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109 Gabriella Muniz Cabral* O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: O CASO MARIA DA PENHA E O ACESSO INTERNACIONAl à jUSTIÇA AMPlA THE INTER-AMERICAN SYSTEM FOR THE PROTECTION OF HUMAN RIGHTS: THE MARIA DA PENHA CASE AND THE bROAD INTERNATIONAl ACCESS TO jUSTICE El SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTECCIÓN DE lOS DERECHOS HUMANOS: El CASO DE lA lEY MARIA DA PENHA Y El ACCESO INTERNACIONAl A lA jUSTICIA AMPlIA Resumo: A partir da análise da história de Maria da Penha Fernandes, que significou um importante precedente para as lutas em defesa dos direitos das mulheres em toda a região americana, busca-se ave- riguar a ideia de justiça que é construída no âmbito dos direitos hu- manos e viabilizada pelo Sistema Interamericano. Da pesquisa documental e bibliográfica, principalmente Piovesan, Cançado Trin- dade e Bobbio, verificou-se que o sistema regional, mais do que solucionar casos concretos em caráter subsidiário, impulsiona mu- danças estruturais no ordenamento jurídico dos Estados, como no Brasil. Tais mudanças são imprescindíveis ao acesso à justiça, porém, não com a lógica de caso concreto, porquanto individual, mas ampla, uma justiça dos direitos humanos porque produtora de mudanças sociais, coletivas, jurídicas e políticas. Abstract: From the analysis of the story of Maria da Penha Fernandes, which meant an important precedent for the struggles in defense of women's rights throughout American region, we seek to investigate the idea of justice that is built within the framework of human rights and viable the Inter-American System. Documental and bibliographic research, * Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco. Gra- duada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Artigo 13_final:layout 1 15/6/2014 10:15 Page 109

O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS … · DIREITOS HUMANOS: O CASO MARIA DA PENHA E O ACESSO INTERNACIONAl à jUSTIÇA AMPlA ... por parte da defesa, aguardando o réu, como

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Gabriella Muniz Cabral*

O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: O CASO MARIA DA PENHA E O

ACESSO INTERNACIONAl à jUSTIÇA AMPlA

THE INTER-AMERICAN SYSTEM FOR THE PROTECTION OF HUMAN RIGHTS: THE MARIA DA PENHA CASE

AND THE bROAD INTERNATIONAl ACCESS TO jUSTICE

El SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTECCIÓN DE lOS DERECHOS HUMANOS: El CASO DE lA lEY MARIA

DA PENHA Y El ACCESO INTERNACIONAl A lA jUSTICIA AMPlIA

Resumo:

A partir da análise da história de Maria da Penha Fernandes, quesignificou um importante precedente para as lutas em defesa dosdireitos das mulheres em toda a região americana, busca-se ave-riguar a ideia de justiça que é construída no âmbito dos direitos hu-manos e viabilizada pelo Sistema Interamericano. Da pesquisadocumental e bibliográfica, principalmente Piovesan, Cançado Trin-dade e Bobbio, verificou-se que o sistema regional, mais do quesolucionar casos concretos em caráter subsidiário, impulsiona mu-danças estruturais no ordenamento jurídico dos Estados, como noBrasil. Tais mudanças são imprescindíveis ao acesso à justiça,porém, não com a lógica de caso concreto, porquanto individual,mas ampla, uma justiça dos direitos humanos porque produtora demudanças sociais, coletivas, jurídicas e políticas.

Abstract:

From the analysis of the story of Maria da Penha Fernandes, whichmeant an important precedent for the struggles in defense of women'srights throughout American region, we seek to investigate the ideaof justice that is built within the framework of human rights and viablethe Inter-American System. Documental and bibliographic research,

* Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco. Gra-duada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.

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especially Piovesan, Cançado Trinidad and Bobbio, it was foundthat the regional system, rather than solving concrete cases subsidiarynature, drives structural changes in the laws of states, as in Brazil.These changes are essential to access to justice, but not with the logicof the case, since individual, but wide, a righteousness of human rightsbecause it produces social, collective, legal and political changes.

Resumen:

Del análisis de la historia de Maria da Penha Fernandes, que sig-nificó un importante precedente para las luchas en defensa de losderechos de las mujeres a lo largo de América, se busca investigarla idea de justicia que se construye en el marco de los derechoshumanos y se torna viable en el Sistema Interamericano. En la pes-quisa documental y de la investigación bibliográfica, especialmentePiovesan, Cançado Trindade y Bobbio, se percibió que el sistemaregional, en lugar de resolver casos concretos en carácter subsi-diario, impulsa cambios estructurales en las leyes de los países,como en Brasil. Estos cambios son esenciales para acceder a lajusticia, pero no con la lógica del caso concreto, pese a que sea in-dividual, pero amplia, una justicia de los derechos humanos, ya queproduce cambios sociales, colectivos, jurídicos y políticos.

Palavras-chaves:

Brasil, mulher, violência.

Keywords:

Brazil, woman, violence.

Palabras clave:

Brasil, mujer, violencia.

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INTRODUÇÃO

Embora muito se saiba sobre a repercussão da lei n.11.340/2006, intitulada de “lei Maria da Penha”, mínimo parece sero esclarecimento sobre o contexto de produção legal e sobre comose efetivou o processo de acesso à justiça no caso da Sr.ª Maria daPenha. Um dos maiores impulsos para essa inovação legislativa,entre tantas outras mudanças estruturais, é oriundo do Direito Inter-nacional, mais precisamente do Sistema Interamericano de Proteçãoaos Direitos Humanos (SIDH).

