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Autores Elyne Engstron Fátima Pivetta Felipe Eugênio dos Santos Silva Gabriel Schütz Grácia Maria de Miranda Gondim Isabel de Souza Costa Laura Tavarez Ribeiro Soarez Marcelo Firpo de Souza Porto Marco Akerman Nísia Trindade de Lima todos somos aprendizes! O Território Integrado Organizadores Fátima Pivetta Maria Alice Pessanha de Carvalho 1ª edição Rio de Janeiro | Ano 2012 Manguinhos: de Atenção a Saúde em

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O Território Integrado de Atenção a Saúde em Manguinhos: todos somos aprendizes!

Autores

Elyne Engstron

Fátima Pivetta

Felipe Eugênio dos Santos Silva

Gabriel Schütz

Grácia Maria de Miranda Gondim

Isabel de Souza Costa

Laura Tavarez Ribeiro Soarez

Marcelo Firpo de Souza Porto

Marco Akerman

Nísia Trindade de Lima

todos somosaprendizes!

O Território Integrado

Organizadores

Fátima Pivetta

Maria Alice Pessanha de Carvalho

1ª edição

Rio de Janeiro | Ano 2012

Manguinhos:de Atenção a Saúde em

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Ministro da SaúdeAlexandre Padilha

Fundação Oswaldo Cruz – FiocruzPresidente: Paulo Ernani Gadelha

Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca – ENSP/FiocruzDiretor: Antônio Ivo de Carvalho

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca

Rua Leopoldo Bulhões, 1480 – Térreo – sala 26 (antigo Politécnico)Manguinhos – Rio de Janeiro – Cep 21041-210Tel.: (21) 2598-2764

CRÉDITOS

Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica: Tatiana Lassance Proença

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O Território Integrado de Atenção a Saúde em Manguinhos: todos somos aprendizes!

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .............................................................................. 5

TEIAS ESCOLA MANGUINHOS: DOIS ANOS DE IMPLEMENTAÇÃO ........... 13

CONTEXTOS DO TEIAS-ESCOLA MANGUINHOS .................................... 19

Contexto Territorial ....................................................................... 19

Contexto Histórico ........................................................................ 26

Contexto Institucional ................................................................... 27

O TERRITÓRIO E A CIDADE: DIMENSÕES DA CONSTRUÇÃO DO LUGAR E DA

CIDADANIA ...................................................................................... 32

Construção das Cidades e da Cidadania: Perspectivas de um Projeto de

Sociedade .................................................................................... 35

Saúde, Civilização E Cidadania: A Experiência Brasileira Em PerspectivaHistórica .................................................................................... 46

Nota sobre o processo civilizador e a contribuição de Norbert Elias ..... 46

Saúde e civilização no Brasil ........................................................ 50

Complexidade dos Problemas Socioambientais e Desafios Epistemológicos:o déficit democrático na realidade brasileira .................................. 65

O TERRITÓRIO E A SAÚDE: AÇÕES DO SETOR SAÚDE PARA A TRANSFORMAÇÃODA CIDADANIA ................................................................................. 83

Novo Paradigma, Novas Instituições: Desafios da Gestão Participativa, daInter e da Trans-setorialidade ......................................................... 85

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Territórios de Cidadania e Saúde: Perspectivas de Avanço nos Modelos deGestão ........................................................................................ 96

EDUCAÇÃO TERRITORIALIZADA EM SAÚDE: REFLEXÕES SOBRE AS PRÁTICASEDUCATIVAS EM TERRITÓRIOS VULNERÁVEIS DA CIDADE ..................... 107

Práticas educativas em saúde no território de Manguinhos, avanços limitese cenários ................................................................................... 109

Aproximações Iniciais .................................................................... 109

Educação Básica como possibilidade de Efetivar a Equidade ........... 112

Educação como processo Humanizador ........................................ 119

Quais os desafios atuais à formação profissional em Vigilância daSaúde? ....................................................................................... 125

Educação de Jovens e Adultos: O Desafio de Reintegrar Populações Excluídasda Escola .................................................................................... 133

RELATOS DAS OFICINAS .................................................................... 155

Eixo 1: Política pública, planejamento, monitoramento e avaliação e Eixo

3: Epidemiologia e pesquisa clínica ................................................ 157

Eixo 2: Saúde, Ambiente e Território .............................................. 160

Eixo 4: Informação e Comunicação em Saúde ............................... 163

Eixo 5: Educação e Saúde ............................................................ 167

DESAFIOS E PERSPECTIVAS ............................................................... 173

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O Território Integrado de Atenção a Saúde em Manguinhos: todos somos aprendizes!

APRESENTAÇÃO

Esta publicação tem como objetivo sistematizar as reflexões produzidasdurante 1º Seminário de Ensino & Pesquisa do TEIAS-ESCOLA Manguinhos

“Pesquisa e Formação: todos somos aprendizes!”, realizado nos dias 17, 18 e19 de novembro de 2010, e possibilitar a circulação desta experiência deprodução coletiva de conhecimentos.

A pesquisa e o ensino são as dimensões que diferenciam o TEIAS em

Manguinhos, que, em sua proposição de origem, nasce como TEIAS-ESCOLA

Manguinhos, conformando, assim, um compromisso frente à sociedade: mostrarque esse diferencial é o caminho para a transformação de práticas do setor

de saúde e de produção de políticas públicas. O depoimento de uma residenteda UFRJ na oficina de Planejamento, do dia 11/03/2009, mostra outra facedesse compromisso, ao falar que a pesquisa é o que atrai os profissionais

para atuarem na Estratégia de Saúde em Manguinhos; desse modo, a pesquisasurge como oportunidade de continuidade da formação acadêmica dos jovensprofissionais que se integram ao serviço público.

Visando à transformação das condições de vida local e da Cidade

Maravilhosa, a concepção de TEIAS-ESCOLA Manguinhos está associada aosreferenciais da Promoção da Saúde, o que implica que a pesquisa e o ensinodevem incorporar e operacionalizar em suas estratégias, as metas e as ações

referenciais claras e transparentes sobre o território, a participação comunitáriae a intersetorialidade.

A garantia de um circuito virtuoso entre políticas públicas, proteção social

e melhoria da qualidade de vida e de saúde impõe não só a construção deestratégias de atuação integrada e de intercâmbio permanente de informações,como também o monitoramento e a avaliação participativa das intervenções.

O aprendizado social e institucional é entendido como desdobramento dediversos processos de participação, de consolidação de redes sociotécnicas

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(instituições acadêmicas, governamentais e organizações sociais) e deestratégias de colaboração intersetorial.

Por sua complexidade, os grandes centros urbanos, como o Rio de Janeiro,

e o território de Manguinhos, em particular, colocam imensos desafios nabusca do alcance da equidade, princípio estruturante das estratégias depromoção da saúde.

Os territórios onde habitam as classes populares mais vulneráveis social eeconomicamente são repletos de riscos e de problemas de saúde públicarelacionados à falta de saneamento básico, às enchentes e aos

desmoronamentos em encostas, às proximidades de depósitos de lixo ou mesmode indústrias poluentes, caracterizando o que especialistas em justiça ambientaldenominam “zonas de sacrifício” (BULLARD, 1994).

Além do crescimento de formas ilícitas de comércio e de poder político

nesses espaços, tais como o narcotráfico e as milícias, as limitações do mundomaterial que justificam a luta política dessas populações também propiciaramhistoricamente práticas populistas e clientelistas por parte de políticos e de

instituições. A conjunção de violências tanto por parte do crime organizadoquanto das forças policiais influencia e restringe as ações de mobilizaçãosocial e de exercício da cidadania nesses territórios.

As favelas possuem inúmeras e fragmentadas territorialidades emconsequência dos múltiplos usos efetuados pelos diversos atores públicos eprivados. Entender essas múltiplas territorialidades e as possibilidades de

construção de novos marcos de integração de políticas públicas e departicipação cidadã constituem o desafio-chave para projetos de investigaçãoe de intervenção (PORTO & PIVETTA, 2009).

Nesta perspectiva, a pesquisa transformadora, que contribua para a solução

dos problemas e das vulnerabilidades socioambientais desses territórios, deveser objetivada como ato educativo: um ato de transformação dos sujeitos eme na ação. Ao contrário da visão da pesquisa tradicional, que coloca as

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O Território Integrado de Atenção a Saúde em Manguinhos: todos somos aprendizes!

O ato de aprender é o ato de se conhecer e de intervir emseu meio e que a educação deve acontecer por meio degestão de parcerias, envolvendo escolas, famílias, poderpúblico, empresas, organizações sociais, associações de bairroe indivíduos, capazes de administrar as potencialidadeseducativas da comunidade (ASSOCIAÇÃO CIDADE ESCOLA

APRENDIZ, 2008:09).

Neste sentido, o bairro passa a ser uma grande sala de aula, onde osprocessos educativos acontecem nos espaços da vida cotidiana. Fortalece-se

então o capital social e humano local, tendo como desafios tanto mapear ospotenciais pedagógicos como potencializar espaços investigativos capazesde observar, de problematizar o contexto e de construir conhecimento e

classes populares como objeto de estudo, a pesquisa como ato educativoincorpora as pessoas das classes populares como sujeitos de conhecimento.

Assim sendo está conectada ao ensino e à educação para a autonomia epara a emancipação: um processo de pesquisa-ação para a cidadania queforme o cidadão investido do poder para realizar escolhas de maneira

autônoma e consciente, de acordo com princípios morais e éticos, e quecontribua para ampliar as possibilidades de democratização da nossasociedade (BOBBIO, 2006).

A realização de pesquisas e a prestação de serviços especializados devem

ser duas faces do processo de produção de conhecimento. Entendendo que,por um lado, pesquisar é também prestar um serviço, na medida em quebuscamos responder a demandas da sociedade; por outro lado, as atividades

de serviço são potencialmente geradoras de novas questões e novosencaminhamentos, neste sentido co-produtoras de conhecimento e saberes(BRITO, 2009).

O conceito de Bairro-Escola segue dois pressupostos:

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Compreensão do SUS como instância formadora e espaçode experimentação de tecnologias em saúde.

Promoção das potencialidades educativas no território.

Formação de uma comunidade de interesses em torno daeducação, da saúde, do meio ambiente e da vida.

Formação e educação para a cidadania, promovendo areflexão de ações sobre a realidade na lógica de educar

para a transformação.

Formação e Educação Permanente em Saúde para ostrabalhadores do território, considerando o papel educativo

e articulador do agente comunitário de saúde.

Produção de tecnologias e de inovações em educaçãoe saúde potencializadoras da comunidade e da gestãodo cuidado.

Produção e gestão de conhecimentos científicos e tecnoló-gicos, envolvendo alunos pesquisadores e moradores eformando uma comunidade de aprendizagem e pesquisa.

propostas investigativas, mais cooperativos e adequados àquela realidade devida e de educação (SANTOS, 1994).

Com base nesse referencial teórico, a concepção do TEIAS-ESCOLA Manguinhos

se fundamenta na compreensão do território como espaço dinâmico deaprendizagem, de pesquisa, de intervenção, de monitoramento e de avaliaçãodas ações intersetoriais articuladas na gestão dos cuidados individuais,

familiares e coletivos, possibilitando conhecimento e intervenção em seu meio,pelo que adota como princípios norteadores:

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Fortalecimento das redes de cooperação interna entre asunidades de ensino, pesquisa e atenção da Fundação

Oswaldo Cruz.

Construção de parcerias, que envolvem escolas, famílias, poderpúblico, universidades, organizações sociais, associações debairro e de indivíduos capazes de administrar as potenciali-

dades educativas da comunidade.

Articulação e gestão de ações intersetoriais e o fortalecimentoda comunicação local;

Desenvolvimento de processos de monitoramento e de avalia-

ção de indicadores locais, assim como avaliação de políticassociais e de saúde sob a óptica da intersetorialidade e daparticipação social.

Acompanhamento da situação de saúde e do ambiente noterritório, entendendo a dinâmica do processo de imple-mentação do Programa de Aceleração do Crescimento –

PAC Manguinhos e de outras políticas públicas.

Esse primeiro seminário teve como propósito situar a questão local noâmbito da cidade e da construção da cidadania, ao mesmo tempo em que

buscou propiciar a articulação de parcerias internas e externas à Fiocruz.Coloca a oportunidade de a Fiocruz estabelecer parcerias com outrasinstituições e seus grupos de excelência em diversos campos do conhecimento,

como, por exemplo, o planejamento e a sociologia urbana, a história e ageografia críticas, a fim de pôr em prática um processo de reflexão sobre acidade e seus processos de produção de “saúde do território”, que se

contraponha ao modelo de exclusão territorial:

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(...) modelo de exclusão territorial que define a cidadebrasileira é muito mais do que a expressão das diferençassociais e de renda, funcionando como uma espécie deengrenagem da máquina de crescimento que, ao produzircidades, reproduz desigualdades (ROLNIK, 2008).

O seminário foi organizado em duas sessões. Pela manhã, foramapresentados painéis em torno de três grandes eixos com abordagem conceitual

e metodológica, tendo o objetivo de subsidiar a construção dos referenciaisteórico-metodológicos do TEIAS-ESCOLA com especialistas convidados, e, pelatarde, oficinas com todos os participantes para apresentação das iniciativas

de pesquisa e ensino da FIOCRUZ em andamento ou propostas paraManguinhos assim como a discussão de propostas para o ensino e pesquisano TEIAS-ESCOLA.

Considerou-se importante para esse primeiro seminário que os três grandeseixos situassem o território-lugar em uma perspectiva mais macro de extensoscampos de conhecimento e de formulação de políticas públicas, deixando oaprofundamento de temas específicos, que surgiram no decorrer das

apresentações, para eventos temáticos subsequentes. Os três grandes eixossão: 1) O Território e a Cidade: dimensões da construção do lugar e dacidadania; 2) O Território e a Saúde: ações do Setor Saúde para a transformação

da cidade, e; 3) Práticas educativas em saúde no território de Manguinhos:avanços, limites e cenários.

O primeiro eixo –”O Território e a Cidade: dimensões da construção do

lugar e da cidadania” – teve como objetivo compreender o processo social deprodução da saúde e da doença, como também examinar de que modo seestruturam os determinantes sociais e as diversas formas de vulnerabilidades

sociais e ambientais que se expressam em territórios específicos, em particular,naqueles mais à periferia social e econômica do desenvolvimento e que afetamas condições de vida e de saúde das populações. Três temas foram abordados:

a) Construção das Cidades e a Cidadania: as perspectivas de um projeto de

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O Território Integrado de Atenção a Saúde em Manguinhos: todos somos aprendizes!

sociedade; b) A Saúde como Processo Civilizatório: a formação do lugar e osprocessos saúde-doença, e; c) A complexidade dos problemas socioambientais

e os desafios epistemológicos.

O segundo eixo – “O Território e a Saúde: ações do Setor Saúde para atransformação da cidade” – buscou problematizar os modelos de gestão ecuidado, suas perspectivas e avanços, bem como debater a respeito dos modelos

de produção/gestão da saúde que envolvem os desafios da gestão participativae da inter e da trans-setorialidade, mediante a abordagem de dois temas: 1 )Novo Paradigma, Novas Instituições: desafios da gestão participativa, da inter

e da trans-setorialidade e, 2) Territórios de Cidadania e a Saúde: perspectivasde avanço nos modelos de gestão.

O terceiro eixo – “Educação territorializada em saúde: reflexões sobre as

práticas educativas em territórios vulneráveis da cidade” – teve como foco asexperiências de educação territorializada em suas dimensões conceituais, ético-políticas, e suas repercussões nas práticas cotidianas de saúde. Dois temas

foram abordados: 1) Práticas educativas em saúde no território de Manguinhos:avanços, limites e cenários, e; 2) Educação de jovens e adultos: o desafio dereintegrar populações excluídas da escola.

Com o objetivo de promover o diálogo entre as várias iniciativas de ensino

e de pesquisa desenvolvidas no âmbito do TEIAS-ESCOLA Manguinhos naperspectiva de articular práticas colaborativas, as oficinas foram organizadasem cinco eixos temáticos como estratégia de agrupamento das iniciativas de

pesquisa e ensino – formal e não formal – desenvolvidas no território deManguinhos em todas as unidades da Fiocruz. Os cinco eixos foram categoriza-dos a partir do mapeamento realizado pelo GT de Pesquisa & Ensino do TEIAS-

ESCOLA Manguinhos, quais sejam: 1) Política Pública, Planejamento,Monitoramento e Avaliação e Gestão em Saúde; 2) Saúde, Ambiente e Território;3) Epidemiologia e Pesquisa Clínica; 4) Informação e Comunicação em Saúde;

e 5) Educação e Saúde.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSOCIAÇÃO Cidade Escola Aprendiz: Bairro Escola passo a passo. MEC/UNICEF, 2008.

BOBBIO, N. O Futuro da Democracia. 10.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006.

BRITO, J. Programa de gestão na eleição de coordenação do CESTEH. Mimeo, 2009.

BULLARD, R. Dumping in Dixie: Race, Class and Environmental Quality. Atlanta: WestviewPress, 1994.

PORTO, M.F.S & PIVETTA, F. Por uma promoção da saúde emancipatória em territóriosvulneráveis. In: Czerina, D. & Freitas, C.M. (org). Promoção da Saúde: conceitos,reflexões, tendências. 2.ed. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2009.

ROLNIK, R. Territorialização dos pobres nas cidades. Le Monde Diplomatique, agosto2008.

SANTOS, B.S. Pela Mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. Porto:Edições Afrontamento, 1994.

Este primeiro seminário, cuja meta foi iniciar o diálogo entre os diversosgrupos que realizam atividades de ensino e de pesquisa em Manguinhos, teve

como público-alvo todos os profissionais que fazem parte desses grupos –servidores da FIOCRUZ, aqueles das instituições parceiras e moradores.

A abertura formal do Seminário esteve a cargo do Subsecretário de AtençãoPrimária, Vigilância e Promoção da Saúde da Secretaria Municipal de Saúde e

Defesa Civil (SMSDC), Daniel Soranz; do Diretor da Escola Nacional de SaúdePública, Antônio Ivo de Carvalho; da Coordenadora do TEIAS-ESCOLA Manguinhos,Elyne Engstrom; e da coordenação do Programa de Desenvolvimento Tecnológico

e Inovação em Saúde Pública (PDTSP) – TEIAS, da Vice-presidência de Pesquisa eLaboratório de Referência da Fiocruz, Isabela Santos e Ana Rabello.

Nos capítulos que seguem são apresentados os temas dos três eixos e os

resultados das oficinas.

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O Território Integrado de Atenção a Saúde em Manguinhos: todos somos aprendizes!

TEIAS ESCOLA MANGUINHOS: DOIS ANOS DE IMPLEMENTAÇÃO

Neste capítulo apresenta-se a experiência de implementação de um novo

modo de organização da gestão e atenção à saúde na comunidade deManguinhos/Rio de Janeiro, denominada TEIAS-ESCOLA Manguinhos. Talexperiência, iniciada em 2009, fundamenta-se no conceito de Território

Integrado de Atenção à Saúde – TEIAS (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2007), estratégiade aperfeiçoamento político-institucional, gerencial e de organização daatenção do Sistema Único de Saúde (SUS), em que se afirmam, portanto, os

valores constitucionais de universalidade, integralidade, equidade, descentrali-zação e participação social na saúde.

Em consonância às novas políticas e ações de saúde do governo federal,

o conceito de Território Integrado foi revisitado e consolidado durante os anosde 2010 e 2011 na proposição das Redes de Atenção à Saúde – RAS (MINIS-TÉRIO DA SAÚDE, 2010 e 2011). Como norteador dessa nova possibilidade

de organização do SUS, cabe destacar a publicação do decreto no 7.508, de28 de junho de 2011, pelo governo federal, que regulamenta a Lei no 8.080,de 19 de setembro e 1990 e dispõe sobre a organização do SUS.

Nesse decreto, fica estabelecido que o acesso universal, igualitário e ordena-

do às ações e aos serviços de saúde se inicia pelas portas de entrada do SUSe se completa na rede regionalizada e hierarquizada, de acordo com a comple-xidade do serviço. Preconiza que a Atenção Primária à Saúde (APS), além de

porta de entrada principal, seja a ordenadora do acesso aos demais serviçose ações.

Esses fundamentos têm norteado a aplicação de modelos de atenção e de

gestão na experiência do TEIAS-ESCOLA Manguinhos em quase dois anos deimplementação. O TEIAS-ESCOLA Manguinhos é uma iniciativa de cogestão dasaúde na cidade do Rio de Janeiro, a qual tem como base um contrato de

gestão celebrado em dezembro de 2009 entre o governo municipal (SecretariaMunicipal de Saúde e Defesa Civil) e a Escola Nacional de Saúde Pública

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Sergio Arouca / Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz) por meio de suafundação de apoio, a Fundação para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico

em Saúde (Fiotec).

Tal cooperação tem como objetivo principal a conformação de um territóriointegrado de saúde na região de Manguinhos como espaço de inovação daspráticas do cuidado, do ensino e da pesquisa em saúde e de melhoria da

condição atual de saúde da população. Para além do conceito tradicional deintegração da rede estrutural dos serviços e ações de assistência, promoção eprevenção em saúde, o conceito de TEIAS-ESCOLA incorpora os componentes da

produção de conhecimentos científicos e tecnológicos, ensino e pesquisa,componentes relacionados à missão institucional da Fiocruz, que é a decontribuir para o enfrentamento de grandes desafios do SUS no país.

No campo da atenção à saúde, é atribuição do TEIAS-ESCOLA Manguinhosofertar a atenção primária nos moldes da Estratégia de Saúde da Família atoda a população residente no território de Manguinhos, gerenciando ações e

serviços primários com eficiência, qualidade e de forma humanizada.

Considerando que a APS é a coordenadora do cuidado devido aosindivíduos, às famílias e à comunidade e que a sua gestão em Manguinhos éde responsabilidade do TEIAS-ESCOLA Manguinhos, torna-se preciso implementar

sua integração com a Rede de Atenção à Saúde e de outros setores. Noâmbito da saúde, é sua missão garantir acesso e resolutividade da atenção àpopulação por meio da Estratégia de Saúde da Família.

A APS deve estar articulada com equipamentos e serviços nesse e emoutros territórios, em seus diversos níveis de complexidade (especialidades,apoio diagnóstico – laboratórios; radiológico; emergências; hospitais). A

articulação com os diferentes setores – como educação, assistência social,cultura, esporte, habitação e saneamento – é necessária de modo a possibilitaruma abordagem integral da saúde, da promoção desta e dos determinantes

sociais que possibilitam o alcance do bem-estar e a saúde das pessoas e doterritório de Manguinhos.

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O Território Integrado de Atenção a Saúde em Manguinhos: todos somos aprendizes!

Com essas concepções tem se trabalhado ao longo dos anos de 2010-2011 para construir em Manguinhos um território com maior acesso e

qualidade do cuidado prestado pelo “saúde da família”.

E podemos comemorar... Temos 100% de Saúde daFamília em Manguinhos, conquista que celebramos.

Para isso, o primeiro passo foi a ampliação de oito para treze Equipes de

Saúde da Família completas, de modo a cobrir todo o bairro de Manguinhosem outubro de 2010 – todos os moradores de Manguinhos têm uma equipepara cuidar de sua saúde, composta por médicos, enfermeiros, técnicos e

agentes comunitários de saúde, agentes de vigilância em saúde e aqueles quetrabalham com redução de danos em dependência química; bem como ascinco equipes de saúde bucal.

Além dessas, foi implantada, em outubro de 2011, uma décima quarta

equipe especial para atendimento à população de rua situada no território deManguinhos, que atua no desenvolvimento de ações integrais de saúde inloco frente às necessidades dessa população. As atividades das equipes incluem

toda a relação de cuidados primários, com ênfase na busca ativa aos usuáriosde álcool e de outras drogas, assim como na redução de danos. Conta aindacom o apoio do serviço social e da saúde mental.

Nesse novo cenário e considerando as intensas transformações ocasionadaspela intervenção no bairro pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC),iniciado em 2008, foi necessário efetuar nova divisão das áreas de adscrição

das equipes no território e reajuste dos limites geográficos e populacionais decada equipe, que ficou responsável por cerca de três mil pessoas por equipe.

Cabe destacar que houve maior oferta de serviços de saúde no território,com ampliação dos demais equipamentos e serviços de saúde:

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Inauguração da Unidade de Pronto Atendimento (UPA)Manguinhos em março de 2009, unidade sob gerência

municipal direta, mas com estreita articulação com a gestãodo TEIAS-ESCOLA Manguinhos (e com vários serviços de saúde– consultas, atividades em grupo e na comunidade, vacinas,

curativos, coleta de exames).

Reorganização do processo de trabalho das equipes de saúdeda família do Centro Municipal de Saúde (CMS) Manguinhos– que nessa nova forma de gestão, compõem a “Saúde da

Família, sob gestão do TEIAS-ESCOLA Manguinhos, que atuamno espaço do Centro de Saúde Germano Sinval Faria(CSEGSF)/ENSP/Fiocruz”. Destaca-se que, o CSEGSF era o

único equipamento de saúde de Manguinhos há mais decinquenta anos, até que, em 2000, teve lugar a primeirainiciativa de instalação de algumas equipes de saúde da

família em convênio com o governo municipal. Frente àsmudanças do atual modelo de gestão da saúde da família,cabe repensar o papel do CSEGSF/ENSP na rede de serviços

de saúde de Manguinhos.

Criação do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) compediatra, ginecologista, cardiologista, psiquiatra, farmacêu-

tico, assistente social, educador físico, sanitarista, fisioterapeu-ta (e outros profissionais a serem incorporados), que tornamo cuidado à saúde mais resolutivo, fazendo consultas e

orientações junto com as equipes da família.

No entanto, ainda há o que fazer para melhorar o acesso. Espera-se quealgumas dessas equipes possam trabalhar em mais uma nova Clínica da

Família situada no espaço do Abrigo Cristo Redentor, obra pactuada peloPAC e ainda não realizada, melhorando o acesso e a disponibilidade parafornecer outros serviços à população.

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O Território Integrado de Atenção a Saúde em Manguinhos: todos somos aprendizes!

Trabalhamos ainda para qualificar e ofertar novas formas de gestão daclínica, acolhimento humanizado, práticas de saúde coletiva, promoção e

prevenção da saúde. Investimos no fomento às práticas intersetoriais: articula-ção com comunidade, escolas e demais atores envolvidos com o Programa deAceleração do Crescimento (PAC); fomenta-se também a gestão participativa

e a comunicação em saúde. Como exemplo destaca-se, no segundo semestrede 2011, a realização da Conferência Livre de Manguinhos, durante a qual acomunidade debateu livremente seus problemas, sem a preocupação de eleger

delegados para a etapa municipal, e o processo para a eleição do ConselhoGestor Intersetorial de Manguinhos, cuja posse foi dezembro de 2011.

As iniciativas de cogestão e organização institucional estão sendo aperfei-çoadas no exercício diário. Como organização institucional, o TEIAS-ESCOLA

Manguinhos é Programa vinculado diretamente à Direção da ENSP/Fiocruz;atua com um Colegiado Gestor estruturado em três gerências de apoio àgestão: Atenção e Promoção; Ensino e Pesquisa; Administração, articulado às

gerências das Clínicas da Família Victor Valla e do CMS Manguinhos. Estecolegiado se reúne periodicamente, incluindo uma reunião ampliada comtodos os equipamentos de saúde do território e com a Coordenação de Área

Programática (CAP) 3.1, instância regional da SMSDC Rio; há ainda oscolegiados das Clínicas, espaços locais de reunião com os profissionais ea comunidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MINISTÉRIO DA SAÚDE. SECRETARIA EXECUTIVA. Termo de Compromisso de GestãoFederal. Brasília: Ministério da Saúde, Série A. Normas e Manuais Técnicos, SériePactos pela Saúde, 2007.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. SECRETARIA EXECUTIVA. Brasília: Ministério da Saúde, SérieA. Normas e Manuais Técnicos, Série Pactos pela Saúde, portaria nº 4.279 de 30 dedezembro de 2010.

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MINISTÉRIO DA SAÚDE. SECRETARIA EXECUTIVA. Brasília: Ministério da Saúde, portarianº 2.488, de 21 de outubro de 2011.

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O Território Integrado de Atenção a Saúde em Manguinhos: todos somos aprendizes!

CONTEXTOS DO TEIAS-ESCOLA MANGUINHOS

Gabriel Schütz 1, Fatima Pivetta 2 , Elyne Engstron 3

O Contexto Territorial

O processo de urbanização da região de Manguinhos se iniciou com achegada da ferrovia em 1886, que atravessou os terrenos loteados e ocupados

por fazendas desde 1760, onde foram construídas as estações que hojeconhecemos. As facilidades de acesso permitidas pelas novas vias estimularama instalação de instituições como o Instituto Soroterápico (1900), hoje Fundação

Oswaldo Cruz - Fiocruz, empresas como, entre outras, a Empresa de Correiose Telégrafos (ECT), a Empresa Brasileira de Telecomunicações S.A. (Embratel),a Cooperativa Central dos Produtores de Leite Ltda. (CCPL), a Companhia

Nacional de Abastecimento (Conab), a Souza Cruz e a Refinaria de Manguinhos,determinando a ocupação definitiva da área e caracterizando Manguinhos,durante um período, como bairro industrial (FERNANDES & COSTA, 2009).

Entre o início do século XX, quando surgiu a comunidade do Amorim, até

o final da década de 1940, observou-se uma lenta ocupação residencial nobairro, que ocorreu por iniciativas isoladas. A partir dos anos de 1950, noentanto, Manguinhos foi marcado pelas políticas oficiais de remoção de outras

áreas da cidade: as famílias eram retiradas da zona sul, do centro, da zona

1 Professor adjunto do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio deJaneiro, na área “Produção, Ambiente e Saúde”. Pesquisador colaborador do Grupo de DireitosHumanos e Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz.2 Tecnologista Senior do Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (CESTEH)da Escola Nacional de Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz. Atua na área da Saúde Coletivacom ênfase na Promoção da Saúde em áreas urbanas e vulneráveis. Membro da coordenação doLaboratório Territorial de Manguinhos.3 Médica, Tecnologista em saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/FundaçãoOswaldo Cruz e gestora de atenção primária na Iniciativa Teias-Escola Manguinhos. Tem experiênciana área de Saúde Coletiva, com ênfase em epidemiologia, avaliação em serviços e tecnologias emsaúde, pesquisa clínica atuando principalmente nos seguintes temas: nutrição e saúde pública(anemia, obesidade), atenção primária, desfechos da tuberculose, vacina meningocócica em crianças.

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portuária e da zona norte para serem alojadas no espaço anteriormente usadopelo lixão Aterro Retiro Saudoso. Foram construídos os barracões e as casas

populares do Centro de Habitação Provisório 2 (CHP2), do Parque João Goularte da Vila Turismo, onde os moradores aguardavam uma próxima remoçãopara os Conjuntos Habitacionais. A partir da década de 1980 foram instalados

conjuntos habitacionais na região, ao mesmo tempo em que teve lugar umprocesso crescente de invasões (FERNANDES & COSTA, 2009).

Resumidamente, a ocupação de Manguinhos se deu em quatro momentos:início do século XX – Amorim ou Parque Oswaldo Cruz; 1940/1950 – Varginha

ou Parque Carlos Chagas, CHP2, Parque João Goulart, Vila Turismo; 1990/1995 Conjunto Habitacional Nelson Mandela, Conjunto Habitacional SamoraMachel, Mandela de Pedra; 2004/2007 – Vitória de Manguinhos ou CONAB,

Nova Era ou Embratel, com uma população de cerca de cinquenta milhabitantes. Cada uma das comunidades apresenta uma história particular,com determinações bastante variadas (FERNANDES & COSTA, 2009).

Segundo o Decreto Municipal no 7.980 de 12 de agosto de 1988, o bairro deManguinhos está delimitado pela confluência do Canal do Cunha com a AvenidaBrasil seguindo por esta (incluída) até o Ramal de Minérios de Arará; por este (incluído)

até o entroncamento com o Ramal Leopoldina da Rede Ferroviária Federal SociedadeAnônima (RFFSA); seguindo pelo leito deste até o cruzamento com o Rio Jacaré;pelo leito deste até a Avenida Suburbana; por esta (excluída) até a Rua José Rubino;

por esta (excluída) até a Avenida dos Democráticos; por esta (incluído apenas o ladopar) até a Rua Capitão Bragança; por esta (incluída, incluindo a Rua Hespéria),atravessando a Rua Uranos, até o Ramal Leopoldina da RFFSA; pelo leito deste até

o prolongamento do alinhamento da Rua Eurico Souza Leão; por este e pela RuaEurico Souza Leão (incluída); Avenida Novo Rio (incluído apenas o lado ímpar) atéa Avenida Brasil por esta (incluído apenas o lado ímpar, incluindo o Viaduto de

Manguinhos) até o ponto de partida. Nesse território estabeleceu-se o TerritórioIntegrado de Atenção à Saúde – TEIAS-ESCOLA Manguinhos (Fig. 1).

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FIGURA 1 – Delimitação do Território de Manguinhos, 2011

Fonte: Núcleo de Saúde Coletiva TEIAS-ESCOLA Manguinhos, 2011

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Manguinhos é um microcosmo da desigualdade brasileira, onde asmoradias convivem com empresas públicas e privadas, nacionais e transnacio-

nais. Nas delimitações, tanto do Complexo quanto do bairro, os espaços parahabitação são, em sua grande maioria, territórios favelizados, que apresentamdiversas carências e necessidades (BUENO & LIMA, 2010).

De acordo com o Censo Domiciliar 2010, realizado pelo Centro de Tecnologia

da Informação e Comunicação do Estado do Rio de Janeiro (Proderj, 2010), aestimativa populacional do Complexo Manguinhos chega a 31.535 pessoas,sendo a média de habitantes por domicílio igual a 2,8. Quase 54% das famílias

entrevistadas neste trabalho passaram a morar no Complexo na década de2000; as residências, feitas de alvenaria (76%) e com um único cômodo utilizadocomo dormitório (63%) são, em sua grande parte, próprias (72% já pagos/

quitados), com documentação emitida pela associação dos moradores (71%).

