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O templo e o portal. Heidegger entre Paestum e Klee Irene Borges-Duarte UNIVERSIDADE DE ÉVORA A presente comunicação procura mostrar uma tese bem simples, que se poderia enunciar brevemente da seguinte maneira: a continuidade da preocupação heideggeriana pelo fenómeno e experiência da Arte, publicamente manifesto em escritos e conferências, durante os 40 anos que medeiam entre o começo dos anos 30 e o final dos 60, embora toque diferentes aspectos e problemáticas, e passe pela consideração de obras artísticas de muito diversas características e épocas, nunca deixa de estar centrada numa experiência inicial – a do fazer-se obra da verdade enquanto epifania do vínculo entre o ser e o seu aí humano. Se a primeira e mais deslumbrante manifestação desse vínculo interferente é a aparição, no templo, da união de mundo e terra no sagrado, união pela qual os mortais chegam a aperceber o rosto do(s) deus(es)..., a última, avassaladora, é a da configuração “abstracta” desse mesmo roce do sagrado, em ausência do deus, na descoberta do vazio do ser, de que a morte é o limiar sem figura. Se daquela primeira devemos tomar como ícone a grandiosa arquitectura de Paestum, podemos reservar para a segunda um humilde guache que Paul Klee pintou no seu último ano de vida e a que chamou Um portal. Entre ambos os extremos, Heidegger expõe em numerosos escritos, de diferente envergadura, muitas vezes em formato “de-strutivo” (em confronto com Hegel, Nietzsche, etc.), as questões que integram aquela principial, que é a da origem da Arte enquanto “ditado poético” e a sua essência enquanto “pôr-se-em-obra-da-verdade”, passando pela meditação do que poderíamos chamar, hegelianamente, “os passos” da sua “paixão”: aquilo que Heidegger nomeia como “mutação na essência” [Wandlung im Wesen] da Arte, desde a sua proveniência “piedosa” até à sua programação técnico- -empresarial na constelação tecnológica do mundo e cultura “gestéllicas”– em que já não há, verdadeiramente, “obras” – e a que serviu de mediação a Estética metafísica moderna, em que o fenómeno se oculta, dissolvido em reflexão e “ciência”. Não podendo aspirar a fazer tão longa travessia, limitar-nos-emos àqueles dois extremos. Mas, isso sim, arriscando uma breve polémica com aqueles que, como Otto Pöggeler, defendem que a consciência heideggeriana da insuficiência do seu texto sobre A origem da obra de Arte 1 para compreensão do fenómeno em causa, o 91 1 Servem de ponto de partida e apoio a esta meditação os seguintes textos de Martin HEIDEGGER: «Der Ursprung des Kunstwerkes» (3. Ausarbeitung) [de agora em diante citado pelas siglas Ukw], in Holzwege, Gesamtausgabe 5, Frankfurt, Klostermann, 1977 (tr. pt. coordenada por I. Borges-Duarte: Caminhos de Floresta, Lisboa, Gulbenkian, 2002); «Vom Ursprung des Kunstwerkes. Erste Ausarbeitung» (1931-32) [Ur-Ukw], Heidegger-Studies 5, 1989, 5-22; «Zur Überwindung der Aesthetik. Zu ‘Ursprung des Kunstwerkes’» 1934, Heidegger-Studies 6, 1990, pp. 5-7.

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O templo e o portal. Heidegger entre Paestum e Klee

Irene Borges-DuarteUNIVERSIDADE DE ÉVORA

A presente comunicação procura mostrar uma tese bem simples, que se poderiaenunciar brevemente da seguinte maneira: a continuidade da preocupaçãoheideggeriana pelo fenómeno e experiência da Arte, publicamente manifesto emescritos e conferências, durante os 40 anos que medeiam entre o começo dos anos 30e o final dos 60, embora toque diferentes aspectos e problemáticas, e passe pelaconsideração de obras artísticas de muito diversas características e épocas, nuncadeixa de estar centrada numa experiência inicial – a do fazer-se obra da verdadeenquanto epifania do vínculo entre o ser e o seu aí humano. Se a primeira e maisdeslumbrante manifestação desse vínculo interferente é a aparição, no templo, daunião de mundo e terra no sagrado, união pela qual os mortais chegam a aperceber orosto do(s) deus(es)..., a última, avassaladora, é a da configuração “abstracta” dessemesmo roce do sagrado, em ausência do deus, na descoberta do vazio do ser, de quea morte é o limiar sem figura. Se daquela primeira devemos tomar como ícone agrandiosa arquitectura de Paestum, podemos reservar para a segunda um humildeguache que Paul Klee pintou no seu último ano de vida e a que chamou Um portal.

