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Preservar a Memória MIGUEL BOMBARDA PEDRO CINTRA Fotografia José Fontes

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Preservar a Memória

MIGUEL BOMBARDA

PEDRO CINTRAFotografia

José Fontes

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INTRODUÇÃO

Pedro Cintra 7

PRIMEIRO PERÍODO · do início até 1952

· Enquadramento Histórico – 1848-1952: da Monarquia ao Estado Novo

Alice Samara 11

· O Surgimento do Hospital Miguel Bombarda

Pedro Cintra, Ana Paula Santos, Gabriela Nogueira 17

· O Nascer da Psiquiatria em Estados da Europa e em Portugal

José Manuel Jara 23

· O Espaço Arquitetural do Hospital Miguel Bombarda

Carlos Andrade 34

· Evolução Assistencial no Hospital Miguel Bombarda até 1952

Pedro Cintra, Ana Paula Santos 40

· Miguel Bombarda

Pedro Cintra 51

· O Pavilhão de Segurança

Pedro Cintra 55

ÍNDICE

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SEGUNDO PERÍODO · de 1952 a 2005

· Enquadramento Histórico – 1952-2005: do Final do Estado Novo

à Revolução de 1974 e aos Desafios da Democracia

Alice Samara 77

· Funcionamento do Hospital Miguel Bombarda 1952-2005

Pedro Cintra, Rui Durval 82

· Experiência Formativa no Hospital Miguel Bombarda

Ana Ramos 121

TERCEIRO PERÍODO · de 2005 até à atualidade

· Enquadramento Histórico – de 2005 à Atualidade: o Nosso Presente

Alice Samara 125

· Funcionamento do Hospital Miguel Bombarda desde 2005

Pedro Cintra 127

· Miguel Bombarda – O Espaço e o Futuro

Pedro Cintra 130

CONCLUSÃO 133

HISTÓRIAS E ESTÓRIAS DO HOSPITAL MIGUEL BOMBARDA 136

NOTAS FINAIS

· A Motivação do Assassinato 138

· A Carta 141

Bibliografia 143

Créditos Fotográficos/Imagens 148

Autores 150

Agradecimentos 153

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INTRODUÇÃO

O tratamento de doentes mentais tem evoluído no sentido do Hospital para a Comunidade, mas até recentemente os hospitais psiquiátricos eram responsáveis por uma parte substancial dos cuidados prestados a estes doentes.

À escala nacional e internacional, no imaginário coletivo, popular e médico, mas também na realidade clínica quotidiana, devidamente documentada através de diversos registos, houve de facto, períodos bastante conturbados da História da Psiquiatria. É necessário reconhecer que, não obstante o cuidado de profissionais de saúde empenhados, a dignidade humana nem sempre foi devidamente acautelada.

O Hospital Miguel Bombarda (HMB), tendo sido o primeiro hospital psiquiátrico português, tem, neste contexto, uma importância histórica ímpar.

Neste hospital estiveram internados, desde a sua fundação, e durante 163 anos,(1) mais de 66 mil doentes. Em alguns períodos de funcionamento do HMB, estes internamentos decorreram em condições que hoje nos podem parecer chocantes.

Por outro lado, ao longo de mais de século e meio, trabalharam no HMB centenas de profissionais, entre os quais médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, psicopedagogos, terapeutas ocupacionais, técnicos de reinserção profissional, assistentes operacionais, administrativos e outros, que deram o seu contributo para o alívio dos sintomas de doença mental, inclusive no período que antecedeu o surgimento de fármacos modernos, e em que as opções terapêuticas eram muito restritas.

A cloropromazina foi descoberta acidentalmente em 1952, sendo o primeiro psicofármaco verdadeiramente eficaz. O cirurgião francês Henri Laborit procurava fármacos que pudessem atenuar o stresse induzido por procedimentos

(1) O Hospital foi fundado em 1848, designando-se Hospital de Rilhafolles (Anexo do Hospital de São José). Em 2007, foi criado o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL) e o até então designado Hospital Miguel Bombarda passou a funcionar como Polo HMB do CHPL. O Polo Bombarda encerrou em 2012. Ao longo do livro, a designação Hospital Miguel Bombarda é usada como termo unificador, em sentido lato, abrangendo o período compreendido entre o primeiro e o último dia da sua atividade assistencial, uma vez que é a que melhor reflete a identidade do hospital, no seu conjunto.

