamente repetir a captura. A experiência fílmica
específica que acompanha esse ato pode ser comparada a uma busca do
conhecimento, que é como um estrangeiro para linguagem, que clama
por outra forma de conceber, exigindo um desenvolvimento da mente
óptica (SOBCHACK, 1991, p. 92).
A ligação entre percepção e expressão, como a alternância e o
esquema dependente mutuamente da figura e fundo da gestalt tem
características detectadas ao longo da fenomenologia. Isso é chamado de
Fundierung, ou seja, a relação do fundado para a fundante, ambas
ambíguas e recíprocas.
Na explicação de Merleau-Ponty (2006, p. 527): A relação entre a razão e o fato, entre a eternidade
e o tempo, assim como aquela entre a reflexão e o
irrefletido, entre o pensamento e a linguagem ou
125
entre o pensamento e a percepção, é aquela
relação com dupla direção que a fenomenologia
chamou de “Fundierung”[...].58
Essa é uma maneira de olhar para a prioridade da percepção sobre
o conceitual, enquanto reconhecendo um ser que pode ter
autoconhecimento. Tal fato é igualmente aplicável à relação indivisível
da corporeidade cinestésica, à natureza material, bem como a
dependência do mundo da mídia fílmica em relação ao real. Assim, a
percepção expressiva e a expressão perceptiva coexistem, mutuamente,
como um quiasma ou reversibilidade, conceitos que trabalharemos mais
à frente, e que norteiam o pensamento de Merleau-Ponty sobre
expressão e experiência, cinema, sentido e percepção, arte e discurso.
58 Na versão original: Le rapport de la raison et du fait, de l'éternité et du temps, comme
celui de la réflexion et de l'irréfléchi, de la pensée et du langage ou de la pensée et de la
perception est ce rapport à double sens que que la phénoménologie a appelé
“Fundierung”. (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 451).
126
127
3 DISCURSO, ESTÉTICA E LINGUAGEM
Neste capítulo, examinaremos as relações entre arte, linguagem e
cinema, buscando compreender a arte, especificamente como
manifestação da liberdade, da indivisibilidade e mistério do sensível, da
temporalidade e do pensamento, e analisar o que daí decorre em direção
à futura instituição de uma nova ontologia. Dessa maneira, Merleau-
Ponty pensa a arte com mais consistência no âmbito da tematização da
linguagem e da imbricação signo e sentido, vidente e visível, expressão
e expresso, sendo que o próprio da arte é a situação imperiosa no
mundo, a criação e a abertura e, com isso, a impossibilidade de
compreensão racional exaustiva do ser.
3.1 PINTURA E FENOMENOLOGIA
Merleau-Ponty (2004, p. 26), em “O olho e o espírito” (1961), seu
último grande ensaio filosófico acerca das artes visuais, ao abordar a
natureza da representação, seu conteúdo, significados e fins, e a relação
do artista com o mundo, afirma que uma teoria da pintura implica uma
metafísica, ou seja, uma concepção de como o eu, o corpo, a mente e o
mundo inter-relacionam-se. Em seus outros ensaios, como “A dúvida de
Cézanne” (1945) e “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”
(1952), o filósofo recorre também a essa relação interna entre as teorias
da pintura e da metafísica para desafiar algumas correntes filosóficas e
científicas que discorriam sobre a ideia de percepção, sentido,
imaginação e subjetividade humana.
É importante notar que, se toda teoria da pintura implica uma
teoria metafísica, nem toda teoria metafísica oferece uma teoria da
pintura. A noção de arte desempenha um papel central nos esforços de
Merleau-Ponty para elaborar sua fenomenologia, no entanto, mesmo,
por exemplo, na intensa reflexão de “A dúvida de Cézanne” a respeito
da vida e da obra deste pintor, não está tão claro que, a partir dessa
investigação fenomenológica, emerge uma filosofia da arte. Na verdade,
há uma tensão, nos ensaios do autor, entre a tentativa de, por um lado,
oferecer uma teoria filosófica geral e, por outro, fornecer explicações e
interpretações particulares sobre o fenômeno artístico.
Em “A dúvida de Cézanne”, Merleau-Ponty (2004, p. 121-124)
irá rejeitar a diferenciação entre o eu e seus atributos externos, ações e
experiências. No domínio da arte, o filósofo francês evitará a dicotomia
entre explicações internalistas da arte, que encontram o seu significado
na vida ou nas intenções do artista, e explicações externalistas, que
128
olham para o social e o contexto do artista como fontes de significado
das artes. Para esse autor, a arte, o artista e a vida dele são
interdependentes, pois cada parte pode ou não explicar a outra, ou vice-
versa. Além do mais, Merleau-Ponty vai apresentar uma forma de
conceber a arte, como refletindo a vida de seu criador, mas não de modo
transparente. Em outras palavras, ele vai argumentar que há uma relação
interna entre trabalho e vida, mas que essa relação reflete contingências
no modo como trabalho e vida se desenrolam.
A pintura de Cézanne é tanto um objeto para um estudo
fenomenológico do filósofo, quanto fonte de uma análise
fenomenológica em si mesma. Na interpretação de Merleau-Ponty
(2004, p. 131-133), este pintor não ofereceu uma imagem do mundo
“como ele é”, mas uma imagem do mundo “vindo a ser”, a partir da
perspectiva do próprio pintor, não antes ou depois, mas como os
atributos associados com o uso, o significado e o valor que lhe são
aplicados. Aqui, o autor também contesta algumas teorias positivistas de
percepção, segundo as quais o mundo se apresenta a nós como dados
dos sentidos que são, então, interpretados e pré-configurados na mente.
Ele argumenta, ainda, que a perspectiva particular de consciência de
alguém não deve ser entendida apenas como uma tela de subjetividade
que, ao retirá-la, permitiria o acesso ao próprio objeto, já que esse objeto
de experiência, como compreendido pela fenomenologia, é, em parte,
constituído pela perspectiva da consciência.
Merleau-Ponty toma o que foi uma disputa artística de longa data
entre aqueles que construíram a “verdade” da pintura em termos do
naturalismo, e os que encontraram essa “verdade” na expressão de uma
inspirada mente criativa e a levantaram ao nível de sistemas metafísicos.
Nenhum sistema ou dicotomia que se constituem juntos serão
suficientes como síntese da compreensão humana do mundo. Além
disso, porque justamente a fenomenologia rejeitou a dicotomia entre
realismo e idealismo, Cézanne é descrito por Merleau Ponty (2004, p.
126-127) como se recusando a ser fixado entre os pólos do
impressionismo e do simbolismo, entre uma noção de arte que mostra
apenas as aparências e uma noção dela como fundamentada na vida de
uma artista. Talvez, esse entendimento seja uma resposta idiossincrática
ao mundo.
Ainda nessa esteira, Merleau-Ponty (2004, p. 131-133) não
afirma que Cézanne tinha alguma capacidade especial para a visão que
lhe permitiu mostrar o que os outros não podiam ver. Realmente, se o
filósofo francês está certo de que este pintor nos mostra algo sobre como
chegamos a ver o mundo, isso poderia, em princípio, ser verdade com
129
relação à visão do mundo dos impressionistas. Em vez disso, Cézanne
mostra-nos, via sentido pictórico, que Merleau-Ponty poderia descrever,
por meios filosóficos, que a nossa relação com o mundo se dá através de
seres encarnados, com uma compreensão incompleta do mundo. Dessa
maneira, o significado que experimentamos deste mundo, não surge de
alguma paisagem determinada e imutável de objetos que nossa
percepção segue passivamente, nem da nossa mente impondo
preexistentes categorias sobre o mundo.
Mais do que isso, o significado de nossa experiência vem de
nossa confrontação perceptiva e corporal com o mundo, a partir de
dentro dele. Tal sentido é dado ao mundo antes de qualquer sentido ou
significado que possa advir de nosso julgamento intelectual do que
encontramos à nossa volta. Os objetos estão plenos de significados, por
causa da nossa relação sensório-motora para com eles, pois o fato de
estarmos defronte de um objeto implica, para os seres que podem se
mover através do espaço, que podemos estar atrás dele também.
A descrição fenomenológica expressa que os significados dos
objetos têm como consequência pertencer à órbita de tais seres
encarnados, isto é, a experiência de uma coisa real não pode ser
explicada pela ação dessa coisa em minha mente: o único caminho para
uma coisa a agir sobre uma mente é o oferecer a ela um significado para
se automanisfestar a ela, para constituir-se defronte à mente em suas
articulações inteligíveis (MERLEAU-PONTY, 1942, p. 215). Esse é o
motivo pelo qual a atividade organizadora de nossa percepção encarnada
se esconde em sua operação, deixando-nos ver as coisas do mundo,
habitualmente, como se determinadas e existentes independentemente de
nós.
O filósofo francês interpreta Cézanne como se recusando a
render-se a essa forma habitual de ver. Na pintura de Cézanne, não
vemos a revelação de alguma característica do mundo a que visões
anteriores tinham sido cegas, como, por exemplo, a cor que os
impressionistas mostraram estar inerente nas sombras. Em vez disso,
vemos as condições sob as quais a nossa visão do mundo é almejada. Na
verdade, Merleau-Ponty (2004, p. 122, 125) assinala um número de
técnicas pictóricas pelas quais a geração da nossa experiência é
representada; entretanto essas técnicas pictóricas ou características não
ocupam algum lugar específico no mundo real. Assim, por exemplo,
Cézanne pinta uma multiplicidade de contornos em torno de uma figura
para minar a impressão habitual de que as arestas das coisas existem
antes da nossa percepção que atribui sentido a elas.
130
Pinturas que representam as coisas do mundo são as próprias
coisas no mundo, e Merleau-Ponty não explica como a imagem do
mundo que Cézanne apresenta vai escapar de ser vista por nós, da
mesma forma que o resto do mundo é. Ou seja, se os objetos no mundo
tomam a forma como os percebemos, da mesma maneira que os objetos
em uma pintura tomam a forma como os percebemos, então o que
poderia a pintura nos mostrar, já que, olhando para o mundo real, ele já
nos mostrou, ou supostamente, mostrou?
Uma resposta sugerida, mas não explicitamente defendida por
Merleau-Ponty, é que as técnicas de Cézanne constituem descobertas
pelas quais ele é capaz de fazer notório ou evidente algo que faz parte da
experiência visual, mas não recriamos, devidamente, essa experiência
visual. Assim, Merleau-Ponty (2004, p. 127-128) distingue entre uma
pintura de uma paisagem de Cézanne em que ele mostra a “natureza
pura” e uma fotografia da mesma cena que, invariavelmente, sugere o
trabalho de um homem, suas realizações e sua presença imediata. Se a
reprodução mecânica mostra um já categorizado e habitado mundo, isso
não seria porque o fotógrafo pretende que seja assim, mas porque esse
fotográfo, na comparação de Merleau-Ponty, não possui os meios
técnicos para mostrar o mundo de qualquer maneira, exceto como
estamos habituados a vê-lo.
Se a pintura de Cézanne impede a experiência de ver uma
imagem, justamente como se vê o mundo, não é porque sua descrição da
paisagem deixa fora características que a fotografia deixaria dentro, é
porque o pintor, ao contrário do fotógrafo, emprega uma técnica que
chama a atenção para as formas em que os objetos são dados em sua
individuação, significado e forma. Portanto, na referência de Merleau-
Ponty (2004, p. 126-127) ao que Émile Bernard descreveu como
“suicídio de Cézanne”, apontando para a realidade enquanto negando-se
os meios para alcançá-la, frisamos que não são algumas técnicas
pictóricas que são negadas, mas aquelas como a perspectiva matemática,
pela qual uma pré-formada, familiar e ordem natural é imposta ao fluxo
da experiência.
O que Cézanne faz, na visão de Merleau-Ponty, é tematizar esse
uso da perspectiva, isto é, o pintor faz a artificialidade da perspectiva
marcante em sua obra, divulgando-a de uma forma que permite que ela
seja refletida como uma convenção. A sua revogação da perspectiva
também é importante para o caminho em que demonstra o pintor desistir
de um tipo de controle, abandonando a si mesmo ao caos das sensações.
Aqui, Merleau-Ponty (2004, p. 124-125) refere-se a mais do que
sensações exclusivamente visuais. Ele argumenta que as sensações não
131
são experimentadass individualmente, uma após a outra, mas de modo
global, cada qual condicionadas às outras, de acordo como elas todas
são reveladas.
Merleau-Ponty ainda se refere à observação de que Cézanne pode
mesmo ser capaz de pintar até odores, para destacar que existe uma
unidade das propriedades sensíveis das coisas na experiência, antes de
serem submetidas às distinções da mente. Tais sensações holísticas
implicam o papel do corpo na constituição dos objetos da experiência.
Isso não é a experiência de alguém afetada pela sinestesia, mas um
armazenamento dos fundamentos da experiência da perspectiva vivida
de alguém, antes que seja submetida aos julgamentos categorizados e
individualizados do intelecto.
Já em sua discussão sobre a técnica de Cézanne, Merleau-Ponty
(2004, p. 124) sugere que aqueles artistas que continuam uma tradição
tendem a ser cometidos a essas dicotomias, como entre sensação e
compreensão, enquanto aqueles que iniciam novas tradições tendem a
renunciar a essas dicotomias. Podemos perceber, portanto, que Cézanne
não escolhe entre representar as coisas como elas são e a forma como
elas aparecem. Em vez disso, ele irá representar a matéria da maneira
que ela toma forma, o nascimento da ordem através de uma organização
espontânea.
Esse fato significa que, inicialmente, Cézanne desenha os
contornos dos objetos em uma natureza morta, sem o emprego de uma
linha contínua, para qual se fará um objeto da forma (MERLEAU-
PONTY, 2004, p. 128-129). Mais tarde, no lugar disso, ele trata o
contorno como o limite ideal para o qual os lados de uma maçã
diminuem. Esses lados visíveis, logo, referem, como presenças para
ausências, aos lados da maçã que não vemos, mas para o qual a nossa
presença sensório-motora no mundo está orientada.
Aqui, e novamente no final do ensaio, Merleau-Ponty (2004, p.
135, 140) refere-se a filósofos e pintores, como tal, iniciadores de uma
tradição, sugerindo que o filósofo e o pintor estão envolvidos no mesmo
tipo de projeto, apesar das diferenças no método e no material. A
importante diferença, então, entre as investigações de Cézanne e as de
Merleau-Ponty não é o resultado, mas o fato de que o pintor pode não
estar ciente ou, no mínimo, não ser capaz de articular a sua consciência
da verdade da experiência que ele tem revelado, ao passo que o filósofo
pode ser capaz de articular a verdade da experiência que ele tem
descoberto, descortinado.
Entretanto, ao contrário do sucesso do pintor em trazer recursos
daquela experiência para uma inteligibilidade, a articulação da
132
experiência do filósofo lida com o risco de distorcê-la. Os riscos da
articulação da experiência do filósofo introduzem distorções, pois
lançam a experiência justamente naquelas representações explícitas e
objetivas que a descrição científica emprega, mas que a fenomenologia
tem sublinhado é estranha à experiência, uma vez que ocorre a uma
consciência encarnada. Na sua tardia e inacabada obra “O visível e o
invisível”, Merleau-Ponty parece buscar resolver essa diferença entre a
experiência e a sua articulação linguística, sugerindo que as duas
estruturas são interdependentes.
Nesse ponto, pelo menos, o seu tratamento serve como uma
recusa à acusação de que a filosofia da arte invariavelmente subordina
arte à filosofia ou deforma a arte, fazendo-a amoldável às análises
filosóficas. Na verdade, Merleau-Ponty reconhece, de certa maneira, que
o artista pode se envolver em uma espécie de análise filosófica da
experiência que não é totalmente aberta ao filósofo. A distinção entre o
filósofo e o pintor se coloca novamente em “O olho e o espírito”, em
que Merleau-Ponty (2004, p. 12) descreve o ponto de vista científico
que trata objetos e seres no mundo como essencialmente suscetíveis à
manipulação e ao controle. Ele diz, por outro lado, que o domínio de
investigação que pertence às artes é precisamente este mundo humano
que o operacionalismo, forma de fundição do mundo em termos
instrumentais, ignora.
Enquanto a literatura e a filosofia avaliam o que elas tratam,
podem ter uma relação de julgamento para com seu tema, o pintor está
encarregado de olhar para tudo, sem ser obrigado a avaliar o que ele vê.
Merleau Ponty (2004, p. 13-14) diz que o pintor sozinho pode ficar fora
da esfera de ação e juízo, como se na vocação do pintor houvesse
alguma urgência acima de todos os outros direitos sobre ele. Embora
aqui ele pareça invocar uma noção modernista da autonomia artística, na
qual a arte é, em sua essência, considerada imune às exigências da
prática, da moral e das esferas políticas, Merleau-Ponty entende
autonomia artística não como uma rejeição das reivindicações do mundo
sobre o artista, mas como a busca de uma reivindicação muito maior.
A reivindicação que Merleau-Ponty desenvolve em “O olho e o
espírito”, que representa uma mudança de sua predominante
preocupação com a visão nos ensaios anteriores, aborda o papel do
artista em expressar um modo de existir no mundo que não é apenas
próprio dele, mas é o do grupo coletivo, sociedade ou o meio ao qual ele
pertence. Porém é precisamente em ausentar-se de uma forma de
existência autônoma, a partir das demandas de ação e de julgamento que
133
definem o pertencimento a uma sociedade, que o artista é capaz de
alcançar tal expressão geral e não individualista.
3.2 LEITURA E EXPRESSÃO
Podemos assegurar que uma das fundamentais preocupações do
filósofo francês concernente ao estudo da linguagem em geral é tratá-la
como peça fundamental na existência humana, pois a linguagem age,
constrói e dá significação ao pensamento. Para Merleau-Ponty (2004, p.
70), no que tange ao sentido, é ele ambiente que funde um signo a outro
signo e os faz significar. No ensaio “A linguagem indireta e as vozes do
silêncio”, o sentido é entendido como o cruzamento ou o intervalo entre
as palavras. Não haveria uma distinção possível entre sentido e
linguagem, porque o sentido não seria nem transcendente, nem imanente
em relação aos signos.
Em suas palavras: Na verdade, não é assim que o sentido habita a
cadeia verbal, nem assim que se distingue dela. Se
o signo só quer dizer algo na medida em que se
destaca dos outros signos, seu sentido está
totalmente envolvido na linguagem, a palavra
intervém sempre sobre um fundo de palavra,
nunca é senão uma dobra no imenso tecido da
fala. Para compreendê-la, não temos de consultar
algum léxico interior que nos proporcionasse, com
relação às palavras ou às formas, puros
pensamentos que estas recobririam: basta que nos
deixemos envolver por sua vida, por seu
movimento de diferenciação e de articulação, por
sua gesticulação eloquente. Logo, há uma
opacidade da linguagem: ela não cessa em parte
alguma para dar lugar ao sentido puro, nunca é
limitada senão pela própria linguagem, e o sentido
só aparece nela engastado nas palavras59
(MERLEAU-PONTY, 2004, p. 71).
59 Na versão original: À la vérité, ce n'est pas ainsi que le sens habite la chaîne verbale et
pas ainsi qu'il s'en distingue. Si le si-gne ne veut dire quelque chose qu'en tant qu'il se
profile sur les autres signes, son sens est tout engagé dans le langage, la parole joue
toujours sur fond de parole, elle n'est jamais qu'un pli dans l'immense tissu du parler.
Nous n'avons pas, pour la comprendre, à consulter quelque lexique intérieur qui nous
donnât, en regard des mots ou des formes, de pures pensées qu’ils recouvriraient: il suffit
que nous nous prêtions à sa vie, à son mouvement de différenciation et d'articulation, à
sa gesticulation éloquente. Il y a donc une opacité du langage: nulle part il ne cesse pour
134
O sentido seria a multiplicação de signo a signo, algo que dobra
os signos e os agrupa na linguagem. Em “A Experiência Interior”, o
autor George Bataille (1992, p. 100-101), por exemplo, faz referência à
cena que se desenvolve quando uma piada é contada e as pessoas riem
por contágio. Existe algo que atrela as consciências e que está além dos
signos ou da interpretação do conteúdo significado. Bataille pensa em
uma conexão que se estende entre um ser e outro, já que as palavras, os
livros, os monumentos, os símbolos, os risos são apenas passagens desse
contágio, dessas passagens. O movimento que liga as unidades relaciona
o sentido de cada objeto.
Ao contrário da piada, Merleau-Ponty (2004, p. 71) pensa na
charada, exclusivamente compreendida no intercâmbio dos signos.
Quando agrupados, a trivialidade dos signos dá lugar ao sentido que
atrela aquele que fala e aquele que escuta. Não é uma técnica de cifração
ou decifração de significações já acabadas, pois o sentido não se
depreenderia da produção de significados dos signos. Ele seria dado
antecipadamente como entidade de referência entre os gestos
linguísticos, um entrecruzamento ou malha dos signos.
Consequentemente, as palavras não buscam um sentido nem são
engendradas a partir dele, sendo que não existe nem transcendência,
nem imanência. Não há também um texto ideal que as frases traduzem.
Merleau-Ponty (2004, p. 71-72) expõe que nenhum autor pensa em um
texto que reflete seu escrito, que não existe linguagem alguma antes da
linguagem. De acordo com esse autor, a palavra se faz por um
balanceamento estabelecido pelas condições internas na linguagem, por
uma perfeição sem modelo.
A compreensão de sentido que o filósofo apresenta fica mais
óbvia se pensarmos a linguagem como um ser e não como um meio.
Quando um amigo ou um colega nos diz algo, sua linguagem está
envolvida naquele ser, ela se constitui na particular maneira de
interpelar e de despedir-se, de iniciar e de concluir as frases, de
caminhar pelas coisas não ditas. O sentido é o movimento cabal da
palavra, e é por essa razão que nosso pensamento se demora na
linguagem. O sentido atravessaria a linguagem e dar-se-ia nessa
composição de elementos que, como a duração, não podem ser
decompostos. Ele liga a linguagem às mentes que participam e não deixa
espaço para um pensamento fora de sua vibração particular
(MERLEAU-PONTY, 2004, p. 71).
laisser place à du sens pur, il n'est jamais limité que par du langage encore et le sens ne
paraît en lui que serti dans les mots (MERLEAU- PONTY, 1960, p. 53).
135
É importante notar que, nessa composição da linguagem, está
subentendido o núcleo elementar da percepção, em que figura e fundo
são indissociáveis, pois algo só passa a expressar um sentido porque faz
parte de um campo: uma figura só pode ser apreendida sobre um fundo.
São essas relações que exprimem um sentido. Se a figura só pode ganhar
um sentido porque é apresentada sobre um fundo, logo, até as mais
simples experiências são sobre relações. E todo elemento da cultura tem
implícita essa maneira de composição (BASTOS, 2010, p. 92).
Por esse motivo, quando mergulhamos na linguagem, ela vai
além dos signos, em direção ao sentido deles. Não existe nada que nos
afaste desse sentido, pois tampouco a linguagem implica uma
correspondência ou modelo exterior. Ela produz e desvela seus próprios
segredos. Como queria, por exemplo, Wittgenstein, ela é inteiramente
mostração. A opacidade e a obstinada autoreferência da linguagem se
explicar-se-iam pela natureza autóctone do sentido. Assim, o conceito
de sentido em Merleau-Ponty é concomitantemente linguístico e não
proposicional. O filósofo francês investe contra a ideia de existir um
texto para o qual a linguagem se remeteria, espécie de transdução entre
diversos planos de pensamento e produção de sentido (BASTOS, 2010,
p. 92).
A linguagem não é representacional, mas indireta e remissiva. A
afinidade entre sentido e palavra não é assinalada por correspondências
ponto a ponto. As palavras não se atrelam aos pensamentos como
unidades duplamente condicionadas. A linguagem não imita o
pensamento, ela se faz e se refaz por ele (BASTOS, 2010, p. 92). Essa
hipótese de um sentido intercalado nos corpos e na linguagem fica mais
evidente quando Merleau-Ponty (2004, p. 72-73) explica as observações
de Saussure acerca da frase the man I love (o homem que eu amo). A
frase em inglês seria tão significativa quanto sua versão francesa,
l’homme que j’aime, não obstante a lacuna do pronome relativo na
versão inglesa.
Merleau-Ponty expõe que um francês tende a traduzir a frase para
o inglês por the man 'that' I love, colocando um pronome relativo que a
composição gramatical do inglês entende dispensável. Não se trata de
elipse, diz o autor, porém de um branco entre as palavras que denota
alguma coisa. Também não se refere a um elemento subentendido, como
uma tradução ingênua poderia arriscar. Merleau-Ponty (2004, p. 73)
indica que temos a tendência de pensar que as outras línguas capturam o
mundo como uma variante da nossa língua natal, uma variação que
utilizaria instrumentos análogos aos da nossa língua. É que nossa língua
natal parece alicerçada nas coisas de maneira mais real.
136
Na explicação de Bastos (2010, p. 92-93): Essa é a ilusão do sentido, que costura as relações
internas de signo a signo. Mas the man I love, em
que pese a ausência do pronome relativo, expressa
essa realidade tão bem quanto seu par românico.
A ausência de um signo não altera a expressão
porque não existe correlação dos elementos do
discurso com os elementos do sentido, mas uma
operação da linguagem sobre a linguagem cujo
fundamento é antes o descentramento do sentido.
Nem as palavras seriam desmembradas dos
pensamentos nem os pensamentos seriam
substituídos por índices verbais. Os pensamentos
seriam incorporados nas palavras, tornando-se
disponíveis no poder das palavras. Poder que
funciona na linguagem de maneira global e não
atomística, havendo um movimento oblíquo e
autônomo na linguagem. Se a linguagem significa
alguma coisa, é porque sua vida interior, esse
rastro que não tem centro, o sentido, rodeia a
exterioridade objetiva dos signos.
Na verdade, o filósofo francês ratifica aqui a diferença entre
representação e expressão. No livro “A prosa do mundo”, Merleau-
Ponty (2002, p. 52) fala em um morfema gramatical que não se
confunde com o que ele denomina de morfema de expressão, em que
afirmação e negação admitem um sentido irônico que está para além da
letra. Seria um intuito de significar que estimula os acidentes
linguísticos e faz da língua um sistema que coincide consigo mesmo.
Um objetivo que se atenua e que nunca se realiza por completo, pois,
para que qualquer coisa seja dita, é necessário que jamais o seja
definitivamente.
Nessa esteira, a força significativa dos signos dever-se-ia a um
sistema de convivência com outros signos, o que nos remete à teoria do
valor de Ferdinand de Saussure. A diferença é que Merleau-Ponty
(2002, p. 59) vê o sentido como uma dobra no sistema da língua e no
valor de uso, uma dobra que não tem núcleo e que inaugura a
significação. E não existiria correspondência ponto a ponto entre significação e sentido, polaridades que esse autor retoma como
exprimido e expressão. O sentido só se daria integralmente, ou seja, é o
todo que possui um sentido, não cada parte. As palavras acoplar-se-iam
aos coeficientes que lhes emprestam um valor de emprego e não uma
significação. Esse valor de emprego não poderia ser destacável e só teria
137
competência significante quando totalmente agregado na cadeia verbal
(BASTOS, 2010, p. 93-94).
Dessa forma, Merleau-Ponty (2002, p, 50-51) antevê uma crítica
à imagem chomskyana de uma gramática preexistente, porque vê a
urdidura da linguagem se fazendo em uma constante junção de
elementos da carne do mundo. A linguagem estabelecer-se-ia em uma
duração que não possui propriamente um sistema de referência, porém
uma amplitude de sentido. Sua fenomenologia admite ainda que nem se
expressa de todo a expressão, nem se exprime completamente o
exprimido. Então, a opacidade da linguagem, cuja lógica de construção
assume o filósofo, é contrária a conceitos. (BASTOS, 2010, p. 93). Ela
unicamente transparece essa lógica ambígua de um sistema de
expressão. Fala-se com o escopo de sair das coisas ditas e alcançar as
coisas mesmas, mas esse salto não é verificável pela análise semântica,
já que, como a duração, só pode ser alcançado como um movimento
incondicional que não se sintetiza às suas partes. A língua, por exemplo,
não se estabeleceria propriamente como sistema nem como estrutura, e a
linguística teria aberta uma dimensão que paradoxalmente lhe coloca em
posição antagônica a todo positivismo (MERLEAU-PONTY, 2002, p.
60-61).
Assim como em Deleuze, o sentido possuiria outra natureza
concernente à significação. Merleau-Ponty recorda que, na maioria das
vezes, adotamos como modelo da fala o enunciado ou o indicativo,
esquecendo que há muito fora da enunciação. Existe todo um universo
de implicações, de acordos implícitos não tematizados, não ordenados,
que contribuem para tecer o sentido. Se a significação se funde com a
fala, é porque há o prosseguimento de um discurso continuamente já
principiado, de uma língua já constituída. É o caso da expressão
literária, que anota uma sobre-significação e um sobre-sentido
(BASTOS, 2010, p. 94-95).
O sentido linguístico nos guia para um além da linguagem e,
quando o explanamos pelo seu início, perdemos de vista sua
processualidade. Seria um fantasma ou um espectro da linguagem. Se,
na geometria, um esboço não é dado pela sua constituição física,
tampouco os sons na linguagem, o esquema no papel ou a acepção dada
no dicionário são satisfatórios para produzir o sentido. Haveria uma
intervenção interior à sequência de palavras, um sulco que sugere seus
pontos de passagem. Os termos adquirem uma significação nova através
de uma racionalidade que possui o descentramento como alicerce do
sentido (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 68).
138
Damo-nos conta dessa racionalidade quando buscamos uma
expressão para exprimir nosso pensamento. Merleau-Ponty (2002, p. 35-
36) fala que, da multidão de termos do léxico de uma língua, há apenas
uma que é adequada. Localizá-la é sair da afonia que quer significar e
penetrar o fluxo de sentido das palavras. Sentido é aquilo que completa
a mudez pré-expressiva, o silêncio que antecipa a prosa. Ele restitui ao
escritor um pensamento que se pensava esquecido, porque é como se
esse pensamento já fosse discorrido no avesso do mundo. Escrever,
produzir sentido, seria essa empreitada de aprofundar frases que
repousam no limbo da linguagem, palavras encobertas que o corpo
murmura (BASTOS, 2010, p. 95).
Quando acordamos o termo que repousava, a expressão e o
exprimido se equivalem, descobrem-se e reconhecem-se. O poder da
linguagem estaria nessa intervenção descentrada. Nomeadamente
equilíbrio, a linguagem arranjar-se-ia e refar-se-ia por uma operação de
descentramento que instrui ao leitor e ao autor alguma coisa que eles
desconheciam. Quando ela nos transporta às coisas mesmas, diz
Merleau-Ponty (2002, p. 36), ela deixa de “ter” significação para “ser”
significação. Quando há expressão, os signos se diluem e só se conserva
o sentido.
A significação acontece disfarçando aos nossos olhos suas
operações. Ao se apagar, temos acesso ao além das palavras, ao próprio
pensamento do autor, de tal maneira que retrospectivamente cremos ter
conversado com ele sem termos proferido palavra alguma, de espírito a
espírito. É como se existissem duas linguagens: uma que é adquirida e
que esvanece diante do sentido de que se tornou portadora, e a outra que
se faz no momento da expressão, que vai precisamente nos fazer passar
dos signos ao sentido — a linguagem falada e a linguagem falante
(MERLEAU-PONTY, 2002, p. 32).
Quando, por exemplo, lemos um livro, ele começa a existir como
um indivíduo singular para além das páginas. Mesmo a leitura gradual
da obra finaliza em um todo; a apreensão de cada frase, no compasso da
narrativa, resulta em uma imagem integral, e o livro nasce de ponta a
ponta e não aos pedaços. Na expressão literária, a linguagem não é uma
exterioridade que o pensamento manifesta (BASTOS, 2010, p. 95). O
sentido de um livro não é oferecido pelas ideias e sim por uma variante
sistemática e incomum dos modos de linguagem e de narrativa, uma
reinvenção das formas literárias existentes. A expressão é bem acertada
quando uma particular modulação do discurso contamina o leitor e lhe
torna acessível um pensamento que lhe era indiferente (LEFORT, 2002,
p. 9).
139
Assim, o sentido adentra sem ser percebido, e o escritor não se
remete a um banco de significações que fazem parte de um a priori do
espírito humano. Ao contrário, as significações são provocadas pela
incidência enviesada do sentido. O texto literário não se dirige a um
sistema da linguagem, mas cria seu próprio sistema: o escritor é ele
próprio um novo idioma que se estabelece, que idealiza meios de
expressão e se diversifica de acordo com seu próprio sentido (LEFORT,
2002, p. 9).
