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O texto seguinte foi retirado de CARDOSO, Ciro Flamarion. Ensaios racionalistas: filosofia, ciências naturais e história. Rio de Janeiro: Campus, 1988. p. 25-40. O TEMPO DAS CIÊNCIAS NATURAIS E O TEMPO DA HISTÓRIA 1. Os historiadores e o tempo “Ciência dos homens no tempo”: eis a definição da História dada por Marc Bloch, que acrescentou ser o tempo da história “o próprio plasma em que banham os fenômenos, e como que o lugar da sua inteligibilidade”. 1 Pareceria, pois, que a categoria tempo reveste-se de importância primordial para os historiadores. Isto é verdade, mas, curiosamente, não tem levado a discussões freqüentes de tipo teórico ou metodológico entre historiadores sobre tal categoria. Quando os manuais de metodologia abordam esta temática, é muitas vezes para menção, somente, do “tempo cultural”, isto é, de como as diferentes épocas e sociedades que o historiador estuda conceberam o tempo. E não para tratar de algo muito mais importante metodologicamente: como lidar com a categoria ou parâmetro temporal nas pesquisas históricas. 2 O desleixo é grave, pois pode-se constatar que as múltiplas possibilidades a respeito têm sido insuficientemente exploradas; ou seja, que a maioria dos historiadores utiliza, ao trabalhar, poucas das variadas dimensões temporais disponíveis e pertinentes para a pesquisa em História. 3 Voltaremos depois a este aspecto da questão. Outrossim, quando aceitam discutir o problema do tempo explicitamente, os historiadores costumam precisar de saída que o “tempo da História” não é o da Física, e sim um tempo “social”, “cultural” ou “subjetivo”. Já Marc Bloch opunha o tempo de certas ciências, que “não é mais do que uma medida”, ao da História, “realidade concreta e viva volvida à irreversibilidade do seu impulso”. 4 Mais recentemente, Sergio Bagú afirmava: “Compreendamos bem que o nosso tempo é o dos seres humanos organizados em sociedades. Não o dos físicos nem o dos filósofos, embora suspeitemos possíveis nexos. (...) () tempo é a permanência da realidade social. E a história como processo criador do humano.” 5 É muito duvidoso, porém, que as concepções temporais das outras ciências sociais sejam mais compatíveis com o “tempo da História” do que a temporalidade dos físicos ou dos filósofos. Assim, por exemplo, o conceito de tempo, na Economia, dependente do suposto de um “equilíbrio” estático ou dinâmico, é, com freqüência, um artifício teórico, um tempo que vai de T 1 (momento caracterizado por um estado estacionário teoricamente postulado) a T 2 (outro momento caracterizado por outro estado estacionário teoricamente postulado), e não o tempo datável e concreto dos historiadores. Da mesma forma, Pierre Vilar mostrou que a História e a Geografia Humana manifestam atitudes diferentes a respeito da cronologia. 6 E a “Antropologia Estrutural”, além de contrapor-se à História através de oposições como sincronia/diacronia, estrutura/acontecimento etc., tentou nada menos do que atacar – levianamente, como o demonstrou V. Magalhães Godinho – a cronologia histórica, vista como um “código” (ou uma série de códigos), utilizado de maneira fraudulenta pelos historiadores... 7 Parece, então, que uma das diferenças entre os historiadores e os demais cientistas – os das ciências naturais mas também os das outras ciências sociais – estriba em certa visão da temporalidade. O fato de os historiadores se distinguirem dos outros pesquisadores por uma maneira diferente de encarar o tempo não implica, porém, uma homogeneidade absoluta das suas concepções acerca da ATENÇÃO: somente para uso didático. Não pode ser reproduzido

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Os historiadores e o tempo

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O texto seguinte foi retirado de CARDOSO, Ciro Flamarion. Ensaios racionalistas: filosofia, ciências naturais e história. Rio de Janeiro: Campus, 1988. p. 25-40.

O TEMPO DAS CIÊNCIAS NATURAIS E O TEMPO DA HISTÓRIA

1. Os historiadores e o tempo

“Ciência dos homens no tempo”: eis a definição da História dada por Marc Bloch, que acrescentou ser o tempo da história “o próprio plasma em que banham os fenômenos, e como que o lugar da sua inteligibilidade”.1 Pareceria, pois, que a categoria tempo reveste-se de importância primordial para os historiadores. Isto é verdade, mas, curiosamente, não tem levado a discussões freqüentes de tipo teórico ou metodológico entre historiadores sobre tal categoria. Quando os manuais de metodologia abordam esta temática, é muitas vezes para menção, somente, do “tempo cultural”, isto é, de como as diferentes épocas e sociedades que o historiador estuda conceberam o tempo. E não para tratar de algo muito mais importante metodologicamente: como lidar com a categoria ou parâmetro temporal nas pesquisas históricas.2 O desleixo é grave, pois pode-se constatar que as múltiplas possibilidades a respeito têm sido insuficientemente exploradas; ou seja, que a maioria dos historiadores utiliza, ao trabalhar, poucas das variadas dimensões temporais disponíveis e pertinentes para a pesquisa em História.3 Voltaremos depois a este aspecto da questão.