Cerca de 58% dos domicílios do Complexo de Manguinhos obtêm seuabastecimento de água por meio de rede não oficial, enquanto apenas 25%

possuem abastecimento oficial com ligação interna; 92% dos domicílios têmbanheiros, dos quais 68% estão conectados à rede geral de esgoto.

A população feminina do Complexo de Manguinhos (52,7%) é maior doque a masculina (47,3%). Contudo, os homens têm maior renda média (R$

440,58) do que as mulheres (R$ 301,54).

Por sua vez, a renda média domiciliar é de R$ 638,48 por domicílio, sendoque 63,6% dos entrevistados para o Censo Domiciliar declaram não ter outra

fonte de renda, fora daquela gerada pelo trabalho. Apenas 3,3% recebem,por exemplo, o benefício do Bolsa Família.

Quase 50% da população do Complexo possuem Ensino fundamental e20%, o Ensino Médio; 5,4% não possuem nenhum grau de ensino e 2,4%

declaram não saber ler nem escrever.

Esses dados demográficos e sociais estão em consonância com as informa-ções do cadastro de moradores, de famílias e de domicílios registradas nas

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Fonte: Núcleo de Saúde Coletiva TEIAS-ESCOLA Manguinhos, 2011

FIGURA 2: Mapa das 13 equipes de saúde da Família. Manguinhos, 2011

Fichas A do cadastro realizado pelos agentes comunitários de saúde das trezeequipes de saúde da família. Há cerca de trinta e sete mil indivíduos residentes

e cadastrados, porém estima-se que 5% dos domicílios do território não foramcadastrados ou em razão da recusa dos moradores, ou por estarem os domicíliosfechados ou desocupados. Esta população está sob o cuidado de treze equipes

de saúde da família, como apresentado na Figura 2.

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Para conhecer o território com base na Ficha A, apresenta-se o perfil demo-gráfico da população que reside em Manguinhos nos quadros e figuras que

seguem. Configura-se uma pirâmide populacional (Figura 3) em que a base éestreita e o ápice, mais alargado, fruto do decréscimo de natalidade e doenvelhecimento populacional, destacando-se mortalidade importante de jovens

do sexo masculino, causada pela violência. Essas são características de áreasque convivem com a tripla carga de doenças, como as infecciosas, as doençase os agravos crônicos, além da morbimortalidade por causas externas e

violência, em seus diferentes aspectos.

QUADRO 1: Distribuição da população cadastrada nas equipes de saúde da família de todo o território

de Manguinhos, segundo sexo e faixa etária, disposta de forma tabular e gráfica (Pirâmide Demográfi-

ca). Agosto de 2011.

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Fonte: Núcleo de Saúde Coletiva TEIAS-ESCOLA Manguinhos, 2011

De acordo com Bueno & Lima (2010), o cotidiano nos territórios de favelasdo Complexo Manguinhos se caracteriza pelo violento controle social exercidosobre a maioria dos seus moradores, bem como pela violação de direitos civis

e políticos por aparelhos de coerção públicos e privados, somados ao deficienteacesso a direitos sociais e à criminalização do território.

Os problemas que os moradores do Complexo enfrentam são considerados

pelo TEIAS-ESCOLA Manguinhos como entraves à promoção da saúde desseterritório, e que desafiam a busca de articulações para a reversão do cotidianoinjusto em que vivem.

FIGURA 3: Distribuição da população de Manguinhos de acordo com faixas etárias

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Contexto Histórico 4

O Município do Rio de Janeiro foi um dos pioneiros na época das Açõesintegradas de Saúde (AIS), primeiro esforço de integração da política pública

de saúde no Brasil. As AIS visavam superar a brutal fragmentação que existiano sistema político de saúde anterior ao Sistema Único de Saúde (SUS), oqual era um sistema privatista, ineficiente, perdulário.

A necessidade de mudar a política pública de saúde no país suscitou ummovimento da sociedade chamado Movimento Sanitário, que mobilizouprofissionais e acadêmicos sanitaristas de várias universidades no país. Nos

departamentos de medicina preventiva, com os seus núcleos de saúde coletiva,foram associando um trabalho de pensamento, de formulação, relacionadoàs experiências locais de mudança que vinham acontecendo em Campinas,

no Norte de Minas e em Niterói, dentre outros lugares no Brasil. Com isso foisendo moldado um processo de reforma que veio a ser denominado ReformaSanitária Brasileira.

Hoje, quase trinta anos depois, a Reforma Sanitária está inconclusa, em

processo de implantação e de consolidação. Mesmo assim, ela significou umatransformação significativa nas políticas públicas de saúde no Brasil. Antesda Reforma Sanitária, o sistema de saúde brasileiro era um amontoado de

unidades, de hospitais, de postos de saúde que, dentre outras coisas,funcionavam até as dez horas da manhã.

O Município do Rio de Janeiro foi o lugar onde, de maneira mais ousada,

talvez, em cada Área Programática de Saúde (AP), foram formuladas estruturasdenominadas Grupo Executivo Local (GEL), as quais funcionavam pela primeiravez com a participação das comunidades. Esse foi o primeiro esboço, a primeira

experiência de gestão participativa ou de controle social na saúde, com a

4 Texto baseado na apresentação do Prof. Antônio Ivo de Carvalho (Diretor da ENSP/FIOCRUZ) namesa de abertura do 1º Seminário de Pesquisa e Ensino do Teias Manguinhos, no dia 17 denovembro de 2010, no Auditório da Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz.

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O Contexto Institucional 5

Para a Fundação Oswaldo Cruz, implementar o TEIAS-ESCOLA Manguinhosem parceria com a Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de

Janeiro impõe a responsabilidade de participar diretamente na gestão de saúdede um território dentro do Município do Rio de Janeiro.

5 Texto baseado nas apresentações de Daniel Soranz (Subsecretário de Atenção Primária, Vigilânciae Promoção da Saúde da SMSDC/RJ), Antônio Ivo de Carvalho (Diretor da ENSP/FIOCRUZ), ElyneEngstrom (Coordenadora TEIAS-ESCOLA) e Isabela Santos (PDTSP) na mesa de abertura do Seminário.

presença das associações de moradores e dos diretores de hospitais da área.Ou seja, a ideia do “TEIAS” tem raízes em uma convicção e em uma prática que

é já de décadas, uma prática de luta pela reforma, luta pela mudança e quecertamente foi construindo um ideário, uma doutrina que, na época, sesintetizava na frase: ‘Saúde é Democracia e Democracia é Saúde’, uma vez

que esse processo foi contemporâneo à retomada do caminho democráticodepois de décadas de ditadura militar no país.

O Movimento Sanitário veio no bojo do processo democratizador, e plantouas principais convicções e princípios que mais tarde foram cristalizadas na

Constituição de 1988 e, depois, nas leis orgânicas de 1990, que geraram oentão processo de implementação do SUS.

Dessa forma, milhões de brasileiros puderam ser incluídos em um sistema

de cidadania até então inexistente. Hoje, o sistema ainda é insuficiente, poisassegurou o acesso, ainda insignificante, mas não garantiu a efetividade. Esseé um grande desafio que o SUS tem pela frente. Um desafio que exige inventivi-

dade e, fundamentalmente, demanda vontade política. É nesse contexto depropor soluções, de sugerir inovações e de contribuir para os grandes desafiosdo SUS nos campos da atenção, ensino, pesquisa e desenvolvimento

tecnológico que a ENSP e a Fiocruz entendem o TEIAS-ESCOLA Manguinhos, umdos projetos estratégicos no Plano Quadrienal Fiocruz elaborado em 2011.

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O fato de haver a participação da ENSP/Fiocruz com a Prefeitura da gestãode saúde no território de Manguinhos, significa produção e difusão de

conhecimentos e, ao mesmo tempo, significa um aprendizado com esse trabalho,além da pretensão de que esse aprendizado possa ser colocado à disposição deoutros territórios, acrescentando conhecimentos para pesquisa e ensino. Na

perspectiva de consolidar seu papel institucional, é fundamental o TEIAS-ESCOLA

Manguinhos estar integrado às redes de ensino e de pesquisa da Fiocruz.

Experiência pioneira nesse campo é o Programa de DesenvolvimentoTecnológico e Inovação em Saúde Pública (PDTSP) TEIAS-ESCOLA Manguinhos,

ligado à Vice-presidência de Pesquisa e Laboratório de Referência da Fiocruz.O PDTSP tem como objetivo fomentar as atividades de pesquisa edesenvolvimento voltadas essencialmente para a inovação tecnológica no

campo da saúde pública, tendo como perspectiva, contribuir e promover asaúde pública brasileira.

Esse programa de fomento da Presidência da Fiocruz funciona em redes,

incluindo a Rede de Pesquisa Clínica; a Rede Cidades Saudáveis: saúde,ambiente e desenvolvimento; a Rede PDTSP-Dengue; a Rede PDTSP-SUS e aRede Campus Fiocruz da Mata Atlântica. Em 2010, foi lançado um edital

colaborativo para construção de projetos de pesquisa e de intervenção queconformaram a Rede PDTSP-TEIAS.

Em outubro de 2010, o TEIAS-ESCOLA Manguinhos atingiu o primeiro de seusobjetivos: acesso ampliado com cobertura de cem por cento na Saúde da

Família, o que implica a implantação de um modelo de atenção primáriacentrado integralmente na saúde da família. Outro objetivo também alcançadonessa ocasião foi a informatização de todos os registros em saúde, desde

atendimentos clínicos, inscrição em prontuário eletrônico, até os dados docadastro das famílias.

Melhorar o registro das informações em saúde contribui para o planejamen-

to, o monitoramento e a avaliação em saúde, ações prioritárias para avaliardesempenho e resultado na saúde da população. Para isso, o desafio que se

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impõe é qualificar a atenção à saúde com a satisfação dos usuários. Istosignifica acolhimento com humanização e resolutividade, melhoria da gestão

das práticas clínicas, do apoio matricial, do apoio diagnóstico e laboratorial,bem como a articulação com a rede de saúde.

Cabe destacar a importância de organizar a rede de urgências/emergências(que hoje é facilitada pela existência da UPA Manguinhos), a referência pelo

Sistema de Regulação (SISREG) para ambulatórios de especialidades e serviçosde média e alta complexidade (hospitais, como o Hospital Federal de Bonsu-cesso, poderiam funcionar de forma mais integrada); maternidade (a Rede

Cegonha Carioca hoje está em funcionamento, com referência para o parto);a rede de saúde mental (problema de peso em um território como Manguinhos,em que há escassez de serviços, como a inexistência de um Centro de Atenção

Psicossocial – CAPS – para álcool e drogas em toda a área 3.1 da cidade).Cabe, ainda, a necessidade de trabalhar as inovações em ensino e pesquisade forma participativa, atuando na promoção e na atenção à saúde de forma

intersetorial e com resolutividade.

Desde setembro de 2011, como gestão direta do TEIAS-ESCOLA Manguinhos,está em funcionamento a Clínica da Família Victor Valla, na qual atuam seis

equipes de saúde da família, com mais uma, que compõe o consultório de rua,este voltado ao atendimento de saúde dos indivíduos que vivem nessas condições.

Também há sete equipes de saúde da família que atuam no espaço físicodo CSEGSF/ENSP. Essas equipes estão credenciadas no Cadastro dos

Estabelecimentos de Saúde- CNES/DATASUS, como Centro Municipal de Saúde- CMS Manguinhos. Além dessas, o TEIAS-ESCOLA Manguinhos possui cinco equipesde saúde bucal que trabalham de maneira articulada às equipes básicas, com

odontólogos, técnicos e agentes de saúde bucal.

O Núcleo de Saúde da Família (Nasf), criado para melhorar a resolutividadee qualificar a atenção primária ofertada, já funciona com pediatra, cardiologis-

ta, psiquiatras, ginecologista, farmacêutico e sanitaristas. A ideia é ampliá-lo para uma equipe multiprofissional que conte com fisioterapeutas,

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nutricionistas e educador físico, entre outros, agregando também profissionaisdo CSEGSF/ENSP.

O TEIAS-ESCOLA Manguinhos tem o objetivo de formar pessoas próximas da

sua realidade territorial, de modo a produzir um campo de prática e, com isto,possibilitar que a academia encontre espaço para produzir e para fazer inova-ções na gestão que permitam mudar coletivamente problemas já identificados

do Sistema de Saúde.

No marco intersetorial da parceria entre a Fiocruz e a Prefeitura do Rio deJaneiro, resulta também bastante relevante nesse projeto a participação da

Escola Politécnica Joaquim Venâncio (EPSJV / Fiocruz) na formação de agentescomunitários e do Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas (Ipec / Fiocruz),ator importante no processo da formação do Centro de Referência para

Imunobiológicos Especiais (CRIE) e no apoio à Vigilância do Município doRio de Janeiro.

Para o TEIAS-ESCOLA Manguinhos, o componente educação é de crucialimportância. Já foi realizado um curso de aperfeiçoamento para a área de

Saúde da Família, em que se valorizava a educação permanente dosprofissionais. A meta é continuar a ampliar a oferta e a complexidade doscursos oferecidos nesse sentido. Por sua vez, é destacável a produção de

conhecimentos que a iniciativa promove fora do modelo da educação formal,gerando-os no dia a dia com o trabalho participativo e intersetorial.

Com efeito, hoje é o momento de pensar a respeito dos possíveis marcos

de produção de conhecimento dentro do território de Manguinhos, com todasas suas problemáticas particularidades na área social e na ambiental. É omomento de refletir sobre os problemas ambientais para além das moradias e

da questão do lixo, de fazer uma reflexão sobre a violência e sobre a fragmenta-ção das políticas públicas no território, dentre outras questões que dizemrespeito à saúde em sua perspectiva mais ampla.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUENO, Leonardo Brasil & LIMA, Carla Moura (Org.) Território, participação populare saúde: Manguinhos em debate. Rio de Janeiro: ENSP/Fiocruz, 2010.

FERNANDES, Tânia Maria & COSTA, Renato Gama-Rosa. Histórias de pessoas elugares: memórias das comunidades de Manguinhos. Rio de Janeiro: EditoraFiocruz, 2009.

PRODERJ – Centro de Tecnologia da Informação e Comunicação do Estado do Rio deJaneiro. Disponível em: <http://urutau.proderj.rj.gov.br/egprio_imagens/Uploads/MD.pdf>.

Na sequência, esta publicação apresenta uma síntese das reflexões edos debates acontecidos durante o Seminário.

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O TERRITÓRIO E A CIDADE: DIMENSÕES DA CONSTRUÇÃODO LUGAR E DA CIDADANIA

Este eixo apresenta as contribuições dos pesquisadores Laura Tavares6,Nísia Trindade7 e Marcelo Firpo de Souza Porto8.

A Professora Laura desenvolve uma análise crítica de categorias e modelosque vêm referenciando a formulação e implementação das políticas públicas,

trazendo para o diálogo sobre a construção das cidades e a cidadania, temada mesa, o olhar pelo viés do social da política pública, na perspectiva de

“desenvolver a análise sobre como construir políticaspúblicas em um projeto de sociedade democrática.”

Já a pesquisadora Nísia Trindade traz para o debate a questão da

“saúde como expressão e, ao mesmo tempo, parte constitutivae ativa da história da sociedade”, abordando a contribuiçãoteórica de Norbert Elias para a compreensão do processo

civilizador e discutindo “a experiência brasileira deconstituição da saúde como um campo privilegiado de idéiase práticas sociais durante o século XX.”

6 Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) desde 1979 e é Pró-Reitora deExtensão desde 2005. Atua nas áreas de Saúde Pública, gestão em Políticas Públicas e PolíticasSociais, tendo como principais temas de trabalho e pesquisa: desigualdade social, seguridadesocial, política social, políticas públicas e estudos comparados latino-americanos.7 Pesquisadora titular da Casa de Oswaldo Cruz e Editora Científica da Editora FIOCRUZ. É tambémprofessora adjunta de Sociologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atua naárea de Sociologia, com ênfase em Pensamento Social Brasileiro, principalmente nos seguintestemas: ciência e pensamento social no Brasil; história das ideias em saúde pública; sertão nopensamento brasileiro e processos de construção do Estado Nacional.8 Pesquisador titular do Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da EscolaNacional de Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz). Atua no programa de pós-graduação de Saúde Pública da ENSP, na área de concentração “Processo Saúde-Doença, Territórioe Justiça Social”. Faz parte da coordenação do Laboratório Territorial de Manguinhos e é membroda Rede Brasileira de Justiça Ambiental.

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Por sua vez, o pesquisador Marcelo Firpo traz contribuições relativas aosdesafios epistemológicos em torno das complexidades socioambientais,

considerando que na

“discussão contemporânea sobre a saúde coletiva, existem,em princípio, pelo menos três questões fundamentais a seremdebatidas, que envolvem o tema da promoção da saúde: aquestão ambiental; a questão social e a questão epistemoló-gica, quer dizer, a da produção de conhecimentos”.

Os diálogos entre os três autores e suas abordagens dos temas nos propi-ciam a problematização de conceitos e de categorias como: território, sustenta-bilidade, desenvolvimento e progresso, promoção da saúde e intersetorialidade,

entre outros, e suas operacionalizações na formulação e na implementaçãode políticas públicas. Nesse sentido, Laura Tavares levanta uma questão deextrema importância: a preocupação de que os projetos se transformem em

políticas públicas com permanência e que proporcionem a articulação entreterritório e cidade.

Emerge desses diálogos a questão central do poder e da democracia. O

texto de Nísia Trindade apresenta, em uma perspectiva histórica, o processode criação de realidades por parte da elite com a finalidade de justificarpolíticas públicas que abstraem de seu universo a cultura e o ambiente em

que vivem as populações, isto é, o território concreto de vida das pessoas.Com esse objetivo, teorias são criadas para validar as intervenções e, assim, odesafio consiste em construir a cidadania de modo a erguer pontes sobre os

fossos sociais que segregam e marginalizam territórios.

Laura Tavares defende que o estado democrático como desafio utópiconos coloca questões a serem explicitadas e enfrentadas no tocante às discussõessobre hegemonia, poder e interesses contraditórios, pensando que é preciso

confrontar as teses hegemônicas impostas pelas elites com a certeza de que aprodução de contra-hegemonias é possível e necessária.

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No entanto, existe um déficit democrático que tem implicações profundaspara o enfrentamento da questão territorial da saúde, e os desafios da produção

de conhecimento devem ser postos como questão de democracia, nas palavrasde Marcelo Firpo, que propõe uma epistemologia crítica que inclua as noçõesde complexidade e de valores na produção do conhecimento; que desenvolva

abordagens ecossistêmicas de saúde, ou seja, que explore e analise o conceitode território de forma integral; que assuma o papel das incertezas e dasignorâncias na construção do conhecimento; e que formule críticas à noção

dominante de desenvolvimento e de progresso, contribuindo dessa forma àconstrução de relações sociais mais justas.

Em definitivo, os palestrantes deste eixo trouxeram ao debate a noção dacomplexidade, que caracteriza a produção de conhecimento junto a uma

população que vem sofrendo injustiças; do mesmo modo, ressaltaram a fortenecessidade de aprofundar a possibilidade de diálogo no sentido da melhorconstrução do conhecimento das relações do local e do território com a

sociedade e com o global.

No contexto do TEIAS-ESCOLA Manguinhos, o desafio da produção dialógicade conhecimento implica fortalecer os instrumentos para fazer o território

falar. Mas, para permitir essa fala, para que a voz do território realmente sefaça ouvir, será preciso construir e consolidar práticas de diálogo com osatores do território, com os formuladores de políticas, com a comunidade

acadêmica e com todos os setores sociais que, de uma forma ou de outra,produzem e reproduzem as condições de vida no território.

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Construção das Cidades e da Cidadania:perspectivas de um projeto de sociedade

Laura Tavares Ribeiro Soares 9

O tema da construção das cidades e da cidadania pode ser enfocado dediversas formas: urbanista, cultural etc., porém é interessante abordá-lo através

do viés do social da política pública na perspectiva de um projeto de sociedade,ou seja, desenvolver a análise sobre como construir políticas públicas em umprojeto de sociedade democrática.

Para começar essa análise, resulta fundamental lembrar a afirmação de

Antônio Gramsci de que não há a tal separação entre o Estado e a SociedadeCivil que os liberais defendem existir e sobre a qual constroem o projeto doliberalismo, reduzindo o papel social do Estado. Na perspectiva gramsciana,

uma sociedade democrática é um projeto de construção conjunta que nãopode prescindir do Estado, pois nenhum agente social é capaz de substituí-locomo ferramenta para a superação de desigualdades sociais e é aí que surgem

as políticas públicas.

As políticas públicas de saúde representam um bom exemplo paradesenvolver essa análise: na década de 1980, para mencionar um casorelacionado a áreas metropolitanas, um grupo de sanitaristas criou e trabalhou

na Baixada Fluminense naquilo que foi denominado Programa Especial deSaúde da Baixada (PESB). Na época, não eram formados Agentes Comunitáriosde Saúde, mas sim Visitadores Sanitários.

Inicialmente, os Visitadores Sanitários só tinham o segundo grau, ou seja,entravam sem formação direcionada ao Programa e, uma vez em atividade, iamsendo formados. Esse é um grande ponto de divergência com a atual categoria

Agente Comunitário, uma vez que este já entra formado como tal no programa,mas está condenado pelo resto da vida a ser agente comunitário e nada mais.

9 Este texto resulta da transcrição da fala da Profa Laura no seminário editado pelos organizadores.

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A iniciativa TEIAS-ESCOLA Manguinhos na ENSP tem o mérito de trazer àtona a noção e o debate do território. Quer dizer, tem o valor de retomar uma

questão conceitual, metodológica, que muda todo o enfoque. Tanto nas análisesquanto na formulação de políticas públicas, inclusive de saúde, a noção deterritório estava um pouco abandonada.

É bom lembrar que essa noção pertence à boa tradição da saúde coletiva. Sem-

pre é preciso revisitar a história, pois sem saber o passado não é possível construiro presente nem sonhar com o futuro. Então é preciso conhecer essa história.

A noção de território orientou a ideia dos distritos sanitários nos anos de

1980. Na época, o município do Rio de Janeiro contava com as ÁreasProgramáticas (APs), as quais tinham por base uma regionalização que permitiatrabalhar políticas públicas de saúde com regiões integradas.

No caso do Município do Rio de Janeiro, como em outras grandes cidades,

a regionalização era inframunicipal. Porém, em algumas regiões metropolitanas– como na Baixada Fluminense – trabalhou-se com modelos de discrição.Costuma-se afirmar que foi o programa Saúde da Família que reverteu tal

modelo, mas a Pesquisa Social Brasileira (PESB) já fazia a discrição de clienteladurante os anos de 1980.

A separação da clientela era feita não só por unidade, mas também por

equipes específicas. Assim, cada médico – clínico, ginecologista – tinha a sualista de clientes. O argumento para isso, pelo menos o relativo ao Programa, era:se a classe média tem isso, por que a população da Baixada não pode ter?

Na atualidade, as categorias do coletivo e da saúde coletiva têm sido

abandonadas. O coletivo encontra-se pulverizado em indivíduos, famílias ecomunidades. Aliás, comunidade é entendida tal como na mais antiga tradiçãode saúde comunitária dos Estados Unidos. O abandono da categoria “coletivo”

impede uma abordagem mais ampla da complexidade do tema saúde,sobretudo esse pensar da saúde em confrontação com o território.

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Todavia, se o coletivo foi fragmentado em indivíduo, família e comunidade,as políticas públicas de saúde não focam sequer a comunidade, limitando-se

à categoria “família”. Do ponto de vista da Saúde Coletiva, isto implica certoretrocesso tanto no plano analítico como no próprio planejamento e na imple-mentação da política de saúde.

É possível também perceber retrocessos em termos conceituais. Ultimamente,

por exemplo, a grande mídia nacional insiste em diferenciar a despesa dopreventivo e a do curativo na área da saúde. Não existe tal coisa. Os sanitaristaslutaram anos para superar essa falsa dicotomia e já demonstraram que, de

fato, há prevenção em todos os níveis de atenção à saúde. É falsa a premissade que a atenção primária previne as doenças e que a assistência médica ascura. Toda ação de saúde envolve prevenção, mas essa concepção não está

muito clara hoje.

Também tem sido abandonada a noção fundacional de Saúde Pública, tantodo ponto de vista analítico quanto a noção de Saúde Pública como prática.

No final da década de 1970, a vigilância epidemiológica tinha a tuberculose

e a hanseníase sob controle, contudo esses agravos recrudesceram, inclusive nascidades, desde o início dos anos de 1990. O modo de se fazer Saúde Públicamudou. Naquela época, a saúde pública se baseava em diagnóstico epidemiológico

na atenção básica. É preciso saber com quais problemas vai se lidar.

Voltando ao exemplo do PESB, detectou-se que a principal demanda dapopulação era a Urgência 24 horas. Com efeito, o perfil de morbimortalidade

mostrava que o principal problema daquela população era o trauma, mastrauma não se resolve com agente comunitário de saúde e sim comespecialidades básicas. Ou seja, é preciso discutir a resolutividade desse primeiro

nível de assistência da saúde. Observe-se, por exemplo, que uma criança serálogo derivada para a fila de emergência do hospital, se chegar hoje no postode saúde com o dedo mindinho quebrado, não havendo, em consequência,

resolutividade na atenção básica como assistência primária.

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De todo modo, o enfrentamento dos problemas de saúde — aliás, não sóde saúde, mas do social como um todo — passou a privilegiar o chamado

âmbito do local, abandonando-se a dimensão regional e a nacional também,ambas essenciais em um país como o Brasil.

Nesse contexto, o resgate da região, da integração territorial da intersetoriali-dade e das políticas públicas, como o ‘TEIAS-ESCOLA’ está trabalhando aqui, é

absolutamente fundamental. Se os programas sociais que ainda persistemforem fragmentados, não serão capazes de cumprir a missão central de umapolítica pública democrática, de uma política social, que é a de propiciar uma

dimensão de igualdade em um país tão desigual.

Os programas sociais territorializados que não se integrarem a outrosterritórios em uma perspectiva mais abrangente de política pública, não poderão

cumprir seus objetivos.

Não foi por acaso que as abordagens do ‘local’ entraram na moda, emespecial no período neoliberal, por meio de um verdadeiro bombardeioideológico, que invadiu corações e mentes. Foi assim que se impôs a ideia do

minimalismo no social para enfrentar a globalização no econômico. Ora, osbenefícios da globalização são para o grande capital. Do trabalho e da pobreza,que cada um cuide do seu como puder e, de preferência, com um Estado forte

para atender o setor financeiro e fraco para atender as questões sociais.

Se a categoria ‘local’ se mostra insuficiente, como enfrentar então a questãosocial nas cidades? Em primeiro lugar, os estudos de pobreza urbana e metropo-

litana devem recuperar a análise que conta com indicadores capazes de darconta das múltiplas dimensões da realidade social.

Atualmente, mensura-se pobreza pela renda e isso é outro retrocesso. Cabeaqui uma crítica aos programas de transferência de renda nesse país. Não é

plausível distinguir entre pobre e não-pobre em uma região na qual alguém,por exemplo, ganha alguns reais a mais do que o seu vizinho e passa a serconsiderado acima da linha de pobreza, mas continua morando com a mesma

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precariedade. A renda pode até possibilitar que um jovem morador de comunidadepobre tenha acesso ao mercado de bens de consumo, como, por exemplo, um

bom par de tênis, mas os indicadores continuarão a evidenciar que aprobabilidade de ser morto antes de chegar aos dezenove anos de idade éaltíssima. É essa a complexidade social que deve ser analisada de forma integrada

e abrangente, não apenas a pobreza medida em termos de renda.

A metropolização da pobreza vem sendo estudada há muito tempo porvários autores, que colocam que, além da questão da renda, é necessáriolevar em conta a acessibilidade aos serviços públicos e de infraestrutura social.

É precisamente a deterioração observada nesse acesso e, sobretudo, a faltaou a pulverização de políticas sociais nessas regiões que têm provocado econtribuído para o agravamento das desigualdades metropolitanas.

Até os anos de 1990, o citado programa do PESB era estadual. Posterior-mente foi proposta a sua municipalização, um retrocesso apoiado na lógicade descentralização das políticas públicas que resulta ser contraproducente,

ao menos em regiões metropolitanas, na luta contra as desigualdades sociais.A região metropolitana deve ser tratada como um conjunto supramunicipal.

Não é racional, em uma única região metropolitana, existir um sistema municipalde saúde que comporte todos os níveis de complexidade de atendimento. É

evidente que um sistema de saúde necessita ser planejado regionalmente.

A complexidade da questão social nas regiões de periferia urbana, emespecial nos países periféricos, como o Brasil, se expressa através da superpo-

sição de problemas novos e antigos, que se refletem no perfil de morbimor-talidade epidemiológica. Por exemplo, problemas antigos, como a tuberculosee a hanseníase, superpostos a novos problemas, como a violência e o trauma.

Pelo exposto é que uma política pública de saúde deve cuidar de ambos,

quer dizer, é preciso que haja a atenção básica e que tenha a emergência.Não é racional continuar a insistir em se apoiar em uma atenção primária

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não resolutiva, ao mesmo tempo em que se deriva todo o resto para o hospitalsem esse segundo plano.

Em resumo, seria possível dizer que há duas categorias engessando a

análise das cidades no caso da construção de políticas públicas de saúde:uma, é a questão da família como expressão do coletivo; e a outra, é aquestão do município como base territorial exclusiva.

Outro ponto que vale a pena examinar refere-se à ideia da construção dacidadania na perspectiva dos direitos. A Constituição brasileira é avançada epermite entender a cidadania como plena realização dos direitos, os quais

constituem dever do Estado. Dessa forma, não há como fugir da ideia daconstrução de políticas públicas verdadeiramente democráticas e públicas.Ou seja, é preciso garantir que serviços e bens públicos cheguem aos territórios

mais vulneráveis e o façam de forma universal, não discriminatória.

O SUS, por exemplo, é um sistema universal, que não estabelece nenhumtipo de cobrança diferenciada. Porém, ainda há precariedade na ofertaintegrada de todos os níveis de complexidade nos territórios mais miseráveis.

Como todos os outros serviços e bens públicos, o SUS, tem que ser adotadocomo universal, e essa universalização deve ser territorial, para se contrapor àpolítica focalizada que seleciona entre ricos e pobres.

Na região metropolitana do Rio de Janeiro, por exemplo, é possível identificar

perfeitamente as parcialidades territoriais, as manchas de pobreza no mapa.Isto deve servir de base para a integração das políticas sociais e das políticaspúblicas, para que realmente sejam não discriminatórias.

Em cada território, a política social deve ser totalmente integrada, inclusiveos programas de transferência de renda. Estes são precisamente bons exemplospara a análise de política social e territorialidade. Programas de transferência

de renda, como o Bolsa-Família, têm tido baixíssimo impacto nas regiõesmetropolitanas. Em câmbio, tiveram forte impacto na miserabilidade do Nortee do Nordeste. Em área urbana, uma bolsa de cento e vinte reais não garante

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que vá tirar as crianças da rua, pois elas conseguem juntar mais do que issoao trabalhar de flanelinha. A questão é, então, como se integra a política

pública em cada território.

Outra questão é que os projetos sociais deixem de ser emergenciais evenham a ter continuidade, permanência. Não pode mais deixar acontecerque sejam construídos projetos junto à população, os quais logo depois são

abandonados, desmontando-se tudo.

Neste sentido, qual é o padrão que vem sendo seguido para a área social?A resposta é: financiam-se projetos sociais, de preferência mediante editais,

ou seja, projetos que têm começo, meio e fim. Isto, na verdade, é a antipolíticapública, porque a política pública, por definição, tem continuidade no territórioe para a população.

Ao contrário do que se afirma, o efeito redistributivo dos gastos públicos

não está na sua focalização e sim na sua universalização. É através dauniversalização que realmente se redistribui.

Para finalizar, vale a pena refletir sobre o que seria um “projeto de

sociedade”. Por isso, é preciso voltar a chamar a atenção para essa perigosaseparação entre sociedade e Estado antes mencionada. Quer dizer, é como sea abstração “Sociedade Civil” realmente existisse. Nesse caso: o que seria isto

no Brasil? De acordo com a interpretação hegemônica, seria uma sociedadehomogênea, idônea, cheia de boas intenções, impoluta, eficiente e capaz —isso que é o mais grave — de dar conta, de resolver por si mesma os próprios

problemas, desde que o Estado não intervenha. De um lado, esse é conceitode sociedade civil que tem sido imposto. Em compensação, de outro lado,separado, está o Estado, que cumpre um papel opressor, interventor, que é

ineficiente e, ainda por cima, que é corrupto.

Essa visão antigramsciana da sociedade, que parte dessa separação formal,não conduz a uma boa análise da realidade, uma vez que não faz referênciaà hegemonia, ao poder, aos interesses contraditórios, isto é, não faz referência

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à luta de classes. Pior, a discussão em torno da luta de classes é vista comopoliticamente incorreta. Entretanto, nem por isso esses interesses contraditórios

deixam de estar dentro do Estado.

Também é falaz o argumento de que a corrupção está no Estado. A corrupçãoé da sociedade, pois não é atributo de indivíduos particulares. A corrupção éconsequência e não causa. Ela é consequência exatamente da privatização

do Estado pelos setores dominantes.

Todas essas teses hegemônicas são perigosas, porque têm consequênciasfunestas exatamente para quem está fora do jogo real de poder.

João Pedro Stédile, do Movimento dos Sem Terra (MST) no Rio Grande do

Sul, dizia:

“Eu não quero ficar falando do feijão com arroz e do dia adia, não; eu quero influenciar na política geral desse país,porque esse negócio de ficar trabalhando só para quem vaià cesta, não sei o que, estou fora!”.

Com efeito, as alternativas autogestionais que estão tão na moda — na forma

em que ‘autogestão’ se interpreta hoje — deixam as suas ações fora do jogoreal de poder. Ou seja, considera-se correto apregoar formas autogestionáriassempre que a riqueza, a propriedade e o próprio Estado permaneçam nas mãos

de sempre, sempre que não incomode nem mude o essencial.