Entre ambos os extremos, Heidegger expõe em numerosos escritos, de diferenteenvergadura, muitas vezes em formato “de-strutivo” (em confronto com Hegel,Nietzsche, etc.), as questões que integram aquela principial, que é a da origem da Arteenquanto “ditado poético” e a sua essência enquanto “pôr-se-em-obra-da-verdade”,passando pela meditação do que poderíamos chamar, hegelianamente, “os passos” dasua “paixão”: aquilo que Heidegger nomeia como “mutação na essência” [Wandlungim Wesen] da Arte, desde a sua proveniência “piedosa” até à sua programação técnico--empresarial na constelação tecnológica do mundo e cultura “gestéllicas”– em que jánão há, verdadeiramente, “obras” – e a que serviu de mediação a Estética metafísicamoderna, em que o fenómeno se oculta, dissolvido em reflexão e “ciência”.

Não podendo aspirar a fazer tão longa travessia, limitar-nos-emos àqueles doisextremos. Mas, isso sim, arriscando uma breve polémica com aqueles que, comoOtto Pöggeler, defendem que a consciência heideggeriana da insuficiência do seutexto sobre A origem da obra de Arte1 para compreensão do fenómeno em causa, o

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1 Servem de ponto de partida e apoio a esta meditação os seguintes textos de Martin HEIDEGGER: «Der Ursprungdes Kunstwerkes» (3. Ausarbeitung) [de agora em diante citado pelas siglas Ukw], in Holzwege, Gesamtausgabe 5,Frankfurt, Klostermann, 1977 (tr. pt. coordenada por I. Borges-Duarte: Caminhos de Floresta, Lisboa, Gulbenkian,2002); «Vom Ursprung des Kunstwerkes. Erste Ausarbeitung» (1931-32) [Ur-Ukw], Heidegger-Studies 5, 1989, 5-22;«Zur Überwindung der Aesthetik. Zu ‘Ursprung des Kunstwerkes’» 1934, Heidegger-Studies 6, 1990, pp. 5-7.

leva a procurar “completar” e até “superar” o ali defendido com base noutras obrasexemplares, de que Paul Klee seria o supremo expoente e melhor fio condutor. Naverdade, atrevo-me a defender aqui, que o que o velho Heidegger dos anos 50 e 60procurou em Klee, a quem considera pintor post-metafísico, foi o mesmo queencontrara na arte helénica pre-metafísica: a diáfana transparência do que, para ele,é sagrado – a aliança que institui (doando, fundando e iniciando)2 o aí-ser comoponto de intersecção entre o mortal e o celestial e entre o mundo e a terra.

Os dois momentos da exposição procuram recuperar estes dois patamares deverdade na obra, segundo Heidegger: (1) o tempo do temor dos deuses e (2), em suaausência, o do terror da morte. Àquele dá forma o recinto sagrado de Paestum; aeste, a abstracção de Klee.

I

Embora em A origem da Obra de Arte (1936) a tese heideggeriana de que aArte é “o pôr-se em obra da verdade” apareça exposta, fundamentalmente, emcomentário a Van Gogh e ao carácter de serventia do rude calçado camponês, nãofora esse o exemplo de que Heidegger, inicialmente, partira. Na sua primeira versão,procedente de 1931/32, a meditação heideggeriana desenrolava-se em torno daunidade eco-arquitectónica de um templo. Considero que este facto está longe deser fortuito. Ele denota, bem pelo contrário, o enquadramento mais próprio eoriginário da questão da Arte, para Heidegger: a fundação do sítio para a epifaniado sagrado, enquanto acontecimento do vínculo homem-ser, sob a forma do darfigura ao divino. Esse horizonte não aparece com a mesma força se tomamos comoLeitmotiv da leitura daquele texto a verdade do modo de ser do utensílio.

De facto, quando Heidegger entre 1931 e 1932 começou a redigir a suaconcepção da arte, elaborada como aprofundamento e exemplificação ontológica dasua compreensão da essência da verdade, já tinha assistido – em Março de 1930 – àexposição retrospectiva de Van Gogh em Amsterdão, que tanto o impressionou. Nãohá, contudo, nessa primeira redacção do que chegará a ser “A origem da obra deArte”, a mais leve referência nem a esse pintor nem a nenhum dos seus quadros. OLeitmotiv dessa primeira versão plenamente articulada da questão é exclusivamentede tipo arquitectónico, para que dá dois nomes: os templos de Paestum e Bamberg.E, paralelamente, cita – embora sem nelas se deter – duas obras poéticas: a Antígonade Sófocles e, em geral, a poesia de Hölderlin3. Ora, tal como no caso do templo,nenhum destes dois exemplos literários poderá ser tido como remissão, de alguma

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2 Schenkende-gründende-anfängende Stiftung. Veja-se M. HEIDEGGER, Ukw, p. 62 [tr. pt. 80]; Ur-UKw, p. 19.3 Veja-se M. HEIDEGGER, Ur-UKw, p. 7 e 15.

maneira ilustrativa, da “serventia” ou “ser-utensílio” do utensílio, ao contrário doque, com igual paralelismo, acontece com a descrição da fonte romana no poema deG.F. Meyer, comentado em 1935/36.

