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O TIGRE E A SERPENTE Noreena Hertz Como tomar decisões inteligentes num mundo confuso Traduzido do inglês por Jorge Nunes Eyes Wide Open

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O TIGRE E A SERPENTE

Noreena Hertz

Como tomar decisões inteligentes num mundo confuso

Traduzido do inglês porJorge Nunes

Eyes Wide Open

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CONTEÚDOS

UMA DECISÃO QUE PODE MUDAR A VIDA INTEIRA 9

> Passo 1 :: Aprender a lidar com um mundo vertiginoso 11

TER OS OLHOS BEM ABERTOS 29

> Passo 2 :: Ver o tigre e a serpente 31

> Passo 3 :: Não há que ter medo dos Nacirema 65

SER O PRÓPRIO GUARDIÃO DA VERDADE 91

> Passo 4 :: Abandonar a deferência e desafiar os especialistas 93

> Passo 5 :: Aprender com pastores e operários 121

ADERIR AO DIGITAL... COM CAUTELA 145

> Passo 6 :: Cocriar e escutar 147

> Passo 7 :: Escrutinar os sock puppets e filtrar as fontes 175

DESENVOLVER A CAPACIDADE DE SOBREVIVÊNCIA 201

> Passo 8 :: Superar a ansiedade da matemática 203

> Passo 9 :: Monitorizar o termóstato emocional 247

AGITAR AS ÁGUAS 275

> Passo 10 :: Acolher a divergência e incentivar a diferença 277

EPÍLOGO 309

PALAVRAS FINAIS 317

AGRADECIMENTOS 319

NOTAS 323

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UMA DECISÃO QUE PODE MUDAR A VIDA INTEIRA

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PASSO 1

APRENDER A LIDAR COM UM MUNDO VERTIGINOSO

É segunda-feira de manhã.

Em Washington, o presidente dos Estados Unidos está sentado na Sala Oval a refletir sobre se deve ou não ordenar uma intervenção militar no Irão.

No Idaho, Warren Buffett está a decidir se vende as ações da Coca- -Cola ou compra mais.

Em Madrid, uma mãe, Maria Gonzalez, está a resolver se deixa o bebé chorar até adormecer ou pega nele para o acalmar.

Eu estou sentada à cabeceira do meu pai no hospital, a tentar deci-dir se deixo o médico operá-lo ou espero mais vinte e quatro horas.

Ao longo da vida, enfrentamos decisões muito importantes com consequências sérias. Problemas difíceis e desafiantes cuja reso-lução é da nossa exclusiva responsabilidade.

Para além dessas, todos os dias temos de tomar até dez mil decisões triviais1, 227 das quais exclusivamente relacionadas com comida.2 Com cafeína ou descafeinado? Curto, normal, cheio ou duplo? Da Colômbia, do Equador ou da Etiópia? Com

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O TIGRE E A SERPENTE

ou sem um pauzinho de canela? Pingado ou não? Açúcar ou adoçante?

No caso de um café, não é muito importante se escolhermos mal. Torcemos o nariz e vamos à nossa vida.

Mas basta uma escolha errada no que toca a finanças, à saúde ou ao trabalho, para nos arriscarmos a acabar ainda mais doen-tes, mais pobres ou desempregados. E se as nossas decisões dis-serem respeito aos outros – aos nossos pais, aos nossos filhos, ao nosso país ou aos nossos subordinados –, as escolhas que faze-mos podem ter um impacto irreversível também no rumo que as vidas deles irão tomar. Não só no imediato como ao longo dos meses e anos seguintes.

Os erros na tomada de decisões levam jovens a não poupar o suficiente para a reforma, médicos a não detetar tumores, CEOs a fazer investimentos catastróficos, governos a envol-ver-se em guerras inúteis e pais a causar traumas irreversí-veis nos filhos.

Este livro trata de como fazer melhores escolhas e tomar deci-sões mais inteligentes quando há muito em jogo e o resultado é realmente importante, seja para políticos, empresários, pro-fissionais ou pais.

Pensar melhor em como pensamos

É verdadeiramente surpreendente como pensamos tão pouco na qualidade do nosso processo de tomada de decisão e em como poderíamos melhorá-lo. Como estão ausentes dos currículos escolares as aulas sobre este tema.

O pouco que pensamos em como é que pensamos.Basta perguntar à maioria das pessoas como chegaram a deter-

minada decisão para ver como hesitam. O modo como fazemos as nossas avaliações, como chegamos às nossas previsões e esco-lhas, é algo que raramente escrutinamos.