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cirúrgicos. Foi neste contexto que se constatou o efeito «tranquilizante» desta substância. Neste sentido, pode afirmar--se que a psiquiatria moderna tem início nesta altura, o que equivale a dizer que como especialidade clínica, tal como a conhecemos hoje, tem menos de um século!

A cloropromazina começa a ser utilizada como antipsicótico em Portugal em 1954. Até ao surgimento dos primeiros psicofármacos eficazes, o tratamento de doentes mentais passou por métodos como banhos de água gelada, contenção física com coletes de forças, cadeiras fortes, sangrias, coma barbitúrico, malarioterapia, coma insulínico e eletroconvulsivoterapia sem anestesia… estes métodos foram também praticados no HMB.

Trata-se de procedimentos que hoje nos parecem bárbaros, pelo que o imaginário popular se por um lado peca por excesso na imagem fantasista e degradante que veicula desta psiquiatria, por outro lado não andará assim tão distante da realidade.

Não pode deixar de ser referido, contudo, que em determinados períodos o HMB foi uma instituição moderna com cuidados muito avançados para a época, nomeadamente com as mudanças introduzidas quando Miguel Bombarda foi diretor.

Nos anos 70/80 do século XX, o hospital começou a diversificar a sua atuação clínica, abrindo-se para o exterior e criando um ambulatório mais próximo da comunidade, mantendo em simultâneo a sua atividade clínica e de investigação.

Foi coordenado por várias administrações e nele pontificaram figuras de vulto da Psiquiatria portuguesa, entre as quais o Prof. Eduardo Luís Cortesão.

Viria a dispor de várias consultas e serviços específicos em áreas como o alcoolismo, a gerontopsiquiatria, o stresse pós-traumático, a psiquiatria transcultural, a psicologia, a neuropsicologia, a terapia ocupacional, a formação profissional, a reabilitação, e estruturas como o hospital de dia e unidades na comunidade.

As primeiras notícias sobre o eventual encerramento do HMB começam a surgir em finais de 2005, no contexto de um debate sobre desinstitucionalização de doentes mentais de evolução prolongada, no âmbito do Plano Nacional de Saúde Mental (a chamada Reforma da Saúde Mental), aspeto que ultrapassou largamente a psiquiatria e teve amplo eco na comunicação social.

Para retratar a evolução histórica do hospital, este livro está estruturado em três períodos: da fundação até ao surgimento do primeiro psicofármaco eficaz (1848-1952), um período que se poderia definir como correspondente à psiquiatria moderna (1952-2005) e o período correspondente ao desmantelamento (desde 2005).

Foi feito um esforço de enquadramento histórico-social e de caracterização do movimento assistencial em cada um destes períodos, recorrendo à inestimável colaboração de vários autores e sempre que possível a imagens, ilustrações e gráficos. O livro inclui um capítulo em que se descrevem as condições atuais do espaço arquitetónico e o que está projetado para o futuro.

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É de capital importância assinalar que os edifícios do Hospital integram um importante património, nomeadamente o Balneário e o Pavilhão de Segurança, um edifício panótico, singular e muito raro do ponto de vista arquitetónico, estando ambos classificados pelo IGESPAR. Procurou-se refletir estes aspetos no livro, sendo o Pavilhão de Segurança abordado num capítulo próprio.

Parte da história do Hospital, muito particularmente a dimensão humana das pessoas que nele viveram, está documentada através do notável espólio fotográfico elaborado pelo Dr. José Fontes, à data aluno da Faculdade de Medicina de Lisboa, em 1968.