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CmIDH) éum órgão do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos(SIDH). No seu âmbito, foi conhecido o caso “Maria da Penha versusbrasil”, no qual o Estado foi responsabilizado como negligente, omissoe tolerante em relação à violência doméstica contra a mulher – situaçãoque acabou por impulsionar medidas efetivas para imediatas mudanças.

O caso envolve, portanto, violência, gênero e preconceitosadvindos de suas questões, inclusive de ordem estatal por omissão.É um caso emblemático da história do sistema regional, abrindo ca-minho à busca da justiça em caso de falha pelos Estados.

Problematizam-se, então: como se deu o contexto de pro-dução legal e de acesso à justiça no caso da Sr.ª Maria da Penha?E que ideia de justiça está presente nessa relação entre o Direito na-cional e o Direito internacional (regional)? busca-se afirmar, tendocomo pano de fundo o caso Maria da Penha versus brasil, o SistemaInteramericano como uma eficiente via de acesso subsidiário à jus-tiça de caráter amplo, coletivo, político.

A pesquisa analisou a compreensão da CmIDH acerca do re-ferido caso e refletiu sobre a via do Sistema Interamericano como ins-trumento de proteção subsidiária dos direitos fundamentais, além deconhecer e divulgar o SIDH como considerável via de acesso à justiça,a uma justiça mais ampla, que não se resume à satisfação apenas doindivíduo, mas a uma vitória do ser humano como coletividade.

Para tanto, foi realizada uma pesquisa documental baseada emponderações da Comissão acerca da “lide”, além da contribuição de es-tudiosos da temática de direitos humanos que auxiliaram no alcance dosobjetivos propostos, principalmente os pensamentos de Flávia Piovesan

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(e suas considerações jurídicas sobre o acesso à justiça internacional,mormente frente ao sistema regional na América), de Cançado Trindade(a partir de uma visão experiente do SIDH) e de Norberto bobbio (comsuas considerações sobre sistema internacional).

Informações relativas ao brasil serão apresentadas, deforma a demonstrar que a atuação do Sistema Interamericano nadefesa dos direitos humanos não está distante, necessitando, porém,ser mais difundida, de modo que a justiça não se limite ao monopóliodo direito interno e que seja intensificada a responsabilidade inter-nacional dos Estados.

A HISTÓRIA DE MARIA DA PENHA1

A Sr.ª Maria da Penha Maia Fernandes, farmacêutica porprofissão, durante os diversos anos de convivência com seu marido,o Sr. Marco Antônio Heredia Viveiros, com quem teve três filhas, haviasido vítima de violência doméstica na cidade de Fortaleza (CE), ondeviviam. Em 29 de maio de 1983, ela sofreu, além de outras diversasagressões, uma tentativa de homicídio, sendo contra si disparado umrevolver enquanto dormia. Em decorrência desse fato, ela teve quese submeter a diversas cirurgias, as quais não a impediram de ficarparaplégica, de forma irreversível, e de adquirir outros traumas de or-dens física e psicológica. O Sr. Marco Antônio havia procurado enco-brir o acontecido alegando aos vizinhos que ladrões teriam entradoem sua casa, roubado bens e agredido o casal antes de fugirem.

Ainda em recuperação, dias após a primeira vez, foi nova-mente vítima de outro atentado por parte do seu marido, que tentoueletrocutá-la durante o banho. Esse segundo momento foi o estopimpara a separação conjugal, que somente não acontecera antes pelotemor das consequências violentas a que poderia dar origem.

Desde a tragédia, Maria da Penha se via em situação de

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1 A história da Sr.ª Maria da Penha Maia Fernandes pode ser conhecida por meio dolivro que escreveu, intitulado “Sobrevivi... Posso contar”, pela Editora Armazém daCultura.

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dependência de enfermeiros e de tratamentos físicos que geraramgrandiosas despesas, além da compra de medicações, não rece-bendo qualquer auxílio financeiro por parte do agressor.

O Ministério Público, baseado nas investigações e em pro-vas robustas, apresentou denúncia contra o Senhor Viveiros2, de ori-gem colombiana, em 28 de setembro de 1984. Mas, apesar de todoo conjunto probatório que o levava à autoria dos crimes, o processosó alcançou uma decisão em 4 de maio de 1991, condenando-o aquinze anos, resumidos a dez, posteriormente, em razão de nãohaver condenação prévia. Após mais três anos passados, em 4 demaio de 1995, a decisão do Tribunal do júri foi anulada em razão deapelação (extemporânea frente ao artigo 479 do Código de ProcessoPenal), por supostos vícios nas perguntas aos jurados.

Em 1996, realizou-se um segundo julgamento pelo júri, ha-vendo uma condenação de dez anos e seis meses de pena privativade liberdade. Tal decisão também foi objeto de recurso de apelaçãopor parte da defesa, aguardando o réu, como todo o tempo processual,em liberdade.

Então, indignada com a impunidade evidente por anos semuma decisão definitiva ao caso, correndo o risco da ocorrência deprescrição do crime (o que deveria ocorrer dali a cerca de mais cincoanos), ela recorreu à justiça internacional. Apresentou petição, em20 de agosto de 1998, à Comissão Interamericana de Direitos Hu-manos, juntamente com o Centro pela justiça e pelo Direito Interna-cional (CEjIl) e pelo Comitê latino-Americano de Defesa dosDireitos da Mulher (ClADEM).

O SIDH E A COMISSÃO INTERAMERICANA

O primeiro instrumento internacional de direitos humanosde caráter geral aprovado foi a Declaração Americana de Direitos e

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2 Para conhecer a sua versão dos fatos, vide entrevista concedida à Istoé, em 2011. Re-vista Istoé, n.2150, jan. 2011. Disponível em: <http://www.istoe.com.br/reporta-gens/121068_A+MARIA+DA+PENHA+ME+TRANSFORMOU+NUM+MONSTRO+%3E>. Acesso em: 20 set. 2013.