Essa forma de autogestão, de participação comunitária, foi o neoliberalismoque fez a sociedade enfiar goela abaixo. Tais iniciativas consideradas exempla-res no alívio da pobreza são divulgadas por todos os organismos internacionais

e pela grande mídia. Mostram-se foto de mulheres com máquinas de costura,que podem estar tanto na África como em uma favela carioca. A receita é amesma. A mídia hegemônica apresenta essas inciativas como “experiências

bem sucedidas”.

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Acontece que essas experiências exemplares são, de fato, pedacinhos deuma colcha de retalhos. E ao se juntar esse monte de experiências “bem

sucedidas”, o resultado não é uma política social. O somatório dessesfragmentos não resulta em uma política pública, a qual precisa provocarimpacto, ter abrangência e, fundamentalmente, apresentar continuidade.

Hoje existe uma espécie de consenso em torno da afirmação pós-liberal e

moderna de que o indivíduo pobre deveria se sustentar, ou melhor, de quedeveria ser ‘empreendedor’. Passa-se a mensagem

Contudo, esse não é o critério aplicado às grandes empresas e às classesmais privilegiadas. A classe média, por exemplo, conta com subsídios e isençãofiscal no seguro saúde privado e no seguro previdência. Os demais setores

mais abastados continuam a ganhar incentivos e subsídios do estadosem receber a mesma condenação moral dada às ‘vergonhosas’ políticassociais ‘paternalistas’.

A rigor, essa ‘coisa’ do Estado verdadeiramente democrático ainda é umdesafio utópico. Veja-se o caso dos governos populares, comprometidos aomenos com causas populares, que foram eleitos na América Latina nos últimos

tempos. As limitações que enfrentaram não foram de governo, mas de Estadoe de sociedade, de tentar mudar certas maneiras de pensar em sociedadesque permanecem profundamente conservadoras. Haja vista o debate que

aconteceu nessa última campanha eleitoral; haja visto o enorme conservado-rismo, beirando o reacionário do Poder Judiciário brasileiro, que chegou aconsiderar ilegal, no início, o Orçamento Participativo no Rio Grande do Sul.

Lembre-se que para poder fazer a demarcação das terras indígenas no norte,foi preciso intervenção federal em um estado com aparato repressor. Querdizer, governo não é a mesma coisa que Estado e Sociedade.

“seja um empreendedor, ganhe a sua vida e não dependado Estado, porque isso é feio, isso é paternalismo”.

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A reconstrução democrática do Estado exige verdadeiro controle social.Um controle social que seja autônomo, fiscalizador, propositivo. Exatamente,

essa é a noção de controle social que foi substituída pela versão inteiramenteliberal e instrumental da participação comunitária, a qual, muitas vezes, édenominada “não governamental”, ou seja, as ONGs, que vêm cumprindo

papel substitutivo ao Estado.

Voltando de novo ao exemplo do PESB na Baixada Fluminense, o grandeBispo Dom Adriano Hipólito dizia a respeito:

“Parceria, professora, mas a responsabilidade é de vocês, é dogoverno, não é nossa, nós não podemos substituir o Estado”.

Concluindo, a transformação da realidade social só terá impacto por meiode verdadeiras políticas públicas da forma em que foram aqui categorizadas,incorporando as ações nos circuitos de cidadania e não nos circuitos produtivos.

Isso foi feito, em certa medida, pelo Ministério das Cidades, quando passou aatender preocupações que estavam abandonadas há muito: a questãohabitacional e a questão do saneamento.

Isto porque há uma forte tendência de que as pessoas — em especial, os

jovens — sejam incorporadas à sociedade não pela cidadania, mas pelaprodutividade. Isto se reflete na educação, que as prepara para o mercado,para a competitividade, como capital humano, mas não para a cidadania. É

preciso que a educação seja uma ferramenta para a emancipação do jovemcomo sujeito público.

Construir hoje espaços públicos nas cidades significa reconstruir os espaços

absolutamente privatizados na área urbana, significa levar o poder público ase exercer. A ausência de poder público nas favelas e nas regiões de periferiatem conduzido à anomia, à alienação religiosa. Por sua vez, o poder público

deve entrar em ação com as políticas sociais, uma vez que também é funestoao se exercer apenas como repressor e como poder de polícia. Não é qualquerpoder público, qualquer Estado, que transformará a realidade social no sentido

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dos direitos, mas sim um poder público democrático, com comitê gestor everdadeira participação cidadã.

A batalha do possível no cotidiano não pode nos afastar de uma perspectiva

de futuro nem de uma visão crítica sobre elementos do passado que insistemem permanecer e que estão nos impedindo de avançar. É preciso repensar omodelo atual da Saúde, que provocou essa reversão nas cidades, e refletir:

será que o grau de complexidade da morbimortalidade na cidade, urbana,comporta esse tipo de modelo de agente comunitário?

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Saúde, Civilização e Cidadania: a experiênciabrasileira em perspectiva histórica

Nísia Trindade Lima

O papel das políticas de saúde na formação das noções de cidadania ena construção dos Estados Nacionais tem sido crescentemente reconhecido,

ainda que nem sempre analisado a partir de perspectiva mais ampla. Predominaainda a visão da saúde como setor de conhecimento e de práticas espe-cializadas, por mais que se defenda a natureza abrangente dos fenômenos a

ela relacionados.

Algumas perguntas se fazem necessárias: é possível considerar a saúdecomo parte constitutiva e central do processo civilizador? Quais seriam as

implicações desse tipo de abordagem? A sociologia histórica pode oferecerrespostas a estas perguntas, ao analisar as relações entre sociedade, territórioe política e, dessa forma, discutir a importância da saúde no processo deconstrução dos Estados Nacionais. Também, a partir de algumas de suas

vertentes é possível debater a respeito da especificidade desse processo nocaso brasileiro.

Neste texto pretendo analisar a história da saúde como expressão e, ao

mesmo tempo, como parte constitutiva e ativa da história da sociedade. Comeste objetivo, organizei-o em duas etapas. Na primeira, apresento de maneirasucinta uma das principais contribuições teóricas no campo da sociologia

histórica: a análise do sociólogo Norbert Elias sobre o processo civilizador. Nasegunda, discuto a experiência brasileira de constituição da saúde como campoprivilegiado de ideias e de práticas sociais ao longo do século XX.

Nota sobre o processo civilizador e a contribuição de Norbert Elias

Segundo Norbert Elias (1990:24), o conceito de civilização expressa “aconsciência que o ocidente tem de si mesmo”, resumindo um julgamento quefazem as sociedades ocidentais de sua superioridade em relação às mais

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antigas ou às sociedades contemporâneas tidas como ‘primitivas’. Aoempreender o estudo de sua gênese, Elias traz importante contribuição para

que se relacione a posição dos intelectuais e o surgimento de ideologias deconstrução da nacionalidade.

A origem do termo civilização pode ser encontrada na França do séculoXVIII. De acordo com Elias (1990:60), o termo traz a marca da crítica fisiocrata,

em que a proposta consistia em orientar a política dos governantes no sentidode compreender as leis da civilização e, de alguma forma, poder dirigirracionalmente seu curso. A verdadeira civilização se situaria em um ciclo

entre a barbárie e a decadência, e o papel do governante esclarecido deveriaser o de dirigir e de corrigir a tendência à decadência gerada pela superabun-dância de dinheiro.

Na visão desses intelectuais reformistas, a incompletude caracterizava acondição social e, dessa forma, duas ideias estariam presentes no conceito decivilização. De um lado, ele se contrapunha a um estágio anterior a ser suplantado

– o da barbárie – e, de outro, significava não simplesmente um estado, mas umprocesso que implicava a eliminação do que era considerado bárbaro ouirracional nas condições vigentes. Opondo-se às penalidades legais, às restrições

impostas à burguesia ou às barreiras que impediam o desenvolvimento docomércio – “este processo civilizador devia seguir-se ao refinamento de maneirase à pacificação interna do país pelos reis” (ELIAS, 1990:62).

Com a ascensão da burguesia, tal conceito, de inspiração reformista e que

acentuava a ideia de processo, foi substituído pela noção de que estariaconcluído na sociedade francesa e, progressivamente, em outras sociedadeseuropeias. Tratava-se então de tornar civilizados os povos bárbaros e a palavra

civilização de aspiração burguesa transformou-se em uma espécie de “auto-imagem nacional” (ELIAS, 1990:64).

Na Alemanha, ao longo da segunda metade do século XVIII, o debate

assumiu outra feição com a contraposição dos conceitos de cultura e decivilização, expressando o processo mais demorado de consolidação da nação

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e de construção de um discurso próprio referido a essa consciência. SegundoElias, a oposição entre civilização e cultura na Alemanha foi formulada

inicialmente por Kant, que afirmava ser a ideia de moralidade parte da cultura,porém sua aplicação a aspectos visíveis de conduta apenas indicaria o processocivilizador (ELIAS, 1990:27).

Ao estudar a antítese entre cultura e civilização, Elias assinala a conotação

de artificialidade atribuída pela intelectualidade alemã à última palavra,identificando-a com os costumes e o culto à aparência que caracterizariam asociedade da corte. Para os alemães, o eixo da nacionalidade residia na

singularidade e na suposta autenticidade de sua experiência nacional, queemergia nos círculos externos à aristocracia. Não por acaso, os estudos sobrenacionalismo acentuam a matriz germânica do que se tem denominado

nacionalismo cultural, enfatizando que o conceito de cultura teria um apeloinevitável para os povos que se sentiram ameaçados pela moderna culturauniversalista (KOHN, 1955; OLIVEIRA, 1990).

Reportando-se ao movimento literário alemão que incluía Goethe, Herder,Klostock, Lessing, Schiller, entre outros autores, Elias observa as temáticascentradas, em geral, no desenraizamento da intelectualidade de classe média

e na crítica à sociedade de corte, tal como expressa a obra Werther, de Goethe.Nela são contrapostos, de um lado, temas como superficialidade e cerimônia,vistos como característicos da vida da corte e, de outro, vida interior, profundidade,

imersão em leituras inerentes à formação autêntica do intelectual (ELIAS, 1990:37).

O conceito francês de civilization e o alemão de kultur emergiram nasegunda metade do século XVIII, acompanhando, segundo Elias, odesenvolvimento oposto da burguesia e da intelligentsia, esta originária das

camadas médias na Alemanha e na França. De acordo com o autor:

Na Alemanha, a intelligentsia de classe média cheia deaspirações do século XVIII, formada em universidades quese especializavam em determinados assuntos, desenvolveuauto-expressão e cultura próprias nas artes e nas ciências.

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10 Em estudo sobre a interpretação de Antonio Gramsci acerca das relações entre protestantismo eidealismo na Alemanha, Paulo Arantes observa: “Se Hegel não disse, certamente poderia dizê-lo:com exceção de Lutero para os protestantes, que heróis poderíamos ter, nós que nunca fomosuma nação? Quem poderia ser nosso Teseu, que fundasse um Estado e lhe desse suas leis?“(ARANTES, 1992:49).

Na França, a burguesia já era desenvolvida e próspera emgrau inteiramente diferente. A emergente intelligentsia possuía,além da aristocracia, também um numeroso público burguês.A própria intelligentsia, como outras formações de classemédia foi absorvida pelo círculo da corte. (ELIAS, 1990:52)

Ambos os conceitos – cultura e civilização – começaram a se desenvolvercomo expressão de sentimentos e de ideais da intelligentsia de camada médiana segunda metade do século XVIII e, progressivamente, assumiram a feição

de uma ‘consciência nacional’. Enquanto civilização daria expressão a umatendência expansionista de grupos colonizadores, o conceito de cultura refletiriaa autoconsciência de uma nação que teve de reconstituir incessantemente

suas fronteiras e repetir a pergunta sobre a natureza de sua identidade: 10

“A orientação do conceito alemão de cultura com sua ten-dência à demarcação e ênfase em diferenças, e no detalha-mento entre grupos, corresponde a este processo histórico”(ELIAS, 1990:25).

Era esse universo de questões que estava em jogo quando ideias sobrecivilização emergiram na França durante o século XVIII, com a ascensão da

burguesia ao poder. Gradativamente, a inspiração reformista do conceito, quese voltava a uma discussão permanente, foi substituída por uma ideia desituação, ou seja, em certo ponto da história, determinada sociedade teria

alcançado a civilização e cabia agora levar esse processo àqueles que aindanão a haviam atingido. Em outras palavras, a ideia de civilização passou aservir de parâmetro de comparação e de projeto de poder no âmbito internacional.

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A discussão sobre como transformar o país em nação civilizada marcou oimaginário político no Brasil e um conjunto de propostas que se sucederam.

Nele sobressaíram as representações negativas acerca da sociedade, vistacom frequência como atrasada e resistente à modernização e ao progresso.

Saúde e civilização no Brasil

No Brasil, os estudos históricos voltados a temáticas de saúde têmprivilegiado a Primeira República (1889-1930) e a análise do papel da saúde

na construção da autoridade estatal sobre o território e na conformação deuma ideologia de nacionalidade, capaz de superar a imagem negativa referidaàs teses de inferioridade climática do país e racial da população brasileira

(CASTRO SANTOS, 1985; HOCHMAN, 1998; LIMA, 1999).

Outros estudos têm se voltado para as campanhas de combate às epidemiasnas cidades e às formas de resistência manifestadas pelas populações frenteàs intervenções médicas e urbanísticas, dentre as quais a Revolta da Vacina,

em 1904, que seria um evento exemplar.

A atenção para as epidemias nas cidades, como a de peste bubônica em1899, no porto de Santos, esteve na origem da criação, em 1900, das duas

principais instituições de pesquisa biomédica e saúde pública do país: o InstitutoSoroterápico Federal, transformado posteriormente em Instituto Oswaldo Cruz(1908) e Fundação Oswaldo Cruz (1970), no Rio de Janeiro, e o Instituto

Butantan, em São Paulo (BENCHIMOL e TEIXEIRA, 1993).

Nessas instituições, uma nova geração de médicos, formados segundo oparadigma da bacteriologia e influenciados pela pesquisa científica praticadana França e na Alemanha, começaria a exercer forte influência nas concepções

sobre as doenças transmissíveis e nas propostas de ações em saúde pública.Além de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, Adolpho Lutz, Arthur Neiva e VitalBrasil, entre outros, destacam-se na definição de rumos para a saúde pública

e na criação de instituições.

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Se o palco inicial das intervenções sanitárias e urbanas foi o Rio de Janeiro,então capital da República, e centros urbanos do Sudeste, particularmente

em São Paulo, logo ações semelhantes ocorreram em cidades de outras regiõesbrasileiras. Um ativo movimento de reforma sanitária emergiu no Brasil durantea Primeira República. Sob a liderança da nova geração de médicos higienistas,

formados sob a orientação dos novos conhecimentos e estilos de ciênciaancorados na bacteriologia, teve como foco inicial os principais portos ecentros urbanos. A partir da década de 1910, começou a ganhar força o

movimento pelo saneamento rural ou saneamento dos sertões, referência maisfrequente nos textos de época.

Os primeiros anos da República já haviam sido palco de um expressivomovimento de valorização do sertão, seja como espaço a ser incorporado ao

esforço civilizatório das elites políticas, seja como referência da autenticidadenacional. Datam desse período, importantes expedições ao interior, como asde Cândido Rondon, as da Comissão Geológica de São Paulo e a do astrônomo

Louis Cruls, em 1892, ao Planalto Central, visando à mudança da capital,bem como as expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz.

As primeiras viagens científicas promovidas por essa instituição ocorreram

quando ela já se consolidara como centro de pesquisa experimental. Inicialmentedestinaram-se ao desenvolvimento de trabalhos profiláticos, sobretudo decombate à malária, que acompanharam ações relacionadas às atividades

exportadoras, base da economia do país: construção de ferrovias; saneamentodos portos; estudos voltados ao desenvolvimento da extração da borracha naAmazônia. Na década de 1910, importantes viagens ocorreram por requisição

da Inspetoria de Obras Contra as Secas. Seu objetivo era realizar amplolevantamento das condições epidemiológicas e socioeconômicas das regiõespercorridas pelo rio São Francisco e de outras áreas do Nordeste e Centro-

Oeste brasileiros. Entre essas, a que alcançou maior repercussão foi a organizadapor Arthur Neiva e Belisário Penna, em 1912, que, ao lado do impacto dadescoberta da doença de Chagas, levaram o médico Miguel Pereira a proferir

a célebre frase “O Brasil é um imenso hospital.” (KROPF, 2009; SÁ, 2009).

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Por um lado, foi se delineando a imagem de um Brasil doente, questionando-se o discurso romântico a respeito do sertão como espaço saudável. A

repercussão do relatório deve também ser relacionada ao clima político eintelectual vivido com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, o que propiciouintenso debate sobre a questão nacional.

Por outro lado, o imaginário sobre o sertão e a ideia da existência de dois

países, o Brasil do litoral e o Brasil dos sertões, influenciavam sensivelmenteos projetos intelectuais do período. A tese do isolamento do sertanejo,sustentada por Euclides da Cunha, passou a ser qualificada como desamparo

dos sertanejos pelo poder público, como defenderam os participantes domovimento sanitarista da Primeira República. Desse abandono resultaria ograve quadro de doenças endêmicas existente no país. A doença generalizada

passou, então, a ser apontada como razão para o atraso nacional, permitindoque fossem revistas ideias sobre a inferioridade racial dos brasileiros.

A influência das ideias do movimento sanitarista pode ser aferida na

trajetória de Jeca Tatu, personagem símbolo dos pobres na literatura brasileira.Jeca Tatu foi concebido originalmente por Monteiro Lobato como um parasitada terra, marcado pela preguiça e pela inferioridade racial. Em contato com

as teses do movimento sanitarista durante a década de 1910, Lobato recriouo personagem como um brasileiro redimido pela higiene, a partir daquelemomento. A importância atribuída pelos historiadores ao movimento sanitarista

da Primeira República pode ser explicada pela transformação da saúde emquestão social e política – o grande obstáculo à civilização.

Tais ideias foram sintetizadas de modo criativo por J Carlos, na chargealusiva à conferência de Rui Barbosa: “A questão social e política no Brasil”:

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Essa capa de O malho, (publicada no ano de 1919), – magazine de grande

divulgação na época – expressava a crítica de um dos intelectuais e políticosde maior notoriedade na Primeira República à forma como se retratavam ospobres, sobretudo os trabalhadores rurais:

(Acervo da Casa de Rui Barbosa).

Capa de O malho. A charge expressa o impacto, em 1919, da famosaconferência de Rui Barbosa “A questão social e política no Brasil”

Se os pecos manda-chuvas deste sertão mal roçado, que sechama Brasil, o considerassem habitado, realmente, de umaraça de homens, evidentemente não teriam a petulância deo governar por meio de farsanterias... (...) Senhores, se éisso o que eles vêem, será isto, realmente o que nós somos?

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Não seria o povo brasileiro mais do que esse espécime docaboclo mal desasnado, que não se sabe ter de pé, nemmesmo se senta, conjunto de todos os estigmas da estupidez,cujo voto se compre com um rolete defumo, uma andainade sarjão e uma vez d’aguardente?

(Discurso de Rui Barbosa)

A passagem é também significativa, porque Rui Barbosa a pronuncia no

âmbito de uma campanha eleitoral. Seu discurso é considerado um marco demudança na visão do bacharel, do pensador liberal, em sua descoberta daquestão social no Brasil. Ao mesmo tempo era contestada a imagem de um

povo retratado com traços negativos, como incapaz de exercer a cidadaniapolítica. A conferência de Rui Barbosa exerce papel crucial na consagraçãode Monteiro Lobato, pois, como se sabe, Jeca passou a ser um ícone do brasileiro

doente, do brasileiro abandonado.

Vale destacar que ele foi tomado como ícone não só do analfabetismo edo atraso, mas também da impossibilidade do exercício do direito político devoto de forma autônoma. Preconceito que ainda hoje ecoa nas avaliações

sobre o comportamento eleitoral das classes populares.

Todavia, na citação de Rui Barbosa há outra categoria importante: sertão.À primeira vista, sertão é uma categoria espacial, do mesmo modo que território,

porém foi a categoria que marcou o contraponto com a ideia de civilizaçãoao longo do século XX e não só em suas primeiras décadas. Daí Rui Barbosase perguntar: “Vocês pensam que todo brasileiro é como esse personagem dosertão mal roçado que se chama Brasil?”

Sertão era todo espaço em que a civilização não chegava. A partir dadécada de 1910, em torno de movimentos intelectuais diversos no Brasil,colocou-se em questão a ideia de que o atraso estava ligado à inferioridade

racial do brasileiro. Este foi explicado por outras variáveis, tais como a ausênciade políticas públicas de saúde e de educação.

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É preciso lembrar também que a Constituição de 1891 instituiu a repúblicafederativa, na qual a saúde e a educação eram competência dos governos

estaduais. Uma das discussões em voga naquele momento era a necessidadede políticas de estado em nível central, para garantir a superação do que sevia como os grandes problemas do Brasil.

Entre os principais resultados do movimento sanitarista, destaca-se a criação

do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) em 1920, que foi dirigidoinicialmente por Carlos Chagas. A criação desse departamento foi o resultadode intenso processo de negociação política, que envolveu sanitaristas, governo

federal e poder legislativo. Em sua origem, o movimento defendia a criação deum ministério autônomo à semelhança de outros movimentos liderados porsanitaristas em países latino-americanos. A proposta de criação do ministério

esbarrou, contudo, em forte oposição de oligarquias rurais, que o apontavamcomo ameaça ao princípio da autonomia estadual (HOCHMAN, 1998).

Após a revolução de 1930, o aparato estatal em saúde começou a ganhar

efetivamente caráter nacional, ao mesmo tempo em que se diferenciaram doissetores: a saúde pública e a medicina previdenciária (OLIVEIRA & TEIXEIRA, 1986).

As décadas de 1930 e 1940 representaram um período decisivo peloestabelecimento da proteção social com base no conceito de cidadania regulada

pelo mundo das profissões (SANTOS, 1979).

As características da cidadania regulada implicaram a associação entreassistência médica previdenciária e trabalhadores urbanos e, ao mesmo tempo,

a ênfase nas ações de saúde pública como atividades voltadas para o mundorural. Um texto publicado em 1948 pelos sanitaristas Ernani Braga e MarcolinoCandau sintetiza com rara sensibilidade este fato:

No Brasil, especialmente nos últimos anos, observou-se, sobo controle do governo, o desenvolvimento de um extensoprograma de assistência médico-social compulsório para as

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classes assalariadas, programa esse que, apesar de vir atendera uma razoável parte de nossa população, não pode aindacogitar da grande massa constituída pelos habitantes dazona rural, os quais por não trabalharem em regime regularde emprego, não sendo portanto obrigados a contribuir paraas organizações de seguro médico-social, vêem-se, em suamaioria, totalmente desprovidos de qualquer tipo deassistência médico-sanitária, a não ser aqui e ali e assimmesmo muito mal, aquela que é prestada pelos serviçosoficiais de saúde e pelas instituições de caridade. (CANDAU& BRAGA, 1948:21)

A criação do Ministério da Saúde em 1953 foi precedida por longo processode negociações com início na década de 1940. No começo, mobilizou um

número restrito de atores, formado por médicos representados no Congresso enas Comissões de Saúde Pública na Câmara e no Senado, e por sanitaristasligados ao Departamento Nacional de Saúde e à Sociedade Brasileira de

Higiene, ampliando-se posteriormente com a incorporação ao debate e à arenadecisória de outros representantes partidários.

Em relação ao movimento sanitarista da Primeira República, a novidadeconsistiu principalmente na importância da política partidária, em decorrência

da formação de partidos nacionais após a redemocratização em 1946. Éinteressante notar que, apesar de o Ministério da Saúde ter mantido a estruturainstitucional do Departamento Nacional de Saúde quase inalterada, seguindo

a premissa de que a saúde pública deveria ter a área rural como locusprivilegiado de atuação, houve propostas dissonantes, especialmente em finsda década de 1940. Foi o caso da proposta de criação de um Ministério da

Saúde, Previdência e Assistência Social, embasada em diagnóstico dadistribuição desigual da oferta de serviços médicos nas áreas urbanas e rurais,além do caráter fragmentado e corporativo da Previdência Social. Segundo

essa perspectiva, a assistência médica deveria se submeter à lógica da saúdepública (FONSECA, 2007).

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O período da Segunda Guerra Mundial acarretou notável alteração napolítica externa do Brasil, com a progressiva aproximação aos Estados Unidos

da América do Norte. Sob o impacto do ataque japonês a Pearl Harbour,realizou-se a III Conferência de Ministros das Relações Exteriores das RepúblicasAmericanas no Rio de Janeiro, em 1942. No evento, recomendou-se a mobili-

zação de recursos dos países latino-americanos, tendo em vista a guerra e aadoção de medidas de saúde pública mediante acordos bilaterais. DessaConferência resultaram os acordos de Washington, dentre os quais o de saúde

e saneamento, que daria origem ao Serviço Especial de Saúde Pública (SESP),organismo que permaneceria vinculado ao governo norte-americano até 1960.

Concebido de início para promover o saneamento em regiões como aAmazônia e o vale do rio Doce, o SESP teria posteriormente, como principal

atividade, a implementação de um modelo baseado no estabelecimento deredes integradas de unidades de saúde, de modo a valorizar a cooperaçãocom os governos estaduais, o que contrastava com o modelo verticalizado

das campanhas de saúde pública (CAMPOS, 2006).

Nesse período persistia a noção de ‘sertão’ como espaço não civilizado, aqual teve grande continuidade ao longo da história do pensamento social

brasileiro na reflexão acerca da sociedade e dos pobres no Brasil. Esse termo,que seria em princípio uma representação geográfica, na verdade tinha forteconteúdo político, razão da diversidade de lugares em relação aos quais foi

utilizado: desde o interior de São Paulo, nas áreas de expansão do café, até osemiárido do nordeste, incluindo a Amazônia, “os sertões do Noroeste”,conforme expressão da época.

É possível encontrar o termo ‘sertão’, por exemplo, para fazer referência à

área do interior do estado do Rio de Janeiro e até mesmo para a periferia dacidade. Uma das frases mais fortes nesse sentido foi proferida pelo médicoAfrânio Peixoto, ao afirmar que o sertão no Brasil começaria depois da Avenida

Central no centro do Rio de Janeiro (hoje, Avenida Rio Branco), marco da

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remodelação urbana da cidade. Tudo que estivesse para além da Avenidaseria sertão (HOCHMAN, 1998).

Qual o sentido de trazer à discussão essas ideias?

O fato é que elas mantiveram continuidade bastante forte nas interpretaçõessobre o Brasil nos períodos que se seguiram. De alguma forma, até hoje elaspovoam o imaginário dos brasileiros. Nos anos de 1940, os próprios cientistas

sociais, que começavam a se organizar do ponto de vista acadêmico,estabeleciam um diálogo com o personagem Jeca Tatu e com a ideia dacoexistência de dois brasis e de sertão. Nessa relação, qual o lugar que a

saúde foi ocupando em diferentes momentos?

Em geral, as discussões sobre saúde ainda enfatizavam a ideia de elevar acivilização, de expandir o processo civilizatório. Contudo, a saúde passoutambém a ser associada à noção de direitos sociais, uma ideia que começou

a ser mais fortemente defendida a partir dos anos 50 do século passado.

Uma das mais importantes transformações ocorridas na sociedade brasileiradurante a segunda metade do século XX consistiu no processo de urbanização.

Ainda rural em 1960, o Brasil se tornara, duas décadas mais tarde, um país depopulação predominantemente urbana. Esse percentual, que era de 31,2%em 1940, passou a 44,7%, em 1960, e a 67,6%, em 1980, com sensível

aumento na velocidade da mudança na década de 1960, quando se deu aefetiva inclusão do país na faixa das nações urbanas (SANTOS, 1985).

Tal processo influenciou as condições ambientais e sociais das cidades emdecorrência de seu impacto na infraestrutura de serviços públicos e nas

condições de saúde, de trabalho e de habitação. Esse quadro suscitou debatessobre as políticas de saúde nas décadas de 1960 e de 1970, intensificando osestudos sobre pobreza urbana e suas relações com temáticas sanitárias. Com

ritmo e características próprias, outros países latino-americanos enfrentaramo mesmo dilema de promover desenvolvimento e garantir acesso a bens eserviços básicos. A ampliação na agenda de saúde e a ênfase na atenção

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primária podem ser percebidas nos debates travados nos mais diversos fórunsinternacionais e têm como marco a Conferência de Alma Ata, em 1978.

No plano político, a experiência de regimes autoritários marcaria por longos

períodos os países latino-americanos. De 1964 a 1985, o Brasil viveu sob aégide de governos militares que implementaram um modelo de Estado altamentecentralizado, além dos planos de desenvolvimento que trariam impacto

significativo para a estrutura econômica e social do país. Dentre as políticasde saúde, destacaram-se, em um primeiro momento, a campanha deerradicação da varíola (1966-1973) e a criação do Programa Nacional de

Imunizações (1973) (LIMA, 2002).

A estratégia de campanhas de vacinação não ocorreu sem suscitar umasérie de controvérsias e críticas por parte dos que ressaltavam que as atividades

de imunização deveriam ser integradas à atenção básica, centrada na rotinade serviços permanentes, em lugar de elas serem objeto de programas especiais.A identificação de contradições entre estratégias de campanha e o foco na

atenção primária à saúde não se constituiu em peculiaridade do sanitarismobrasileiro, encontrando-se presente nos fóruns internacionais organizados pelaOPAS/OMS. No âmbito desse organismo, um estudo independente, realizado

na década de 1990, concluiria pela possibilidade de superação de perspectivasdicotômicas entre atenção primária e campanhas de imunização, apontandoo impacto positivo da campanha de erradicação da poliomielite no

desenvolvimento dos serviços de assistência (LIMA, 2002).

Este ponto tem sido enfatizado em estudos recentes sobre a história daimunização no Brasil (TEMPORÃO, 2003).

Importante característica da saúde durante o regime militar foi o crescimento

do setor privado de assistência médica, sobretudo o hospitalar. A reformaprevidenciária de 1966, que criou o Instituto Nacional de Previdência Social(INPS), marcou o início da hegemonia da medicina previdenciária no sistema

brasileiro de atenção médica e tal expansão se deu por meio da contrataçãodo setor privado (OLIVEIRA & TEIXEIRA, 1986; MENICUCCI, 2007).

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A progressiva universalização da cobertura previdenciária e o aumentodos recursos destinados à atenção médica hospitalar alteraram o equilíbrio

entre receitas e despesas, gerando nova reforma no sistema previdenciário ede atenção à saúde. Em 1974 foi criado o Instituto Nacional de AssistênciaMédica da Previdência Social (INAMPS), que desvinculou a assistência médica

da concessão dos demais benefícios. No mesmo ano, a criação, do Fundo deApoio ao Desenvolvimento Social (FAS) favoreceu principalmente a expansãodos hospitais privados no Brasil, instalados nas regiões mais ricas do país

(BRAGA & PAULA, 1981; MENICUCCI, 2007).

O crescimento do setor hospitalar privado pode ser aferido na sistematiza-ção dos dados publicados de 1954 a 1992 pelos Anuários Estatísticos doIBGE a respeito da evolução do número de estabelecimentos com internação

e do número de leitos, considerando os setores público e privado (LIMA &VIACAVA, 2003).

A década de 1980 foi marcada por grave crise mundial, cujas consequências

em termos de desequilíbrios macroeconômicos, financeiros e de produtividadeatingiram a economia internacional. Em resposta a essa crise, verificou-seintenso processo de internacionalização dos mercados, dos sistemas produtivos

e da tendência à unificação monetária, cujo resultado foi a perda considerávelda autonomia dos Estados nacionais. A partir desse momento, os princípiosda focalização e da seletividade passaram a orientar a ação de organismos

como o Banco Mundial, contrapondo-se a teses desenvolvimentistas e dedefesa de proteção social universal. A reforma sanitária desenvolvida no Brasilno período da redemocratização tem sido apontada como uma política na

contracorrente dessa tendência de reforma setorial (LIMA et al., 2005;GIOVANELA et al., 2008).

A reforma sanitária brasileira teve na VIII Conferência Nacional de Saúdeum marco definitivo e se transformou de movimento em efetiva política

com a criação do Sistema Único de Saúde, em 1988, pela AssembleiaConstituinte. Foi gestada a partir de intensa mobilização social e de complexo

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processo de negociação política, que envolveu lideranças da área de saúdee de amplos movimentos sociais, além de parlamentares e do poder executivo

(ESCOREL, 1998).

Seus princípios – universalidade, integralidade, equidade e descentralização– orientam as ações em saúde. A proposta descentralizadora foi reforçadapela crítica ao padrão de proteção social construído pelos governos

autoritários: hipercentralizado, institucionalmente fragmentado e iníquo doponto de vista dos serviços e benefícios distribuídos.

No Brasil, a criação do Sistema Único de Saúde tem sido avaliada como a

mais bem-sucedida reforma da área social empreendida sob o novo regimedemocrático. Em comparação com projetos e movimentos sociais anteriores,ela traz a marca da incorporação de novos atores ao processo político e da

progressiva mudança da concepção que restringe a saúde a tema eminente-mente de especialistas. Muitos são os desafios que se colocam em seu processode implementação. Cabe indagar, por exemplo, até que ponto conduziu à

universalização do acesso da população e à efetiva mudança no modelo deatenção à saúde.

A perspectiva histórica pode contribuir para uma visão mais ampla e críticano que concerne às questões contemporâneas, impossíveis de serem dissociadas

da herança setorial, com a diferenciação entre assistência previdenciária esaúde pública, e do padrão de expansão da assistência médica e hospitalar.Impossível também ignorar a importância da saúde na história dos projetos

intelectuais e políticos voltados para a construção do Estado Nacional e dacidadania no Brasil.

