o_dito_e_o_feito

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/29/2019 o_dito_e_o_feito

    1/115

    1

    O dito e o eito

  • 7/29/2019 o_dito_e_o_feito

    2/115

    32 O ditOeOfeitO

    O dito e o eitoEnsaios de antropologia

    dos rituais

    Mariza PeiranO(OrganizadOra)

    Ri o de Ja ne ir o2001

    Ncleo deAntropologiada Poltica

    NuA PQuinta da Boa Vista s/n So CristvoRio de Janeiro RJ CEP 20940-040Tel.: (21) 2568 9642 Fax: (21) 2254 6695E-mail: [email protected]

    Publicao realizada com recursos doPRONEX/CNPqMinistrio da Cincia e TecnologiaConselho Nacional de Desenvolvimento Cientco e TecnolgicoPrograma de Apoio a Ncleos de Excelncia

    A coleo Antropologia da Poltica coordenada por Moacir G. S. Palmeira, MarizaG. S. Peirano, Csar Barreira e Jos Sergio Leite Lopes e apresenta as seguintespublicaes:

    01 - A HONRA DA POLTICA Decoro parlamentar e cassao de mandato noCongresso Nacional (1949-1994), de Carla Teixeira02 - CHUVA DE PAPIS Ritos e smbolos de campanhas eleitorais no Brasil, deIrlys Barreira03 - CRIMES POR ENCOMENDA Violncia e pistolagem no cenrio brasileiro, de

    Csar Barreira04 - EM NOME DAS BASES Poltica, favor e dependncia pessoal, deMarcosOtvio Bezerra05 - FAZENDO A LUTA Sociabilidade, falas e rituais na construo de organizaescamponesas, deJohn Cunha Comerford06 - CARISMA, SOCIEDADE E POLTICA Novas linguagens do religioso e dopoltico, deJulia Miranda07 - ALGUMA ANTROPOLOGIA, deMarcio Goldman08 - ELEIES E REPRESENTAO NO RIO DE JANEIRO, deKarina Kuschnir09 - A MARCHA NACIONAL DOS SEM-TERRA Um estudo sobre a fabricao dosocial, de Christine de Alencar Chaves10 - MULHERES QUE MATAM Universo imaginrio do crime no feminino, deRosemary de Oliveira Almeida11 - EM NOME DE QUEM? Recursos sociais no recrutamento de elites polticas, deOdaci Luiz Coradini

    12 - O DITO E O FEITO Ensaios de antropologia dos rituais, de Mariza Peirano

  • 7/29/2019 o_dito_e_o_feito

    3/115

    54 O ditOeOfeitOSuMriO

    PrefcioRituais como estratgia analtica e abordagem etnogrca . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

    Mariza G. S. Peirano

    Parte i rituaiseeventos

    caPtulo1A anlise antropolgica de rituais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

    Mariza G. S. Peirano

    Parte ii ensaiosanalticos

    caPtulo2Peirce e O Beijo no Asfalto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

    Ana Flvia Moreira Santos

    caPtulo3Jakobson a bordo da sonda espacial Voyager . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59

    Jayme Moraes Aranha Filho

    Parte iii Gnerosdeeventoscomunicativos

    caPtulo4A nao na web: rumores de identidade na Guin-Bissau . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85Wilson Trajano Filho

    caPtulo5DasBravatas. Mentira ritual e retrica da desculpa nacassao de Srgio Naya . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113Carla Costa Teixeira

    Copyright 2002, dos autoresDireitos cedidos para esta edio

    dumar distribuidorade Publicaes ltda.www.relumedumara.com.br

    Travessa Juraci, 37 Penha Circular21020-220 Rio de Janeiro, RJ

    Tel.: (21) 2564 6869 Fax : (21) 2590 0135E-mail: [email protected]

    Preparao de originaise copidesque

    Tema Pechman

    RevisoMarior Rocha

    EditoraoDilmo Milheiros

    CapaSimone Villas Boas

    CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte.Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    O dito e o feito : ensaios de antropologia dos rituais / Mariza Peira-no (org.). Rio de Janeiro : Relume Dumar : Ncleo de Antropologia daPoltica/UFRJ, 2002

    . (Coleo Antropologia da poltica ; 12)

    Inclui bibliograaISBN 85-7316-268-6

    1. Ritos e cerimnias. 2. Usos e costumes. 3. Antropologia. I. Peirano,Mariza G. S. (Mariza Gomes e Souza). II. Universidade Federal do Rio deJaneiro. Ncleo de Antropologia da Poltica. III. Srie.