Existe um reduzido número de publicações sobre Miguel Bombarda, o HMB e o Pavilhão de Segurança, mas tanto quanto seja do conhecimento geral, nenhuma que dê testemunho, de forma integral, inteligível, e devidamente contextualizada, da história do Hospital, desde o início até à atualidade; uma parte substancial dessa mesma história tem sido transmitida oralmente, nomeadamente entre médicos, e nunca foi escrita.

Como médico psiquiatra, tive a honra de pertencer à última geração de médicos internos que iniciaram a sua formação no mais antigo hospital psiquiátrico do país, antes de serem tornadas públicas quaisquer intenções sobre o seu encerramento.

O meu internato da especialidade correspondeu assim ao período mais intenso de discussão sobre desinstitucio-nalização, que chegou a revestir-se de momentos singulares de aceso debate em congressos médicos e noutros locais.

Este livro não pretende ser, no seu conjunto, uma tomada de posição sobre a desinstitucionalização dos doentes psiquiátricos a que a história do (encerramento) do Hospital Miguel Bombarda se encontra inextricavelmente ligada.

O leitor saberá tirar as suas conclusões. O que pretende sim é constituir um tributo a todos os que por aqui passaram, milhares de doentes assolados por

um intenso sofrimento mental e centenas de profissionais que os assistiram nesses períodos tão difíceis das suas vidas.

Para mim era imperioso que esta História ficasse registada.

É para que a memória não se perca, e em certa medida, a história não se repita, que este livro foi escrito.

Lisboa, 9 de Agosto de 2012

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PRIMEIRO PERÍODODO INÍCIO ATÉ 1952

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ENQUADRAMENTO HISTÓRICO

No período de 1848 a 1952, Portugal assistiu a várias transformações a nível político, económico, social e cultural. Num período de pouco mais de um século, Portugal foi uma Monarquia, assistiu à implantação da República, em 1910, e participou na I Guerra Mundial (1914-1918). Em 1926, o regime republicano caiu e viveram-se os tempos da Ditadura Militar e mais tarde o Estado Novo, sob a égide de Salazar. Privilegiámos uma abordagem política e social, necessariamente incompleta, devido às balizas cronológicas deste trabalho, de modo a compor um retrato, a pinceladas largas, de um país que se transformou a diferentes velocidades, e de uma forma não homogénea.

Podemos enquadrar este período na conjuntura da crise do sistema liberal português (1890-1926) na qual se desenhavam várias alternativas políticas que podemos dividir em dois grupos. Por um lado, os agentes e grupos políticos que não tinham acesso e voz no sistema político e que defendiam a necessidade de uma reforma democratizante (muito embora uma minoria defendesse a necessidade de «revolução social»); por outro lado, encontramos correntes de pensamento antiparlamentares e antidemocráticas e vários autoritarismos.

Em 1848, ano de revoluções e movimentos nacionalistas europeus, reinava em Portugal D. Maria II, da dinastia de Bragança. Entre 1834 e 1851 a conjuntura política não era pacífica, tendo «(...) uma distintiva marca de quase endémico confronto entre as várias parcialidades políticas em cena, acompanhado por uma também quase infindável série de golpes palacianos, levantamentos populares, pronunciamentos militares e guerras civis.»(1)

Com a Regeneração (1851) e a chegada de Fontes Pereira de Melo ao poder, iniciou-se um período de estabilidade política e crescimento no qual se defendia a necessidade de lançar o país na senda do progresso, de modo a aproximar o país da Europa. Uma das imagens fortes do desenvolvimento foi a expansão dos caminhos-de-ferro,

(1) Sardica, José Miguel «A Política e os Partidos entre 1851 e 1861» in Análise Social, Vol. XXXII (141), 1997, págs. 279-333.

1848-1952: DA MONARQUIA AO ESTADO NOVOAlice Samara

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sinal da modernidade. Este modelo, que assentava no livre cambismo de base agrícola numa prática sistemática de défice orçamental e no financiamento externo, foi desarticulado pela crise dos anos dos anos noventa do século XIX.