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Deveres do Homem, em abril de 1948, em bogotá, em um períodopós-guerra (Segunda Guerra Mundial, 1939-1945). O documento an-tecipou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, criada apenasoito meses depois.

Sem dúvidas, um grande marco desse Sistema Interameri-cano de Proteção foi a aprovação, no dia 22 de novembro de 1969,da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (ou Pacto de Sanjosé da Costa Rica), na Conferência Especializada Interamericanasobre Direitos Humanos, em São josé, na Costa Rica. A CADH, quetrata de direitos civis e políticos, entrou em vigor em 18 de julho de1978, quando, na forma do § 2º de seu artigo 74, ao menos onzeEstados depositaram os seus respectivos instrumentos de ratificaçãoou de adesão. Ao seu lado, e não menos importante, está o Pactode San Salvador, que, como protocolo adicional à Convenção Ame-ricana, trata dos direitos econômicos, sociais e culturais.

O brasil depositou sua carta de adesão à Convenção Ame-ricana somente em 25 de setembro de 1992, promulgada por meiodo Decreto n. 678, de 06 de novembro de 1992, afirmando ali o deverde cumprimento de seu inteiro teor, possuindo atualmente status denorma supralegal no direito interno, assim como a Convenção Inte-ramericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contraa Mulher, ratificada pelo Estado em 1995.

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Fonte: Produção própria, com datas disponíveis no site oficial da CmIDH(http://www.oas.org/pt/cidh) e imagens de domínio público resgatadas da internet.

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Aliás, com vistas a ilustrar o compromisso do brasil com osprincipais documentos do Sistema Interamericano, foi construída ailustrativa linha do tempo ao lado, pautada pelas datas de depósitodos instrumentos de adesão e ratificação pelo Estado brasileiro.

O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Huma-nos (SIDH) funciona, basicamente, com dois órgãos: a Comissão ea Corte Interamericanas de Direitos Humanos, competentes para co-nhecer violações a direitos e garantias fundamentais. À Corte sãoremetidos casos que, levados pela Comissão Interamericana(CmIDH) ao crivo do Tribunal, têm por base o descumprimento dequalquer das disposições do Pacto de San josé da Costa Rica porparte de um dos Estados que assinaram tal tratado. Como a compe-tência da Corte possui natureza subsidiária, sua atuação somente épossível, no caso concreto, quando a questão que embasa o litígiojá tenha sido apreciada pelo Estado, de forma a esgotar a discussãono âmbito do direito interno, ou mesmo quando a inércia ou mora es-tatal já infringe qualquer das referidas disposições.

já a Comissão Interamericana, órgão encarregado da pro-moção e da proteção dos direitos humanos no continente americano,é o competente para receber denúncias de violação a normas doPacto de San josé da Costa Rica por parte das pessoas cujos direi-tos foram negados, parcial ou totalmente. Conforme informações dis-poníveis no site da OEA (2013), foi criada em 1959, mas apenas apartir de 1965 foi autorizada a proceder ao recebimento e ao proces-samento de denúncias de violação aos direitos fundamentais. Desdeentão, foram vários milhares de petições recebidas e boa parte delasprocessada, embora não possua competência jurisdicional. Sediadanos Estados Unidos (Washington, D.C.), é formada por sete juízesdentre pessoas de reputação ilibada e de notável saber jurídico naárea de direitos humanos, com exercício limitado a quatro anos, ca-bendo única recondução, eleitos pela Assembleia Geral da OEA apartir de lista tríplice apresentada pelos Estados-partes. Embora nãopossua competência jurisdicional, é, em regra, obrigatória sua análiseprévia para o posterior encaminhamento à Corte Interamericana,como condição de procedibilidade de tramitação.

É importante ressaltar que essa via pode ser alcançada, alémdos Estados, por quaisquer pessoas, grupo de pessoas ou organizaçõesnão governamentais (reconhecidas por Estados da OEA), desde que

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alegue(m) violações a direitos protegidos nas Convenções ou na Decla-ração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Atendidos os re-quisitos, a peça inicial é recebida, sendo a ela atribuído um número pelaComissão, que começa a processá-lo como um “caso”.

O CASO N. 12.051 – MARIA DA PENHA VERSUS BRASIl

Recebida a petição em 20 de agosto de 1998, a Comissão,então, admitiu a peça, reconhecendo sua competência. já em 1º desetembro do mesmo ano, acusou o recebimento aos demandantes,informando-lhes que havia sido iniciada a tramitação do caso. A partirdaí, passou a verificar as alegadas violações de direitos às garantiasjudiciais e à proteção judicial em prejuízo da Sr.ª Maria da Penha.

São os seguintes os requisitos de admissibilidade para queocorra o processamento das denúncias: 1) esgotamento dos recur-sos da jurisdição interna (artigo 46, 1, a, da CADH) – embora nãotenha havido decisão definitiva no Direito brasileiro, conforme previ-são do artigo 46, 2, c, da CADH, houve atraso injustificado na decisãodos recursos internos, não se aplicando tal requisito. É de se ressaltarque ao atraso soma-se a iminente prescrição dos crimes cometidos,implicando uma possível e indevida impunidade; 2) prazo para apre-sentação (artigo 46, 1, b, da CADH) – a petição deve ser sempreapresentada em até seis meses após a data em que tenha sido no-tificado(a) o(a) interessado(a) da sentença final produzida pelo direitointerno do Estado – requisito que também não se aplicou, uma vezque não houve decisão irrecorrível, entendendo a Comissão que àpetição do caso n. 12.051 foi cabível essa exceção, mas, de qualquerforma, compreendeu que houve apresentação dentro do prazo ra-zoável; 3) ausência de duplicação de procedimentos, atendida pelofato de inexistir o processamento dos mesmos fatos perante outrainstância internacional; 4) competência e admissibilidade – finalmente,houve conclusão positiva sobre esses requisitos especificamente previs-tos, não apenas na CADH, mas também pela Convenção de belém doPará (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Vio-lência Contra a Mulher, de 9 de junho de 1994).