Para Merleau-Ponty (2002, p. 35-36): A leitura é um confronto entre os corpos gloriosos
e impalpáveis de minha fala e da fala do autor
[...]. Mas esse poder de ultrapassar-me pela
leitura, devo-o ao fato de ser sujeito falante,
gesticulação linguística, assim como minha
percepção só é possível por meu corpo. Essa
mancha de luz que se marca em dois pontos
diferentes sobre minhas duas retinas, vejo-a como
uma única mancha à distância porque tenho um
olhar e um corpo ativo, que tomam diante das
mensagens exteriores a atitude conveniente para
que o espetáculo se organize, se escalone e se
equilibre. Do mesmo modo, passo direto ao livro
através da algaravia, porque montei dentro de
mim esse estranho aparelho de expressão que é
capaz não apenas de interpretar as palavras
segundo as acepções aceitas e a técnica do livro
segundo os procedimentos já conhecidos, mas
também de deixar-se transformar por ele e dotar-
se por ele de novos órgãos.60
60 Na versão original: La lecture est un affrontement entre les corps glorieux et
impalpables de ma parole et de celle de l'auteur [...]. Mais ce pouvoir même de me
dépasser par la lecture je le tiens du fait que je suis sujet parlant, gesticulation
linguistique, comme ma perception n'est possible que par mon corps. Cette tache de
lumière qui se marque en deux points différents sur mes deux rétines, je la vois comme
une seule tache à distance parce que j'ai un regard, un corps agissant qui prennent en
face des messages extérieurs l'attitude qui convient pour que le spectacle s'organise,
s'échelonne et s'équilibre. De même, je vais droit au livre à travers le grimoire, parce que
j'ai monté en moi cet étrange appareil d'expression qui est capable, non seulement
d'interpréter les mots selon les acceptions reçues et la technique du livre selon les
procédés déjà connus, mais encore de se laisser transformer par lui et douer par lui de
nouveaux organes (MERLEAU-PONTY, 1969, p. 21-22).
140
Diante dessa constatação, na leitura, vamos além do pensamento
do autor, de tal modo que retrospectivamente acreditamos ter
conversado com ele sem termos dito palavra alguma, verdadeiramente
foram as palavras que nos falaram durante a leitura, sustentadas pelo
movimento de nosso olhar e de nosso desejo, mas também sustentando-
o. Posto que o leitor traga consigo a linguagem falada, isto é, a
linguagem que adquiriu ao longo da vida, a expressão ocorre quando o
livro instiga o leitor, quando o texto dá margem à dimensão criativa do
leitor, quando, amparado pelo autor, o leitor decompõe as significações
conhecidas em novas significações (CALDIN, 2009, p. 101).
Há, dessa maneira, uma união no processo da leitura: o texto, que
apresenta signos, genes da significação; o autor, que apresenta ideias,
signos transformados em significações; e o leitor, que compartilha dos
signos fornecidos pelo autor e, em parceria com este, modifica a
linguagem falada em linguagem falante. Esse fato significa que as
palavras do autor são disseminadas no texto com calor e paixão, sendo
apoiadas pelo desejo do leitor, ou, dito de outra forma, as palavras
gravadas no texto deixam de ser simples signos para se transformar em
linguagem falante, a linguagem que extrapolou o signo e passou a ser
significado (CALDIN, 2009, p. 101-102).
Simplesmente por incorporar detalhes da narrativa como um todo
e transformar signos em significados, o leitor pode ter a impressão de ter
criado o livro de ponta a ponta, como queria Sartre (MERLEAU-
PONTY, 2002, p. 33). Todavia é relevante frisar que isso é uma ilusão
retrospectiva. O leitor que pensa desse modo não leva em conta o
momento da expressão. São essas justamente as acusações que Merleau-
Ponty faz a Sartre em suas análises a respeito do objeto literário, pois o
último autor não considera o momento da expressão.
Na concepção de Sartre (2004), exposto em seu livro “O que é
literatura?”, o texto só adquire sentido estético quando o leitor, pela sua
consciência imaginante, cria um significado para as frases. Por lapidar o
texto com sua imaginação criadora, pode o leitor tornar-se uma espécie
de criador e, consequentemente, atuar como maestro do texto literário.
Como o artista se confunde com a obra, é o olhar imaginante do leitor
que se responsabiliza pela criação.
Aqui, o essencial é que os valores e os costumes mostrados na
obra literária tenham sido dialogados por autor e leitor. Por essa razão,
Sartre considera o encargo do autor assinalar os fatos históricos sem se
ocultar sob a capa da neutralidade, ou seja, ele advoga o engajamento do
escritor, sua liberdade de opinar, já que, como os acontecimentos,
141
escritor e leitor são históricos, não podendo viver apartados das questões
sociais presentes em sua época (SARTRE, 2004, p. 20).
Na explicação de Caldin (2009, p. 95): Assim, por valer-se das palavras como meio de
persuasão, o escritor se engaja, quer dizer, ele tem
um motivo para escrever, ele tem um público a
quem deseja atingir. Para o filósofo, não é gratuita
a verbosidade do escritor. Embutidas no texto
estão a intenção de comunicar e a intenção de
modificar comportamentos – portanto, o escritor
não é imparcial e utiliza as palavras como armas
poderosas de convencimento. Além do mais, para
Sartre, escrever é um trabalho, exige esforço e
comprometimento do autor, ao passo que ler é um
prazer, o leitor se desvincula de compromissos
assumidos com a finalidade de se deliciar com o
texto. Sendo trabalho, o escritor labuta para
colocar no papel sua subjetividade, ou seja,
projeta na escritura suas ideias e seus valores, seu
saber consolidado e cristalizado. Por outro lado, o
leitor vê o texto como um objeto a ser apreciado e
lapidado.
Essa prioridade do leitor, na visão de Merleau-Ponty, é uma
ilusão sartriana, porque, realmente, o leitor se doa ao texto, crê no que o
texto fala e habita o pensamento do autor. Todavia, isso se dá devido aos
signos com os quais o autor e o leitor concordam; já que falam a mesma
língua, o autor faz o leitor justamente acreditar que estão no terreno
comum das significações adquiridas e disponíveis. O autor se utiliza dos
signos conhecidos para revesti-los de significados que compartilha com
o leitor, pois as palavras inscritas no texto são a voz do autor, porém a
experiência da leitura atravessa o livro, aparato de gerar significações,
sendo o momento da expressão aquele no qual o livro se apodera do
leitor (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 33-34).
Nesse sentido, autor e leitor participam dos mesmos signos, mas
não dos mesmos significados. Isso acontece pela conotação própria da
linguagem literária, que permite às palavras do texto um sentido
subjetivo. Apesar de o autor influenciar o pensamento do leitor, admite
que este último construa um sentido próprio do que lê, ou seja, confere
liberdade ao leitor para que ele mesmo providencie seu significado ao
texto. É aqui que se dá o acesso da linguagem falada para a linguagem
falante, isto é, o leitor, inquirido pelo livro, produz uma nova linguagem,
142
uma nova significação. Esse é o momento da expressão (CALDIN,
2009, p. 102-103).
Merleau-Ponty (2002, p. 33) explana esse acontecimento que
ocorre na leitura: Assim, ponho-me a ler preguiçosamente,
contribuo apenas com algum pensamento – e de
repente algumas palavras me despertam, o fogo
pega, meus pensamentos flamejam, não há mais
nada no livro que me deixe indiferente, o fogo se
alimenta de tudo que a leitura lança nele. Recebo
e dou no mesmo gesto. Dei meu conhecimento da
língua, contribuí com o que eu sabia sobre o
sentido dessas palavras, dessas formas, dessa
sintaxe. Dei também toda uma experiência dos
outros e dos acontecimentos, todas as
interrogações que ela deixou em mim, as situações
ainda abertas, não liquidadas, e também aquelas
cujo modo ordinário de resolução conheço bem
demais. Mas o livro não me interessaria tanto se
me falasse apenas do que conheço. De tudo que eu
trazia ele serviu-se para atrair-me para mais
além.61
Frisamos que mais importante do que a linguagem utilizada pelo
autor para a produção de sentido para o leitor é o que Merleau-Ponty
(2002, p. 83) denomina de “estilo”. Segundo o autor, o pintor, por
exemplo, é tão inábil em notar seus quadros quanto o escritor em se ler,
porquanto as telas e os livros igualmente possuem, com o horizonte e o
fundo da própria vida deles, uma similaridade bastante imediata para
que um e outro se permitam experimentar, em todo o seu prestígio, o
fenômeno da expressão. O estilo é o aspecto do autor no texto. Contudo,
por se encontrar mesclado no texto, o autor se decompõe no corpo do
61 Na versão original: Ainsi je me mets à lire paresseusement, je n'apporte qu'un peu de
pensée- et soudain quelques mots m'éveillent, le feu prend, mes pensées flambent il n'est
plus rien dans le livre qui me laisse indifférent: le feu se nourrit de tout ce que la lecture
y jette. Je reçois et je donne du même geste. J'ai donné ma connaissance de la langue, j'ai
apporté ce que je savais sur le sens de ces mots, de ces formes, de cette syntaxe. J'ai
donné aussi toute une expérience des autres et des événements, toutes les interrogations
qu'elle a laissées en moi, ces situations encore ouvertes, non liquidées et aussi celles dont
je ne connais que trop l'ordinaire mode de résolution. Mais le livre ne m'intéresserait pas
tant s'il ne me parlait que de ce que je sais. De tout ce que j'appor tais, il s'est servi pour
m'attirer au-delà (MERLEAU-PONTY, 1969, p. 18).
143
texto e, dessa forma, ele não possui o distanciamento indispensável para
ler o texto, já que ele é o próprio texto.
Na condição de espectador, o leitor compreende o sistema de
equivalências que o escritor, pelo seu estilo, elegeu, ora alterando a
figura em fundo, ora modificando o fundo em figura, de tal maneira que
o texto apresente significações e expresse o que o autor quis dizer. Há,
por essa razão, uma conivência implícita entre o escritor e o leitor: pelo
estilo, o escritor se expressa, e, por abarcar tal estilo, o leitor obtém do
texto não palavras esparsas e ocas, porém frases completas, com sentido,
que são, não um aglomerado de signos, mas a marca do autor no texto
(CALDIN, 2009, p. 105-106).
Ainda no entendimento de Caldin (2009, p. 106): Pode-se dizer, então, que o autor faz um apelo ao
leitor valendo-se da sintaxe da língua e do seu
estilo de linguagem para propiciar, a este último, a
expressão. Como Merleau-Ponty (ao contrário de
Sartre) assevera não haver uma linguagem pura,
os signos são arbitrários, e, assim, na operação
expressiva da leitura os signos transmudam-se em
significados na medida em que autor e leitor
permitem o descentramento e, dessa forma, se
comunicam, de tal sorte que a leitura adquire um
caráter de universalidade expressiva [...]. Portanto,
na posição de co-autor do texto, o leitor interage
com o autor quando, atendendo ao chamamento
deste último, fornece contribuição ao texto, isto é,
põe sua subjetividade a serviço do que uma
palavra pode dar a entender.
No que se refere à leitura, é admissível cogitar que cada um
retoma o ato particular do outro. Do ponto de vista de Merleau-Ponty
(2006, p. 243), as palavras de um texto complexo suscitam em nós
pensamentos que antes nos pertenciam, contudo, algumas vezes, esses
significados se conectam em um pensamento inédito que recompõe as
palavras a todos, e somos conduzidos para o cerne do livro, localizando,
consequentemente, a sua fonte. Entre as ações de uma pessoa e as de
seus pares, cria-se um campo comum, mas não de identidade. Tal
domínio é tão exclusivamente o desimpedimento temporal das ações
pretéritas e das ações remotas, porém, de maneira alguma, a
coincidência deles está em torno de um único sentido.
Ainda no palco das ideias já apresentadas, para Gilles Deleuze
(1992), procuramos, na literatura, uma maneira singular de estilhaçar os
144
códigos da língua. A escrita como suplantação da linguagem remete aos
fluxos que rebatem no esquema do sentido: o livro conta uma história
produzida no plano de organização, mas a história rebate no plano de
consistência. A ida e a vinda entre os planos produz sentido. Merleau-
Ponty (2002, p. 34-35) possui um entendimento semelhante da produção
literária. Comentando a obra “O Vermelho e o Negro”, de Stendhal
(2003), fala que a expressão contida no livro subverte as regras de
composição. Escritor e leitor são transportados para um universo de
significações novas. Há, na leitura que o filósofo faz de Stendhal, um
microcosmo da sua concepção de linguagem e de sentido.
Essa obra conta a história de Julien Sorel, um jovem astuto, de
origem humilde, à procura de promoção social. Vermelho pode denotar
a paixão pelas mulheres ricas ou o meio de ascensão social. Negro, pode
representar o entusiasmo por Napoleão, símbolo da promoção, por meio
da carreira militar. Na mesma derivação metonímica, vermelho é ainda a
cor do sangue vertido nas guerras, e o negro, a cor da batina dos padres,
da igreja à qual Julien recorre na busca por elevação social (BASTOS,
2010, p. 95). Há, no personagem, essas forças que se travam durante o
romance: poder e paixão, guerra e igreja, sangue e batina, pulsão de
morte e pulsão de vida. São múltiplas séries que rebatem a história e
produzem sentido literário.
Merleau-Ponty (2002, p. 117) lembra que a morte pulsa durante o
romance, cujo apogeu é seu desenlace sangrento. Uma pulsão que não
está em parte alguma nas palavras, mas sim nos intervalos entre as
palavras, isto é, nos espaços entre as significações. Não há propriamente
uma alusão à morte ou à destruição. O sentido dessa pulsão de morte é
notado durante o romance sem que apareçam objetos devidamente
significantes dessas forças.
Como já visto, inicia-se, de forma lenta, a ler o romance,
colaborando com alguns pensamentos. De repente, as palavras acordam
o leitor e seus pensamentos cintilam. Ele é arremetido na narrativa e o
livro deixar de ser a ele indiferente. É como um artifício: primeiro, há
um encontro entre os signos que o autor usa e aqueles que fazem parte
do seu mundo (BASTOS, 2010, p. 95-96). Assim, o leitor é levado a
acreditar que está no mesmo universo, e o livro se aloja em seu mundo;
mas, em seguida, o livro passa a repelir os signos de seu sentido
ordinário, arrastando-o para um turbilhão de sentidos desconhecidos.
Por exemplo: quando Stendhal diz que o fiscal Rossi é um canalha,
sabemos o que isso quer significar, entendemos o que é um canalha.
Mas quando o fiscal Rossi começa a viver, quando a canalhice do fiscal
145
toma bojo em seu personagem, não é mais ele quem é um canalha, é o
canalha que é um fiscal Rossi (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 34-35).
Nesse instante, abre-se um campo de inferências que não se
controla: a canalhice e o fiscal Rossi podem infiltrar no leitor
significações intrigantes. Ele foi fisgado pelo sentido literário: tudo isso
se iniciou pela cumplicidade entre fala e seu eco ou, para usar o termo
enérgico que Husserl aplica à percepção de outrem, pelo acasalamento
da linguagem. Em retrospectiva, tudo se passa como se não tivesse
havido linguagem entre o leitor e Stendhal, como se nossos sistemas de
pensamento fossem idênticos (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 35).
Cede-se ao escritor, então, com moderação, algum crédito pela
criação desse mundo, mas o leitor também se crê senhor da obra. Isso
porque o escritor soube instalar o leitor dentro dele, fazendo que ele crie
e seja Stendhal ao lê-lo. O leitor se pensa no comando da narrativa,
acredita que seus pensamentos são autônomos em relação à prosa. Mas
um e outro se fundem na máquina infernal que é um livro, esse aparelho
de criar significações.
Diz Merleau-Ponty (2002, p. 34-35): A linguagem falada é aquela que o leitor trazia
consigo, é a massa das relações de signos
estabelecidos com significações disponíveis, sem
a qual, com efeito, ele não teria podido começar a
ler, que constitui a língua e o conjunto dos escritos
dessa língua, e é também a obra de Stendhal, uma
vez que seja compreendida e se acrescente à
herança da cultura. Mas a linguagem falante é a
interpretação que o livro dirige ao leitor
desprevenido, é aquela operação pela qual um
certo arranjo dos signos e das significações já
disponíveis passa a alterar e depois transfigurar
cada um deles, até finalmente secretar uma
significação nova, estabelecendo no espírito do
leitor, como um instrumento doravante disponível,
a linguagem de Stendhal.62
62 Na versão original: Le langage parlé, c'est celui que le lecteur apportait avec lui, c'est
la masse des rapports de signes établis à significations disponibles, sans laquelle, en
effet, il n'aurait pas pu commencer de lire, qui constitue la langue et l'ensemble des écrits
de cette langue, c'est donc aussi l'oeuvre de Stendhal une fois qu'elle aura été comprise et
viendra s'ajouter à l'héritage de la culture. Mais le langage parlant, c'est l'interpellation
que le livre adresse au lecteur non prévenu, c'est cette opération par laquelle un certain
arrangement des signes et des significations déjà disponibles en vient à altérer, puis à
transfigurer chacun d'eux et finalement à sécréter une signification neuve, à établir dans
146
Merleau-Ponty retoma uma vez mais aqui o nexo da duração para
explanar esse sentido literário. Da mesma maneira que o movimento do
cinema se faz entre imagens imóveis, o movimento da literatura se faz
por vazios brancos apenas indicados vagamente. O sentido literário se
prolonga sobre o leitor, conferindo-lhe um corpo imaginário mais vivo
que seu próprio corpo. Vivemos como numa segunda vida as viagens de
Julien, somos ritmados pelas paixões visíveis e invisíveis que o romance
aprimora. Estabelece-se entre leitor e Stendhal uma linguagem de
iniciados: o que se tem a dizer, supõe-se conhecido. O escritor instala o
leitor dentro do personagem, que responde à convocação e se agrupa
com ele no centro desse mundo imaginário (BASTOS, 2010, p. 96-97).
Essa incorporação de mundos entre leitor e romance fica evidente
quando pensamos que o conteúdo da obra literária não é
representacional, mas expressivo. Também aí o sentido é latente e
implícito. Stendhal nos diz que Julien Sorel, ao saber que foi traído pela
Senhora de Renal, vai a Verrières para matá-la; mas em parte alguma
está descrito o silêncio de Julien após a notícia, sua viagem onírica
dentro de pensamentos sem certeza, sua resolução e tristeza. Não há
necessidade de “Julien pensava” ou “Julien queria”, conclui Merleau-
Ponty (2002, p. 35).
Stendhal não representa, mas exprime essa gama de sentimentos
insinuados pela velocidade da viagem, pelos objetos e pelos obstáculos;
ele opta por descrever os meios e os acasos. A velocidade da viagem
está implícita em uma narrativa condensada em uma única página, ao
invés de cinco, e a grandeza dos elementos omitidos é proporcional às
coisas ditas, nem que o sejam efetivamente. O sentido perambula entre o
visível e o invisível, entre o que há para ser dito e o que há para ser
calado (MERLEAU-PONTY, 2004, p.110).
Dessa maneira, a produção do sentido vincular-se-ia como já
notado, mais ao estilo do que à mecânica dos signos. O romance, que é
um operador de estilos, desnuda realidades insuspeitas. É precisamente
isso que Marx teria visto em Balzac: uma maneira de mostrar o mundo
do dinheiro e os conflitos da sociedade moderna que compreendia e
ultrapassava as teses econômicas, políticas e sociais, não obstante o que
Balzac pudesse pensar a respeito delas. O romance ofereceria uma visão
l'esprit du lecteur, comme un instrument désormais disponible, le langage de Stendhal
(MERLEAU-PONTY, 1969, p. 20).
147
que, uma vez adquirida, traria suas consequências com ou sem o
consentimento do autor (MERLEAU-PONTY, 2004, p.111).
Sobre esse aspecto, discorre Merleau-Ponty (2004, p. 122): O sentido do romance de início só é perceptível,
também ele, como uma deformação coerente
imposta ao visível. E será sempre assim. Decerto a
crítica poderá confrontar o modo de expressão de
um romancista com o de outro, fazer determinado
tipo de narrativa entrar numa família de outras
possíveis. Tal trabalho só será legítimo se for
precedido de uma percepção do romance, em que
as particularidades da técnica se confundem com
as do projeto global e do sentido, e se for
destinado simplesmente a explicar a nós mesmos
o que havíamos percebido.63
Podemos dizer que a teoria do romance de Merleau-Ponty se
encontra com a teoria do sentido de Deleuze. O romance como obra de
arte, para ambos os autores, é uma narrativa que vincula as
circunstâncias ao invisível ou, como teoriza Deleuze, a efetuação à
contraefetuação, a ação pessoal à impessoal, o plano de organização ao
de consistência. O acontecimento contraefetua os personagens do
romance na mesma medida em que inconscientemente vivemos o
mundo do personagem. Um mundo imparcial em relação às descrições,
imparcial porque sempre acontece de diferentes maneiras, de acordo
com diferentes leitores.
Finalmente, Merleau-Ponty (2009a) formula sua filosofia a partir
daquilo que Husserl chamava de presente vivo da fala, uma língua que
integra o que foi dito antes de mim ao mundo da minha língua. Sua
reflexão sobre a linguagem se choca com o pressuposto da virada
linguística, a ideia de que a filosofia pode ser conduzida por uma análise
da linguagem. Isso só seria possível se a linguagem contivesse em si
mesma sua evidência. A fenomenologia do filósofo francês, pelo
contrário, entende a linguagem como instrumento de concepção do
63 Na versão original: Le sens du roman n'est d'abord perceptible, lui aussi, que comme
une déformation cohérente imposée au visible. Et il ne le sera jamais qu'ainsi. La cri-
tique pourra bien confronter le mode d'expression d'un romancier avec celui d'un autre,
faire rentrer tel type de récit dans une famille d'autres possibles. Ce travail n'est légitime
que s'il est précédé par une perception du roman, où les particulari-tés de la « technique
» se confondent avec celles du projet d'ensemble et du sens, et s'il est destiné seulement à
nous expliquer à nous-mêmes ce que nous avons perçu (MERLEAU-PONTY, 1960, p.
97-98).
148
mundo cuja função não se esgota na mecânica dos signos, na análise
possível de significados e de léxicos.
Sua fenomenologia da linguagem oferece um conceito de sentido
original e descolado do entendimento linguístico. Sentido e significado
não estariam ligados às relações linguísticas, seriam antes imanentes a
todos os modos de vivência (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 37). Nisso
sua teoria fenomenológica se reencontra com o conceito husserliano de
intencionalidade, pois a linguagem seria permeada pela experiência do
vivido atual e comum. Ainda que Merleau-Ponty negue a consciência
doadora de sentido formulada por Husserl, sua fenomenologia adere a
uma intencionalidade constitutiva de sentido. É um sentido que se move
entre o horizonte de percepções possíveis e o campo aberto de
interpretações textuais.
Merleau-Ponty também recorre à linguística de Saussure. Este
linguista, em sua obra “Curso de Linguística Geral” (1973), teria
apontado que os signos, um a um, nada significam, apenas apontam os
desvios de sentido entre si mesmo e os outros. A intuição de Saussure
seria prontamente percebida pela criança que apreende essa malha de
signos e de sentidos. Assim, com as iniciais oposições fonêmicas, a
criança principia-se no elo lateral do signo com o signo como alicerce de
uma afinidade última do signo com o sentido. É a língua inteira como
estilo de expressão, como forma única de utilizar-se da palavra, que é
antecipada pela criança como as elementares oposições fonêmicas
(MERLEAU-PONTY, 2004, p. 68-69).
O sistema da língua aludido por Saussure fez Merleau-Ponty
pensar a linguagem em termos de um domínio cujos portões só se abrem
do interior. Domínio no qual o signo se arranja e se organiza consigo
mesmo, de cujas bordas se reclama o sentido. Todavia seus comentários
sobre Saussure desdenham o abismo que separa sua fenomenologia das
ciências da linguagem: a filosofia da linguagem já não se opõe à
linguística empírica; pelo contrário, ela é a redescoberta do sujeito
falante em exercício, em contraposição a uma ciência da linguagem que
o trata inevitavelmente como uma coisa (MERLEAU-PONTY, 1991, p.
111-112).
De certa forma, o filósofo francês quer ampliar a abordagem
linguística ao fenômeno do sentido, operação que extrapola o registro
visível de signos em direção ao regime invisível do sentido. Mas a
operação dilata as bases epistemológicas da linguística, pois estabelece
entre linguagem e sentido uma relação autônoma não condicionada, pois
a linguagem não está a serviço do sentido e não conduz o sentido. Não
149
há subordinação entre ela e ele. Aqui ninguém manda e ninguém
obedece (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 118).
Na explicação de Bastos (2010, p. 98-99): Por conseguinte, Merleau-Ponty entende por
significação um pensamento desprovido de
linguagem que orienta o indivíduo rumo ao
exprimido; e por signo, um invólucro inanimado,
uma manifestação exterior ao pensamento
especificamente próxima da significação [...]. Não
haveria um sistema abstrato da língua para o qual
nos remetemos como sujeitos da língua, mas uma
linguagem atuante que se dobra entre os sujeitos.
Só aprenderíamos a linguagem por dentro, pela
experiência da língua em nós que é sua expressão
criadora. Isto é, por meio do corpo senciente,
variação conceitual que compreende a
intencionalidade fenomenológica.
Estendendo a intencionalidade para o âmbito motor, afetivo e
orgânico, Merleau-Ponty (1991, p. 94) pensa a constituição de sentido
substituindo o “eu penso” cartesiano por um “eu posso” embrionário.
Sua intencionalidade fundada no corpo permite unificar as acepções de
sentido interior e exterior, debate que Husserl não havia resolvido. Isso
porque ela estabelece um contínuo entre a organização física da
percepção e a interpretação simbólica dos textos da cultura.
Haveria uma adjacência entre percepção corpórea e circulação
sígnica, aliança que transforma a intencionalidade em uma intuição
total. Assim, a intencionalidade adota tanto o sentido sensível como o
sentido proposicional, operação que acaba por extenuar os limites
conceituais entre sentido e significado. Essa ação corporal transita de
um sentido corporal para um significado linguístico, e o conceito mesmo
de sentido deixa de ter uma substância teórica própria.
3.3 LIBERDADE E TEMPORALIDADE
A partir de algumas análises de Merleau-Ponty sobre as artes
visuais e literária, podemos chegar a conclusão de que o cinema é uma forma de arte narrativa que potencializa não somente as relações entre o
ser e o mundo, entre criador e criação, leitor e espectador, como também
produz algumas implicações nesse ser inserido no mundo. Uma das
relevantes implicações diz respeito à temporalidade, que brevemente
150
expusemos anteriormente e que agora iremos aprofundar um pouco
mais, e a seu corolário, que é noção de liberdade, em múltiplos sentidos.
O tema da temporalidade percorre todas as análises de Merleau-
Ponty, sugerindo um ser ao mesmo tempo engajado e livre, ativo e
passivo em seu diálogo constante com um mundo ele próprio
concomitantemente subjetivo e objetivo, incumbindo ao tempo
responder por um logos e uma unidade mais originários, que se
ajustassem não na separação substancial entre homem e mundo, porém
em sua fusão, na estrutura híbrida que a temporalidade revela. Diz o
filósofo francês que é através do tempo que se pensa o ser, já que é pelas
afinidades entre o tempo sujeito e o tempo objeto que, compreendemos
as relações entre o sujeito e o mundo (MERLEAU-PONTY, 2006, p.
577).
No dizer de Moura (2006, p. 131): [...] a temporalidade constitui o lugar privilegiado
para a compreensão e realização de um ser que
não mantém as dualidades clássicas, sobretudo
aquela que afirma a oposição ontológica entre o
subjetivo e o objetivo. Ela permite conceber uma
relação de ser entre homem e mundo, que se
realiza como tensão entre abertura e situação,
constituição recíproca de um pelo outro. É dessa
relação que tratará um dos eixos das descrições de
Merleau-Ponty que será retomado agora: a
questão do sentido, do logos, portanto, pois sua
compreensão como objeto inteiramente
determinado posto por uma atividade doadora de
significação [...], é um dos pressupostos que
permite afirmar a dicotomia entre homem e
mundo e a decorrente relação epistemológica
entre eles como posse e constituição, fazendo do
sujeito uma atividade sintética que opera sobre
uma matéria informe, responsável por conferir-lhe
uma unidade que lhe é totalmente externa.
É exatamente por essa fusão que o sujeito é exposto como não
sendo nem um legítimo constituinte, porque ele pressupõe o mundo,
nem um autêntico constituído, pois ele é na mesma medida pressuposto
por esse mundo, incumbindo ao tempo dar acesso à estrutura concreta de
uma subjetividade cujo sentido se encontra na dialógica interna à própria
temporalidade entre o constituinte e o constituído. Trata-se de
compreender que o homem não é nem inteiramente passivo (um ser
151
determinado), nem inteiramente ativo (um nada absoluto), mas o ponto
de imbricação e de partilha dessas duas dimensões, tornado possível
pela própria temporalidade, estrutura híbrida a que o sujeito se refere por
uma necessidade interna, uma vez que é por ela que se realiza essa ponte
entre liberdade e situação (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 549).
O tempo não é nem um evento objetivo constatado, nem uma
ideia engendrada por um sujeito. Ele não pode ser um puro objeto
porque a completude do mundo objetivo o torna incapaz de trazer a
dinâmica própria à temporalidade. Enquanto ser absoluto, conjunto sem
qualquer negatividade ou fissura, o mundo objetivo recusa a diferença e
a abertura imprescindíveis à temporalidade, rejeitando o não ser que lhe
é próprio. Nas palavras de Merleau-Ponty (2006, p. 552): “O passado e
o porvir existem em demasia no mundo, eles existem no presente, e
aquilo que falta ao próprio ser para ser temporal é o não ser do alhures,
do outrora e do amanhã”.64
Na explicação de Moura (2006, p. 132): A temporalidade não é um processo real porque
ela implica também uma dimensão negativa, de
abertura e transcendência, um mundo e um sujeito
que não repousem em si. Entretanto, ela também
não é um processo ideal, o produto de uma
consciência constituinte que depositaria diante de
si todos os momentos temporais, pois também
aqui desapareceria a transcendência e a diferença
necessárias à temporalidade. Em ambos os casos –
o idealismo e o realismo – perde-se precisamente
a compreensão do ser “em trânsito”, em passagem
e em mudança, pois a positividade dos momentos
temporais exclui tanto sua diferenciação quanto
sua ligação interna, a dupla dimensão que
responde pela “contradição” da dinâmica
temporal.
É um ponto ontológico que dirige a descrição de Merleau-Ponty
(2006, p. 551-552), pois sua crítica refere-se ao fato de que, em ambos
os casos, a temporalidade torna-se impossível, porque se mantém o dano
do ser pleno, inteiramente determinado, que, pela falta do negativo, não
pode tolerar a deiscência temporal e sua unidade em curso. O isolamento
entre um mundo objetivo – puro ser – e as expectativas subjetivas que
64 Na versão original: Le passé et l'avenir n'existent que trop dans le monde, ils existent
au présent, et ce qui manque à l'être lui-même pour être temporel, c'est le non-être de
l'ailleurs, de l'autrefois et du demain (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 471).
152
versam sobre ele – puro nada – assegura uma positividade incapaz de
manter a abertura e a síntese temporais, de maneira que a temporalidade
provoca uma imbricação entre o ser e o nada, entre o para si e o em si, já
que nem o puro ser, nem o puro nada podem responder pela diferença
interna e unitária, atributo do tempo, sendo na relação entre eles, que
essa diferença pode ter lugar.
Nem objetivo, nem subjetivo, o tempo se faz no espaço entre eles,
de maneira que nenhuma das dimensões pode conservar-se pura ou
fechada sobre si, determinando que o originário seja não a dualidade,
senão a abertura e a relação. A dimensão subjetiva não é um puro não
ser, não é a atividade posicional do passado e do futuro, nem a alteração
deles em dimensões reais da consciência, porque isso expressaria, no
limite, repô-los no ser, torná-los presentes, extinguindo novamente a
própria ideia de temporalidade; ela constitui apenas a sincronização
graças à qual a natureza inerente ao passado e ao porvir pode realizar-se
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 552).
A subjetividade não é posicional, porque ela não gera um objeto
ou um ser determinado; antes, ela é fissura no ser e para o ser,
“cavidade” que impede o mundo de assentar-se em si, mas que nem por
isso o organiza ou esgota pois, por essa mesma lacuna, ela mesma se
distancia de si, difundindo-se em um mundo cuja lógica espontânea
afirma e ratifica sua posição finita, mas jamais institui ou recusa. O
negativo aqui é precisamente o que evita que o tempo seja objeto para
uma consciência, ser integral livre de toda indeterminação, puro
constituído correspondente a um sujeito constituinte. No entender de
Merleau-Ponty (2006, p. 556), somente existe tempo se ele não está
completamente estendido, se passado, presente e futuro não continuam na mesma significação. É essencial ao tempo fazer-se e não ser, nunca
estar completamente constituído.
Do ponto de vista de Moura (2006, p. 133-134): O trânsito e a passagem implicam uma
compreensão do ser em que o nada não seja aquilo
que lhe é contrário, e sim uma dimensão
estruturante, porque demandam uma abertura e
uma indeterminação intrínsecas sem as quais ele
jamais poderia deixar de ser, transformar-se, vir a
ser abrindo-se ao que lhe é outro, ou seja, sem as
quais não haveria sequer temporalidade, apenas a
plenitude sem diferença de um ser absoluto posto
por um nada constituinte. É dessa imbricação
entre o ser e o nada que tratará a noção de síntese
passiva, formulando uma existência que é ao
153
mesmo tempo “ser em” e “potência de niilizar”. A
principal questão é mostrar justamente que se o
tempo não se realiza sem uma subjetividade, um
“campo de presença”, isso não significa, e mesmo
exclui, a ideia de uma pura atividade constituinte,
indicando uma compreensão da presença (a si e ao
mundo) que não implica posse ou identidade, mas
coexistência e co-participação entre os termos.