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UMA DECISÃO QUE PODE MUDAR A VIDA INTEIRA

A bem da nossa saúde, da nossa riqueza e da nossa segurança no futuro, temos de assumir a necessidade de desafiar a forma como tomamos decisões. É uma questão de poder pessoal.

Se não quisermos ser vítimas de um futuro que nos é ditado por outros, temos de conseguir ser melhores a tomar decisões de olhos bem abertos e com o cérebro a funcionar.

Isto implica recolher, filtrar e processar melhor a informação, sermos mais inteligentes a discernir em quem podemos confiar e quais as recomendações que devemos ter em conta, ficando cada vez mais aptos a analisar diferentes opções e a ponderar opi niões divergentes. Também nos obriga a desenvolver uma perceção mais clara sobre o modo como tomamos as nossas decisões, a compreender em que medida as nossas emoções, sentimentos, estados de espírito e memórias afetam as nossas escolhas. E a conhecermos e compreendermos o nosso ambiente para poder-mos dominar os desafios particulares que nos coloca.

Temos de aprender, mais concretamente, a lidar com três pode-rosas influências do ambiente em que atualmente vivemos que podem inibir a nossa capacidade de pensar com inteligência e fazer escolhas sensatas.

Afogados no dilúvio

Vivemos na era do dilúvio de informação.Uma era em que publicitários, empresas e meios de comu-

nicação nos enviam tweets, mensagens para o telemóvel e nos seguem online. A era do feed de notícias do Facebook e das reco-mendações da Amazon. Uma era em que somos cada vez mais inundados de informação, até atingirmos um ponto de rutura.

Só uma edição semanal do New York Times tem mais infor-mação do que aquela com que o cidadão comum do século XVII se poderia deparar durante a vida inteira.3 Em 2008, consumía-mos três vezes mais informação do que em 1960.4 Por volta de

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O TIGRE E A SERPENTE

2020, estaremos a gerar um volume de dados quarenta e qua-tro vezes superior ao atual.5

Os nossos corpos da idade da pedra não conseguem lidar com este dilúvio moderno. A evolução é lenta; o dilúvio surgiu rapi-damente. Confrontados com tantos dados, alguns duvidosos, outros não, o nosso coração bate mais rápido, a nossa respira-ção torna-se mais superficial, e começamos a transpirar: o dilú-vio faz o nosso corpo entrar em modo de crise.6

Vários estudos demonstram que não conseguimos compor-tar mais do que sete informações distintas em simultâneo.7 No entanto, ao pesquisar “Qualidades a procurar num cirur-gião” no Google, surgem quatro milhões de resultados. Esta enorme abundância esmaga-nos. É por isso que a maioria das pessoas acaba por olhar só para as primeiras ligações da pri-meira página dos resultados de pesquisa do Google.8 A melhor resposta à nossa questão pode não estar ali, mas não consegui-mos lidar com mais.

Como vamos arranjar espaço para pensar com clareza, debaixo de uma tal chuva de dados? Como vamos discernir a informa-ção útil por entre todo este ruído?

Isto porque existe informação útil no meio da cacofonia. Com efeito, o dilúvio de dados tem uma vantagem extraordi-nária: agora, conseguimos obter as nossas informações em bruto, inalteradas, sem intermediação. Agora, podemos beber a informação diretamente da fonte, sem passar pelos tradicio-nais guardiões.

Isto representa para nós uma enorme oportunidade enquanto decisores. Mas não é fácil discernir aquilo a que devemos dar crédito por entre o turbilhão de informações que agita este pano-rama digital.

Em Londres, em agosto de 2011, uma multidão revoltou-se e incendiou várias zonas da cidade. As lojas de ténis de marca e televisores de ecrã panorâmico foram completamente pilhadas. A Polícia assistia impotente.

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UMA DECISÃO QUE PODE MUDAR A VIDA INTEIRA

Não se tratou de falta de informação. A acompanhar os média sociais, os centros de comando operacionais da Polícia ficaram submersos pelos 2,6 milhões de tweets relacionados com os motins, enviados durante os cinco dias que duraram os tumultos.9

As histórias que circulavam na Twittosfera eram abundantes e variadas, desde aquelas de teor político até coisas que mais pare-ciam saídas de um livro infantil: um restaurante McDonald’s invadido por desordeiros para cozinharem a sua própria comida, a London Eye incendiada, um tigre libertado do Jardim Zoológico de Londres.