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A partir de então, documentos foram analisados para forta-lecer o arcabouço probatório, resultando no reconhecimento pelaCmIDH de que o brasil não tomou efetivamente as medidas neces-sárias para processar e punir o autor das agressões contra a integri-dade física e a vida da Sr.ª Maria Fernandes, por mais de quinzeanos, com riscos até de prescrição do jus puniendi e impossibilidadesde qualquer tipo de ressarcimento devido.

Em seu relatório, a Comissão também reconheceu que nãose tratava de um caso isolado, mas de um exemplo da reiterada ine-ficiência da justiça brasileira em investigar e punir a violência domés-tica contra a mulher, chegando a declarar que grande parte dasinúmeras denúncias referentes a esse tipo de violência no país nãoalcançava os tribunais e que somente em pouquíssimos casos al-cançava-se a punição dos agressores, apesar da concreta obrigaçãointernacional do Estado de prevenir e punir a violência contra mulher.Além disso, apontou para o fato de que a maior parte dessas agres-sões e homicídios serem cometidas por seus companheiros ou co-nhecidos e para o fato de que há um padrão discriminatório detolerância estatal frente à ineficácia da ação judicial implementada.

Para o lado do brasil, de certa maneira, pesavam algumas me-didas positivas, citadas exemplificativamente pela Comissão no referidorelatório, relativas à criação de delegacias especializadas da mulher, àcriação de casas de refúgio para atendimento a mulheres agredidas e àinvalidação pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 1991, do conceitode “defesa da honra” como justificativa de crime contra elas.

Por fim, a Comissão Interamericana de Direitos Humanosconcluiu que o brasil, no caso n. 12.051, infringiu, em prejuízo da Sr.ªMaria da Penha, os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial (ar-tigos 8º e 25 da CADH), faltando com a obrigação geral de respeitar egarantir os direitos de seus jurisdicionados (artigo 1º, 1, da CADH, artigosII e XVII da Declaração) e o artigo 7º da Convenção de belém do Pará.

No segundo mês seguinte ao recebimento da petição, aCmIDH começou a enviar ao brasil documentos de notificação, so-licitação de esclarecimentos cabíveis e até mesmo a informação desua disponibilidade para uma possível solução amigável (dias 19 deoutubro de 1988, 4 de agosto de 1999 e 7 de agosto de 2000, res-pectivamente), sem qualquer resposta do Estado até o ano 2000.Frente ao silêncio estatal, foi a ele aplicado o artigo do Regulamento

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da Comissão que reza pela presunção de veracidade dos fatos re-latados na petição.

Houve uma série de recomendações ao brasil no sentidode proceder a uma persecução penal efetiva (“séria, imparcial eexaustiva”), com vistas a determinar e punir o agressor que atentoucontra a vida da peticionária, além da reparação justa e rápida da ví-tima. Recomendou-se também implementar uma investigação sobrequaisquer fatos ou agentes do Estado que tenham contribuído paraa mora no processamento do caso e a adoção de medidas nacionaisaptas a eliminar esse tipo de crime.

Em março de 2001, em conformidade com o artigo 51 daConvenção, o relatório final foi, então, enviado ao brasil para cum-primento das recomendações estabelecidas, em um prazo de trêsmeses, mais uma vez sem sucesso. A partir de então, a todas as in-formações do caso foi dada publicidade, incluindo-as no RelatórioAnual da Assembléia Geral da OEA referente ao ano 2000.

O Sr. Marco Antônio Heredia Viveiros, aproximadamenteseis meses antes de os crimes prescreverem, foi, finalmente, preso,em 2002, cumprindo apenas cerca de dois anos da pena de prisãoaplicada em regime fechado, quando progrediu para o cumprimentoda pena em regime aberto.

Paralelamente a isso, iniciou-se no país a intensificação dediscussões sobre a proposta de alterações legislativas elaboradaspor um consórcio de Organizações Não Governamentais (ADVO-CACY, AGENDE, CEPIA, CFEMEA, ClADEM/IPÊ e THEMIS) con-tra a violência doméstica em face da mulher. Após reformulaçõescoordenadas pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres(Governo Federal), foi transformado em Projeto de lei, havendo arealização de diversas audiências públicas (MP/CE, 2013). Apósunânime aprovação, o brasil promulgou, em 7 de agosto de 2006, alei n. 11.340, intitulada lei Maria da Penha, que criou mecanismospara coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, tendo emvista o § 8º do artigo 226 da Constituição Federal de 1988, da Con-venção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminaçãocontra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir,Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.

A lei também criou os juizados de Violência Doméstica e Fa-miliar contra a Mulher e trouxe alterações mais rigorosas ao Código

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de Processo Penal, ao Código Penal e à lei de Execução Penal doordenamento jurídico brasileiro. Em vigor a partir de setembro domesmo ano, ampliou o rol de violências para além da física e da se-xual, incluindo, por exemplo, as violências psicológica, patrimonial erelativas a assédio moral, extinguiu penas de pagamento de cestasbásicas e também fez com que os crimes dessa natureza fossemtratados como de menor potencial ofensivo. Atualmente, como sesabe, a lei tornou-se um símbolo de vitória para as muitas mulheresque sofrem o medo e a realidade da agressão familiar. Apesar de alei não ser solução para todos os problemas, seu surgimento foi es-sencial para um maior amadurecimento do Estado e da sociedadesobre as questões que aborda, dando força ao contínuo processode construção permanente de respeito e de proteção à mulher.