No domínio de presença, o sujeito distingue a passagem
irrefletida de uma dimensão à outra; nele, essas dimensões se
apresentam “em pessoa”, todavia isso não significa que elas sejam
postas, oferecendo-se, ao contrário, como uma espécie de adjacência,
dimensão que continua e pesa sobre o sujeito, como um aspecto não
totalmente determinável ou atual, mas que conta para ele e o abrange.
Reafirmando a negatividade estrutural do tempo, essa presença é a de
um passado que está ainda aqui, de um futuro que está também ali e, no
limite, do próprio presente, que ainda não é posto, ou seja, ele é uma
presença perpetrada de horizontes e de fissura, que só se apresenta por
meio da transição irrefletida do ser ao não ser (MERLEAU-PONTY,
2006, p. 558).
Dessa maneira, não existe, no domínio de presença, uma
percepção explícita, e sim uma sorte de distensão, de horizontes
indefinidos que se esquivam do sujeito e o modulam, dimensão à qual
ele está, de propósito, ligado. Intencionalidade, portanto, não no sentido
de uma atividade constituinte, mas, ao contrário, como aquilo mesmo
que afasta o presente do apresentado, negatividade e estrutura
constitutivas do mundo, fazendo do presente transcendência e interstício
espontâneos, asseverando o não ser e os horizontes que apartam a
consciência de si e a fazem ser no mundo.
É por essa razão que a presença a si é presença ao mundo, porque
o presente não se dá sem abertura e horizontes, a abertura de um a outro
é a própria composição temporal, e não existe presença sem
“despresentação”: o deslizamento que uma subjetividade constituinte é
incapaz de gerar é aquilo mesmo que a lógica impensada do mundo
alcança, garantindo a transição que, se não se corta do tempo vivido, ao
menos o evita de ser absolutamente presente e desdobrado, objeto para
uma consciência (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 568).
O que garante a coesão do tempo não é uma intervenção de
identificação, pois ele não é uma pluralidade de períodos extrínsecos,
mas um só fenômeno de saída, que se assegura e conserva por sua
154
própria dissolução. A intencionalidade espontânea, a abertura direta e
natural de cada instante e de cada horizonte aos demais faz que o tempo
afirme, ele próprio seu prosseguimento, porque cada um de seus
momentos não é senão certa maneira de abreviar e de reter os demais: o
presente já é o caminho de um futuro ao presente e deste ao passado, em
um singular movimento que age, diferenciando-se de si mesmo
(MOURA, 2006, p. 135).
Logo, cada instante não é uma positividade controlada, um ser
determinado que faria que o tempo fosse total, que sua unidade não é
aquela baseada na oposição entre o um e o múltiplo, o objeto e a
consciência que lhe dá sentido, uma vez que aqui a referência que liga o
diverso é estrutura intrínseca a esse diverso, é a própria qualidade
ontológica de um fluxo que se afiança como abertura interna, não ser
constitutivo que o faz passagem e dissolução contínua, configurando a
“unidade primordial e natural” de uma composição feita pela afinidade
originária entre o ser e o nada. O tempo é a passagem oferecida a tudo
aquilo que haverá de ser com a finalidade de não ser mais. Ele não é
outra coisa senão a evasão geral para fora do si, a lei única desses
movimentos centrífugos (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 562).
O tempo é o ser ou a unidade que se assegura e sustenta
precisamente como abertura e transcendência, negatividade intrínseca:
os momentos conservam-se porque eles não são senão o seu próprio
passar, de maneira que sua deiscência não é uma pura negação, porém a
realização mesma de seu ser, fundamento que nada pode recusar, e se o
tempo não é um puro ser, ele também não é um puro nada.
Nas palavras de Merleau-Ponty (2006, p. 563): Dessa forma, quando esta se realiza e o impele
para o passado, ela não o priva bruscamente de
ser, e sua desintegração é para sempre o avesso ou
a consequência de sua maturação. Em suma, como
no tempo ser e passar são sinônimos, tornando-se
passado o acontecimento não deixa de ser. [...]. O
tempo conserva aquilo que faz ser no próprio
momento em que o expulsa do ser, porque o novo
ser era anunciado pelo precedente como devendo
ser e porque para este era a mesma coisa tornar-se
presente e ser destinado a passar.65
65 Na versão original: De sorte que, quand celle-ci se réalise et le pousse au passé, elle ne
le prive pas brusquement de l'être et que sa désintégration est pour toujours l'envers ou
laconséquence de sa maturation. En un mot, puisque dans le temps être et passer sont
synonymesm en devenant passé, l'événement ne cesse pas d'être. Le temps maintient ce
qu'il a fait être, au moment même où il le chasse de l'être, parce que le nouvel être était
155
Se existe distinção interna, há sempre um investimento, um
delineamento geral e uma direção privilegiada, um ser estabelecido de
uma vez por todas que une o homem e o impede de ser uma simples
liberdade desengajada e imotivada, que colocaria sua situação ao invés
de responder-lhe. Se a temporalidade oferece-nos outra medida do ser, é
justamente por realizar essa relação em que o ser e o nada não se
contrapõem, em que o vir a ser e o deixar de ser são dois momentos
estruturais de um singular ser que se afirma e se conserva exatamente
enquanto passagem.
O ser temporal é o ser cujo significado é o de deixar de ser sem
tornar-se coisa alguma, cooptando por sua própria “fluxão”, não estando
fechado em si, porém transcendendo-se em direção a esses horizontes,
cada presente traceja naturalmente uma integração e uma estabilidade:
há um só tempo que se aceita a si mesmo, que não pode trazer nada à
existência sem já tê-lo repousado como presente e como passado por vir,
e que se estabelece por um só movimento. Aquisição e abertura, o tempo
é movimento simultâneo de dissolução e de fundação, ou antes, ele é o
movimento que torna um e outro mutuamente constitutivos: é por uma
fissura que o ser se mantém e é pelo ser que o nada se realiza. Afirmará
Merleau-Ponty (2006, p. 606) que, se é pela subjetividade que nenhuma
coisa aparece no mundo, podemos notar ainda que é pelo mundo que
essa nenhuma coisa vem ao ser.
Segundo a análise de Moura (2006, p. 137): É por isso que o Cogito não é, e mesmo exclui, a
imanência do sujeito, pois a subjetividade só se
realiza através de sua transcendência e de seu ser
no mundo. Se o presente é, como afirma Merleau-
Ponty, a principal dimensão do tempo, justamente
porque nele o ser e a consciência coincidem, resta
que isso não significa uma posse objetiva de si e
do mundo, uma reposição da imanência como
fundamento primeiro da experiência: o presente
não é puro, não é um objeto posto, pois a presença
a que ele dá acesso envolve sempre a abertura a
horizontes que, não apenas não dependem do eu,
como o fazem transcender e envolver-se em uma
situação da qual não é o autor, fazendo da
presença a si necessariamente presença ao mundo.
annoncé par le précédent comme devant être et que c'était la même chose pour celui-ci
de devenir présent et d'être destiné à passer (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 480).
156
A subjetividade afirma o não ser da experiência, rompendo a
plenitude do ser em si, projetando uma perspectiva finita, uma gestalt e
uma composição, que permitem o movimento de deiscência temporal.
Contudo não se trata de uma posição, mas somente da consideração e da
concreção de uma intencionalidade e de um acesso que se fazem
diretamente pela estrutura de cada momento: o tempo sugere um sujeito
porque é necessária alguma pessoa para que a abertura e a lógica de
horizontes possam concretizar-se.
A união ou a constância que replica pela subjetividade não é,
assim, nem uma dimensão extrínseca ao fluxo e nem um ato posicional,
mas é a implicação mesma existente na relação intrínseca à
multiplicidade dos instantes temporais. Longe de ser identidade ou
imanência, o sujeito é justamente a deiscência que não se assegura senão
em suas realizações ou aparições concretas, em que se caracteriza e se
afasta de si mesmo.
A temporalidade é exatamente essa espécie de dialógica entre o
constituinte e o constituído: o tempo enquanto precipitação geral é
intrínseco às suas realizações palpáveis e singulares e, por aqui, começa-
se a especificar a maneira pela qual a temporalidade garante,
concomitantemente, a passividade e a atividade humanas.
No dizer do filósofo francês: É aqui que a temporalidade ilumina a
subjetividade. Nunca compreenderemos como um
sujeito pensante ou constituinte pode pôr-se ou
perceber-se a si mesmo no tempo [...]. Mas, se o
sujeito é temporalidade, então a autoposição deixa
de ser uma contradição, porque ela exprime a
essência do tempo vivo. O tempo é ‘afecção de si
por si’: aquele que afeta é o tempo enquanto
ímpeto e passagem para um porvir, aquele que é
afetado é o tempo enquanto série desenvolvida
dos presentes; o afetante e o afetado são um e o
mesmo, porque o ímpeto do tempo é apenas a
transição de um presente a um presente66
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 270-271).
66 Na versão original: C'est ici que la temporalité éclaire la subjectivité. Nous ne
comprendrons jamais commet un sujet pensant ou constituant peut se poser ou
s'apercevoir lui-même dans le temps. [...] Mais si le sujet est temporalité, alors
l'autoposition cesse d'être une contradiction, parce qu'elle exprime exactement l'essence
du temps vivant. Le temps est 'affection de soi para soi': celui qui affecte est le temps
comme poussée et passage vers un avenir; celui qui est affecté est le temps comme série
développée des présents; l'affectant et l'affecté ne font qu'un, parce que la poussée du
157
É desse modo que a temporalidade sustém a tensão de uma
subjetividade ao mesmo tempo subordinada e indeclinável: a
precipitação indivisa que se alcança como projeção na multiplicidade e
da multiplicidade funda, ao mesmo tempo, uma presença a si e uma
presença ao mundo, uma atividade e uma inclusão em uma síntese cujo
processo se dá fluentemente. É isso que indicava a noção de síntese
passiva, ao ensinar que o tempo instaura concomitantemente nossa
abertura ao mundo e, por ela mesma, nossa abertura a nós mesmos e
nossa probabilidade de agir.
Abertura ao mundo e a si, o privilégio, já apontado, do presente
na temporalidade transcorre justamente de ser ele essa extensão em que
o ser e a transcendência se cruzam, garantindo concomitantemente o
peso de um passado, de um adquirido, e a força humana de abri-lo e
polarizá-lo ao porvir. Um tempo que não possuísse, por seu presente,
raízes no passado e uma aquisição, nem sequer seria tempo, pois
reforçaria uma espontaneidade independente, uma atividade
incondicional e, com elas, a eternidade de uma subjetividade sem
engajamento. Ao contrário, o presente certifica que toda transcendência
e toda abertura envolvam continuamente nosso acordo com o ser e com
sua lógica espontânea, impedindo que existam decisões puras e
imotivadas.
Segundo o ponto de vista de Moura (2006, p. 144): É por essa razão que a temporalidade ilumina a
compreensão da liberdade humana, pois ela nos
ensina uma imbricação ontológica entre a
transcendência e o engajamento que não pode
deixar intacta o sentido desses termos. Enquanto
temporalidade, a atividade humana deixa de ser
uma espontaneidade pura ou uma negação
absoluta sem vínculos com o ser e com o mundo,
para tornar-se uma espécie de deslizamento pelo
qual uma situação aberta é modulada e assumida,
realizando-se como o avesso constitutivo de nosso
engajamento, negatividade adquirida, que é
preservada pelo ser e o preserva na mesma
medida.
Como expõe Merleau-Ponty (2006, p. 584), é precisamente a
concepção do ser e do nada como definitivamente diversos e opostos o
pressuposto da reflexão que delimita a liberdade como um poder temps n'est rien d'autre que la transition d'un présent à un présent (MERLEAU-PONTY,
1945, p. 486-487).
158
incomensurável de evasão, compreendendo-a como uma pura
negatividade ou transcendência, operação incondicional de significação
que nada deve ao dado ou ao ser. Partindo da dissensão integral entre o
ser e o nada, colocamos a alternativa de que ou a liberdade é total (uma
pura negatividade) e, portanto, nada pode atuar sobre ela (os motivos
são apenas símbolos de sua onipotência) ou não existe liberdade, porque
qualquer restrição, qualquer consideração de uma influência externa,
prontamente a coloca na região do ser e a recusa. Se há liberdade, é
necessário que ela seja total, só podendo ser balizada por aquilo que ela
própria gerou como limite, fazendo do que lhe é exterior não mais que
um produto de sua atividade constituinte, um ser constituído
definitivamente distinto dela própria (MOURA, 2006, p. 144).
Todavia, por isso mesmo, essa espécie de liberdade a inviabiliza,
porque, opondo homem e mundo como ontologicamente diferentes, ela
torna impraticável a abertura e a relação entre eles, sem as quais a
liberdade não pode vir a ser um acontecimento concreto, uma realidade
palpável que se concretiza como fazer e ação: entendida como puro não
ser, a liberdade não pode surgir no mundo, transformando-se em uma
abstração; a própria ideia de ação livre apaga-se, devido à carência de
um fundo em que ela possa manifestar-se, de uma distinção que ela
possa realizar e na qual possa se assegurar; ela se torna, enfim, uma
espécie de aquisição ou de natureza, negando-se, assim, como liberdade
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 585).
Contrariamente, é exatamente na conexão entre o ser e o nada que
a temporalidade estabelece a liberdade, e é por isso que cabe a ela
replicar a probabilidade de uma ação livre e concreta que se faça no
mundo, porque é o tempo quem escora a liberdade, pois é ele quem a faz
ser no mundo, respondendo pelo contrassenso sempre reencontrado
entre inserção e abertura. Sob o ponto de vista temporal, cada ação
singular, cada instante individual não se compõe senão como abertura e
referência a um fluxo e a uma integração que não são gerados por ela,
que fluem facilmente de seu presente, fornecendo a consistência e a
espessura necessárias para que ela possa ser e fazer-se no mundo
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 586).
Enquanto lugar de presença, o sujeito só se realiza através da
síntese espontânea do mundo, “sendo em” uma situação que o extrapola,
mas que, por isso mesmo, o abre para si e para horizontes que, não
sendo fornecidos, abarcam e solicitam sua ação. Ele não é, desse modo,
uma intencionalidade de ato que colocaria seu objeto, porém um tipo de
projeto ou de abertura existencial que “está” no termo que visa, que nele
se perde e se realiza. O tempo nos proporciona uma lógica e uma
159
imbricação recíproca entre o constituinte, o ímpeto indiviso e o
estabelecido, suas revelações palpáveis em um mundo, segundo as quais
um não se realiza senão como certa expressão ou declaração do outro; o
ímpeto indiviso, a abertura ou a deiscência do presente ao porvir são a
própria realização da estrutura ontológica desse presente, enquanto ele
não é senão uma passagem ao porvir e certa dissolução do todo, de
modo que é na abertura intrínseca ao fluxo que se abriga a
transcendência, tornada expressão da transição espontânea e constitutiva
de um “ser em” a outro (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 598).
Esse fato acontece porque cada circunstância e cada presente não
são seres puros, mas abertura e transcendência, que a liberdade só pode
realizar-se “esposando” a lógica espontânea do mundo, adotando uma
situação que, exatamente porque a limita, abre-a ao porvir e ao possível.
Nosso engajamento ampara nossa potência, e não há liberdade sem
alguma potência. Longe da alternativa entre o ser e o nada, o que a
temporalidade manifesta é a relação constitutiva entre eles, o negativo
como estrutura inerente de um ser que se afiança como passagem e
dissolução, de modo que a apreensão da liberdade só pode fazer-se na
intersecção entre o “ser em” um mundo e a “potência de niilizar” que
nos é dada por esse próprio ser (MOURA, 2006, p. 146-147).
Na própria explanação de Merleau-Ponty (2006, p. 608): O que é então a liberdade? Nascer é ao mesmo
tempo nascer do mundo e nascer no mundo. O
mundo já está constituído, mas também não está
nunca completamente constituído. Sob o primeiro
aspecto, somos solicitados, sob o segundo somos
abertos a uma infinidade de possíveis. Mas esta
análise ainda é abstrata, pois existimos sob os dois
aspectos ao mesmo tempo.67
É a condição negativa do ser, sua composição ontológica híbrida,
que sustém a dupla dimensão da existência: o homem é passivo porque o
mundo se apresenta para ele como mensageiro de uma ecceidade
própria, síntese em curso que se assevera por sua própria dissolução,
pela abertura interna que a desdobra e a mantém; no entanto, por isso
mesmo, essa união não é um dado, seus horizontes não estão fundados,
sugerindo uma dimensão subjetiva para poderem se concretizar, de 67 Na versão original: Qu'est-ce donc que la liberté? Naître, c'est à la fois naître du
monde et naître au monde. Le monde est déjà constitué, mais aussi jamais complètement
constitué. Sous le premier rapport, nous sommes sollicetés, sous le second nous sommes
ouverts à une infinité de possibles. Mais cette analyse est encore abstraite, car nous
existons sous le deux rapports à la fois (MERLEAU- PONTY, 1945, p. 517).
160
modo que, se o mundo requer e situa o sujeito, ele, no mesmo
movimento, abre-o e afirma sua liberdade. Enquanto não é um ser puro
ou determinado, o mundo pode ser, ao mesmo tempo, uma unificação e
uma abertura, uma síntese que se faz e uma latência que pede a atividade
que a retome. Ele próprio traz a contradição existencial à qual o sujeito
remete, organizando-se como um misto de passividade e atividade,
generalidade e singularidade (MOURA, 2006, p. 147).
Todavia essa apresentação original e geral do mundo, seu modo
óbvio que faz do próprio sujeito uma presença geral dada a si própria,
não se assegura como um puro fato que decidiria o comportamento e a
liberdade, e sim como a concreção espontânea entre um presente, um
passado e um porvir, como o primeiro delineamento de um fluxo e de
uma unidade temporais, aludindo, por isso mesmo, a uma dimensão
subjetiva: a generalidade do mundo, e correlativamente a do eu, se
ajusta na abertura originária de um ao outro, garantida por um tempo ele
próprio generalizado, encarregado de responder pela fusão entre homem
e mundo, mediação originária entre o para si e o em si (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 608).
Segundo Moura (2006, p. 148-149): Enquanto se afirma espontaneamente pela relação
natural do homem com o mundo, do corpo com
seu ambiente, o tempo assegura o solo de toda
unidade, ao mesmo tempo como dado e como
abertura: afirmando-se como dissolução, o tempo
“pré-pessoal” pode apenas esboçar um
envolvimento efetivo e uma subjetividade pessoal,
mas por isso mesmo, ele impede que estes
repousem em uma pura atividade constituinte,
oferecendo-se como fundo sempre presente [...].
Se não há liberdade absoluta é justamente porque
não há um puro nada que sustentaria um puro ser,
mas o envolvimento de um no outro sustentado
pela temporalidade, garantindo uma síntese e uma
unificação em curso, existência originária de algo,
unidade aberta que ao mesmo tempo situa e
implica a liberdade humana [...]. Assim, a
comunicação entre a generalidade e o singular não
pode repousar em um puro ato, pois isso reporia a
cisão entre situação e liberdade, alojando-se ao
contrário, na própria dinâmica temporal, enquanto
esta responde por um singular que não é senão
uma certa expressão da deiscência total, e,
reciprocamente, por essa deiscência que se unifica
161
justamente enquanto passagem e transcendência
constitutiva de cada singularidade às demais.
O que a temporalidade instrui é a alusão espontânea e estrutural
de uma perspectiva às outras, de uma singularidade à unidade ou ao
sentido geral do fluxo, proporcionando-nos um movimento cujo
protótipo não encontramos em uma subjetividade autônoma, mas
exatamente no mundo, enquanto núcleo do tempo, que aparta o presente
do apresentado e, ao mesmo tempo, compõe-nos, isto é, enquanto
estrutura que faz do particular abertura ao geral, do “ser em” abertura ao
sentido e ao ímpeto único e, mutuamente, que faz desse ímpeto e desse
geral aberturas do “ser em” e do singular, graças às quais eles se
realizam e se mantêm (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 445).
Por esse viés, não é preciso escolher entre situação e liberdade,
pois, sob o aspecto temporal, uma se torna constitutiva da outra:
enquanto presente, o ser no mundo já é abertura e transcendência;
enquanto abertura, a liberdade já é uma circunstância e sua passagem à
outra; o ser já é certa asseveração da transcendência, e esta é uma certa
extensão do ser, de modo que um não se faz senão como declaração
implícita e realização indireta do outro. Afinal, se não existe liberdade
sem campo, distensão sem inserção, é porque o tempo atua em uma
intercessão estrutural entre o ser e o nada, entre a aquisição e a
espontaneidade.
É por essa razão que incumbe ao tempo, finalmente, tornar
compreensível a afinidade entre o exterior e o interior, entre a natureza e
a consciência, admitindo formular outra noção de sentido que não
acarrete a oposição entre o para si e o em si. Se o sentido, não pode ser o
objeto arquitetado por uma atividade centrífuga de significação, se o
corpo e a percepção nos mostram uma relação com o objeto que não
realiza atualmente sua síntese – uma abertura que o encontra em sua
ecceidade, afirmando a “presença do mundo” no interior do sujeito – e
se, enfim, a fenomenologia desponta agora um logos centrado em uma
união espontânea que ignora a cisão entre sujeito e objeto, é
precisamente porque o homem não é senão ek-stase e temporalidade
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 575).
Enquanto união espontânea estruturada na própria multiplicidade,
a temporalidade atinge aquela referência natural da matéria à forma, da
existência ao sentido e, na fronteira, do homem ao mundo, atando cada
perspectiva finita à lógica espontânea dos horizontes que escoram toda
unificação e toda síntese. Se o sentido implica o sujeito, é justamente
enquanto esse não é senão “o alguém” que visa e apoia a abertura por
162
meio da qual o fluxo se diferencia internamente e se assegura como
dissolução – isto é, exatamente enquanto abertura à abertura do mundo:
negatividade comum que impede os horizontes de repousarem em si,
afirmando o mundo como síntese em curso que depende e solicita uma
generalidade e uma atividade humanas, e o homem como fuga geral do
si, que se realiza tomando lugar na passagem espontânea de um
momento ao outro pelo qual a sua generalidade e a consistência do
mundo se realizam (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 576).
É, pois, aquela relação de ser que a temporalidade certifica,
estabelecendo um logos mais originário do que aquele fincado na
oposição entre o ser e o nada. Evitando o homem de “fingir ser um
nada” que se elege perpetuamente, e o mundo de ser um puro em si
totalmente determinado, a temporalidade traz para o núcleo da
existência a dialógica entre situação e liberdade, aquisição e abertura,
replicando a contradição sempre localizada no cerne das descrições do
filósofo. Enquanto ponto de intersecção dessas duas dimensões,
mediação entre o para si e o em si, ela ampara a imbricação que torna
homem e mundo ontologicamente coesos, ao mostrar um ser que só se
concretiza como abertura, e um nada que só se efetiva como estrutura
própria ao ser: é o tempo, enfim, o designado por responder pela
afinidade de ser entre homem e mundo (MERLEAU-PONTY, 2006, p.
577).
163
4 CINEMA, SER E A NOVA PERSPECTIVA ONTOLÓGICA
Neste último capítulo, iremos analisar a ideia de que o corpo, o
filme, a imagem e o visível e o invisível, enquanto elementos da minha
carne e carne do mundo, mostram e são a dimensão ontológica do ser e
das coisas. A experiência do cinema constitui, portanto, abertura e
atração recíproca entre o vidente e o visível, o ser e o mundo, como
expresso na relação entre filósofo e cineasta, e em certa obra
cinematográfica contemporânea.
4.1 CARNE, MUNDO E VISIBILIDADE
Presente nas primeiras páginas da obra “O visível e o invisível”, o
termo “carne”, ou a expressão “a carne do mundo” indica uma nova
dimensão da análise fenomenológica feita por Merleau-Ponty. Podemos
considerar que a teoria ontológica desse livro aponta certa ruptura com
seus trabalhos anteriores. A questão se essa ontologia representa um
abandono da fenomenologia parece um ponto relevante.
Observamos que, ao expor como pretende desenvolver seu
enfoque ontológico, nesse seu livro, Merleau-Ponty (2009a, p. 155) diz
ser imprescindível abandonar expressões como “atos de consciência”,
“matéria”, “forma” e “percepção”. Para esta última, por exemplo, pode-
se utilizar “fé perceptiva”. As razões para tal rejeição residem no fato de
que a percepção supõe um corte da experiência em ações descontínuas,
um correspondente espacial e material, e parece eliminar um domínio do
invisível, isto é, na atividade perceptiva, o sujeito só se referiria ao
regime daquilo que é presente, sem nem mesmo reconhecer a existência
de extensões que se afastam da doação sensível. O emprego da
expressão “fé perceptiva” viria resolver esses problemas. A fé
perceptiva é uma espécie de doação em carne.
Entre os autores que acreditam que “O visível e o invisível” traça
uma mudança da fenomenologia para a ontologia, podemos destacar
Dillon (1997, p. 34-36), para quem Merleau-Ponty estabelece um ponto
máximo na ontologia ocidental, pois essa ontologia difere da ontologia
sustentada por Kant, Hegel, Husserl, Heidegger ou Sartre, ou seja, os
principais filósofos que influenciaram Merleau-Ponty, porque, em linhas
gerais, ele conseguiu elaborar o desenvolvimento do fenômeno da sua
esfera imanente e restaurar o transcendente.
Uma ideia que vamos sublinhar é a preocupação obsessiva de
Merleau-Ponty para superar a dicotomia cartesiana entre corpo e alma.
A natureza misteriosa do corpo não parece ser algo da natureza de uma
164
substância medida e imperfeita (res extensa), tal como a alma não
parece ser uma substância pensante (res cogitans). O principal
argumento é que, se há duas substâncias separadas uma da outra,
necessitamos de alguma coisa que possa explicar a união de corpo e
alma para se ter um ser humano, um indivíduo.
A união do corpo e da alma implica uma unidade do ser, não uma
separação das duas substâncias, então consideramos, nessa perspectiva
ontológica, um fundamento para rejeitar a dicotomia da aparência e da
realidade. As coisas em torno de nós, o mundo no qual vivemos (o
mundo vivido) possui uma película pela que passamos os olhos quando
entramos em contato com a coisas. Mas todos sabem que não é apenas
uma aparência, e que, em cada coisa, há uma profundidade, uma
espessura que nossa percepção pode capturar.
Se, do ponto de vista epistemológico, a dicotomia cartesiana
conduz à separação entre o sujeito de conhecimento e o objeto de
conhecimento (uma dicotomia presente na filosofia moderna), do ponto
de vista fenomenológico, a distinção entre o fenômeno e a essência é
muito importante para o tema aqui proposto. Podemos acrescentar a
esses elementos teóricos e históricos a célebre dicotomia sartreana entre
o ser das coisas (o ser em si) e o ser de consciência (o ser para si).
Merleau-Ponty não aceita essa distinção, mostrando que o homem
está essencialmente no mundo. O homem não é um corpo unido com
uma alma, mas é uma verdadeira unidade. O homem não é uma junção
de duas substâncias; assim temos necessidade de uma explicação dessa
unidade do indivíduo. Em outras palavras, o corpo não é uma coisa (o
ser em si), como uma mesa ou uma caneta, mesmo que, às vezes, seja
verdade que ele é utilizado assim. Também a alma não é um simples ser
para si, mesmo que o mundo da consciência possa existir à parte de
alguma coisa, como é o caso da cultura, por exemplo.
De acordo com Merleau-Ponty (2009a, p. 18-19), o “ser em si” e
o “ser para si”podem ser superados pela noção do “ser-no-mundo” (être
au monde). O homem está essencialmente no mundo, em termos
ontológicos, epistemológicos ou fenomenológicos. Nosso acesso ao
mundo se faz exatamente do interior do mundo. Não podemos estar fora
do mundo, quando queremos conhecer o mundo, perceber o mundo e
falar do mundo. Esse acesso ao mundo, este “ser-no-mundo” é
exatamente a corporalidade.
Percebemos que, em “O visível e o invisível”, o problema da
corporeidade é aprofundado pela noção de carnalidade; mas a carne não
é a célebre matéria dos filósofos, a saber, corpúsculos do ser que se
ajuntam para formar todos os seres. A carne não é também algo psíquico
165
que seria feito pelas coisas existentes, nem tampouco a matéria, nem a
mente; a carne é um tipo de elemento, no sentido usado pelos gregos,
quando eles se referiam à água, ao ar, à terra e ao fogo. Longe de ser a
substância do mundo, a carne é seu princípio, um elemento do ser
(MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 135-136).
Notamos que o ser é fundamentalmente carnal. Quando vemos,
tocamos, percebemos as coisas ao nosso redor, elas estão, ao mesmo
tempo, muito próximas de nós, por essa unidade de mundo vibrante,
distante pela espessura do nosso olhar. O olhar revela-nos as coisas, mas
também as esconde. A aproximação e o distanciamento entre o
observador e o observado mostram também uma espessura da carne, que
de fato é uma possibilidade de comunicação, e não um obstáculo
(MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 131-132).
Está claro porque o visível aparece como a qualidade impregnada
de uma textura, a área de uma profundidade, um corte sobre um único
ser, um grão ou uma partícula transportada por uma onda de ser. O
totalmente visível está sempre atrás de nós, ou entre os aspectos que
vemos; de modo que um acesso para o visível é feito de uma experiência
localizada fora. O corpo comanda, assim, o visível, mas não o ilumina,
se estamos considerando as duas partes (folhas) do nosso corpo: o corpo
sensível e o corpo sentiente, ou seja, o corpo objetivo e o corpo
fenomenal (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 133).
Se a carne é o princípio do mundo e se o ser carnal pode ser
percebido, pode ser sentido, parece, então, que, entre a carne e o visível,
existe uma relação de identidade. Notamos que a teoria merleaupontiana
é mais complexa: entre a carne, de um lado, e o visível e o invisível, de
outro, há um vínculo especial, nomeado de “entrelaçamento”, o
“quiasma”. Assim, não podemos dizer simplesmente que a carne é o
visível do mundo, mas a carne é um invólucro do visível sobre o corpo
vidente, um envelopamento do tangível sobre o corpo tangente.
Essas duas características do ser carnal podem ser vistas muito
claramente nesta imagem: como tangível, o corpo é uma coisa como
outra coisa, o corpo “descente” entre as coisas; em troca, como tangente,
o corpo é diferente das coisas (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 137-
138). O autor utiliza, nesse contexto, um termo biológico (ou, mais
precisamente, uma expressão da Botânica), que é a “deiscência”, ou
seja, a abertura espontânea de uma fruta quando ela atingiu a sua
maturidade. A carne, portanto, é a deiscência do vidente no visível e do
visível no vidente.
Segundo Merleau-Ponty (2009a, p. 141):
166
[...] a carne de que falamos não é a matéria.
Consiste no enovelamento do visível sobre o
corpo vidente, do tangível sobre o corpo tangente,
atestado sobretudo quando o corpo se vê, se toca
vendo e tocando as coisas, de forma que,
simultaneamente, como tangível, desce entre elas,
como tangente, domina-as todas, extraindo de si
próprio essa relação, e mesmo essa dupla relação,
por deiscência ou fissão de sua massa.68
Essa a noção de carne tem por objetivo ultrapassar as barreiras
dos primeiros trabalhos no entendimento do ser, extrapolar os limites
que a noção de consciência ainda infligia à noção de corpo fenomenal,
ao colocar nele uma diferença intransponível com o corpo objetivo, que
a “Fenomenologia da percepção”, todavia, buscava suplantar. Em suma,
a carne é princípio de diferenciação sensível entre o dentro e o fora, de
um mesmo corpo ou de um corpo e outro: meu corpo (e o do outro) é
um tocante-tocado, vidente-visível, sentiente-sensível, sem que esses
dois lados possam se fundir um no outro, o que extinguiria a
manifestação que se faz entre eles (FURLAN, 2011, p.101-102).
O corpo é uma coisa entre as coisas no sentido de que faz parte
das coisas sensíveis; não é simplesmente uma coisa visível, mas ele é o
visível; não é uma coisa visível de facto, mas é o visível de jure. Se o
corpo toca e vê, não é simplesmente pelo fato de que há visíveis diante
dele, mas pelo fato de que esses visíveis entram nele, em outras
palavras, porque eles já estão nele. Como o visível e o tangível são de
uma mesma família, o corpo usa seu ser como um utensílio para
participar do ser deles, cada um dos dois seres sendo um arquétipo, um
para o outro. Os corpos reportam-se à ordem das coisas, de semelhante
modo como o mundo é a carne universal (MERLEAU-PONTY, 2009a,
p. 134).
No entendimento de Furlan (2011. p. 102): A visibilidade e o tato, manifestações exemplares
da carne, é o que nos separa das coisas, abre
distância ou espaço, e nos une a elas, à sua
68 Na versão original: [...] la chair dont nous parlons n'est pas la matière. Elle est
l'enroulement du visibel sur le corps voyant, du tangible sur le corps touchant, qui est
attesté notamment quand le corps se voit, se touche en train de voir et de toucher les
choses, de sorte que, simultanément, comme tangible il descend parmi elles, comme
touchant el les domine toutes e tire de lui-même ce rapport, et même ce double rapport,
par déhiscence ou fission de sa masse (MERLEAU-PONTY, 2006a, p. 189).