Outrossim, quando aceitam discutir o problema do tempo explicitamente, os historiadores costumam precisar de saída que o “tempo da História” não é o da Física, e sim um tempo “social”, “cultural” ou “subjetivo”. Já Marc Bloch opunha o tempo de certas ciências, que “não é mais do que uma medida”, ao da História, “realidade concreta e viva volvida à irreversibilidade do seu impulso”.4 Mais recentemente, Sergio Bagú afirmava:

“Compreendamos bem que o nosso tempo é o dos seres humanos organizados em sociedades. Não o dos físicos nem o dos filósofos, embora suspeitemos possíveis nexos. (...) () tempo é a permanência da realidade social. E a história como processo criador do humano.”5

É muito duvidoso, porém, que as concepções temporais das outras ciências sociais sejam mais compatíveis com o “tempo da História” do que a temporalidade dos físicos ou dos filósofos. Assim, por exemplo, o conceito de tempo, na Economia, dependente do suposto de um “equilíbrio” estático ou dinâmico, é, com freqüência, um artifício teórico, um tempo que vai de T1 (momento caracterizado por um estado estacionário teoricamente postulado) a T2 (outro momento caracterizado por outro estado estacionário teoricamente postulado), e não o tempo datável e concreto dos historiadores. Da mesma forma, Pierre Vilar mostrou que a História e a Geografia Humana manifestam atitudes diferentes a respeito da cronologia.6 E a “Antropologia Estrutural”, além de contrapor-se à História através de oposições como sincronia/diacronia, estrutura/acontecimento etc., tentou nada menos do que atacar – levianamente, como o demonstrou V. Magalhães Godinho – a cronologia histórica, vista como um “código” (ou uma série de códigos), utilizado de maneira fraudulenta pelos historiadores...7

Parece, então, que uma das diferenças entre os historiadores e os demais cientistas – os das ciências naturais mas também os das outras ciências sociais – estriba em certa visão da temporalidade.

O fato de os historiadores se distinguirem dos outros pesquisadores por uma maneira diferente de encarar o tempo não implica, porém, uma homogeneidade absoluta das suas concepções acerca da

ATENÇÃO: somente para uso didático. Não pode ser reproduzido

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2 temporalidade por mais que todos lhe concedam grande importância e partilhem pontos comuns. Em certos textos de Fernand Braudel, por exemplo, o tempo aparece como algo externo que se impõe aos homens:8

“Para o historiador. tudo começa. tudo acaba, pelo tempo, um tempo matemático e demiurgo, do qual seria fácil sorrir, tempo como que exterior aos homens. que os impele, constrange, apodera-se de seus tempos particulares de cores diversas: o tempo imperioso do mundo.”

Esta é uma posição freqüente entre historiadores: o decurso do tempo seria capaz de explicar, por si mesmo, a história. Mas, como esclarece Vilar, “falar do 'tempo criador'... nada significa”. E acrescenta:9

“Acontece, efetivamente, que a História conjuntural, por um modo de expor, um comentário apressado. uma divulgação escolar, pareça fazer da história um produto do tempo (o que nada quer di2er) e não do tempo (ou seja, da sua distribuição não-homogênea, da sua diferenciação) um produto da história (ou seja. do jogo movediço das relações sociais no seio das estruturas).”

Um filósofo chegou mesmo a afirmar que, longe de refletir uma realidade concreta e exterior, como acreditam os historiadores, a temporalidade dos textos históricos seria na maioria dos casos apenas uma representação discursiva, um “efeito do discurso”, sendo pois ilusório O”realismo do tempo”que professam os profissionais da História.10

2. O tempo dos físicos e dos filósofos

Sendo o objetivo central deste capítulo mostrar a relevância, para muitos dos aspectos relativos ao conceito de tempo que interessam aos historiadores, do exame do mesmo conceito no âmbito de ciências como a Física, convém desviar momentaneamente o meu texto para paragens aparentemente muito distantes do horizonte habitual dos estudiosos de História.

A concepção de Newton acerca de um tempo “absoluto” que existe em si e por si mesmo como duração pura, independentemente dos objetos materiais e dos acontecimentos – isto é, a concepção do tempo como uma espécie de substância –, marcou a ciência e os debates filosóficos durante mais de dois séculos. As posições dominantes entre os historiadores até meados do século XX – positivismo e idealismo historicista –, no que se refere ao tempo, estavam determinadas pelos debates entre as idéias newtonianas a respeito e a crítica (idealista subjetiva) de Kant. No começo do século XX, a teoria da relatividade mudou radicalmente os dados da questão, demonstrando ser absurdo o tempo absoluto, o “tempo-essência”. Ao afiançar-se no mundo científico, a relatividade e a teoria quântica provocaram um reordenamento das posições. A concepção determinista vulgar ou mecanicista tornou-se insustentável; e o idealismo assumiu formas novas, como por exemplo a variante operacionalista do neopositivismo, com sua opinião pragmática ou convencional sobre o tempo e o espaço, já que a idéia kantiana que via tais categorias como formas apriorísticas da percepção sensorial se tornou muito difici1de defender diante do novo estado de coisas vigente nas ciências naturais. As opiniões dos historiadores sobre a temporalidade sofreram forçosamente – com atraso considerável, é verdade – o impacto de mudanças tão profundas do quadro científico e filosófico, mesmo se eles não costumam refletir a respeito de maneira sistemática.

Segundo o que acabamos de ver, convém distinguir duas fases na abordagem das noções científicas e filosóficas modernas sobre o tempo. A primeira – dominada pelas concepções de Newton – se estende de fins do século XVII até o final do século XIX. A segunda, ligada à mecânica quântica e à relatividade, abarca o nosso próprio século. As últimas-décadas do século passado podem ser consideradas uma fase de transição, pelo acúmulo de dúvidas e dificuldades em relação ao sistema newtoniano do mundo.

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Segundo Isaac Newton, o tempo seria uma substância especial imutável, autodeterminada, ontologicamente independente da matéria, de estrutura uniforme em todo o universo, caracterizada por ser duração pura. Acontecimentos separados no espaço até mesmo por enormes distâncias poderiam ser absolutamente simultâneos, e as forças agiriam à distância de maneira instantânea. Por outro lado, a mecânica newtoniana admitia tanto o movimento absoluto no espaço quanto o repouso absoluto. Vê-se que a concepção de Newton acerca do tempo continha um aspecto materialista – a admissão de sua existência objetiva – e ao mesmo tempo era metafísica .na sua afirmação da possibilidade da existência do tempo independentemente de qualquer conteúdo material.