O problema foi que, perante tanta informação, como consegui-ria a Polícia distinguir as histórias em que devia acreditar das que devia rejeitar? Que pistas deviam ser passadas aos agentes para serem investigadas? Quais delas deviam ser ignoradas?

Já agora, estes tweets que referi acabaram por se revelar todos falsos.

Na era do dilúvio de dados, com informações tão fragmen-tadas e difusas, provenientes de tantas fontes distintas, como saber em que acreditar e o que ignorar para tirarmos partido do dividendo digital? É este o desafio que este livro vai abordar.

Plim, plim, plim, ping, ding, trrim

Juntemos agora à barragem de dados uma versão moderna da tortura chinesa da gota – o plim, plim, plim da “perturbação con-tínua” – e conseguimos perceber melhor o exigente contexto em que tomamos as nossas decisões.

Neste aspeto, os emails são o Inimigo Mental N.° 1: o ping cons-tante, as janelas a abrir ou a luz verde a piscar, dependendo da plataforma em que os recebemos.

Houve quem tivesse previsto esta situação, quem se desse conta do problema inerente a um meio que podia tão facilmente ficar descontrolado.

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O TIGRE E A SERPENTE

Em 1984, começava então o email a tornar-se popular, Jacob Palme, um engenheiro informático do QZ Computer Centre da Universidade de Estocolmo que desenvolvia uma atividade para-lela como escritor de romances policiais, advertiu que “o sistema de correio eletrónico, se utilizado por muitas pessoas, provoca graves problemas de sobrecarga de informação”.

A causa deste problema [escreveu Palme] é o facto de ser tão fácil enviar uma mensagem para um grande número de pessoas, e de os sistemas serem frequentemente concebidos para darem um controlo excessivo do processo de comunicação ao remetente e muito pouco controlo ao destinatário... No futuro, quando tivermos sistemas de mensagens cada vez maiores, e esses sistemas ficarem cada vez mais interligados, isto vai ser um problema para todos os utilizadores.10

E foi assim que a profecia de Palme acabou por se tornar reali-dade. Vivemos na era do cc e do bcc. Com um simples clique do rato, podemos enviar um email a toda a gente que conhecemos. Vezes sem conta, damos por nós a mandar aos outros informa-ções de que eles não precisam. Em 2012, foram enviados dia-riamente mais de 204 milhões de emails por minuto.11

Quantos emails recebemos por dia? Em que contribuem todas essas mensagens para a nossa capacidade de concentração, de raciocínio, de planeamento e de decisão?

E estamos a falar só dos emails. Basta juntar-lhe o ruído de fundo constante dos escritórios em open space, o matraquear dos telemóveis, das mensagens de texto, das mensagens ins-tantâneas, das chamadas do Skype, das chamadas telefónicas, o engodo dos sites que reclamam a nossa atenção, e começa-se a ver o filme todo. Hoje em dia, três quartos do tempo em que estamos acordados são passados a receber informação.12 Henry Kissinger construiu um escritório à prova de som para traba-lhar, por cima da garagem, e proibiu a mulher e os filhos de lá

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UMA DECISÃO QUE PODE MUDAR A VIDA INTEIRA

entrarem enquanto estava a pensar.13 Mas a maior parte de nós não pode ausentar-se fisicamente quando tem decisões para tomar. Pelo contrário, temos de funcionar num completo estado de interrupção constante e implacável.

Em média, os utilizadores de computadores mudam de janela e veem o email ou outros programas trinta e sete vezes por hora.14 Quarenta e três por cento dos estudantes universitários afir-mam ser interrompidos pelos média sociais três ou mais vezes por hora enquanto trabalham.15 E, hoje em dia, quando alguém tenta contactar-nos, não se limita a enviar um email, manda também uma mensagem para o telemóvel, um tweet, telefona e ainda deixa uma mensagem de voz. Muitas vezes, dá a sensa-ção de não haver fuga possível.16