167
presença. [...]. Em outros termos, o princípio de
diferenciação sensível, operado pela carne,
também é princípio de integração, Ineinander (um
no outro) ou ser de indivisão. O lado de dentro
surge do lado de fora, como uma espécie de
invaginação sensível, que inaugura uma tensão e
um movimento no lado de dentro de “integração”
com o lado de fora, formando uma [...] “unidade”
ou campo de uma vida [...].
Aqui é importante destacar e aprofundar a ideia merleaupontiana
das duas folhas. Vemos o mundo sem deixar o mundo e
simultaneamente percebemos o mundo sem sair de nós mesmos. A razão
para esse desempenho é que o corpo sentiente e o corpo sentido são
como a face e o reverso de uma moeda, ou como dois segmentos de uma
única trajetória circular que, visto de cima de uma corrida, está se
movendo da esquerda para a direita, e, visto de baixo, caminha da direita
para a esquerda; porém há um único movimento nessas duas fases.
Se o corpo é a carne do mundo, onde está o limite de mundo? O
mundo está no meu corpo? O corpo está no mundo visível? Novamente
temos aqui a ideia do entrelaçamento, do quiasma que, como já foi dito,
será pormenorizado posteriormente. Quando percebemos as coisas,
nosso olhar varre a película superficial do visível, mas essa película não
é apenas para minha visão, ela está disposta em relação ao meu corpo
(porque eu não tenho a capacidade de ver para dentro das coisas). No
entanto, a profundidade das coisas contém o corpo e contém minha
visão. Assim, o corpo como visível é contido nesse espetáculo
grandioso. O corpo vidente estende por baixo o corpo visível e também,
ao mesmo tempo, todos os visíveis com ele. Há, dessa forma, uma
imbricação de um no outro (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 134-135).
Para abolir a dicotomia do “ser em si” e “ser para si”, Merleau-
Ponty analisa a relação da carne com a ideia entre o visível e a armadura
interior que a mostra e que a esconde. Para isso, o autor recorre a uma
ideia de Proust, quando ele fala de ideias musicais, produções culturais
ou da essência do amor. Trata-se da noção de sintagma, de composição,
a frase que mostra o amor do personagem Swann e que é assim
comunicada a todos que a escutam. A literatura, a música, o cinema, as
paixões e, em geral, as experiências do mundo visível, representam,
tanto quanto exploram, um invisível que vai desvendar um mundo das
ideias (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 144-145).
168
O invisível não pode ser separado da sua aparência sensível, de
modo que a ideia musical, a ideia literária ou o amor têm a grande
vantagem de falar a nós; eles têm sua própria lógica, sua coerência, seu
corte e sua concordância. Essas ideias não poderiam ser mais bem
conhecidas sem o nosso corpo e sem a nossa sensibilidade; elas não
podem ser dadas sem uma experiência carnal (MERLEAU-PONTY,
2009a, p. 146).
As ideias são o invisível deste mundo, aquele que o habita, que o
mantém e o torna visível. Quando falamos, tocamos ou quando o músico
executa as notas musicais, uma lacuna é eliminada, como se produzisse
uma iluminação de algo que já foi presente. Os modos de exibição do
som e do tato falam-nos, possuem sua lógica própria, sua coerência, suas
concordâncias.
De acordo com Merleau-Ponty (2009a, p. 147-148), são as ideias
que nos possuem e não o contrário. Aqui vemos o mesmo resultado
referente ao caso das coisas: quando percebemos as coisas e, em
seguida, as explicamos, não somos nós que falamos das coisas, mas são
as coisas que falam por nós. E também não é o intérprete que canta uma
canção, mas ele se sente a serviço da canção: ela se canta por ele. Há, de
fato, um tipo de idealidade que não é tão estranho à carne, mas que lhe
dá as coordenadas, a profundidade e as dimensões.
Dizemos ainda que mesmo essa espécie de idealidade não ocorre
sem a carne, não se constitui sem as estruturas de horizonte; a idealidade
vive realmente nelas, mesmo que se trate de outra carne, de outros
horizontes. É como se a visibilidade que anima o mundo sensível
emigrasse em um corpo menos pesado, porém mais transparente; como
se a visibilidade mudasse a carne, abandonasse a carne do corpo em
favor da carne da linguagem.
Nas palavras de Furlan (2011, p. 102-103): Ora, a despeito dessa tentativa de unificação
ontológica através da noção de sensível, há um
privilégio de minha carne em relação à carne do
mundo, porque é através dela que o sensível se
reflete, se sente, se toca ou se vê. É através da
vida humana que a noção de carne ganha sentido
pleno, ou que a relação entre o lado de dentro e o
lado de fora aparece, enfim, como dimensão
ontológica do sensível [...]. Por isso o lado de
dentro da carne do mundo aparece como
“profundidade”, “invisível”, “ideia”, que não é a
mesma coisa que o lado de dentro de minha carne,
que, além de comportar tais termos, pressupõe
169
uma estesiologia privilegiada porque se abre para
a carne do mundo [...].
Desse modo, a carne é uma dimensionalidade marcada tanto por
uma imanência, como por uma transcendência, isto é, por uma estrutura
profunda de entrelaçamento. Como “deiscência” ou explosão
(éclatement), ela se recusa a ser fixada e possuída; ela funciona como
uma desapropriação. Essa densidade quiasmática da carne é também
constitutiva da visibilidade, o emblema, para Merleau-Ponty, da
sensibilidade como tal. Já a invisibilidade que é coextensiva com a
presença visual é, por assim dizer, o seu outro lado. A invisibilidade
pertence, então, à presença visual como tal e, por isso, não nega a ela. O
invisível é aqui pura transcendência sem uma máscara ôntica. E os
próprios visíveis estão, em última análise, somente centrados sobre um
núcleo de ausência (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 210-211).
Podemos agora retornar à questão colocada no início, a respeito
de uma teoria ontológica contida no livro “O visível e o invisível”.
Podemos afirmar que Merleau-Ponty não abandona totalmente a
fenomenologia, embora a principal preocupação seja a ontologia.
Mesmo com muitas análises de grande riqueza metafísica, o filósofo
francês segue as principais linhas mestras traçadas no prefácio da obra
“Fenomenologia da percepção”, em que mostra principalmente que
fenomenologia é o estudo das essências reintegradas na existência.
Como filosofia transcendental, a fenomenologia suspende as
afirmações da atitude natural, mas também é uma filosofia que sustenta
com propriedade que o mundo está sempre lá. Por seu entendimento de
que o maior ganho é o de unir, na noção de mundo, o extremo
subjetivismo e o extremo objetivismo, Merleau-Ponty faz uma
importante delimitação teórica, tanto em comparação com Husserl,
como em comparação com Heidegger. Assim como o mundo, a
racionalidade é a intersecção de perspectivas, combinação mútua de
percepções, conduzindo ao sentido, conduzindo à significação. O mundo
não é uma pura existência, mas o sentido que aparece na intersecção de
nossas experiências com aquelas de outrem (MERLEAU-PONTY,
2006, p. 19).
Sabemos que a principal preocupação de Merleau-Ponty foi, tanto
na “Fenomenologia da percepção”, como em “O visível e o invisível”, a
ontologia fenomenológica, talvez mostrada pelo fato de que ele realçou
fortemente a dimensão ontológica de sua abordagem fenomenológica. Já
em sua conferência, “O filósofo e sua sombra” (1959), ele argumenta
que a fenomenologia não é nem materialismo, nem uma filosofia do
170
espírito. Sua operação principal é a de revelar a camada pré-teórica, em
que as duas idealizações encontram seu direito relativo e sua
ultrapassagem (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 268).
Dessa perspectiva, a “Fenomenologia da percepção” é uma
tentativa de responder à pergunta: como sair do idealismo sem cair na
ingenuidade? A filosofia tem, portanto, como principal preocupação, a
exploração da percepção, da arte ou da religião, a exploração do mundo
percebido e do mundo vivido, isto é, um mundo que não pode ser
considerado como menos real. A redescoberta deste mundo nos conduz
à conclusão de que, na distinção consciência-objeto, a consciência é
extremamente turva e nossos relacionamentos com os outros não são
mais as relações de um puro pensamento com outro puro pensamento.
De maneira geral, a filosofia encontra a espessura e a relação com os
problemas concretos que ela havia perdido devido às simples reflexões
sobre a ciência (MERLEAU-PONTY, 1997, p. 66).
4.1.1 Quiasma e Rizoma
Podemos dizer que é no quarto capítulo da obra “O visível e o
invisível”, intitulado “O Entrelaçamento ‒ o Quiasma” que a noção
desse conceito será desenvolvida mais intensamente. Aqui Merleau-
Ponty traça inter-relações sutis e complexas, em uma tentativa de
mergulhar mais a fundo na análise do indivíduo, articulando, neste
capítulo, a própria essência de seu pensamento fenomenológico anterior.
O que faz o filósofo francês é traçar os principais aspectos que
compõem uma estrutura quiasmática, e de onde e como ela se inscreve
na multiplicidade do ser.
O que ele chama de quiasma, marca o próprio movimento de
fenomenalização, que não é uma relação superveniente estática entre
coisas e indivíduos. Eles, em sua rica diversidade, articulam-se somente
dentro do dinamismo quiasmático da interimbricação (empiétement) e
diferenciação que faz que a deiscência ou o explodir fenomenal (éclat) seja chamada de carne. Por essa razão, qualquer análise que procure
resolver ou separar o que é aqui entrelaçado, somente conseguirá torná-
lo ininteligível, o que implica que uma filosofia que reconheça o
quiasma dependerá de um novo tipo de inteligibilidade (MERLEAU-
PONTY, 2009a, p. 240).
Falar de quiasma é realmente heterogenizar e singularizar um
movimento e uma articulação que, sendo difundida, toma múltiplas
formas. Podemos falar, por exemplo, da inter-relação quiasmática do
sentiente e do sensível, do corpo e do mundo, das modalidades
171
sensoriais umas com as outras, da visibilidade e do invisível, do eu-
mesmo e de outrem, da ideia e da carne, ou do discurso e do significado.
Estas inter-relações podem ser compreendidas em unidade apenas na
medida em que são elas próprias interligações quiasmáticas, o que
implica que não podem ser colapsadas em qualquer identidade ou
coincidência fundamental.
No entender de Merleau-Ponty (2009a, p. 235), esses múltiplos
quiasmas se amontoam em um único somente, não em termos de síntese,
de uma singular unidade sintética, mas sempre no sentido de
Uebertragung, de invasão, de imbricação, isto é, da propagação do ser.
Por essa razão, ele pode descrever o quiasma como a verdade da
harmonia preestabelecida leibniziana, uma verdade, para além disso, que
não se limita a uma singular unificação de perspectivas monádicas, mas
há uma interligação de totalidades unificadas com antecedência, por
meio da diferenciação, o que quer dizer, na verdade, articulações
quiasmáticas.
Considerando que essa harmonia preestabelecida pertence a uma
positiva ou clássica ontologia, ou seja, em uma ontologia da substância,
o pivô do quiasma é insubstancial, um “nada”. Todavia não é um nada
absoluto, um puro nada, pois há uma intimidade entre o visível e a visão,
e também essa proximidade não é recolhida a uma coincidência. As
coisas não estão lá fora por si só, já que meu olhar envolve as coisas e as
interage com a sua própria carne. Mas o que é ver uma cor, por
exemplo? Levando adiante a adoção da psicologia da gestalt, Merleau-
Ponty (2009a, p.128-129) sugere que o vermelho que vejo não pode ser
um simples choque pontual ou uma qualidade, porque, para ver o
vermelho, exige-se uma focalização, no entanto, breve.
Além disso, sua particularidade é internamente estruturada de
acordo com a sua textura ou configuração, como uma modalidade de
“plano” ou de “quente”. Esse vermelho é também uma pontuação no
campo das coisas vermelhas, o que lhe confere um significado através
de sua diferença estrutural de todos os outros vermelhos. O mesmo
comprimento de onda ou quale (película de ser sem espessura)
simplesmente não é o mesmo vermelho quando participa da bandeira da
Revolução ou das vestes de um promotor público. O sentido desse
vermelho visível é estruturado de acordo com uma imensa estratificação
invisível de relações que, silenciosamente, pesam sobre e através do
nosso olhar invisível (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 129).
Do lado do ver, o nosso olhar envolve e apalpa a coisa “como
uma coisa”, tal como sua face. Assim como uma mão antecipa a forma
do objeto que está prestes a agarrar, o olhar possui uma pré-possessão
172
do visível, uma arte de interrogação ou uma inspirada exegese. O
parentesco que permite essa solicitação é forjado por meio do estatuto
essencial do corpo como palpado e palpante ou como visto e vidente.
Como salienta o autor, em seu retorno à imagem husserliana, há mais
coisas em jogo do que uma simples mudança de atenção. Quando um
sujeito que toca desce ao nível das coisas, o palpante é revelado como
uma atividade inegavelmente mundana, consumada por uma consciência
corporal (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 130).
Assim, a reversibilidade do palpante e do palpado é o
distanciamento, o espaçamento ou uma imbricação (empiétement) por
meio da qual a experiência é possível, um espaçamento a priori antes da
existência e da essência. Outra imbricação, ou mesmo certo tipo de
transposição (enjambemet), ocorre entre a visão e o tato, o visível e o
tangível, e o corpo, que é o lugar dessa dobra, desvio ou quiasma. Isso
leva à necessária conclusão de que o vidente não pode possuir o visível,
a menos que aquele que vê seja possuído pelo visível. De fato, a coisa só
pode aparecer porque o vidente não é nada, e isso se deve à espessura da
carne entre o vidente e a coisa. O corpo não é apenas uma conexão entre
o “em si” e “para si”, porém é um sensível para si ou um exemplar
sensível (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 131-132).
Todo o ser corporal envolve profundidades e latências, e o corpo
humano, sensível e sentiente, é uma variante notável. Assim, a
reversibilidade do ser corporal revela um paradoxo do ser, e não um
paradoxo do homem. Diferentemente da ontologia clássica de um puro
em si mesmo e de um puro para si mesmo, o corpo pode ser
compreendido como um nó, uma intriga no tecido do mundo que é,
simultaneamente, sujeito e objeto, como uma estrutura de visibilidade.
Portanto, entre o mundo e meu corpo, há uma recíproca inserção e
entrelaçamento de um no outro (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 133-
134).
Nesse sentido, a articulação quiasmática é multidimensional. O
que Merleau-Ponty (2009a, p. 145-146) insiste é sobre o não fechamento
que permanece característica do quiasma. É esse vazio, perda não
intencional, ou hiato que permite as linhas de vigor e as dimensões da
visibilidade, sendo que o que vem à tona aqui é ausente de toda a carne,
uma negatividade que permeia essa carne e o corpo e que não é, como já
vimos, um puro nada. Na verdade, há uma deiscência do que vê no
visível, e do visível no que vê, marcando uma abertura diferenciada, um
ponto de passagem do quiasma, que é um núcleo vazio.
É importante notar que há outro conceito filosófico que seguiria,
aparentemente, algumas dessas características, mas, no fundo, diverge
173
em muitos aspectos. Trata-se do rizoma, que é uma palavra advinda da
Botânica, alusiva aos bulbos e aos tubérculos, órgãos geradores de
outras plantas, e que, quando apropriado pelos filósofos Deleuze e
Guattari (1995), significa a conexão por todos os lados e a feitura de
alianças, como uma linha do meio. O rizoma descreve as conexões que
ocorrem entre os mais diferentes e os mais semelhantes objetos, lugares
e pessoas.
Na palavra dos autores: Um rizoma não cessaria de conectar cadeias
semióticas, organizações de poder, ocorrências
que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais.
Uma cadeia semiótica é como um tubérculo que
aglomera atos muito diversos, linguísticos, mas
também, perceptivos, mímicos, gestuais,
cogitativos [...]. (DELEUZE; GUATTARI, 1995,
p. 16).
O rizoma mapeia um processo de pensamento relacional,
transversal, de rede, um modo de ser sem localização da construção
desse mapa como uma entidade fixa. Linhagens ordenadas de corpos e
ideias que seguem sua base originária e individual são consideradas
como formas de pensamento arborescente, e essa metáfora de uma
árvore como a estrutura que ordena epistemologias, enquadramentos
históricos e esquemas homogêneos é invocada pelos filósofos franceses
para descrever tudo o que o pensamento rizomático não é.
Esse conceito pode ser compreendido como um manifesto, uma
nova imagem do pensamento destinada a combater o privilégio secular
da árvore que desfigura o ato de pensar e dele nos desvia. Para os
autores, é flagrante que muitas pessoas têm uma árvore plantada na
cabeça, quer se trate de se buscar raízes ou ancestrais, de situar a chave
de uma existência na infância mais remota, ou ainda destinar o
pensamento ao culto da origem, do nascimento, do aparecer em geral
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 34).
Diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta
um ponto qualquer com outro ponto qualquer, e cada um de seus traços
não remete necessariamente a traços de mesma natureza; ele põe em
jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não
signos. O rizoma não se deixa reduzir nem ao uno nem ao múltiplo. Ele
não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções
movediças. Não tem começo nem fim, mas sempre um meio, pelo qual
174
ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p. 31).
Na explicação de Carvalho (2010, p. 161-162): O rizoma possui vários princípios, que dizem
respeito à sua forma de interagir dentro de um
sistema. Os dois primeiros são os princípios de
conexão e heterogeneidade, que requerem que
qualquer ponto de um sistema rizoma pode ser
ligado a outro ponto qualquer, ou seja, o sistema
não é uma estrutura hierárquica. O terceiro
princípio respeita a multiplicidade, cuja
importância está, não nos pontos terminais das
relações, mas no modo como essas ligações têm
lugar, ou seja, no relacionamento intersubjectivo
entre os elementos das regiões, ou seja, as linhas
entre os pontos é que são importantes. O quarto
princípio é chamado de princípio de apontamento
de ruptura e diz-nos que num rizoma pode
acontecer uma ruptura num dado ponto, mas o que
estava em curso não será interrompido e
recomeçará novamente numa das antigas linhas ou
em novas linhas [...]. O quinto e sexto princípio do
rizoma são os de cartografia e decalcomania que
nos dizem que o rizoma não é um mecanismo
traçador, mas que é à partida um mapa com
múltiplos pontos de entrada. Podemos dizer, que
pelo facto de ser um mapa encaminha a
construção do nosso subconsciente de forma
orientada no sentido de uma experimentação de
contacto com o real, reproduzindo também
sucessivamente esta experimentação pela
circulação ou intersecção em cada fase espaço em
cada ponto de entrada do rizoma. O rizoma é
portanto um sistema sem centros, não hierárquico,
um sistema não significante sem um guia e sem
uma memória organizada, ou uma central de
automação, definido somente pela circulação dos
estados, ou seja, paradigmas ou conceitos em
articulação.
Deleuze e Guattari (1995, p. 10) descrevem o rizoma como uma
ação de muitas entidades abstratas do mundo, incluindo música,
matemática, economia, política, ciência, arte, ecologia. O rizoma
concebe como cada coisa e cada corpo (todos os aspectos de concreto,
175
entidades abstratas e atividades virtuais) podem ser vistos como
múltiplos nos seus movimentos inter-relacionais com outras coisas e
corpos. A natureza do rizoma é a de uma matriz em movimento,
composta de peças orgânicas e não orgânicas, formando conexões
simbióticas de acordo com rotas transitórias e ainda indeterminadas.
Aqui, podemos falar em um pensamento rizomático, como
método do antimétodo, que comporta, pelo menos, três reflexões,
analisadas sucintamente pelo autor François Zourabichvili (2004, p. 99).
Ele diz: [...] 1) pensar não é representar (não se busca uma
adequação a uma suposta realidade objetiva, mas
um efeito real que relance a vida e o pensamento,
desloque o que está em jogo para eles, os relance
mais longe e alhures); 2) não há começo real
senão no meio, ali onde a palavra “gênese”
readquire plenamente seu valor etimológico de
“devir”, sem relação com uma origem; 3) se todo
encontro é “possível” no sentido em que não há
razão para desqualificar a priori certos caminhos e
não outros, todo encontro nem por isso é
selecionado pela experiência (certas montagens,
certos acoplamentos não produzem nem mudam).
Nesse sentido, formações rizomáticas podem servir para superar e
transformar estruturas de pensamento e de julgamento rígido, fixo ou
binário. O rizoma é antigenealogia. Um rizoma contribui para a
formação de um planalto através de suas linhas de devir, que formam
ligações agregadas. Não há posições singulares nas linhas de rede de um
rizoma, apenas pontos conectados que formam conexões entre as coisas.
Um platô rizomático de pensamento, sugerem Deleuze e Guattari, pode
ser alcançado por meio da consideração do potencial de ideias e corpos
múltiplos e relacionais (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 11).
Aqui, a noção de devir pode ser vista como uma série de
cruzamentos e de linhas a que faltam coesão, centro, retenção
(memória), expectativa ou significação que são, portanto, praticamente
impossíveis de localizar ou de destruir (em distinção de uma estrutura
composta de pontos). Temos a figura do mapa de um devir, ou seja, uma linha de fuga que envolve a deformação das formas de conteúdos,
formas de expressão e de uma rede de intensidades, movimentos e
sensações.
Esse fato implica um processo transformativo ou distributivo
horizontalmente, sem começo ou fim, em distinção daquilo que é
176
organizado verticalmente, enraizado em um único local.
Matematicamente, é o que não faz distinção entre o um e o múltiplo,
porque opera por subtração de qualquer ponto de partida dado, e não por
adição. Ainda, consideramos que o rizoma não é redutível nem ao um
nem ao múltiplo. Ele não tem começo nem fim, mas possui sempre um
meio, a partir do qual ele cresce e se extravasa.
Mais do que a realidade que está sendo pensada e escrita como
uma ordenada série de totalidades estruturais, em que conexões
semióticas ou taxonomias podem ser compiladas a partir da raiz em
direção à árvore, a história do mundo e de seus componentes pode ser
comunicada por meio de operações rizomáticas de coisas, movimentos,
intensidades e formações polimórficas. Rizomas não têm nenhuma
ordem hierárquica em relação às suas redes de capitalização, já que o
pensamento rizomático funciona como uma configuração produtiva no
estilo aberto-fechado, em que associações e conexões randômicas
impulsionam desvios e abstratas relações entre componentes. Qualquer
parte dentro de um rizoma pode ser ligada à outra parte, formando um
meio que está descentrado, sem fim distintivo ou ponto de entrada.
Como uma sequência não homogênea, o rizoma descreve uma
série que pode ser composta de causalidade, acaso e ligações aleatórias.
Conexões rizomáticas entre corpos e forças produzem uma energia ou
entropia afetivas. Consequentemente, a interação de uma força
determinada social, politica ou culturalmente e qualquer corpo dado
produz associações de ideias. A corrente descontínua é o meio para a
rede de expansão do rizoma, assim como é também a circunstância
contextual para a produção da cadeia.
Deleuze e Guatarri (1995, p. 46) entendem que cada operação no
mundo, como a troca afetiva de intensidades rizomaticamente
produzidas, cria órgãos, sistemas, economias, máquinas e pensamentos.
Cada corpo é impelido e perpetuado por inúmeros níveis de forças
afetivas de desejo e suas materializações de ressonância. Variações para
cada sistema dado podem ocorrer por causa de intervenções no âmbito
da repetição cíclica e sistemática. Como o rizoma pode ser constituído
de um corpo existente, incluindo pensamentos existentes que podem
exercer influência sobre outro corpo, ele é necessariamente um tópico
que está relacionado a princípios de diversidade e de diferença através
da ideia de repetição.
Desse modo, a escrita rizomática, o ser ou o devir não são
simplesmente um processo que assimila coisas, mas sim um meio de
transformação perpétua. O meio relacional que o rizoma cria dá forma a
ambientes evolucionários, onde diversas relações alteraram o curso de
177
como fluxos e desejos coletivos desenvolvem-se. Não há nenhuma
função de estabilização produzida pelo meio rizomático, nem há criação
de um conjunto de partes virtuais e dispersas. Em vez disso, através do
rizoma, pontos formam agrupamentos, múltiplos sistemas associam
topologias possivelmente desconectadas ou quebradas; por sua vez, os
agrupamentos e as tipologias alteram, dividem e multiplicam por meio
de encontros e de gestos díspares e complexos.
O rizoma é qualquer rede de coisas postas em contato com um
outro, funcionando como uma máquina de montagem para novos
conceitos, novos órgãos, novos pensamentos. A rede rizomática é um
mapeamento das forças que se movem e imobilizam organismos. Corpos
e coisas, incessantemente, assumem novas dimensões através de seu
contato com entidades diferentes e divergentes ao longo do tempo. O
rizoma assinala uma maneira divergente de conceituar o mundo que é
uma das características da filosofia de Deleuze e Guatarri como um
todo.
Assim, o rizoma é uma importante forma de pensar sem recorrer
à analogia ou às construções binárias. Pensar em termos de rizoma é
revelar as múltiplas formas pelas quais podemos abordar qualquer
pensamento, atividade ou conceito. O que sempre trazemos conosco
mesmos são muitas e diversas maneiras de entrar em qualquer corpo, de
pensamento múltiplo e de ação através do mundo.
Voltando à noção de quiasma, é importante detalhar, neste
momento, um fundamental princípio ontológico, que é o da
reversibilidade, que o autor francês nomeia de “verdade última” (vérité
ultime) (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 150). Essa noção emerge de
suas explorações anteriores a respeito da ambiguidade do ser-no-mundo
e dos enigmas do palpante e palpado (tocante e tocado), do vidente e
visível. Ele explora a noção de Ineinander (um no outro), ou
entrelaçamento, e a estrutura paradoxal do envolvente e envolvido como
fundamental fato de que o corpo é, ao mesmo tempo, um poder de
explorar o mundo e é, necessariamente, do mundo.
Percebemos que essa característica não se encontra na noção de
rizoma, que está aberto aos devires-intenso, aos devires-animal, e versa
a respeito dos devires em nossas semelhanças com os outros, as coisas,
os animais ou os vegetais. Logo, há, em um plano de imanência,
exclusivamente o caos, ou o ser já é uma instauração do caos, gênese no
caos, e toda essa criação é sempre especial (DELEUZE-GUATTARI,
1992, p.15).
Já o quiasma é atraído por uma transcendência (distância) de ser
que não se completa como um transcendente na imanência. É uma
178
imanência não intencional que, como diz Merleau-Ponty (2009a, p.
121), não é nem composição, nem separação incondicional (positivismo
e negativismo) ao ser. Seguramente, toda descrição do ser para Merleau-
Ponty não exaure sua infinitude nem suprime sua transcendência.
Pontuamos aqui que o termo transcendência a que se refere o autor
francês é a disparidade na imanência da experiência, e não o
transcendente a que se reportam Deleuze-Guattari (FURLAN, 2011, p.
117).
Prosseguindo na análise a respeito da reversibilidade, podemos
ver que, na “Fenomenologia da percepção”, Merleau-Ponty discute a
relação entre vidente e visível, junto com a noção de tocante e tocado.
Justamente como o meu corpo pode, em princípio, reverter a sua atitude
entre tocante e ser tocado, assim como entre as minhas duas mãos, o
meu corpo é também um poder para ver e, em tese, visível em si mesmo.
No entanto, essa reversibilidade potencial nunca é realizada, e meu
corpo não é em si visível, na medida em que ele está vendo. Invocando a
ideia de um espelho, podemos vislumbrar o meu olhar vivo quando um
espelho na rua inesperadamente reflete minha própria imagem de volta
para mim (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 135).
Nossas estruturas são de natureza visível, como Merleau-Ponty
(2006, p. 8) entende, na medida em que o indivíduo pode ser seu
exterior, e o corpo do outro pode ser o outro dessa própria pessoa. Dessa
forma, o outro aparece através de comportamentos do corpo visível, sem
realmente estar contido lá, e a visão é o olhar se preparando para o
mundo visível, e é por isso que o outro olhar não pode existir sem algum
indivíduo. Há uma ambiguidade aqui que não é um raciocínio por
analogia. Outra pessoa pode aparecer precisamente porque todo ser é
uma visão encarnada e nunca transparente para ele mesmo (MERLEAU-
PONTY, 2006, p. 471-472).
Esse aspecto sugere que o corpo é o lugar de uma fundamental
imbricação (empiètement) entre sentiente e sentido, uma essencial
sensibilidade pela qual o ser em si e outros podem aparecer. Na obra “O
olho e o espírito”, por exemplo, o filósofo discute como a pintura tem
um acesso privilegiado à reversibilidade entre aquele que vê e o que é
visto, bem como a possibilidade de uma compreensão de uma
reversibilidade entre as dimensões da imagem e das coisas (MERLEAU-
PONTY, 2004, p. 22 e 34).
A estrutura de proliferação de reversibilidades se repete em “O
visível e o invisível”, tal qual um elemento basilar da carne, como o
lugar de toda relação quiasmática, sendo capaz de estruturar uma
completa ontologia e um novo entendimento da intersubjetividade,
179
como também da intercorporeidade. Em ambos os casos, a
reversibilidade pode ser reconhecida como um princípio possível, porém
nunca como um fato estanque, acabado e completo, pois uma
coincidência entre os dois polos seria negar o espaçamento, o
distanciamento (écart) pelo qual o ser aparece como o invisível de todo
visível.
Por conseguinte, notamos que essa reversibilidade acende a
centelha de um incessante cruzamento/transposição (enjambement) ou
imbricação (empiètement) entre atividade e passividade. Merleau-Ponty
usa esses dois termos, enjambement e empiètement, para expressar uma
figura topológica associada ao quiasma, na qual nenhuma ramificação
ou espaço possui privilégio sobre o outro (RODRIGO, 2013, p. 34).
Como veremos mais adiante, a figura temporal, e não espacial associada
ao quiasma é a da precessão recíproca (précession reciproque), analisada no que se refere ao estatuto ontológico da imagem
cinematográfica.
Compreender esses importantes termos é perceber que o quiasma
do visível, do tangível e também do sonoro é alguma coisa que não
subsiste em uma identidade fechada, mas se abre a um “paradigma de
alteridade”, segundo a expressão do filósofo Paul Ricoeur (1990 apud
RODRIGO, 2013, p. 34). Daí a evocação de uma existência visual do
tangível e a existência háptica do visual, mostradas nas qualidades
tácteis e ópticas dos seres e das coisas. O sentido ontológico de
enjambement e de empiètement configura-se como uma espécie de
“cavidade dentro do ser” (creux dans l'être) que não é um vazio de ser,
mas que organiza, na maioria das vezes, a possibilidade do princípio de
um entrelaçamento, de um entrecruzamento daquilo que é o ser. De fato,
o que aparece como visível é sempre uma intriga, um tecido de
múltiplos não visíveis (RODRIGO, 2013, p. 34 e 37).
Nesse sentido, a pintura não é mais do que a expressão do enigma
do vidente e do visível, ou seja, da visibilidade. Essa característica leva
Merleau-Ponty (2009a, p. 86 e 102) a colocar a noção de visibilidade no
coração de sua ontologia. A reversibilidade do ver e do tocar revela o
que o autor chama de uma “relação carnal” com a “carne do mundo”,
que ele volta a analisar como extremas categorias como, por exemplo, o
ser e o nada. Essas categorias permanecem para sempre no horizonte de
um entrelaçamento mais primordial do visível e do invisível, daquele
que vê e é visto. Todavia a impossibilidade de atualizar a
reversibilidade, de ser, simultaneamente, visível e vidente é o que abre o
espaçamento, o distanciamento (écart) do ser a se manifestar. O quiasma
entre ver e ser visto institui uma reversibilidade na carne do mundo.
180
Entre a minha carne e a carne do mundo, não há desigualdade,
contudo existe uma espécie de circulação, isto é, penetramos na carne do
mundo que mutuamente nos penetra. É o recruzamento de um sobre o
outro, desses dois movimentos opostos que constituem o quiasma. Esse
pensamento do quiasma culmina em uma metáfora absolutamente
notável, que é a de dois movimentos circulares, como turbilhões.
Minha carne e a carne do mundo são como dois movimentos
circulares de sentidos inversos; cada turbilhão enovela o sensível sobre o
sentir e entra em outro turbilhão que se move em direção oposta. Minha
carne sentiente se exterioriza no mundo sensível e a carne sentiente do
mundo é exteriorizada no meu corpo sensível. Cada carne penetra, dessa
maneira, na espessura do outro, que se manifesta na forma do
enjambement, do empiètement recíprocos, isto é, perfeitamente
reversíveis.
A noção de carne retorna como um momento fundamental nas
reflexões ontológicas do visível e do invisível. Tocante e tocado são,
sem dúvida, uma atividade mundana carnal, que isola a investigação
ontológica da ameaça de qualquer filosofia de consciência. Além disso,
o espaçamento inicial, que é também caracterizado como quiasma, é o
que permite a reversibilidade como tal. O tocante e o tocado revelam
uma tangibilidade que ocorre entre um evento passivo (passividade) e
uma constituição ativa (atividade) para a qual a filosofia tradicional não
tem nome e que nós chamamos de carne (MERLEAU-PONTY, 2009a,
p. 135; 142).