As discussões entre cientistas e filósofos a respeito do tempo foram muito numerosas entre fins do século XVII e o século passado. Devido ao predomínio indiscutível da mecânica newtoniana na Física e na Cosmologia, as idéias de Newton eram sempre o ponto de referência: as diversas teorias se apoiavam nelas ou, pelo contrário, partiam de sua crítica no todo ou em parte. Aqui nos interessa em particular examinar os pontos de vista de Emmanuel Kant (1724-1804), de Henri Bergson (1859-1941)e do marxismo.

Na visão kantiana – que iria influenciar profundamente a corrente historicista através dos neokantianos do século XIX, apesar da crítica radical de Mach –, o tempo e o espaço se definem como formas apriorísticas da percepção sensorial. Como tais, são absolutos e eternos (razão pela qual, posteriormente, os neokantianos foram adversários irredutíveis – e derrotados – da teoria da relatividade). Não existiria, porém, o “tempo das coisas em si”, já que a noção de tempo só teria sentido na esfera das determinações ou relações inerentes à forma de contemplação, à natureza subjetiva da alma humana, manifestando-se na esfera dos fenômenos (ou seja, daquilo que é objeto dos sentidos humanos), das representações sensoriais, como elementos apriorísticos (e inatos) do sistema cognoscitivo. Nas idéias de Kant existe uma crítica à noção de Newton, mostrando ser absurdo afirmar a existência do tempo e do espaço como essências autodeterminadas; mas também uma crítica à objetividade dessas categorias que descamba para a metafísica. Igualmente metafísica é a visão de tais categorias como formas de percepção existentes com anterioridade a – e independentemente de qualquer conteúdo. Kant teve méritos inegáveis no seu tratamento da noção de tempo: a afirmação do valor filosófico universal da categoria e o fato de apontar a ligação entre o tempo e a causalidade estão entre eles.

Nos últimos anos do século XIX, Bergson, filósofo irracionalista francês, se opôs frontalmente à concepção científica de tempo; vigente na época, acusando-a de ser uma falsificação, uma “espacialização”– isto é, a camuflagem do espaço como tempo. A sua idéia era que o tempo real tem como essência a pura duração, decorrente da continuidade da vida interior do indivíduo. Nada podemos afirmar sobre a “duração” do mundo exterior, na falta de pontos de referência: a duração é subjetiva, imanente à consciência. Bergson estabeleceu, portanto, uma espécie de ponte entre Kant e Newton. Quanto à sua forma de relacionar o tempo com a natureza viva e não com a matéria inerte, foi um resultado da influência de uma teoria biológica pseudocientífica conhecida como vitalismo. As

concepções bergsonianas tiveram grande influência sobre a Filosofia idealista da História e, mais modernamente, também influíram sobre as idéias de certos historiadores.11

Também no século passado se expôs a concepção marxista do tempo e do espaço, que os considera como tendo existência objetiva, não como substâncias ou essências independentes, mas sim como formas de existência da matéria em movimento. A existência do tempo se vincularia à transição do ser ao não-ser e vice-versa, ao aparecimento do que é qualitativamente novo, ao surgimento, desaparecimento e transformação das coisas e estados. O curso do tempo– nos seus aspectos de duração e de sucessão estaria ligado, portanto, à eterna cadeia dos atos de porvir que exprimem as mudanças sucessivas dos acontecimentos quanto à sua existência, ao futuro como processo de nascimento e

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4 desaparecimento.12 A idéia central da concepção marxista a respeito – a dependência do espaço e do tempo em relação à matéria em movimento – receberia pouco depois confirmação científica na teoria da relatividade (quando esta é interpretada do ponto de vista materialista, já que existem também reconstituições filosóficas idealistas do significado dessa teoria).

As concepções científicas sofreram violenta transformação que, preparada desde a segunda metade dó século passado, se consumou nas primeiras décadas do século xx. O próprio Newton estava já consciente das dificuldades' inerentes à noção de uma ação instantânea, a distância, da força da gravidade. Conforme transcorriam os anos, a ciência foi acumulando paradoxos e problemas sem solução, que quase sempre se preferiam ignorar, posto que não se vislumbrava uma alternativa viável ao sistema newtoniano – tão enraizado na consciência ocidental que até hoje encontramos os seus princípios apresentados sem retificação em certos manuais, como se Einstein não houvesse existido... Os fatores principais da mudança de direção nas idéias científicas foram a teoria da relatividade (exposta por Einstein entre 1905 e 1916), o surgimento da mecânica quântica (1900) e, em geral, o enorme progresso no conhecimento da estrutura do átomo (principalmente a partir de 1911-1913).

A teoria da relatividade de Albert Einstein (1879-1955) foi ao mesmo tempo uma novidade genial e uma síntese necessária das descobertas e hipóteses de diversos cientistas (J. C. Maxwell, H. Hertz, H. Lorentz, M. PIanck, E. Mach etc.). Seu autor a expôs em duas etapas: a relatividade restrita aos sistemas em movimento uniforme uns em relação aos outros (1905) e a relatividade generalizada aos corpos em movimento não uniforme, ou seja, submetidos a acelerações (1912-1915; exposição em 1916).

O primeiro passo consistiu no estabelecimento da inexistência de um tempo e espaço absolutos, isto é, que pudessem ser objeto de medidas absolutas. A noção do contínuo espaço-temporal passou a permitir a percepção do universo real segundo um modelo com quatro dimensões: mas a dimensão do tempo não intervém nas equações da mesma maneira que as três dimensões do espaço (já que um objeto pode mover-se no tempo em um sentido apenas). A relatividade generalizada constitui uma teoria da gravitação vista como uma propriedade geométrica do espaço-tempo, que se deforma, ou se “curva”, na vizinhança de massas consideráveis. O tempo transcorre mais lentamente perto de um objeto de grande massa, e se dilata nas velocidades que se aproximam à da luz. O próprio Einstein definiu a teoria da relatividade como estando “intimamente ligada à teoria do espaço e do tempo”.13

Para o nosso tema, o interesse principal da relatividade consiste na refutação definitiva da noção metafísica de um tempo absoluto, independente das coisas e dos processos. As suas propriedades não são as mesmas em qualquer lugar, invariáveis, autodeterminadas; variam na dependência dos objetos materiais (matéria/energia), suas relações, seus movimentos. A curvatura do espaço-tempo, por exemplo; está condicionada pela distribuição das grandes massas de matéria no universo. Cada sistema físico de cômputo tem o seu próprio sistema de coordenadas espaço-temporais (segundo leis semelhantes, comandadas pelo princípio das transformações de Lorentz). Na teoria da relatividade, as idéias sobre o espaço e o tempo – em ligação indissolúvel entre si pela primeira vez na história do pensamento científico – estão vinculadas a idéias sobre o campo, a substância, o movimento, a interconexão massa-energia etc.