A VIA INTERAMERICANA DE ACESSO à jUSTIÇA AMPlA –REFlEXÕES

Compreendendo que os direitos humanos não advêm desua mera nacionalidade, mas sim da condição humana que lhe éinerente, faz-se a proteção internacional presente e necessária.Nesse sentido, Cançado Trindade3 – em seu artigo intitulado “A con-solidação da capacidade processual dos indivíduos na evolução daproteção internacional dos Direitos Humanos” (2002) – afirma queos diversos instrumentos internacionais pressupõem que os direitoshumanos protegidos são inseparáveis das pessoas, sendo, portanto,anteriores e superiores à figura estatal. E ressalta: “estes instrumen-tos [do Direito Internacional] têm sido postos em operação no enten-dimento de que as iniciativas de proteção de tais direitos não seexaurem - não podem se exaurir - na ação do Estado”.

Nesse mesmo sentido, Norberto bobbio (1992, p. 1) expõeque “[...] o processo de democratização do sistema internacional [...]

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3 Antônio Augusto Cançado Trindade, jurista brasileiro, é, atualmente, membro doTribunal Internacional de justiça (2009-2018) e foi juiz da Corte Interamericana deDireitos Humanos, entre 1994 e 2008.

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não pode avançar sem uma gradativa ampliação do reconhecimentoe da proteção dos direitos do homem, acima de cada Estado”.

É necessário que se reconheça, então, o mérito dos siste-mas de direito internacional, que, em uma história recente de pós-guerras e de atrocidades delas advindas, deram grandes passosinaugurais em 1948, sendo embriões para o surgimento da criaçãodos sistemas regionais de proteção.

Esses sistemas regionais (Interamericano, Europeu e Afri-cano, atualmente) visam, ao que parece, longe de defender o uni-versalismo absoluto, criar standards mínimos de direitos a seremamparados, em um cuidado mais sensível às peculiaridades culturaisde cada região, se comparados ao sistema global. Assim, eles vêmapresentando, juntamente com o sistema global, resultados consi-deráveis em suas atuações. É o que aduz Cançado Trindade (2002),na obra já mencionada:

Graças aos esforços dos órgãos internacionais de supervisão nosplanos global e regional, logrou-se salvar muitas vidas, repararmuitos dos danos denunciados e comprovados, adotar oualterar medidas legislativas, pôr fim a práticas administrativasviolatórias dos direitos garantidos, alterar medidas legislati-vas impugnadas, adotar programas educativos e outras me-didas positivas por parte dos governos. (grifos nossos)

Ressalta-se que a opção por esses mecanismos internacio-nais de proteção aos direitos humanos deve ocorrer quando o direitointerno não foi eficientemente capaz de tutelá-lo de forma justa. Épossível, então, afirmar o caráter subsidiário dessa via, mas, tam-bém, sustentar que essa característica, de forma alguma, vem a mi-tigar o importante papel dos Estados na proteção aos direitoshumanos. Na verdade, ocorre exatamente o contrário, como bem ex-pressa Flávia Piovesan (2013):

O sistema interamericano constitui uma eficaz estratégia de pro-teção dos direitos humanos, quando as instituições nacionais semostram falhas ou omissas. A Comissão e a Corte Interamericanacontribuem para a denúncia dos mais sérios abusos e pressionamos governos para que cessem com as violações de direitos hu-manos, fortalecendo a accountability dos Estados.

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O termo accountability, palavra oriunda do inglês, pode sertraduzido como “responsabilização” no idioma português. E faz todoo sentido o uso desse termo no contexto, uma vez que, para alémdo agir perante a ineficácia do direito interno dos Estados-partes dasConvenções e demais tratados, o SIDH aponta essas falhas, faz re-comendações, julga os Estados, prevê a adoção de medidas aptasa cessar violações e implementa mecanismos de monitoramento arespeito da (in)aplicação do que foi estabelecido. Tudo isso vem aaumentar a responsabilidade dos Estados, de modo a explicitar aamplitude de suas obrigações perante o Direito internacional, em prolde cada um dos indivíduos e grupos locais.

bobbio (1992, p. 39-40) ajuda a compreender melhor a atua-ção do sistema internacional com a explicitação das funções de pro-moção, controle e garantias dos direitos humanos. É possível dizerque Sistema Interamericano se enquadra nesse contexto explicitadopor bobbio (VINCENTIM, 2010), sendo certo também que o Direitointernacional, ao menos nesse foco estudado, não é apto a obrigarcoercitivamente a aplicação de suas regras em relação aos Estadosna medida e com os mesmos mecanismos utilizados no Direito in-terno destes com seus cidadãos. Mas é possível dizer que uma dasgrandes forças desse sistema parece estar no campo político doconstrangimento gerado pelo risco de ser tachado como violador dedireitos humanos. Trata-se, indubitavelmente, de influência, comonas palavras de bobbio (1992, p. 39):

[...] a teoria política distingue hoje, substancialmente, duas formasde controle social, a influência e o poder (entendendo-se por “in-fluência” o modo de controle que determina a ação do outro inci-dindo sobre sua escolha, e por “poder” o modo de controle quedetermina o comportamento do outro, pondo-o na impossibilidadede agir diferentemente). Mesmo partindo-se dessa distinção, re-sulta claro que existe uma diferença entre a proteção jurídica emsentido estrito e as garantias internacionais: a primeira serve-seda forma de controle social, que é o poder; as segundas são fun-dadas exclusivamente na influência.