Este bombardeamento implacável tem consequências. Um estudo da Microsoft Research que acompanhou mais de duas mil horas de atividade dos colaboradores à frente de computadores revelou que, uma vez distraídos por um alerta de email, os utili-zadores demoram uma média de vinte e dois minutos a retomar a tarefa suspensa com o mesmo nível de concentração.17 Em 27 por cento dos casos, precisaram de mais de duas horas para volta-rem ao que estavam a fazer anteriormente.18 Estudos mais recen-tes revelaram que as tarefas demoram mais um terço a concluir quando são interrompidas pelo email.19 Já um estudo realizado junto dos colaboradores da agência de comunicação Porter-Novelli sugeriu que o efeito combinado das chamadas telefónicas e dos emails incessantes pode provocar uma queda temporária do nosso QI, na ordem de uns extraordinários e inquietantes dez pontos.20

Quanto aos escritórios em open space, o ruído de fundo cons-tante dos colegas e dos equipamentos torna-nos 66 por cento menos produtivos.21 Os telefones a tocar nas secretárias, o zun-zum das conversas em que não participamos e os alertas de emails a entrar distraem-nos do trabalho e desmotivam-nos.22

O plim, plim, plim não só nos deixa menos capazes de raciocinar como também nos esgota. Ficamos exaustos. Não conseguimos

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O TIGRE E A SERPENTE

dormir, andamos sempre com enxaquecas, sempre cansados; o nosso corpo responde a estas novas exigências mantendo--nos, como veremos, num constante estado de stress induzido por hormonas.23

E, contudo, precisamos dessas interrupções como de pão para a boca. Apesar do impacto pernicioso que têm, vamos à procura delas. Quarenta por cento das pessoas continuam a ir ver os emails de trabalho depois do horário ou quando estão de férias.24 Oitenta e seis por cento usam o telemóvel enquanto veem televi-são (este número ascende aos 92 por cento na faixa etária entre os 13 e os 24 anos).25 Uma sondagem informal entre amigos revelou um geneticista que consulta sites de notícias de cinco em cinco minutos enquanto trabalha, um executivo de televisão que vê os emails no telemóvel enquanto pedala na bicicleta do ginásio, um negociante de arte que entra no site do Daily Mail sessenta vezes ao dia.

Estamos viciados26, stressados e sobrecarregados, e é, muitas vezes, nesse estado que temos de tomar tanto as grandes como as pequenas decisões.

A questão de saber se conseguimos ligar-nos estando sempre ligados é um tema que hei de retomar mais adiante.

A idade da desordem

A par da distração constante e do plim, plim, plim do dilúvio, a terceira característica que define o nosso tempo, o terceiro ele-mento da tripla catástrofe, é a desordem – uma combinação do colapso de velhas ordens estabelecidas e da natureza extrema-mente imprevisível da nossa era.

Vivemos, pois, numa era em que as ideias do senso comum foram drasticamente derrubadas. Uma era em que o Lehman Brothers, um banco que era “grande demais para falir”, provou ser dispensável. Um tempo em que o rastreio normal do cancro

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UMA DECISÃO QUE PODE MUDAR A VIDA INTEIRA

da mama, em vez de evitar que as mulheres fiquem doentes, pode até acabar por pô-las ainda mais doentes.27

Uma era em que as certezas não podem ser dadas como certas.Há dez anos, alguém conceberia a realização de conversações

sérias sobre a possibilidade de o iuane chinês poder substituir o dólar americano como principal moeda de reserva mundial? Que um país da Zona Euro, o Chipre, viesse a impor medidas draconianas de controlo de capitais? Ou que, aqui mais perto de casa, deixaríamos de poder confiar na segurança do investi-mento em tijolos e cimento?

Coisas em que pensávamos poder depositar confiança plena parecem-nos agora cada vez mais vulneráveis e quiméricas.

Além disso, aqueles de quem dependíamos para serem os nos-sos tradutores e curadores da velha ordem mundial têm vindo nos últimos anos a perder o seu monopólio de conhecimento. As bibliotecas estão a perder terreno para o Google, as agências de viagens para as críticas do TripAdvisor. Os médicos são desa-fiados pelas experiências partilhadas dos doentes. Os donos gri-salhos dos jornais, pelos magnatas de vinte e tal anos dos média sociais.

As ordens estabelecidas estão a ruir por todo o lado à nossa volta.Isto não é necessariamente mau. Num tempo em que os nos-

sos mais célebres sábios económicos não conseguiram prever a crise financeira, em que os nossos serviços de informações não conseguiram prever a Primavera Árabe, em que os grupos do Facebook podem ser melhores a diagnosticar do que os especia-listas em medicina (vamos abordar melhor esta questão no Passo Seis) e em que a tabloidização da imprensa de referência não nos deixa acreditar cegamente nem sequer no que dizem os jornais supostamente respeitáveis, o panorama cada vez mais compe-titivo da informação é, em muitos aspetos, uma coisa positiva.