Como a Física de Newton, a relatividade provocou diversas reações filosóficas. Falaremos de algumas delas adiante.

Terminando este tópico, lembremos que a teoria da relatividade .tem sido confirmada por muitos descobrimentos e observações. A sua limitação principal consiste em que, ao privilegiar o campo gravitatório, isola-o das outras forças naturais. As tentativas de Einstein no sentido de unificar a gravitação e o eletromagnetismo não deram resultados decisivos. A síntese das duas grandes teorias que transformaram em profundidade a Física – a relatividade e a teoria dos quanta – se fez com o

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5 aparecimento da mecânica ondulatória relativista, cuja possibilidade se deveu em grande parte ao físico inglês Paul Dirac (1929). A relatividade especial é hoje parte integrante da Física e da Engenharia, enquanto a relatividade generalizada – muito mais difícil de desenvolver matematicamente e de comprovar em detalhe – ainda está fora da corrente principal da Física, embora seja importante para a Astrofísica e a Cosmologia.14

3. Os problemas específicos da organização da temporalidade em História: haverá alguma relação com o que ocorre nas ciências naturais?

3.1 O tempo no trabalho dos historiadores – Sergio Bagú distingue três dimensões da temporalidade, pertinentes para o estudo dos “seres humanos organizados em sociedade”:15 1) o tempo organizado como seqüência, ou transcurso 2) o tempo organizado com o raio de operações, ou espaço;

3) o tempo organizado como rapidez das transformações e riqueza das combinações, ou intensidade.

Explica que a existência social se dá simultaneamente nestas três dimensões do tempo: há processos sociais muito recentes, outros iniciados há muitos decênios ou mesmo séculos; alguns ocorrem, em sua totalidade, numa superfície reduzida, outros em lugares muito distantes entre si (o que implica temporalidades diferenciais no espaço); alguns têm ritmo lento de desenvolvimento, enquanto outros o têm vertiginoso.16

Robert Berkhofer Jr. considera que o uso da temporalidade pelos historiadores implica “duas dimensões básicas do tempo”: a dimensão externa do tempo físico passível de medida; e a interna, do tempo subjetivo. O tempo físico seria utilizado para a datação, partindo da hipótese de um tempo absoluto, universal, homogêneo e autodeterminado à maneira de Newton – um tempo linear e irreversível, matemático, externo ao que acontece no seu interior. Quanto ao tempo visto subjetivamente, seria pelo contrário heterogêneo e descontínuo. Aqui apareceria o problema do “tempo cultural” – as diversas formas em que distintas épocas e sociedades conceberam e concebem o tempo-, e a variedade de ritmos da vida social, todos de interesse para o historiador: o ciclo diário de atividades numa unidade de produção, o ciclo das estações refletido, na vida agrícola e nos costumes, o ciclo cerimonial das religiões e da vida cívica, os acontecimentos descontínuos que marcaram uma sociedade ou uma nacionalidade, as visões milenaristas e apocalípticas (“fim dos tempos”) etc. Outrossim, o próprio historiador participa das concepções culturais sobre a temporalidade vigentes em sua própria sociedade, o que não deixa de influir na sua maneira de lidar com a categoria tempo ao escrever História. Berkhofer acha que o grande “pecado” dos historiadores é o de omissão: usam, ao trabalhar, poucas das variedades analíticas possíveis do tempo físico ou mensurável. Este pode ser visto como sucessão e como duração; a escala temporal implica sempre algum modelo explicativo (causalidade; reunião de acontecimentos e processos num “contexto” de conjunto com finalidade explicativa, por exemplo ao falar de “Reforma protestante” ou de “Revolução industrial”); e tanto a análise sincrônica quanto a diacrônica são necessárias. As questões básicas para o historiador seriam: 1) a delimitação da seqüência estudada; 2) a ordem da seqüência em relação ao tempo; 3) a razão da ordem de ocorrência; 4) a localização da seqüência no tempo (por que ocorreu naquela época e não em outra? por que não ocorreu então outra coisa?); 5) o ritmo de transformação, sua homogeneidade ou heterogeneidade durante a seqüência examinada.17

Um aspecto da temporalidade que interessa de perto aos historiadores é a relação passado-presente. A nova maneira de ver a História de Marc Bloch e Lucien Febvre significou uma ruptura com as concepções anteriores a esse respeito. Mais recentemente, Jean Chesneaux chegou mesmo a postular uma inversão radical da relação passado-presente, no sentido de uma relação explícita (e politizada) presente-passado na elaboração das análises históricas.18

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Estes exemplos mostram que pelo menos alguns historiadores profissionais refletem com algum vagar sobre a noção de tempo e as melhores maneiras de usar o tempo como parâmetro em História. Interessa-nos, porém, saber se tais reflexões metodológicas têm algo a ver com as concepções da Física, por exemplo, sobre o tempo. Exploraremos tal temática de três ângulos distintos.