A realidade do sistema regional não está distante do brasil,haja vista no caso n. 12.051, intitulado “Maria da Penha versus bra-sil”, durante o qual foi declarado existir no país um padrão cultural de

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tolerância estatal quanto aos diversos tipos de violência domésticaem prejuízo das mulheres. Com a publicação do relatório da Comis-são Interamericana no Relatório Anual da Assembleia Geral da OEA,entre outros mecanismos, a pressão e a repercussão para a execu-ção de soluções imediatas foram muito grandes. Estrategicamente,catalisaram-se mudanças positivas no contexto de proteção a direitosfundamentais, como a criação da lei n. 1.340/2006. Em vigor desde22 de setembro de 2006, a lei Maria da Penha dá cumprimento àConvenção para Prevenir, Punir, e Erradicar a Violência contra a Mu-lher, da OEA, assim como à Convenção para a Eliminação de Todasas Formas de Discriminação contra a Mulher, da ONU.

Assim, o Estado brasileiro não escapa das ações dos siste-mas internacionais de proteção aos direitos fundamentais, como pon-dera Piovesan (2014, p. 115):

A experiência brasileira revela que a ação internacional tem tambémauxiliado a publicidade das violações de direitos humanos, o que ofe-rece o risco de constrangimento político e moral ao Estado violador,e, nesse sentido, surge como significativo fator para a proteção dosdireitos humanos. Ademais, ao enfrentar a publicidade das violaçõesde direitos humanos, bem como as pressões internacionais, o Estadoé praticamente “compelido” a apresentar justificativas a respeito desua prática. A ação internacional e as pressões internacionais podem,assim, contribuir para transformar uma prática governamental espe-cífica, no que se refere aos direitos humanos, conferindo suporte ouestímulo para reformas internas.

No caso n. 12.051 não foi diferente. Como se viu, para que aSr.ª Maria da Penha visse condenado seu agressor, foi imprescindívelo impulso do Direito internacional, mais precisamente do Sistema Inte-ramericano de Proteção, visto que o Direito interno brasileiro havia fa-lhado com o compromisso de defesa fundamental de seusjurisdicionados. Havia um padrão cultural de tolerância do Estadoquanto aos diversos tipos de violência doméstica em prejuízo das mu-lheres. Estrategicamente, decerto, não é “confortável” para nenhum Es-tado democrático o fato de ser internacionalmente intitulado de violadorde direitos humanos.

O caso foi um precedente importantíssimo para a luta dasmulheres nas Américas. Como se diz na linguagem jurídica, é

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considerado um standard case (ou leading case) em se tratando dedireitos humanos – o que significa dizer que o caso se tornou refe-rência ou parâmetro para julgamentos futuros.

Resta claro que o conceito de justiça nessa relação é espe-cialmente distinto do habitualmente praticado no Direito interno, umavez que os órgãos do Sistema Interamericano não funcionam como4ª instância (revendo decisões produzidas pelo Direito interno), masinvestigam o (des)cumprimento por parte do Estado de compromis-sos internacionais a respeito dos direitos humanos firmados em ins-trumentos. A justiça, portanto, deve ser vista não como meramenteinter partes, mas como uma espécie especial de efeito erga omnes(para todos), gerando uma função de tornar-se precedente impeditivode violação a direitos humanos à sua semelhança (coadunando-se,portanto, ao princípio do não retrocesso). Nesse contexto, a consi-deração de Piovesan (2014, p. 97):

O sistema regional interamericano simboliza a consolidação deum ‘constitucionalismo regional’ [...]. [...]. [A Convenção Americana]serve a um duplo propósito: a) promover e encorajar avançosno plano interno dos Estados; e b) prevenir recuos e retroces-sos no regime de proteção de direitos. (grifos nossos)

E, sobre a influência do Direito internacional no Direito in-terno, Cançado Trindade (2003, p. 258) explica que

[o] exercício da garantia coletiva pelos Estados Partes da Con-venção não deveria ser somente reativo, quando se produzisse odescumprimento de uma sentença da Corte [Interamericana], mastambém proativo, no sentido de que todos os Estados Partes ado-tassem, previamente, medidas positivas de proteção, em confor-midade com as normas da Convenção Americana. É indubitávelque uma sentença é “coisa julgada”, obrigatória para o Es-tado demandado em questão, mas também é “coisa interpre-tada”, válida erga omnes partes, no sentido de que temimplicações para todos os Estados Partes da Convenção emseu dever de proteção. Somente mediante um claro entendi-mento desses pontos fundamentais conseguiremos construir umaordre public [ordem pública, no francês] interamericana, baseadana fiel observância dos direitos humanos.4 (grifos do autor)

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Essa ideia de justiça produz uma reparação que supera a in-denização pecuniária, produzindo mudanças de legislação interna doEstado violador, de entendimentos jurisprudenciais de Supremas Cor-tes e a promoção ou intensificação de políticas públicas que incentivema não repetição da violência denunciada aos órgãos internacionais(bERNARDES, 2011), de forma que o ser humano sai vitorioso pormeio de um caso modelo naquele âmbito regional.

E foi exatamente isso que aconteceu no caso da lei Mariada Penha. Foi necessária uma pressão de cunho internacional paraimpulsionar mudanças no absurdo padrão institucional de tolerânciada violência doméstica contra as mulheres. Na verdade, de certa ma-neira, um positivo impulso na direção contrária também ocorreu. Issoporque esse foi o primeiro caso sobre o tema aceito pela ComissãoInteramericana, incitando e inaugurando, nesta instância, a discus-são e o amadurecimento sobre questões sobre esse desumano tipode violência que atinge, culturalmente, tantas mulheres em todo ocontinente americano e no mundo. Abriu-se, portanto, importante pre-cedente regional de direitos humanos ligado à defesa do gênero fe-minino, assim como ao combate às tradicionais violações.