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Complexidade dos Problemas Sócioambientais e os DesafiosEpistemológicos: o déficit democrático na realidade brasileira

Marcelo Firpo Porto

Pensar a respeito do tema dos desafios epistemológicos que existem emtorno das complexidades socioambientais não é tarefa fácil. A epistemologia

é um ramo da filosofia que tem a ver com o conhecimento, qual a sua naturezae como podemos pensar sua validade. A complexidade, por sua vez, estárelacionada ao fato de que a realidade muitas vezes possui múltiplas formas

de ser compreendida e depende de inúmeras áreas de conhecimento queatuam de maneira simultânea, em especial quando a realidade está relacionadaao mundo da vida e dos seres humanos.

Portanto, minha tarefa é falar de um assunto complexo e complicado, mas

é importante que isso seja feito para o melhor entendimento da temáticaambiental na questão saúde. Isto tem sido feito, por exemplo, no LaboratórioTerritorial de Manguinhos, um programa de pesquisa no qual estamos nos

propondo a construir conhecimento de forma compartilhada, de modo aincorporar as perspectivas da justiça ambiental, da ecologia política e daproposta de promoção da saúde emancipatória.

No debate contemporâneo sobre a saúde coletiva existem, em princípio, trêsquestões fundamentais, pelo menos, que envolvem o tema da promoção dasaúde: a questão ambiental, a questão social e a questão epistemológica, quer

dizer, a que se refere a produção de conhecimentos. Essas questões, obviamente,estão interligadas, porém vejo que, ainda que estejam sendo discutidas, porvezes ocorrem em um processo de perda de vitalidade epistemológica.

A questão social está relacionada à discussão de um assunto central: a

dimensão do território e da saúde. Essa questão pode ser integrada à ambientalna perspectiva do déficit democrático e da existência de desigualdadessocioespaciais. É o déficit democrático de sociedades como a brasileira que

permite a continuidade da reprodução social da desigualdade e das

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vulnerabilidades, apesar de alguns esforços e de melhorias pontuais detectadasao longo dos últimos anos no Brasil.

Neste contexto, é possível verificar que as políticas públicas podem até

avançar, mas os processos de produção e de reprodução das desigualdadescontinuam como um forte padrão mesmo diante de políticas públicaseventualmente bem intencionadas e, em consequência, permanecem

determinando a realidade de muitos territórios e dos processos saúde-doençade suas populações.

Um exemplo atual, que une a questão do déficit democrático à social e à

questão local e territorial da saúde, diz respeito ao caso de uma fábrica daThyssenKrupp, a CSA, uma grande siderúrgica recentemente inaugurada nobairro de Santa Cruz no Rio de Janeiro. A análise integrada dos problemas de

saúde e de ambiente nesse território incluiria também a dimensão dos processosglobais do poder, da economia e da política; dos circuitos centrais docapitalismo mundial e, ao mesmo tempo, dos circuitos periféricos do

capitalismo, que apresentam eventualmente características perversas, aindapresentes no Brasil.

O caso da CSA é bastante complexo do ponto de vista social, ambiental ede saúde, bem como envolve fortes interesses econômicos e políticos. Houve

um movimento de demanda da população local, em especial dos pescadores,pelo qual se denunciava uma série de situações relacionadas à perda dascondições de vida, à perda das condições de pesca e à violência, às ameaças

que se iniciaram no mesmo momento em que os problemas se instauraram.Por exemplo, algumas casas racharam durante a construção da fábrica, alémde os trens da empresa funcionarem de madrugada.

Porém, o que mais chamou a atenção teve lugar especificamente no iníciodas operações da siderúrgica, quando uma falha técnica acarretou umproblema sério de poluição atmosférica. As pessoas que moravam e circulavam

próximas à usina siderúrgica relataram que aquilo parecia um trágico bailede carnaval, pois a poeira metálica se assemelhava a uma chuva de purpurina.

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Contudo, não era brincadeira de carnaval e sim poluição de particuladosatmosféricos, os quais produzem problemas de saúde. Muitas pessoas, em

especial crianças, começaram a apresentar uma série de doenças de pele, dosolhos e problemas respiratórios. O mesmo aconteceu com pessoas idosas emais sensíveis.

Na visita feita em setembro de 2010 por um grupo de investigação articula-

do a várias organizações – e eu estava como membro da Rede Brasileira deJustiça Ambiental –, as queixas da população foram ouvidas em praça pública.Essas denúncias tiveram lugar em uma espécie de sessão de epidemiologia

popular, um tipo de atividade participativa que atualmente está totalmenteabandonada pelos pesquisadores da saúde pública, por considerarem quedevem se isolar do contato direto com a população para fazer pesquisa

científica, visando a serem mais “neutros e objetivos”.

Uma pessoa, depois de fazer sua denúncia, começou a receber uma sériede telefonemas anônimos com ameaças de morte. A situação complicou-se

demais quando dois indivíduos jogaram gasolina em cima do carro da famíliaà noite. O denunciante ameaçado foi convidado a entrar no programa deproteção às testemunhas, mas se recusou a dar continuidade às denúncias

apesar da garantia de proteção pessoal devido a seus parentes continuarema morar na mesma comunidade. Com medo do que poderia vir a acontecercom sua família, o denunciante acabou por sair de sua casa durante aquele

tempo, como se fosse um fugitivo.

É possível citar dezenas e centenas de exemplos similares ao que aconteceuna periferia de uma das principais cidades do país. Isto pode estar ocorrendona Amazônia, na fronteira do agronegócio com a reforma agrária e até em

São Paulo. Em todos os casos, os poderes locais se articulam com a falta derespeito aos direitos – que tem a ver com o que designei antes como déficitdemocrático – das populações excluídas: pobres, trabalhadores, pescadores,

agricultores, extrativistas, indígenas, quilombolas, moradores de favelas,trabalhadores e sindicalistas, dentre outros grupos vulneráveis que buscam

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lutar por seus direitos, por sua saúde. Ou seja, existe um déficit democrático,tanto nas cidades quanto no campo e nas florestas, que é central para entender

os problemas atuais do país.

Por sua vez, também é preciso analisar outra questão, a da pobreza, mas deforma diferente do que muitos fazem. É preciso rediscutir de maneira profundao sentido de pobreza e as várias pobrezas das aparentes riquezas do mundo

capitalista e consumista moderno. Cada vez mais podemos enxergar a pobrezana riqueza material que é produzida e ostentada de forma alienada eindividualista. No entanto, a história da humanidade revela inúmeros casos de

pessoas e de situações de pobreza material que conformam exemplos morais.

Nessa perspectiva, poder-se-ia dizer que existe hoje uma forma extrema-mente pobre no sentido moral de se produzir conhecimento. Essa pobreza

epistemológica se manifesta não apenas em seu aspecto ético, mas tambémno sentido mais técnico: a forma em que o conhecimento está sendo produzidopode ser pobre quando exclui aspectos fundamentais para se compreender o

problema e as necessidades das pessoas envolvidas. Ou seja, representa umreducionismo tanto ético quanto científico, ao eliminar a complexidade ou asmúltiplas dimensões do problema. A pobreza ou cegueira epistemológica

aparece quando a análise científica não permite ver as questões fundamentaisque envolvem os fenômenos sociais estudados, os quais são complexos, peloque deveriam receber abordagens integradas e assumir diferentes perspectivas.

Essa é uma questão fundamental para entendermos os limites de certo tipode conhecimento científico.

Maturana e Varela – dois grandes biólogos e epistemólogos que escreveramum belo livro intitulado “A Árvore do Conhecimento” – afirmam que toda

forma de ver é, simultaneamente, uma forma de não ver. Todo ser humanosempre ‘enxerga’ através de sua cultura, de sua história coletiva e individual,vê a si próprio e ao mundo através da experiência cognitiva e dos valores e, se

faz parte de uma comunidade científica, de seus paradigmas. Contudo, oponto a destacar de certo tipo de ciência é quando o que se deixa de ver

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empobrece profundamente as formas de se entender determinadas questões,que são fundamentais nos problemas de saúde e do meio ambiente. Um problema

desse ‘entender’ é o de não se sensibilizar pelo sofrimento e pela injustiça.

Muitas vezes, quando entra em pauta a problemática ambiental e dasustentabilidade em sociedades com desigualdades marcantes, o enfrentamentoda pobreza – material, política e epistemológica – aparenta adotar uma

espécie de política de avestruz, pois muitos parecem que não querem verquestões fundamentais. Assim, por exemplo, há quem proponha que, para sefazer frente à vulnerabilidade socioeconômica diante dos efeitos das mudanças

climáticas no Brasil, seria preciso incrementar o crescimento econômico, adistribuição de renda e as formas de consumo, sem ver que isso intensificaria,por sua vez, os problemas de sustentabilidade e de mudanças climáticas que

se estava pretendendo enfrentar.

Há uma metodologia chamada Pegada Ecológica – um tanto complicadae criticada por vários motivos –, mas que resulta interessante para dimensionar

quantos planetas Terra seriam necessários ao sustento de modos de vidaespecíficos, no caso de toda a população mundial vir a desfrutar do modo devida avaliado. De certa maneira, essa metodologia contribui para elevar a

consciência ecológica, mas é preciso ampliar essa visão com a dimensãosocial e a da justiça, para que sirva no enfrentamento do déficit democrático.Portanto, é fundamental refletir sobre a questão ambiental em uma perspectiva

democrática, que inclua a noção de desenvolvimento econômico comsustentabilidade e justiça, e isto é um desafio para as várias vertentes daeconomia política, inclusive as que vêm fazendo uma releitura marxista do

estágio atual do capitalismo, assumindo simultaneamente a crise ambiental ea democrática.

Os riscos globais, como é o caso das mudanças climáticas, estão sendoreconhecidos cada vez mais em políticas públicas internacionais, que, junto

com a poluição transfronteiriça dos riscos químicos, tornam o problemaambiental cada vez mais mundializado. A noção de sustentabilidade é elemento

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central que deve ser incorporado à noção de desenvolvimento econômico e asua busca, porém não na visão restrita do mercado, com seu discurso limitado

apenas à gestão ambiental, à ecoeficiência e às tecnologias limpas. Ou seja,não desde a visão hegemônica, que ofusca a questão realmente central: ademocrática e, com ela, a possibilidade de se pensar de forma própria o

sentido de desenvolvimento e os sentidos de viver em sociedade. Até porquepodemos ter energias ‘limpas’ que são socialmente injustas.

A ideia de que a gestão ambiental resolverá a questão ambiental éhegemônica e abrangente, inclusive em boa parcela da comunidade crítica

de esquerda no Brasil e no exterior. Essa ideia reproduz o pensamento de quea questão ambiental será resolvida pelo avanço da ciência e da tecnologia,assim como o ponto de vista de que todos somos responsáveis pela crise

ambiental tanto na sua geração como na sua solução, quando, na verdade,esta é produzida de forma desigual e gera impactos dessemelhantes.

Em resumo, é impossível acreditar em uma produção de conhecimentos

que deixe de abordar os problemas de forma integrada, que não incorpore adimensão da complexidade, mas que, principalmente, não incorpore a questãodo déficit democrático como elemento central de análise no campo da saúde

coletiva, culminando na questão central do desenvolvimento e da sustenta-bilidade ambiental.

Não é difícil conferir que há uma crescente produção de conhecimentoscada vez mais especializados no campo acadêmico brasileiro da saúde coletiva,

e que a saúde coletiva no Brasil se torna cada vez mais uma saúde públicainternacional, com seus parâmetros de produtividade academicista (o queimporta é produzir artigos em quantidade, ainda que não contribuam para

transformar a realidade) e de adesão à lógica da Organização Mundial deSaúde, a qual não incorpora hegemonicamente questões centrais da demo-cracia, da cultura e do enfrentamento das desigualdades nos fenômenos

socioambientais e de saúde global que estão sendo produzidos.

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Em relação à questão local, tal como foi colocado pela Dra. Laura Tavares,há uma visão empobrecedora e ideologicamente perversa do localismo e do

comunitarismo da saúde comunitária. No entanto, ao mesmo tempo, dianteda complexidade da sociedade moderna, é impossível não pensar a dimensãolocal-global como estratégica na produção social, como determinante central

na vida das pessoas e dos territórios neste momento do capitalismo globalizado.Ao mesmo tempo, não é mais possível falar de grandes fenômenos globaissem entrar na dimensão concreta do cotidiano, do território, do lugar em que

as relações humanas ocorrem.

Hoje em dia não existem problemas ambientais puros, pois todos os queexistem são, em alguma medida, problemas socioambientais. Qualquerecossistema do planeta, por mais isolado que pareça, pode ser afetado por

riscos ecológicos globais e, ao mesmo tempo, esses riscos são cada vez maiscomplexos, envolvendo escalas espaciais e temporais cada vez mais amplas.

Do ponto de vista das escalas temporais é interessante essa ideia do tempo

histórico, por exemplo, do Fernand Braudel, ou a do tempo curto (evento), oua da conjuntura (oscilações cíclicas) e a do tempo histórico de longa duração(estrutura). Um dos teóricos das catástrofes, entre os filósofos franceses da

modernidade, Paul Virilio, já defendia há muito tempo que a modernidadecomprime o tempo. Esse autor afirmava que os acidentes na modernidadeestão relacionados à aceleração da história e da realidade, quer dizer, a mesma

realidade da invenção industrial e tecnológica é também a realidade dainvenção das suas catástrofes e dos seus acidentes. Virilio também se arriscaum pouco ao dizer que, na modernidade, a lógica aristotélica da substância

se inverte, porque cada vez mais acidentes fazem parte da substância. É, decerta forma, a materialização histórica do dito popular “a pressa é inimiga daperfeição”.

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FOTO 1

Em tempos de precisão científica, é curioso que vivamos cada vez maisdesastres produzidos pelo próprio ser humano. Em outras palavras, a invenção

tecnológica em alta velocidade é a invenção do acidente e do desastre, quese transformam em substância da modernidade, nas nossas tragédias e nascrises globais. No campo ambiental, isso ocorre em função da enorme e

crescente quantidade e gravidade de riscos ambientais e tecnológicos, dosproblemas ambientais complexos que produzem desastres sistêmicos tantoem nível local quanto (cada vez mais) em nível global, produzindo os chamados

riscos ecológicos globais, como as mudanças globais.

É interessante trabalhar o conceito de ‘vulnerabilidade’ a partir das imagensde desastres e acidentes. A Foto 1 mostra a situação depois de uma enchenteem Pernambuco; a Foto 2 mostra a população negra e pobre da cidade de

Nova Orleans/EUA por ocasião do furacão Katrina, em 2005.

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A Foto 3 não é, como parece, um campo de concentração nazista, masregistra um amontoado de mortos do principal acidente industrial da era

moderna, que aconteceu em uma fábrica de agrotóxicos em Bhopal, Índia,no ano de 1984, o qual matou de imediato duas mil e quinhentas pessoas nahora do desastre, contudo supõe-se que, até o final da década de 1990, cerca

de vinte mil pessoas tenham morrido.

FOTO 3

FOTO 2

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FOTO 4

Finalmente, a Foto 4 mostra o que sobrou de Vila Socó, em Cubatão/SP, em1984. Moradores da favela que cresceu naquela região armazenavam gasolina,

a qual se espalhava a partir do vazamento de um gasoduto da Petrobrás.Houve um incêndio que deixou o número oficial de noventa e oito mortos, maso Ministério Público, em colaboração com estudos de técnicos da Universidade

de São Paulo (USP), estima entre seiscentas e setecentas vítimas fatais.

Nestas fotos observa-se, de forma direta, a maneira como a vulnerabilidade

está associada à falta dos direitos, ao déficit democrático em âmbito local.No caso de Vila Socó, a gravidade foi tal que pessoas morreram, mas sequerforam reconhecidas como falecidas, uma vez que se ignorava a sua existência

como cidadãos quando eram vivas.

Para incorporar questões e problemas socioambientais à análise social epara poder entendê-los dentro da saúde pública e da saúde coletiva, é preciso

revisitar algumas abordagens de produção de conhecimento. A primeira delasdiz respeito à dimensão da Epistemologia Política, no sentido da superaçãodos limites da ciência normal, conceito desenvolvido por Thomas Kuhn, autor

do livro “A Estrutura das Revoluções Científicas”.

Com o objetivo de entender e enfrentar problemas complexos, não podemosnos limitar a percepções reducionistas de especialistas, pois é necessário teruma visão da complexidade, uma produção compartilhada de conhecimentos

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através de comunidades ampliadas de pares (e não apenas de especialistas).Também é preciso explicitar e analisar de forma central as incertezas e os

valores que se encontram em jogo. Ou seja, uma epistemologia políticareconhece a impossibilidade de a ciência normal dar respostas aos problemassocioambientais complexos da modernidade em diferentes contextos. É nesta

dimensão que emerge a antes mencionada contradição do desenvolvimentosustentável, quer dizer, aquela situação em que, uma vez reconhecido oproblema, se aplica uma receita que vai justamente em direção contrária ao

seu enfrentamento.

Assim, para resolver os problemas da complexidade, estimulam-se formasde produção acadêmica cada vez mais especializadas e mais fragmentadas.Por isso que Funtowicz e Ravetz, autores que trabalham epistemologicamente

os riscos ambientais através da proposta da Ciência Pós-Normal, defendemque a ciência e a tecnologia ajudaram a configurar o atual quadro de crisesglobais contemporâneas, mas elas não nos ajudarão a sair do quadro em que

nos encontramos.

Apesar do discurso oficial contrário, o campo científico continua aconsolidar uma forma de produção de conhecimentos que separa fato e valor,

sujeito e objeto e se considera neutra diante dos problemas. Todo esseprodutivismo também no âmbito acadêmico caminha no sentido da formaçãode grupos individualistas, que competem entre si através de uma meritocracia

deslocada dos problemas reais da vida das pessoas.

Efetivamente, há um modelo de ciência que surgiu e cresceu no capitalismoe na modernidade, o qual funciona muito bem para interesses de regulação,mas não consegue fornecer subsídios a uma prática emancipatória, inclusive

porque, em sua ‘neutralidade’, se abstém de considerar questões éticas emorais fundamentais, o que contribui para produzir uma ciência alienada,alvo fácil dos fortes interesses econômicos e políticos, que produzem inúmeros

conflitos de interesse na produção científica moderna. Isto é, o modelohegemônico de ciência não articula as experiências do cotidiano e as lutas de

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resistência das diferentes populações em direção a transformações mais efetivasda própria sociedade.

Uma segunda perspectiva de interesse para o campo da saúde coletiva

diz respeito à incorporação das chamadas abordagens ecossistêmicas de saúde.Trata-se de uma discussão que incorpora a complexidade e que busca aarticulação interdisciplinar ou transdisciplinar tanto para o diagnóstico de

problemas socioambientais quanto para a construção – com intensaparticipação comunitária – de políticas públicas que visem à sustentabilidadee à solução de problemas de saúde.

A terceira perspectiva está relacionada ao conceito de território, que temsustentado, a partir da geografia política e das ciências sociais, abordagensintegradas para entender o lugar e suas vozes em um mundo crescentemente

globalizado e desterritorializado. Neste sentido, existem contribuiçõesimportantes das ciências sociais que vêm sendo trabalhadas e incorporadas,além, obviamente, do Milton Santos. Boaventura de Souza Santos, por exemplo,

tem trabalhado com o conceito de ecologia de saberes, com a discussão deuma epistemologia da emergência ou da visão, em oposição a umaepistemologia da cegueira e do ocultamento, que ignora e despreza todo

conhecimento não passível de controle. Eu diria que, em boa parte, essa cegueiraemancipatória é uma das marcas da ciência normal, regulatória e fragmentada,que tende a instrumentalizar seus objetos, inclusive a vida humana e a não

humana, em lugar de contemplá-la e de contribuir para formas de expressãomais belas e dignas.

Existe ainda outra dimensão – também dentro da epistemologia política– que trabalha com um elemento central para a produção de conhecimento:

o papel das incertezas e da ignorância, e isso tem muito a ver com o feliznome dado a este evento do TEIAS-ESCOLA: Todos somos aprendizes.

Um dos aspectos críticos da ciência normal das especialidades é que esta

tende a se afirmar e explicitar mais por meio de suas certezas e pretensosnúmeros, que, com seu ar de objetividade, acabam por justificar aparentes

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verdades, do que em reconhecer as incertezas e ignorâncias associadas aosvários fenômenos que analisa. Fenômenos que possuem incertezas mais

elevadas quanto maior for a sua complexidade. Quanto maior for a complexida-de e a indeterminância em relação à causa-efeito dos fenômenos, maior seráa dificuldade de se prever, de fato, o que acontecerá no futuro. Mas a pior das

ignorâncias é aquela que ignora a própria ignorância, ou seja, que não assumeuma prudente humildade diante das incertezas em jogo.

Finalmente, gostaria de mencionar uma perspectiva que diz respeito aosdiálogos entre a Economia Ecológica (em lugar da Economia Ambiental) e da

Ecologia Política (em lugar da Economia Política). Esta perspectiva traz críticasfundamentais à noção de desenvolvimento e de progresso, em uma visão quepermite a construção de alternativas mais próximas à democracia, aos direitos

e à vida das pessoas. Isto inclui uma articulação com os movimentos porjustiça ambiental, dos direitos humanos e da discussão do modelo dedesenvolvimento na transição para formas mais justas e sustentáveis. Essas

perspectivas da ecologia política e da justiça ambiental se contrapõem aoambientalismo conservacionista, bem como à visão de eco-eficiência que sebaseia em uma visão tecnoburocrática aceita, muitas vezes, passivamente

pela própria saúde coletiva.

De fato, dentro do ambientalismo nem tudo é a mesma coisa, assim comonão podemos considerar de forma similar organizações da sociedade civil.

Existem perspectivas ambientalistas bastante conservadoras e outras, comvisões um pouco mais modernas, mas algo tecnocráticas e baseadas em umagestão ambiental ligada ao mercado – ecoeficiência – com conceitos e

ferramentas ‘naturais’ e universais, ou seja, um modelo que deveria serincorporado independente do campo ideológico, da disputa política e dosvalores em jogo.

Considero importante que essa discussão seja trazida para a saúde coletiva,

para que o campo acadêmico aprenda a falar de meio ambiente com a

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“O que é meio ambiente? É o ambiente dividido ao meio (…)O ambiente é do lado de cá e do lado de lá. Do lado de láestá a polícia que não mata e não bate, do lado de lá está acidade bonita, do lado de lá está o saneamento. Já do lado decá está a fábrica que fede, do lado de cá está a polícia queentra e bate e mata, do lado de cá estamos nós”.

Essa fala é uma aula de justiça ambiental em uma tentativa de se produzirconhecimento de forma compartilhada. Quer dizer, é quando o pesquisadorse dispõe a entender, conversar, se sensibilizar e ouvir de corpo e alma os

relatos do cotidiano das pessoas, pensando de modo conjunto as estratégiasde entendimento da vida cotidiana em visão também articulada, com entendi-mento crítico da sociedade.

Isso tem a ver com o conceito de território que mencionamos antes. A

geografia política busca entender e ressignificar o lugar a partir de novasperspectivas, que incluem o contexto, os interesses, as disputas, mas, acima detudo, as vozes legítimas das pessoas que vivem, sofrem e transformam o

lugar. Ou seja, não é possível entender o território exclusivamente a partir dalógica da saúde, da educação e do meio ambiente, das políticas públicas e doEstado, em especial quando este se encontra a serviço do mercado, das fortes

corporações que influenciam grupos políticos e decisões de cúpula. É preciso,portanto, entender as possibilidades de reconstrução desse lugar medianteoutras dinâmicas, inclusive na relação com o Estado, e com políticas públicas

que sejam mais democráticas, mais participativas.

Na discussão do território, a justiça ambiental busca, de forma central,realizar uma crítica da noção de desenvolvimento, ao integrar questões de

justiça e de direitos humanos com as de sustentabilidade ambiental. O Mapada Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil é um exemplo que busca tornarpúblicos inúmeros casos: atualmente são quase trezentos e cinquenta casos

mesma sabedoria que nos mostrou uma senhora, moradora de Manguinhos,quem, em uma entrevista disse:

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de conflito no país. No mapa – criado pela cooperação entre a Fiocruz e aFASE, uma ONG importante no movimento por justiça ambiental no país –

evidencia-se que a maioria das situações de injustiça ambiental com impactona saúde no Brasil continua ocorrendo não nas cidades, mas nas regiões deexpansão da fronteira capitalista nos campos e nas florestas.

Tais fatos estão relacionados à inserção do Brasil no capitalismo globalizado

internacional, em um modelo de comércio internacional que é necessariamenteinjusto pela forma como se dá nos dias de hoje. Ou seja, a expansão doagronegócio, a expansão da mineração, da indústria do alumínio, da siderurgia

e aço para exportação, a construção das infraestruturas da energia, datransposição do São Francisco, das grandes hidroelétricas de Belo Monte,todas essas são situações que geram inúmeros impactos ambientais e ferem

simultaneamente vários direitos fundamentais, inclusive o da saúde.

Alguns exemplos mostram que mesmo os projetos que possam parecersustentáveis, são capazes, ao mesmo tempo, de ser profundamente injustos.

Esse é o caso – também presente no Mapa – da construção de turbinaseólicas no litoral do estado de Ceará. Essa iniciativa – relacionada à produçãode energia ‘limpa’ – vem gerando, por vezes, verdadeiras desestruturações no

território, afetando as populações ribeirinhas tradicionais daquela região,incluindo um incremento (ou surgimento) da prostituição e da violência nosterritórios onde são iniciadas. Esses processos, em geral, vão em direção a

formas de desterritorialização e de transformação desses territórios por partedos que não escutam, não ouvem e, acima de tudo, violentam as populaçõesque vivem nesses lugares.

O que isso tem a ver com as cidades, com os territórios urbanos? Tem a ver

no sentido de que, na construção da sua agenda, a cidade não pode pensarseu futuro sem discutir, de um lado, a questão da sustentabilidade ambientalmais ampla, mas também sem debater, por outro lado, as questões da justiça

e do déficit democrático na formação das suas fragmentações, das suasdesigualdades, dos seus guetos, dos seus territórios de exclusão. De certa forma,

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a desigualdade nos campos e nas florestas se reflete nas desigualdadesdas cidades.

O movimento por justiça ambiental nos EUA coloca a existência de “zonas

de sacrifício”: favelas, áreas sem saneamento, que são simultaneamente áreasde proximidade dos riscos ambientais, das fábricas, dos lixões, das áreas deenchente sem assistência, mas também da falta de direitos, das práticas de

discriminação, de racismo.

É lamentável que o tema do racismo ainda não esteja presente no campoda saúde coletiva, revigorando o entendimento das desigualdades e do déficit

democrático no país, ainda que seja necessário diferenciar nossa realidadedaquela de países como os Estados Unidos e a África do Sul. Negar a questãodo racismo, simplesmente pelo fato de que raça não é conceito científico, é

negar toda a movimentação de afirmação de populações não só negras,como também indígenas, quilombolas, extrativistas, populações agrárias,nordestinos, e isso é assunto que envolve uma dimensão histórica da injustiça

ainda central no Brasil de hoje.

Recentemente presenciei um exemplo dessa discriminação, dessa epistemo-logia da cegueira, ao ouvir um importante acadêmico brasileiro, em tom dezombaria, dizer que certas formas de ambientalismo não poderiam desprezar

as possibilidades de crescimento econômico da região, nem se basear em for-mas de proteção das árvores que colocassem as pessoas sentadas em frentea elas para protegê-las.

Ora, é conhecida a importância das árvores na tradição espiritual de váriosgrupos indígenas, assim como eram os búfalos para etnias na América doNorte. A destruição de búfalos e de árvores significa mais que degradação

ambiental; pode significar a destruição da própria cultura, do próprio sentidode existência desses grupos. Ainda é comum escutar discursos ‘eruditos’ quefalam da natureza de forma totalmente utilitarista, desrespeitando elementos

centrais da cultura tradicional dos povos que vivem e dependem da natureza.

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Se um pesquisador pretende dialogar, por exemplo, com povos das florestas,tem que criar um campo dialógico que lhe permita realizar críticas a noções

como qualidade de vida em seu sentido utilitarista e mercadológico, queimpulsiona inclusive em boa parte as políticas de saúde e de promoção dasaúde disseminadas pela Organização Mundial da Saúde e, eventualmente,

por várias instituições de saúde pública no Brasil, sem muitas exceções.

Para podermos pensar em processos dialógicos e em alternativas compar-tilhadas, é preciso incorporar uma discussão que vem acontecendo no campodos fóruns sociais mundiais, por exemplo, com o conceito de ‘bem viver’. Esse

conceito, advindo da experiência de povos indígenas, faz a crítica ao instrumen-talismo, ou incorpora o próprio sentido do viver no entendimento da relação danatureza, do próprio sentido da produção da saúde relacionada à solidariedade,

às formas de ciclos de vida virtuosos, ao sentido de felicidade, à visão defuturo, à espiritualidade e à pluralidade de possibilidades culturais que respeitemessas perspectivas. É conceito que vem sendo incorporado inclusive às recentes

reformas constitucionais de países como o Equador e a Bolívia.

Em resumo, a agenda da cidade tem que trabalhar fundamentalmente odéficit democrático e pensar as relações entre o local e global, vislumbrando

alternativas de cidades democráticas inclusivas, trazendo e integrando agendas,como a questão da saúde e do saneamento, da moradia saudável, do acessoà saúde e ao Sistema de Saúde como questão fundamental de direitos humanos

e de cidadania. Tudo isso, pensando nas possibilidades de produção deconhecimento que seja não apenas regulatório, mas sim emancipatório,apoiando diálogos produtivos e solidários entre comunidades de cientistas e

a população, pois todos são produtores de conhecimentos e de práticas emuma visão de ecologia dos saberes, motivo pelo qual deveriam trabalhar juntoe não apenas a formulação de uma ciência que sirva aos gestores, aos

tomadores de decisão etc.

Portanto, é importante repensar a questão epistemológica tanto quanto asocial e a política, pois todas caminham junto no sentido de se promover uma

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produção compartilhada de conhecimentos que enfrentem os desafios damediação, da tradução, da incorporação do saber popular ao saber

especializado e às alternativas de entendermos processos de saúde-doença.

Estratégias e ações de promoção da saúde devem, para serem de fatoemancipatórias, apontar para o enfrentamento do déficit democrático e daspossibilidades de as pessoas, que moram em comunidades, se organizarem e

se transformarem em sujeitos coletivos, enfrentando inclusive a corrupção e aperversidade de um mercado que invade não somente o mundo da política eo do imaginário social, mas o do próprio campo acadêmico.

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TERRITÓRIO E A SAÚDE: AÇÕES DO SETOR SAÚDE PARA ATRANSFORMAÇÃO DA CIDADANIA

Este eixo apresenta as contribuições dos pesquisadores Marco Akerman11

e Isabel de Souza Costa.12

Os dois autores trazem discussões importantes a partir de suas experiênciasacadêmicas, Marco Akerman, e de gestão, Isabel Costa, em que se destacam

os diálogos entre os desafios da construção, da implementação e da opera-cionalização de políticas intersetoriais direcionadas à promoção da saúde.

As categorias ‘diferença’, ‘desigualdade’ e ‘diversidade’ devem orientar aformulação das políticas públicas e a estruturação das instituições, no sentido

de possibilitarem escutas qualificadas e propiciarem que os conflitos e ocontraditório tenham espaço nos processos de trabalho, de maneira a facultaruma gestão participativa e capaz de viabilizar reais impactos positivos sobre

os modos de produção da saúde e da doença.

O professor Marco Akerman trouxe contribuições valiosas para que sepossa pensar paradigmas inéditos e instituições inovadoras, bem como para

refletir acerca da questão do ensino e da pesquisa voltada ao território. Aconstrução coletiva de novos paradigmas e de novas instituições se relacionaa dar visibilidade ao que está oculto nos territórios, em especial, naqueles

11 Professor Titular de Saúde Coletiva, desde 1996, da Faculdade de Medicina do ABC. Autor deinúmeros artigos científicos, livros e capítulos de livros sobre avaliação de serviços e programas desaúde, desigualdades em saúde e ambiente; indicadores compostos e políticas públicas, violênciaurbana, exclusão/inclusão social; promoção da saúde e da qualidade de vida, avaliação participativade iniciativas de cidades saudáveis, intersetorialidade.12 Pós Graduada em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Foiconsultora de políticas sociais da presidência da Caixa Econômica Federal e trabalhou na AssessoriaEspecial da Presidência da República. Atualmente [novembro 2010], é assessora da Subchefia deArticulação e Monitoramento da Casa Civil da Presidência da República nos temas relativos aocombate à pobreza e à redução das desigualdades.

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caracterizados pela desigualdade. O desafio é dar visibilidade às redes que seconstituem no cotidiano do território e que, muitas vezes, são invisíveis para

os gestores e para os trabalhadores de saúde.

Akerman afirma que a inter e a trans-setorialidade ainda são práticasfragmentadas, e aponta questões que rompem essa lógica: como criar conexões,como praticar a inter e a trans-setorialidade – a tutelada versus a generosa ,

como trabalhar as lógicas coletivas, mantendo as identidades particulares decada ente, sempre respeitando as fronteiras linguísticas que protegem o que ésingular na unidade. Desta forma, abre-se o debate das contradições entre o

novo e o velho, entre o micro e o macro, entre o individual e o coletivo, entrea agência e a estrutura, as quais conformam tensões que atravessam aconstrução do conhecimento e cuja discussão resulta crucial na perspectiva

de uma saúde pública.

A experiência da Isabel na construção do Programa Bolsa Família doGoverno Federal mostra que a ação articulada e integrada é um horizonte

que se persegue. Para tal são necessárias condições que propiciem a criaçãode uma base comum de ação, em que os elementos centrais são a confiançae a credibilidade, a constituição de processos duradouros de articulação e de

integração de políticas públicas, o trabalho em nível de cultura organizacionale a gestão da matricialidade.

