o Tradutor Cleptomaníaco

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o Tradutor Cleptomaníaco

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O TRADUTOR CLEPTOMANACO, deDezs KosztolnyiTraduo:Ladslao Slado

Falvamos de escritores e poetas, de velhos amigos, com quecomeamos a jornada, mas que depois se distanciarame desapareceram. De quando em quandolanvamos um nome ao ar. Quem se lembra dele? Balanvamos a cabea e um plido sorriso seesboava em nossos lbios. No espelho de nossos olhos surgia um rosto esquecido, uma carreira e uma vida perdidas. Quem sabe algo sobre ele? Viver ainda? O silncio respondia pergunta. Neste silncio, a coroa de flores de sua glria farfalhava, como farfalhavam as folhas no cemitrio. Calvamo-nos.Ficamos assim durante minutos, at que algum evocou o nome de Gallus. Pobre sujeito disse Kornl Esti, encontrei-o anos atrs - , mas j faz sete ou oito anos, sob condies muito tristes. Foi quando lhe aconteceu algo relacionado com uma novela policial, algo que tambm havia sido uma histria policial, a mais emocionante e mais dolorosa que j vivi. Porque vocs o conheciam, um pouco, ao menos. Era um garoto talentoso, eletrizante, intuitivo, consciencioso e culto tambm. Falava vrias lnguas. Sabia ingls to bem, que dizem que o prncipe de Gales tomara aulas particulares com ele. Havia morado quatro anos em Cambridge.Mas tinha um defeito fatal. No, no bebia. Mas surrupiava tudo que estava ao alcance de sua mo. Roubava como uma ave de rapina. Tanto lhe fazia se se tratava de um relgio de bolso, chinelos ou um enorme duto para chamin. E no se preocupava tambm com o valor dos artigos roubados, nem com o seu volume e dimenses. Geralmente no se importava com a sua utilidade. Seu prazer consistia simplesmente em fazer aquilo que queria: roubar. Ns, os seus amigos mais prximos, nos esforvamos para traz-lo razo. Falvamos sua alma, carinhosamente. Repreendamos e ameavamos. Ele concordava conosco. Prometia sempre lutar contra sua natureza. Mas a razo no vencia, sua natureza era mais forte. Sempre recaa.Quantas vezes desconhecidos no o repreenderam, e no o humilharam em lugares pblicos, quantas vezes no o flagraram, e, nessas ocasies, tnhamos de tomar atitudes inacreditveis para minimizar as conseqncias de seus atos. Certa vez, porm, no expresso para Viena, foi surpreendido por um comerciante morvio ao alivi-lo de sua carteira, e entregue polcia na estao mais prxima. Trouxeram-no algemado para Budapeste.Tentamos salv-lo de novo. Vocs, que escrevem, sabem que tudo decidido pelas palavras: tanto o valor de um poema como o destino de um homem. Tentamos provar que ele era um cleptomanaco e no um ladro. Aquele que conhecemos geralmente cleptomanaco. Aquele que no conhecemos geralmente ladro. O tribunal no o conhecia; assim foi qualificado ladro, e condenado a dois anos de priso.Depois de libertado, numa sombria manh de dezembro, prximo ao Natal, apareceu-me, esfomeado, esfarrapado. Jogou-se a meus ps. Implorou que eu no o abandonasse, que o ajudasse, que lhe arrumasse trabalho. Escrever sob seu prprio nome estava fora de qualquer cogitao. Nada sabia fazer, porm, seno escrever. Procurei ento um editor honesto e humano, recomendei-o, e no dia seguinteoeditor incumbiu-o da traduo de uma novela inglesa de detetives. Era um daqueles lixos com os quais ns no queremos sujar as mos. No o lemos. No mximo o traduzimos, usando luvas. Seu ttulo at hoje me lembro , O misterioso castelo do conde Vitsislav. Mas que importava? Fiquei feliz por ajud-lo, ele feliz por poder comer e assim comeou o trabalho. Trabalhou com tanto afinco que em duas semanas muito antes do prazo entregou o manuscrito.Fiquei extremamente surpreso quando, passados alguns dias, o editor me comunicou que a traduo do meu protegido era totalmente inutilizvel, e por isso no estava disposto a pagar nenhum vintm. No entendi bem. Fui at l de txi.O editor, sem nada dizer, entregou-me o manuscrito. Nosso amigo o datilografara com capricho, numerara as pginas, at as prendera com uma fita com as cores nacionais. Isso era muito dele, pois acho que j disse , em questes de literatura, era preciso e escrupulosamente meticuloso. Comecei a ler o texto. Soltei um grito de admirao. Frases claras, mudanas engenhosas, montagens lingsticas espirituosas se sucediam, muito mais digna que o original. Espantado, perguntei ao editor que defeito tinha encontrado. Ele me entregou original ingls, de forma to silenciosa quanto fez com o manuscrito, e pediu-me para comparar os dois textos.Por meia hora, mergulhei alternadamente no original e no manuscrito. Ao final, levantei-me consternado. Declarei que ele estava com toda a razo.Por qu? Nem tentem adivinhar. Esto enganados. No tentou contrabandear otexto de um outro original. Era realmente O misterioso castelo do conde Vitsislav, numa traduo fluente, artistca, e por vezespotica. Esto novamente enganados. O texto no continha nenhum escorrego. Afinal, ele sabia ingls e hngaro perfeitamente. Parem de tentar. Disso vocs nunca ouviram falar. A mancada foi outra. Totalmente outra.Eu tambm descobri aos poucos, gradualmente. Prestem ateno. A primeira frase do original ingls dizia assim:As trinta e seis janelas do velho castelo, desgastado pelo vento, brilhavam. No primeiro andar, na salo de baile, quatro lustres de cristal iluminavam luxuosamente.Na traduo hngara estava:As dezessete janelas do castelo, desgastado pelo vento, brilhavam. No primeiro andar, dois lustres de cristal iluminavam luxuosamenteArregalei meus olhose continuei a leitura. Na terceira pgina, o escritor ingls dizia:Com um sorriso irnico,oconde Vitsislav abriu sua carteira recheada e atirou a quantia pedida, mil e quinhentas libras...Isso foi interpretado da seguinte forma pelo tradutor hngaro:Comum sorriso irnico, o conde Vitsislav abriu sua carteira e atirou a quantia pedida, cento e cinqenta libras...Tive uma pssima premonio, que felizmente se tornou uma certeza nos minutos seguintes. Mais abaixo, no fim da terceira pgina, li na edio inglesa: Acondessa Eleonora estava sentada num dos cantos do salo de baile, vestida para a noite, usando as velhas jias da famlia: tiara de diamantes, herdada da sua tatarav, esposa de um prncipe alemo;sobre seu colo de cisne, prolas verdadeiras de brilho opaco; seus dedos quase se enrijeciam com os anis de brilhante, safira, esmeralda.O manuscrito hngaro, para minha grande surpresa, assim trazia: Acondessa Eleonora estava sentada num dos cantos do salo de baile, vestida para a noite...Sem mais. A tiara de diamantes, o colar de prolas, os anis de brilhante, safira e esmeralda haviam desaparecido. Compreendem o que fizera esse infeliz escritor, merecedorde um futuro melhor? Simplesmente roubou as jias de famlia da condessa Eleonora, e, com a mesma imperdovel leviandade, roubou at o simptico conde Vitsislav, deixando das suas mil e quinhentas libras apenas cento e cinqenta,e da mesma forma surrupiou dois dos quatro lustres de cristal, edesviou vinte e quatro das trinta e seis janelas do velho castelo desgastado pelo vento. Tudo comeou a girar ao meu redor. Minha surpresa s aumentou quando constatei, sem nenhuma dvida, que essa determinao percorria todo o seu trabalho. Por onde sua pena de tradutor passasse, sempre causava prejuzo aos personagens, mesmo que s se apresentassem naquele captulo, e, sem respeitar mvel ou imvel, atropelava a quase indiscutvel sacralidade da propriedade privada. Trabalhava de vrias maneiras. Na maioria das vezes, os objetos desapareciam sem mais nem menos. Aqueles cofres, talheres de prata, cuja misso era enobrecer o original ingls, no os encontrei em nenhum lugar no manuscrito hngaro. Em outros casos s tirava uma parte, a metade ou dois teros. Se algum mandava o criado levar cinco malas para a cabine do trem, ele s mencionava duas; sobre as outras trs silenciava sorrateiramente. De todos os casos, para mim, o pior porque isso decididamente mostrava m inteno e falta de hombridade era que com freqncia trocava as pedras e metais preciosos por outros sem nobreza e sem valor; a platina por lata, o ouro por lato, o diamante por zircotina ou vidro.