Para se ter uma breve noção dessa referida construção dejustiça em direitos humanos, apresenta-se a reposta da Sr.ª Mariada Penha (FERNANDES, 2009) quando indagada sobre se havia fi-cado satisfeita com o período que o seu ex-marido ficou preso (con-denado, finalmente, a cerca de dez anos de prisão, cumprindomenos de um terço do tempo em regime fechado): “A minha alegriafoi o brasil ter sido ‘condenado’ internacionalmente. Acho que otempo que ele ficou preso não interfere em nada. O importante é oque se conquistou, diversas mulheres já foram salvas pela lei [n.11.340/2006]” (grifos nossos).

Houve um caso também muito emblemático envolvendo oSistema Interamericano, desta vez um julgamento pela Corte Inte-ramericana, o caso “Atala Riffo e as meninas versus Chile”, que tra-tava de discriminação estatal com base na orientação sexualhomoafetiva contra a Sr.ª Karen Atala Riffo, a qual havia resultadona perda judicial da guarda de suas próprias filhas. Mesmo com acondenação do Chile, ela sabia que não poderia reaver a custódia

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4 Tradução pela autora do presente trabalho.

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das três meninas, já que a Corte não funciona como 4ª instância,mas isso não a impediu de buscar uma justiça – uma justiça que nãopertencia a ela como indivíduo, mas como pessoa humana, uma jus-tiça que acreditava necessária e possível. Então, resta a grande per-gunta: o que ela ganhou perante a Corte, finalmente? Entre outrosganhos, responde-se: a restauração de sua dignidade como pessoa,como mulher, como mãe; a declaração inafastável em âmbito regio-nal de que orientação sexual não vincula a qualidade de materni-dade, nem afasta o direito à igualdade.

Insiste-se aqui, portanto, no caráter geral dessa justiça noâmbito dos direitos humanos, sendo ratificado pelas palavras da Sr.ªAtala Riffo (2012):

O tempo perdido de nossas vidas como uma “família excepcionale não valorizada socialmente” não vem a remediar-se com a sen-tença da Corte Interamericana. A luta deixou de ser pessoal antea inexorável passagem do tempo e se transformou em política.Por isso, nosso caso particular se transformou em um Caso em-blemático, mas era absolutamente necessário para restaurar o im-pério do direito à igualdade no Chile. Esta sentença vem adignificar todas aquelas mães lésbicas e pais gays que têm tidoque suportar estigmas, violações de seus direitos e a crítica socialpor sua condição, ou tenham tido que invisibilizar e silenciar suavida afetiva por medo de perder a custódia de seus filhos. A elesquero dedicar esta sentença. Para que nunca mais no Chiledesses pais e mães que possuem companheiros permanen-tes do mesmo sexo lhe retirem a guarda de seus filhos porsua só condição de tais.5 (grifos nossos)

A luta tornou-se política, uma política de direitos humanos.Trata-se, portanto, assim como no caso Maria da Penha, de vitóriapara além da lógica da mera satisfação individual de algum integrantedireto da lide, sendo possível, até mesmo, que o lado agredido se man-tenha, em parte, no estado de agressão, como nos casos expostosanteriormente. Percebe-se que a ideia de justiça nos direitos huma-nos, a partir da relação do Direito internacional (regional) com o Di-reito interno, traduz-se pela produção de efeitos amplos, sociais,

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5 Tradução pela autora do presente trabalho.

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coletivos, jurídicos, políticos, portanto. A vitória perante os órgãos re-gionais impulsiona mudanças evolutivas na promoção e na proteçãodos direitos humanos dentro do Estado envolvido e em toda a regiãoamericana. É nesse sentido, em primazia da pessoa humana, que ajustiça vem sendo feita.

Essa atuação do SIDH é tão importante que já foi responsá-vel por mudanças estruturais também em outros países da região noque concerne ao gênero feminino. Sintetiza Flávia Piovesan (2013):

Com relação aos direitos das mulheres, destacam-se relevantesdecisões do sistema interamericano sobre discriminação e violênciacontra mulheres, o que fomentou a reforma do Código Civil da Gua-temala, a adoção de uma lei de violência doméstica no Chile e nobrasil, dentre outros avanços. No caso González e outras contra oMéxico (caso “Campo Algodonero”), a Corte Interamericana con-denou o México em virtude do desaparecimento e morte de mulhe-res em Ciudad juarez, sob o argumento de que a omissão estatalestava a contribuir para a cultura da violência e da discriminaçãocontra a mulher. No período de 1993 a 2003, estima-se que de 260a 370 mulheres tenham sido vítimas de assassinatos, em Ciudadjuarez. A sentença da Corte condenou o Estado do México aodever de investigar, sob a perspectiva de gênero, as graves viola-ções ocorridas, garantindo direitos e adotando medidas preventivasnecessárias de forma a combater a discriminação contra a mulher.

Entretanto, a justiça só é possível de ser alcançada quandoos meios de acesso a ela são viabilizados por mecanismos próprios.O acesso à justiça é fundamental para a efetivação de todos os di-reitos humanos. Aqui, já se visualiza um dos maiores obstáculos doSistema Interamericano: a deficiência de informações sobre a suaexistência e o seu funcionamento. Quantos representantes das “mi-norias” pelas Américas, entre índios, negros, idosos, portadores denecessidades especiais, homoafetivos, etc., continuam achando queo limite do direito humano está nas mãos dos seus Estados, comtotal desconhecimento dessa via de amparo regional? (SIlVA, 2006).