Estas referências não são circunstanciais. Elas indicam, sem dúvida, o cerne esítio originário da questão da Arte para Martin Heidegger! Ela tem lugar no pontode união e vínculo sagrado entre os mortais e os celestiais, pelo qual a terra,elaborando-se, se retrai ao levantar-se o mundo. Como diz em A pergunta pelatécnica (publ. 1953): na sua origem a Arte é “piedosa”, Πρóµo – “dócil ao vigorare guarecer da verdade”4. Nela guarda-se e aguarda-se a visita do que sempre escapaà mão do homo sapiens et habilis e nunca aceita ser utensílio: a sombra do divino,na sua fugaz passagem pelo mundo humano.

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4 M. HEIDEGGER, «Die Frage nach der Technik» (1953) [FnT], Voträge und Aufsätze, Gesamtausgabe 7,2000, p. 35 (ed. Neske, 34): «Sie war fromm, prómos, d. h. fügsam dem Walten und Verwahren der Wahrheit».

5 M. HEIDEGGER, Ur-UKw, p. 12-13.

“A obra arquitectónica que, como templo, alberga em si a figura do deus, faz com

que ele se exteriorize, atravessando o pórtico, no recinto que, só assim, vem a ser funda-

do enquanto sagrado. Erguendo-se num mundo e refugiando-se na terra, o templo inaugu-

ra o aí, em que um povo vem ao encontro de si mesmo, isto é, a aceitar o poder do seu

deus. Só pela obra é que a terra chega a ter carácter de mundo e, enquanto tal, a ser terra-

mãe. O mesmo acontece na obra da linguagem com o nomear e dizer, mediante os quais

somente chega à palavra o ser das coisas e, com o dizível e o indizível, vem ao mundo.”5

Templo de Neptuno em Paestum

Tendo em consideração estes detalhes, atrevo-me a pensar que o texto de1935/36, publicado em 1950, já pressupõe, de certo modo, uma tentativa deampliação da questão inicial – que é a da “origem” e não meramente a da“essência” – a uma problemática, ausente do mundo helénico (e, não o esqueçamos,gótico), mas vincante na arte moderna: a expressão da secularização e do paulatinoesquecimento daquela aliança. O comentário de Van Gogh introduz já, de facto, naminha leitura, uma abordagem da Modernidade e, nela, do lugar que a Arte continuaa ocupar. Ao contrário do que defendem Pöggeler6 e Seubold7, vejo já aí um“complemento”, antes ainda do “Epílogo” e do “Aditamento” (1956), que só virama luz na edição Reclam de 1960, e das notas tardias sobre Cézanne, Klee, etc.,fragmentárias e procedentes dos anos 50-60. Mas também não é aqui lugar para nosestendermos neste ponto.

Todavia, é indubitável que este acompanhamento heideggeriano da história daverdade em obra, cujo principal dialogante é, inequivocamente, Hegel e a suaVergangenheitsthese, tem em mira chegar a compreender o fenómeno pleno da Arte,que no século XX se faz fundamentalmente “abstracta”. Que significa esse novum?Aonde conduz? De onde procede? A conferência de Atenas (1967), tão clara comorotunda, coloca ambas as questões e responde-lhes dessa maneira interrogati-vamente indicativa, com que Heidegger gosta de nos assaltar: com a remissão a um“passo atrás”. Como se diz, também aí, que esse passo não deve ser interpretado nosentido de fazer reviver os antigos deuses8, etc., é de suspeitar que terá de realizar-se de outra maneira. É nesse sentido que interpreto o esforço do último Heidegger(especialmente, a partir da década de 60) por compreender a Arte post-metafísica dePaul Klee. No mesmo sentido haveria também que entender, por outro lado e nocontexto escultórico, a sua aproximação da obra de Eduardo Chillida, por exemplo.

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6 Otto PÖGGELER, Bild und Technik. Heidegger, Klee und die moderne Kunst, München, Fink, 2002; idem,«Über die moderne Kunst. Heidegger und Klee’s Jenaer Rede von 1924», Jenaer Philosophische Vorträge undStudien 13, 1995.

7 Gunther SEUBOLD, Kunst als Enteignis. Heideggers Weg zu einer nicht mehr metaphysischen Kunst, Bonn,Bouvier, 1996; idem, Das Ende der Kunst und der Paradigmenwechsel in der Ästhetik, Freiburg/München, Alber,1997; idem, «Heideggers nachgelassene Klee-Notizen», Heidegger-Studies 9, 1993 .