3.2 Periodização – A disputa entre historiadores acerca da periodização é já antiga. Nela se enfrentam duas posições básicas, a dos “realistas” e a dos “convencionalistas”. A primeira afirma que a periodização provém necessariamente da própria natureza do objeto de pesquisa: os períodos,quando estabelecidos de maneira adequada, seriam, portanto, um reflexo fiel da realidade história. A segunda acredita, pelo contrário, que a história é um devir ou movimento constante, ininterrupto, e que qualquer periodização é arbitrária – podendo justificar-se Unicamente por razões didáticas ou pragmáticas. Na forma de ver dos realistas, em cada caso – e em cada corte do objeto – haverá somente uma periodização correta. Estou simplificando, naturalmente: como a sociedade é uma “estrutura de estruturas”, será necessário, por mais que se estabeleça uma periodização geral da totalidade, que também existam diversas periodizações parciais segundo os níveis considerados, hierarquizadas – ou unicamente justapostas – de acordo com a teoria do social que servir de ponto de partida. Os convencionalistas acharão que todas as formas de periodizar são imperfeitas e de pouca base científica.19

Como é fácil perceber, a concepção newtoniana do tempo favorece a posição convencionalista. A periodização só pode violentar o tempo quando este é considerado como independente do seu conteúdo (acontecimentos, processos), autodeterminado, homogêneo. A adoção de uma posição kantiana levará a resultados análogos. Pelo contrário, a teoria da relatividade dá argumentos de peso à posição realista, destruindo omito do “tempo-essência”autônomo e mostrando a dependência da categoria temporal em relação às coisas e aos processos. Se o tempo é apenas uma forma de existência das coisas e não uma coisa em si, é lógico que seja ordenado segundo os conteúdos e que, assim, possa ser concebido como algo heterogêneo tanto quanto homogêneo, descontínuo tanto quanto contínuo etc. As diversas periodizações possíveis não se equivalem: deverão ser julgadas segundo a sua pertinência em relação aos conteúdos concretos, que se trata de periodizar com apoio em algum quadro teórico.20

É verdade que existe igualmente uma interpretação idealista da temporalidade, derivada da teoria da relatividade. O próprio Einstein, em certas declarações, incorreu em posições epistemológicas idealistas, o que pode ter facilitado a emergência e a difusão de uma interpretação peculiar da relatividade que encontramos na variante operacionalista ou convencionalista do neopositivismo. Tal interpretação afirma que a teoria da relatividade nega a realidade objetiva do tempo e do espaço, cujas leis e propriedades seriam simples acordos ou convenções, não existindo, portanto, independentemente do sujeito cognoscente. Um representante desta posição é C. W. Bridgman, segundo o qual, quando enunciamos um conceito qualquer, estamo-nos referindo somente a um conjunto de operações que o definem. Assim, o conceito de tempo estaria determinado pelas operações através das quais ele é medido. Isto reduziria a relatividade restrita ou especial a um simples método operacional, como se a relatividade das características espaço-temporais não tivesse um caráter ontológico. O caminho pelo qual se chega à posição operacionalista passa pela noção de “observador”, usada por Einstein como personificação de um dado sistema de cômputo, de um sistema material onde se dá o movimento examinado. E evidente, porém, que o efeito relativista do tempo ocorrerá tanto na presença como na ausência de um observador.21 Seja como for, a variante convencionalista do neopositivismo, ou melhor, a sua opinião sobre o tempo, pode servir de base epistemológica para a defesa de uma posição convencional acerca da periodização; os argumentos serão, porém, bastante diferentes dos que resultariam de um ponto de partida newtoniano ou kantiano.

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3.3 Causalidade e determinação: a irreversibilidade do tempo – A concepção do determinismo mecanicista, dominante na “ ciência até fins do século passado, resultava numa visão do mundo estritamente causal e determinista, tanto do ponto de vista ontológico quanto “ epistemológico. Esta posição foi resumida por A. Laplace. 22

“Devemos considerar o estado presente do universo como o efeito de seu estado antecedente e como causa do estado que virá depois. Se existisse uma inteligência que conhecesse tanto as forças que agem na natureza quanto a posição ocupada por todas as coisas do universo num dado instante; se esse mesmo intelecto fosse suficientemente capaz para poder entender numa fórmula única tanto os movimentos dos maiores corpos quanto os dos átomos mais leves e para analisar todos os dados, saberia tudo; o futuro e o passado estariam diante dos seus olhos.”

Na concepção positivista do ofício de historiador, a posição mecanicista se exprimia na causalidade linear própria da visão événementielle da História. Hoje, pelo contrário, se tende a uma maneira bem mais complexa de encarar as determinações, sintetizada às vezes na expressão “causalidade estrutural”, que implica não apenas uma correlação entre “fatos históricos”, à maneira do positivismo, e sim partir da totalidade do social, ou seja, da sociedade como um todo estruturado. Esta mudança afetou profundamente a visão da temporalidade:23

“...o que distingue a História estrutural da História événementielle positiva é, quanto à questão do tempo, a derrubada do sentido do tempo linear como o entendiam os historiadores. (...) Há três representações do tempo da História que encontramos no discurso histórico. Em primeiro lugar, a representação linear empírica imediata da História-crônica, que é o tempo contínuo da causação do efeito: a História-gênese. Em seguida, a representação mediata na qual... a descontinuidade discursiva... expõe de fato a continuidade real. Enfim, a representação ainda mediata, mas que desta vez expõe os períodos conjunturais sucessivos como dependentes de uma estrutura que os caracteriza. Trata-se da descontinuidade do histórico. No último caso, a exposição de História pode perfeitamente reproduzir “no seu movimento discursivo o movimento real do histórico: já não se trata de cronologia linear, mas de periodização.”