Fato é que os direitos humanos não podem se ver limitadospelas fronteiras estatais, uma vez que eles são inerentes à pessoa hu-mana, não importa onde esta se encontre. Assim, é possível tambémconsiderar que essa via de acesso à justiça se apresenta, embora

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ainda pouco conhecida, como eficiente e imprescindível, apta à pro-moção, proteção e garantia dos direitos humanos. Assim, nesse sen-tido, segue reflexão baseada no primeiro caso de condenação dobrasil pela CrIDH6:

[...] o contexto indica uma tendência regional na jurisdicionalizaçãointernacional do acesso à justi ça, efeito da cessão gradual de so-berania por parte dos em prol de valores universais imbuídos deum ideário cosmopolita no campo dos Direitos Humanos em umaconstante tensão entre a jurisdição nacional e a busca de satisfa-ção de direitos no plano supranacional. (VIEIRA, 2011)

Nesse quadro, surgem, então, como importantíssimos ato-res no cenário de defesa dos direitos humanos, as organizações nãogovernamentais (ONGs) e demais entidades preocupadas com o hu-mano. No caso da Sr.ª Maria da Penha, como dito, ela foi assistidapelo Centro pela justiça e pelo Direito Internacional (CEjIl) e peloComitê latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (ClA-DEM). A Sr.ª Atala Riffo, por entidades chilenas, como a libertadesPúblicas, a Clínica de Acciones de Interés Público de la UniversidadDiego Portales e a Fundación Ideas. O histórico dos litígios levadosao SIDH tem mostrado que essas organizações têm conseguidograndes avanços de sensibilização da sociedade civil e na busca doacesso transnacional efetivo à jurisdição interamericana frente a go-vernos democráticos insuficientes e falhos.

Dessa forma, baseada nos entendimentos mantidos nocaso em tela, já é possível perceber que o sistema regional intera-mericano de proteção aos direitos humanos surge coadunado comum entendimento mais sensível às diversas e constantes mudançasda sociedade, em prol de uma “justicialização” comum em âmbitoregional, capaz de atuar perante a falha dos Estados.

O Sistema Interamericano vem, com força catalizadora,atuando para tornar efetivas as jovens democracias das Américas eestá em um caminho sem volta de jurisprudência regional protetivados direitos humanos. Aos poucos, as pessoas devem obter mais

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6 Trata-se do caso “Ximenes lopes versus brasil”, que, em julho de 2006, funcionoucomo precedente ao acesso brasileiro à justiça no plano regional interamericano,em razão da violação de direitos humanos a portador de sofrimento mental.

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conhecimento sobre a existência e a grande utilidade dos sistemasde proteção para além do Estado, em defesa da condição propria-mente humana, que buscam ressaltar a igualdade, e não a diferença.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se viu, para que a Sr.ª Maria da Penha tivesse a jus-tiça de ver condenado o homem que, para além das inúmeras agres-sões cometidas, atentou diretamente contra a sua vida por duasvezes, foi imprescindível o impulso do Direito internacional, mais pre-cisamente do Sistema Interamericano de Proteção, visto que o Di-reito interno brasileiro havia falhado com seu compromisso de defesados direitos humanos, passadas quase duas décadas dos crimes.

O caso n. 12.051 foi um precedente importantíssimo para ocombate ao padrão cultural e institucional de violência contra a mu-lher, recomendando ao Estado brasileiro diversas medidas específi-cas ao caso para o alcance de uma persecução penal efetiva, mastambém alertando sobre a necessidade de políticas públicas efetivasde proteção especial por parte do brasil. Uma das principais foi nosentido de que fosse criada uma legislação adequada a esse tipo deviolência. Daí o surgimento, em 2006, da conhecida lei Maria daPenha (lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006).

Os direitos humanos não podem ser limitados pelas frontei-ras dos Estados, já que inerentes à pessoa humana, não importaonde esta se encontre. Nesse sentido, é possível também considerarque essa via de acesso à justiça se faz útil, consistente e justificada,apta à promoção, proteção e garantia dos direitos humanos.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos reforça odiscurso do combate à discriminação e da promoção, defesa e ga-rantia dos direitos fundamentais, mormente, no presente caso, em re-chaço à violência contra a mulher nos âmbitos doméstico e familiar.

No entanto, relevou-se a deficiência do direito fundamentalao acesso à justiça como empecilho à atuação do Sistema Intera-mericano, possibilitando a culminância de omissões institucionais,violadoras dos direitos humanos. Certo é que se faz necessário di-

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vulgar mais esse sistema de proteção, para que o rol de direitos dosseres humanos não fique à mercê de democracias ainda frágeis,como é o caso da brasileira. Esses direitos não possuem limitaçãoestatal, mas, sim, os Estados é que são limitados internacionalmentepelos direitos humanos quando se comprometem, por convençõesou tratados, a protegê-los.

O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Huma-nos, mais do que solucionar casos concretos em caráter subsidiário,impulsiona mudanças estruturais no ordenamento dos Estados, comoo do brasil e do Chile, sendo imprescindível impulso aos deveres dosEstados de prevenir, investigar e punir as violações aos direitos hu-manos, assim como reparar os danos e indenizar as vítimas.

O caso em tela, certamente, foi paradigmático, pois abriuimportante precedente no âmbito regional, aumentando a força daslutas políticas em defesa dos direitos femininos (e dos direitos hu-manos em geral) em toda a América e abrindo os olhos dos indiví-duos para a possibilidade sólida de tutela de seus direitos no âmbitosupranacional.

Insiste-se, pois, na paulatina construção de uma justiça comefeitos erga omnes, em se tratando de direitos humanos, perce-bendo-se como ultrapassada, na relação entre Direito nacional e in-ternacional, a vitória de cunho meramente individual. Tal conquistavai mais além: possui natureza política, social, humana.

Por fim, importante ressaltar que são necessárias mais pes-quisas para que se possa compreender melhor essa discussão, umavez que se trata de um assunto complexo e ainda pouco esclarecido,mas que, de certo, possui grande relevância para os direitos funda-mentais em âmbito nacional e internacional.

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