8 ;M. HEIDEGGER, Denkerfahrungen, Frankfurt, Klostermann,1983, p. 147. Cito a minha tr. cast. (“La pro-veniencia del Arte y la determinación del pensamiento», Er-Revista de Filosofía 15, 1992): «Lo que es necesarioes el paso atrás. Atrás ¿hacia dónde? Hacia el comienzo que se nos indicó en la señal hacia la diosa Atenea. Masese paso atrás no significa que el antiguo mundo helénico tenga que ser restaurado de alguna manera ni que el pen-sar deba buscar refugio en los filósofos presocráticos. «Paso atrás» quiere decir: el retroceder del pensar ante lacivilización mundial, distanciándose de ella aunque sin negarla en absoluto, adentrarse en lo que hubo de quedarimpensado en el inicio del pensar occidental, pero que, sin embargo, a la vez fue nombrado y por tanto pre-dichoa nuestro pensar.”

É certo que, nesse caso, a concepção heideggeriana da arte permanece,diríamos, arcaizante, uma marca mais do seu apego ao mundo pré-moderno: àAntiguidade, que atingiu o seu cume na Arte helénica, límpidamente representadono conjunto arquitectónico de Paestum, dominado pelo tempo de Neptuno; e, talvez,ao Medioevo, que a gótica imponência de Bamberg edifica. Ambos os exemplosguardam no resplandor da beleza o vínculo entre o estético e o religioso, que Hegelconsiderou superado na Modernidade, com o triunfo da Razão e do conceito. Etalvez também seja certo que, desse modo, Heidegger falha a compreensão daquiloque mais gritantemente caracteriza a via das novas técnicas e novos caminhos dacontemporaneidade artística. Recordemos brevemente, a este propósito, que as suasescassas referências a exemplos musicais concretos, revelam um gosto muito“clássico”: leiam-se os “conselhos” ou “convites” a ouvir Bach (o Allegro do 3ºConcerto de Brandenburgo) ou Beethoven (o Adagio final da última das Sonataspara piano, a 32, op. 111), que aparecem na correspondência com Hannah Arendt9,ou o elogio do, só aparentemente menos clássico, Carl Orff, de cuja Antígona,estreada Janeiro de 1951, em Munique, diz: “Num instante, os deuses estiveramlá”10. E, interrogado sobre Stravinsky (em 1962), de entre todas as suas obras é aSinfonia dos Salmos e o melodrama Perséfone (com texto de Gide) que diz preferir,pois “ambas as obras dão uma nova actualidade a uma tradição de antiquíssimaorigem”, sendo “música no supremo sentido da palavra: dádiva das musas”11. Masnão podemos pedir-lhe que faltasse à sua intuição mais profunda, de que a Arte nãofoi nunca senão um caminho singular...

II

Que encontrou, então, na produção de Paul Klee, delicadamente irónica, cheiade musicalidade e de uma terna inteligência? É sintomático que, com poucasexcepções, seja sobretudo na produção do último ano de vida do pintor, falecido emJunho de 1940, que Heidegger parece fixar-se.

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9 H. ARENDT – M. HEIDEGGER, Briefe 1925-1975, Frankfurt, Klostermann, 1998, p. 89 e 93.10 Leia-se ibidem, p. 123: «Orff ist durch Hölderlin hindurch auf einem eigenen Weg zum Grieschischen

gelangt. Augenblickweise waren die Götter da. Ich wünschte mir, Du hättest dies erfahren können. Hier wächstetwas, das von allem Bisherigen ursprünglich weggeht und dennoch Überlifertes schöpferisch aneignet.”

11 M. HEIDEGGER, Denkerfahrungen, ed. cit., p. 113

“Por esse portal todos teremos

que passar algum dia. É a morte.”12

Com essas palavras, recordadas por Petzet, Heidegger guardou a marca dasfinas linhas traçadas por Klee, em 1939, na pintura Ein Tor. Um portal gigantesco13

levanta-se entre o prumo de obelisco e a rotunda força de um disco ou aro, que situ-ados ambos a igual altura, ladeiam um vão, insondavelmente aberto para o nada.Apesar da aparente solidez, a imagem como que flutua, sem peso. E, no entanto, asuperfície plana ganha o volume do que se adensa na cor nebulosa e vaga do guachebranco e azul, que as linhas negras rasgam. Estranho, o recinto de acesso sugere umapossível pedra sacrificial, altar talvez, em cripta insegura. A imagem é imponente,tão desolada quanto arrebatadora, antevisão de uma travessia inominável.

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12 H. W. PETZET, Auf einen Stern zugehen. Begegnungen und Gespräche mit M. Heidegger, 1929-1976,Frankfurt, Societäts-Verlag, 1983, p. 156.

13 O portal evoca a Necrópole, que Klee pintara em 1930, ainda profundamente marcado pela impressão dasua viagem pelo Oriente, em 1929.