Quando se pensa a política pública na perspectiva do território, a questãoda orientação e reorientação das práticas em relação a essa política é funda-

mental. Nesse sentido, Isabel traz à mesa uma reflexão importante sobre osdesafios para a agenda social do governo, levantando e analisando os benefí-cios sociais associados à implementação intersetorial do programa Bolsa

Família, o que permite extrapolar a análise no que concerne aos desafios querepresentam, em nível territorial, para outros empreendimentos sociais dogoverno que exercem forte impacto em Manguinhos.

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Novo Paradigma, Novas Instituições: desafios da gestãoparticipativa, da Inter e da Trans-setorialidade

Marco Akerman

Primeiro nucleador do título: Instituição e Paradigma. Quer dizer, o imediatis-mo versus o propósito, ou melhor, o pragmatismo caolho versus o propósito.

Como organizar uma discussão no sentido de pensar o novo paradigma e asnovas instituições? Como resolver a tensão entre o novo e o velho? Trata-se,sem dúvida, de uma operação de risco que também envolve outra tensão: a

tensão entre o micro e o macro. Em qualquer ambiente abordado será precisodiscutir o indivíduo e o coletivo; o aqui e a estrutura. É como estar em cima deuma lâmina, de uma faca.

Como se faz para valorizar o peculiar, o singular, sem necessariamente

perder de vista certo propósito coletivo de organização? Uma discussãoconcreta deste tipo foi feita em torno de uma investigação da OrganizaçãoPan-Americana de Saúde (OPAS), uma enquete sobre municípios / comunidades

saudáveis em dez países das Américas. Nessa ocasião, uma colega do México– onde existem quase duas mil experiências de municípios / comunidadessaudáveis implementadas pelo Governo Federal – deu uma definição da

situação no seu país:

“município / comunidade saudável é uma micro iniciativamacro desestruturada”.

Houve um momento, bem no início do pensamento neoliberal, no qual se

deu uma discussão do papel do Estado – no famoso livro Small is beautiful,de Schumacher (1973) – em que se chamava a atenção para valorizar aspequenas partes. A questão é como conectá-las em uma lógica estruturada.

Então, de novo aparece a tensão entre o micro e o macro, entre o individuale o coletivo, entre a escolha e a estrutura.

Talvez, o caminho seja analisar a distinção, a diferença, ou a relação entre

diferenças, desigualdades e diversidades. Analisar as boas diferenças, ou seja,

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as desigualdades que são injustas e as diversidades que são necessárias. Nessesentido, é preciso buscar caminhos metodológicos para identificar diferenças,

desigualdades injustas e diversidades, até ‘desocultar’ e ‘visibilizar’, valorizando,lutando e entendendo o que é diversidade. É essa lógica de análise dadiversidade que permite o trabalho para evitar (ou entender melhor) os conflitos.

Um exemplo dessa questão aconteceu no lançamento de um livro dirigido

a abrir diálogos sobre saúde com as populações indígenas (PENA ET AL.,2009), que foi apresentado com a expressão: “Este livro visa quebrar barreiraslinguísticas”; então, uma mapuche se aproximou e disse: “Professor, barreiraslinguísticas não são para serem quebradas; são para serem respeitadas”.

Outra boa história neste sentido é contada pelo Padre Júlio Lancelot, quetrabalha com crianças portadoras de AIDS em uma Casa Vida de São Paulo.

Ele conta que, em certa ocasião, estava com uma criança onde também tinhaum gato, e o gato estava doente. O Padre proibiu a criança de se aproximardo gato doente essa coisa dos adultos de sempre proteger as crianças. A

criança perguntou: “Mas por que eu não posso me aproximar do gato?” Elerespondeu: “Não, porque o gato está doente”. A criança então questionou:“Médico de gato é gato ou é gente?”, e o Padre afirmou: “É gente”. A criança

concluiu: “Então como é que ele entende o que o gato tem?”.

Essa situação coloca um ponto interessante para análise: os diversosprecisam buscar alguma lógica de convergência no coletivo. Em outras palavras:tem que haver escuta, escuta nessa lógica de entender diferença, diversidade

e desigualdade; é nessa lógica da escuta que deve ser buscada a conexãocom a gestão participativa. Pensar a questão da escuta, pensando mais alógica de novos paradigmas e de novas instituições; dirigir a questão da

escuta à discussão da participação.

A Figura 1 mostra uma charge do cartunista Laerte que ilustra bem aquestão da (falta de) escuta em situação que envolve a saúde. Nela há um

senhor a examinar o pé de outro, enquanto existe uma situação desagradávelna cabeça do que está sendo examinado. Depois, o examinador dá atenção à

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cabeça, mas a coisa passa ao pé do examinado. E o diagnóstico final é:“Você não tem nada”. Essa charge provoca o pensar acerca da diferença, da

técnica, da percepção, do sujeito e da tecnologia.

FIGURA 1

O debate em torno da última eleição presidencial no Brasil deixou emevidência que, para abordar a análise dos novos paradigmas, das novasinstituições, é necessário trabalhar muito bem a diferença, a ideologia, a

pluralidade pública e a honestidade intelectual. No entanto, esse debate foicontemporizado: é proibido dizer que não se acredita em Deus; é proibidodizer que é contra ou a favor do aborto; é proibido dizer o que se pensa. No

entanto, seria bom começar a dizer o que se pensa dentro da lógica dadiversidade, da pluralidade e, a partir daí, aprofundar o debate. Não se tratade valorizar o conflito ou a guerra, mas começar a confrontar ideias nessa

lógica. Esse é, sem dúvida, o melhor caminho para a gente construir novosparadigmas e novas instituições.

Alguém poderá opinar, é claro, que o Brasil avançou mais na América Latina,precisamente, pelo seu caráter contemporizador, que lhe permite chegar a

consenso com mais facilidade do que venezuelanos, colombianos e argentinos.Então, como é que se pode avançar na discussão das novas instituições e dosnovos paradigmas: na lógica de buscar o consenso; na lógica de confrontar

ideias. Isto se relaciona com o segundo nucleador do título: a Gestão Participativa.

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O livro que debate território, participação popular e saúde em Manguinhos(BUENO E LIMA, 2010) confronta ideias: denuncia e anuncia, enriquecendo

o debate. Daniel Suarez descreve, na apresentação do livro, o impacto querepresentou a implantação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)de Manguinhos para a comunidade, discutindo como foi a relação com a

população, com a participação social. Essa é uma forma bastante apropriadade se pensar novos paradigmas, novas instituições: a denúncia e o anúncio.

“Política pública formulada e implementada sem partici-pação social corrói o tecido social”.

Essa frase foi pronunciada por um colega da Escola Nacional de Saúde Pública(ENSP), que estava problematizando a discussão em um evento sobreDesenvolvimento Sustentável e Promoção da Saúde, organizado por Edmundo

Galo para o Ministério da Saúde em uma comunidade quilombola em Parati/Rio de Janeiro.

Isso constitui uma evidência, ou é apenas opinião? Na verdade, é umacontradição. Como uma política pública poderia melhorar a vida das pessoas

sem participação? Porém, a participação é fim, ou é meio? Ou melhor: a par-ticipação é meio para a política pública, ou a participação é um fim em simesmo? É a participação suficiente para garantir a emancipação, a libertação

das pessoas? O Orçamento Participativo, por exemplo, é um espaço departicipação, mas quando a gente vê as pessoas definindo suas prioridades,percebe que essas prioridades são bem mais voltadas para o ‘consumo’ do

que para o avanço da emancipação.

Todavia, nessa discussão da participação enquanto fim ou meio, a questãodo território é principalmente excluída, o território de exceção: veio o PAC a

Manguinhos; como é que essa política pública interfere com a lógica territorial?

A Figura 2, outra charge de Laerte, ajuda a continuar pensando novosparadigmas e novas instituições na perspectiva da incerteza, dos múltiplosriscos e das decisões urgentes: Um senhor roga no buraquinho do barril das

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certezas, já vazio: “Enche o saco ter que fazer recarga toda semana, se euconseguisse uma revelação nunca mais ia precisar recarregar”. Aí, ele foi ao

armazém da esquina, e o senhor que está recarregando o barril da certezadiz: “Revelação? acho que nem fabrica mais”.

FIGURA 2

Resulta interessante acompanhar a evolução do Índice de Gini nas últimasdécadas no Brasil para analisar como o país tem reduzido a desigualdade.Cabe destacar que o Gini avalia desigualdades em termos de salário, não de

renda (a qual, tudo indica, tem se concentrado).

Tal como mostra o gráfico da Figura 3, países como Brasil e México têmmelhorado em comparação com Canadá e Estados Unidos, ou seja, enquantoaqui a desigualdade medida pelo salário diminuiu, naqueles países aumentou.

Essa melhoria do Gini reflete os efeitos de políticas sociais e de políticaseconômicas: salário mínimo, aposentadoria, acesso ao crédito, Bolsa Família,educação e Estratégia Saúde da Família (ESF). Quer dizer, há evidências de

que as políticas públicas relacionadas a essas seis questões impactaram deforma positiva a redução da desigualdade social no Brasil.

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Então, com qual participação essas políticas públicas foram desenvolvidas?

Essas políticas públicas sem participação que aconteceram no âmbito damacro economia irão corroer ou não o tecido social? Evidentemente, asquestões da participação e das políticas públicas ainda precisam ser mais

problematizadas.

A Figura 4 traz uma charge com capacidade de síntese absurda. Há doissenhores conversando: “Se a vida é um jogo, porque nunca chega a minhavez de jogar?”

A situação que essa última charge mostra diz respeito às oportunidades.Como se constroem oportunidades no inter jogo entre a participação noterritório e a formulação e a implementação da política pública mais

centralizada? As políticas públicas são formuladas a partir dessa participação,ou essa participação é uma lógica só de vigilância?

FIGURA 3

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Existe um livro da Denise Leite (2005) que enfoca a Avaliação Participativa,resenhando o processo democrático na universidade. Nele, a autora traça a

seguinte afirmação:

“... Pode se dizer que uma democracia forte pressupõe umacidadania ativa, auto vigiada, auto legislada, um governodescentralizado”.

Então, como é que se conecta esse processo da democracia direta com ademocracia indireta e com a formulação da política pública? O caso do PACem Manguinhos abre essa discussão de forma bem interessante. Como se

realiza política pública em um espaço no qual já existia participação, e comoocorre essa relação?

Finalmente, chegou a vez de discutir o terceiro nucleador do título: Interse-torialidade e Trans-setorialidade. Em dada oportunidade, Hilton Ferreira Japiassu

fez um tríplice protesto, clamando pela interdisciplinaridade: 1) contra umaação fragmentada, pulverizada em uma multiplicidade crescente de responsabi-lidades partidas; 2) contra o divórcio crescente entre teoria e prática, e; 3)

contra o conformismo das situações adquiridas e das ideias recebidas ou impostas.

FIGURA 4

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Esse tríplice é perfeitamente adaptável aos desafios da intersetorialidade.Como é que se desfragmenta uma lógica de condição fragmentada? Como é

que se cria uma lógica de conexão entre teoria e prática, entre saber e fazer,entre escola e serviço? Em boa medida, esse é o grande desafio da formação:como aprofundar a discussão da promoção, dos determinantes e, ao mesmo

tempo, ir contra o conformismo das situações adquiridas e das ideias recebidasou impostas? Como é que se enfrenta, na intersetorialidade, a questão dosusos e dos costumes consolidados?

E aí uma reflexão diante dos problemas comuns: existe, de fato, uma

intersetorialidade generosa e outra, tutelada.

Tutelada é quando se tem um problema e se busca outrem para resolvê-lo.Por exemplo, a obesidade é um problema que gera a doença cardiovascular: é

preciso enfrentar a obesidade por meio de dieta e exercícios físicos, ou então,alternativamente, se procura – por exemplo – a equipe de parques e jardins. Oque esse pessoal poderia fazer para resolver o problema da obesidade?

Já na construção de intersetorialidade generosa, a pergunta é: Qual é o

problema comum que nós podemos enfrentar com uma lógica comum?

É relativamente fácil encontrar definições para o conceito de ‘açãointersetorial’, no entanto, não é tão fácil descobri-las para o conceito de

‘intersetorialidade’, que apenas é a ação intersetorial em relação aoplanejamento integrado.

Contudo, pode-se ter um planejamento integrado e executado por meiode ações setorizadas. Então, qual é o imperativo: a integração do planejamento

ou a intersetorialidade das ações?

É verdadeiro que existe a dificuldade de desfragmentar, ou de atuar demaneira coletiva ou até na lógica de um paradigma trans-setorial. Isto, porque

há muitos receios, tanto institucionais quanto pessoais, perante a possibilidadede perda de identidade. Então como é que você pode organizar lógicas detrabalho coletivo e manter a identidade?

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A questão em debate é a identidade da parte setorial no todo trans-setorial, exemplificando com uma salada de fruta: essa salada de fruta é uma

ação trans-setorial em que o abacaxi, o limão, o mamão, a pera e a maçã nãoperdem cheiro, sabor e gosto, mas se misturam no caldo da salada em outranatureza. Ou seja, o desafio é mostrar que o todo trans-setorial é mais do que

a soma das partes setoriais. Saúde ambiental, saúde e ambiente são exemplosde lógicas de trabalho trans-setorial para ver como as profissões e as partesse colocam nesse processo.

Naomar de Almeida Filho vai dizer que talvez não exista essa fusão, ou

essa mistura, essa dissolução, mas talvez, sim, existam sujeitos que a transitam.Quer dizer, existiriam sujeitos que transitam na trans-setorialidade mais doque existiria a construção do objeto trans-setorial.

Nessa perspectiva, seria interessante refletir a respeito dos determinantesna saúde e como eles interferem na qualidade de vida: uma pesquisa publicadana revista Nature mostra a diferença de expectativa de vida entre elefantes

que vivem em zoológicos em comparação com elefantes que vivem em parquesecológicos. Os primeiros têm, em média, vinte anos menos de expectativa devida do que os últimos. Por acaso, a promoção da saúde não trabalha com

elefantes presos em zoológicos? Tenta-se promover a saúde para que esseselefantes não sejam obesos, para que não sejam inférteis, para que não tenhamestresse. Mas a evidência desse estudo é a seguinte: o Ministério da Saúde

avisa e recomenda: Liberdade faz bem para saúde. Em outras palavras, oselefantes deveriam ter, primeiro, condições de se emancipar do zoológico.

E aí estão determinantes enquanto causa da distribuição. Quer dizer, acausa da distribuição do estoque de saúde que os elefantes presos e os elefantes

livres têm, é a própria condição de vida deles; não é o fator de risco que cadaelefante tem tanto no parque ecológico quanto no zoológico que as determiname sim a causa da distribuição.

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Para finalizar, resultaria interessante trazer a discussão da Complexidade.De acordo com Milton Santos (1994):

“Na era em que vivemos a da inteligência técnica pareceque está havendo um início de revalorização de um sabermais complexo. Conheço empresas de São Paulo quecomeçam a contratar filósofos como consultores paraadquirir uma visão mais complexa dos problemas”.

Stewart Mennin faz uma análise em que compara o que é simples, o queé complicado e o que é complexo. Muitas vezes, as pessoas acreditam que a

complexidade tem a ver com o difícil de ser resolvido. Não é bem assim.

Simples é fazer um bolo: mesmo quando dez pessoas usam dez receitascom os mesmos ingredientes, é quase certo que o resultado seja mais oumenos o mesmo.

Complicado é mandar um foguete à lua: isso não deixa de ter tambémuma receita, mas os resultados podem diferir muito a partir da variação demínimos detalhes.

O complexo seria educar um filho: eles não chegam com manual; não dá

para educar o primeiro filho igual ao segundo e não dá para educá-los damesma maneira que os pais foram educados. Então é um campo do subjetivo,do contexto, da história, da construção.

Os processos de formação ensinam receitas para o enfrentamento deproblemas simples e complicados, mas o trabalho com doentes, por exemplo,exige que se saiba lidar com problemas complexos.

Na verdade, dizer que tudo que é complexo, não pode ser resolvido, é

incompetência. Mesmo aquilo que é complexo pode ser abordado de algumamaneira. Em definitivo, os elefantes merecem ser livres e felizes, assim comoas pessoas.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUENO, Leonardo Brasil e LIMA, Carla Moura (Org.). Território, participação populare saúde: Manguinhos em debate. Rio de Janeiro: ENSP/Fiocruz, 2010.

LEITE, Denise. Reformas universitárias: avaliação institucional participativa.Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2005.

PENA, C. M.; GONZALEZ, W.; SORIA, M.; BRAVO, F.; CEFERINO L.; CONTRERAS, G.;AKERMAN, M.; IANNELLO, C. (Org.). Dialogo sobre Salud en Idiomas Aborigenes.Buenos Aires: OPS, 2009.

SANTOS, Milton. Técnica espaço tempo. São Paulo: Hucitec, 1994.

SCHUMACHER, E. F. Small Is Beautiful: Economics As If People Mattered. London:Blond and Briggs, 1973.

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Territórios de Cidadania e Saúde: perspectivas de avançonos modelos de gestão

Isabel de Souza Costa

Sempre é interessante trazer o relato de uma experiência concreta da gestãopara cruzá-la com a discussão mais teórica que acontece na academia sobretemas tão desafiadores como a intersetorialidade, isto é, misturar a reflexão

sobre esse conceito com práticas dos governos federal, estadual e municipal.

Falando mais especificamente, pode resultar enriquecedora a abordagemdo debate teórico da intersetorialidade através da descrição de experiências,de práticas em relação aos desafios da articulação interministerial na gestão

das políticas públicas. Principalmente, quando o que se está tentando tratar éa questão dos desafios da gestão de territórios de cidadania e de saúde.

Nessa perspectiva, a primeira coisa que se coloca é que a ação articulada

e integrada é quase como uma linha de horizonte, que quanto mais se persegue,mais distante parece. De forma ampla, poder-se-ia dizer que as condiçõesfundamentais para vencer o desafio de uma ação articulada e integrada são:(a) liderança do corpo dirigente nessa direção e; (b) sensibilização e envolvi-

mento das equipes.

A natureza da ação integrada existe em todos os níveis da organização;envolve pessoas com experiências organizacionais e profissionais diversas em

torno de um objetivo comum. Trabalhar com a diversidade, com a pluralidadedas pessoas e do coletivo, enriquece o processo. Para isso, é indispensávelcriar uma base de referência comum entre todos os envolvidos, quer dizer,

estabelecer as prioridades, a meta que se pretende alcançar.

Quando o Presidente Lula foi eleito, colocou a questão da erradicação dapobreza e do enfrentamento do problema da fome como suas prioridadestotais. Então, os diferentes segmentos do governo atuaram sempre nesse sentido

e conseguiram coletivamente produzir resultados bastante interessantes.

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A construção dessa base comum exige: (a) clareza a respeito dos objetivose dos resultados que se quer alcançar; (b) papéis e responsabilidades claras

de cada participante; e (c) compreensão comum das questões-chave. É trabalhoque envolve fundamentalmente paciência, diálogo e troca, porque conformaum processo de construção feito de avanços e de recuos no percurso.

O diálogo e a persuasão são os principais métodos utilizados para visualizar

possibilidades e resolver conflitos. A construção dessa base comum funda-se,portanto, em um processo de adesão e não de coerção. Se não se faz uso dodiálogo, visando ganhar as pessoas para uma proposta, para determinada

ideia, dificilmente se conseguirá avançar.

Dessa forma, é fundamental que se construa confiança entre as partes.Confiança que se consolida no estabelecimento da credibilidade; no

investimento em relações institucionais; e na abertura e no diálogo contínuos.A liderança não pode de ser mera liderança teórica, ela deve ser liderançainterlocutora, capaz de construir o diálogo, de modo a ganhar a confiança

das equipes que integram esse processo. As pequenas iniciativas, que vãodando certo, podem ir criando um clima que encoraja o assumir riscos junto;mostrar que o caminho é por aí, ajuda muito a avançar. Tirar proveito dos

pequenos sucessos demonstra a viabilidade e motiva os envolvidos.

É normal que surjam tensões ao longo desse processo. É normal que issoaconteça. Além das tensões oriundas das diferentes visões, há outras dificuldadesa enfrentar. Entre elas, destaca-se a manutenção do dinamismo desses processos,

pois ocorrem altos e baixos. Nesse sentido, é preciso trabalhar de modopermanente para preservar o entusiasmo inicial.

A liderança é essencial para motivar os principais envolvidos. É importante

que a liderança estabeleça marcos e que torne conhecidos os progressosrealizados e os resultados obtidos. A transparência em relação à informaçãodo processo é fundamental.

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Outra dificuldade a enfrentar é a estrutura organizacional indispensávelpara sustentar um processo horizontal. Definir essa estrutura requer uma

reflexão cuidadosa. As estruturas informais exigem menos recursos do que asformais, além de serem mais flexíveis e de terem efeito menos coercitivo sobreseus membros. Contudo, as estruturas formais são menos ambíguas. Houve

experiências do Governo Federal que foram realizadas através de estruturasinformais e deram certo, para as quais não foi necessário construir portariasou decretos, ou seja, que não precisaram ser normatizadas. No entanto, em

outras situações foi absolutamente imprescindível construir estruturas formais.

A escolha do momento ideal para constituir estruturas ao processo é crucial,pois podem tanto minar o desenvolvimento de uma cultura compartilhadaquanto reduzir a motivação dos envolvidos se são erigidas muito cedo. Todavia,

deixar a criação de estruturas de apoio para tarde demais pode minar acapacidade de resistência de um empreendimento. Apressar demais as estruturaspode acabar por abortar um processo, ao passo que deixar a questão das

estruturas para muito tarde pode dificultar a posterior organização.

Em resumo, uma reflexão inicial parece indicar que há dois aspectos diferentesa se enfrentar para a constituição de processos duradouros de articulação e

integração de políticas públicas. Por um lado, é necessário trabalhar no nível dacultura organizacional e, por outro, no da gestão da matricialidade.

No nível da cultura organizacional, é preciso enfrentar a necessidade deque os envolvidos, tanto a equipe de governo quanto os funcionários de

carreira, sejam capazes de modificar comportamentos tradicionais bastanteenraizados. A área da saúde, da educação, da assistência social, isto é, cadasegmento tem uma cultura organizacional difícil de romper. É preciso reconhecer

que a mudança desses comportamentos tradicionais não se faz do dia para anoite, nem muito menos de maneira não sistemática. Não há como se iludir:coesão política e firmeza de propósitos nem sempre são suficientes para superar

as dificuldades.

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O Território Integrado de Atenção a Saúde em Manguinhos: todos somos aprendizes!

É preciso se esforçar para conseguir olhar um pouco com a visão que asoutras pessoas têm; estimular um olhar mais coletivo, que não seja um olhar

focado na própria área. Isto é fundamental para produzir ações intersetoriaiscom visão do todo mais integrada.

Há um segundo aspecto a considerar: a gestão da matricialidade. Emgeral, a atração que o cotidiano e as atribuições específicas têm sobre os

gerentes (sejam ou não de primeiro escalão), tende a desviá-los de uma práticamais compartilhada. Essa avaliação sugere que é preciso constituir uma gestãoda matricialidade, desvinculada de atribuições específicas. Isso, no entanto,

não pode significar a proliferação de grupos-tarefa com autonomia decisóriae operacional para cada um dos projetos. O caminho que talvez seja o maisadequado a seguir é o da constituição de um mecanismo capaz de garantir

que o funcionamento matricial se materialize.

Cabe, a partir daqui, analisar a experiência da articulação interministerialno governo do Presidente Lula. Nesse sentido, observe-se o que era apontado

no Relatório da Equipe de Transição, em dezembro de 2002:

Do diagnóstico realizado sobre os Ministérios e seus programase instrumentos, ficou evidente que vai se herdar uma grandefragmentação de estruturas organizacionais, programas eprojetos, que resulta de um Estado que foi construído pensandoas políticas de forma tradicional e setorializada, que não buscauma abordagem integral e complexa na construção de políticaspúblicas (...) A vontade política do novo governo é de atuarde forma integrada e articulada...

Ou seja, desde a transição anterior à primeira gestão do governo, o diagnós-

tico que se produziu sobre a situação das instâncias no governo federal erade grande fragmentação, de programas e projetos que não ‘conversavam’ umcom o outro. O panorama era de atendimento à pobreza entendida como a

pobreza da assistência social, a pobreza da saúde, ou seja, não existiam pro-

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gramas que tratassem as pessoas com suas múltiplas necessidades e comolhar não fragmentado, na perspectiva da família, do cidadão.

A nova gestão começou a entender a pobreza como fenômeno multisseto-

rial, o que pressupõe ações intersetoriais articuladas e integradas, as quaisseriam desenvolvidas de forma horizontal e vertical, nos três níveis de governo(fundamental: articulação local, no município) por meio de parcerias entre os

entes federados e a sociedade, na forma de novos arranjos institucionais. Isto,é claro, significou sentar e discutir – olho no olho – para enfrentar os conflitose as dificuldades que inevitavelmente surgem ao longo da produção de uma

ação integrada.

Aquilo que foi planejado no governo federal, no governo estadual, pararealizar-se, deve chegar de forma efetiva ao município, ao território local. Foi

necessário também abranger a sociedade civil organizada; prever a participaçãodas comunidades envolvidas nas iniciativas de governo, ter participação socialno processo de gestão e de construção de políticas.

O governo produziu experiências consideradas exemplares nesse processo,

gerando uma postura positiva de sua equipe em relação a temas como aretomada das Câmaras de Governo e a instituição dos Grupos de TrabalhoIntersetoriais (GTIs) em processos exemplares, tais como: Bolsa Família, Agenda

Social, Territórios de Cidadania, Compromisso pela redução das desigualdadesno Nordeste e Amazônia Legal e o PAC.

O PAC foi o programa que o Presidente Lula escolheu para a área da

infraestrutura no Brasil. Já no final da primeira gestão, ele começou a desenharcomo seria a sua estrutura.

O Bolsa Família é absolutamente ilustrativo de um processo que não precisaestar engessado, que não precisa de estruturação mais orgânica, porque foi

construído a partir da participação de todos os órgãos envolvidos com acoordenação da Casa Civil. Tinha-se a visão de que o ideal não era manterum monte de programas pulverizados, cada um atendendo determinado

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segmento. Em cerca de seis meses de reuniões do GTI, gerou-se confiança,direção, coordenação e deu-se o debate com todos os ministérios relacionados

ao tema: Minas e Energia, porque tinha o auxílio gás; Saúde, por causa dobolsa alimentação; Educação, por causa do bolsa escola.

Na criação do Bolsa Família montou-se inicialmente uma estrutura informal:não houve sequer decreto de constituição do GTI. Existiu, sim, a participação

direta de todos os órgãos envolvidos, apresentando objetivos claramenteexplicitados pelas lideranças; assegurando diálogo permanente, tanto sobre oprocesso quanto sobre o conteúdo. A estrutura formal foi definida somente

após estabelecido o conteúdo. Essa estratégia gerou confiança, reduziu aresistência e facilitou enormemente a implantação do programa.

Já a Agenda Social pautada teve como objetivos: consolidar uma política

garantidora de direitos; reduzir ainda mais a desigualdade social; buscar agestão integrada das políticas com a promoção de oportunidades; e a pactua-ção federativa entre União, Estados e Municípios. A Figura 7 mostra os eixos

da Agenda Social da primeira gestão do Governo Lula.

FIGURA 7

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O processo de construção da Agenda Social incluiu as seguintes etapas: oPresidente se reuniu com os Ministros para a orientação geral; a seguir, a

Câmara de Política Social constituiu Grupos de Trabalho com representantesdos Ministérios envolvidos diretamente no tema, coordenados por um Ministério-fim e com acompanhamento da Casa Civil (CC) e do Ministério do Planeja-

mento, Orçamento e Gestâo (MPOG). As propostas dos GTs foram entregues àCâmara de Política Social para discussão e ajustes e, posteriormente, apresen-tadas ao Presidente para sua aprovação final.

Já na segunda gestão de governo, o presidente Lula apontou seus objetivos

prioritários relacionados a avançar ainda mais com respeito aos avançosconseguidos no primeiro mandato. Primeiro, reduzir ainda mais a desigualdadesocial; segundo, continuar a buscar a gestão integrada de políticas,

promovendo oportunidades para as famílias que recebiam o Bolsa; e, terceiro,consolidar a questão da pactuação federada com estados e municípios ecom a participação da sociedade civil. Isto, introduzindo a questão dos Territórios

da Cidadania (Figura 8).

FIGURA 8

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Dentre os eixos da segunda gestão de governo, esperava-se potencializar,dar mais escala aos programas em andamento com a ampliação do Bolsa

Família. Outra questão era a geração de oportunidades para as famílias pobrestanto urbanas quanto rurais, a questão da ampliação dos serviços socioassisten-ciais, somando a questão do território da cidadania. Essa proposta inicia-se

com a ideia da geração de oportunidades para as famílias mais pobres.

Outra questão que preocupava muito o Presidente Lula era a da juventude.Na Casa Civil chegou-se a fazer um levantamento, conferindo que, no finalda primeira gestão, existiam mais de cem programas para a juventude

espalhados por todos os ministérios. Alguns ministérios tinham dois ou trêsprogramas para a juventude. Cada um definia a juventude por meio de faixaetária diferente; alguns desses programas tinham bolsa, outros, não; também

não havia coerência quanto a sua duração; enfim, a questão da juventudeera um caos. Esse segmento resultou, sem dúvida, em um dos de integraçãomais dificultosa.

No que se refere às questões de cidadania, o Presidente estava preocupadoem introduzir melhorias nas atividades já iniciadas: mulheres quilombolas; povosindígenas; crianças e adolescentes; pessoas com deficiência; documentação

civil básica e povos em comunidades tradicionais. Também havia demandapara a população idosa, segmento que foi igualmente complicado de integrar.

Contudo, dentre todas as políticas integradas do Governo Lula, a de maiorabrangência social foi o Bolsa Família, nada menos que o maior programa de

transferência condicionada de renda do mundo. Ampliado e aprimorado, comênfase na geração de oportunidades, atinge hoje 12,7 milhões de famíliaspobres e extremamente pobres em todos os municípios brasileiros. Ou seja,

35% dos brasileiros vivem em famílias beneficiárias do programa.

O Cadastro Único reformulado e ampliado reúne informações sobre 20,1milhões de famílias pobres e extremamente pobres. Os municípios recebem

recursos para gestão do programa por meio do Índice de Gestão Centralizada(IGD) do programa Bolsa Família. O IGD é um recurso financeiro que passa

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fundo-a-fundo a assistência social, que ajuda tanto na questão do cadastroúnico quanto na do acompanhamento das condicionalidades de saúde e de

educação no local. O espírito das condicionalidades tenta garantir o acesso adireitos e é considerado a contrapartida das famílias. Nesse sentido, registra-sea frequência escolar em 85% dos 14 milhões de alunos (6 a 15 anos) e em 78%

dos 1,9 milhão de jovens (16 e 17 anos). Com isso, a frequência escolar é maiselevada nos beneficiários do Bolsa Família do que entre os não beneficiários.

Por sua vez, 63% das famílias beneficiárias têm acompanhamento emsaúde. Uma das maiores dificuldades na condicionalidade da saúde diz respeito

às limitações da Estratégia da Saúde da Família. Dentre os 63% que têmacompanhamento da condicionalidade da saúde, 98% põem em dia avacinação das crianças e recebem acompanhamento pré-natal. Esse foi um

esforço muito grande que o Ministério da Saúde fez junto aos governos doestado, mas, fundamentalmente, esse esforço tem que ser feito junto às prefeitu-ras, para que se consiga ter atuação mais forte nesse sentido.

O IGD recurso pode ser usado para melhorar isso e, além de tudo, para geraçãode oportunidades para as famílias mais pobres. Os beneficiários do Bolsa Famíliativeram acesso à qualificação profissional e à inserção produtiva. Houve igual-

mente muitas iniciativas: microcrédito, economia solidária, cooperativismo,associativismo, dentre outras, destinadas ao incremento das oportunidades.

Em 2010 foi criado o Fórum Intergovernamental e Intersetorial do BolsaFamília, que envolveu o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), o Ministé-

rio da Saúde (MS) e o Ministério da Educação (MEC). Ele abrange, além dogoverno federal, as instâncias que têm relação com os temas relativos aoprograma. Inclui instâncias da saúde e da educação, bem como o conselho

dos gestores da assistência social, o Conselho Nacional, o Conselho de Secretá-rios estaduais e o de Secretários municipais. Embora não se trate de participaçãosocial stricto sensu, é uma representação dos fóruns das categorias que estão

presentes. Foram feitos seminários em todos os estados, e os resultados dessesdebates foram de uma riqueza muito grande.

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A ideia dos territórios da cidadania inicia como estratégia de enfrentamentoda pobreza rural, a qual tem muitas identidades, mas se tornava necessário

buscar uma política social voltada diretamente para o campo. Atualmente éum processo complexo ainda em construção, visando à integração de políticaspúblicas em base territorial – “Territórios rurais” – por meio da integração de

políticas públicas entre entes federados e a construção de espaços de gestãohorizontal entre Estado e sociedade civil. Assim como o Bolsa Família, é precisotornar o Território da Cidadania uma política, um legado irreversível.

O Território da cidadania trabalha com matriz local; então, são escolhidas

quais serão as políticas públicas ofertadas naquele território e de que maneiraserão implementadas. Isso implica controle social, participação social, ou seja,instrumentos de gestão que envolvem tanto o poder público quanto a cidadania.

Finalmente, é preciso mencionar o compromisso pela redução das desigual-dades no Nordeste e na Amazônia legal. Há alguns anos, quando o PresidenteLula reparou nos resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio

(PNAD), impressionou-se porque, para além da questão das desigualdadessociais que existem no Brasil, a questão da desigualdade regional é extrema-mente forte. Todos os indicadores apontavam que as condições de vida eram

piores na Amazônia Legal e no Nordeste.

Em função disso, encomendou à Casa Civil convocar todos os ministériosenvolvidos e, uma vez que todos estivessem participando, determinou que seescolhessem alguns eixos fundamentais para esse processo. Os eixos resultantes,

pactuados e repactuados com governadores foram: Redução da MortalidadeInfantil; Erradicação do Sub-registro de Nascimento; Redução do Analfabetismo;e Fortalecimento da Agricultura Familiar (assistência técnica). Tudo foi pactuado

meta por meta com cada governador, para saber o que se buscaria coletivamente.