Mas isto não significa que esta seja uma tendência catego-ricamente boa. Quais são as agendas destes novos curadores? Em que medida são pessoas de confiança? O que pesa mais

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O TIGRE E A SERPENTE

na minha decisão ao procurar o hotel certo? O testemunho do Joe de Idaho ou o conselho do meu agente de viagens de longa data? E muito embora seja verdade que a Wikipedia é hoje em dia tão fiável como a Encyclopaedia Britannica para determina-dos temas28, será que “a multidão” põe sempre o meu interesse em primeiro lugar?

Num tempo de desordem, o passado deixa de poder ser con-siderado como a referência para o futuro, o futuro deixa de ser facilmente previsível, e as verdades aceites e os curadores con-vencionais da informação deixam de ser inquestionavelmente fiáveis.

A desordem pode trazer mudanças e inovações positivas, mas também pode deixar-nos com uma sensação de desnorte e incerteza.

É muito difícil saber em quem acreditar. Em quem confiar. E com quem contar para nos ajudar a perceber o que o futuro nos reserva.

Aderir ao programa: como ser um decisor esclarecido

Muito bem. É este o cenário. O contexto em que temos de tomar decisões é, no mínimo, desafiante.

Todavia, é evidente que temos de continuar a tomar decisões. Eu continuo a ter de decidir a qual dos conselhos dos médicos devo dar ouvidos. O Presidente dos Estados Unidos continua a ter de decidir se ataca ou não o Irão. A mãe que está a ouvir o bebé a chorar continua a ter de decidir se pega nele ao colo ou o deixa chorar a noite inteira. E muita gente a ter de decidir quem vai contratar ou onde vai aplicar as poupanças para a reforma. Continuamos a ter de tomar decisões, algumas delas importan-tes, ou mesmo vitais, independentemente do nosso nível de dis-tração, da quantidade de informação que nos rodeia e da impre-visibilidade e incerteza do mundo atual. Independentemente da exaustão que sentimos.

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UMA DECISÃO QUE PODE MUDAR A VIDA INTEIRA

Com o tempo, acabámos por desenvolver maneiras de fazer isso mesmo, descobrimos atalhos e arranjámos estratégias – algumas conscientes, outras não – para conseguir navegar neste terreno difícil. Estratégias para recolher informação e depois a processar em consonância com a realidade das nossas vidas dis-traídas, inundadas e desordenadas.

Temos de nos questionar sobre até que ponto são boas estraté-gias. A maioria das pessoas passa uma vida inteira sem questio-nar se os seus processos de tomada de decisão são adequados aos objetivos. E isso é algo que temos de mudar, especialmente se estiver muito em jogo e as decisões forem mesmo importantes.

Precisamos de ter mais controlo sobre as nossas decisões e sobre a forma como as tomamos. Temos de nos tornar pessoas com o poder de pensar de forma mais esclarecida.

Sem informação de qualidade em que possamos confiar nem métodos eficazes para a pôr em causa, o mais provável é que as nossas decisões fiquem, na melhor das hipóteses, aquém do ideal e, na pior, prejudiquem gravemente as nossas necessida-des e os nossos interesses. Por isso, nos Passos seguintes, vou alargar-me mais sobre os nossos pontos fracos no que toca à recolha de informação e mostrar como podemos melhorá-los.

Até que ponto estaremos atentos às falhas mais comuns nos raciocínios dos especialistas? Que capacidade temos para perceber as armadilhas estatísticas? Com que rapidez conseguimos iden-tificar um “facto” suspeito? Será a informação em que estamos focados a informação certa para fundamentar a nossa decisão? O que valeria a pena levar em conta em vez dessa informação? A que fontes inusitadas poderíamos recorrer para obter conselhos?

Vou ver se a pesquisa feita é suficientemente exaustiva para confirmar a veracidade das fontes. Saberemos questionar novas fontes de informação digital? Ou como avaliar as “respostas” debitadas pelos computadores? Sabemos em quem confiar e porquê? Vou também olhar em pormenor para as transforma-ções que o processo de tomada de decisão está a sofrer devido

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O TIGRE E A SERPENTE

aos novos amigos e inimigos digitais e apontar as armadilhas, bem como os ganhos imediatos.