Paul Klee, Ein Tor. 1939

Diz Pöggeler, em comentário a esta composição e à interpretaçãoheideggeriana, que “se é certo, como Heidegger dá por suposto, que este é o portalda morte, é porque Klee aí introduz a experiência da sua própria morte, que invadeavassaladora outras experiências fundamentais humanitarias e os seusdesenvolvimentos” mais extremos14. Como não? O momento do “trânsito” adivinha-se, depois de 7 longos anos de convivência com a doença, e “esse castelo de sonhoe nuvens”, como vem descrito no catálogo da Fundação Beyeler, afigura-se-lhecomo uma “Jerusalém celeste”. Mas já em 1936, Klee fizera um outro ensaio dessemesmo portal, Das Tor zur Tiefe: configuração harmónica de cores e formasgeométricas, subitamente quebradas num buraco negro, como peça que falta de umpuzzle incompleto, ou a ameia rota de um castelo. Perceber esse espaço, nacorrespondente vertigem, é reencontrar aquilo para que nenhum mortal estápreparado: o vazio do que escapa a qualquer figura, puro sentir amorfo de umaincontornável ida a nenhum lugar.

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14 O. PÖGGELER, Bild und Technik, ed. cit., p. 132.

Paul Klee, Das Tor zur Tiefe. 1936

Poucos anos antes da primeira grande exposição de Paul Klee no Museu deBasileia (1953), entre os poemas do reencontro, que Heidegger envia a HannahArendt em fevereiro de 1950, encontram-se dois, com este tema central15. Diz umdeles:

A morte é a cordilheira do Ser Tod ist das Gebirg des Seyns

no poema do mundo. Im Gedicht der Welt.

A morte salva o teu e o meu Tod entrettet Deins und Meins

do peso, que cai... An’s Gewicht, das fällt -

elevando-o a um sossego In die Höhe einer Ruh

puro rumo à estrela da terra. Rein dem Stern der Erde zu.

No mais alto cume cumpre-se o humano: salva-se do “peso que cai” pelo“elevar-se”: como o portal sem corpo que, suspenso no vazio, parece voar. “Purorumo” [rein...zu]: límpida descrição de um trajecto implícito e inevitável. Mas aestrela, anel soberano que atrai, é-o da terra, em relação à terra: o lugar sobre o quese edifica o mundo, em que o Ser, montanhosamente (Gebirg), se adensa e fazpoema (Gedicht). “Sossego”, enfim, é esse puro rumo à estrela. É essa estrela a quepreside a sua sóbria pedra tumular? É, certamente, pelo menos, a que nomeia oaforismo de 1947, publicado em Da experiência do pensar: “Elevar-se até àproximidade de uma estrela. Apenas isso.”16 No outro poema enviado a Hannah, esse“puro rumo a”, que a morte é, revela-se um co-responder ou dar réplica(Entsprechung, segundo o título) ao acontecimento e vínculo originário, pelo que seinstitui o Dasein no seu ser e, de repente, aqui sem antecedente que prepare o seuadvir, reaparece o sentir do divino:

Sem deus, só o deus Gottlos der Gott

e nenhuma outra coisa... allein, sonst keins / der Dinge -

já só a morte erst wieder Tod

volta a corresponder entschpricht

em aliança im Ringe

ao poema primevo dem Frühgedicht

do Ser des Seyns

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15 H. ARENDT – M. HEIDEGGER, Briefe 1925-1975, p. 80.16 «Auf einen Stern zugehen. Nur dieses.» Veja-se M. HEIDEGGER, Aus der Erfahrung des Denkens.

Pfullingen, Neske, 1954, p. 7.

“Já só a morte volta a...” [erst wieder Tod]. Na conhecida entrevista concedida aDer Spiegel em 1966, é “já só um deus” que “pode ainda salvar-nos”. O deus – talvezausente – e a morte são, para Heidegger, os nomes, os sinais da “aliança” salvadora.Trata-se de que nos apercebamos de cada um desses extremos: quer na sua dimensãocolectiva, de destino do Ser, o deus que, nos Beiträge, se permite ainda passar, fugaz,pela porta da casa onde, encerrados, os mortais aguardam os vindouros, os arautos daorigem, que são os poetas – ou os criadores – que, cantando o destino, o abrem; querna sua dimensão mais própria, de finitude facticamente experimentada na carnemortal, aí-do-ser que transe, a Morte, limiar do que somente se escuta como eco, naangústia de quem já sabe e se deixa arrebatar pelo terror da presença sem figura.