Em definitivo, pode-se afirmar que a vida dos brasileiros melhorou. Dadosincontestes confirmam tanto a redução da pobreza quanto o enfrentamento

da fome no Governo Lula.

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Entre 2003 e 2009, 27,9 milhões de pessoas superaram a pobreza e 35,7milhões de pessoas ascenderam a classes sociais mais elevadas; o Bolsa Família

e o Benefício de Prestação Continuada são responsáveis por cerca de umterço da redução da desigualdade, medida pelo Coeficiente Gini desde 2001.

O Presidente Lula, em seu discurso de posse expressou:

“Se ao final do meu mandato todos os brasileiros fizeremtrês refeições por dia, eu vou considerar que eu terei realizadoa missão da minha vida”.

Hoje, o impacto produzido pelo Bolsa Família aponta que, dentre as famíliasbeneficiadas, 93% das crianças e 82% dos adultos fazem três ou mais refeições

diárias, e que os programas de transferência de renda são responsáveis porum terço da redução da pobreza no Brasil. Resultados mais do que notáveis.

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O Território Integrado de Atenção a Saúde em Manguinhos: todos somos aprendizes!

EDUCAÇÃO TERRITORIALIZADA EM SAÚDE: REFLEXÕESSOBRE AS PRÁTICAS EDUCATIVAS EM TERRITÓRIOSVULNERÁVEIS DA CIDADE

Este eixo apresenta as contribuições da professora Gracia Maria de MirandaGondim13 e do professor Felipe Eugênio dos Santos Silva.14

A dimensão da educação e da formação é central no contexto do Território

Integrado de Atenção à Saúde (TEIAS)-ESCOLA, enquanto nova experiência emimplantação. Esta é fundamentada nos princípios da promoção da saúde, aqual traz como desafio a implementação de seus pilares centrais: a gestão

participativa e a intersetorialidade, pilares estes a serem estruturados teórica emetodologicamente e que colocam desafios imensos em sua implementaçãoe operacionalização como política pública. Acarreta também a necessidade

de se repensar os modelos de atenção e de gestão até o momento em práticano Sistema Único de Saúde (SUS).

A partir de seus estudos e experiências, os professores nos expõem alguns

desafios e caminhos a serem trilhados na superação do déficit de educaçãoe de formação em territórios vulneráveis, trazendo a questão central dareintegração das populações excluídas da escola a partir de uma educação

para a emancipação.

13 Pesquisadora em Saúde Pública da Escola Politécnica de Saúde da FIOCRUZ, onde coordena osPolos Territorializados de Educação Profissional em Manguinhos e Mata Atlântica, o Curso Técnicode Vigilância em Saúde, além de ser coordenadora pedagógica do Programa de Formação deAgentes Locais de Vigilância em Saúde. Desenvolve pesquisa nas áreas de Formação Profissionale Desenvolvimento Tecnológico em Vigilância da Saúde.14 Formado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Ciência da Artepela Universidade Federal Fluminense. Atualmente é membro da equipe da Cooperação Social-ENSPe Coordenador Pedagógico do Programa de Educação de Jovens e Adultos (PEJA)-Manguinhos(REDECCAP/SEE-RJ/FIOCRUZ). Também, atua na coordenação do Ecomuseu de Manguinhos.

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O professor Felipe apresentou um panorama da situação dos educandosem Manguinhos, que, com base em uma estratégia fundada no desenvolvimento

da criatividade, de uma tática de produção “laborativa”, investem naconstrução da sua autonomia. A consolidação do modelo construtivista, decaráter lúdico, como alternativo ao modelo conteudista tradicional, abre

caminho para a construção de um currículo centrado na ideia de territorializa-ção da saúde, que é o reconhecimento das vulnerabilidades, dos conflitos, dasdemarcações de poder e de ruptura com formas heterônomas de produzir e

de divulgar conhecimento. A ruptura com o norte preestabelecido permite-lhes construir cidadania e, ao mesmo tempo, se reconhecerem e se mostraremcomo sujeitos ativos, livres, criativos, imponderados e subversivos – por que

não dizer? – dionisíacos.

A professora Gracia situou, por meio de uma revisão histórica, a questãodo aprendizado dos direitos como núcleo de conteúdo para os sujeitos lutado-res, aqueles que cotidianamente resistem à opressão. Explica a determinação

geográfica das iniquidades territoriais e o papel da Escola Politécnica naeducação para o trabalho, inserindo-se na práxis, nos contextos, nas relaçõessociais sem dissociar os saberes científicos dos populares. Escola e trabalho

construindo sujeitos construtores do mundo, pelo que a ciência e a tecnologia,nesse sentido, perdem a sua dimensão reificada.

Aponta, ainda, o papel simbólico das estruturas opressoras como um dos

principais desafios a serem enfrentados na consolidação da formação para aação, promovendo mudanças nas organizações de saúde. As elaboraçõespedagógicas e políticas das estratégias de formação humana, imprescindíveis

à emancipação e à cidadania, exigem que sejam derrubadas as cercas doconhecimento e ajudam a aprender a reconhecer ‘território’ como conceitopolissêmico, que expressa sentidos e visões de mundo em conflito.

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Práticas educativas em saúde no território de Manguinhos,avanços limites e cenários

Grácia Maria de Miranda Gondim

“Do rio que tudo arrasta se diz que é violento.Mas ninguém diz violentas as margens que ocomprimem” (Bertold Brecht).

Aproximações Iniciais

É um grande desafio abordar as experiências em educação do territóriode Manguinhos em razão da singularidade de cada uma de suas comunidadese das múltiplas formas de aprendizagem que se realizam na materialidade de

seus territórios.

Dificilmente, uma única pessoa teria condições de abranger a totalidadedas experiências educativas aqui desenvolvidas ao longo dos anos, sejamelas advindas da comunidade, sejam proposições da Fiocruz. Nesse sentido,

tentar-se-á abordar as ‘Práticas Educativas em Saúde na perspectivados Territórios, dos Sujeitos e da Ação’, de modo a integrar os camposda saúde e da educação nessa discussão.

Segundo analisa Eric J. Hobsbawm – sociólogo e historiador inglês – em

três dos seus livros (HOBSBAWM, 1959; 1969; HOBSBAWM & RUDÉ, 1969).

‘É a tomada de consciência política, das populações primitivasque tornou o século XX o mais revolucionário da história’.

Indaga-se: o que o autor quis dizer com populações primitivas? Seus textos

situam a saída do século XIX para o século XX e contextualizam a profundamudança ocorrida no sistema produtivo e nas técnicas do feudalismo para ocapitalismo, quando algumas populações, em especial aquelas ligadas ao

campo, às atividades agrárias, se rebelaram contra o novo modo de produzira vida que se lhes impunha.

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Por sua vez, Emílio Diniz-Pereira (2003), em pesquisa e vivência junto aoMovimento dos Sem Terra (MST), afirma que:

‘O Brasil chega ao século XXI como uma das sociedadesmais excludentes do planeta’.

No entanto, ressalta que ‘sempre existiu resistência por parte dos povosoprimidos’. Este autor comenta o decurso de um século de dominação capitalis-

ta no mundo e, em especial, no Brasil, onde a expropriação de parcelas dapopulação no tocante aos benefícios do progresso material faz com osoprimidos modernos reajam de forma semelhante aos primitivos campesinos

do século XIX.

Ou seja, Hobsbawm (1959) fala dos rebeldes primitivos como aqueles quese rebelaram contra a introdução do modo de produção capitalista e Diniz-Pereira, no início do século XXI, refere-se aos povos oprimidos como aqueles

que se revoltam contra as condições desiguais e opressoras geradas por essemesmo sistema. Assim, primitivos e oprimidos são duas faces da mesma moeda– as condições de exclusão e de opressão impostas aos povos pelo capitalismo.

Esses autores nos permitem contextualizar com mais propriedade a situaçãodas populações do território de Manguinhos, que são claramente excluídasdo processo de produção e de distribuição material da riqueza do país. Nessa

discussão, há algumas considerações iniciais que é preciso apontar.

Primeiro, ao se pensar a formação na ação, impõe-se necessariamente quese reflita sobre as condições materiais de existência das pessoas na sociedadecapitalista. No par formação/ação, considera-se a ação como algo indissociável

do homem, como aquilo que o significa como sujeito histórico. Porém, éimportante que essa dupla esteja contextualizada no interior das contradiçõesproduzidas pelo capital. Ou seja, compreender, neste contexto, o porquê de

existirem pessoas que são tratadas de formas diferentes umas das outras e oquanto isso contribui para a fragmentação social e para a construção de umprojeto libertário de sociedade.

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Segundo, os territórios materializam as ações humanas pela mediação dotrabalho. São produções sociais, historicamente determinadas, que encerram

em seus limites condições de existência desiguais. Com efeito, ao se olharpara Manguinhos – e outros tantos territórios na cidade do Rio de Janeiro –percebe-se a profunda desigualdade na distribuição da riqueza e nas condições

de vida destinadas às populações colocadas à margem do sistema produtivo.

Arroyo (2003) afirma que, em uma perspectiva emancipatória e humaniza-dora, o aprendizado dos direitos pode ser destacado como uma dimensãoeducativa. Ou seja, na medida em que as populações oprimidas lutam por

espaços de cidadania, exercitam o aprendizado dos seus direitos: por melhorescondições de vida: pelo acesso à educação, à saúde, ao trabalho, à renda, àhabitação e ao saneamento, dentre outros. Essas reivindicações são, de fato,

a materialidade da dimensão educativa do direito.

Desse modo, ao serem analisadas as relações entre educação, trabalho eexclusão social, visualizam-se duas direções distintas, porém, convergentes:

em uma, desenvolvem-se processos de mudanças radicais e contraditórios,que degradam a vida de milhares de seres humanos, subtraindo-lhes os direitosfundamentais – “uma brutal desumanização que os destitui e subjuga”; em

outra, observam-se inúmeros movimentos de luta pelos direitos humanos e amobilização coletiva dos povos excluídos e oprimidos – “uma imensa humani-zação que nasce do corpo social e das lutas por democracia e emancipação”(ARROYO, 2004:29).

Na primeira posição, a ênfase é dada aos vínculos entre trabalho e educa-ção, dos quais, a partir de análises, busca-se compreender as determinações eas restrições impostas pela organização produtiva; na segunda, inclui-se e

afirma-se o trabalho como princípio educativo. Em comum, o reconhecimentoda categoria ‘trabalho’ na compreensão dos processos de formação-deformaçãohumana e o caráter histórico destes processos educativos e culturais vinculados

a formas concretas de produção da existência. Ainda em comum, uma fortecarga humanista nas análises: o destaque do sentido desumano da divisão

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histórica do trabalho e do caráter deformador e sufocante do domínio doprocesso de produção sobre os homens e não destes sobre as relações de

produção (ARROYO, 2004).

Em contextos contraditórios, no território dos quais disputam ações dedominação-coerção e de resistência-emancipação, a formação humana éinseparável da produção mais básica da existência, do trabalho, das lutas por

moradia, por saúde, por terra, por transporte, por tempo e espaço de cuidado,de alimentação e de segurança. O autor alude à educação como processo dehumanização de sujeitos coletivos diversos, em que as formas de ensinar e de

aprender se configuram como ‘Pedagogia em Movimento’ – aprende-se naluta, na ação cotidiana. Dessa maneira, a educação básica voltada para asclasses populares se coloca na fronteira dos direitos humanos, no dizer de

Paulo Freire, e se contrapõe ao discurso oficial, que, por vezes, reduz aescolarização a mercadoria, a investimento, a capital humano.

Educação Básica como possibilidade de Efetivar a Equidade

Os dados sobre a escolarização no Brasil produzido pelo Instituto Nacionalde Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) são relevantes e

abrangentes no que tange à Educação Básica no País. Esta contempla etapasdesde a educação infantil até a especial, passando pela profissional e a dejovens e adultos (Educação de Jovens e Adultos – EJA).

A partir das informações produzidas é possível questionar o tamanho daexclusão que se tem hoje no país em relação ao acesso à educação e à escolanos diferentes níveis e modalidades, e quais as estratégias e os movimentos

para superá-la.

Nos dados da Tabela 1, vê-se a ampliação de 8,3% da oferta de Creches(mais 144.627 matrículas), estabilidade na oferta de Ensino Fundamental eMédio e crescimento de quase 9% na oferta de Educação Profissional, com a

criação de 65.655 novas vagas.

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FIGURA 1: EDUCAÇÃO BÁSICA – Variações absoluta e variação da matrículaBRASIL E REGIÕES 2008 – 2009

Fonte: MEC/Inep. 2010

Ao se observar a oferta de educação básica no país (Figura 1), constata-seque a exclusão e a desigualdade não ocorrem apenas nos territórios em escala

local, como no caso de Manguinhos, mas também na dimensão das regiõesbrasileiras. No Norte, por exemplo, apesar do aumento no número de matrículas,a oferta de educação básica continua insuficiente. O Nordeste, por sua vez, é a

região que exibe a menor taxa de escolarização. Esses dados mostram claramentea correspondência das desigualdades socioeconômicas entre as regiões e aoferta de educação básica. Em suma, há uma quantidade significativa de

população que está excluída sistematicamente dos processos formais de educação.

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No ensino fundamental, a situação é quase a mesma (Figura 2). De 2008a 2009 houve diminuição da oferta de matrículas em relação ao período

anterior. Nesses números estão incluídas as redes públicas federal, municipale estadual, com cerca de vinte e oito milhões de matrículas, e a rede privada,com cerca de três milhões e setecentas mil matriculas (Inep, 2009).

No caso do ensino médio (Figura 3), nota-se que tanto o Norte quanto oCentro Oeste conseguiram ampliar a sua oferta de matrícula para essa etapada escolarização. Enquanto no Nordeste, Sul e Sudeste observa-se decréscimo

no período analisado.

O Ensino Médio continua sendo uma ‘barreira’ inacessível ou intransponívelpara a maioria dos adolescentes e dos jovens trabalhadores do Brasil. A redepública de Ensino Médio atende apenas a cerca de sete milhões de matrículas

na rede estadual – decréscimo considerável diante do relacionado ao período2005-2006, quando foram oferecidas cerca de oito milhões (INEP, 2007, 2009).

FIGURA 2: ENSINO FUNDAMENTAL – Variações absoluta e variação da matrículaBRASIL E REGIÕES 2008 – 2009

Fonte: MEC/Inep. 2010

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FIGURA 3: ENSINO MÉDIO – Variações absoluta e variação da matrículaBRASIL E REGIÕES 2008 – 2009

Fonte: MEC/Inep

Enquanto isso, o país possui mais de 33 milhões de jovens entre 15 e 24anos (IBGE, 2000). Ao se considerar exclusivamente a relação idade – série de

escolarização correspondente, verifica-se que apenas a metade da populaçãode 15 a 17 anos está frequentando o Ensino Médio. Nesse sentido, deve serprioridade do Estado a implementação de políticas públicas inclusivas que

enfrentem este grande desafio social – a oferta de matrículas no nível médio,em curto e médio prazo, tendo como meta a universalização do acesso à escola.

Uma situação diferente é observada no caso da educação profissional(Figura 4), na qual houve uma oferta maior. Isto, em grande parte, deve-se aofato de que na educação profissional há importante investimento da rede

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privada, inclusive com subsídios públicos, os quais, nos últimos anos, criaramcondições de maior liberdade para oferecer cursos técnicos, cursos de educação

inicial e continuada e de qualquer outra situação. Embora essa rede deformação profissional esteja crescendo rapidamente, há pouca informaçãopublicizada a respeito da qualidade do conjunto dos cursos ofertados.

FIGURA 4: EDUCAÇÃO PROFISSIONAL – Concomitante e Subsequente – Variações absoluta evariação da matrícula – BRASIL E REGIÕES 2008 – 2009

Fonte: MEC/Inep

Nessa modalidade, as matrículas estão em expansão e totalizam 861.114

em 2009. Significa que foram criadas mais 65.655 matrículas, o que representauma variação positiva de 8,3%, em relação a 2008 (Tabela 1). Esse aumentona oferta de matrículas não assegura o atendimento às demandas sociais

que pressionam esse nível educacional, principalmente por parte dos jovensoriundos das classes populares e que necessitam ingressar em uma profissãopara melhorar sua condição de vida.

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Soma-se, ainda, o quantitativo de trabalhadores de nível médio e fundamen-tal inseridos em processos de trabalho diversos, que necessitam de serem

qualificados. Portanto, considera-se ainda pouco expressiva o número dematrículas nessa etapa para evidenciar a relevância da educação profissionalpara o trabalho no país.

Na área específica da vigilância da saúde nas esferas federal, estadual e

municipal, destaca-se a estimativa de um número em torno de 180 mil trabalha-dores de nível fundamental e médio que precisam receber qualificação paramelhor inserção e desempenho em seu processo de trabalho.

Por fim, vê-se na Figura 5 o panorama da distribuição regional da Educaçãode Jovens e Adultos (EJA) em nítido movimento de redução na oferta dematrículas, configurando a crescente exclusão de expressivo contingente de

pessoas, as quais estão fora dos bancos escolares por questões socioeconômicasou por diferença de faixa etária, pelo que não atendem as exigências deinclusão da escola formal. Essa redução equivale a 284.092 matrículas. Contudo,

a oferta permanece ampla, já que, em 2009, o Censo Escolar registrou o totalde 4.661.332 matrículas. Destas, 3.094.524 estão no Ensino Fundamental e1.566.808, no Ensino Médio.

Escolarização, de um lado, e profissionalização, de outro, representam um

caminho a ser trilhado pelas políticas sociais públicas para a superação dasdesigualdades e das iniquidades. Sabe-se que estas são encontradas nas popula-ções com piores condições de vida, as que são sistematicamente excluídas

pelo Estado em seus direitos de cidadania. São elas que pagam o alto preçoquando saem em busca de profissionalização na rede privada, vislumbrandouma chance de ingresso no mercado de trabalho.

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O Território Integrado de Atenção a Saúde em Manguinhos: todos somos aprendizes!

Educação como processo Humanizador

No atual modelo de Estado que se tem no Brasil, forjado no mercado e no

neoliberalismo, urge pensar a formação humana como princípio de liberdadee de constituição de sujeitos históricos. Em tal cenário, a educação se colocacomo processo humanizador e produtor de autonomia, construído na luta

diária por direitos e por emancipação – como projeto de sociedade.

É nessa perspectiva que se insere a proposta da educação politécnica –como possibilidade de formar o homem integral, imerso na totalidade e educadona contradição para compreender e transformar a sociedade.

A concepção politécnica é aquela que dialoga com as circunstânciassocietárias atuais e deixa explícita a sua concepção de mundo – como odomínio teórico-prático do processo de trabalho pela aquisição dos fundamen-

FIGURA 5: EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS – Variações absoluta e variação da matrículaBRASIL E REGIÕES 2008 – 2009

Fonte: MEC/Inep

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tos técnico-científicos produzidos pelo homem ao longo da história. A educaçãopolitécnica não dissocia a prática da teoria, tampouco dissocia o saber cientí-

fico do saber popular. Ela entende que o trabalhador se educa no conflito ena contradição e que a aquisição dos saberes, pela classe trabalhadora,elaborados pela humanidade serve de instrumento para a luta contra a divisão

social do trabalho e a dominação (EPSJV, 2005).

A educação politécnica vê o trabalho como princípio educativo, ou seja,compreende o trabalho em sua dupla dimensão, estabelece diferenças entresua condição ontológica, de categoria constitutiva do ser social, e sua forma

histórica, degradada e alienada sob o domínio das relações capitalistas deprodução. Na condição ontológica é processo coletivo e social mediante oqual o homem produz as condições gerais da existência humana, conformando

fonte de produção de conhecimentos e saberes – principio educativo. Nocapitalismo, em sua forma histórico-alienada, se constitui como possibilidadede luta política, de superação da opressão-liberdade e de emancipação da

existência humana (EPSJV, 2005).

Nessa perspectiva, o trabalhador é sujeito da construção do mundo, tantode sua produção material, quanto intelectual. O trabalhador não pode ser

visto apenas pelo seu vínculo formal aos meios de produção, mas tambémpelo trabalho orgânico em seu cotidiano, na comunidade, nas lutas por melhorescondições de vida. Enfim, o trabalhador inserido na totalidade de mundo e

na singularidade das condições de produção a que está submetido e que, aomesmo tempo, o excluem.

A educação, tendo o trabalho como princípio educativo, é processo dehumanização e de socialização para participação na vida social e também

processo de qualificação para o trabalho, mediante a apropriação e construçãode saberes e conhecimentos, da ciência e cultura, de técnicas e tecnologia. Éimportante que se entenda que a cultura tem um peso muito importante no

processo de formação e na perspectiva da educação politécnica.

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É preciso compreender a cultura como complexo resultante dos processosde mediação e de sínteses históricas – a humanidade produz saberes, práticas

e valores, os quais, em cada época e contexto, atribuem significantes esignificados às diversas dimensões e manifestações da vida social e individual,compreendendo as diferentes realidades (de nacionalidades, de etnias, de gênero

etc.) e valorizando a diversidade e a alteridade.

Do mesmo modo, é fundamental situar a ciência e a tecnologia comoextensão das possibilidades e potencialidades humanas. Como construçõessociais complexas, são forças intelectuais e materiais do processo de produção

e reprodução social que participam e condicionam as mediações sociais, maselas mesmas não determinam a realidade. Não são autônomas, tampouconeutras ou apenas experimentos, técnicas, artefatos ou máquinas: constituem

saberes, trabalhos e relações sociais objetivadas (FIGUEIREDO, 2005).

Qual seria então a singularidade e quais as perspectivas da formação detrabalhadores no campo da saúde?

A Educação profissional em saúde é uma prática educativa que tem

propósitos e racionalidades específicas. É prática voltada a cuidar, vigiar,intervir e humanizar. Possui forte componente na construção de vínculos, derelações interpessoais. Ela constitui uma prática bastante específica, que

circunscreve tanto aspectos técnicos como aspectos relacionais e subjetivos.Exige ocupar-se com pessoas, com o sofrimento, com condições de vida, comrelações de produção e consumo. Tem que lidar com relações muito hierarquiza-

das, seja na equipe de saúde, seja na própria relação com a comunidade.

A educação profissional em saúde configura um subcampo da educaçãoprofissional com expressiva diversidade interna nessa própria formação: as

categorias profissionais vão desde o agente comunitário até o médico, passandopelos enfermeiros, físicos, sociólogos, arquitetos, historiadores e engenheiros,dentre outros. Permite incluir, em seu processo de trabalho, um leque de

profissionais que exibe grande diversidade na composição do pensar e dofazer em saúde.

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Para tanto, envolve diversos processos de trabalho e diferentes instituições,além de articular uma quantidade expressiva de tecnologias – das mais leves

às mais duras – e, em consequência, envolver diferentes relações de poder.Essas relações de poder se materializam de modo claro nos territórios: atençãobásica/atenção primária em saúde/ estratégia de Saúde da Família, hospitais,

clínicas e laboratórios. Todas essas modalidades da oferta de atençãocircunscrevem relações de poder que se distribuem tanto na própria equipe desaúde como entre elas, do mesmo modo que na relação destas com os diferentes

poderes constituídos no território.

Em função de todas essas características, a formação em saúde, em seusdiferentes campos e níveis de escolaridade, vai exigir processos de ensino-aprendizagem bem particulares. Há necessidade de elaborações diferenciadas

no tocante ao currículo, à didática e à aprendizagem, que devem estar deacordo com a realidade dos territórios e com a realidade do próprio trabalho.

Outro aspecto importante é o do desenvolvimento de pesquisas relativas

ao fenômeno educativo em saúde nos seus aspectos formais e informais.Nesse sentido, é crucial que a investigação não se dissocie do processo e dosespaços de ensino-aprendizagem, dos serviços e dos territórios, em razão da

necessidade de se considerar as especificidades desses sujeitos envolvidos emprocessos educativos singulares.

No campo da saúde, esse tipo de pesquisa é estratégico em função dasespecificidades dos sujeitos que desenvolvem atividades em dado território e

que vão se relacionar com outros sujeitos também singulares, cujas açõesresultarão em interações bastante diferentes para ambos. Essa característicaconstitutiva do agir social materializada nos territórios, ao ser conhecida/

percebida, pode oferecer elementos para potencializar as ações de saúde,fortalecendo as equipes e a população na resolução de problemas e noatendimento a demandas.

Todavia, na perspectiva da educação para trabalhadores da saúde, há aexigência de se estabelecerem relações próprias com o campo da educação,

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O Território Integrado de Atenção a Saúde em Manguinhos: todos somos aprendizes!

com a sociedade e o Estado – ponto de conexão entre Ministérios da Saúde,do Trabalho e da Educação.

O laboratório de educação profissional em Vigilância da Saúde da EPSJV/

Fiocruz tem cerca de dezesseis anos e, ao longo desse tempo, consolidou umprojeto de formação profissional nessa área.

Na saúde coletiva, a discussão sobre Vigilância da Saúde tem mais de

vinte anos, no entanto ela ainda é uma proposta de modelo contra-hegemônico,uma vez que rompe com os atuais recortes de poder constituído nesse campoe no próprio setor do Estado. A Vigilância da Saúde propõe mudanças no

modelo de atenção e nas práticas, coerentes com aquelas do Movimento deReforma Sanitária Brasileiro dos anos de 1970 e 1980 – apontando aintegração e a complementaridade das diferentes formas de atenção e cuidado.

Ela supera a visão restrita de saúde como ausência de doença – negativa –por outra, positiva, que entende a saúde como produção social.

Hoje, há forte demanda por processos de qualificação/formação em Vigilân-cia por parte de diferentes agentes institucionais do campo da saúde. Isso

exige a formulação e a reformulação sistemática de mapas conceituais, decurrículos e os correspondentes processos formativos. Um currículo não se fazde forma rígida e estanque. O currículo é vivo e nasce a partir do conhecimento

e da cultura: da população, do setor saúde e do processo de trabalho.

Existem experiências de formação inicial em vigilância da saúde consoli-dadas, como, por exemplo, o Programa de Formação de Agentes Locais de

Vigilância da Saúde (Proformar). Desde 2001, esse programa avança naperspectiva da formação profissional técnica, oferecendo a cerca de trinta ecinco mil trabalhadores de Nível Médio do Sistema Único de Saúde (SUS)

uma qualificação de qualidade, integrada ao seu processo de trabalho.

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Atualmente, em Manguinhos, são cento e vinte pessoas15 que estão sendo formadaspor meio de uma proposta pedagógica cujo marco lógico é esse orientador.

Um elemento fundamental para a consolidação do Sistema Único de Saúde

(SUS) na esfera dos municípios é o compromisso dos gestores no sentido defacilitar a formação de sua força de trabalho de nível médio, para que essestrabalhadores possam se identificar com sua práxis cotidiana – um trabalho

baseado na observação da realidade mais imediata e problematizada natotalidade, no conhecimento do território onde desenvolve suas práticas e(re)significa situações de vida do seu cotidiano.

15 Há um processo de formação em curso junto aos trabalhadores de combate a endemias daSecretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro, para que desempenhem atividadede Vigilância em Saúde, formando-se cerca de mil e trezentas pessoas, dentre as quais estão as doterritório de Manguinhos.

Para tanto, esse agente precisa reconhecer e contextualizar o território noqual atua: identificar os outros atores, os problemas e as potencialidades,

situando-os e localizando-os no espaço. A partir dessa análise poderáefetivamente intervir no sentido transformador dessa realidade. Essa forma depensar e de desenvolver o trabalho pressupõe a pesquisa como princípio

educativo – o processo de territorialização. Esta metodologia tem comomaterialidade a representação em base cartográfica (mapas) dos problemas,riscos, vulnerabilidades, potencialidades e dificuldades, de modo que, a partir

desse reconhecimento e localização espacial, seja possível buscar coletivamentea melhor forma de intervir/agir no território.

A racionalidade técnica e gerencial da Vigilância da Saúde pautada noterritório, nos problemas de saúde, nas práticas sanitárias e na intersetorialidade

rompe com alguns recortes de poder do campo da saúde, cujo melhor exemploé o agente comunitário não ser menos importante que o médico. Há umcompartilhamento do trabalho, ou seja, as ações desenvolvidas por ambos

são complementares.

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Essa lógica conceitual e operativa articula as propostas da atenção primáriae da promoção da saúde e pressupõe: integralidade, coordenação, longitudinali-

dade, vínculo, fortalecimento e capacitação da comunidade, além da construçãode ambientes favoráveis à saúde, entendidos como responsabilidade comparti-lhada no tocante ao complexo saúde-doença-cuidado. A ideia central é a de

superar as desigualdades sociais e as iniquidades em saúde, contribuindo tantopara a cidadania como para a autonomia dos sujeitos e a emancipação humana.

O objeto de análise e de intervenção da Vigilância concentra-se nos proble-mas complexos e nas necessidades humanas – resgata a dimensão ontológica

do trabalho (humaniza) e do trabalhador através da postura reflexiva e crítica(ética) sobre as práticas sanitárias. Na medida em que se observa, compreendee emerge no território, aciona-se o caráter humanizador do trabalho e da

educação nas ações e no diálogo estabelecidos entre o trabalhador e a população– sujeitos que produzem e significam sua existência no espaço cotidiano.

O território-processo é o locus de materialização da produção social da

vida e de exteriorização das subjetividades. É o espaço das trocas, das relaçõessociais. E o sujeito dessas práticas não é uma pessoa, é um coletivo humano,é a equipe de saúde, é a comunidade; então, pressupõe ações integradas de

promoção, de proteção e de reabilitação. Do mesmo modo, a abordageminterdisciplinar sobre os riscos e as vulnerabilidades do território possibilitaintervir nos determinantes de doenças e agravos.

Quais os desafios atuais à formação profissional em Vigilânciada Saúde?

Primeiro, seria necessário efetivar expressiva mudança nas organizaçõesde saúde, as quais, na maior parte das vezes, afetam as relações profissionaise de trabalho e nelas interferem de forma negativa. Igualmente seria preciso

impulsionar a descentralização como diretriz de mudança importantíssimapara o campo da saúde. Nesse sentido, existem alguns instrumentos normativosque podem lhe dar maior materialidade para a consolidação e a estruturação

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do SUS. Um deles é o Pacto pela Saúde, que contempla os pactos de Gestão,pela Vida e em Defesa do SUS, os quais contam com vários instrumentos

operacionais, até mesmo com plano diretor de regionalização.

Segundo, deveriam ser considerados os efeitos produzidos pelas inovaçõestecnológicas no processo de trabalho, inclusive na cultura profissional, com afetichização dos instrumentos. A introdução de novas tecnologias pode causar

também impactos negativos no campo da saúde – da não funcionalidade aodesperdício, até a desqualificação do trabalhador e a iatrogenia. Portanto, épreciso manter a atitude questionadora e problematizadora sobre o que se

entende e necessita de fato das tecnologias em saúde: quais as demandas, osusos e seus impactos nas práticas e na saúde das pessoas – usuários etrabalhadores. Será que o processo educativo é uma tecnologia menos

sofisticada do que o tomógrafo computadorizado, por exemplo?

Nesse sentido, é preciso incorporar o papel que os sistemas simbólicosdesempenham na estruturação das atividades de trabalho no que concerne à

reflexão e à prática no processo de trabalho em saúde e na organização darede de atenção do SUS. Um olhar mais acurado sobre este aspecto possibilitadesvelar alguns dos nós críticos para a efetividade das práticas de saúde – da

atenção primária à rede de alta complexidade. Ou seja, é possível que reveleme efetivem mudanças nas relações de poder – hierarquia, subordinação,autoritarismo e coerção dentre outros –, as quais, quando acionadas, podem

impedir a realização do trabalho e do trabalhador.

Finalmente, é preciso compreender a complexidade que circunscreve os diferentesinteresses em disputa. Hoje, o desafio de efetivar o SUS é integrar todas as práticasde atenção básica com as de vigilância e de assistência, quer dizer, há uma subversão

na forma de pensar e de fazer saúde que até então não havíamos conseguidoformular e realizar. Sob o olhar da vigilância da saúde, a atenção básica não selimita ao primeiro nível de atenção – ela invade os níveis secundário e terciário,

por exigir a integração com outro tipo de atenção para atender aos princípios daintegralidade, da complementaridade e da longitudinalidade do cuidado.

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Um elemento importante a ser tomado em conta nessa abordagem, é acomplexidade que o campo da educação profissional técnica em saúde coloca

para o trabalhador de nível médio do SUS, historicamente subordinado nasequipes e nas atividades que desenvolve. Em geral, esse profissional é excluídosistematicamente do processo de tomada de decisão a respeito de suas práticas,

sendo impelido a cumprir tarefas prescritas e não a pensar e a formular questõessobre suas ações. Esta realidade representa mais um desafio: construir umapedagogia que seja questionadora e significativa para esse trabalhador.

Exercitar uma pedagogia problematizadora e significativa na formação

de pessoal da saúde, em especial na do trabalhador de nível médio, implicaestabelecer os nexos entre a organização do trabalho e a vida social doslugares (em diferentes escalas); construir capacidades para lidar com o sofri-

mento e os conflitos que requerem juízo de valor; atuar com rigor político,ético e moral; trabalhar na direção da justiça social e da sustentabilidadeambiental; e, ainda, elaborar e reestruturar saberes, conhecimentos e práticas

que forneçam elementos adequados para reflexão, análise e intervenção narealidade de forma crítica e criativa. Tal como expressa Miguel Arroyo: é precisoderrubar as cercas do conhecimento.

Como derrubar as cercas do conhecimento: inquietações ou perspectivas?

É preciso que nos perguntemos quais os caminhos a serem seguidos pelaeducação em sua relação com o trabalho no capitalismo e nas contradiçõesque engendra, de modo a oferecer dispositivos e estratégias educativas que

permitam humanizar as relações de trabalho, para além de incluir o trabalhadorcomo sujeito do seu destino, aportando ferramentas para sua emancipação.