Despedi-me do editor, cabisbaixo. Por curiosidade, pedi emprestado o manuscrito e o original ingls. Como estava intrigado pelo verdadeiro enigma dessa novela policial, continuei em casa minha investigao, e fiz um balano completo dos artigos roubados. Trabalhei sem parar da uma e meia da tarde at seis e meia da manh. Descobri, finalmente, que nosso desvirtuoso colega escritor apropriou do original ingls, durante a traduo, ilegal e indecentemente,1.579.251 librasesterlinas, 177 anis de ouro, 947 colares de prola, 181 relgios de bolso, 309 brincos, 435 malas, sem falar das propriedades, florestas e pastos, castelos de prncipes e bares, e outros objetos menores, lenos, palitos de dente, campainhas, cuja listagem seria muito comprida e talvez intil. Onde colocou todos esses mveis e imveis que afinal s existiam no papel, no reino da imaginao; qual era a razo do seu furto; a investigao iria muito longe e assim melhor nem especular. Mas tudo isso me convenceu de que ele ainda era escravo de seu vcio criminoso, ou da doena, e no existia nenhuma esperana de cura, e no merecia ser amparado pela sociedade honesta. Retirei minha proteo devido minha indignao moral. Entreguei-o ao destino. Depois, nunca mais ouvi falar dele.