Atracção pela pura beleza?Rilke – cuja correspondência com Klee, Petzet dá por suposto que Heidegger

conhecia17 – soubera dar outro nome a este deslumbramento aniquilador, o “belo”que é “começo do terrível”18, “transformação do visível em invisível” e “ser quegarante o facto de reconhecermos no invisível um grau superior de realidade”19: oAnjo das Elegias, “ave quase mortal da alma”, que “não sabe se anda entre vivos ouentre mortos”, invocada no canto:

“Todo o Anjo é terrível... [...] Se o Arcanjo agora, o perigoso, de detrás das estrelas

se aproximasse, descendo um só passo, com o seu violento bater nos abatia o próprio

coração.[...] Porque nós, ao sentir, evaporamo-nos”20

Não é possível, nem tem aqui cabimento, alongarmos este salto sobre esseoutro abismo que é o das falésias de Duino. Basta-nos, na verdade, voltar a Klee eàs suas metamorfoses do Anjo, que povoam o ano 1939. Curioso: Heidegger, que em“Para quê poetas” se detém neste “ente de um grau mais elevado” no seio do risco[Wagnis], que constitui, para Rilke, a essência do Aberto no “espaço interior domundo”21, e que o compara ao Zaratustra de Nietzsche, não menciona, contudo opersistente fantasma que acompanha Klee – são cerca de 50 figuras! – nas vésperas

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17 PETZET, op. cit., p. 155.18 Veja-se a 1ª Elegia: «Denn das Schöne ist nichts als des Schrecklichen Anfang». R.M. RILKE, Werke.

Kommentierte Ausgabe in vier Bände, Bd 2. Darmstadt, WBg, 1996, 201. Em tr. pt. de Paulo Quintela, Lisboa, Asa,4ª ed., 2001, p. 171.

19 Carta a Muzot de 13/11/1925. Reproduzido por HEIDEGGER em «Wozu Dichter» (Holzwege, ed. c., 288);tr. pt. Sylla-Moura, in Caminhos de Floresta, p. 358.

20 «Jeder Engel ist schrecklich. [...] Träte der Erzengel jetzt, der gefährliche, hinter den Sternen einesSchrittes nur nieder und herwärts: hochaufschlagend erschlüg uns das eigene Herz. [...] Denn wir, wo wir fühlen,verflüchtigen»... (2ª Elegia) in RILKE, ed. c., p. 205; tr. Quintela, p. 173-174.

21 M. HEIDEGGER,”Wozu Dichter», 288-289 (tr. Sylla-Moura, 358-359).

da sua morte. Também Pöggeler menciona, estranhado, esta ausência. Klee, aocontrário de Rilke, estava para Heidegger fora da Metafísica. Por isso, diz Pöggeler,deveria ter-se perguntado “que podia significar para ele a figura angélica”22.Detenhamo-nos um momento nesta perplexidade.

O chamado “Credo do criador” (1920), um dos textos teóricos maisimportantes de Paul Klee, inicia-se com a afirmação rotunda e principial (I):

“A arte não reproduz o visível: torna visível. A essência do gráfico, tenta-nos facil-

mente, e com razão, à abstracção. [...] Quanto mais puro for o trabalho gráfico, isto é,

quanto mais peso for dado aos elementos formais que estão na base de uma representação

gráfica, tanto menos apetrechados estaremos para a representação realista das coisas

visíveis.”23

E quase no final (VII), precisa:

“A arte comporta-se à maneira de um espelho relativamente à criação. É sempre em

cada caso um exemplo, assim como o terrestre é um exemplo do cósmico. [...] A arte joga

um jogo inconsciente com as coisas últimas, mas acaba por lá chegar.”24

Não produz cópias, mas exemplos do que pode ser criado. Como comentaValeriano Bozal, “o mundo não está acabado”25, e é a arte, enquanto criação, quecompleta o mundo inacabado, tornando visível o que nem a realidade nem aimaginação mostraram e, pondo em jogo o mundo, alcança as suas mais extremaspossibilidades: “as coisas últimas”. Que se torna visível, para lá do real e doimaginário, na reiterada metamorfose dos Anjos?

Naquele mesmo ano em que redigiu a sua “Confissão” e foi convidado aensinar na Bauhaus, 1920, Klee pintara o seu Angelus Novus, que apaixonou WalterBenjamin, a ponto de o comprar e guardar, como seu mais precioso bem. Chamou-lhe o “Anjo da História” – uma história que não terminou bem, nem para ele, nempara o mundo, e que ele abandonou com pressura, antes que acabara o seu tempo...Esse Anjo novo era, para Benjamin, presságio da hecatombe e recordação daorigem, impotência ante essa mistura de “criança” e de “devorador de homens” que

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22 O. PÖGGELER, op.cit., p. 14323 Paul KLEE, «Schöpferische Konfession», in Paul Klee Schriften. Rezensionen und Aufsätze.Hgn. von Ch.

Geelhaar. Köln, DuMont, pág. 118. Tr. pt. em P. KLEE, Escritos sobre Arte. Lisboa, Cotovia, 2001, p. 38.24 Ibidem, 122; tr. pt. (que reproduzo com algumas alterações), p. 44.25 V. BOZAL, «Paul Klee: hacer visible.» in Paul Klee, Catálogo da exposição do Museu Thyssen-Bornemizsa,

Madrid, 1998, p. 29

é a antecâmara do inumano. Mas que era, para Klee, quase 20 anos depois, às portasda sua morte e no início da 2ª Grande Guerra, o Anjo... de que Heidegger não falou?