Existe uma pedagogia nos movimentos sociais e culturais a ser aprendida?

Tal pedagogia é capaz de redimensionar o pensamento educacional? O queé possível aprender a partir da análise dessa dimensão educativa dos movimen-tos sociais? Como oferecer e incorporar aos processos formativos em saúde,

trabalhadores primitivos, oprimidos, excluídos, sujeitos dos movimentos sociais?

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A proposta da educação territorializada baseia-se na perspectiva de que, apartir dos territórios, é possível compreender as dinâmicas sociais que nele ocorrem,

incluindo os trabalhadores de saúde que buscam transformar essa realidade.

A concepção de educação territorializada situa os processos educativoscomo prática social implicada com os contextos locais, formulados, desenvolvi-dos e coordenados a partir da gestão compartilhada em territórios específicos.

Traz a ideia-força da descentralização e da equidade e os princípios dademocracia e da justiça social. Entende que as necessidades e os problemasrelacionados às condições de vida e de saúde das populações ali situadas

emergem dos contextos locais. Nessa perspectiva, coloca-se como ação dialógicaentre as políticas de Estado e as demandas reais das comunidades e dosmovimentos sociais constituídos em territórios, de modo a ampliar os espaços

legítimos de fala e voz dessas populações para o fortalecimento da cidadania.

No entanto, é preciso ter um cuidado muito grande quando se trabalhacom a noção de território, pois há sempre a possibilidade de banalização, de

enfraquecimento do sentido da palavra – conteúdo e significado, em especialpara o trabalho em saúde. Efetivamente, existem múltiplas dimensões, muitossignificados para a noção de território. Território tem a polissemia como marca

distintiva e o problema de escala como elemento de confusão.

O local não é apenas aprisionamento e solidez, tampouco o global é sódispersão e fluidez. A articulação dialética entre diferentes escalas – local-global, regional-nacional, estadual-municipal; entre diferentes lugares – cidade-

campo, asfalto-favela – e diferentes modos de vida – urbano-rural, capital-interior, centro-periferia – é o que pode construir a possibilidade de mudanças,de resistências territorializadas, de territorialização das demandas sociais.

A noção de território está relacionada à dialética da dominação-resistência:de um lado, o território como espaço do exercício da dominação por partedaqueles que detêm o poder instituído; de outro, o território como espaço de

resistência dos dominados e da sua luta pela autonomia, pela libertação.Assim, o território é determinado domínio espacial em torno do qual os diferentes

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atores sociais disputam o controle político, isto é, propõem formas diversas deordenamento territorial, ou seja, distintos modos de organizar as relações

sociais e de apropriação da natureza. Se bem existe uma série de atoressociais capazes de praticar a dominação em determinado território, é precisoentender que os oprimidos, os excluídos sempre fazem movimento de resistência.

Portanto, é essa dialética da dominação-resistência que permitirá construir oespaço dessa pedagogia em movimento.

Nesse sentido, a elaboração de nova proposta pedagógica que conduza auma formação de tipo inovador não é problema pedagógico, mas problema

político. Isso requer a elaboração de novas políticas públicas que articulemsetores para a formação de seus trabalhadores – educação básica e educaçãosuperior no âmbito de um projeto nacional de desenvolvimento justo, igualitário

e sustentável, que tenha compromisso com a redução das desigualdades sociaise com a humanização dos sujeitos.

Portanto, os principais desafios que estão postos são: mudar a cultura

institucional na saúde e na educação; dar continuidade aos projetos em cursoque já têm essa perspectiva; enfrentar a relação de poder nas instituições enos territórios; compartilhar os conhecimentos; trabalhar a partir do território,

das demandas reais da comunidade local; inverter a lógica do planejamento,de tal forma que seja um planejamento ascendente; e, finalmente, incorporarnovos atores na formulação e no desenvolvimento de projetos educativos e

de saúde.

Roseli Salete Caldart (2003), uma estudiosa e militante do MST, propôs

dez lições a serem aprendidas com os Movimentos Sociais. Concordamos comelas e as tomamos como ideias-força a serem refletidas e como caminhos aserem trilhados:

1. As pessoas devem ser o maior valor produzido e cultivado;exige dedicação, tempo, atenção e respeito.

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2. As pessoas se educam aprendendo a ser, constroemidentidades individuais e coletivas, formam sujeitos, valores,memória, cultura, modos de vida.

3. As pessoas se educam nas ações e nas obras queproduzem, é o movimento das ações que vai conformandoum jeito de ser humano por meio das relações sociais, doconhecimento herdado, da memória, do fazer coletivo.

4. As pessoas se educam produzindo e reproduzindo cultura,cada ação é carregada de significados culturais, resultadode sínteses culturais, passado, presente, futuro. Ressignifica-ções, símbolos, gestos, arte.

5. As pessoas se educam vivenciando valores como dimensãofundamental da cultura: princípios de vida, companheirismo,solidariedade, luta pelo coletivo.

6. As pessoas se educam aprendendo a conhecer, pararesolver; aquilo que constrói o conhecimento tem que estarpróximo do fazer cotidiano, em situações concretas.

7. As pessoas se educam aprendendo do passado paraprojetar o futuro, as lições do passado ressignificadas podemconstruir o presente e apontar o futuro.

8. As pessoas se educam em coletividades, as pessoas nãoaprendem a ser humanas sozinhas, necessitam do outro, deuma história, raízes, potencializar o convívio social.

9. O educador educa pela sua conduta, é um modo de ser,mensagem viva de valores, de exemplo, de compromisso integral.

10. É necessário conceber a escola como uma “oficina deformação humana”, sujeitos não se formam apenas na

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escola, existem outros lugares e vivências que produzemaprendizado: “A pedagogia em Movimento”.

Por fim, é preciso ser simples para se colocar sempre na condição de

aprendiz, quando se está imerso em processos sociais – na complexa arte deconstruir humanidade. Deixo como reflexão a música maravilhosa do MaurícioTapajós e do Paulo Cesar Pinheiro, “Pesadelo”, que traduz a luta da educação

na ação-territorializada: ‘quando um muro (sistema) separa, uma ponte (vida)une’. É preciso não desistir, resistir-descobrir novas formas de se encontrar.

(I) Quando um murosepara

Uma ponte une

Se a vingança encara

O remorso pune

Você vem me agarra

Alguém vem me solta

Você vai na marra e elaum dia volta

E se a força é tua elaum dia é nossa

Olha o muro, olha a ponte

Olha o dia de ontemchegando

Que medo você tem denós...

Olha aí

(II) Você corta um versoe eu escrevo outro

Você me prende vivo eeu escapo morto

E repente...olha eu denovo

Perturbando a paz exi-gindo o troco

Vamos por aí eu e o

meu cachorro

Olha um verso, olha o

outro

Olha o velho, olha o

moço chegando

Que medo você tem de

nós....

Olha aí

(III) O muro caiu,olha a ponte

Da liberdade

Guardiã

O braço do Cristo –

Horizonte

Abraça o dia deamanhã

Olha aí

PESADELOMaurício Tapajós e Paulo César Pinheiro

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Educação de Jovens e Adultos: o desafio de reintegrarpopulações excluídas da escola

Felipe Eugênio dos Santos Silva

Um ponto de partida possível para este artigo seria desenhar o panorama

da educação pública na cidade do Rio de Janeiro, observando como ela estáintegrada a toda uma política de metas e prioridades dos gestores da máquinapública. Não há incompetência que sustente o contexto da educação pública

hoje; no lugar disso, existe uma clarividente agenda que deixa explícitos osinteresses dos grupos ligados ao poder público na cidade e no estado.

O orçamento destinado à educação pelo Governo do Estado, por exemplo,é tão transparente sobre seu (des)interesse que, colocado o orçamento diante

da legislação, o montante de recursos fica aquém do que a legalidade exige.Será que estamos lidando com uma política de retenção de gastos? Curiosose reter tanto os recursos em uma pasta tão essencial como esta, não?

Mas o ponto de partida, se é para discutir políticas de educação, não

pode ser perdido quanto à especificidade do território de Manguinhos. Assim,para abordar o desafio de reintegrar populações excluídas da escola, éinteressante problematizar com base na experiência do Programa de Educação

de Jovens e Adultos de Manguinhos (PEJA-Manguinhos) que funciona dentroda Favela de Vila Turismo, no Complexo de Manguinhos, e apresentar os desafiosque essa atuação de EJA pode provocar no contexto da cultura da violação

de direitos – que é marca não só do território de Manguinhos como tambémde tantas outras favelas do Rio de Janeiro.

Começar a tratar do EJA, que está no final do processo da política de

educação inepta – logo, criminosa –, é reconhecer que os atores saídos portantas e quantas razões da escola, em seu retorno são potenciais construtoresde mudanças da outra ponta: aquela que discute educação nos primeiros

anos dos ‘apenas jovens’. O EJA guarda essa possibilidade metalinguística erevisora da educação – e essa não é mera impressão.

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O PEJA-Manguinhos funciona há mais de cinco anos na Organização daSociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) chamada Rede CCAP (a sigla

CCAP tinha como designação até o final dos anos de 1990: Centro de Coopera-ção e Atividades Populares), como um programa territorializado de educaçãode jovens e adultos. Esse nosso PEJA é uma experiência reconhecida como

exitosa no campo da educação por buscar uma perspectiva transforma-dora.Na verdade, ‘exitosa’ significa ter detectado que algumas contradições nãoforam superadas ainda no que tange a pensar o que seja educação popular,

contradições em relação à atuação pedagógica como inconclusa enquanto oprocesso não for protagonizado pelos moradores – os estudantes que sentamem cadeiras escolares todas as noites – como um espaço de exercício dos

valores democráticos. Em tempo: participação política e consciência histórica-crítica para fins de transformação daquele território, hoje hostil ao quepoderíamos considerar práticas cidadãs.

Afinal, os excluídos da escola não estariam já incluídos a partir do momento

em que participam do PEJA-Manguinhos? A resposta é não. E essa resposta,para ser transparente e acessível, passa antes por questionamentos queprecedem a mera negativa à pergunta.

Em primeiro lugar, a expressão ‘excluídos da escola’ deveria ser pensadamais em como esses sujeitos (que têm classe e cor bem definida) são incluídosde modo menor no sistema político e econômico do capitalismo (formando aí

uma grande bolha de hábitos e de marcas identitárias, que podemos chamarde cultura; cultura da coisificação do ser, cultura do consumo, cultura daapatia política), sejam os moradores de Manguinhos, ou mão-de-obra barata

para o mercado ou, mesmo, massa de manobra em tempos eleitorais.

A mulher e o homem da favela não estão excluídos do mundo, mas simalijados de boa parte das letras da Constituição brasileira, essa que garantedireitos. Moradia, educação, saúde, emprego, liberdade de ir e vir são expressões

existentes de modo torto ou ilusório na favela. Mas esses moradores de Man-guinhos, por exemplo, eles estão incluídos, sim, no sistema escolar.

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No plano dos governos municipais e estaduais, a gestão da escola públicaé responsável pela histórica evasão das populações mais pobres ainda no

ensino fundamental, e isso se dá especialmente em territórios de vulnerabilidadesocial. Conceito esse que é um modo todo cuidadoso de chamar Manguinhose tantas outras favelas de “territórios incluídos no sistema capitalista do Brasil”.

Não estão à margem, pois são esses “bolsões de pobreza” que fazem parteda engrenagem do sistema. No entanto, não são excluídos da escola os homense mulheres pobres que um dia vêm a fazer o EJA?

O termo excluído, presente no título deste artigo, veio por sugestão de um

companheiro, um professor de EJA, Leonardo Brasil Bueno. Tomo a liberdadede citá-lo, porque compreendo muito bem o que Bueno sugere com essetítulo. Aqui faço, porém, apenas uma troca por “sistematicamente expulsos da

escola”. Assim é que vejo a competência dos programas “de governo” sobrea Educação Pública. Defendo a Educação Pública neste artigo e ataco semdúvida ou titubeio algum sobre o que falo os programas estadual e municipal

de educação do Rio de Janeiro. E como municipal, especifico a cidade de SãoSebastião do Rio de Janeiro.

Esses moradores de favela, que acima mencionei, podem ser ‘mão-de-

obra barata para o mercado’, porém, em outra medida, não raro, eles própriossão também ‘mercadoria’ ou objeto-coisa que permitem mais ganhos a outrem.Explico: comumente são as populações mais pobres os alvos para as balas

produzidas pela indústria armamentista; em outra medida, são eles os pedaçosde carne que justificam investimentos pela metade em programas de saúdebastante propagandeados – basta conversar com as pessoas que moram em

Manguinhos sobre o atendimento nos aparelhos de saúde instaladosrecentemente no território; e, ainda, são essas mesmas pessoas transformadasem x números de flagelados, donde se inaugura o apelo para políticas públicas

salvacionistas, que salvam, ora, só salvam as empresas e as empreiteiras quesão executoras e formuladoras dos planos de ação das políticas públicas.

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Se os movimentos sociais conseguem, por um lado, pressionar os gestoresda máquina do Estado sobre essa ou aquela demanda, o desenho dessas

ações, na maioria das vezes sai de escritórios de arquitetura ou de caríssimasconsultorias de projetos sociais, ou dos gabinetes dos representantes do poderpúblico com portas fechadas. A falaciosa ‘participação’ dessa população local,

que tanto poderia atuar como fiscalizadora ou parceira das ações – ou, melhorainda, como formuladora das políticas –, quando se dá, quando vira relatóriode que ‘a população ratifica, ou participa disso e daquilo’ é porque já existem

os ‘eleitos’ – se eleitos – os representantes do povo de sempre. Esses represen-tantes, se aqui forem nominados, olha que curioso: o autor deste artigo poderásofrer retaliações sérias. Muito sérias. Mas tudo isso é porque vivemos em

tempos democráticos, e a vida segue cor-de-rosa.

Nesse contexto, ao aderirmos ao conceito de territorialização para tratarda educação de jovens e adultos no PEJA, surgiu um pequeno-grande impasse:territorialização para onde? Em qual sentido? Em qual campo disputar esse

conceito de territorialização?

Com essa reflexão, percebeu-se que existia uma dimensão quase nuncaabordada na educação de jovens e adultos de Manguinhos: a dimensão da

utopia. Em outras palavras, existia uma espécie de esvaziamento do sonho. Aspessoas, quando chegam ao PEJA-Manguinhos para serem entrevistadas comoparte do processo de inscrição, ao comentarem sobre suas perspectivas de

vida e tudo o mais, definem seus ‘destinos almejados’ no campo da sobrevivên-cia. E só. É isso que, na resposta da provocação às suas expectativas, apareceinsistentemente: a sobrevivência, para si e para os seus, como uma marca do

sonho dessas pessoas.

Desde o começo, isso causou um forte impacto na equipe do PEJA e alevou a pensar: como empreender uma educação que se pretenda transforma-dora se, ao mesmo tempo, se continua desenvolvendo um modelo que anula

a possibilidade de sonhar? Por que se segue anulando a possibilidade desonhar dessas pessoas em particular? Por que não se abre a perspectiva que

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lhes permita se perceberem como sujeitos autônomos? E como isso poderiaser provocado? Onde o sonhar-livre tem relação com o universo de violações

de direitos no qual estão inseridas essas pessoas?

É a partir dessa margem que vislumbramos uma linha, o limiar de horizonteque o barco da educação deveria ultrapassar: é necessário que as pessoascriem coisas. Ao serem autores de tecnologias, de ideias, de possibilidades no

lugar de determinismos, também estariam os estudantes em condições de superaresse paradigma da falta de mobilização para mudanças. Se o sistema capitalistaé regido por poucos em detrimento de muitos, explorando esses muitos, não é

motivo para desacreditarmos da óbvia força que a luta popular tenha.

O sonho, que acaba por ser marca muito presente para esse estudanteque volta à escola para fazer o PEJA-Manguinhos, ele há de ser mais ambicioso.

Nem mais carros na garagem, nem mais TVs de LCD estão na pauta (pois issosequer aparece como sonho, ou seja, nem o consumo é declarado). O sonhoa ser compartilhado é simples, é pela subversão da ordem vigente naquele

território. O controle de uma vida com plenitude cidadã. Por que não consideraresse um bom primeiro passo?

Acredito que nada esteja mais ligado ao conceito de Saúde – aquele quea Fiocruz defende, que o Ministério da Saúde defende – do que a cidadania

ativa como parte integrante de um território saudável.

Aqui apresento alguns detalhes que conduzem à experiência com o PEJA-Manguinhos. Para contextualizá-lo, resgato seu funcionamento dentro de uma

Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), que existe hávinte anos dentro do Complexo Manguinhos, a REDECCAP. O PEJA-Manguinhos,é um dos empreendimentos sociais dessa OSCIP, em atividade desde 2004.

Assim, o Programa de Educação de Jovens e Adultos surge em Manguinhoscomo uma parceria da REDECCAP com a Escola Politécnica Joaquim Venâncio(EPJV), e esta, por meio de um convênio, é parceira da Secretaria de Educação

do Estado do Rio de Janeiro.

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Nessa parceria são montados os PEJAs: O PEJA Polo 1, que funcionadentro da Vila Turismo, e o PEJA Polo 2, que funciona na Escola Politécnica de

Saúde Joaquim Venâncio (EPJV). Ambos trabalham com ensino fundamental(segundo ciclo do ensino fundamental) e com o ensino médio. No ensinofundamental, o segundo ciclo (referente ao antigo ginásio), dura um ano e

meio; o mesmo tempo que o ensino médio. O sistema não é seriado; logo, épor créditos. O estudante se forma ao serem cumpridos esses créditos. O PEJAPolo 1 é este que aqui chamamos de PEJA-Manguinhos, e é financiado pela

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP).

Logo no início, os professores do PEJA-Manguinhos, alguns de nós vindosda experiência do pré-vestibular comunitário Construção, percebemos que oplano político pedagógico deveria ser mudado, se observada a educação na

perspectiva da autonomia dos sujeitos. Isto é, percebemos a necessidade de sebuscar alternativa àquele modelo que, em gestões de governos que sucatearamo patrimônio público – como são as escolas da rede pública –, expulsou

sistematicamente as pessoas do ambiente escolar, essas que agora buscamvoltar aos estudos.

O EJA lida com quem é vítima da gestão criminosa da educação pública.

Ou seja, só podemos pensar em não-ser como está atualmente a maioria dosaparelhos públicos de educação regular. O PEJA-Manguinhos não pode sercontinuidade de um modo de fazer gestão, de pensar educação tão falido –

ou bem-sucedido, vide interesses ideológicos nada mascarados dos representan-tes do poder público.

No PEJA, há algum tempo estamos fazendo isso: compondo um currículono qual caibam as demandas específicas do território e no qual estejam presen-

tes as pessoas que moram em Manguinhos. Isso que parece avanço e ousadia,mas não é uma ilegalidade, uma subversão. Ler a Lei de Diretrizes e Bases(LDB) do Ministério da Educação (MEC) é alentador, e é uma pena que “os

alternativos” sejam regra e que, diante dos documentos do MEC, o PEJA-Manguinhos sendo signatário, possa parecer tão marginal ou mesmo ousado.

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Nunca a realidade foi tão irônica. Enfim, deste modo enveredamos pela searade pensar uma educação territorializada em Manguinhos.

Em outras palavras, a territorialização foi reconhecida como uma metodolo-

gia de diagnóstico sobre como funcionam as forças políticas deste território,do mesmo modo que para compreender onde podem caminhar essas pessoasa partir de suas próprias potencialidades – exercitadas para a alternativa de

superação das condições hoje dadas.

Reconhecer as territorialidades do território torna-se parte do planejamentocurricular: as vulnerabilidades às quais estão submetidas as pessoas; os campos

de poder; as injustiças ali colocadas; os conflitos que pareciam até entãoinsolúveis; os espaços que são “respiradouro” de um grupo social asfixiado;em suma, observar esse cenário é o que permite encontrar não só um

diagnóstico claro a partir do qual montar um currículo, mas também permiteperceber que se pode criar uma coisa nova.

Há saberes que aquelas pessoas trazem para dentro da sala de aula queos conteúdos tradicionais não buscavam medir, dos quais não buscavam

sequer se aproximar. Ainda assim, o problema não fica apenas nos ‘conteúdos’,outrossim na abordagem feita por professores e estudantes a partir dos temas.

Daí discute-se o sentido de modificar os conteúdos. Uma vez assumida

essa modificação, a pergunta vem: modificar para qual campo? Em funçãode quais interesses?

Se a perspectiva é transformadora, então essa perspectiva tem que passarpela criação, pela construção de saberes – isso já foi dito aqui. Mas podemos

aprofundar isso, não? Por exemplo: no lugar de os professores apresentaremaos estudantes de Manguinhos um modelo para avaliá-los, exibindo outrabase ‘conteudista’, pensa-se no sentido inverso – os próprios estudantes

poderiam ser, junto com o corpo docente, os construtores de metodologias deeducação e, dessa forma, buscar implodir essa ainda limitada forma de lidarcom o EJA transformador.

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A partir daí, torna-se preciso começar a pensar em como formular umateoria do conhecimento que possa abarcar essa educação territorializada,

que tenha essa perspectiva transformadora para um fim coletivo, de emancipa-ção daqueles até então minorados no retrato três por quatro de Manguinhosna sociedade capitalista.

É muita tarefa a se empreender para alcançar objetivos tão grandes erevolucionários, não? Não há dúvida disso. Mas sem ingenuidade da

capacidade de um EJA ser catalizador da mudança das vidas de mais decinquenta mil pessoas, podendo ele comportar cerca de cem estudantes porano, é mister dizer o que fazemos: buscamos edificar outra maneira de fazer

educação, de pensar educação, de ligarmos a educação aos fins mais radicaisda luta social.

Um aspecto dessa radicalidade, que pode parecer novamente um traçoingênuo e romântico da missão pedagógica, aspecto desenvolvido no PEJA-

Manguinhos, é a subversão – aí sim, subversão – da ideia de reprodução. Nolugar dela, a criação – processos de estímulo à criatividade, à inventividadedo estudante. Autoria e autonomia podem andar juntas. É, ao nosso modo de

ver, uma mudança radical que se empreende com EJA. Os resultados nãoficam no campo da previsibilidade, posto que há liberdade e prazer em vivera liberdade de criar. E os resultados são surpreendentes.

Desta feita, foram criados – em 2009 – os “Laboratórios do livre saber”,transformando o que antes era a antiga Semana Cultural, em núcleo de experiên-cias do ‘conhecimento compartilhado’ na busca de uma linguagem que envol-

va, que encante o outro, o expectador-partícipe. Esse espaço, que se dá emuma semana, é a culminância do semestre. Formou-se em um espaço ondecada estudante pode apresentar suas criações e essas criações se dão de

modo coletivo. Essa iniciativa veio a determinar, de fato, que todo o semestreletivo ficasse contagiado por essa pecha criativa, em especial na abordagem– no modo de encarar e de experimentar transmitir os temas.

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As disciplinas, desde então, devem adotar um enfoque que permita o laboral,que possibilite às pessoas manipularem coisas, utilizarem o conhecimento para a

construção de algum elemento substancial. Produtos estes que possam ser expostospara outras pessoas no final do semestre, tendo como missão apresentar a formana qual aquele conhecimento pôde ser transformado, sem entediar quem está

assistindo e tampouco aquele que está produzindo-exibindo-interagindo.

Essa dimensão de escapar do tédio impulsionou a proposta para o espaçodo jogo, levou ao trabalho com o conceito do Barthes, da ideia do gozo, dafunção da ação para cativar o outro e de, como autor, poder existir ali o deleite

no ‘fazimento’ que vislumbra o prazer do outro. Compreendemos que a educaçãopode ser relacionada ao prazer a partir do momento em que se possui acapacidade de tocar o outro, de construir algo capaz de cativar um terceiro.

Claro que chegar a essas constatações não é o fim da história. O desafioestá mais que de pé. Um deles – pois são desafios, no plural mesmo – está nanecessidade de nós, os professores, compartilharmos um norte comum com

coesão. O que não impede discordância, mas é preciso unidade na ação. Háos professores que – mesmo jovens em busca de inovação – continuavam ater algumas reações-limitações perante um modelo que foge do conteudista,

que foge daquela ação ainda com hierarquia tácita entre ele e o estudante.Como fazê-lo escapar disso? Óbvio que a discussão entre docentes encontraaí seu ringue ideológico. E no PEJA-Manguinhos, sem estrutura hierárquica

entre os professores, existindo um colegiado docente para decisões, essa querelanão se dá sem rusgas ou, mesmo, com o atravancamento de procedimentosmais progressistas aqui, para a emergência de atitudes mais reacionárias

acolá. É um rico processo de disputa esse da construção diuturna do ProjetoPolítico Pedagógico do PEJA.

Outro aspecto a se ter em conta é o da evasão, a qual chega a ser expressivanos EJAs e que, com frequência, está determinada por elementos nem sempre

situados sob o controle dos estudantes. Ou seja, as pessoas que conseguemvoltar a estudar, passam por uma trajetória que, entre inúmeros outros fatores

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de destaque, conta com a própria coragem de voltar. O ensino é noturno,portanto, entre as 19h e 22 horas a pessoa está em uma sala de aula, enquanto

os seus familiares estão em casa. Filhos, maridos, esposas.

É enorme o desafio de conseguir manter essa rotina durante um ano emeio, quiçá três anos – no caso daqueles que buscam finalizar o ensinofundamental e seguir para o médio. Todo e qualquer movimento que abale

um pouco essa tão corajosa nova-condição-de-estudante faz com quedesapareçam durante uma semana ou duas, ou talvez não voltem mais.

Há vários elementos que apontam a alta evasão. Considere-se, por exemplo,

a questão da geração de renda: a pessoa precisa trabalhar mais e consegueum trabalho noturno, ou tem seu horário de trabalho mudado. Considere-setambém a questão da saúde: alguém adoece em casa, em um território –

Manguinhos – no qual as condições do adoecimento não são as consideradas‘normais’ em relação ao resto da cidade; o amparo, ele também não é simples,como se fosse de outros territórios, com condições de dignidade garantidas.

Essa situação de instabilidade vivida pelos moradores de favela desafia o

professor a pensar na possibilidade de se destituir do poder de ser o avaliador;de ser o único propositor de exercícios de conhecimento e que, em câmbio,busque reflexões-soluções a se constituírem de modo compartilhado.

Quando o professor percebe que os estudantes aderiram à proposta decooperação na empreitada de reconfigurar laboratorialmente o que sejam osprincípios da educação pública, significa que eles não mais se sentem sendo

levados, sendo monitorados ou coagidos a ficar em sala de aula sob a mesmalógica da experiência tida na outra escola, da qual foram expulsos anteriormente.

Estar estudando deve ser um procedimento de adesão protagonista – enão apenas voluntária do estudante. Se for voluntária é porque eu proponho

e ele, ou ela, por sua própria vontade, adere. Uma adesão protagonista édiferente: há uma proposta de educação para jovens e adultos, e esse estudantetoma posse dela como coautor dos rumos daquele programa que o inclui e a

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outros. Há diferença entre o voluntário e o protagonista. O protagonistareconhece-se como agente histórico de mudanças – não é apenas um

colaborador esporádico.

Os desafios para o PEJA-Manguinhos não cessam aí. Há de se manter diferenteda escola mal gerida pelos Governos. Falta de professores; aulas tediosas; umtipo de conhecimento tão artificial, mas tão artificial, que se poderia chamar de

pouco humanizado, ou seja, aquele em que as pessoas não se reconhecem.Essas são marcas que devem passar ao longe de um EJA que se pretenda comotal, ao utilizar a territorialização como ferramenta metodológica, ao fazer uma

educação emancipatória porque crítica ao desenho do sistema de marginalizaçãodas populações pobres onde está instaurada a égide das injustiças (econômicase sociais); mais um dos derivados do capitalismo. Isso só se supera quando os

estudantes tomam a dianteira dos processos de proposição e de gestão,reconhecendo-se como agentes de educação. E, daí, pautam os professores,ou pelo menos têm espaço para digladiar suas concepções com possibilidades

de deliberação diante do corpo docente.

A educação territorializada acaba por não ser uma educação em torno sóde Manguinhos, mas a partir do olhar de Manguinhos.

Em geral, boa parte da performance que os professores temos para apresentar

conteúdos está completamente equivocada, pois não consegue fazer a traduçãoentre o que seja linguagem da academia, que nos sistematizou, e a necessáriadecodificação desse conhecimento sistematizado, de modo que as pessoas não-

acadêmicas, as quais irão acessá-lo, consigam tocá-lo, manipulá-lo de fato.Outra via – óbvia – está em conseguir reconhecer a capacidade desses estudantesem construir tecnologias – e retirar a submissão que o ‘saber popular’ apresenta

diante do que se alcunha de ‘conhecimento científico’.

Uma das razões para esse déficit comunicativo é o fato de a academiaacabar se fechando dentro de uma estrutura erguida no limite da vaidade e

da prolixidade, enquanto as pessoas ainda não versadas – e, talvez, jamaisversadas na academia –, por sua vez, podem encontrar caminhos muito menos

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obtusos de manipular ideias, de edificar soluções para o mundo em que viveme um mundo onde possam querer viver.

Pensar no processo da educação territorializada vai passar por esses três

pontos: o primeiro, é claro, é ter a territorialização como metodologia de per-cepção de potencialidades e de vulnerabilidades do território, dos sujeitosdesse território, dos poderes reconhecidos ali. Logo, faz-se necessário que o

professor que vem de fora do território entenda que a favela de Manguinhos,por ser favela, terá necessariamente as características X, Y e Z que, no seuentendimento, toda favela tem. Ao contrário: a especificidade de Manguinhos

tem de ser colocada em questão o tempo todo para montar novo modelo desociabilidade e, daí, enfim, um plano de metodologia pedagógica quecontemple o protagonismo dos estudantes.

O segundo ponto é reconhecer o momento apropriado para implodir aqueleplanejamento inicial que se fez. É tornar evidente a necessidade de pautarnovo plano de aula com os estudantes, alavancando as modificações. Esse é

um processo muito rico, porque é a oportunidade que as pessoas têm para seapropriarem do espaço da educação, onde sejam as criadoras; e põe ememersão um Manguinhos que constrói inteligência. Para trás fica o estigma

de lugar de gente simples e de limitações de gente simples. Afinal, qual oargumento senão o da superioridade do saber técnico-científico sobre o saberleigo para que escritórios de arquitetura desenhem sem consulta alguma o

lugar onde os moradores de favela devem morar?

Finalmente, o terceiro ponto está no modo como o Laboratório do LivreSaber coloca sua marca. Os estudantes do PEJA-Manguinhos não apenascruzam as experiências tidas em disciplinas variadas na construção de instala-

ções de tecnologias de pesquisa, de arte, de cultura, como devem saber usaressas tecnologias para cativar outros estudantes. Quando as pessoas começama construir conhecimento pensando no momento da exposição, quer dizer,

quando se preocupam em como formular estratégias para encantamento dodito sobre o receptor, neste momento elas passam a ser educadoras, portanto

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cumprem o exercício de tentar transmitir o conhecimento criado com o máximode prazer e de clareza, buscando o ‘trazer o outro’ para aquela sua perspectiva.

Há exercício mais antigo do que esse, naquilo que chamamos de ‘fazer política’?

Essas três dimensões podem vir a contemplar notavelmente a luta contraas iniquidades que marcam de Manguinhos. Vislumbrar o empoderamentodesses sujeitos, que são os estudantes, torna-se meta factível diante desse

trilhar supracitado.

Se os estudantes são reconhecidos pelos professores a partir da metodologiada territorialização, e acabam se compreendendo como agentes de educação,

já não mais ocupam o papel passivo do aluno. E esse termo ‘estudante’, aquitão repetido, não está destituído de intencionalidade. Descreve tanto o homeme a mulher que sentam nas cadeiras da sala de aula e se colocam como

sujeitos dos processos, mas também serve aos professores como designação –pois não há professor que não tenha que estudar, nem que seja um pouquinho,antes de dar uma aula.

A missão de um EJA não é que se encerre ali, nas paredes das salas de

aula, todo um ciclo de estudos, de vida com tempo de dedicação para estudar;no lugar disso é mais importante que as pessoas – através do autodidatismo– possam prosseguir seus rumos, que escolham novas leituras, que passem a

olhar criticamente o mundo. Estudar não pode ser reconhecido como práticaapenas restrita à escola. É anterior, como investigação; mas é potencializadapela escola – como casa de exercício dessa investigação do homem sobre o

universo que o cerca. Estudante é um termo que considero equalizador noâmbito escolar.

A terceira etapa do processo, como dito anteriormente, é essa criação, pe-

la qual os estudantes necessariamente vão se sentir responsáveis por transmitirpara o outro um tipo de pensamento estratégico, quer dizer, estarão se questio-nando: Por que eu quero transmitir para o outro esse tipo de conhecimento?

Por que isso aqui é importante? Nesse momento, começa-se a discutir política.

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Quando se começa a pensar em função da tradição do lugar onde se fala,mas no sentido do lugar do qual se quer falar, estamos lidando com arquiteturas

de sociedade, com croquis de cenários, com a ideia de tradução, onde erigimoso mundo da abstração para lidar com as vicissitudes da realidade, essa que éprenhe de contradições e assimetrias. O estudante que lidar desse modo com

a manipulação epistemológica, acredita-se, superou o estigma (e parte simbólicade uma real existência) de vulnerabilidade dentro do território. Na verdade, opotencial de mudança agora é todo dele, de um sujeito que conseguirá exercer

a cidadania ativa – ao menos como meta, o ‘saber-poder-requerer’, aoreconhecer-se agente político.

Recentemente, a equipe docente do PEJA Manguinhos elaborou uma sériede artigos sobre sua experiência. Os textos visam sistematizar e apresentar a

experiência do PEJA: a forma em que se tentou criar diálogo com as pessoasque lá estudam e também com as pessoas que convivem indiretamente comaquele espaço da educação – os familiares normalmente assistem às

apresentações dos projetos do Laboratórios do Livre Saber, e eles estão ali estãopresentes como atores-público que são ‘convidados a dançar aquela dança’.