Em qualquer caso, não se abandona na nova situação o sentido do tempo e da determinação. Mas este sentido vê-se hoje ameaçado por uma tendência radicalmente antideterminista, cuja visão do mundo é a de um universo contingente. Através do neopositivismo e de algumas das correntes estruturalistas, esta tendência já lançou mais de lima vez a confusão entre os historiadores, sem abalar porém a sua posição dominante em relação à determinação e ao tempo, na qual a explicação causal não esgota já o campo da explicação histórica.24

No século passado, o determinismo mecanicista foi atacado por Engels nas suas famosas considerações sobre a dialética da necessidade e da casualidade.25 Paralelamente, no entanto, se desenvolvia a “Física fenomenológica” de Ernst Mach, com o abandono do materialismo em favor de uma concepção fenomênica da realidade, vinculando-se à tradição empirista. Esta tendência, continuada e modificada pela Física chamada “energética” (Wilhehn Ostwald), culminou com o neopositivismo, que interpreta a Física quântica no sentido de basear uma posição radicalmente antideterminista, e pretende identificar-se com a moderna metodologia científica, quando constitui tão-somente uma das interpretações divergentes a respeito no campo da Filosofia da ciência.26

É evidente que o antideterminismo radical leva a uma reviravolta na maneira de considerar o tempo – noção ligada necessariamente à de causalidade e determinação – e atribuir-lhe importância: 27

“O tempo acha-se organicamente ligado à causalidade. Precisamente a causalidade, como relação genética que se realiza no processo no qual um fenômeno atua sobre outro – processo que ocupa determinado intervalo de tempo –, é que inclui em si, de maneira necessária, o caráter de orientação temporal num sentido, da causa ao efeito, do que antecede ao que se segue. (..,) O fato de existir uma interação entre a causa e o efeito não invalida a unilateralidade de sua orientação no tempo no próprio ato de ação causal, dado que, no caso do influxo inverso do efeito sobre o que o engendrou, o primeiro se converte em causa, e o segundo, em efeito”.

Em contraste com esta passagem, veja-se por exemplo a seguinte, de Norbert Wiener:28

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“A Física newtoniana, que dominara de fins do século XVII até fins do . século XIX, com raríssimas vozes discrepantes descrevia um universo em que tudo acontecia precisamente de acordo com a lei; um universo compacto, . cerradamente organizado, no qual todo futuro depende estritamente de todo o passado. (...) A introdução das probabilidades em Física... teve como efeito fazer com que a Física, hoje, não sustente cuidar daquilo que irá sempre acontecer, mas, antes, do que irá acontecer com esmagadora probabilidade. (...) O que aconteceu à Física desde então foi que se abandonou ou modificou a rígida base newtoniana, e a contingência... agora se ergue, desnudamente, como alicerce integral da Física. E bem verdade que o balanço ainda não está definitivamente encerrado, no concernente a esta questão, e que Einstein e, em algumas de suas fases, De Broglie, ainda sustentam que um mundo rigidamente determinista é mais aceitável que um mundo contingente; estes grandes cientistas, porém, estão travando um combate de retaguarda contra a força esmagadora de uma geração mais jovem.”

O final desta passagem mostra que o “mundo contingente” não é a única alternativa que se pode deduzir da nova Física. O debate a respeito caracteriza-se às vezes, aliás, por uma grande confusão entre afirmações gnoseológicas (ou epistemológicas) e afirmações ontológicas, projetando-se as primeiras sobre as segundas de maneira inaceitável. Karl Popper, que considera qualquer afirmação sobre as coisas em si como “metafísica”, ontologicamente classificará como metafísicos tanto o determinismo quanto o indeterminismo; epistemologicamente, porém, defende a busca da causalidade legal.29 O determinismo ontológico mecanicista, vulgar, estrito – como o vimos em Laplace –, é já insustentável, principalmente como efeito da mecânica quântica, que estabeleceu a objetividade do caso. O determinismo ontológico no sentido amplo, porém, reconhece a objetividade do acaso e admite a existência de leis estocásticas, negando somente a existência de acontecimentos que careçam de lei e que não sejam produzidos por acontecimentos anteriores: este determinismo não-mecanicista é uma corrente perfeitamente vigente na teoria das ciências hoje em dia. O mesmo quanto ao determinismo epistemológico, inaceitável na sua versão estrita, mas vigente como teoria da “cognoscibilidade limitada”.30

Toda esta discussão é altamente pertinente para as ciências sociais em geral e para a História em particular: trata-se nada menos do que “de saber se – e em que medida– o conhecimento histórico ou sociológico é compatível com (ou é esgotado por) uma conceitualização matemática de tipo probabilístico”.31 E também se trata da questão – essencial para o historiador – da vinculação entre a causalidade ou determinação e o tempo. As implicações dos debates sobre a reversibilidade (inversão) ou a “casualidade” do tempo, mesmo se em parte se desenvolvem acerca da Física intra-atômica, não devem, portanto, deixá-lo indiferente.32

3.4 A multiplicidade do tempo histórico – Como vimos através de exemplos – os de Sergio Bagú e Robert Berkhofer Jr. –, o tempo da história é hoje concebido pelos historiadores como múltiplo: diversas dimensões temporais podem e devem ser levadas em conta na pesquisa. O texto clássico a respeito é, naturalmente, o de Fernand Braudel sobre os três níveis temporais – a curta duração dos acontecimentos, a média duração da conjuntura (com múltiplos ritmos por sua vez) e a longa duração das estruturas, para não mencionar a longuíssima duração da Geoistória.33 Outrossim, sabemos. que o próprio tempo estrutural,. a “longa duração” de Braudel, é também múltiplo: as estruturas econômicas, as sociais e as mentais são sucessivamente mais lentas na sua evolução.34 Os estudos de História regional seriada conduziram, por sua vez, a uma cronologia espacialmente diferencial:35

“A História econômica seriada desemboca, assim, na análise de conjunturas diferenciais ou simplesmente defasadas no espaço; poder-se-ia dizer: numa Geografia da sua cronologia, e no exame das diferenças estruturais que podem assinalar contradições cronológicas. Com efeito, ciclos defasados no tempo, de uma região ou país a outro, mas fundamentalmente comparáveis nas suas articulações internas, traduzem somente as variantes geográficas de uma mesma história; enquanto evoluções contraditórias, no interior duma mesma zona geográfica, podem pôr o historiador diante de estruturas econômicas diferentes.