Na impossibilidade de ter acesso às múltiples versões, centremos a atenção,somente, no seguinte: a maior parte das produções são, como o Angelus Novus,simples desenhos, a lápis, giz ou tinta da china, às vezes sobre fundo colorido, deum esquematismo e economia de meios só paralelos à sua “intensa concentraçãoexpressiva”26. Um deles, porém, o Todesengel, “Anjo da morte”, já de 1940, é umapintura tragicamente denominada “Sem título” e em que todas as anterioresvariações se transfiguram.

Recordemos, brevemente: “Na antecâmara do angélico”(Am Vorzimmer derEngelschaft), uma figura sentada, de rosto alterado, vergado pela dor ou pelocansaço, espera entrar a formar parte da ordem ingrávida dos Anjos. Estes aparecemem devir, diferentes pontos de partida de uma mesma metamorfose: o Anjoinacabado” (Unfertiger Engel), que alça a vista em alada esperança de um abraço deperfeição vindo do alto, parece já mais próximo da sua completude que o comovente“Velho músico angelical”, delicado autoretrato, num abraço meigo e surpreendidoda forma angélica ainda não assumida, ou que o “Anjo ainda feio” (noch hässlich),ou o “...ainda feminino” (noch weiblich)..., ou mesmo, talvez, que o seguinte passo,o “Anjo crescente”, em busca da sua forma própria, ainda por encontrar. Estapoderia ser demoníaca, como o Chindlifrässer, “Devorador de crianças”, maléficocontraste, que na visão de Klee é como que o balanceio ético que, sem nos esmagarnem humilhar, às portas do angelical, é marca da “dualidade das forças deprocriação e evolução das coisas”27. Mas também pode ser o terno sorriso intimistado “Anjo esquecediço ou distraído” (Vergesslicher Engel), em si debruçado e, pormomentos, alheado da dor e da realidade. Ou o cabisbaixo Anjo enrolado, dobradopela pena, em “Choro” (Es weint). Todos estes esboços, cada um mais apelativo,mais sensível e mais intenso que o outro, têm algo de profundamente simples,tornam visível algo leve, um instante de humanidade transfigurada, de sublimação,tristeza ou cólera. No mais desgarrador pressentimento, surge ainda o quasi-Anjo,despedaçado pela angústia, a rebentar num “Arrebato de medo”, Angstausbruch,não menos pregnante que o expressionista “Grito” de Munch. Nele anuncia-se já oque o desolador “Anjo da morte” traz consigo: o inominável – por isso, “sem título”.

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26 Veja-se o estudo do pintor Antonio SAURA, ibidem, p. 85.27 Ver “Schöpferische Konfession”, ed. cit., p. 121; tr. pt. 42-43: “O recurso às noções de bom e mau produz

uma esfera ética. O mal não deve ser inimigo triunfante ou humilhante, mas uma força que colabora na criação.Factor que participa da criação e da evolução. Um sincronismo do princípio masculino (mau, excitante, apaixonado)e do feminino (bom, crescente, sereno) como estado de equilíbrio ético. A isto responde a conjunçãp simultânea dasformas – movimento e contramovimento – ou, de uma maneira mais ingénua, as oposições figurativas.»

Em tons intensos, nocturno contraste de sombras azul-grisáceo e céus de des-pedida, ténues amarelados de uma luminosidade sem vida (sol de inverno, vela), eum vermelho cálido mas tosco, como a vida que, por se esgotar, por instantes sesente com mais força.

Mas se o centro do quadro está na invisível linha que separa luz e sombra, é oterrível contraste entre branco e preto, o rosto lívido e sóbrio que, oscilante, seinclina para o negro abismo do chão, de imprecisos limites, num quase caixão roxo.

Este breve percurso, fragmentário e ligeiro, algo permite: a suspeita de que oAnjo de Klee é a transfiguração simbólica da porosidade afectiva e inteligente,befindliches Verstehen, que compreende e articula num gesto cada Absoluto da maisextrema experiência humana: a elevação ao sentir diáfano que é, sempre, umpressentir do Outro, da passagem, simples vínculo ao invisível. São pura forma emmovimento: metamorfoses da apropriação mútua do visível e do invisível, doterreno e do celestial, do mortal e do divino. Mas na ingenuidade do seu traçado,quase infantil, está a benigna ternura do olhar do artista, que ao pintá-los se despededa vida, deixando-se neles em vida... Talvez por isso, os Anjos de Klee são menosassustadores que o de Rilke, tímidos em vez de grandiosos. Excepto o último, nãodeslumbram nem aterram... Talvez por isso, Heidegger, que sempre privilegiou

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Paul Klee, Ohne Titel, Todesengel. 1940

essas formas imponentes do ser se desvelar, não recolha em palavras ou referênciassuas estas imagens, apesar da importância que atribui a Klee. Mas sem elas, creio,não entenderíamos o que o próprio Heidegger encontrou na pintura post-metafísicade Klee, expressa nas obras que deveras menciona e com que, agora, terminamos.