O texto “PEJA Manguinhos - Cronópios perante a educação”, por exemplo,

traz como referência duas categorias criadas por Julio Cortázar em sua literatu-ra: os cronópios e os famas, a partir dos quais o autor irá criar uma tipologiapara alguns comportamentos sociais. Os famas têm normalmente uma caracte-

rística um pouco mais apagada, mais careta, um tanto quanto positivista. Oscronópios, por outro lado, se permitem o devaneio como se estivessem o tempotodo plugados em uma rede de inúmeras malhas, na qual eles surfam por

entre fios de tantas quantas possibilidades. E mais: sem nunca terem umponto fixo. Os cronópios são pessoas que conseguem ser livres, porque nãoencontraram ainda pudor para sua imaginação. Se pudéssemos tratar como

um pedaço do corpo o imaginário, o dos cronópios, diríamos, possui excelentemusculatura. Os saltos são parecidos com voos.

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Essa perspectiva traz uma dimensão dos estudantes do PEJA que não lhesera reconhecida: o capital cultural de uma pessoa que interrompeu o ensino

fundamental, que começou a trabalhar muito cedo, mas que possui imaginaçãocapaz de fruir livremente – donde faz-se necessário o exercício para além-do-prático-e-da-sobrevivência como horizonte de expectativas. Essa dimensão,

na verdade, não era colocada como pauta. Em efeito, as pessoas chegam aoespaço da educação e lá encontram por escrito quais serão seus nortes. Amedida que consideramos ideal é a dos estudantes demandando os seus

próprios rumos. O inverso disso seria conceber que eles não percebem quepoderiam ser – eles próprios – os autores de um rumo a ser trilhado.

É preciso buscar exercícios cotidianos (para estudantes e professores) demodo a se fazer compreender que as pessoas devem pensar de maneira

autônoma, para, enfim, intervir efetivamente nas idiossincrasias do território.Quando isso se der será, quem sabe, o fim das respostas prontas e o início dosdiálogos como única via de civilização. Literatura, ciência, política de educação

e até a cultura de uma economia calcada em outros princípios: só unindoesses campos de conhecimento com tantos outros aqui não citados,acreditamos – até então – que só assim se pavimentará com terra livre e fértil

o que antes parecia ser o pavimento duro e áspero do cenário contemporâneo.

É por isso que o trabalho de educação no EJA tem como uma das metaso encorajar a ampliação da imaginação livre das pessoas. Estimular a imagina-

ção sem medo de limites, no sentido de fugir do ‘quadradismo’ do modelocartesiano, de pensar que, posicionando um quadrado sobre o outro, somandoA+B, se chegará a algum lugar. Fazer isso abre espaço para contestações:

desnaturaliza o que parece fato; compreende a intencionalidade das estruturasque mantêm as desigualdades.

É preciso inverter os métodos, pensar que é possível criar novo método apartir do próprio prisma e outro método e daí variar e reinventar; isso,

ininterruptamente, reconhecendo o inconcluso como moto perpétuo. É previsível

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que julguem que tal postura provoque um grande caos, de tal forma que osprofessores possam se perder nos seus princípios norteadores:

Se já está difícil encontrar um caminho a seguir na educação,agora ainda vamos ter de anarquizar tudo?” A resposta é:“Vamos sim, vamos anarquizar com tudo agora porque éaqui e agora, a partir de Manguinhos, que essas pessoasvão começar a pautar um novo paradigma, ou entãopermaneceremos nessa inércia de não conseguir construirnorte algum”.

Foi com esta proposta que o corpo docente do PEJA acabou se surpreenden-do, porque as pessoas conseguiram encontrar soluções para desfazer os nósque vinham travando as metodologias, ao menos no Laboratórios do Livre

Saber. Mais de uma vez, isso ficou evidente. Daí vem as ideias dos cronópiosde Cortazar:

A cena não é privilégio de um só EJA, comumente aconteceassim: A tarde se finda e a noite se revelando uma hora amais, minutos quebrados, entre 6 e meia e 7 horas vem eles,pais e mães rumo à escola. Dessa vez, porém, não trazempelas mãos seus filhos, não haverá choro no portão daentrada nem brincadeiras de corre-corre, são as mães e ospais que adentram a escola para fazer o ensino fundamental,ensino médio, estudar matemática, história, pegar cadernoe caneta e ainda assim perguntar ao professor se podeescrever a lápis, conversar com o colega ao lado, rir do colegaao lado, ter sono, ficar entediado, tudo o que um estudantemédio vive. No entanto, não é para esquecermos, estamosaqui no espaço escolar com adultos e em Manguinhos.Embora jovens, alguns até infantis, aquela inocência deoutrora foi perdida e isso, ao invés de lamento é o grandetrunfo de um EJA. Gente que não é mais ingênua e que

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vivenciará o básico dos conteúdos dos estudos formais é opúblico do EJA. Mas podendo subvertê-los, porque aingenuidade perdida permite que você fale o artifício comoprática. Logo, vamos os professores conversar com esses sereshumanos de inocências perdidas. Se fosse em tempo deregimes totalitários e fôssemos nós um desses com quaisquerpossíveis atividades subversivas, não tenho dúvidas: o EJAseria um espaço onde deveríamos ficar mais atentos paraações de uma eminente repressão a ser colocada em prática,as universidades são muito óbvias para a subversão. Os EJAseles surpreendem, Paulo Freire não foi exilado à toa. (SILVA,

2010:13-23)

Por que toda essa introdução para escrever, para falar sobre currículo deEJA? A experiência nessa coordenação pedagógica de EJA, coordenação

coletiva, apresenta um ponto de partida que, na verdade, é duplo questionamen-to para abordar a questão do currículo: Quem é o estudante de EJA? E, nãomenos instigante: porque ele é um estudante de EJA?

Essa questão retorna ao título deste texto e traz consigo uma perspectiva

dialética: há, de fato, uma ‘reintegração’ à escola – mas não é reintegraçãoà escola, porque se está buscando outro modelo de escola, um modelo quesupere aquele outro que expulsou esse indivíduo em algum momento.

Efetivamente, não se trata de reintegração. Não é um trazer de volta. É possibili-tar uma outra escola na qual os sujeitos possam ser autônomos, na qualcriem ou construam maneiras novas para a educação pró cidadania. A escola

pública, hoje, está sucateada pelo que os zapatistas chamam de “maugoverno”; e é nessa escola pública que queremos colocar a expertise acumula-da com uma gestão que se movimenta para uma cultura da participação de

todos. O retorno é para um novo lugar – ou uma nova forma de lidar com olugar de sempre; o retorno é a primeira-viagem para mudanças.

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Os desafios estão dados. Falamos de estudantes e falamos de professores.É muito importante o professor se pensar como agente capaz de estimular a

construção dessa autonomia; do mesmo modo, reconhecer que o estudantetambém é agente de educação; porque ele já o é em seu espaço de trabalho,no seu espaço familiar. Não se pode conceber esse estudante como alguém

que chegará, naquele momento da noite, ao espaço da educação em umacondição de passividade, recebendo de um monte de jovens os estratos deconhecimento de um mundo que não é deles ou para eles. Pelo contrário, é

nessa hora que se deve reforçar a educação com as práticas que ele vive noseu dia a dia, quando ele é educador em casa, no trabalho e na rua.

Ser educador não significa dar lições, mas sim negociar politicamente como outro, estabelecer relações de poder-saber-fazer a leitura do outro para

poder saber até onde avançar, compreender quando são necessários os recuose até que ponto a estratégia de conquista de suas metas é bem sucedida – eeticamente viável.

Essa postura de estar-no-mundo não pode ser separada do espaço daeducação, não para esse estudante de EJA, ele que retorna à escola tendovivenciado o que é desemprego, o que é racismo, o que é machismo, o que é

violência, o que são as violências, o que é iniquidade social. Ainda que esseestudante não enumere dessa forma ou com essas palavras, todos os problemaspelos quais já tem passado, certamente há nele potencial subversivo muito

maior do que, por exemplo, em um público universitário que tenha chegadoao cabo dos estudos sem defasagem de série – reflexo de múltiplas determina-ções sociais.

Por que isso? Porque os estudantes de EJA estão no olho do furacão. Se

eles são provocados a olhar para dentro desse olho e a tomar um rumo quelhes permita enfrentar a realidade que os oprime, essas pessoas podem vir adar melhores e mais factíveis respostas do que o cientista político, ou o construtor

de barragens para hidroelétricas. Os moradores de favela dificilmente teorizarãoa partir de autores do século XIX, do século XX, sobre possibilidades de

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transformação da realidade. Eles vão tentar encontrar os caminhos possíveis;assim como saberão apontar aqueles desvios que não são justos e que não

podem ser pautados para transformação. Se necessários forem os autoresoitocentistas, a escola oferece acesso a esses referenciais. O estudante de EJAtambém pode teorizar, mas é, por excelência, um agente que exercita a práxis.

Só quando os sujeitos do EJA se tornarem cronópios é que conseguirão

superar a caretice não no sentido só comportamental, mas também careticeno sentido de apatia política.

Essa apatia, quando se dá? Quando o homem é massacrado o tempo to-

do por informações e por estigmas que não lhe permitem se libertar do lugarem que está, que não lhe permitem caminhar, discutir e reconsiderar o queestá colocado de antemão, o já definido.

Para concluir, vale a pena mencionar um dado muito interessante sobre as

mulheres no EJA com o objetivo de refletir de que maneira esses sujeitos assimempoderados no EJA resultam propícios para serem estimulados a dar grandessaltos, reforçando-se também, eles próprios, como estudantes e como educadores.

Boa parte das mulheres que estudam no EJA apresenta características emcomum: inclusive considerando as muito jovens, as adolescentes, quase todasas estudantes com mais de vinte anos são mães. Em sua grande maioria, as

mulheres estão no segundo relacionamento ou são separadas. Muitas relatamque no primeiro relacionamento, o companheiro de outrora, ou não asestimulavam/colaboravam a voltar a estudar ou, de fato, as impediam de estudar.

Só quando essas mulheres conseguem superar os limites de poder que a

relação familiar delas tem, é que acabam, finalmente, acessando o PEJA.Pode-se se fazer uma especulação? Será que elas buscam a escola, parasuperarem precisamente esse limite do machismo?

Essa é uma situação que favorece notavelmente as condições para a efe-tiva construção de uma educação transformadora. Outro dato interessante,nesse mesmo sentido, é que, essas mulheres de que falei, dificilmente colocam

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os seus filhos como desculpa para deixar os estudos. Se preciso – e vivemoscotidianamente nas salas de aula – elas levam as crianças pequenas para

verem matemática, biologia, história e filosofia, para viverem entre vozes egizes e imagens e risos.

Os conflitos de gênero ainda são muito latentes em Manguinhos, claro,como em quase todo o território nacional. Mas por que esse eufemismo?

Conflitos de gênero – como todos interpretam e, nisso, têm muita razão, nafavela inclusive, são as violências sofridas pelas mulheres dentro da sociedademachista e sexista. O caso dessas mulheres pejianas que já enfrentam – ao

menos no desempenho discursivo – as querelas mais básicas da condição damulher, encontram no ambiente escolar que se pretende cumprir uma possibili-dade de constituir nova rede social: não mais a familiar, não apenas a de

vizinhança, nem mesmo a limitada à faixa etária, mas sim uma rede de sujeitoscríticos, quais sejam os homens e as mulheres que, no caso, discutem, refleteme tomam posição sobre as vicissitudes da luta pela emancipação do feminino

na sociedade machista.

E a partir do feminino, aqui, é contemplando causas outras, que transversal-mente discutam a sexualidade de maneira ampla e calcada na diversidade

como princípio de uma cultura democrática. Pessoas que estudam no PEJA,moradores de Manguinhos, ao passo que adquirem força em suas lutas(compreendendo-as legítimas e viáveis pela lógica da equidade e isonomia),

quando partem para transmiti-las a terceiros, aos seus parentes e amigos,buscando não só aliados como também outros parceiros de perspectiva, têmmuito mais legitimidade do que qualquer portador do discurso teórico – os

especialistas do campo acadêmico, sem retirar o mérito de seus estudos –,pois a condição existencial é muito mais sensível e cônscia da pulsão que asmudanças carecem para serem efetivadas.

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Até quando essas palavras acima soarem como clarins de uma utopia,será também o tempo de que, no PEJA-Manguinhos, as ações seguirão negando

os determinismos sobre as mulheres e os homens que moram em favela. E avoz que mais se ouvirá será a dessas mulheres e desses homens – vozes deagentes de educação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PEJA – Programa de Educação de Jovens e Adultos. Disponível em: <http://www.seeja.com.br/Trabalhos/13%20Forma%C3%A7%C3%A3o%20de%20Professores/LUISAN~1.PDF>

SILVA, Felipe Eugênio dos Santos. PEJA-Manguinhos – Cronópios perante a educação?In: Luiz Antonio Saléh Amado (coordenador), Karine Bastos e Michelle Oliveira.Implicações da formação docente no processo de construção coletiva depropostas curriculares. Rio de Janeiro: 1° SEEJA PUC-RIO, 2010.

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RELATOS DAS OFICINAS

O objetivo desta atividade foi o de colocar em diálogo as várias iniciativasde ensino e de pesquisa (formal e não formal) que estão acontecendo ousendo propostas em todas as unidades da Fiocruz para o território de

Manguinhos, na perspectiva de articular práticas colaborativas.

Estas iniciativas foram organizadas em cinco eixos temáticos comoestratégia de agrupamento:

Eixo 1 – Política Pública, Planejamento, Monitoramento

e Avaliação e Gestão em Saúde;

Eixo 2 – Saúde, Ambiente e Território;

Eixo 3 – Epidemiologia e Pesquisa Clínica;

Eixo 4 – Informação e Comunicação em Saúde;

Eixo 5 – Educação e Saúde.

A dinâmica do evento previa que os grupos discutissem os eixos propostosseguindo a metodologia de oficinas e que, depois, concluíssem comrecomendações à Gestão do Teias-Escola Manguinhos e para o Território de

Manguinhos como um todo.

No entanto, para otimizar o trabalho e promover maior articulação entreos presentes, foi realizada a junção de dois eixos Política pública,planejamento, monitoramento com Epidemiologia e Pesquisa Clínica. Desta

maneira, ficaram conformadas quatro oficinas de trabalho, nas quais asquestões presentes em Manguinhos foram discutidas à luz dos eixos temáticosao longo de três dias e propostas de ensino e de pesquisa para a gestão do

Teias foram formuladas. Os participantes tiveram a oportunidade de apresentaros seus trabalhos, de discutir, de estabelecer estratégias de colaboração e, porfim, de sistematizar recomendações à gestão do Teias, no sentido de estabelecer

uma agenda de trabalho.

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A reunião de diferentes atores sociais e de profissionais de saúde pretendeupromover uma reflexão acerca da dinâmica do território, além de analisar as

possibilidades intersetoriais de ações, visando à produção social ecompartilhada de ensino e de pesquisa.

Contou-se com a participação de duzentos e quatro pessoas, dentrepesquisadores, moradores, representantes de organizações sociais, gestores,

trabalhadores das unidades de saúde do território e docentes, além de alunosde graduação, de mestrado, de residência e bolsistas. As principais perspectivasdos participantes diziam respeito a conhecer melhor o território de Manguinhos

e a buscar parcerias para a realização das atividades.

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Eixo 1: Política pública, planejamento, monitoramento eavaliação e Eixo 3: Epidemiologia e pesquisa clínica

Coordenadores: Isabella Koster e Mirna Teixeira

Relatoria: Viviane Silva Etelhero, Atilla Lopes de Melo e Silvia Silva

Merece destaque o debate em torno do uso da epidemiologia nos serviçosde saúde, como, por exemplo, a captação de eventos-sentinela que avaliem as

práticas de trabalho.

Foi apresentado o exemplo do Programa de Residência Multiprofissional doSaúde da Família (ENSP/Fiocruz), no qual os alunos desenvolvem investigaçãoe monitoramento epidemiológico para a tomada de decisão. O desafio desta

área está ainda na pouca incorporação desses estudos pela gestão. Neste sentido,enfatizou-se a importância da pesquisa epidemiológica de campo e a dos serviçospara a gestão dos serviços com base na necessidade do território.

Na formação dos profissionais de saúde foram pontuados a fragmentação

e o impacto da inserção desse profissional no trabalho em equipe. Além disso,enfatizou-se o desafio da interdisciplinaridade, sem perder de vista a questãoda especificidade, aspecto essencial para o trabalho territorial. Em tal contexto,

ganhou importância o processo formativo oferecido pelos serviços de saúde,como o Teias-Escola Manguinhos: como formar profissionais para acomplexidade dos problemas de saúde do território?

Quanto à relação com a população, discutiu-se a maneira de como percebere dar visibilidade às diferentes percepções dos usuários, dos profissionais e dosgestores de saúde. É importante avaliar os interesses, as inserções, enfim, a

carga de significados presentes nos serviços de saúde do Teias-Escola Manguinhos.

No debate foi colocada a importância de aprender e de trocar experiências,ressaltando-se que, para isso, é importante estudar e avaliar os canais decomunicação, porque “Teias somos todos nós”.

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Síntese das discussões e recomendações

Eixo 1 e 3: Política pública, planejamento, monitoramento e avaliação/Epidemiologia e pesquisa clínica

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Eixo 2: Saúde, Ambiente e Território

Coordenadores: Leonardo Brasil Bueno e Fátima Pivetta

Reunindo diferentes atores sociais e profissionais de saúde que pretendemdesenvolver ações, ou que já atuam e/ou moram em Manguinhos, este eixoobjetivou um debate que refletisse e construísse propostas referentes aos temas

da saúde, do ambiente e do território. A produção social do ambiente construído,a saúde humana e a do ambiente foram pensadas a partir dos limites e daspossibilidades estabelecidos pelas relações de poder que delimitam o território

de Manguinhos.

A relação entre ciência, política pública e conhecimento construído pelosmoradores norteou a discussão, que apontou múltiplas vulnerabilidades

socioambientais e riscos no território de favela, destacando o quanto estão setornando mais precárias as condições de vida e de trabalho que marcam ocotidiano dos moradores.

Demonstrou-se ser fundamental que as ações da Fiocruz em saúde, ambiente

e território em Manguinhos se desenvolvam de forma articulada, integrada ecom maior participação da população que vive no território. As causas e asconsequências das enchentes, a agenda do lixo, epidemias de dengue e a

qualidade da água foram questões abordadas pelos participantes, quedestacaram a importância de propostas e de recomendações ancoradas naarticulação das ações e na intersetorialidade entre esferas de governo,

instituições de ensino, pesquisa, ciência, tecnologia e organizações sociais epopulares da sociedade civil.

Para serem sustentáveis e gerarem melhoria significativa da qualidade de

vida, destacou-se ser vital a superação da compreensão dos moradoresenquanto objeto de pesquisa, ensino e política, sendo necessário fortalecer ecriar metodologias que os entendam como sujeitos históricos e ativos no

processo da ação.

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Tornou-se possível concluir que o tema proposto aglutina ações, propostase recomendações estratégicas para o Teias-Escola Manguinhos, despertando

múltiplas questões e mobilizando grande interesse de profissionais da saúde edos moradores de Manguinhos.

A diversidade dos perfis, dos projetos e das ações não impediu quepropostas e recomendações coletivas fossem construídas, destacando-se que

processos de formação e de intervenção devem ser ampliados no território,com o auxílio de metodologias que estimulem e intensifiquem a participaçãodos moradores e a cooperação com organizações locais na construção do

Teias-Escola Manguinhos.

Síntese das discussões e recomendações

Eixo 2: Saúde, Ambiente e Território

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Eixo 4: Informação e Comunicação em Saúde

Coordenadores: Antonio Henrique Almeida de Moraes Neto e FernandoLuis Monteiro Soares

Relatoria: Fernando Luis Monteiro Soares

Com a participação de atores coletivos de Manguinhos e de órgãoscorrelacionados à temática da Informação e Comunicação em Saúde daFiocruz, esta Oficina retratou a importância essencial da relação circular entre

Informação e Comunicação para a Promoção, Gestão e Assistência em Saúdee, ainda mais, para a territorialização da atenção básica à saúde em territóriosde exceção, como no caso do Teias-Escola Manguinhos.

A Oficina concluiu que, neste sentido, a Informação e a Comunicação,tratadas de forma indissociável, assumem uma perspectiva de produçãocompartilhada de conhecimento fundamental para o exercício territorializado

dos princípios do SUS por seus sujeitos de direitos, como temática transversal,que tangencia, de forma fundamental, as estratégias de gestão participativa,promoção e assistência em saúde nestes territórios.

Outra conclusão sine-qua-non desta Oficina relaciona a missão da

Informação e Comunicação em Saúde com a superação do quadro atual defragmentação das ações neste campo e no da Cooperação Social com ascomunidades de Manguinhos, em perspectiva intersetorial. Neste sentido,

também concluímos que o protagonismo dos sujeitos de direitos dascomunidades de Manguinhos deve se constituir em ancoragem fundamentaldeste processo integrador.

Temáticas discutidas no grupo: Comunicação na Promoção da Saúde, InclusãoDigital e Social em Saúde, Gestão Social Interativa, via web, em Saúde, Avaliaçãoe Promoção da Gestão da Informação e da Comunicação em Saúde, Avaliação

Participativa de Políticas Públicas Sociais e seus Impactos em Saúde, através delinguagens comunicativas: audiovisual, impressa; Formação do imaginário

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sociocomunitário de Manguinhos em Saúde; Metodologias de informação ecomunicação para a Gestão Sociocomunitária em Saúde.

Metodologias: Construção Compartilhada de Conhecimento, Vídeo-processo,

Dialogia, Pesquisa ação, Pesquisa de recepção.

Síntese das discussões e recomendaçõesEIXO 4: Informação e Comunicação em Saúde

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Eixo 5: Educação e Saúde

Coordenadores: Maria Alice Pessanha de Carvalho, Alda Lacerda

Relatoria: Mayalu Matos

O objetivo deste eixo foi pensar uma política de formação para Manguinhos.Os temas principais que transversalizaram a discussão foram: participação (o

que é, quem participa, como e para quê); concepções de educação e saúde(que permeiam os projetos); e qualificação profissional de trabalhadores emoradores do território a partir do Teias (relação entre pesquisa-ação-formação:

cidadão pesquisador).

Na discussão, várias dificuldades e desafios para a realização do trabalhoforam pontuados. De forma geral, indicou-se a entrada no chamado “territóriode exceção”, devido à violência e à sensação de insegurança, somadas à

rápida e constante mudança das realidades no território. O tempo é outro fa-tor que interfere de forma importante no planejamento das ações, de maneiraque os envolvidos possam participar de maneira mais coesa na construção de

propostas e projetos e amadurecer as relações com os parceiros; também trazimplicações para o trabalho cooperativo e a militância, tanto nas equipesquanto com a comunidade ou com diversas instituições.

Por sua vez, na pesquisa de campo observa-se o cansaço da populaçãofrente às ações dos pesquisadores que ainda pensam a população comosimples objetos das pesquisas, sem se preocuparem com o retorno dos resultados

para os participantes. Soma-se a isso a pequena participação da comunidadenas diversas ações, na medida em que nossa sociedade não garante asobrevivência do indivíduo, mas quer que ele participe voluntariamente do

controle social das ações. É importante que as diversas iniciativas da Fiocruzpossam remunerar e certificar pessoas com nível educacional mais baixo enão apenas aqueles que possuem nível mais elevado.

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Vários diagnósticos sobre o território são identificados nos serviços desaúde, motivo pelo qual existe a necessidade de consolidá-los e elaborar

diagnóstico único. A visibilidade das condições de vida e de saúde vai permitiràs equipes formarem estratégias ampliadas de intervenção nos problemas.Outra dificuldade identificada é a integração da vigilância em saúde com a

atenção básica.

Para os trabalhadores, há necessidade de maior apoio nas ações comuni-tárias e nas discussões acerca da remuneração e do plano de carreira, temasainda complicados na agenda de trabalho dos profissionais de saúde. Nos

processos de formação a questão está em integrar os novos conhecimentosadquiridos quando só uma parte da equipe é capacitada. O mais importantedos desafios colocados é o entendimento unificado acerca das concepções

sobre saúde e educação.

Por fim, o grupo concluiu que é preciso pensar práticas educativas amplase qualificadas, considerando a dimensão simbólica e a cultural do território. É

fundamental se aproximar da população. O trabalho colaborativo requer umarede mantendo (salada de frutas) e não perdendo (vitamina) a identidade.

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Síntese das discussões e recomendações

Eixo 5: Educação e Saúde

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DESAFIOS E PERSPECTIVAS

Desenvolver no bairro de Manguinhos um territóriointegrado de saúde como espaço de inovação daspráticas do cuidado, do ensino e de geração deconhecimento científico e tecnológico, que se traduzaem melhorias da condição atual de saúde e vida dapopulação adstrita, através da cooperação entre a ENSP/Fiocruz e o governo do município do Rio de Janeiro.(GUTIÉRREZ, ENGSTROM & CAMPOS, 2011:s/n)

A citação acima constitui a síntese dos desafios e das potencialidades quese colocam no TEIAS-ESCOLA Manguinhos, aqueles relacionados a ver o território

a partir do olhar da saúde, na perspectiva da promoção da saúde, o que significanão apenas oferecer serviços de atenção à saúde de qualidade, mas promoversaúde em sentido ampliado, isto é, atuar sobre os determinantes sociais da

saúde que impactam a qualidade de vida das populações de Manguinhos.

Este é o desafio de ser executor das políticas de atenção básica da saúdee promotor da intersetorialidade para a gestação de políticas públicas transver-salizadas e integradas que deem respostas a problemas diversos, como lixo,

enchentes, transporte, escolas, poluição, desemprego e violências que produzema doença.

O maior desafio é então a implantação de uma proposta que se pretende

inovadora para a atenção básica, em que os grandes pilares são: a gestão docuidado, a intersetorialidade com a participação comunitária na formulação,na implementação, no monitoramento e na avaliação da política, dos progra-

mas e das ações.

As contribuições dos palestrantes e dos participantes deste semináriotrouxeram muitos subsídios para pensarmos a pesquisa, os processos educativose formativos e para as práticas, ampliando nossos horizontes.

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A proposta de Territórios Integrados de Atenção à Saúde fundada na ideia-força de saúde como qualidade de vida, coloca-nos o desafio de compreender

os processos de produção da saúde e da doença no território de Manguinhos,em que são centrais conceitos e categorias como, entre outros, território,sustentabilidade, desenvolvimento e progresso, promoção da saúde,

intersetorialidade e suas operacionalizações na formulação e na colocaçãoem prática das políticas públicas.

Daí a preocupação de fazer com que esta experiência se transforme empolítica pública que tenha permanência e torne exequível a articulação entre

território e cidade, dimensão essa que coloca a questão do poder e dademocracia. Novas formas governativas para a cidade precisam ser gestadasa partir dos territórios, de maneira que resultem em superação das desigual-

dades socioespaciais.

A complexidade da vida nos grandes centros urbanos, como a cidade doRio de Janeiro, coloca para a pesquisa no TEIAS-ESCOLA Manguinhos a

dificuldade de incorporar a população que vem sofrendo injustiças comoestratégia metodológica para aprofundar a possibilidade do diálogo no sentidode melhor construção do conhecimento das relações do local, do território com

a sociedade e com o global, o que implica fortalecer os instrumentos para ‘fazero território falar’. Isto se dá pela construção e pela consolidação de práticas dediálogo com os atores do território, com os formuladores de políticas, com a

comunidade acadêmica e com todos os setores sociais, que, de uma forma ououtra, produzem e reproduzem as condições de vida no território.

Este é um caminho a ser trilhado para a construção coletiva de paradigmasinovadores e de novas instituições, em que o TEIAS-ESCOLA está incluído, nos

quais as categorias ‘diferenças’, ‘desigualdades’ e ‘diversidade’ devem orientara formulação das políticas públicas e a estruturação das instituições no sentidode permitir escutas qualificadas, como também aceitar que os conflitos e o

contraditório tenham espaço nos processos de trabalho, com o objetivo de

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O Território Integrado de Atenção a Saúde em Manguinhos: todos somos aprendizes!

propiciar uma gestão participativa que dê lugar a reais impactos positivossobre os modos de produção da saúde e da doença.

As práticas de inter e transetorialidade ainda são fragmentadas e é funda-

mental que se criem conexões capazes de propiciarem práticas generosas,aptas a trabalharem as lógicas coletivas e a manterem as identidadesparticulares de cada ente, com respeito às fronteiras linguísticas que protegem

o que é singular na unidade. É preciso considerar a ação articulada e integradacomo um horizonte que se persegue.

A dimensão da educação e da formação é central no contexto do TEIAS-

ESCOLA, enquanto nova experiência em implantação, fundamentada nosprincípios da promoção da saúde, que traz como inquietação a ser vencida aimplementação de seus pilares centrais: a gestão participativa e a intersetoriali-

dade, pilares estes a serem estruturados teórica e metodologicamente e quecolocam dificuldades imensas em sua execução e operacionalização comopolítica pública. Do mesmo modo, há a necessidade de se repensar os modelos

de atenção e de gestão até o momento em prática no SUS.

Os processos educativos e formativos devem estar orientados por um projetopolítico-pedagógico que vise à formação humana para a emancipação e acidadania. Neste sentido, a educação territorializada é caminho fundamental,

na medida em que permite apreender o território e aprender a reconheceraquele em que se vive, compreendendo a sua inserção no processo socio-histórico de formação e as desigualdades socioespaciais com relação à cidade.

Olhar o todo do território possibilita a formação na multi, inter e transdiciplinari-dade, fundamental para a compreensão dos fenômenos da realidade,capacitando profissionais para entender e para agir sobre a complexidade

dos problemas de saúde do território.

Ao incorporar o morador nos processos educativos e de pesquisa comosujeitos ativos – cidadão pesquisador, educador e educando – pretende-se

introduzir a dimensão da sustentabilidade de políticas públicas, comoesperamos que o TEIAS-ESCOLA Manguinhos se torne.

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Para que participação dos moradores do território se efetive é necessáriofortalecer e criar metodologias que os entendam e os incorporem aos processos

como sujeitos históricos e ativos no processo da ação. Essas e outras iniciativasde participação social devem ser fruto de reflexões dos diversos atores doterritório de Manguinhos – gestores, profissionais, comunidade. A implementação

de um espaço de participação social livre e democrática – o Conselho GestorIntersetorial – é experiência inovadora prevista para dezembro de 2011.

Algumas estratégias foram apontadas nas Oficinas e constam dos relatosno capítulo anterior, cuja preocupação central é o estabelecimento de mecanis-

mos e instâncias que viabilizem o diálogo da população com os profissionais,com os pesquisadores e entre si, tendo a real dimensão das implicações sobreas atividades que o fato de morar no chamado “território de exceção” de

Manguinhos tem sobre as práticas e as vivências cotidianas dos moradores,dos profissionais etc. Outro aspecto importante diz respeito às práticastradicionais de pesquisa, em particular, que ainda trabalham com a ideia do

morador como objeto das pesquisa.

As considerações aqui apresentadas dizem respeito ao primeiro ano decolocação em prática do TEIAS-ESCOLA (2010), quando se realizou este semi-

nário. Esse evento, além de permitir reflexão, fomentou a integração de ideiase de ações no que concerne à pesquisa e ao ensino no TEIAS-ESCOLA, temadesta publicação.

Do trabalho já realizado na área da produção de conhecimento científico

e tecnológico, o maior aporte vem do Programa de Desenvolvimento Tecnológicoem Saúde Pública (PDTSP), um programa de fomento à pesquisa das Vice-Presidências de Pesquisa e Laboratórios de Referência e de Ambiente (VPPLR)

e de Atenção e Promoção à Saúde (VPAAS)/Fiocruz.

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O PDTSP tem como missão:

Apoiar a inovação tecnológica no campo da saúde pública,definida como a transformação de ideias em produtos,processos e abordagens tecnologicamente novos ou significa-tivamente aprimorados, visando soluções para os problemasno atendimento às necessidades de saúde da populaçãobrasileira. (Ministério da Saúde, 2011)

Por meio de edital colaborativo lançado em 2010, pesquisadores da Fiocruzforam convidados a submeter cartas de intenção para a constituição da Rede

de Pesquisa e Inovação PDTSP-TEIAS. Desde então, sub-redes de pesquisa estãoem desenvolvimento.

A Rede tem como objetivo desenvolver e avaliar experiências que constituamum modelo de gestão de Território Integrado de Atenção à Saúde (TEIAS) em

Manguinhos, de modo a poder ser utilizado por outros gestores na implantaçãode redes integradas de atenção à saúde em territórios semelhantes mediantea utilização da metodologia de Abordagem Ecossistêmica da Saúde.

A base organizacional da Rede PDTSP-TEIAS é cooperativa e busca acolaboração intrainstitucional através de diversos projetos no desenvolvimentode práticas integradas de atenção à saúde. Além disso, outros eixos estruturam

a Rede PDTSP-TEIAS, como organização das informações sobre o tema quantoà participação social, à intersetorialidade e à promoção da saúde.

Entretanto, a consolidação do TEIAS-ESCOLA como política pública resul-tará da legitimidade que alcançar frente à sociedade e, em particular, à

população de Manguinhos.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GUTIÉRREZ, Adriana Coser; ENGSTROM, Elyne; CAMPOS, Gastão Wagner de Sousa.Território Integrado de Atenção à Saúde: a experiência do TEIAS Escola Manguinhoscomo um novo modelo de atenção e gestão na garantia do direito a saúde. RevistaSaúde e Direitos Humanos. Fiocruz – Editora Ministério da Saúde. 2011:s/n [noprelo].

MS – Ministério da Saúde. Disponível em: http://www.castelo.fiocruz.br/vpplr/pdtsp.php.Acesso em novembro de 2011.

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Participantes Oficina – Eixo 1

Participantes Oficina – Eixo 2

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Participantes Oficina – Eixo 3

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Participantes Oficina – Eixo 4

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Participantes Oficina – Eixo 5

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