Observamos que a atividade que se pressupõe no ato do tato e,
também, da visão não é sinal de arbitrariedade de concepção de sentido,
porém de consentimento ou acordo com o sensível a ser percebido. Sem
isso, não existe efetividade do corpo no mundo. Assim, atividade e
passividade não são palavras inconciliáveis, mas reversíveis, dois lados
da mesma experiência. E é o que leva o filósofo francês a dizer,
finalmente, que o quiasma é a “[...] verdade da harmonia preestabelecida
‒ Bem mais exata que ela: porque ela está entre fatos locais ‒
individuados, e o quiasma liga como avesso e direito conjuntos
antecipadamente unificados em vias de diferenciação [...]”69
(MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 236).
69 Na versão original: [...] vérité de l'harmonie préétablie - Beaucoup plus exacte
que'elle: car elle est entre faits locaux-individués, et le chiasme lie comme envers et
endroit des ensembles d'avance unifiés en voie de différenciation [...] (MERLEAU-
PONTY, 2006a, p. 310).
181
Por essa razão, a carne do mundo ou a minha não é contingência,
caos, contudo é trama ou intriga que volve a si e ajusta a si mesma, uma
massa intimamente trabalhada. Refletimos acerca da carne não a partir
de elementos como corpo e espírito, porquanto ela seria o casamento de
contraditórios, mas como substância, insígnia concreta. Em suma, em
que pese a presença da atividade na passividade da percepção ou de todo
sentir, ela acontece a favor da anuência entre o lado de dentro e o lado
de fora da minha carne (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 142-143).
A carne não é uma condição primordial que é superada através da
instituição de sujeitos e objetos, mas é o princípio de cada momento de
visibilidade. E, como uma coisa geral, a carne é reversível de outras
maneiras, enquanto outros corpos são lugares de enovelamento sobre o
visível, na medida em que também são sensível e sentiente. Existe uma
reversibilidade entre a nossa experiência que garante uma
intercorporeidade, não havendo uma contradição em dizer que dois
corpos genuinamente se comunicam. A partir do momento que nossa
visão não é consumada por uma constituição ativa, o “eu”, o anonimato
da visibilidade, na verdade, habita-nos por meio da estrutura primordial
da carne como reversibilidade, todavia, sem negar nossas perspectivas
individuais de dentro da carne.
Já a visibilidade e a tangibilidade revelam nada menos do que
uma ontologia do entrelaçamento e, nessa comunicação corporal com o
outro, começa o “paradoxo da expressão”. Assim, a partir dessa
estrutura inicial, as camadas e as dobras proliferam em outras
reversibilidades que passam definitivamente para além do círculo do
visível. Entre o meu corpo sonoro e a audição da minha própria voz,
emerge uma carne como expressão que é nada menos que o ponto de
encontro, de cruzamento do ato de falar e do pensar no mundo do
silêncio. A coincidência indefinida ou o eclipsar incessante que aparece
na experiência é o que assegura o já conhecido distanciamento (écart)
(MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 140).
O distanciamento revela um dos pontos de maior dificuldade, ou
seja, o vínculo entre a carne e a ideia, entre o visível e a armadura
interior que se manifesta e que se esconde. Uma ideia não é o oposto do
visível, é a profundidade ou o revestimento de uma superfície visível
que o anuncia e sem a qual ele não seria nada. Essa é uma relevante
continuação da noção de expressão de Merleau-Ponty. O pensamento
não está separado da expressão; não é necessária uma tradução do
discurso para a pureza de pensamento, pois, para o pensamento, já está
presente a profundidade invisível da expressão visível.
182
Para conhecer um pensamento, é preciso falar ou falar
novamente; um empréstimo do corpo de alguém para a voz do outro são
as boas-vindas ao invisível da frase sonora, através de uma nova dobra
na carne. O que a tradicional filosofia tem denominado de idealidade ou
essências não são estranhas à carne, mas são precisamente seus eixos,
suas profundezas, suas dimensões (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 146-
147). Não há puras idealidades fora de toda carne e livres de quaisquer
horizontes, uma vez que mesmo as idealidades da geometria são
nascidas na história. O reversível entre o discurso e o que ele significa é,
justamente, uma reversibilidade que nunca se resolve em uma
coincidência.
Assim, o invisível de cada discurso é a riqueza percebida de seu
sentido, e o ato de reverter-se é o ato de definir ou de determinar que o
discurso, exatamente, significava. Essa definição nunca esgota a riqueza
do falar originário e sempre espera para ser retomada em uma nova
leitura ou em um novo discurso. Merleau-Ponty pretende elaborar esse
movimento a partir de um mundo mudo ao mundo que fala. Contudo ele
aqui se contenta em estabelecer que o silêncio não é nem destruído, nem
conservado, mas entra em uma nova reversibilidade entre percepção e
discurso na presença carnal de ideias invisíveis. Embora o filósofo
francês não tenha concluído suas descrições ontológicas, vislumbramos
a reversibilidade do sensível e dos sentidos, que é, de fato, como já
citado, a verdade última.
4.2 FILME, IMAGEM E O VISÍVEL
O pensamento de Merleau-Ponty confere uma prerrogativa capital
às noções de visão, visível e imagem. Notamos aqui que o visível, por
exemplo, não é a mesma coisa que a visibilidade ou o visual.
Primeiramente, não poderemos compreender a visualidade do mundo se
não fizermos a diferenciação entre a imagem e o visível, e, nesse
sentido, é o filósofo francês que reconhece que a imagem não é mais a
única ordem de grandeza do mundo visual. A imagem é, em efeito, a
manifestação de uma visão, e, portanto, de um visível que se manifesta
nas coisas ou na própria matéria (FAHLE, 2013, p. 16).
Desse ponto de vista, a imagem é, por assim dizer, sempre
enquadrada, construída em uma visibilidade que a engloba. A imagem e
o visível se situam em uma relação de troca mútua, sendo impossível
pensar um sem o outro. Nas palavras de Merleau-Ponty (2009a, p. 128):
“O visível à nossa volta parece repousar em si mesmo. É como se a
visão se formasse em seu âmago ou como se houvesse entre ele e nós
183
uma familiaridade tão estreita como a do mar e da praia”.70
Identificamos a visão, isto é, o olhar focalizado e enquadrado em uma
imagem.
Já o visível constitui o movimento transversal que participa do
nascimento de cada visão. O visível está presente em cada imagem e
concebe, por sua vez, o horizonte que recua e nos escapa
permanentemente. Merleau-Ponty não faz mais que “visualizar” suas
ideias ontológicas, enviesando uma nova maneira de conceituar a
imagem e o visível. O visível é múltiplo e variado, ele constitui um
campo do possível e da simultaneidade, um lugar do qual saem as
imagens e para onde elas retornam. A imagem é, então, atravessada por
um visível que a ultrapassa, pois ela é uma parte do visível, e o visível,
às vezes, encontra-se presente e ausente da imagem (FAHLE, 2013, p.
21-22).
Na verdade, Merleau-Ponty (1996, p. 173) inscreve o visível em
um contexto ontológico, sendo o olhar humano a expressão da dinâmica
de toda a realidade, pois ver é precisamente não ter necessidade de
definir algo, de pensar sobre algo. É a presença de uma ausência,
pregnância do invisível no visível, porque o que permite o visível é o
que receberá precisamente o nome de invisível. Logo, o poder
ontológico da pintura e do cinema aparece ligado ao âmbito ontológico
da própria visão, de maneira que, assim como a percepção se estiliza, o
olhar nunca é absorvido no que é visto e no que é representado, ele
permanece sempre algo invisível no visível, algo irrepresentável no
representado, de modo que o acontecer da expressão nunca se finda.
O visível é o poder fundamental de mostrar mais do que ele
mesmo, já que é o reencontro, como uma encruzilhada de todos os
aspectos do ser. Voltar a visibilidade visível, isso seria a beleza
cinematográfica, mas a exposição do visível só é possível conquanto a
exibição seja também a do invisível. Como bem observado por Jacques
Aumont (2004a, p. 74-75), na teoria dos cineastas, praticamente não há
escolha; ou alguém confronta abertamente a relação entre cinema,
pintura e a história comum a ambos, ou se adota mais ou menos
francamente uma das versões essencialistas que fazem da imagem um
sinônimo de ideia. No primeiro caso, o filme refere-se ao visível, busca,
olhando depois a pintura e a sua mão, soluções representativas; já no
70 Na versão original: Le visible autour de nous semble reposer en lui-même. C'est comme
si notre vision se formait en sou coeur, ou comme s'il y avait de lui à nous une accoitance
aussi étroite que celle de la mer et de la plage. (MERLEAU-PONTY, 2006a, p. 171).
184
segundo, refere-se ao invisível, na esperança de poder dar conta,
mediante a imagem ou contra ela, o que supera toda a visibilidade. Os
cineastas Tarkovski e Godard, são exemplos de autores dessa imagem
que é quase religiosa.
Por essa razão, o olhar ausente e, às vezes, presente é o signo de
uma presença “divina”, ao mesmo tempo visível e invisível, da qual o
cinema redireciona a noção de quiasma. É o invisível mesmo que
garante a visibilidade, sendo essa invisibilidade a própria textura do
visível. A imagem é uma ultrapassagem constante em direção a um
visível longínquo, indefinido, invisível, mas definitivamente presente
(FAHLE, 2013, p. 24).
Nesse sentido, a percepção nunca é percepção apenas do visível,
mas também, e ao mesmo tempo, do invisível, cuja necessária
antecipação o constitui, tanto se não é ainda algo dado à percepção,
como ocorre com tudo que não é visível no momento, mas poderá ser
mais tarde, como se nunca pudesse sê-lo, como na experiência do outro,
cujas experiências vividas nunca serão acessíveis aos olhos. Em ambos
os casos, o invisível não é o oposto absoluto do visível, mas sim, como
entende Merleau-Ponty (2009a, p. 200), é sua contrapartida secreta sem
a qual não poderia existir a visibilidade.
Se, na primeira fase de seu pensamento, o filósofo francês
considerava que toda percepção está subordinada a um horizonte
soberano e, portanto, ultrapassa a própria experiência do percebido ao
apresentar-se como uma abertura à “coisa mesma”, seu posterior foco
ontológico no ato de ver remete à profundidade secreta e inesgotável de
todo “visível” que Merleau-Ponty designa como “invisível”. Nos
últimos anos de sua produção filosófica, a imanência é, de alguma
forma, “devolvida” à transcendência e a noção de “invisível absoluto”
adquire cada vez mais relevo (DILLON, 1997, p. 35-37).
Merleau-Ponty (2004, p. 21) vem restaurar a experiência pré-
predicativa do sentido humano, o “oculto” como uma ausência positiva
que, inevitavelmente, forma parte do mundo, na medida em que o
sustenta e o torna visível, sendo que a pintura visa, em todo caso, a essa
gênese secreta. A questão toda está aqui: na parte detrás, opaca e
indescritível, que se abriga dentro dos limites do exprimível e que nos
impede de possuir e de cercar completamente o real. Assim, Merleau-
Ponty (2004, p. 44), ao final da obra “O olho e o espírito”, recolhe as
palavras de Paul Klee que foram registradas em seu túmulo: “[...] 'Sou
185
inapreensível na imanência'...”.71 Nesse período, ele argumenta que o
propósito comum de pintura e da literatura é fazer ver.
Cada experiência perceptiva carrega alguns perfis potencialmente
perceptíveis, contudo eles se subtraem à nossa percepção efetiva. Em
geral, tudo o que vemos possui uma “face oculta” que escapa ao nosso
olhar, mas poderíamos ver se ocorressem as circunstâncias apropriadas.
Cada visão carrega sua própria visibilidade (o vidente tem que ser
visível para ser capaz de ver), com a ressalva de que essa visibilidade é
invisível para o próprio vidente, circunstâncias que levaram a conceber
qualquer visibilidade como a face oculta de um princípio de
invisibilidade. Com o advento do ato de ver, em suma, a imanência é
devolvida à transcendência (CARBÓ, 2011, p. 144).
Todavia, mesmo quando o visível dá acesso a um invisível que é
seu relevo e estrutura, ao mesmo tempo, o invisível pode ser pensado
como princípio do visível. Assim, o invisível, na verdade, torna possível
a própria visão. Por sua vez, a intervenção do invisível no visível (o
invisível é o principio do visível) é esclarecida pela relevante intuição
merleaupontiana segundo a qual o invisível da visão é um invisível de
jure, seu punctum caecum, isto é, seu ponto cego (MERLEAU-PONTY,
2009a, p. 230).
Essa visão de que o pintor, o poeta e o cineasta dão testemunho é,
para Merleau-Ponty, voyance, algo como uma singular “vidência”. O
pensador francês usa esse termo diversas vezes em suas obras
posteriores: designa um ato de ver, um visível que excede a vista, mas
que não é o oposto dela; um ver no qual atividade e passividade,
presente e passado, percepção e imaginação mantêm uma relação de
familiaridade recíproca. Uma visão realmente binocular em que o visível
está fora dos pontos de vista comuns, isto é, óptico-representativos, para
receber relevo e profundidade do fundo do invisível, que dobra o visível
e isso com necessidade. É uma visão na qual o poeta, o pintor, o cineasta
tornam-se videntes unicamente por aceitarem o desafio de uma singular
cegueira (CARBÓ, 2011, p. 144-145).
Jacques Derrida (2001 apud CARBÓ, 2011, p. 146), que toma
como referência o pensamento merleaupontiano, desenrola as ideias
aplicadas ao campo cinematográfico. Para ele, o que conta na imagem
não é simplesmente aquilo que é imediatamente visível, mas também as
palavras que habitam as imagens, a invisibilidade que determina a lógica
71 Na versão original: [...] 'Je suis insaisissable dans l'immanence'... (MERLEAU-
PONTY, 1964, p. 87).
186
das imagens, isto é, a interrupção, a elipse temporal, todo esse campo de
invisibilidade que faz violência e ativa a visibilidade. A imagem,
portanto, enquanto imagem, é trabalhada materialmente pela
invisibilidade. O que vemos no filme possui, sem dúvida, menos
importância do que o não dito, o invisível.
Essa constatação terá influência no estatuto da imagem moderna e
contemporânea, principalmente no cinema e na pintura, como
detalharemos mais adiante. Na explicação de Merleau-Ponty (2004, p.
18-19): A palavra imagem é mal-afamada porque se
julgou irrefletidamente que um desenho fosse um
decalque, uma cópia, uma segunda coisa, e a
imagem mental um desenho desse gênero em
nosso bricabraque privado. Mas se de fato ela não
é nada disso, o desenho e o quadro não pertencem
mais que ela ao em si. Eles são o dentro do fora e
o fora do dentro, que a duplicidade do sentir torna
possível, e sem os quais jamais se compreenderá a
quase-presença e a visibilidade iminente que
constituem todo o problema do imaginário.72
O problema merleaupontiano acerca da ausência se prolonga
continuamente na teoria do invisível em sua relação com o visível. O
invisível não é apenas o não visível, já que sua ausência conta no
mundo, está atrás do visível; é a visibilidade imanente ou eminente. Por
essa causa, o invisível consiste na transcendência pura, sem a máscara
ôntica. Expressando sucintamente a complementaridade de horizonte, o
autor francês conclui que a visão está habitada por uma não visão
irredutível (BARBARAS, 1991, p. 185).
Certamente não se contempla a possibilidade de que a não visão
ou a não coincidência ou o distanciamento (écart) podem chegar a ser
totais. Não é possível, por exemplo, que a não visão venha a prevalecer,
porque em todo processo perceptivo, no final, há sempre alguma
72 Na versão original: Le mot d'image est mal famé parce qu'on a cru étourdiment qu'un
dessin était un décalque, une copie, une seconde chose, et l'image mentale un dessin de
ce genre dans notre bric-à-brac privé. Mais si en effet elle n'est rien de pareil, le dessin
et le tableau n'appartien-nent pas plus qu'elle à l'en soi. Ils sont le dedans du dehors et le
de-hors du dedans, que rend possible la duplicité du sentir, et sans les-quels on ne
comprendra jamais la quasi-présence et la visibilité im-minente qui font tout le problème
de l'imaginaire (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 87).
187
realidade que solicita a nossa capacidade de perceber. Se, na primeira
etapa do seu pensamento, Merleau-Ponty considerava que toda
percepção está subordinada a um horizonte soberano e, portanto,
ultrapassa a experiência do percebido ao apresentar-se como uma
abertura para a coisa mesma, a sua ênfase subsequente na noção do
visível remeterá à profundidade secreta inesgotável de todo visível que o
autor designa como o invisível.
Efetivamente, nessa orientação, a experiência do visível não é
mais apresentada como a experiência de uma abertura à coisa mesma.
Agora, o visível aparece separado da experiência perceptiva por um
motivo duplo: prescinde da coisa-objeto e desentende-se com o seu
correlato, a saber, o corpo-sujeito. Merleau-Ponty, nessa fase de seu
pensamento, concentra tão intensamente suas análises na transcendência
que deixa de se vincular à subjetividade entendida no sentido de
contratranscendência e imanência (CARBÓ, 2011, p. 145).
Nesse momento, a imanência é, de alguma forma, devolvida à
transcendência. Havendo-se iniciado de uma transcendência na
imanência, característica da fenomenologia, podemos dizer que
Merleau-Ponty aborda, nessa etapa posterior de sua trajetória, uma
imanência na transcendência, característica da ontologia.
No que concerne aos questionamentos ontológicos relacionados à
imagem e, mais especificamente, à imagem cinematográfica,
consideramos que, sob o ponto de vista de Merleau-Ponty, em suas
últimas obras, ela tem se tornado um tecido do mundo, uma intriga da
visibilidade do visível e do invisível. Anteriormente, na sua célebre
conferência “O cinema e a nova psicologia”, já havia a preocupação do
filósofo francês em ver uma convergência íntima entre a gestalt e
algumas correntes artísticas e filosóficas contemporâneas; o seu intuito
comum parece ser a de fazer-nos reaprender a ver o mundo
(CARBONE, 2011, p. 96).
Para Merleau-Ponty (1983, p. 117), essa convergência seria
viável porque, se a filosofia e o cinema se ajustam, se a reflexão e o
trabalho técnico derivam no mesmo sentido, constitui que o filósofo e o
cineasta possuem como afinidade certa maneira de ser, certa forma de
ver o mundo, que é aquela de uma geração.
Contudo, como explica Mauro Carbone (2011, p. 101), a análise
merleaupontiana a respeito da convergência aproximava-se da hipótese
da semelhança e da proximidade de gerações. Essa hipótese irá se alterar
algum tempo depois, reforçando seu caráter ontológico, nas notas
organizadas por Merleau-ponty para o curso intitulado L’ontologie
188
cartésienne et l’ontologie d’aujourd’hui, que ele iria ministrar no
Collège de France, em 1961.
Esse curso almejava atribuir uma elaboração filosófica à
ontologia contemporânea, que até aquele momento, havia localizado a
sua expressão sobretudo na literatura. Nas artes, o autor acrescenta que o
relevante para a pintura e para o cinema, mais especificamente para a
ontologia do cinema é a questão do movimento nessa arte
cinematográfica. Em linhas gerais, as notas do curso prenunciavam os
pontos convergentes com aqueles da pintura, do cinema e da literatura
contemporâneas, emergindo, dessa maneira, uma nova ontologia
(RODRIGO, 2013a, p. 18).
O fio condutor para essas análises seria realmente a noção do
movimento no cinema e também em outras expressões artísticas, análise
que foi ampliada no livro “O olho e o espírito”. Assim diz Merleau-
Ponty (2004, p. 40-41): As fotografias de Marey, as análises cubistas, a
Noiva de Duchamp não se mexem: elas oferecem
um devaneio zenoniano sobre o movimento.
Vemos um corpo rígido como uma armadura que
faz funcionar suas articulações, ele está aqui e está
ali, magicamente, mas não vai daqui até ali. O
cinema oferece o movimento, mas de que
maneira? Será, como se pensa, copiando mais de
perto a mudança de lugar? Pode-se presumir que
não, pois a câmera lenta mostra um corpo
flutuando entre os objetos como uma alga, e que
não se move.73
Vemos aqui uma preocupação ontológica da imagem como
característica não mimética, fato que só será trabalhado de forma um
pouco mais intensa no resumo do curso intitulado Le monde sensible et
le monde de l’expression (1952-1953). Nesse curso, Merleau-Ponty
parece sinalizar uma futura preocupação como o estatuto ontológico do
filme. Em referência à questão da utilização do movimento no cinema, o
73 Na versão original: Les photographies de Marey, les analyses cubistes, la Mariée de
Duchamp ne bougent pas: elles donnent une rêverie zénonienne sur le mouvement. On
voit un corps rigide comme une armure qui fait jouer ses articulations, il est ici et il est
là, magiquement, mais il ne va pas d'ici à là. Le cinéma donne le mouvement, mais
comment? Est-ce, comme on croit, en copiant de plus près le changement de lieu? On
peut présumer que non, puisque le ralenti donne un corps flottant entre les objets comme
une algue, et qui ne se meut pas (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 78).
189
autor a qualifica como a identidade daquilo que chamamos de a arte do
cinema (CARBONE, 2011, p. 112-113).
Merleau-Ponty elucida que o cinema concebido como modo de
fotografar os objetos em movimento ou como aspecto do movimento
revelou com este muito mais do que a modificação de lugar: uma atitude
nova de simbolizar os pensamentos, um movimento da representação,
sendo esta não mimética. A ideia de representação pode ser
compreendida como negação de uma intervenção de pensamento que
organizaria perante o espírito um quadro ou uma representação
tradicional do mundo (MERLEAU-PONTY, 1968 apud CARBONE,
2011, p. 115).
É relevante afirmar que o cinema expressa e opera um
pensamento encarnado diferente ao da fotografia, na medida em que sua
imagem é uma imagem movimento e não uma imagem meramente fixa.
O movimento é inerente à imagem cinematográfica que reenvia sempre
a um visível que a supera. Os elementos fílmicos, como o extracampo,
as operações e as técnicas de montagem, do movimento da câmera, do
enquadramento, constituem, talvez, a categoria estética mais importante
da imagem moderna e contemporânea. O cinema clássico, por exemplo,
esforça-se para fechar a imagem e evitar toda superexposição ou
superprodução do visível. Já no cinema moderno e contemporâneo, a
mudança entre visível e imagem torna-a todo um programa estético
(FAHLE, 2013, p. 26).
Por essa razão, há uma manifestação amplificada e renovada da
visão: uma consideração que recusa qualquer diferença entre o estatuto
de ser do vidente e do visível, de semelhante modo, como deste último e
do invisível, que por sua vez se apreenderá, seja como inteligível, seja
como memória ou como imaginação (RODRIGO, 2013a, p. 23-24).
Essa característica implica reconhecer, na imagem, sua refutação
mimética com o real, pois a visão é “Essa precessão do que é sobre o
que se vê e faz ver, do que se vê e faz ver sobre o que é [...]”74
(MERLEAU-PONTY, 2004, p. 44).
Destaque para a palavra precessão (précession) que o autor
Mauro Carbone (2011, p. 120-121) irá analisar com propriedade. Para
ele, o termo precessão é usado na obra “O olho e o espírito” e nos
manuscritos do próprio Merleau-Ponty que são ainda inéditos. Nesses
manuscritos, a palavra aparece diversas vezes ao lado da definição de
visão. Então, o seu interesse pela ideia de precessão reside no fato de
74 Na versão original: Cette précession de ce qui est sur ce qu'on voit et fait voir, de ce
qu'on voit et fait voir sur ce qui est (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 87).
190
que ela delineia uma afinidade temporal entre os termos que reaproxima,
diferentemente das figuras topológicas como enjambement e
empiètement que foram postas ao lado de precessão e, depois, trocadas,
nos rascunhos de “O olho e o espírito”.
Lembramos que enjambement e empiètement são termos
utilizados por Merleau-Ponty, principalmente em “O visível e o
invisível”, para a análise da noção de quiasma e da questão da
reversibilidade entre a carne do mundo e a minha própria, entre vidente
e visível, tocante e tocado etc. Parece-nos que, na questão da imagem e
do visível, o filósofo francês preferirá a palavra “precessão”, por melhor
dimensionar os aspectos ontológicos, como ser, tempo, suscitados pelas
artes imagéticas, como pintura e, essencialmente, cinema.
A precessão detalha uma temporalidade demasiadamente singular
que se notabiliza pelo mover de anterioridade dos termos relacionados.
No manuscrito do Grand Résumé, de “O visível e o invisível”, Merleau-
Ponty procura esclarecer o significado da palavra precessão por meio de
seu uso na Astronomia, ou seja, influência gravitacional de um astro
exercida em torno de outro, um procedimento que indica uma afinidade
recíproca, mesmo que espacial, entre estes termos implicados
(CARBONE, 2011, p. 121-122).
É fundamentalmente devido à “reciprocidade de antecipação”
(réciprocité d'anticipation) que o autor se serve da noção de precessão
para mostrar as intersecções e as convergências entre “o que é” e “o que
se vê e o que faz ver”, expressões que estão intrínsecas à ideia
merleaupontiana de visão. Assim, há uma precessão do olhar em torno
dos objetos, tal como dos objetos em torno do olhar, ainda, uma
precessão do imaginário em torno do atual, uma vez que o imaginário
conduz e abastece nosso olhar, propiciando-nos ver o atual, da mesma
maneira como a precessão do atual em torno do imaginário
(CARBONE, 2011, p. 122).
A ideia da precessão recíproca admite uma profundidade
temporal realmente especial. Nesse sentido, diz Merleau-Ponty (2009a
p. 221): A ideia freudiana do inconsciente e do passado
como “indestrutíveis”, como “intemporais” =
eliminação da ideia comum do tempo como 'série
dos Erlebnisse': - Existe passado arquitetônico. cf.
Proust: Os verdadeiros espinheiros são os do
passado [...]. Esse “passado” pertence a um tempo
191
mítico, ao tempo antes do tempo, à vida anterior,
“mais longínquo que a Índia e a China”.75
É a espessura desse tempo mítico que é fundada pela precessão
do que é sobre o que se vê e o que faz ver, do que se vê e do que faz ver
sobre o que é. Essa espécie de tempo imemorial, que não é cronológico,
age em nosso inconsciente de maneira não voluntária, por uma sorte de
amnésia ativa de profundezas carnais e de ideias sensíveis. Além disso,
é no tempo mítico que vivem as ideias que são ligadas intrinsecamente a
seu aspecto sensível, ou seja, às suas imagens visuais, por exemplo
(CARBONE, 2011, p. 124-125).
Explanando sobre essas características, Merleau-Ponty (2004, p.
23) diz o seguinte: O sorriso de um monarca morto há tantos anos, do
qual falava a Náusea, e que continua a se produzir
e a se reproduzir na superfície de uma tela, é
muito pouco dizer que está ali em imagem ou em
essência: ele próprio está ali no que teve de mais
vivo, assim que olho o quadro. O “instante do
mundo” que Cézanne queria pintar e que há muito
transcorreu, suas telas continuam a lançá-lo para
nós, e sua montanha Santa Vitória se faz e se refaz
de uma ponta a outra do mundo, de outro modo,
mas não menos energicamente que na rocha dura
acima de Aix.76
Para Carbone (2011, p. 216), é o tempo mítico que entra em ação
sobre as imagens cinematográficas, lembrando ainda que o cinema é
uma arte temporal por excelência. Entre o real e o imaginário, entre a
imagem fílmica e o ser no mundo, há uma precessão recíproca,
experiência singular, que Merleau-Ponty (2004, p.18) expõe acerca da
75 Na versão original: L'idée freudienne de l'inconsciente et du passé comme
“indestructibles”, comme “intemporels” = élimination de l'idée commune du temps
comme “série de Erlebnisse” - Il y a du passé architectonique. cf. Proust: les vraies
aubépines sont les aubépines du passé [...]. Ce “passé” appartient à un temps mythique,
au temps d'avant le temps, à la vie antérieure, “plus loin que l'Indie ete que la Chine”
(MERLEAU-PONTY, 2006a, p. 291-292). 76 Na versão original: Le sourire d'un monarque mort depuis tant d'années, dont parlait
la Nausée, et qui continue de se produire et de se reproduire à la surface d'une toile, c'est
trop peu de dire qu'il y est en image ou en essence: il y est lui-même en ce qu'il eut de
plus vivant, dès que je regarde le tableau. L'« instant du monde » que Cézanne voulait
peindre et qui est depuis longtemps passé, ses toiles continuent de nous le jeter, et sa
montagne Sainte-Victoire se fait et se refait d'un bout a l'autre du monde, autrement,
mais non moins énergiquement que dans la roche dure au-dessus d'Aix (MERLEAU-
PONTY, 1964, p. 35).
192
arte pictórica: “Eu teria muita dificuldade de dizer onde está o quadro
que olho. Pois não o olho como se olha uma coisa, não o fixo em seu
lugar, meu olhar vagueia nele como nos nimbos do Ser, vejo segundo
ele ou com ele mais do que o vejo”.77
Aqui a ideia da suposta representação da imagem
cinematográfica, cara ao cinema clássico e colocada em dúvida pelo
cinema moderno e contemporâneo, é substituída pela noção, já citada,
de voyance. Essa noção marca um tipo de analogia ao visível na qual é
refutado o isolamento dos campos sensoriais e do logos, das dimensões
de atividade e de passividade. A voyance abriga a revelação do sensível
e de sua lógica própria, não de acordo com um abrigo passivo, mas,
contrariamente, como um fazer ou como a atividade de fazer ver isto
que se dá a ver por meio de nós.
Assim, o caráter ontológico da imagem cinematográfica pode ser
visto e pensado como figura de precessão recíproca, porque vemos
“segundo” ou “com” as imagens. O cinema torna manifesto todas as
nossas experiências sensoriais, já que a imagem e o visível orbitam nos
seres e no mundo, não como uma segunda coisa concernente ao real,
mas como uma figura que nos permite ver o real e que, ao mesmo
tempo, compartilha certa reversibilidade com ele.
4.2.1 Merleau-Ponty e Godard
Como vimos, brevemente, no primeiro capítulo, o cineasta-
pensador Jean-Luc Godard é uma das figuras mais relevantes dentro do
contexto da arte cinematográfica, influenciando diversos artistas com
seus filmes-pensamento. Aqui, iremos mostrar o seu diálogo mais
estreito com Merleau-Ponty, pois muito das ideias desse filósofo
tornam-se manifestas e visíveis por meio do cinema godardiano.
Para Michael Witt, Godard leu muito cedo o texto de Merleau-
Ponty sobre o cinema (O cinema e a nova psicologia), sendo que uma
boa parte de seus filmes pode ser vista como uma aplicação do trecho
que expõe que o cinema é essencialmente uma técnica consistente a
fazer ver as conexões e as relações entre as coisas e não somente as
coisas em si mesmas (WITT, 1999 apud KRISTENSEN, 2013, p. 160).
77 Na versão original: Je serais bien en peine de dire où est le tableau que je regarde. Car
je ne le regarde pas comme on regarde une chose, je ne le fixe pas en son lieu, mon
regard erre en lui comme dans les nimbes de l'Être, je vois selon ou avec lui plutôt que je
ne le vois (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 23).
193
A obra de Godard constitui não somente uma contraprova de
algumas das teses ontológicas de Merleau-Ponty, mas também ajuda a
compreender o seu sentido ético e político. Mais precisamente, o
trabalho de Godard com temas a respeito da experiência, da indiferença,
da opressão, da violência e do trauma, em muitas de seus filmes, faz-
nos, por exemplo, compreender melhor as implicações da carne no
mundo da vida. A questão da possibilidade de o cinema ver as coisas e
os seres se coloca também como interrogação da perda, do prejuízo, de
tudo o que rasga a imagem (KRISTENSEN, 2014, p. 135).
Godard está interessado não somente em fazer aparecerem as
coisas (percepção), porém em fazer aparecer o fundo sobre o qual elas
aparecem, ou seja, a ontologia da imagem, a sua visibilidade. Podemos
dizer que Godard, em termos semelhantes aos de Paul Klee, um pintor
que, para Merleau-Ponty é uma referência particular, interroga-se sobre
o que pode ver no visível o invisível que se tem tornado visível. Nesse
sentido, as realidades da arte não reproduzem o visível com maior ou
menor temperamento, mas fazem visível uma visão secreta; o interior e
o exterior aparecem juntos, convivendo em sua poética, em uma
harmonia que parecem fundir-se todos os contrários.
O objetivo desse cineasta é ver as fronteiras, ou seja, tornar
visível o invisível, o imperceptível, como um anel que une o visível e o
invisível, iluminar a escuridão, ou escurecer a luz, negar as evidências
para submergir no interior das coisas. Para falar acerca do sentido último
da imagem, Godard, no filme Histoire(s) du cinéma, volta-se para
Maurice Blanchot, para quem a imagem é o interstício de um dentro e de
um fora, pois tenta adicionar várias imagens que são capazes de negar
qualquer coisa. O principal escopo de Godard é mostrar e esconder, ao
mesmo tempo, a graça, o milagre, o invisível, o impalpável.