São dois os quadros dessa época, que Heidegger escolhe como átrio ouepígrafe da famosa conferência Tempo e Ser, que, em 1962, marca o reencontro como abandonado projecto de Ser e Tempo, agora em nova travessia. “Se neste momentonos fossem mostrados no seu original os quadros Heilige aus einem Fenster e Todund Feuer, gostaríamos de nos demorarmos um bom bocado ante eles...abandonando qualquer pretensão de os entender de imediato.”28

Idênticas palavras introduzem o poema de Georg Trakl, Septimino da morte, deque me permito citar – ele não o faz! – o excerto, em que, inquietante, a morte – “daalma o vento sossegado” – irrompe na “calada noite” e “do homem a pútrida figura,de frios metais asida, em susto a floresta afunda” ao “abater-se lento da sangrantecaça na colina”, criatura “abrasada e erma”:

Schweigend erscheint die Nacht, ein blutendes Wild,das langsam hinsinkt am Hügel.[...]

O des Menschen verweste Gestalt: gefügt aus kalten Metallen,Nacht und Schrecken versunkener Wälder

Und der sengenden Wildnis des Tiers;Windsstille der Seele.29

O poeta desvela já a frialdade da noite, de obscuro susto, que alia ao desamparoda morte, “vento” aquietado. Talvez por isso ganhe completo sentido a opção deHeidegger por aqueles dois quadros de Klee, ambos de 1939/40, que não comenta,limitando-se a recordá-los: em “Santa a uma janela”, um suave olhar, acolhedor,etéreo, que lembra um vago autoretrato do próprio Klee, elevado aonde o portalconduz; em “Morte e fogo”, uma caveira brutal, em fundo de fogo ou sanguepúrpura, para baixo inclinada, como tombando, figura e grafo do literalmenteiminente. Permito-me interpretar: é a queda no abismo, brutal – última réstia, porisso, de cor e força – que, todavia, concede o elevar-se, pensando (agradecendo) –como a figura humana do ângulo superior esquerdo – ao sem nome nem peso nemimagem possível.

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28 M.HEIDEGGER, «Zeit und Sein» [1962], Zur Sache des Denkens, Tübingen, Niemeyer,4 2000, p. 1. 29 Veja-se «Siebengesang des Todes» in G. TRAKL, Dichtungen und Briefe. Historisch-kritische Ausgabe

hrsg. von W. Killy u. H. Szklenar, Bd. 1. Salzburg, O. Müller Verlag, 1989, 126-127. J.L. Reina Palazón, na suaexcelente edição em castelhano (Obra completa, Madrid, Trotta, 1994) traduz o «Séptuple cántico de la muerte» naspáginas 124-125.

Concluindo: A morte e o sagrado no vão de chegada são, pois, os temas darecuperação heideggeriana da questão da Arte em Paul Klee. Que mudou,relativamente a A Origem da Obra de Arte? Algo tão radical que permita considerarque o então dito é insuficiente para compreender a arte moderna, como pretendemPöggeler e Seubold? Não o vejo, pelo menos no que respeita à perspectiva maispropriamente heideggeriana. Penso que o que quis encontrar em Klee foi, noutravista, o que já tinha encontrado em Paestum e queria projectar em Bamberg, e tinhavoltado a apontar no seu comentário de 1955 à Madonna Sixtina de Raffael: isso quenão é senão o vão de chegada, visado pelo passo atrás! O Ser sem imagem daorigem, o abismo da proveniência de nenhum lugar, o vazio do tempo de todo omortal: aquilo que o homem, ao longo de todos os tempos, quase só soube celebrarsob o véu da divindade venerada no templo, de que agora se ausentou. Só que,porque se ausentou, a nós que “chegamos demasiado tarde para os deuses edemasiado cedo para o Ser”, a nós, “humanos, que dele somos o iniciado poema”30,apenas a morte nos resta: único pórtico que ainda nos produz estremecimento.

Que o tempo da “Grande Arte” seja, para sempre, para nós, passado talvez nãosignifique senão que o “passo atrás”, de retorno à origem, haverá de ser feito por umcaminho bem mais modesto, minimalista, capaz de deixar vibrar o aí da eraGestéllica ao ritmo melódico da pintura de um Paul Klee.

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Paul Klee, Tod und Feuer. 1940

30 Wir kommen für die Götter zu spät und zu früh für das Seyn. Dessen angefangenes Gedicht ist derMensch.“ M. HEIDEGGER, Aus der Erfahrung des Denkens, p. 7.