Outro aspecto da multiplicidade da dimensão temporal é a desigualdade dos ritmos de desenvolvimento dos processos históricos. Uma de suas manifestações, como mostra Berkhofer Jr., é a

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9 própria densidade de eventos datados considerados de interesse para o historiador. Na História dos Estados Unidos, por exemplo, a passagem do tempo poderia ser representada por uma linha como esta:

1607 1763 1776 1800

A historiografia norte-americana, no entanto, sugeriria mais exatamente a linha seguinte:36

1607 1763 1776 1800

O que significa que o período colonial é considerado menos rico em conteúdo digno de análise detalhada do que a fase da independência ou posterior a esta”sem que se leve em conta o número de anos transcorridos em cada caso; ou melhor, sem fazer de tal número o fator central. Exemplos semelhantes poderiam ser encontrados em trabalhos de História Natural. Assim, estudando os ritmos da evolução biológica, George G. Simpson elabora gráficos sobre o surgimento de novas espécies animais, cuja escala temporal não é proporcional aos anos, e sim dá igual espaço a cada período geológico. Isto significa partir da hipótese de que a divisão em períodos tem base na realidade, não é apenas convencional; e acreditar que a proporção de eventos de evolução nos diversos períodos não depende, centralmente, da extensão em anos de cada um deles.37

Por que se passou, em História, da concepção de um tempo linear e homogêneo à da multiplicidade de níveis e ritmos da temporalidade? Em parte por características intrínsecas da própria evolução da disciplina em nosso século (associação da análise seriada à regional, sucesso crescente da noção de uma estrutura social global contendo estruturas menores que apresentam defasagens temporais nas suas transformações etc.). Mas também como um efeito – produzido com considerável atraso – da penetração na consciência coletiva do fato de que o “tempo-essência” newtoniano havia sido destruído inapelavelmente pela relatividade. Se o tempo é concebido como externo às coisas e processos, como pura duração etc., ou ainda como forma inata de percepção sensorial, evidentemente só pode ser visto como sendo único e homogêneo. Uma vez derrubada esta barreira, estava aberto o caminho para a percepção da multiplicidade do tempo nas suas diversas acepções. Marc Bloch,em 1941, ainda pertence, neste particular, à noção antiga de temporalidade; Fernand Braudel, em 1958, marca a tomada de consciência de nova maneira de ver a questão.

4. Conclusão

Nossa pergunta central, neste capítulo, referia-se a averiguar se a maneira de conceber o tempo em História tem algo a ver com as concepções das ciências naturais a respeito, e com as teorias filosóficas que tratam de refleti-Ias ou de opor-se a elas, conforme os casos.

A nossa opinião a respeito é de que tem muito a ver, mas de maneira indireta. E evidente que as correções que a relatividade impôs às medidas temporais, ao estarem ligadas às grandes velocidades e acelerações e às grandes massas, não são pertinentes para os problemas comuns do transcurso do tempo na superfície de nosso planeta: para todos os efeitos, o tempo físico dos historiadores pode seguir, sem inconvenientes, em matéria de datação, o padrão newtoniano. A revolução trazida ao pensamento científico por teorias como a relatividade e a mecânica quântica não se limita, entretanto, a aspectos tão específicos. Modifica toda a visão do mundo e, por conseguinte, provoca também transformações radicais nas tendências da Filosofia das ciências, fortalecendo ou, pelo contrário, enfraquecendo ou destruindo escolas de pensamento anteriormente existentes, provocando o aparecimento de correntes novas (como, por exemplo, o neopositivismo). Tudo isto cria um ambiente geral de pensamento – em

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10 termos globais e também quanto a problemas específicos, como o do tempo que nos ocupa agora – que não pode deixar de influir sobre os historiadores, os quais forçosamente participam da visão do mundo de sua sociedade e de sua época, nas suas múltiplas variantes.

Em suma, o historiador é, talvez, indiferente ao efeito da dilatação do tempo nas altas velocidades; mas sua posição diante do tempo poderá refletir de alguma maneira o fato mais geral de que a relatividade demonstrou a inexistência do tempo autodeterminado e externo às coisas e processos. Isto, mesmo que nunca tenha lido um livro de Física ou de Filosofia das ciências. Da mesma forma, ele talvez não tome conhecimento do princípio de incerteza de Heisenberg; mas é possível que suas opiniões se vejam afetadas pela corrente antideterminista (ontológica ou epistemológica) que se apóia sobretudo, filosoficamente, em certa interpretação da teoria quântica.

NOTAS

1. Bloch, Marc - Introdução à História. Trad. de Maria Manuel Miguel e Rui Grácio. Lisboa, Publicações Europa-América, 1965, pp. 29-30. Cita-se com freqüência, também, a expressão de Fernand Braudel: “O historiador não sai jamais do tempo da história: esse tempo agarra-se ao seu pensamento, como a terra à enxada” (Braudel, Fernand - “História e Sociologia”, in Boletim de História. Rio de Janeiro, n. 6, 1961, p. 75 (a tradução do artigo é de José A. Castilhos de Moraes e Reynaldo A. Avila).

2 Por exemplo: Glénisson, Jean. Iniciação aos estudos históricos. Rio de Janeiro/São Paulo, DIFEL, 1977 (2ª ed.), pp.28-41, texto no qual só generalidades vagas se referem à maneira como o historiador trata a questão do tempo.

3 Cf. Berkhofer Jr., Robert F. - A behavioral approach to historical analysis. Nova Iorque, The Free Press, 1971, pp. 221-242.

4 Bloch, op. cit., pp-29-30.

5 Bagú, Sergio - Tiempo, realidad social y conocimiento. México, Siglo XXI, 1970, p. 104.

6 Vilar, Pierre- Crecimiento y desarrolo. Barcelona, Ariel, 1976 (3ª ed.), pp. 234-235; também: Blanc, André – “Histoire sociale et géographie humaine”, in Labrousse, E. et alii - L'histoire sociale. Sources et méthodes. Paris, Presses Universitaires de France, 1967, pp. 207-222.