Numa era de desinformação, do Photoshop, da Fox News, de pesquisa personalizada e um número cada vez maior de arti-fícios, vou ajudar a descobrir a melhor forma de questionar as fontes e avaliar a qualidade da informação que é apresentada. E, antes do mais, como alargar as opções.

Vou também investigar o surpreendente papel que desempe-nhamos nas decisões que tomamos, observando o que acon-tece, ao nível consciente e subconsciente, durante o processo de tomada de decisão.

Isto porque não somos os decisores robóticos, frios, inexpe-rientes e racionais que a teoria económica apresenta. Dentro de nós, ocorre um vasto conjunto de processos viscerais – os neu-rónios disparam, as memórias agitam-se e as emoções mani-festam-se – enquanto a parte analítica do cérebro debita as suas computações. Como veremos, essa dança entre o subconsciente e o consciente, o intelecto e a intuição, afeta profundamente os riscos que assumimos, os futuros que contemplamos e as previ-sões que fazemos. Tal como o ambiente em que nos movimen-tamos. A cor, o cheiro, o toque, tudo isso afeta as escolhas que fazemos, bem como a linguagem que utilizamos. Isto significa que a nossa resposta imediata vai muitas vezes ter de ser desa-fiada, por mais natural ou intuitiva que possa parecer.

Dada a rapidez com que o nosso mundo está a mudar, vou também examinar se os modelos e mapas mentais que utili-zamos atualmente continuam a ser adequados. De que forma está o passado a afetar as nossas decisões atuais? Está a man-ter-nos cativos de determinados padrões ou comportamentos? Está a induzir-nos a fazer previsões lineares? Seremos capazes de nos libertar do passado sempre que necessário e encarar um tipo muito diferente de futuro?

E teremos reunido a equipa certa para nos ajudar a tomar as decisões mais difíceis? Numa era de conhecimento disperso,

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UMA DECISÃO QUE PODE MUDAR A VIDA INTEIRA

estaremos a basear o nosso processo de recolha de informação no crowdsourcing*? Quem faz parte do nosso círculo restrito? Apoiantes ou opositores? Quem nos serve de “desafiador” ou “tra-dutor”? Estaremos a assumir responsabilidade suficiente pelas decisões que tomamos? Ou a tentar responsabilizar os outros?

Ao longo do livro, vou conjugar as abordagens académicas mais recentes – da psicologia, da economia comportamental, da neurociência, da sociologia, da antropologia e das ciências da informação – com as perspetivas pessoais de um grupo alar-gado de pessoas que têm de tomar regularmente grandes deci-sões – gestores de fundos de risco, juízes, quadros superiores, políticos, agentes de serviços de informações, pilotos de caça, médicos e produtores cinematográficos. Aprendendo com deci-sores que às vezes acertaram e outras vezes erraram estrondosa-mente, vamos ter uma maior noção das características e estra-tégias que nos podem ajudar a ser bons decisores, bem como das iniciativas que podem funcionar contra nós.

No caso de algumas das características, a diferença não é óbvia.Pensemos, por exemplo, naqueles analistas excessivamente

confiantes a quem é concedido um tempo de antena desmesu-rado. Sucede que, quanto mais confiante for um analista nas pre-visões que faz, piores elas se vêm a revelar.29 O mesmo se passa com os médicos. Basta pensar naqueles que têm um excesso de autoconfiança. Eu, pelo menos, já me cruzei com vários ao longo da minha vida. Diversos estudos demonstram que aque-les que estão inabalavelmente convictos dos seus diagnósticos estão com demasiada frequência enganados.30

Por vezes, as estratégias que resultam são incrivelmente simples.Vamos ver como se podem transformar as decisões de um con-

selho de administração pedindo aos diretores para mudarem

* Conceito surgido em meados da década de 2000 que se define pelo recurso a um coletivo (crowd = mul-tidão; source = fonte), geralmente online, para obter serviços, ideias e soluções para determinados proje-tos, tarefas ou problemas. (N. do T.)

