O Sono Contra a Mercantilização

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  • 8/10/2019 O Sono Contra a Mercantilizao

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    O sono contra a mercantilizao - quatro perguntas a Jonathan Crary

    Acaba de ser publicado no Brasil o livro 24/7 - Capitalismo tardio e os fins do sono

    (Cosac Naify), ensaio do norte-americano Jonathan Crary, professor de arte modernae teoria da arte, sobre como o sono a nica fronteira no dominada pela lgica damercadoria. Crary recorre tanto a estratgias militares quanto a cultura popular paramostrar o surgimento de uma cultura "24/7", na qual a economia fora tudo afuncionar 24 horas por dia, uma lgica que v como empecilho o sono e o descansohumano.

    O terico respondeu a quatro perguntas do Blog do IMS acerca de seu livro:

    1. No livro 24/7, voc mostra estratgias bastante concretas do regime capitalistapara que o sono seja conquistado. Por que voc considera isso algo especfico

    do capitalismo? Pases como Cuba ou Coreia do Norte no demonstram

    tendncias similares?

    Bom, eu no afirmo, na verdade, que o capitalismo est tentando conquistar o sono.Esse no exatamente o meu argumento. O que sugiro que um sistema econmico

    global que depende do mercado 24/7 e da produo e do consumo non-stopno compatvel com a inatividade, o tempo morto e improdutivo do sono humano. O

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    capitalismo com certeza danifica e continuar danificando o sono, mas claro que osono sempre estar conosco. Para mim, uma fonte de otimismo o fato de que h umintervalo crucial do tempo humano que de fato impossvel de ser conquistado pelasforas da monetarizao e mercantilizao. O foco agora se concentrar na defesa deoutros espaos e atividades que enfrentam essas foras, seja na agricultura, na

    educao, no lugar de trabalho ou em outra rea em crise. Acerca de sua perguntasobre Cuba, com certeza um pas que, pelo menos parcialmente, foi capaz de resistiraos imperativos neoliberais da monetizao e da privatizao de todo aspecto da vida

    pblica. Infelizmente, temo que no tardar para que Cuba seja integrada ao sistemamundial capitalista de ajuste estrutural e da terapia de choque do FMI.

    2. Voc enxerga uma correlao entre o aumento do uso de remdios para

    dormir e a cultura workaholicque descreve em 24/7?

    Pelo que os historiadores conseguem nos dizer, as pessoas sempre tiveram aexperincia de sono perturbado e os remdios para dormir esto longe de ser uma

    inveno recente. O que estou tentando demonstrar como, nas realidadeseconmicas do neoliberalismo, h um abandono inexorvel das protees sociais eapoio aos indivduos, sejam estes trabalhadores, crianas, idosos ou deficientes. Se osono est sendo desgastado agora, apenas mais uma das muitas facetas da vida quesofreram com a desregulamentao e o privilgio das foras do livre mercado.Simplesmente no lucrativo para as empresas deixar tempo livre para o descansohumano, a sade ou o bem-estar. Se as pessoas parecem ser workaholics, no porescolha prpria, mas por causa de uma urgente necessidade econmica. Mas o mundonatural tambm vtima do desregulamento neoliberal. Estamos observando, emtodos os lugares, formas massivas de pilhagem e explorao que ocorrem em ritmo24/7, seja atravs de fratura hidrulica, minerao de carvo, extrao de petrleo domar, agricultura industrial, refinamento txico de minerais e a destruio dasflorestas. E tudo isso acontece noite e dia, sem deixar tempo de sobra para aregenerao e a sobrevivncia de ecossistemas.

    3. Um dos principais exemplos culturais que voc apresenta em 24/7 adiferena entre o romance de Philip K. Dick (Os andrides sonham com ovelhaseltricas?), publicado nos anos 1960, e Bl ade Runner, a adaptaocinematogrfica do livro que foi lanada nos anos 1980. Existe alguma obra da

    cultura popular dos dias de hoje que voc sente que representativa do modo de

    pensar e agir 24/7?

    Sim, eu discuto a obra de Philip K. Dick e tambm, lanados nesta poca, os filmes deAndrei Tarkovsky e Chris Marker. Porm, estou menos interessado na ideia de queobras de arte tm uma relao sincrnica com o seu presente, e mais no fato de queelas possuem uma relao mais ambivalente e espectral quanto ao seu passado efuturo. Para mim, um dos objetos culturais mais importantes que abordo o filme deChantal Akerman,Do leste(1993), pela maneira como revela formas de existnciasocial que resistem, mas esto em risco de extino, como a capacidade de ter

    pacincia, de esperar e mostrar deferncia em relao aos outros. Tambm deixo claroque um mundo 24/7 est se desenvolvendo h pelo menos dois sculos, como tenteidelinear em minha anlise de um quadro ingls do fim do sculo XVIII, que mostrava

    uma fbrica noite operando 24 horas por dia. A ideia de um universo 24/7 sempreexistiu na lgica sistmica do capitalismo, ao passo que ele foi tomando forma no

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    incio do sculo XIX. Mas, retornando sua pergunta, eu mencionaria o romancemais recente de Dave Eggers, O crculo. um livro sobre uma empresa gigantesca demdias sociais cujo objetivo a exposio completa 24/7 das vidas individuais. Eledramatiza como um conceito fraudulento de compartilhamento abre caminho para avigilncia non-stope para a manipulao da vida privada e pblica.

    4. O que voc sugeriria a uma pessoa que deseja escapar deste futuro digno de

    pesadelo que voc delineia no livro?

    Bom, o futuro que prevejo no muito diferente do futuro que outros j viram. O queestamos observando so as consequncias do crescimento e acumulaodescontrolada, da devastao ambiental, e uma desigualdade econmica e umainjustia que est se intensificando. No h muito que possa ser feito por apenas uma

    pessoa, claramente uma responsabilidade coletiva e compartilhada de tentar forjarformas alternativas de viver, construdas ao redor de certos modelos gerais deecossocialismo. A coisa mais importante que devemos fazer tomar decises radicais

    acerca de quais so, de fato, nossas verdadeiras necessidades. Precisamos nos recusara comprar todos os produtos inteis e sem sentido que constantemente nos dizem quedevemos comprar. Porm, rejeitar o consumismo 24/7 e o carter txico da cultura

    bilionria apenas o comeo, pois se no somos capazes de dar esse primeiro passo,no h possibilidades de desenvolvimento de novas formas de vida.