Exemplo maior de sua teoria da imagem e do pensamento é esta
sua obra monumental: Histoire(s) du cinéma (1988-1998), espécie de
vídeo pessoal, obra audiovisual-pensamento, como um livro de
memórias. Godard, trabalhando sozinho em seu estúdio em Rolle, na
Suíça, revolve todas as suas ideias, seus croquis, seus projetos, suas
anotações para um curso de cinema em Montreal. Recolhe os recortes de
material impresso, os livros, as revistas, as fotos, os vídeos, os cadernos
de recordações, todo o material iconográfico e sonoro que ele foi
colecionando durante a vida (DUBOIS, 2004, p. 286).
Já na mesa de edição, variando as velocidades, o cineasta associa
lembranças, fragmentos de textos, amarra ideias, enfrenta suas
obsessões, combina, dissocia, recombina materiais audiovisuais, na
tentativa de fazer um balanço de sua paixão e de seu ódio pelo cinema.
194
Godard estilhaça as infinitas combinações de imagens e de sons vindos
de toda a história do cinema e das artes. É uma extraordinária emoção
que nasce da galáxia de possíveis mesclas de uns com os outros. Nada
que possa buscar ou entender verbalmente é uma radical investida em
direção a um pensamento audiovisual pleno, construído com imagens,
sons e palavras que se associam em uma unidade indecomponível.
Com essa obra, chegamos ao ponto culminante daquela
contaminação e justaposição entre película, vídeo e escrita, algo como
um entrelaçamento imagético. Aqui, o trabalho de montagem de
imagens e de sons de diversos filmes transforma a percepção em
sensação. Godard colapsa todo o sentido do espaço discernível e
localizável na dimensão da temporalidade. Não se trata mais de falar em
um filme, nem de fazer falar um filme, nem ainda de falar de um filme.
Na verdade, trata-se de uma constatação e de uma imersão, de um “eis
aí”, de um “basta abrir os olhos”, deixando-se levar pelos ecos vindos de
toda parte, vibrando em harmonia com tudo o que se quer mostrar
(DUBOIS, 2004, p. 286).
Em Histoire(s) du cinéma, Godard realiza uma escrita da história
do cinema por meio de imagens e de sons próprios do cinema,
repetidamente, insistindo na irrelevância de que alguém possa contar a
história do cinema. São as próprias imagens que escrevem ou narram
sua própria história escondida. Essa espécie de rememoração das
imagens cinematográficas, no entanto, não imita a recordação humana,
ou seja, a memória da imagem não é a do indivíduo ou da coletividade,
mas de outras imagens (RANCIÈRE, 2013, p. 171).
Diante de tal perspectiva, Godard mergulha em uma espécie de
absoluto do ser-imagem, no qual o cinema, o vídeo, a película, a tela de
cinema, enquanto estados, maneiras de ser, pensar e agir, tornaram-se
sua segunda pele, seu segundo corpo. Histoire(s) du cinéma é um corpo
de imagens, um pensamento de imagens, uma escrita de imagens, um
universo de imagens. Logo, para o cineasta, o importante não é uma
imagem justa, é justo uma imagem (FAHLE, 2013, p. 26).
O cinema de Godard assume o mistério da linguagem paradoxal,
característica da poesia e da mística. No pensamento de Merleau-Ponty,
o enigma, o mistério, a maravilha são deixados intactos, isso porque,
precisamente, corpo e alma, o visível e o invisível, sentido e sem-
sentido, razão e sem-razão estão singularmente unidos, e essa união, que
alguém não pode senão experimentar, sentir ou constatar, escapa a toda
conceitualização pelo entendimento. O sagrado é o que se situa do outro
lado da imagem (BERGALA, 1999, p. 263-264).
195
Assim, em Scénario du film “Passion” (1982), o próprio Godard,
sentado de costas para uma tela branca vazia, tenta, com sua mão,
apalpar o impalpável, auxiliar a passagem do invisível para o visível, da
mesma maneira como nas profundidades sombrias do mar de Prénom
Carmen (1982), sobre o qual se desenham linhas brancas fugazes de
onda que se dissolvem rapidamente no escuro abissal. Já sobre a luz que
habita no escuro, o cineasta se propõe a gravar o silêncio do mistério, o
imperceptível, acompanhado dos últimos quartetos de Beethoven.
Através do mar opaco do filme, podemos imaginar que, quando o
músico alemão compôs esses quartetos, já era completamente surdo,
sendo, então, uma música totalmente pensada, projetada já para outro
universo, o do inaudível. O recurso em Godard da fusão para a tela preta
ou mesmo a tela escura sobre um fundo de silêncio, constituem o
contraponto visual para a escura melancolia desses quartetos que o
cineasta tanto ama. Nesse filme, há um momento em que não se tem
mais necessidade de ver a imagem. A música pode nos ajudar; como
espectadores, tornamo-nos cegos, sem ver nada (GODARD, 1989, p.
101-102).
O olho atravessa, portanto, o umbral do ser para o não ser, para
ver aquilo que não se apresenta. Percebemos, em Merleau-Ponty, o ser,
que é precisamente o invisível do visível, o que está presente em todo
visível, mas que não é um visível, nem ao menos oculto, não pode ser
objeto de consciência mais que negativamente, isto é, indiretamente. Ele
não pode ser visto, mas pode ser interpretado, decifrado; não está
presente e não é apreensível mais do que em sua ausência. Para o ser,
não é outra coisa que a transcendência na imanência (CARBÓ, 2011, p.
150).
A tensão entre a matéria visível e a matéria fantasma tem por
finalidade mostrar o irrepresentável. É a matéria escura, a do mundo
invisível, a que faz referência, por exemplo, à voz em off de Hélas pour
moi (1993), em que alguém fala que havia nascido a matéria escura,
onipresente, mas invisível. O homem de cinema se oculta na pureza da
sua ausência. É, portanto, uma escuridão original, de orientação comum:
o Deus que se oculta. Deus além do ser, ou o Deus sem o ser. A margem
do lago, o limite entre a água e a terra, esse é o lugar à parte em que,
durante anos, Godard busca o sagrado que falta, que desvanece, que foi
retirado, o lugar onde o pensamento chega ao extremo, ao limite
(BERGALA, 1999, p, 284).
Neste sentido, Wittgenstein (1949 apud CARBÓ, 2011, p. 151),
para se referir ao inexplicável de que o mundo é, empregava o termo
“enigma” e, na mesma perspectiva, Merleau-Ponty (2009a, p. 50) dizia
196
que a nossa relação com o mundo se situa na ordem do mistério
incompreensível. No entanto, para que o secreto seja secreto, deve ser
desvelado e, assim, por natureza, ele é algo que não podemos guardar.
Vemos, dessa maneira, a luz rasgando as nuvens, que em Je vous salue,
Marie (1985) mostra uma sabedoria oculta, que se preserva,
precisamente, manifestando-se.
Nesse mesmo filme, as nuvens, os raios do sol se pondo e o
ligeiro tremor do vento sobre as flores dos campos mostram menos, e
querem, ao mesmo tempo, revelar mais. Já em Nouvelle Vague (1990), o
cineasta veio ao encontro dos mistérios do mundo, filmando os galhos
das árvores, o movimento de uma onda e nuvens passageiras a esconder
o sol. Novamente em Hélas pour moi (1993), há uma cena em que o
rosto de uma mulher é escurecido pela subexposição da luz de fundo.
Aqui, o diálogo visível e invisível volta a estar presente por meio do
recurso habitual à tela preta, ou seja, a ausência de imagem, voltando
depois para a tela branca (AUMONT, 2004a, p. 56-57).
Notamos que há uma imbricação (empiètement) ou uma
transposição/transbordamento (enjambemet), ou mais precisamente uma
precessão recíproca (précession reciproque) entre o visível da imagem e
o seu invisível, entre atividade e passividade, isto é, a presença e
ausência de imagem ficam orbitando em torno do filme, participando o
próprio espectador deste momento, percebendo que a obra
cinematográfica manifesta o fundo da própria visibilidade dela e dele
também.
A visibilidade, portanto, mostra as relações entre imagens e não
imagens do filme e suas implicações para aquele que a vê. Essas
relações são mais fortemente mostradas no cinema contemporâneo
(cineastas como Abbas Kiarostami e Hou Hsiao-Hsien são exemplares),
como é o caso também do filme “Zidane: um retrato do século XXI”
(2006), dos diretores Douglas Gordon e Philippe Parreno, que iremos
analisar logo mais à frente.
Voltando a Godard, por meio do uso recorrente, em sua obra, da
tela preta, que ora mostra o aparecimento da imagem, ora exibe sua
ausência, a luz se apaga e a imagem faz sombras nas outras diante do
que não pode ser mostrado, mas essa escuridão, em vez de supor uma
limitação, ilumina o invisível do visível. Esses são principalmente, em
Helas pour moi, a apresentação e o desenvolvimento do problema da
percepção do mistério e da vista que não alcança a visão.
Godard também se aproxima do mistério no filme Je vous salue,
Marie. Com essa obra, o cineasta francês queria remontar até às raízes
mais mágicas, mais inefáveis da imagem, e voltar também quase a uma
197
imagem metafísica da imagem: a imagem é uma manifestação, ou não é
imagem. E, apesar da violência suscitada por esse filme, ainda se mede
mal a diferenciação e a provocação do retorno à “representação” da
imagem e ao mistério que o filme propõe, se somente se lhe referir à
pintura e ao sagrado (AUMONT, 2004, p. 168-169).
A dinâmica da ausência e da presença, o paradoxo de mostrar a
figura do ausente, a evocação e a abertura do cerco hermético, ou seja,
simbólico, obrigam a liberar o olhar da opressão do próprio ato de ver.
Mergulho na noite do visível e, em seu reverso escuro, a luminescência
opaca ilumina desde seu fundo escuro. Esse cinema extremo, expressão
da violência originária, como procedimento violento de enunciação, é
um processo para expressar o outro, completamente (CARBÓ, 2011, p.
152-153).
O vazio irrepresentável quer um sacrifício, a subtração da
imagem até perder por completo a noção de imagem; há um
estremecimento da representação que surge do confronto entre dois
pontos de vista, semelhantes e diferentes ao mesmo tempo. Em Godard,
o visível ganha, com efeito, uma nova possibilidade, ou seja, a de
encontrar-se ali onde nada existe, um lugar do invisível.
São pertinentes as palavras deste cineasta francês: [...] eu sempre pensei que fazia filosofia, e que o
cinema é feito para fazer filosofia. Mas uma
filosofia mais interessante que aquela que se faz
nos livros, pois [no cinema] não precisamos
pensar, somos pensados. A tela pensa. Devemos
pois recolher [tal pensamento]. (...) Eis por que só
o cinema pode mostrar a história, se é que existe
uma. Basta olhá-la, pois [ela já] está filmada. Não
temos que escrever a história, pois somos escritos
por ela. O cinema é um traço. Ele registrou
imagens e isto não é uma re-elaboração literária
mais ou menos romanesca, ligada àquele que
escreve. É a tela que pensa, não o escriba. Há um
frase de São Paulo, tão importante para mim
quanto certas frases de Mao [Tse-tung], segundo a
qual “a imagem virá no dia da ressureição”. Antes
não havia imagem, mas apenas ensaios com os
milagres. O cinema é de algum modo a
ressureição do real (GODARD, 1989 apud
DUBOIS, 2004, p. 288).
A questão primordial do cinema em Godard não é nem da
representação (do mundo, ou do real, ou da sociedade ou do homem),
198
nem da narração. É uma questão do pensamento sob certa forma do
visível. No conjunto de sua obra, Godard insiste que o meio
cinematográfico é uma forma de pensamento, ou melhor, uma forma que
pensa. Mas pensamento de quê? A qual conceito de pensamento o
cinema corresponde? De fato, com referência ao diálogo entre cinema e
pensamento, Godard se aproxima de Deleuze, no qual o pensamento não
representa, ou ilumina, ou reflete o significado de algo que é. Justamente
como a criação da filosofia, do conceito, da forma-cinema, ele cria um
mundo possível. Logo, criar um filme não é criar um mundo, mas a
possibilidade de um mundo, que, em seguida, a câmera irá atualizar
(GODARD; ISHACHPOUR, 2000, p. 38).
Ainda nessa esteira, é a noção de movimento que liga o cinema
ao pensamento. Na medida em que o cinema é uma forma que pensa, é
também uma busca, uma “oração” para o movimento, isto é, o cineasta,
efetuando um movimento de câmera, é como se estivesse em constante
oração (GODARD; ISHACHPOUR, 2000, p. 28). Pensamento e
espetáculo cinematográfico se encontram na dimensão ou no registro do
movimento, não suas identidades, mas suas profundas afinidades. Nesse
registro, que é temporal e não espacial, imagem e pensamento
comunicam-se, ou melhor, transformam-se, intercambiam-se,
metamorfoseam-se, um dentro do outro, incessantemente.
Na verdade, o que se move não é o pensamento como um todo.
Consequentemente, o que se pode tirar do movimento do pensamento é
que ele pode sempre acontecer, tomar lugar na imagem cinematográfica,
na medida em que o movimento é algo que não está representado, mas
está inserido no próprio tempo presente. É a qualidade de
presentificação, em vez de presença, de ter lugar no presente, na tela,
que também podemos buscar e procurar no cinema de Godard.
A obra cinematográfica de Godard é atravessada pela questão da
carne, como a possibilidade de compartilhar o mundo. No filme
JLG/JLG ‒ Autoportrait de décembre (1995), o autor reflete sobre o
sentido da produção artística no cinema e sobre a sua postura de cineasta
que pensa. Não se trata de uma autobiografia, porém de um autorretrato,
uma vez que se assiste, em cada sequência fílmica, a tópicos
relacionados à decisão de fazer um filme. Há uma sequência cujo tema
dominante é o da montagem, e a personagem de uma jovem cega surge
para ajudar Godard a efetuar uma montagem, e toda a cena se desenrola
em torno de uma mesa de edições. De repente, ouvimos uma longa
passagem do livro “O visível e o invisível”, de Merleau-Ponty (2009a, p.
137) que é aquela da mão direita que toca a esquerda e vice-versa.
199
Esse trecho, ligeiramente modificado por Godard, provém de um
momento decisivo do capítulo sobre o entrelaçamento, o quiasma, em
que Merleau-Ponty começa a colocar o problema da presença do outrem
e de nosso acesso a outras paisagens que não são somente as nossas. O
fato de que nosso acesso à presença de outrem seja baseado sobre a
reversibilidade do sensível, faz com que a nossa a experiência do tocar,
torne-se também impessoal.
Dessa maneira, não há nenhum problema de alter ego, porque não
somos nós quem vê, nem aquele que vê, ambos somos habitados por
uma visibilidade anônima, uma visão em geral, sob a propriedade
primordial que pertence à carne, de estar aqui e agora, irradiar em todos
os lugares e sempre ser individual e ser como dimensão universal
(MERLEUA-PONTY, 2009a, p. 139). A universalidade do singular
perpassa todo o filme de Godard que é tão somente um retrato universal
de si mesmo.
Para Godard, na linha do pensamento de Merleau-Ponty, além da
mera percepção exterior, “a visão” conduz ao encontro do inesgotável,
daquilo que nunca nos será totalmente dado e, finalmente, do ponto
culminante dos horizontes soberanos que Merleau-Ponty denomina o
invisível. Se na percepção estava centrado o interesse inicial do filósofo
francês, o compromisso com a visão protagoniza a etapa final de seu
pensamento.
A visão é um invisível que sustenta enquanto se insinua nele, em
forma de algo como uma ausência. De acordo com Merleau-Ponty
(2004, p. 20), a pintura é a colocação em ação da redução
transcendental, pois ela coloca em suspenso o visível comum; ela rompe
nossa relação cotidiana com o mundo para mostrá-lo sob um novo dia.
A pintura (Klee), como o cinema (Godard, a partir de Klee), dá
existência visível ao que a visão profana crê invisível.
Notamos que, se a pintura está no cinema de Godard, não é
apenas pela retomada de certas imagens e representações, menos ainda,
unicamente, pela citação fetichista de certos quadros, nem de certos
pintores; porém ela está presente pela apropriação, pela renovação e
pelo desvio de problemáticas pictóricas. Talvez, ousar seja a palavra de
ordem, ousar, e não se deter na pintura, nem no cinema. Ousar
questionar, pensar, o mais profundamente, a própria relação da
representação com o visível.
Aqui, Godard embarcou em uma busca por transparência e
sombra, pois o cineasta não mostra nenhum interesse em representar
personagens ou situações bem definidas. Em vez disso, o seu olhar
transforma a sua atividade de ver, de volta sobre si mesmo, olhando não
200
para o que parece tão visível, mas ao modo do invisível no visível. No
nível mais fundamental, os tableaux vivants existentes em várias de suas
obras conduzem sua investigação de aparência, sublinhando a confiança
compartilhada na iluminação de ambas as artes: pintura e o cinema.
Godard medita sobre a ontologia da imagem pintada e a imagem
cinematográfica, como objetos semelhantes (AUMONT, 2004, p. 225-
226).
Nas explicações do autor Jacques Aumont (2004, p. 218): O conjunto de tais operações poderia,
comodamente, ser designado com uma palavra: é
uma cinematização, um devir cinema da pintura.
“Cinematização” e não cinetização: devir cinema,
e não simplesmente um vago devir movimento.
Exatamente no sentido em que Eisenstein,
propunha chamar “cinematismo” a retroação
conceitural e analítica do cinema sobre as artes
tradicionais (sobretudo a pintura e a literatura).
A partir desse viés, o cineasta francês materializa o sentido da
personificação do olhar pictórico, permitindo, por exemplo, que as
figuras se movam e mudem de posição em frente da câmera. Essa
mobilidade, promulgada com uma série de entradas e saídas, aparições e
desaparecimentos das figuras humanas, recria, na forma
cinematográfica, os estágios intermediários do processo de criação
pictórica, isto é, suas hesitações invisíveis, bem como as suas escolhas
visíveis. Porém, mesmo mais importante, a “alteridade” dos tableaux
fílmicos em relação às pinturas encontra-se na diferença conceitual entre
a pintura e a sua encenação como evento performativo (DUBOIS, 2004,
p. 254-255).
Godard desejou toda a sua vida empregar o cinema para “dar a
ver”, iluminar a escuridão, ou escurecer a luz, negar as evidências para
mergulhar no coração das coisas. Como já visto, a tela em branco da
obra Scenário du film “Passion” ou o céu e os ramos de árvores em Je
vous salue, Marie são a expressão de uma presença na ausência; esses
filmes apresentam a presença como ausência, deserção, a retirada no que
esta presença se mantêm, a região da presença ausente que em outro
tempo foi chamada de sagrado: a invisibilidade de um deus apartado em
sua unicidade (BERGALA, 1999, p. 265-266).
O cineasta desenvolve, assim, suas preocupações metafísicas por
meio de assédios ao cerco hermético da noção de segredo, de secreto.
Ele, através dos olhos fechados da personagem Olga do filme Notre
201
musique (2004), a jovem mártir do olhar angelical, faz da ideia do
contracampo a visão que escapa à própria vista. A última imagem de
Olga, que encerra o filme, é o primeiro plano dos seus olhos fechados.
No mesmo momento em que Olga, mulher de luz, entra em cena
correndo pelas ruas de Sarajevo, ouvimos uma voz em off que diz: “A
luz é o primeiro animal visível no visível” (GODARD, 2004 apud CARBÓ, 2011, 160). Depois disso, temos a tela preta, que é a imagem
no cinema que melhor reflete o mistério, o segredo do inescrutável. A
arte cinematográfica godardiana coloca a imagem no limite entre a
vidência, uma espécie de voyance merleaupontiana, e a cegueira, ou
seja, ver o invisível. Fechar os olhos, ou não fechar. Godard nos instrui à
visão interior.
“Ver o invisível esgota”, diz a voz do anjo no filme Hélas pour
moi. (GODARD, 1993 apud CARBÓ, 2011, 160). Vemos a tela em
branco, luminosa deserção do que está por ver em Scénario du film
“Passion”, os lençóis bem iluminados da cama vazia de Marie,
incandescência do invisível em Je vous salue, Marie, o rosto turvado
pela escuridão, a luz queimada do mistério em Hélas pour moi, o ícone
da Virgem de Cambrai em que somente vemos o nada em Notre
musique. Imagens do “silêncio primordial”, insaisissables,
imperceptíveis, inapreensíveis, nas palavras de Merleau-Ponty (2004, p.
44), a partir da expressão lapidar de Paul Klee.
Tanto para Merleau-Ponty como para Godard, essa imagem pode
ser compreendida como ícone, aquela que solicita o imaginário da
pintura, sendo uma forma de visível que comporta seu invisível. O ícone
é a imagem que associa ao visível seu invisível visível. É o duplo
interno das coisas que descendem nelas, é a visão que retornou, é a que a
reveste interiormente descendendo no visível. A visão, então, é ek-stase
(MERLEAU-PONTY, 1996, p. 174). O ícone é o lugar onde os olhares
se cruzam, o lugar do quiasma, de ver e de ser visto, do visível e do
invisível.
Podemos perceber que Merleau-Ponty (2004, p. 44) utiliza,
algumas vezes, o termo “ícone” para indicar o estatuto ontológico da
imagem na arte. O ícone como entrecruzamento do visível no invisível
equivale ao visível pictórico. A característica primordial do visível é ter
uma duplicação invisível, no sentido estrito, que a torna presente como
certa ausência. Trata-se de uma iconografia de visão entendida como a
ontologia do invisível no visível, contrariamente à ontologia de
representação.
Ver, portanto, é não ver; a verdade é aquela totalmente velada
(MERLEAU-PONTY, 1996, p. 268 e 278). É o mesmo sentido dos dois
202
extremos aparentemente opostos da visão que, para Godard, é o
paradoxo da imagem como pegada do invisível, os dois milagres de
nossos olhos cegos. O que podemos dizer além das imagens? Ouvimos
no final do filme Je vous salue, Marie: “No amor não se vê nada: nem
olhar, nem traços, ou algo parecido. Não, nossos corações tremem
somente diante da luz” (GODARD, 1985 apud CARBÓ, 2011, p. 162).
4.2.2 As Imagens-Carne de “Zidane: um retrato do século XXI”
Como já temos visto, para Merleau-Ponty, a potencialidade do
cinema está, principalmente, em sua capacidade para direcionar o nosso
ser-no-mundo. Embora o cinema moderno e contemporâneo ou a arte
midiática não estivesem na mente do filósofo quando ele dissertou, em
algumas ocasiões, sobre o cinema, uma capacidade semelhante pode ser
encontrada em diversas obras audiovisuais de fins do século XX e
começo do XXI. Este aspecto torna-se manifesto em um filme de 2006,
denominado “Zidane: um retrato do século XXI” (Zidane, un portrait
du XXIe siècle), uma produção francesa de dois artistas contemporâneos,
o escocês Douglas Gordon e o francês Philippe Parreno. Em linhas
gerais, é um retrato muito singular do francês Zinédine Zidane, um
jogador de futebol, que se aposentou em 2006 (BEUGNET, 2007, p.
171).
As imagens dessa obra fílmica são a de uma partida de futebol de
90 minutos, desde o pontapé inicial até o apito final. Foi mostrado, de
uma maneira muito peculiar, um jogo realizado em 23 de abril de 2005,
na cidade de Madrid, no Estádio Santiago Bernabéu, entre as equipes do
Real Madrid e do Villareal pelo Campeonato Espanhol de Futebol.
Gordon e Parreno conseguiram reunir uma equipe com os melhores
cinegrafistas, com dezessete câmeras instaladas ao redor do campo,
combinando o formato digital de Alta Definição (HD) com o da película
de 35 milímetros, incluindo duas câmeras, portando uma extremamente
poderosa lente teleobjetiva. O resultado final tem pouco a ver com uma
transmissão habitual de uma partida de futebol (HACKLIN, 2012, p.
177).
Aparecendo na tela como um objeto estranho, o filme de Gordon
e Parreno trabalha precisamente na junção entre diversas texturas de
imagens. Não pode ser considerado um típico documentário, nem um
convencional retrato filmado de uma pessoa. Entre o experimental e o
popular (a partida de futebol), o filme é uma espécie de poema, ou uma
pintura audiovisual, uma obra total sem síntese, sem precedentes, um
203
trabalho que abraça tudo o que a tecnologia de som e imagem tem para
oferecer para aquela data de produção.
É como um pensamento provocativo, uma profundamente
evocação corporal e carnal do mundo das imagens do final do século
XX e começo do XXI. Não é tanto a imagem de um sonho coletivo, mas
o sonho acordado de imagem, ou seja, o filme não é a representação de
um sonho, ou mesmo de uma realização ou materialização, mas a obra
cinematográfica sonhando-se, realizando-se, materializando-se,
tornando-se carne do mundo.
Os diretores comentaram que eles queriam aproximar-se do
jogador, para ficar sob sua pele, para seguir os seus passos no campo de
futebol, para entender o que é ser Zidane. Gordon e Parreno enfatizaram
que eles escolheram Zidane como protagonista deles, antes de começar
as filmagens, explicando que o jogador possuía certas qualidades, tais
como um rosto inacessível, que fez dele a escolha evidente e possível
para esse projeto audiovisual realmente inovador (HACKLIN, 2012, p.
179).
Podemos entender, ainda, que os diretores localizam a fonte de
seu projeto em sua experiência compartilhada de crescer com o futebol,
em um mundo cuja percepção era cada vez mais moldada pela televisão
nas décadas de 1970 a 1980. Vemos essas características nas primeiras
legendas baseadas na infância de Zidane e na experiência desse jogador
de assistir a futebol na TV. Todos esses fatos expressam uma mistura de
nostalgia e fascínio que conta tanto para a invocação do poder do filme
quanto para a força da expressão audiovisual, dando a ele um
surpreendentemente tom melancólico (BEUGNET, 2007, p. 172).
Para Colard (2006, p. 54), concentrando esse olhar múltiplo
unicamente em um jogador, Douglas Gordon e Philippe Parreno
operaram o que poderia ser chamado de uma pequena revolução
copernicana audiovisual, pois não são os jogadores que giram em torno
da bola, televisionados pela imagem de uma câmera onisciente e
onipotente, que abraça algo como uma “futesfera”, é pelo contrário, a
galáxia do estádio e sua maquinaria espetacular imagética que gira em
torno de um único jogador.
Está aqui uma fórmula fulgurante que ilumina nossa relação
contemporânea com as imagens, de modo que podemos afirmar que
vemos “segundo” ou “com” (selon ou avec) as imagens que povoam
nossa percepção, assim como o nosso imaginário. Essa concepção geral
da visão é uma tentativa de exprimir as relações do homem e do ser,
uma manifestação da visibilidade enquanto a minha carne e a carne do
mundo. Há uma imersão e inversão do olhar que revela nosso
204
pertencimento ao visível, assim como o parentesco entre o visível e os
videntes. Nas imagens fílmicas, há manifestação da precessão recíproca
(précession reciproque) da visão e do visível (CARBONE, 2011, p. 14-
16).
Nesse sentido, as imagens de “Zidane” orbitam em torno dele, do
espectador, da multidão e do próprio mundo. Mesmo considerando que
Zidane seja um dos jogadores mais famosos e melhores do mundo
naquele momento no tempo, o filme não procura enfatizar ou investigar
o mistério de uma lenda, de um mito, embora, em termos estritamente
cinematográficos, evoque o mundo épico ocidental. De fato, por meio de
empréstimos sob a forma do “Homem Vitruviano” de Leonardo da
Vinci, o logotipo composto por letras do nome do jogador, no início e
no final do filme, anuncia um campo muito mais flexível e mais amplo
de exploração do futebol e do corpo cinematográfico do jogador de
futebol, como a evocação da cosmografia imagética de um microcosmo
em órbita e em movimentos perfeitos.
Os realizadores, assim, constroem um retrato que é, em primeiro
lugar, uma experiência física e sensorial expansiva, um filme que abre
um espaço para várias imbricações e entrelaçamentos, precessões
temporais entre imagens e que funciona como um corpo, como uma
escultura em movimento audiovisual que acena para o espectador. Uma
maneira de ver, de viver futebol, de viver cinema de modo diferente,
como se viesse de dentro, da carne das imagens, um ser-imagem, uma
imagem-carne. E, de fato, nós, os espectadores, deixamo-nos, somos
levados, somos atraídos à experiência da visibilidade. Há uma
sobrecarga sensorial, um evento de expansão da percepção em que o
campo externo, embora nunca visto, é sempre sentido, sensível e
recomposto através das alterações na intensidade que afetam o domínio
audiovisual.
O corpo é um visível que vê, um visível que se torna vidente no
cerne da visibilidade. Ele não se conta exclusivamente entre as coisas,
no tecido do mundo, porém as sustenta como extensões dele mesmo,
inscritas em um mesmo estofo. A essa característica Merleau-Ponty
(2009a, p. 231), como já analisamos, atribuiu o nome de “carne”. O
termo expressa a unidade essencial entre corpo e mundo, a irresolução
do ser sensível que eu sou e de todo o resto que se sente em mim. Essa
espécie de ausência de divisão, contudo, é também a fissão que faz
nascer a massa sensível do corpo na massa sensível do mundo.
Por essa razão, a ideia de quiasma enfatiza a reversibilidade
primordial entre corpo e mundo, recobrindo a diferença fenomenológica
entre o sentido de ser da interioridade e o sentido de ser da
205
exterioridade, e rejeitando, ao mesmo tempo, considera-os como
apartados ou separáveis. Ambos os termos, carne e quiasma, auxiliam-
nos diante do filme. Ele parece trabalhar precisamente nesse
entrelaçamento, dessa precessão recíproca do visível com o invisível, de
uma presença que se afirma a partir de uma ausência.
Em “O visível e o invisível”, em meio a um movimento mais
radical de renúncia aos dualismos, Merleau-Ponty (2009a, p. 119-121)
se detém exatamente em um plano de comunhão sensível entre os
corpos, indivisos, ainda não sujeitos às diferenciações que os
enquadram. A carne é a espessura entre o que é visto e quem vê. Há uma
conexão em torno da carne que não está fundamentalmente vinculada à
sua visibilidade, mas, sim, tanto a visibilidade quanto a invisibilidade
configuram o entrelaçamento entre os seres. Os realizadores fazem eco a
essas afirmações quando filmam o jogador de futebol, em uma partida,
como um processo contínuo de interação entre corpos, em uma dinâmica
em que organismos e meio, ao invés de serem postulados como
autônomos e externos um ao outro, entrelaçam-se em um processo de
constituição recíproca.
Sair de si e entrar em si, entrar na imagem e sair dela, e vice-
versa: essa é a relação quiasmática que “Zidane” nos impõe. O vidente
não pode possuir o visível (que se afasta na sua transcendência) a tal
ponto em que ele mesmo pertence ao visível e está nele. Vidente e
visível, signo e sentido, interior e exterior, cada um desses termos,
frequentemente considerados como separados, só são eles mesmos
sendo o outro. O jogador Zidane não é um corpo que não diz “eu
penso”, mas “eu posso”. Entretanto, o “eu posso” ou “eu quero” só se
materializa agindo, realizando uma experiência, sendo essa própria
experiência. A experiência criadora da existência de uma falta, de uma
lacuna.
Merleau-Ponty enfatiza, a todo o instante, que é por transitividade
que vemos e tocamos e, ainda, vemo-nos e tocamo-nos. Os sentidos
atuam no quiasma: o olho tateia, as mãos observam, os olhos se
movimentam com o tato, o tato sustém pelos olhos nossa imobilidade e
mobilidade, compensando as duas coisas. Ou seja: o ponto principal é a
maneira como o corpo de Zidane absorve a exterioridade da experiência
e, concomitantemente, a razão reflexiva e a intencionalidade subjetiva,
criando uma composição que se nota ao efetivarem-se as transformações
que acontecem, não entre o exterior e o interior, mas na diluição dessa
diferença. O visível é um transcendente ao qual só é plausível
aproximar-se por uma experiência igualmente transcendente,
absolutamente fora de si, sem sair de si.
206
O que existe na obra fílmica são as sensações e a consciência que
temos de as estarmos sentindo. “Zidane” nos propõe um olhar não mais
diante do mundo, mas mergulhado nele, próximo em excesso, a ponto
de, às vezes, não enxergarmos com clareza os contornos das imagens,
sempre preenchidos de margens imprecisas. O que se estabelece com o
espectador não é um mecanismo de assimilação ou de empatia para com
o jogador/personagem e para com as situações em que ele está
envolvido dentro de campo, tampouco é uma afinidade fundamentada
em um raciocínio intelectual ou na comunicação de um discurso.
“Zidane” é uma obra que espelha a percepção de mundo típica do
indivíduo contemporâneo: confusão e miscelânea sensorial própria a
tudo aquilo que vem ao mundo como evento completamente novo,
particular, diferente. O impulso que o filme nos causa é da ordem do
sonho, no qual pensamentos, sentimentos e sensações ainda não
ganharam forma dentro de um corpus bem coordenado e coerente. Os
diretores jamais abrem mão, seja da plasticidade da imagem, seja da
narrativa imagética, antes revelam nelas uma pujança afetiva, uma força
sensível, que parece brotar de maneira análoga ao processo pictórico,
pelo qual passam os corpos do pintor Francis Bacon e as paisagens de
Cézanne, por exemplo.