Portugal era ainda um país essencialmente rural e pouco desenvolvido, na periferia da Europa. No entanto, o princípio da industrialização (o pioneiro do cinema Aurélio Paz dos Reis não deixou de registar a Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança), a urbanização e a terciarização, com as alterações sociais delas decorrentes, modificavam o país. Cresciam as clivagens entre os mais ricos e os mais pobres e as assimetrias entre as regiões, nomeadamente entre o interior e o litoral. A percentagem de analfabetos (problema que assombra a sociedade portuguesa até meados do século XX) era, no final do século XIX, de cerca de 75%. Assistia-se à entrada em cena de novos atores políticos, que queriam ter uma voz pública, designadamente os trabalhadores e a pequena e média burguesia urbana. Foi ainda no último quartel do século XIX que se assistiu a um renovado interesse pelas colónias, em paralelo com o que vinha acontecendo com outros países europeus. Neste «ciclo africano do império», as colónias eram a miragem de um «novo Brasil». Tal como o protagonista do romance de Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires, que embarcou para África no vapor Portugal, para tomar a seu cargo o prazo concedido. Esperança essa que sofreu um duro revés com o Ultimatum britânico de 1890 (impondo a retirada de territórios africanos ocupados), que inviabilizou o projeto do mapa cor-de-rosa, ou seja, a ocupação dos territórios africanos de Angola a Moçambique.

A aceitação das condições impostas pela Inglaterra deu origem a uma tremenda crise política e social, capitalizada pelo movimento republicano, que transformou a exaltação patriótica num momento de crítica da monarquia e do jovem D. Carlos I (que morreria a 1 de fevereiro de 1908, às mãos de Costa e Buiça, republicanos e carbonários). No ano seguinte à crise do Ultimatum, a 31 de janeiro de 1891, os republicanos lançavam-se na primeira tentativa, malograda é certo, para derrubar a monarquia pelas armas. A partir de finais do século XIX, a Monarquia Constitucional e o sistema rotativo, ou seja, a alternância no poder e em cargos públicos dos dois grandes partidos, o Regenerador e o Progressista, começam a enfrentar duras críticas, sobretudo por parte dos republicanos, e dificuldades, sendo comprometidos por alguns escândalos políticos e financeiros.

No final do século XIX viviam-se tempos que se sentiam como de crise e de decadência. Os republicanos souberam capitalizar este mal-estar, apresentando a cura para um país que acreditava estar doente. Para muitos, com a República viria a «Nova Aurora», ou de uma forma mais prosaica, o «bacalhau a pataco», ou seja, uma melhoria das condições de vida.

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A 5 de outubro de 1910, a Monarquia caiu e a República foi implantada. O «povo republicano» de Lisboa esteve nas barricadas da Rotunda, confraternizou com a tropa e festejou a revolução.

Feita a República, muitas eram as tarefas e os desafios que se impunham ao novo regime, nomeadamente a aceitação internacional numa Europa de «cabeças coroadas». De entre as várias medidas tomadas na primeira fase do regime cumpre referir as de carácter simbólico, com a escolha de uma nova bandeira, que deixando o azul e branco, passou a ser verde e rubra, de um novo hino, uma nova moeda e as de política educativa. Em abril de 1911 foi publicada a Lei da Separação das Igrejas e do Estado, assinada pelo ministro da Justiça, Afonso Costa, uma das mais importantes e polémicas leis desta primeira fase da República, que abriu uma clivagem com a Igreja. Apesar do republicanismo anticlerical e da existência de livre-pensadores, o país era ainda maioritariamente católico. A somar ao inimigo monárquico, os republicanos ganharam o «inimigo dos púlpitos». De igual modo, abriu-se a questão social, as divergências e conflitos entre os trabalhadores organizados, que tanto tinham contribuído para a implantação do novo regime e que queriam, de entre várias reivindicações, melhores condições de vida, e o poder republicano.