7 Lévi-Strauss, Claude - EI pensamiento salvaje. Trad. de Francisco González A. México, Fondo de Cultura Económica, 1975 (3ª reimpressão), pp. 374-380; cf. contra Godinho, Vitorino Magalhães – Ensaios, III. Sobre teoria da História e historiografia. Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1971, pp. 203-204. Sobre a oposição entre tempo da História e tempo da Sociologia, ver Braudel, op. cit , pp. 75-76.

8 Braudel, Idem, p. 75.

9. Vilar, Pierre - “Histoire marxiste, histoire en construction. Essai de dialogue avec Althusser”. Annales. Economies, Sociétés, Civilisations. Paris, XXVIII, 1, 1973, pp. 181, 183.

10. Mairet, Gérard - Le discours et l'historique. Essai sur Ia représentation historienne du temps.Paris, Repères Mame, 1974, pp. 170-189.

11 Até aqui, nossa exposição se baseia principalmente em Askin, I. F. – O problema do tempo. Trad. de Joel Silveira. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969, capítulos I e II.

12 Idem; ver Engels, Friedrich - A dialética da natureza. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979 (3ª ed.); Meliujin, S. et alii - Problemas filosóficos de la física contemporánea. Trad. de Lydia K. de Velasco. México, Grijalbo, 1969; Havemann, Robert - Dialéctica sin dogma. Trad. de Manuel Sacristán. Barcelona, Ariel, 1971.

13 Einstein, Albert - Quatre conférences sur la théorie de la relativité. Trad. de M. Solovine. Paris, Gauthier-Villars, 1955, p. 1.Ver também: Einstein, A. - La relatividad. Trad. de Ute S. de Cepeda. México, Grijalbo, 1970; Einstein, A. et alii - La

teoría de la relatividad de Einstein. Trad. de Pascual Duna. Buenos Aires, Ediciones Siglo Veinte, 1974; Barnett, Lincoln - Einstein et l'univers. Trad. de Julien Nequaud. Paris, Gallimard, 1951; Landau, L. e Rumer, Y.- Qué es la teoria de la

relatividad?México, Ediciones de Cultura Popular, s.d.

14 Frisch, Otto Robert e Pajares, C. - La nueva física. Barcelona, Salvat, 1973, pp. 17-19.

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11 15 Bagú, S., op. cit., pp. 106-117.

16 Ver também Godinho, V. M., op. cit., pp. 205-206, referindo-se a Henri Focillon e sua “estrutura móvel do tempo”.

17 Berkhofer Jr., R. F., op. cit., capítulo X.

18 Bloch, M., op. cit., pp. 36-46; Febvre, Lucien - Combates por la historia. Trad. de F. J. Fernández B. e E. Argullol. Barcelona, ArieI, 1970, pp. 57, 71; Chesneaux, Jean - Du passé faisons table rase? Paris, François Maspero, 1976, capítulos V e VI.

19 Ver Kula, Witold - Problemas y métodos de la historia económica. Trad. de M. Bustamante. Barcelona, Península, 1973, capítulo IV.

20 Cf. a respeito Mairet, G., op. cit., p. 187, referindo-se a Marc Bloch e a Piere Vilar.

21 Askin, op. cit., capítulo I; Kon, I. S. - Neopositivismo y materialismo histórico. México, Ediciones de Cultura Popular, 1976; Meliujin et alii, op. cit., pp. 146-147.

22 Laplace, A - Théorie analytique des probabilités. Paris, 1820, Prefácio, apud Geymonat, L. et alii - Ciencia y materialismo. Barcelona, Grijalbo, 1975, p. 74.

23 Mairet, G. op. cit., pp. 184-185.

24 Cf. Topolski, Jerzy - Methodology of history. Varsóvia, Polish Scientific Publishers, 1976, pp. 536-539. Sobre a questão da causalidade em geral, ver Bunge, Mario - Causalidade. EI principio de la causalidad en la ciencia moderna. Buenos Aires, EUDEBA, 1965 (2ª ed.).

25 Engels, F., op. cit., pp: 177-180.

26 Cf. Geymonat, L. et alii, op. cit., pp. 7-27.

27 Askin, Op. cit., p. 148.

28 Wiener, Norbert - Cibernética e sociedade. Trad. de José P. Paes. São Paulo, Editora Cultrix, 1978 (5ª ed.), pp. 9, 12-13; ver também Navarrete, Manuel et alii – Matemáticas y realidad. México, Secretaría de Educación Pública, 1976, pp. 99-101.

29 Popper, Karl- A lógica da pesquisa científica. Trad. de L. Hegenberg e O. Silveira da Mota. São Paulo, Cultrix, s.d. (2ª ed.), capítulo IX.

30 Cf. Bunge, Mario - La investigación científica. Su lógica y su filosofía. Trad. de M. Sacristán. Barcelona, Ariel, 1976 (5ª ed.), pp. 323-327.

31 Furet, François - “L'histoire quantitative et la construction du fait historique”. Annales. E.S.C. XXVI, 1, 1971, p. 63.

32 Askin, op. cit., pp. 148-174: discute em especial a posição de Reichenbach sobre a reversibilidade do tempo.

33 Braudel, Fernand - “La larga duración”, in Braudel, F. - La historia y las ciencias sociales. Trad. de J. Gómez Mendoza. Madri, Alianza Editorial, 1970 (2ª ed.; o original em francês data de 1958), pp. 60-106.

34 Labrousse, E. et alii - Las estructuras y los hombres. Trad. de M. Sacristán. Barcelona, Ariel, 1969, pp. 115-124; Vilar, P. - “Histoire marxiste...” pp. 179-191.

35 Furet, op. cit., p. 74.

36 Berkhofer Jr., R., op. cit., p. 230.

37 Simpson, George Gaylord. The meaning of evolution. Nova Iorque, Bantam Books, 1971, capítulo VIII.