O empenho maior é a composição de uma “abertura-às-coisas
sem conceito”, na inquirição dos modos como a imagem e seus
múltiplos elementos podem apresentar-nos coisas, corpos, um campo
verde, pessoas, em uma palavra, o mundo, como caso particular de uma
capacidade ontológica mais dilatada. O que se percebe no filme é que
somente nos sentimos estranhos e experimentamos profundamente uma
sensação quando não a compreendemos, isto é, quando não a vestimos
com o quer que seja e nos admitimos submergir em todos os seus
admissíveis nomes e caminhos. Desse modo, o filme, com seu
hibridismo de imagens, opera uma espécie de transgressão da
representação pela sensação.
“Zidane” redescobre a potência radiante do cinema dos primeiros
tempos, ou seja, um cinema de atrações e espetacular, e faz reviver o
poder evocativo dessa arte de registro. O filme vibra a cada imagem
com a possibilidade de uma vinculação latente a qualquer momento. É
um regresso à origem, todavia não é uma tábula rasa, pois não pretende
negar o legado imagético de um século de cinema, pintura, literatura e
artes visuais. Merleau-Ponty (2004, p. 35) vê algo parecido na busca de
Cézanne por outro tipo de profundidade. Em suas palavras: É a sua exterioridade conhecida em seu
envoltório, e sua dependência mútua em sua
207
autonomia. Da profundidade assim compreendida
não se pode mais dizer que é “terceira dimensão”.
Para começar, se houvesse alguma dimensão,
seria antes a primeira: só existem formas, planos
definidos se for estipulado a que distância de mim
se encontram suas diferentes partes. Mas uma
dimensão primeira e que contenha as outras não é
uma dimensão, ao menos no sentido ordinário de
uma certa relação segundo a qual se mede. A
profundidade assim compreendida é antes a
experiência da reversibilidade das dimensões, de
uma “localidade” global onde tudo é ao mesmo
tempo, cuja altura, largura e distância são
abstratas, de uma voluminosidade que exprimimos
numa palavra ao dizer que uma coisa está aí.78
Trabalhando em escala e textura, combinando uma multiplicidade
de ângulos, de planos e as qualidades visuais e sonoras, o filme toma a
questão do audiovisual de um extremo do espectro figural a outro, do
figurativo ao abstrato, de um ponto de vista de grandes angulares do
campo de jogo para ampliadas imagens que a tela torna um campo de
colorido “pixelizado”. A abertura dos créditos iniciais começa com
imagens de baixa resolução de todo o campo, filmado em uma tela de
TV e acompanhada pelo som de uma voz de um comentarista espanhol,
misturando-se com alguns acordes de uma guitarra elétrica. À medida
que a câmara chega progressivamente mais perto, a imagem se
transforma em uma composição abstrata, uma superfície tátil que lembra
os fios entrelaçados coloridos de tecido ou o efeito cintilante de uma
pintura do pontilhismo, ou seja, as imagens tornam-se pequenos pontos
ou manchas (BEUGNET, 2007, 173-174).
A música cresce lentamente, incorporando a trilha do filme: uma
atmosférica e melancólica melodia tocada pela banda de rock escocesa
“Mogwai”. A mudança para a visão de Alta Definição efetua uma súbita
78 Na versão original: C'est leur extériorité connue dans leur enveloppement et leur dé-
pendance mutuelle dans leur autonomie. De la profondeur ainsi comprise, on ne peut
plus dire qu'elle est “troisième dimension”. D'abord, si elle en était une, ce serait plutôt
la première: il n'y a de formes, de plans définis que si l'on stipule à quelle distance de
moi se trouvent leurs différentes parties. Mais une dimension première et qui contient les
autres n'est pas une dimension, du moins au sens ordinaire d'un certain rapport selon
lequel on mesure. La profon-deur ainsi comprise est plutôt l'expérience de la réversibilité
des di-mensions, d'une “localité” globale où tout est à la fois, dont hau-teur, largeur et
distance sont abstraites, d'une voluminosité qu'on exprime d'un mot en disant qu'une
chose est là (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 65).
208
mudança de regime ou camada visual, a mudança de uma forma de
“hapticidade” (a baixa resolução e a sensação granulada) para outra
(claras e detalhada com uma fina textura). A trilha sonora sofre uma
mudança semelhante, pois, de repente, o ruído da multidão
abruptamente estoura com um imediatismo forte. No entanto, isso não é
a passagem da TV para o cinema, mas a entrada na espessura da
imagem, dando-nos um sonhar acordado, uma manifestação cintilar. A
partir de então, o filme alternará de outro regime visual para outro,
combinando planos de imagens de transmissão televisiva com imagens
capturadas diretamente em campo, pelas dezessete câmeras, e dando
uma crescente preeminência às imagens cinematográficas, a medida que
o tempo passa.
No meio do filme, isto é, no segundo tempo do jogo, Gordon e
Parreno inserem uma montagem de cinejornais: imagens com
intertítulos, extraídas de notícias de televisão, transmissões para formar
uma evocação caleidoscópica de eventos que ocorreram no mesmo dia
da partida. Podemos ver desde fotos de inundações em Montenegro a
imagens de Elián González, jornalista de uma TV cubana, do anúncio de
venda de uma nave espacial do filme “Guerras nas Estrelas” no E-bay à
notícia da gravação de ondas de plasma pela sonda espacial Voyager, e a
descrição de um ataque terrorista em Najaf, no Iraque, que inclui uma
rápida imagem de um transeunte que ostenta uma camiseta do Real
Madrid, com o nome de Zidane.
“Zidane” consiste, por esse viés, em diversos sentidos de tempo.
Em primeiro lugar, há o tempo da percepção. Do ponto de vista de
Merleau-Ponty, é o tempo daquele que percebe, que conecta tanto o
passado quanto futuro. No cinema, como em outras artes temporais, a
memória do espectador é desafiada, uma vez que a obra de arte se
desenvolve em uma temporalidade. Dessa maneira, o significado das
imagens é dependente das imagens que a precedem, e a sucessão delas
cria uma nova realidade. Contudo essa totalidade não é simplesmente
uma soma dos elementos, porque o que conta em um filme não é
simplesmente a sua capacidade de “gravar” o tempo; o significado do
filme é incorporado também ao seu ritmo.
O filme sobrepõe uma variedade de tendências e de camadas
temporais: a triste evocação do século XX, por meio da televisão com
antigas transmissões, combinando com um eixo futurista de
interconexões globais e de imagens em alta definição, bem como o
enquadramento preciso do jogo capturado em “tempo real” e a
apaixonante, flutuante imbricação do filme como evento presente. Em
vez de construir uma convencional narrativa, com o drama do jogo
209
dominado pelo placar, pelo gol, pela ação, Gordon e Parreno usam o
ângulo múltiplo do material audiovisual, como matéria esculpida,
literalmente moldando o filme como um corpo de mudança de texturas e
intensidades, cheio de esquisitices, de buracos e de regiões obscuras
(COLARD, 2006, p. 54).
Concentrar-se em um único jogador é transformar o jogo em um
acontecimento incomum, um evento que está cheio de calmarias,
momentos de esperança, quebrado por mudanças abruptas de ritmo e de
tempo. O poder afetivo do filme é gerado menos pelo drama do jogo
como uma sequência de eventos do que pelo drama da transformação do
material imagético do filme. A obra é construída sobre uma série de
alternâncias, mudanças de direção dentro dos planos, mudanças na
escala e no foco, em ângulos e pontos de vista reunidos através da
montagem e da edição virtuosa a que correspondem diversos planos da
mesma ação em combinações rítmicas e tonais.
Essas alternâncias, como em uma composição musical, são
entrelaçadas com ou sem as flutuações da trilha sonora. O mais
impressionante é a passagem de composições sem forma ou quase
abstratas para percepções nítidas e cristalinas, por um corte seco, de um
extremo close-up para uma visão de grande-angular, do rugido
incipiente da multidão para o som de uma voz isolada ou da respiração
de Zidane, ou ele pedindo a bola para chutar. Operado pelo “olho
telelente” e a trilha sonora, o desaparecimento e o reaparecimento da
figura, aparentemente sob a dissolução de um feixe concentrado de
milhares de olhares, ou fundindo-se com o fundo, com o fervilhante
corpo coletivo da multidão, geram uma sensação de euforia em vez de
ameaça.
É a emoção de um potencial infinito para o quiasma, para a
visibilidade, que é encapsulado nestas flutuações, no foco e na mixagem
de som, e que é ecoado na descrição de Zidane de sua percepção, que
pode ser também a nossa, de seu ambiente quando está no campo de
jogo, dada em uma breve série de legendas e de intertítulos. Para
Zidane, quando você está profundamente dentro do jogo, realmente não
ouve a multidão. Ao mesmo tempo, você pode quase escolher o que
quer ouvir.
Os realizadores fazem uso acentuado das lentes teleobjetivas,
alternando o foco ampliado, close-up, ora para o jogador, ora para
multidão. O filme inclui estranhamente inserções pungentes de detalhes
visuais e sonoros, como os planos repetidos dos pés do jogador, as
pontas de suas chuteiras roçando a grama, uma mão suspensa em pleno
ar, o som de um suspiro. Esse dispositivo dá uma estranha sensação de
210
intimidade para certas cenas, esvaindo a sensação de profundidade para
o ponto no qual sentimos o olhar da câmera literalmente tocar o corpo
do jogador (BEUGNET, 2007, p. 174).
De fato, existem vários close-up do pescoço, do rosto e dos pés
de Zidane. Um close-up, o plano de detalhe, contém uma oposição
binária de proximidade e distância, bem como a noção de amplidão e
pequenez. Tradicionalmente, ao close-up tem sido conectada a ideia de
atraso: ele interrompe ou retarda a narração e a ação. Ele também
oferece um detalhe, de preferência o rosto de um ator, para o espectador
perceber algum ponto específico a que se queira dar ênfase. O close-up
também força o espectador a perder uma visão geral da situação, e esse
aspecto sugere uma proximidade com a abordagem merleaupontiana,
que sublinha a importância de perder a posição de um observador de
fora.
A partir da perspectiva fenomenológica, o close-up reivindica
para o corpo os sentidos do tato e do cheiro, especialmente quando a
câmera focaliza diferentes texturas, tais como a grama do campo. Em
outras palavras, há cenas em que o filme apresenta certa visão háptica.
Laura Marks (2000, p. 162) utiliza a distinção entre visão háptica e visão
óptica, mas hapticidade e opticidade não estão meramente nos olhos do
espectador. Pelo contrário, a obra de arte também pode oferecer imagens
táteis ou ópticas. Muitas vezes, as imagens hápticas não revelam uma
figura singular e identificável, porém mais ou menos impressões
ambivalentes. As imagens podem encorajar uma relação física entre o
espectador e a própria imagem.
Em “Zidane”, o entrelaçamento das imagens consiste de um ritmo
de visões hápticas e ópticas. A obra nega uma perspectiva em que o jogo
seria visto como um todo, dando apenas lampejos da partida. Podemos
sublinhar ainda que a visão háptica supera a distância, já que ela
incentiva um contato com o tato e reversível com o corpo do jogador,
tanto nas imagens como nos espectadores.
Os close-ups de “Zidane” podem ser vistos como uma visão
háptica, mas os planos fechadíssimos e a visão háptica não são
necessariamente idênticos. Há também outros tipos de planos
cinematográficos que podem trazer a visão háptica, como quando,
ocasionalmente, os close-ups ficam em paralelo com os jogadores e as
notícias e os comerciais virtualmente digitalizados circundam o campo
de jogo. Efeitos similares são alcançados quando a câmara filma o jogo
através de um monitor de televisão, ou nos momentos em que a imagem
está fora de foco e, assim, o jogador, de repente, rompe em pedaços,
211
girando as imagens fílmicas em uma miscelânea irreconhecível de pixels
(HACKLIN, 2013, p. 188).
Surpreendentemente, no extremo close-up no rosto, a gravação de
um minuto de movimentos faciais, o derramando de suor e, nos
momentos de ação, em particular, a forma como a telelente esmaga a
figura no fundo recordam o mundo dos filmes de western e, em
particular, os efeitos imagéticos destacados pelo cineasta Sergio Leone.
Nas acelerações brutais da velocidade, o tumulto de corpos se
acotovelando, o som de golpes, encontramos o eco repentino de
cavalgadas e tiroteios, de grupos de cavalos e cascos martelando o chão.
Além disso, a presença carismática de Zidane, com uma a mistura de
gentileza e temperamento explosivo, responsáveis por suas reações
imprevisíveis, lembra, às vezes, as figuras heroicas ambivalentes dos
filmes norte-americanos de caubóis.
O filme finaliza com Zidane recebendo um cartão vermelho
depois de uma briga ou discussão com o jogador do time adversário e
sendo expulso de campo. É um presságio curioso para o evento que
marcou a partida final de Copa do Mundo de 2006, em que também
Zidane foi expulso depois de agredir um jogador italiano com uma
cabeçada.
Podemos dizer que, no filme, há um quiasma que se torna visível
por meio da precessão recíproca que afeta e conecta os diversos
componentes/corpos que se encontram por meio do campo de
intensidade dessa obra: espectador do filme, jogador, time, multidão
dentro do estádio. Apesar de, ou graças ao seu jogo de escalas e texturas
e seu formato montagem, o filme não efetua uma fragmentação do
corpo, mas constrói novos distintivos agenciamentos que combinam o
corpo como carne, a imagem-carne (individual e coletiva, na tela e fora
da tela), e como uma entidade abstrata, espectador, jogador, equipe e
multidão são conectados como construções culturais, sociais e
históricas.
“Zidane” destaca sempre um momento em que nosso próprio
olhar, nosso desejo de olhar, é espelhado para voltar a nós. O filme é
capaz desse movimento, em que nós, como espectadores, mostramos
nosso próprio voyeurismo, nossos próprios desejos e esperanças que dão
suporte ao filme. De fato, o filme é uma inscrição do nosso olhar: a
tecnologia é um adjunto ao nosso desejo de ver, mas ela também se
volta contra nós, fazendo-nos e tornando-nos hesitantes em perguntar se
podemos encontrar sinais de nós mesmos no campo de futebol, saber se
o nosso desejo de alguma forma muda e afeta o que vemos (BEUGNET,
2007, p. 174-175).
212
Em última análise, essa obra cinematográfica se abre a um espaço
onde o pensamento dual (dentro/fora, corpo subjetivo/mundo objetivo,
significado abstrato/experiência concreta) deixa de fazer sentido. Para a
duração do filme, pelo menos, o espectador pode estar no passado e no
presente, atuar no campo de jogo como uma lenda ou em equipe; ele se
torna imagem, câmera, multidão, mundo ou, simplesmente, podemos
deixá-lo ser imerso no intenso campo sensorial do filme.
213
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As luzes diminuem ou apagam-se. Portas, cortinas, passos e
vozes, como pálpebras pesadas, fecham-se ou abafam-se, garantindo um
silêncio parcial das sombras do mundo, quase abandonado no exterior
de uma sala de projeção. Há uma erupção de luzes e de brilhos que
surgem na tela. Poltronas ou sofás geralmente confortáveis abrigam
certo repouso do corpo, porém não permitindo um total desativamento
do polo motor da ação. Contemplamos as imagens e somos, ao mesmo
tempo, contemplados por elas, que nos conduzem ao enigma do
possível. Entre a tela de imagens e o mundo, há uma reciprocidade. O
resultado dessa experiência é uma abertura para a percepção. O
espectador, então, pode-se entregar às impressões visuais, auditivas e
sinestésicas evocadas a partir dela. Impressões que lhe atravessam e
constituem o ser.
As artes, em suas múltiplas manifestações, e, especialmente, o
cinema, têm esse poder. A manifestação artística não surge como um
exame ou uma avaliação do mundo, porém como um procedimento
dinâmico e duradouro de criação, de recriação e de experimentação de
um mundo. Um processo que sugere uma coincidência de presença e
ausência, visibilidade e invisibilidade, perfeição e inacabamento,
totalidade e abertura. Uma experiência irreduzível à generalização,
experiência que, precisamente, por localizar-se além de nossas
possibilidades, estimula a pensar em uma unidade claramente paradoxal
entre o provisório e o transitório por natureza e o extemporâneo, sempre
análogo a si mesmo.
Esse talvez seja o compromisso que as artes levam consigo no
horizonte, e o cinema veio intensificar todos esses aspectos. Os autores
que trabalhamos no primeiro capítulo preocupavam-se em dizê-lo. De
maneira geral, para André Bazin, Amedee Ayfre, Jean Mitry e Rudolf
Arnheim, a imagem cinematográfica, intensificando as rupturas
apresentadas pela fotografia, dissolvia todas as incoerências da pintura,
do teatro e da literatura e assegurava, enfim, uma reprodução objetiva,
mecânica, autêntica da realidade a ponto de embaraçar-se com ela. Essa
relação singular, única, com o mundo poderia ser reverenciada, seguida
e cultivada. A partir dos irmãos Lumière, curiosamente, a permanente
inovação do mundo, cerne de todas as artes, ganhou em intensidade e,
ao mesmo tempo, banalizou-se.
Vimos que, em 1945, o filósofo Merleau-Ponty, na sua
conferência “O cinema e a nova psicologia”, entendia a imagem
cinematográfica enquanto uma gestalt, uma forma temporal, um todo
214
sem síntese, evidenciando a ligação natural entre o interior e o exterior,
e assegurando o olhar como composição de um sentido anterior à
inteligência. É nesta esteira que o filósofo mostrará as afinidades entre a
sétima arte e a psicologia da forma, colocando o cinema em sua crítica à
concepção clássica da percepção.
Daí a busca por uma noção de ser na existência fenomênica do
mundo, que não faz referência puramente a algo anterior à imagem, mas
que descreve e narra, e coloca em movimento, ao mesmo tempo, em um
ir e vir característico de nossa imaginação. O cinema, sob essa ótica,
pode ser visto como uma espécie de animação, abalizado pela natureza
flexível de seus elementos e procedimentos, em que corpos,
personagens, objetos, emoções e dramas estão continuamente em
formação, em um nascimento ininterrupto da matéria, da forma, do
sentido.
Nas suas primeiras obras, como “Fenomenologia da percepção”,
com as noções de corpo, visão e comportamento, Merleau-Ponty nos
auxilia a refletir acerca da arte fílmica como um movimento que não se
restringe, de maneira alguma, ao almejar artístico de um autor, nem ao
resultado obtido sobre o espectador, nem, ainda menos, a uma carga
intrínseca a obra, fora de contexto. Vemos um cinema capaz de
circunscrever a essência dos corpos, de fazer expressar o espaço e a luz
que lá estão, de capturar o olhar das coisas, dos objetos, dos seres, em
um exercício da faculdade de sentir que nos proporciona modos
diferenciados e imprevisíveis de resistirmos ao mundo.
Ao amplificarmos esse viés, a visão acarretará essencialmente a
possibilidade de se ver e de ser visto. Visível e móvel, o corpo computa-
se entre as coisas, como uma delas, aprisionado ao tecido do mundo.
Porém, exatamente porque vê e se move, o corpo conserva as coisas ao
seu redor, como uma espécie de anexo ou prolongamento. É isso que
induzirá o filósofo a dizer, posteriormente, não ser mais admissível
pensar de acordo com a separação entre sujeito e objeto.
Consequentemente, Merleau-Ponty buscará, na noção de carne e
de quiasma, de traço propriamente ontológico, uma maneira de
nomearmos em um movimento próprio, o ser aparentemente paradoxal
de nosso corpo como ser de “duas faces”, uma coisa entre as coisas e
aquilo que as vê e as toca (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 133). A carne
designa, ao mesmo tempo, a natureza reversível do corpo (visível e
vidente, corpo fenomenal e corpo objetivo, dentro e fora) e do mundo
(superfície e profundeza, visível e invisível, fato e “essência carnal”,
fenômeno e “ser de latência”, doação e contração, luz e trevas) e a
unidade fundamental entre corpo e mundo.
215
A noção de carne e sua estrutura quiasmática de reversibilidade
estabelece um equilíbrio entre a intimidade e alteridade, bem como entre
a identidade e a diferença e entre a unidade e a pluralidade. O que
Merleau-Ponty mostra é ainda maior do que o equilíbrio entre elas, algo
que estava intrínseco no diálogo entre sujeito e objeto na
“Fenomenologia da percepção”. Esse filósofo pretende, desse modo,
integrar também a carne dentro de sua ênfase sobre a criação do sentido
e do primado tanto da percepção, quanto da fenomenologia.
Já em “O olho e o espírito”, como examinamos, Merleau-Ponty
discute como a pintura possui um acesso privilegiado à reversibilidade
entre vidente e visível. Nesse sentido, o quiasma entre vidente e visível
institui uma reversibilidade na carne do mundo, denominada, nesse caso,
de visibilidade. Como visto, essa proliferação de reversibilidades ecoa-
se em “O visível e o invisível”, tal como um componente essencial da
carne, como o local de infinitas relações quiasmáticas, capaz de
estruturar uma cabal ontologia.
Nessa imersão no sensível, nesse movimento que aponta para
uma nova forma de compreender o ser, o mundo e a sua visibilidade,
Merleau-Ponty tracejou uma reaproximação com o cinema que não pôde
realizar-se cabalmente. Em algumas de suas últimas notas de trabalho, é
possível identificar a intenção do filósofo por uma investida filosófica
do cinema, não mais para esclarecer um pensamento pré-elaborado, o
cinema, agora, como a promoção da presença viva de nossa especular
carnalidade, uma forma particular de expressar o ser, uma estética que
se situa dentro de intenso diálogo do visível e do invisível.
As notas e os últimos ensaios do filósofo, como “O olho e o
espírito” e “O visível e o invisível” parecem entrever, ou pelo menos
inferir, as orientações por meio das quais a última fase do pensamento
de Merleau-Ponty teria podido desenvolver uma consideração
ontológica do cinema, realçando, mormente, seu caráter não mimético,
como uma apresentação de um inapresentável. Essa reaproximação
abarca a questão da visão, como existência visual, como a
reversibilidade da carne, isto é: “essa precessão do que é sobre o que se
vê e faz ver, do que se vê e faz ver sobre o que é” como “encontro,
como numa encruzilhada, de todos os aspectos do ser” (MERLEAU-
PONTY, 2004, p. 44).
Desse modo, a questão da reprodução objetiva ou subjetiva do
mundo que tanto interrompeu um novo pensamento da imagem e do
imaginário é totalmente revista, restituindo a visão sua força basilar de
manifestar mais do que ela própria. Para Merleau-Ponty, a visão é a
transformação das coisas mesmas em visão, visibilidade e também
216
vidência (voyance). Ser ou não ser visto são atributos das coisas, de seu
tornar-se presente. O que se pressupõe é a compreensão do filme não
como pura representação.
Ao colocar na tela um campo de árvores e flores, o cineasta não
as copia ou as reproduz. É impossível afastar sujeito de objeto, o ver do
que é visto, ambos compõem-se nessa relação de equivalência. Ao
mesmo tempo em que a paisagem sugere e o cineasta a filma, sua obra
compõe-se, buscando, nessa paisagem, o que falta à imagem para
alcançar sua integral expressão. Não temos aqui uma relação de causa e
efeito, assim também como não podemos considerar o cinema como
simples fabricação segundo a vontade do artista.
O cinema se constitui uma visibilidade, uma doação em carne
imprescindível para expressar o ser, capaz de pensar sobre nossa
amalgamação com o mundo e as coisas. Temos aqui um cinema que se
estabelece pela carnalidade e que se dirige a seu espectador de forma
direta e constante, procurando um ornamento de sensorialidade que dê a
ele atributos para realizar-se como discurso. O filme, então, cria um
tempo outro, em um fluxo de imagens sonoras e visuais que se atrelam
ou se interrompem, corpos que se avizinham e se distanciam, aparecem
e desaparecem. Além do mais, há o insurgir da imagem envolta em um
vai e vem das coisas à forma, do fato ao sentido, e vice-versa.
Essa característica faz ver um cinema que coloca em movimento,
por meio de todos os procedimentos e estratégias disponíveis, sem
hierarquizá-los, sem fazer diferença entre os termos e as naturezas, todos
imbricados e reversíveis, uma espécie de perseguição ou regresso a algo
mais elementar. Sendo assim, a profundidade, a cor, a forma, o traço, as
linhas, os corpos, os personagens, a intriga, o olhar são galhos do ser e
estão em precessão recíproca uns com os outros. Se cada um deles traz
consigo toda a folhagem, não existem questões apartadas, nem caminhos
ou estéticas categoricamente opostas, nem apostas parciais ou opções
sem recuo. (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 45).
Ver o cinema como ontologia do ser não é afirmar simplesmente
o primado da sensibilidade em detrimento das funções narrativas ou
discursivas do filme. Constitui-se uma maneira diferente de olhar para o
mundo, acolhendo uma demanda que vem dos filmes, uma lógica em
espiral, em que reconhecemos o aquém a que o cinema remete, uma
região de seres densos, compactos, interdependentes, abertos e
despedaçados, e direcionar sua procedência para esse informe, no
indeterminado dos traços, das forças, dos corpos, na produção de outra
temporalidade, de outra fruição.
217
Dessa maneira, Merleau-Ponty nos ajuda a compreender o cinema
moderno e também o contemporâneo, quando revela que a sobreposição
que oculta e torna virtual a visibilidade das coisas associa-se à
manifestação visível no mundo. Em outras palavras, as técnicas
cinematográficas têm, como eficácia a ser explorada, a solicitação de
uma abertura às coisas sem conceito: a intensidade de um rosto que um
close-up enfatiza, o plano-sequência que expressa a possibilidade sem
par de sentido, o sussurro indeciso dos movimentos, dos olhares, das
cores, dos cenários, tudo está conectado, interdependente, distintos,
porém simultâneos.
Um pintor, assim como um cineasta, faz regressar à luz aquilo
que dela desabrocha e, por isso, a visão do pintor é um nascimento
contínuo. As imagens de “Zidane: um retrato do século XXI” parecem
mesmo interrogar as coisas que dão acesso à visibilidade e se mostram
como existentes. Essa interrogação se faz na imagem, por meio dela, e
se dilata em nós espectadores, como uma celebração da origem
emblemática e febril das coisas em nosso corpo, que supõe, em
Merleau-Ponty, uma unidade ontológica e não uma rachadura entre ver e
pensar.
Não é sem motivo que, ao ponderar a respeito da pintura de
Cézanne, Merleau-Ponty defenderia a incoerência dessa dissensão e o
diálogo entre as artes. Para o filósofo, a primeira das pinturas vai até o
profundo do porvir, cada obra de arte cria, antecipadamente, todas as
outras. Portanto, para um cineasta como Jean-Luc Godard, o mundo
estará sempre por ser filmado, acabará sem ter sido findado. O cinema,
como a pintura, caminha por desvios, transgressões, imbricações e
quiasmas, o que não significa dizer que o pintor ou o cineasta não
saibam o que querem, “mas que o que eles querem está aquém dos
objetivos e dos meios, e comanda do alto toda a nossa atividade útil”
(MERLEAU-PONTY, 2004, p. 45).
Nesse sentido, as imagens godardianas incomodam nosso olhar
com suas arestas, reivindicando-nos uma presença absoluta, em virtude
de um sentido de configuração cuja ideia não nos é dada pelo “sentido
teorético”. É um mundo curioso que se vê instituído, renovado, ainda
não domesticado por nenhuma cultura e que nos pede para criar,
novamente, a cultura. Por isso, seus filmes dão a impressão da natureza
em origem, sua presença iminente.
Ao buscar um reencontro com um contato mais simples entre as
formas, as cores, os planos, os movimentos e o que propagam para nós,
ao desconstruir essas camadas de significados para poder reconstituí-las
na própria imagem, em seu fluxo e refluxo, Godard faz da experiência
218
cinematográfica uma experiência criadora que nos admite pensar não o
que já foi pensado, mas o que se esconde encoberto ao pensado. É o
impensado encarnado de Merleau-Ponty, fundo inexaurível do sensível.
O filme “Zidane: um retrato do século XXI” faz vir ao ser aquilo
que sem ele nos privaria de experimentá-lo, ou seja, o mundo de
imagens em profusão. Ele tateia ao redor de uma finalidade de exprimir
algo para o qual não possuímos um arquétipo, pois é o próprio filme, em
ato, que acende a via de acesso para o contato pelo qual é possível haver
experiência. Se “o Ser é aquilo que exige de nós criação para que dela
tenhamos experiência” (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 187), o trabalho
do cineasta é justamente captar as imagens como criação autônoma.
O cinema, portanto, é uma arte que nos faz ver ao invés de
explicar, em uma relação excepcional com a realidade, que atravessa
noções como mistério, ambiguidade, revelação e sentimento. Ao longo
desse processo, a imagem cinematográfica necessita ser vista como uma
não redução da realidade, movimentando-se cada vez mais próxima
dela, para sempre dependente dela. Os cineastas podem estar atentos
para a dimensão ontológica do cinema por meio, talvez, de uma
elaboração sempre situada e contextual, para além dos estilos, estéticas e
teorias.
Contudo o mais importante aqui é a compreensão de que um
filme, antes do que quer que seja, propõe-nos uma formulação
ontológica. Essa compreensão, que pode sobrepujar muitos dos dilemas
nos quais várias autores e cineastas se veem enredados, diz respeito
também a nós espectadores, porque a relação ontológica entre a imagem
e a realidade não se constitui em si mesma e se assegura no processo de
se oferecer, sem predeterminações.
Ao assistirmos às imagens fílmicas, algumas delas nos apanham,
arrastam-nos, como em um furacão, para algo que insiste como um
evento em suspensão. Elas simplesmente nos invadem. Pensamos de
dentro delas, como carne, e não apenas com elas. O filme se pensa em
mim ao expressar em mim com imagens para cujo sentido não tenho
modelos. Nisso, alguns cineastas elaboram narrativas para além das
causas ou dos efeitos, sem ênfase psicológica, moral ou ideológica, com
atenção diferenciada aos espaços, à caracterização dos personagens, à
acentuação hiperbólica da materialidade dos corpos, à relação carnal e
quiasmática entre estes e a paisagem e o cenário.
Podemos dizer que a aproximação com os diversos conceitos
filosóficos de Merleau-Ponty se faz sempre como um meio para se
provocar e produzir ideias encarnadas e aberturas investigativas. A
atitude desse diálogo está em não reduzir cinema à verificação de leis
219
preestabelecidas ou torná-lo um campo de exemplificação de conceitos e
de teses filosóficas. Uma imagem clama pelo imperativo irreprimível de
outra imagem. Esse ímpeto poderia garantir que o pensamento
encarnado sobre o cinema esteja sempre atento às transformações dos
meios e das formas, obrigando-nos a colocar, invariavelmente em
questão, nossa posição, nossas maneiras de ver e de pensar.
Por todas essas razões, o poder e o endereçamento da imagem,
sua aptidão de propor relações, suas possibilidades de causar
deslocamentos, de concretizar conceitos como carne e corpo não podem
ser tomados como meros produtos rejeitáveis depois de consumidos,
ainda que sejam permissíveis a essas ações. Discorrendo sobre a obra de
Cézanne, Merleau-Ponty (2004, p.121-126) pondera que esse pintor não
considerou ter que escolher entre a sensação e o pensamento, como entre
a ordem e o caos.
De fato, ele não almejava afastar as coisas fixas que brotavam ao
nosso olhar e sua maneira fugaz de vir ao mundo; ambicionava, sim,
pintar a matéria em vias de se formar, a ordem surgindo por uma
disposição irrefletida e impensada. O filósofo pontua que uma maçã
pintada de Cézanne é mais autêntica que todas as maçãs possíveis
reunidas. Ela “inventa” todas as outras maçãs, pois essa fruta, antes de
ter sido elaborada pictoricamente por Cézanne, ainda não era o que
passou a ser.
Entendemos que o filme entrega ao espectador a potência do
mundo que se torna imagem. Trança sua atenção em um domínio da
visibilidade, produzindo nela uma mistura dosada de fascinação,
sideração, mostração e curiosidade. O cinema, pelo arranjo importante
dos espaços e do tempo, afirma seu poder expressivo diante das coisas e
das pessoas, percebendo condutas, estilos de comportamento, ou seja,
maneiras de se estar no mundo que especificam o humano.
O pensamento filosófico de Merleau-Ponty consiste em revelar
sucessivamente que a obra cinematográfica não é, de forma alguma,
redutível àquilo que a motivou, pois envolve essencialmente
procedimentos específicos que ela mesma induz e mobiliza. Em outras
palavras, o filme pode ser apreendido estética e não didaticamente, já
que as ideias e os fatos são apenas os materiais da arte.
O filme não consiste em descrever as coisas ou em expor ideias,
mas em criar mecanismos próprios de uma visibilidade imagética, que,
de uma maneira quase infalível, situa o espectador em certo estado
fílmico. Nessa esteira, concluimos que o filme não significa nada além
de si mesmo. Assim, o cinema produz sua própria essência, sua
ontologia e, nesse sentido, permanece irredutível às outras artes.
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235
ANEXO
MERLEAU-PONTY, Maurice. Le Cinéma et la Nouvelle Psychologie.