Em 1911 foi aprovada a Constituição, dando origem a um regime parlamentarista, e eleito o Presidente da República.Nesta primeira fase do regime é essencial fazer referência à participação na I Guerra Mundial (1914-1918). As

razões justificativas da beligerância portuguesa são três: em primeiro lugar, os republicanos pretendiam defender as colónias dos apetites expansionistas das grandes potências; em segundo lugar, a entrada na guerra ao lado dos aliados da Entente, permitia consolidar uma posição no xadrez internacional; por último, a opção guerrista, que tinha como rosto Afonso Costa, visava criar uma causa em torno da qual se aglutinassem as diferentes sensibilidades políticas e sociais. Na conjuntura de guerra, Sidónio Pais tomou o poder, procurando uma «República Nova» e ensaiando um regime autoritário, que não deixou de constituir uma experiência importante para as várias direitas portuguesas. Ao invés de unidade, a conjuntura da guerra abriu uma profunda crise económica, social e política, que contribuiria em muito para a queda do regime.

No pós-guerra, assombrado pela crise, vemos surgir o extremar de campos entre a esquerda e a direita e o aglutinar de várias forças em torno da necessidade de ordem e de um Estado que a mantivesse.

A 28 de maio de 1926, o governo republicano de António Maria da Silva foi apeado do poder por um golpe militar, chefiado por Costa Gomes.

De 1926 a 1933/34 assiste-se a um complexo processo de transição da Ditadura Militar para o Estado Novo, com uma importante luta interna entre o bloco militar e o grupo salazarista, obviamente depois da chegada

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ao poder de Oliveira Salazar em 1928, como ministro das Finanças, após ter criticado duramente a política económica e financeira da Ditadura Militar. Conflito também entre a ditadura e o republicanismo reviralhista e os movimentos sociais.

Na sua tomada de posse Salazar afirmou saber muito bem o que queria e para onde ia; de facto, trazia com ele toda uma outra visão do que deveria ser a política e a sociedade em Portugal, com base em princípios conservadores, católicos, autoritários e nacionalistas. Como ministro das Finanças defendeu a necessidade de um orçamento equilibrado, aplicando a «ditadura financeira». Em 1930, segundo o Ato Colonial, fazia parte da essência orgânica da nação portuguesa e era a sua função histórica deter e colonizar os territórios ultramarinos. No mesmo ano foi criada a União Nacional, o «partido» do regime. De 1928 a 1932 Salazar consolidou a sua posição no seio da Ditadura Militar, alargando a sua base de apoio. Em 1932, Óscar Carmona, Presidente da República, nomeou-o Presidente do Conselho.

Em 1933 foi aprovada a nova Constituição. Tratava-se de um regime corporativo, nacionalista, com um Estado forte e intervencionista. As liberdades fundamentais eram coartadas e a censura prévia amordaçava a oposição.

No mesmo ano foi criada a polícia política (primeiro PVDE, depois PIDE), com várias prisões políticas, de entre as quais o Tarrafal, criado em 1936, e o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), dirigido por António Ferro, com a sua «política do espírito». A polícia política era um poderoso instrumento de repressão, vigiando, prendendo, torturando os opositores. De entre eles, cumpre referir o papel do Partido Comunista Português (PCP). O SPN, por seu turno, difundia os valores do regime, construindo a sua política cultural, que teve como uma das realizações mais importantes a Exposição do Mundo Português de 1940, comemorativa do duplo centenário, no mesmo ano da celebração da Concordata com a Santa Sé.

Em 1936, numa conjuntura de endurecimento do salazarismo, foram criadas duas outras organizações fundamentais na estrutura de poder do regime, a saber, a Mocidade Portuguesa e a Legião Portuguesa.

Em 1939 iniciou-se a II Guerra Mundial, com a invasão alemã da Polónia, e Portugal declarou a neutralidade, o que permitiu a Salazar fazer lucrativos negócios com os beligerantes, nomeadamente com o volfrâmio. Lisboa era uma cidade cheia de espiões e de refugiados, um local seguro e passagem para a fuga de uma Europa em guerra.