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O TIGRE E A SERPENTE

de lugar.31 Vamos descobrir como é muito mais fácil fazer a escolha certa se pedirmos para a informação ser apresentada a preto e branco e não a cores.32 Vamos ficar a saber como toma-mos melhores decisões se tivermos comido uma sanduíche.33

As estratégias bem-sucedidas podem ser um pouco contrain-tuitivas. Quem diria que, por vezes, um doente pode dar melho-res conselhos para lidar com determinada doença do que um médico? Que, para uma equipa tomar decisões mais inteligen-tes, mais vale garantir que essas pessoas passam uma boa parte do tempo em desacordo, em vez de pensarem sempre da mesma maneira? Que, em vez de dar sempre ouvidos ao chefe, a rebe-lião pode ser melhor escolha? Ou que talvez seja aconselhável esperar para aliviar a bexiga só depois da decisão tomada?34

Porém, o que é impossível fazer neste livro é dar uma estra-tégia abrangente e universal. Não se trata de “Piscar os Olhos”, “Dar um Empurrão” ou confiar na “Sabedoria das Multidões”, e ficarmo-nos por aí.35 Não acredito num modelo único para tomar decisões, que funcione para todos nós, em qualquer situação. A vida humana é demasiado complexa para isso.

Espero, pelo contrário, fornecer um “conjunto de ferramentas para tomar decisões”. Um conjunto que permita questionar os hábitos de tomada de decisão e investigar a informação recebida. Um conjunto de ferramentas que confira o poder de tomar deci-sões de formas radicalmente diferentes das utilizadas até agora.

Porque, em última análise, o objetivo deste livro é dar poder a quem o ler.

Dar o poder de ultrapassar os artifícios e avaliar o que é real-mente substancial. Dar o poder de desafiar as ideias do senso comum e determinar o que pode substituí-las. Dar o poder de resistir à intimidação das figuras autoritárias ou de especialistas com excesso de confiança e de olhar de forma crítica para essas opiniões, como se faz com a opinião de qualquer outra pessoa.

Dar o poder de não ter vergonha de pedir ajuda quando é pre-ciso, mas ter as aptidões necessárias para conseguir identificar

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UMA DECISÃO QUE PODE MUDAR A VIDA INTEIRA

quem está em melhor posição para ajudar, e de que forma. Dar o poder de olharmos para a nossa psique e identificarmos de que modo poderemos estar a sabotar a nossa própria capacidade de tomar decisões.

O objetivo deste livro é dar a todos nós o poder de sermos pes-soas capazes de pensar e tomar decisões com mais confiança, independência e sensatez. De nos tornarmos pessoas que não acei-tam cegamente o que os outros nos ditam nem seguem inques-tionavelmente os seus próprios instintos ou análises. De sermos capazes de enfrentar o mundo com os olhos bem abertos e de fazer escolhas e tomar decisões inteligentes por nós próprios.

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O TIGRE E A SERPENTE

BREVES CONSELHOS PARA APRENDER A LIDAR COM UM MUNDO VERTIGINOSO

> Assumir o compromisso de ser um decisor esclarecido.

> Considerar os Dez Passos como um conjunto de ferramentas que auxiliam nessa tarefa. Os conselhos que se seguem vão dar que pensar e são uma ajuda para iniciar o percurso. Ao longo do livro, vamos desenvolvê-los em profundidade.

> Ganhar consciência de que temos de tomar dez decisões todos os dias. Começar a pensar quais são as decisões realmente necessárias e se a prioridade está de facto a ser dada às mais importantes.

> Começar a pensar no modo como as decisões são habitualmente tomadas. Os outros são consultados, é reunido um conjunto de opiniões ou as decisões são solitárias? As decisões são tomadas rapidamente? Ou a tendência é para ponderar bem as opções primeiro?

> Começar a reparar em quem ou o quê costuma normalmente influenciar as escolhas.

> Reconhecer que é preciso tempo e espaço para tomar decisões inteligentes. Começar a pensar de que forma poderá o ambiente ser remodelado para concretizar esse objetivo. Como poderão ser limitadas as distrações e as interrupções? Será possível passar o fim de semana sem tecnologia? Será possível adotar uma nova política no trabalho que limite quem recebe cópias dos emails e em que condições?

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UMA DECISÃO QUE PODE MUDAR A VIDA INTEIRA

> Começar a refletir sobre o modo como os especialistas e os líderes de opinião convencionais têm sido até hoje encarados. É habitual aceitar as opiniões e as ideias deles sem as questionar?

> Questionar, de um modo geral, em quem se confia e porquê.

> Ponderar as estratégias atuais para lidar com o dilúvio digital. Pensar nos atalhos utilizados e na forma como se determina qual a informação em que se baseiam as decisões. Começar a pensar no impacto que essas informações podem ter na qualidade do raciocínio.

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