Paris: Folio/Gallimard, 2009. p. 5-24.79
La psychologie classique considère notre champ visuel comme
une somme ou une mosaïque de sensations dont chacune dépendrait
strictement de l'excitation rétinienne locale qui lui correspond. La
nouvelle psychologie fait voir d'abord que, même à considérer nos
sensations les plus simples et les plus immédiates, nous ne pouvons
admettre ce parallélisme entre elles et le phénomène nerveux qui les
conditionne. Notre rétine est bien loin d'être homogène, en certaines de
ses parties, elle est aveugle par exemple pour le bleu ou pour le rouge, et
cependant, quand je regarde une surface bleue ou rouge, je n'y vois
aucune zone décolorée. C'est que, dès le niveau de la simple vision des
couleurs, ma perception ne se borne pas à enregistrer ce qui lui est
prescrit par les excitations rétiniennes, mais les réorganise de manière à
rétablir l'homogénéité du champ. D'une manière générale, nous devons
la concevoir, non comme une mosaïque, mais comme un système de
configurations. Ce qui est premier et vient d'abord dans notre perception,
ce ne sont pas des éléments juxtaposés, mais des ensembles. Nous
groupons les étoiles en constellations comme le faisaient déjà les
anciens, et pourtant beaucoup d'autres tracés de la carte céleste sont, a
priori, possibles. Si l'on nous présente la série:
a b c d e f g h i j
. . . . . . . . . .
nous accouplons toujours les points selon la formule a-b, c-d, e-f, etc.,
alors que le groupement b-c, d-e, f-g, etc., est en principe également
probable. Le malade qui contemple la tapisserie de sa chambre la voit
soudain se transformer si le dessin et la figure deviennent fond, pendant
que ce qui est vu d'ordinaire comme fond devient figure. L'aspect du
monde pour nous serait bouleversé si nous réussissions à voir comme
choses les intervalles entre les choses - par exemple l'espace entre les
arbres sur le boulevard - et réciproquement comme fond les choses
elles-mêmes -les arbres du boulevard. C'est ce qui arrive dans les
devinettes: le lapin ou le chasseur n'étaient pas visibles, parce que les
79 Publicado, inicialmente, na obra Sens et Non-sens (1966).
236
éléments de ces figures étaient disloqués et intégrés à d'autres formes:
par exemple ce qui sera l'oreille du lapin n'était encore que l'intervalle
vide entre deux arbres de la forêt. Le lapin et le chasseur apparaissent
par une nouvelle ségrégation du champ, par une nouvelle organisation
du tout. Le camouflage est l'art de masquer une forme en introduisant les
lignes principales qui la définissent dans d'autres formes plus
impérieuses.
Nous pouvons appliquer le même genre d'analyse aux perceptions
de l'ouïe. Simplement, il ne s'agira plus maintenant de formes dans
l'espace, mais de formes temporelles. Par exemple, une mélodie est une
figure sonore, elle ne se mêle pas aux bruits de fond qui peuvent
l'accompagner, comme le bruit d'un klaxon que l'on entend au loin
pendant un concert. La mélodie n'est pas une somme de notes: chaque
note ne compte que par la fonction qu'elle exerce dans l'ensemble, et
c'est pourquoi la mélodie n'est pas sensiblement changée si on la
transpose, c'est-à-dire si l'on change toutes les notes qui la composent,
en respectant les rapports et la structure de l'ensemble. Par contre un
seul changement dans ces rapports suffit à modifier la physionomie
totale de la mélodie. Cette perception de l'ensemble est plus naturelle et
plus primitive que celle des éléments isolés: dans les expériences sur le
réflexe conditionné où l'on dresse des chiens à répondre par une
sécrétion salivaire à une lumière ou à un son, en associant fréquemment
cette lumière ou ce son à la présentation d'un morceau de viande, on
constate que le dressage acquis à l'égard d'une certaine suite de notes est
acquis du même coup à l'égard de toute mélodie de même structure. La
perception analytique, qui nous donne la valeur absolue des éléments
isolés, correspond donc à une attitude tardive et exceptionnelle, c'est
celle du savant qui observe ou du philosophe qui réfléchit, la perception
des formes, au sens très général de: structure, ensemble ou
configuration, doit être considérée comme notre mode de perception
spontané.
Sur un autre point encore, la psychologie moderne renverse les
préjugés de la physiologie et de la psychologie classiques. C'est un lieu
commun de dire que nous avons cinq sens et, à première vue, chacun
d'eux est comme un monde sans communication avec les autres. La
lumière ou les couleurs qui agissent sur l’oeil n'agissent pas sur les
oreilles ni sur le toucher. Et cependant on sait depuis longtemps que
certains aveugles arrivent à se représenter les couleurs qu'ils ne voient
pas par le moyen des sons qu'ils entendent. Par exemple un aveugle
disait que le rouge devait être quelque chose comme un coup de
trompette. Mais on a longtemps pensé qu'il s'agissait là de phénomènes
237
exceptionnels. En réalité le phénomène est général. Dans l'intoxication
par la mescaline, les sons sont régulièrement accompagnés par des
taches de couleur dont la nuance, la forme et la hauteur varient avec le
timbre, l'intensité et la hauteur des sons. Même les sujets normaux
parlent de couleurs chaudes, froides, criardes ou dures, de sons clairs,
aigus, éclatants, rugueux ou moelleux, de bruits mous, de parfums
pénétrants. Cézanne disait qu'on voit le velouté, la dureté, la mollesse, et
même l'odeur des objets. Ma perception n'est donc pas une somme de
données visuelles, tactiles, auditives, je perçois d'une manière indivise
avec mon être total, je saisis une structure unique de la chose, une
unique manière d'exister qui parle à la fois à tous mes sens.
Naturellement la psychologie classique savait bien qu'il y a des
relations entre les différentes parties de mon champ visuel comme entre
les données de mes différents sens. Mais pour elle cette unicité était
construite, elle la rapportait à l'intelligence et à la mémoire. Je dis que je
vois des hommes passer dans la rue, écrit Descartes dans un célèbre
passage des Méditations, mais en réalité que vois-je au juste? Je ne vois
que des chapeaux et des manteaux, qui pourraient aussi bien recouvrir
des poupées qui ne se remuent que par ressorts, et si je dis que je vois
des hommes, c'est que je saisis «par une inspection de l'esprit ce que je
croyais voir de mes yeux ». Je suis persuadé que les objets continuent
d'exister quand je ne les vois pas, et par exemple derrière mon dos. Mais
de toute évidence, pour la pensée classique, ces objets invisibles ne
subsistent pour moi que parce que mon jugement les maintient présents.
Même les objets devant moi ne sont pas proprement vus, mais seulement
pensés. Ainsi je ne saurais voir un cube, c'est-à-dire un solide formé de
six faces et de douze arêtes égales, je ne vois jamais qu'une figure
perceptive dans laquelle les faces latérales sont déformées et la face
dorsale complètement cachée. Si je parle de cubes, c'est que mon esprit
redresse ces apparences, restitue la face cachée. Je ne peux voir le cube
selon sa définition géométrique, je ne puis que le penser. La perception
du mouvement montre encore mieux à quel point l'intelligence intervient
dans la prétendue vision. Au moment où mon train, arrêté en gare, se
met en marche, il arrive souvent que je croie voir démarrer celui qui est
arrêté à côté du mien. Les données sensorielles par elles-mêmes sont
donc neutres et capables de recevoir différentes interprétations selon
l'hypothèse à laquelle mon esprit s'arrêtera. D'une manière générale, la
psychologie classique fait donc de la perception un véritable déchiffrage
par l'intelligence des données sensibles et comme un commencement de
science. Des signes me sont donnés, et il faut que j'en dégage la
signification, un texte m'est offert et il faut que je le lise ou l'interprète.
238
Même quand elle tient compte de l'unité du champ perceptif, la
psychologie classique reste encore fidèle à la notion de sensation, qui
fournit le point de départ de l'analyse; c'est parce qu'elle a d'abord conçu
les données visuelles comme une mosaïque de sensation qu'elle a besoin
de fonder l'unité du champ perceptif sur une opération de l'intelligence.
Que nous apporte sur ce point la théorie de la Forme? En rejetant
résolument la notion de sensation, elle nous apprend à ne plus distinguer
les signes et leur signification, ce qui est senti et ce qui est jugé.
Comment pourrions-nous définir exactement la couleur d'un objet sans
mentionner la substance dont il est fait, par exemple la couleur bleue de
ce tapis sans dire que c'est un «bleu laineux»? Cézanne avait posé la
question: comment distinguer dans les choses leur couleur et leur
dessin? il ne saurait être question de comprendre la perception comme
l'imposition d'une certaine signification à certains signes sensibles,
puisque ces signes ne sauraient être décrits dans leur texture sensible la
plus immédiate sans référence à l'objet qu'ils signifient. Si nous
reconnaissons sous un éclairage changeant un objet défini par des
propriétés constantes, ce n'est pas que l'intelligence fasse entrer en
compte la nature de la lumière incidente et en déduise la couleur réelle
de l'objet, c'est que la lumière dominante du milieu, agissant comme
éclairage, assigne immédiatement à l'objet sa vraie couleur. Si nous
regardons deux assiettes inégalement éclairées, elles nous paraissent
également blanches et inégalement éclairées tant que le faisceau de
lumière qui vient de la fenêtre figure dans notre champ visuel. Si, au
contraire, nous observons les mêmes assiettes à travers un écran percé
d'un trou, aussitôt l'une d'elles nous paraît grise et l'autre blanche, et
même si nous savons que ce n'est là qu'un effet d'éclairage, aucune
analyse intellectuelle des apparences ne vous fera voir la vraie couleur
des deux assiettes. La permanence des couleurs et des objets n'est donc
pas construite par l'intelligence, mais saisie par le regard en tant qu'il
épouse ou adopte l'organisation du champ visuel. Quand nous allumons
à la tombée du jour, la lumière électrique nous paraît d'abord jaune, un
moment plus tard elle tend à perdre toute couleur définie, et
corrélativement les objets, qui d'abord étaient sensiblement modifiés
dans leur couleur, reprennent un aspect comparable à celui qu'ils ont
pendant la journée. Les objets et l'éclairage forment un système qui tend
vers une certaine constance et vers un certain niveau stable, non par
l'opération de l'intelligence, mais par la configuration même du champ.
Quand je perçois, je ne pense pas le monde, il s'organise devant moi.
Quand je perçois un cube, ce n'est pas que ma raison redresse les
apparences perceptives et pense à propos d'elles la définition
239
géométrique du cube. Loin que je les corrige, je ne remarque pas même
les déformations perceptives, à travers ce que je vois je suis au cube lui-
même dans son évidence. Et de même les objets derrière mon dos ne me
sont pas représentés par quelque opération de la mémoire ou du
jugement, ils me sont présents, ils comptent pour moi, comme le fond
que je ne vois pas n'en continue pas moins d'être présent sous la figure
qui le masque en partie. Même la perception du mouvement, qui d'abord
paraît dépendre directement du point de repère que l'intelligence choisit,
n'est à son tour qu'un élément dans l'organisation globale du champ. Car
s'il est vrai que mon train et le train voisin peuvent tour à tour
m'apparaître en mouvement au moment où l'un d'eux démarre, il faut
remarquer que l'illusion n'est pas arbitraire et que je ne puis la provoquer
à volonté par le choix tout intellectuel et désintéressé d'un point de
repère. Si je joue aux cartes dans mon compartiment, c'est le train voisin
qui démarre. Si, au contraire, je cherche des yeux quelqu'un dans le train
voisin, c'est alors le mien qui démarre. À chaque fois nous apparaît fixe
celui des deux où nous avons élu domicile et qui est notre milieu du
moment. Le mouvement et le repos se distribuent pour nous dans notre
entourage, non pas selon les hypothèses qu'il plaît à notre intelligence de
construire, mais selon la manière dont nous nous fixons dans le monde
et selon la situation que notre corps y assume. Tantôt je vois le clocher
immobile dans le ciel et les nuages qui volent au-dessus de lui - tantôt au
contraire les nuages semblent immobiles et le clocher tombe à travers
l'espace, mais ici encore le choix du point fixe n'est pas le fait de
l'intelligence: l'objet que je regarde et où je jette l'ancre m'apparaît
toujours fixe et je ne puis lui ôter cette signification qu'en regardant
ailleurs. Je ne la lui donne donc pas non plus par la pensée. La
perception n'est pas une sorte de science commençante, et un premier
exercice de l'intelligence, il nous faut retrouver un commerce avec le
monde et une présence au monde plus vieux que l'intelligence.
Enfin la nouvelle psychologie apporte aussi une conception neuve
de la perception d'autrui. La psychologie classique acceptait sans
discussion la distinction de l'observation intérieure ou introspection et de
l'observation extérieure. Les « faits psychiques» -la colère, la peur par
exemple - ne pouvaient être directement connus que du dedans et par
celui qui les éprouvait. On tenait pour évident que je ne puis, du dehors,
saisir que les signes corporels de la colère ou de la peur, et que, pour
interpréter ces signes, je dois recourir à la connaissance que j'ai de la
colère ou de la peur en moi-même et par introspection. Les
psychologues d'aujourd'hui font remarquer que l'introspection, en réalité,
ne me donne presque rien. Si j'essaye d'étudier l'amour ou la haine par la
240
pure observation intérieure, je ne trouve que peu de choses à décrire:
quelques angoisses, quelques palpitations de coeur, en somme des
troubles banaux qui ne me révèlent pas l'essence de l'amour ni de la
haine. Chaque fois que j'arrive à des remarques intéressantes, c'est que je
ne me suis pas contenté de coïncider avec mon sentiment, c'est que j'ai
réussi à l'étudier comme un comportement, comme une modification de
mes rapports avec autrui et avec le monde, c'est que je suis parvenu à le
penser comme je pense le comportement d'une autre personne dont je
me trouve être témoin. En fait les jeunes enfants comprennent les gestes
et les expressions de physionomie bien avant d'être capables de les
reproduire pour leur compte, il faut donc que le sens de ces conduites
leur soit pour ainsi dire adhérent. Il nous faut rejeter ici ce préjugé qui
fait de l'amour, de la haine ou de la colère des «réalités intérieures»
accessibles à un seul témoin, celui qui les éprouve. Colère, honte, haine,
amour ne sont pas des faits psychiques cachés au plus profond de la
conscience d'autrui, ce sont des types de comportement ou des styles de
conduite visibles du dehors. Ils sont sur ce visage ou dans ces gestes et
non pas cachés derrière eux. La psychologie n'a commencé de se
développer que le jour où elle a renoncé à distinguer le corps et l'esprit,
où elle a abandonné les deux méthodes corrélatives de l'observation
intérieure et de la psychologie physiologique. On ne nous apprenait rien
sur l'émotion tant qu'on se bornait à mesurer la vitesse de la respiration
ou celle des battements du coeur dans la colère - et on ne nous apprenait
rien non plus sur la colère quand on essayait de rendre la nuance
qualitative et indicible de la colère vécue. Faire la psychologie de la
colère, c'est chercher à fixer le sens de la colère, c'est se demander
quelle en est la fonction dans une vie humaine et en quelque sorte à quoi
elle sert. On trouve ainsi que l'émotion est, comme dit Janet, une
réaction de désorganisation qui intervient lorsque nous sommes engagés
dans une impasse - plus profondément, on trouve, comme l'a montré
Sartre, que la colère est une conduite magique par laquelle, renonçant à
l'action efficace dans le monde, nous nous donnons dans l'imaginaire
une satisfaction toute symbolique, comme celui qui, dans une
conversation, ne pouvant convaincre son interlocuteur, en vient aux
injures qui ne prouvent rien, ou comme celui qui, n'osant pas frapper son
ennemi, se contente de lui montrer le poing de loin. Puisque l'émotion
n'est pas un fait psychique et interne, mais une variation de nos rapports
avec autrui et avec le monde lisible dans notre attitude corporelle, il ne
faut pas dire que seuls les signes de la colère ou de l'amour sont donnés
au spectateur étranger et qu'autrui est saisi indirectement et par une
interprétation de ces signes, il faut dire qu'autrui m'est donné avec
241
évidence comme comportement. Notre science du comportement va
beaucoup plus loin que nous le croyons. Si l'on présente à des sujets non
prévenus la photographie de plusieurs visages, de plusieurs silhouettes,
la reproduction de plusieurs écritures et l'enregistrement de plusieurs
voix, et si on leur demande d'assembler un visage, une silhouette, une
voix, une écriture, on constate que, d'une manière générale, l'assemblage
est fait correctement ou qu'en tout cas le nombre des assortiments
corrects l'emporte de beaucoup sur celui des assortiments erronés.
L'écriture de Michel-Ange est attribuée à Raphaël dans 36 cas, mais elle
est correctement identifiée dans 221 cas. C'est donc que nous
reconnaissons une certaine structure commune à la voix, à la
physionomie, aux gestes et à l'allure de chaque personne, chaque
personne n'est rien d'autre pour nous que cette structure ou cette manière
d'être au monde.
On entrevoit comment ces remarques pourraient être appliquées à la
psychologie du langage: de même que le corps et l’«âme» d'un homme
ne sont que deux aspects de sa manière d'être au monde, de même le mot
et la pensée qu'il désigne ne doivent pas être considérés comme deux
termes extérieurs et le mot porte sa signification comme le corps est
l'incarnation d'un comportement.
D'une manière générale, la nouvelle psychologie nous fait voir
dans l'homme, non pas un entendement qui construit le monde, mais un
être qui y est jeté et qui y est attaché comme par un lien naturel. Par
suite elle nous réapprend à voir ce monde avec lequel nous sommes en
contact par toute la surface de notre être, tandis que la psychologie
classique délaissait le monde vécu pour celui que l'intelligence
scientifique réussit à construire.
Si maintenant nous considérons le film comme un objet à
percevoir, nous pouvons appliquer à la perception du film tout ce qui
vient d'être dit de la perception en général. Et l'on va voir que, de ce
point de vue, la nature et la signification du film s'éclairent et que la
nouvelle psychologie nous conduit précisément aux remarques des
meilleurs des esthéticiens du cinéma.
Disons d'abord qu'un film n'est pas une somme d'images mais une
forme temporelle. C'est le moment de rappeler la fameuse expérience de
Poudovkine qui met en évidence l'unité mélodique du film. Poudovkine
prit un jour un gros plan de Mosjoukine impassible, et le projeta précédé
d'abord d'une assiette de potage, ensuite d'une jeune femme morte dans
242
son cercueil et enfin d'un enfant jouant avec un ourson de peluche. On
s'aperçut d'abord que Mosjoukine avait l'air de regarder l'assiette, la
jeune femme et l'enfant, et ensuite qu'il regardait l'assiette d'un air
pensif, la femme avec douleur, l'enfant avec un lumineux sourire, et le
public fut émerveillé par la variété de ses expressions, alors qu'en réalité
la même vue avait servi trois fois et qu'elle était remarquablement
inexpressive. Le sens d'une image dépend donc de celles qui la
précèdent dans le film, et leur succession crée une réalité nouvelle qui
n'est pas la simple somme des éléments employés. R. Leenhardt ajoutait,
dans un excellent article (Esprit, année 1936), qu'il fallait encore faire
intervenir la durée de chaque image: une courte durée convient au
sourire amusé, une durée moyenne au visage indifférent, une longue
durée à l'expression douloureuse. De là Leenhardt tirait cette définition
du rythme cinématographique: «Un ordre des vues tel, et, pour chacune
de ces vues ou “plans”, une durée telle que l'ensemble produise
l'impression cherchée avec le maximum d'effet. » il y a donc une
véritable métrique cinématographique dont l'exigence est très précise et
très impérieuse. «Voyant un film, essayez-vous à deviner l'instant où
une image ayant donné son plein, elle va, elle doit finir, être remplacée
(que ce soit changement d'angle, de distance ou de champ). Vous
apprendrez à connaître ce malaise à la poitrine que produit une vue trop
longue qui “freine” le mouvement ou ce délicieux acquiescement intime
lorsqu'un plan, “passe” exactement...» (Leenhardt). Comme il y a dans
le film, outre la sélection des vues (ou plans), de leur ordre et de leur
durée, qui constitue le montage, une sélection des scènes ou séquences,
de leur ordre et de leur durée, qui constitue le découpage, le film
apparaît comme une forme extrêmement complexe à l'intérieur de
laquelle des actions et des réactions extrêmement nombreuses s'exercent
à chaque moment, dont les lois restent à découvrir et n'ont été jusqu'ici
que devinées par le flair ou le tact du metteur en scène qui manie le
langage cinématographique comme l'homme parlant manie la syntaxe,
sans y penser expressément, et sans être toujours en mesure de formuler
les règles qu'il observe spontanément.
Ce que nous venons de dire du film visuel s'applique aussi au film
sonore, qui n'est pas une somme de mots ou de bruits, mais lui aussi une
forme. Il y a un rythme du son comme de l'image. Il y a un montage des
bruits et des sons, dont Leenhardt trouvait un exemple dans un vieux
film sonore Broadway Melody. «Deux acteurs sont en scène. Du haut
des galeries on les entend déclamer. Puis immédiatement, gros plan,
timbre de chuchotement, on perçoit un mot qu'ils échangent à voix
basse... » La force expressive de ce montage consiste en ce qu'il nous
243
fait sentir la coexistence, la simultanéité des vies dans le même monde,
les acteurs pour nous et pour eux-mêmes - comme tout à l'heure le
montage visuel de Poudovkine liait l'homme et son regard aux
spectacles qui l'entourent. Comme le film visuel n'est pas la simple
photographie en mouvement d'un drame, et comme le choix et
l'assemblage des images constituent pour le cinéma un moyen
d'expression original, de même le son au cinéma n'est pas la simple
reproduction phonographique des bruits et des paroles, mais comporte
une certaine organisation interne que le créateur du film doit inventer.
Le véritable ancêtre du son cinématographique n'est pas le phonographe,
mais le montage radiophonique.
Ce n'est pas tout. Nous venons de considérer l'image et le son tour
à tour. Mais en réalité leur assemblage fait encore une fois un tout
nouveau et irréductible aux éléments qui entrent dans sa composition.
Un film sonore n'est pas un film muet agrémenté de sons et de paroles
qui ne seraient destinés qu'à compléter l'illusion cinématographique. Le
lien du son et de l'image est beaucoup plus étroit et l'image est
transformée par le voisinage du son. Nous nous en apercevons bien à la
projection d'un film doublé où l'on fait parler des maigres avec des voix
de gras, des jeunes avec des voix de vieux, des grands avec des voix de
minuscules, ce qui est absurde, si, comme nous l'avons dit, la voix. la
silhouette et le caractère forment un tout . . indécomposable. Mais
l'union du son et de l'image ne se fait pas seulement dans chaque
personnage, elle se fait dans le film entier. Ce n'est pas par hasard qu'à
tel moment les personnages se taisent et qu'à tel autre moment ils
parlent. L'alternance des paroles et du silence est ménagée pour le plus
grand effet de l'image. Comme le disait Malraux (Verve, 1940), il y a
trois sortes de dialogues. D'abord le dialogue d'exposition, destiné à
faire connaître les circonstances de l'action dramatique. Le roman et le
cinéma l'évitent d'un commun accord. Ensuite le dialogue de ton qui
nous donne l'accent de chaque personnage, et qui domine, par exemple,
chez Proust, dont les personnages se voient très mal et par contre se
reconnaissent admirablement dès qu’ils commencent à parler. La
prodigalité ou l'avarice des mots, la plénitude ou le creux des paroles,
leur exactitude ou leur affectation font sentir l'essence d'un personnage
plus sûrement que beaucoup de descriptions. Il n'y a guère de dialogue
de ton au cinéma, la présence visible de l'acteur avec son comportement
propre ne s'y prête qu'exceptionnellement. Enfin il y a un dialogue de
scène, qui nous présente le débat et la confrontation des personnages,
c'est le principal du dialogue au cinéma. Or, il est loin d'être constant.
Au théâtre on parle sans cesse, mais non au cinéma. «Dans les derniers
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films, disait Malraux, le metteur en scène passe au dialogue après de
grandes parties de muet exactement comme un romancier passe au
dialogue après de grandes parties de récit. » La répartition des silences
et du dialogue constitue donc, par~delà la métrique visuelle et la
métrique sonore, une métrique plus complexe qui superpose ses
exigences à celles des deux premières.
Encore faudrait-il, pour être complet, analyser le rôle de la musique à
l'intérieur de cet ensemble. Disons seulement qu'elle doit s'y incorporer
et non pas s'y juxtaposer. Elle ne devra donc pas servir à boucher les
trous sonores. ni à commenter d'une manière tout extérieure les
sentiments et les images, comme il arrive dans tant de films où l'orage
de la colère déclenche l'orage des cuivres et où la musique imite
laborieusement un bruit de pas ou la chute d'une pièce de monnaie sur le
sol. Elle interviendra pour marquer un changement de style du film, par
exemple le passage d'une scène d'action à 1'« intérieur» du personnage,
à un rappel de scènes antérieures ou à la description d'un paysage; d'une
manière générale elle accompagne et elle contribue à réaliser, comme
disait Jaubert (Esprit, année 1936), une «rupture d'équilibre sensoriel».
Enfin, il ne faut pas qu'elle soit un autre moyen d'expression juxtaposé à
l'expression visuelle, mais que «par des moyens rigoureusement
musicaux - rythme, forme, instrumentation - elle recrée, sous la matière
plastique de l'image, une matière sonore, par une mystérieuse alchimie
de correspondances qui devrait être le fondement même du métier de
compositeur de film; qu'elle nous rende enfin physiquement sensible le
rythme interne de l'image sans pour cela s'efforcer d'en traduire le
contenu sentimental, dramatique ou poétique » (Jaubert). La parole, au
cinéma, n'est pas chargée d'ajouter des idées aux images, ni la musique
des sentiments. L'ensemble nous dit quelque chose de très précis qui
n'est ni une pensée, ni un rappel des sentiments de la vie.
Que signifie, que veut donc dire le film? Chaque film raconte une
histoire, c'est-à-dire un certain nombre d'événements qui mettent aux
prises des personnages et qui peuvent être aussi racontés en prose,
comme ils le sont effectivement dans le scénario d'après lequel le film
est fait. Le cinéma parlant, avec son dialogue souvent envahissant,
complète notre illusion. On conçoit donc souvent le film comme la
représentation visuelle et sonore, la reproduction aussi fidèle que
possible d'un drame que la littérature ne pourrait évoquer qu'avec des
mots et que le cinéma a la bonne fortune de pouvoir photographier. Ce
qui entretient l'équivoque, c'est qu'il y a en effet un réalisme
fondamental du cinéma: les acteurs doivent jouer naturel, la mise en
scène doit être aussi vraisemblable que possible car «la puissance de
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réalité que dégage l'écran, dit Leenhardt, est telle que la moindre
stylisation détonnerait ». Mais cela ne veut pas dire que le film soit
destiné à nous faire voir et entendre ce que nous verrions et entendrions
si nous assistions dans la vie à l'histoire qu'il nous raconte, ni d'ailleurs à
nous suggérer comme une histoire édifiante quelque conception générale
de la vie. Le problème que nous rencontrons ici, l'esthétique l'a déjà
rencontré à propos de la poésie ou du roman. Il y a toujours, dans un
roman, une idée qui peut se résumer en quelques mots, un scénario qui
tient en quelques lignes. Il y a toujours dans un poème allusion à des
choses ou à des idées. Et cependant le roman pur, la poésie pure n'ont
pas simplement pour fonction de nous signifier ces faits, ces idées ou
ces choses, car alors le poème pourrait se traduire exactement en prose
et le roman ne perdrait rien à être résumé. Les idées et les faits ne sont
que les matériaux de l'art et l'art du roman consiste dans le choix de ce
que l'on dit et de ce que l'on tait, dans le choix des perspectives (tel
chapitre sera écrit du point de vue de tel personnage, tel autre du point
de vue d'un autre), dans le tempo variable du récit; l'art de la poésie ne
consiste pas à décrire didactiquement des choses ou à exposer des idées,
mais à créer une machine de langage qui, d'une manière presque
infaillible, place le lecteur dans un certain état poétique. De la même
manière, il y a toujours dans un film une histoire, et souvent une idée
(par exemple, dans l'Étrange Sursis: la mort n'est terrible que pour qui
n'y a pas consenti), mais la fonction du film n'est pas de nous faire
connaître les faits ou l'idée.
Kant dit avec profondeur que dans la connaissance l'imagination
travaille au profit de l'entendement, tandis que dans l'art l'entendement
travaille au profit de l'imagination. C'est-à-dire: l'idée ou les faits
prosaïques ne sont là que pour « donner au créateur l'occasion de leur
chercher des emblèmes sensibles et d'en tracer le monogramme visible
et sonore. Le sens du film est incorporé à son rythme comme le sens
d'un geste est immédiatement lisible dans le geste, et le film ne veut rien
dire que lui-même. L'idée est ici rendue à l'état naissant, elle émerge de
la structure temporelle du film, comme dans un tableau de la coexistence
de ses parties. C'est le bonheur de l'art de montrer comment quelque
chose se met à signifier, non par allusion à des idées déjà formées et
acquises, mais par l'arrangement temporel ou spatial des éléments. Un
film signifie comme nous avons vu plus haut qu'une chose signifie: l'un
et l'autre ne parlent pas à un entendement séparé, mais s'adressent à
notre pouvoir de déchiffrer tacitement le monde ou les hommes et de
coexister avec eux. Il est vrai que, dans l'ordinaire de la vie, nous
perdons de vue cette valeur esthétique de la moindre chose perçue. Il est
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vrai aussi que jamais dans le réel la forme perçue n'est parfaite, il y a
toujours du bougé, des bavures et comme un excès de matière. Le drame
cinématographique a, pour ainsi dire, un grain plus serré que les drames
de la vie réelle, il se passe dans un monde plus exact que le monde réel.
Mais enfin c'est par la perception que nous pouvons comprendre la
signification du cinéma: le film ne se pense pas, il se perçoit.
Voilà pourquoi l'expression de l'homme peut être au cinéma si
saisissante: le cinéma ne nous donne pas, comme le roman l'a fait
longtemps, les pensées de l'homme, il nous donne sa conduite ou son
comportement, il nous offre directement cette manière spéciale d'être au
monde, de traiter les choses et les autres, qui est pour nous visible dans
les gestes, le regard, la mimique, et qui définit avec évidence chaque
personne que nous connaissons. Si le cinéma veut nous montrer un
personnage qui a le vertige, il ne devra pas essayer de rendre le paysage
intérieur du vertige, comme Daquin dans Premier de cordée et Malraux
dans Sierra de Terruel ont voulu le faire. Nous sentirons beaucoup
mieux le vertige en le voyant de l'extérieur, en contemplant ce corps
déséquilibré qui se tord sur un rocher, ou cette marche vacillante qui
tente de s'adapter à on ne sait quel bouleversement de l'espace. Pour le
cinéma comme pour la psychologie moderne, le vertige, le plaisir, la
douleur, l'amour, la haine sont des conduites.
Cette psychologie et les philosophies contemporaines ont pour
commun caractère de nous présenter, non pas, comme les philosophies
classiques, l'esprit et le monde, chaque conscience et les autres, mais la
conscience jetée dans le monde, soumise au regard des autres et
apprenant d'eux ce qu'elle est. Une bonne part de la philosophie
phénoménologique ou existentielle consiste à s'étonner de cette
inhérence du moi au monde et du moi à autrui, à nous décrire ce
paradoxe et cette confusion, à faire voir le lien du sujet et du monde, du
sujet et des autres, au lieu de l'expliquer, comme le faisaient les
classiques, par quelques recours à l'esprit absolu. Or, le cinéma est
particulièrement apte à faire paraître l'union de l'esprit et du corps, de
l'esprit et du monde et l'expression de l'un dans l'autre. Voilà pourquoi il
n'estpas surprenant que le critique puisse, à propos d'un film, évoquer la
philosophie. Dans un compte rendu du Défunt récalcitrant, Astruc
raconte le film en termes sartriens: ce mort qui survit à son corps et est
obligé d'en habiter un autre, il demeure le même pour soi, mais il est
autre pour autrui et ne saurait demeurer en repos jusqu'à ce que l'amour
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d'une jeune fille le reconnaisse à travers sa nouvelle enveloppe et que
soit rétablie la concordance du pour soi et du pour autrui. Là-dessus le
Canard enchaîné se fâche et veut renvoyer Astruc à ses recherches
philosophiques. La vérité est qu'ils ont tous deux raison: l'un parce que
l'art n'est pas fait pour exposer des idées - et l'autre parce que la
philosophie contemporaine ne consiste pas à enchaîner des concepts,
mais à décrire le mélange de la conscience avec le monde, son
engagement dans un corps, sa coexistence avec les autres, et que ce
sujet-là est cinématographique par excellence.
Si enfin nous nous demandons pourquoi cette philosophie s'est
développée justement à l'âge du cinéma, nous ne devrons évidemment
pas dire que le cinéma vient d'elle. Le cinéma est d'abord une invention
technique où la philosophie n'est pour rien. Mais nous ne devrons pas
dire davantage que cette philosophie vient du cinéma et le traduit sur le
plan des idées. Car on peut mal user du cinéma, et l'instrument
technique une fois inventé doit être repris par une volonté artistique et
comme inventé une seconde fois, avant que l'on parvienne à faire de
véritables films. Si donc la philosophie et le cinéma sont d'accord, si la
réflexion et le travail technique vont dans le même sens, c'est parce que
le philosophe et le cinéaste ont en commun une certaine manière d'être,
une certaine vue du monde qui est celle d'une génération. Encore une
occasion de vérifier que la pensée et les techniques se correspondent et
que, selon le mot de Goethe, «ce qui est au-dedans est aussi au-dehors ».