A partir de 1941 sentiam-se em Portugal os efeitos da guerra, nomeadamente a falta de géneros e a inflação. O descontentamento social grassava e, mesmo em ditadura, estalam greves e movimentos de contestação (por exemplo: verão de 1943 e maio de 1944), tendo o PCP um papel de grande destaque, reorganizado e sob a direção de Álvaro Cunhal, o seu líder histórico.

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A partir da altura em que os ventos de guerra começaram a soprar a favor dos Aliados, em 1943, o regime concedeu «facilidades» aos Aliados, nomeadamente com as bases nos Açores. Em 1949, Portugal seria um dos membros fundadores da OTAN.

Na conjuntura do final da II Guerra Mundial e da renovada esperança da queda dos fascismos, assistimos à primeira crise do regime salazarista, com um renovado alento por parte das oposições. O Movimento de Unidade Democrática (MUD), constituído em outubro de 1945, e o MUD juvenil representam esta dinâmica e esta esperança de mudança.

Salazar e o Estado Novo conseguiram, contudo, sobreviver no cenário de Guerra Fria, sendo de grande relevância o anticomunismo do Estado Novo. Fazendo algumas mudanças «cosméticas», o regime atravessou a crise e passou a uma postura ofensiva, desarticulando conspirações, prendendo opositores e reprimindo as greves.

Apesar da recusa inicial, em 1948, o Estado Novo recebeu a ajuda financeira do plano Marshall, que inundou o país com dólares. Portugal foi também um dos países que subscreveu a convenção que criou a Organização Económica para a Cooperação Europeia (OECE).

Óscar Carmona morreu em abril de 1951, abrindo-se a questão da sucessão presidencial. A escolha acabou por recair em Francisco Craveiro Lopes, num contexto onde se digladiavam diferentes correntes, nomeadamente a marcelista-reformista e a direita do espectro político salazarista.

O candidato da oposição Ruy Luís Gomes (Movimento Nacional Democrático) foi considerado inelegível pelo Conselho de Estado e o almirante Quintão Meireles desistiu, considerando que não estavam reunidas as condições de seriedade do ato eleitoral. Sem surpresas, Craveiro Lopes foi «eleito».

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Imagem 1 – Fotografia atual daquele que foi o Edifício Principal do Hospital Miguel Bombarda (fachada)

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O SURGIMENTO DO HOSPITAL MIGUEL BOMBARDA

O Hospital Miguel Bombarda, primeiro hospital psiquiátrico português, localizava-se na Freguesia da Pena em Lisboa, e abriu portas a 13 de dezembro de 1848.

Chamava-se então Hospital de Rilhafolles. Tinha carácter asilar e era considerado um Anexo do Real Hospital de São José, como o atestam vários documentos da época.(1)

Miguel Bombarda toma posse como diretor a 2 de julho de 1892 e deixa de ocupar o cargo a 3 de outubro de 1910, quando é assassinado poucas horas antes de se iniciar a revolução que levou à Implantação da República.

Em homenagem ao magnífico trabalho desenvolvido por Bombarda, o hospital passa a designar-se, em maio de 1911, sob direção do Prof. Júlio de Mattos, Manicómio Bombarda, e começa a funcionar como Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina de Lisboa.

Em 1945, Asilo Psiquiátrico Miguel Bombarda. E finalmente, por ocasião das comemorações do primeiro centenário, em 1948, Hospital Miguel Bombarda.Em 2007, por fusão com o Hospital Júlio de Matos (HJM), passa a integrar o Centro Hospitalar Psiquiátrico

de Lisboa, sendo correntemente designado por Polo Miguel Bombarda do CHPL.(2)

(1) Relatório do Estado e Administração em Geral do Hospital N. e R. de São José, de Rilhafolles e Anexos Para Sua Magestade a Rainha, Dirigido ao Ministro de Estado dos Negocios do Reino O Conselheiro D’Estado Rodrigo da Foncega Magalhães Pelo Enfermeiro-Mor, o Conselheiro Diogo Antonio Correia de Sequeira Pinto (1852); Epitome dos Melhoramentos Estabelecidos de 1851 a 1859 no Hospital de S.José e Annexos Pela Administração dos Mesmos Hospitais, De Que É Enfermeiro-Mor O Conselheiro – Diogo Antonio Corrêa de Sequeira Pinto (1860) e O Hospital Real de S. José e Annexos Desde 7 de Janeiro de 1901 até 5 de Outubro de 1910 (José Curry da Camara Cabral, 1915), por exemplo. Entre 1852 e 1915, os títulos eram extensos, mas elucidativos.

(2) Designação que nunca foi oficial, embora fosse adotada em documentos internos do hospital e utilizada pelos clínicos e funcionários do CHPL. Após o encerramento do HMB, o nome CHPL não foi oficialmente abandonado, mas a prática, já habitual, de usar a designação Hospital Júlio de Matos para o Polo HJM intensificou-se ainda mais.

Pedro Cintra, Ana Paula Santos, Gabriela Nogueira

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O último doente crónico é transferido do Hospital Miguel Bombarda para o HJM no dia 5 de julho de 2011, pelas 11 horas, o que mereceu algum destaque nos órgãos de comunicação social.(3)

Em fevereiro de 2012 cessa por completo a atividade clínica no Hospital Miguel Bombarda, com a transferência, para o Polo HJM do CHPL, do Serviço de Consulta Externa de Lisboa Ocidental e do Hospital de Dia Eduardo Luís Cortesão, que ainda se mantinham em funcionamento no Polo Bombarda.(4)

O espaço do Hospital Miguel Bombarda continua de portas abertas, sendo detido pela Estamo, por sua vez detida pela Empresa Pública Parpública. É utilizado como parque de estacionamento e alberga um museu sobre o hospital que pode ser visitado com um horário restrito.

Para este espaço, bem como para outros hospitais existentes na Colina de Santana, existem projetos arquitetónicos que aguardam aprovação. O do HMB é do Prof. Arq. Belém Lima (ver Miguel Bombarda, o Espaço e o Futuro, pág. 130).

O futuro é incerto…

Até à abertura do Hospital de Rilhafolles, a assistência a doentes mentais em Portugal era prestada em condições absolutamente precárias e miserabilistas.

Sabe-se que, em 1539, havia «loucos» internados no Hospital Real de Todos os Santos. Este famigerado hospital foi destruído por sucessivos incêndios e, finalmente, pelo terramoto de 1755.(5) Embora as descrições da época não sejam muito esclarecedoras, os doentes terão sido transferidos, nesta circunstância, para locais que os albergaram transitoriamente: as Cabanas do Rossio e as Cocheiras do Conde de Castelo Melhor.

A posteriori, são transferidos para o Convento de Santo Antão, posteriormente designado por Hospital Nacional e Real de São José.(6)

Neste hospital os doentes mentais estavam internados em duas enfermarias imundas e fétidas, designadas

(3) RTP1, RTP2, SIC, TVI, TSF, Rádio Renascença e Expresso, por exemplo, emitem notícias sobre o assunto. (4) À data em que este capítulo é redigido (setembro de 2012), a Consulta Externa de Psiquiatria da área de Lisboa Ocidental continua a

funcionar no Pavilhão de Consultas do Hospital Júlio de Matos/CHPL. O Hospital de Dia que transitou do HMB (Hospital de Dia Eduardo Luís Cortesão) localiza-se agora no primeiro andar de um edifício próprio (Pavilhão 21 C), ocupando parte do espaço do Hospital de Dia do Hospital Júlio de Matos. Nenhum destes hospitais de dia tem designação específica. Funcionam independentemente, afetos à área de residência correspondente.

(5) Como é do conhecimento geral, existe um projeto atual de edificação de um hospital de grandes dimensões no Vale de Chelas, em Lisboa, que se designará, supõe-se, Hospital de Todos os Santos… A história por vezes, parece descrever círculos…

(6) Que viria a chamar-se Hospital de São José, e atualmente Centro Hospitalar Lisboa Central – Hospital de São José.