    CDD 306CDU 316.7

    Todos os direitos reservados. A reproduo no-autorizadadesta publicao, por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui

    violao da Lei n 5.988.

    D643

    02-0095

  • 7/29/2019 o_dito_e_o_feito

    4/115

    76 O ditOeOfeitO

    caPtulo6A Marcha Nacional dos Sem-terra: estudo de um ritual poltico . . . . . . . . . . . . . 133Christine de Alencar Chaves

    caPtulo7Reunies camponesas, sociabilidade e lutas simblicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149

    John Comerford

    Parte iv climadetemPos

    caPtulo8Poltica e tempo: nota exploratria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171

    Moacir Palmeira

    caPtulo9As naes vo s urnas: eleies na Assemblia Geral da ONU . . . . . . . . . . . . . 179

    Paulo de Ges Filho

    caPtulo10Poltica, etnia e ritual o Rio das Rs como remanescente de quilombos . . . . . . . 197Carlos Alberto Steil

    refernciasbiblioGrficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211

    colaboradores. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227

    PrefciO

    Rituais como estratgia analticae abordagem etnogrca

    Mariza Peirano

    Mais de um sculo depois do reconhecimento da antropo logia como disciplina noOcidente, por que manter um debate sobre tema to clssico como o dos ri-tuais? Oque signica propor, no momento atual, a abordagem dos rituais como estratgia parase analisar eventos etnogrcos? Em que sentido a concepo de ritual nos auxiliana pesquisa antropolgica? Dcadas de discusso sobre uma denio de ritual (deDurkheim a Victor Turner, por exemplo), sobre a diferena entre ritual e cerimonial(preocupao central de Max Gluckman), ou ainda sobre a primazia entre ritos e mitos

    (disputa de Lvi-Strauss) no teriam esgotado o tema? De que nos serve, enm, a idiade ritual hoje?

    Estas so as perguntas que esta coletnea procura responder. Todos os trabalhosforam apresentados no Seminrio Uma Anlise Antropolgica de Rituais, realizadona Universidade de Braslia de 26 a 28 de junho de 2000, que reuniu, quase todos e emum momento ou outro, pesquisadores que haviam participado de cursos sobre o temaoferecidos nas ltimas duas dcadas na UnB e no Museu Nacional/UFRJ. Por sua vez,a matriz desses cursos teve como inspirao seminrio ofertado por Stanley Tambiahna Universidade de Harvard, em 1977, poca em que o autor redigia A PerformativeApproach to Ritual (Tambiah 1985)1.

    Os ensaios deste livro abordam temas variados, e neles encontramos a idia deritual como um modelo para analisar eventos sociais em sentido lato (ver itens iii a v

    abaixo), ampliando assim o foco desse fenmeno to familiar aos antroplogos. Antesde o leitor iniciar seu percurso, contudo, neste prefcio procuro explicitar de formaresumida alguns pontos centrais que estaro presentes implcita ou explicitamente nosdiversos captulos. Vejamos.

    (i) Primeiro, creio que todos os autores do livro comungam da idia de quea antropologia se desenvolve pela constante renovao terica que se rea-liza quando dados etnogrcos dialogam, contestam ou expandem teoriasanteriores. Esses confrontos essenciais resultam, primeira vista de forma

    paradoxal, em novos renamentos e ampliao de perspectivas essa a base

  • 7/29/2019 o_dito_e_o_feito

    5/115

    98 O ditOeOfeitO

    da posio weberiana sobre a eterna juventude das cincias sociais e, naantropologia, vem sendo desenvolvida desde que Malinowski estabeleceu okula como uma nova agncia no mundo ocidental em contraste com as teoriasento vigentes sobre economia primitiva. Em decorrncia dessa perspectiva,autores/obras clssicos so sempre atuais, porque atuam como referncia nomovimento espiralado mediante o qual o renamento da disciplina se d.

    (ii) Em segundo lugar, se a antropologia se desenvolve por meio do dilogoentre teoria e etnograa, esse procedimento tem como base a surpresa comque o antroplogo se depara com novos dados de pesquisa que so revelados,geralmente, nos tipos de eventos de que participa ou que reconhece comosignicativos para aqueles que observa de Mauss e Malinowski a Geertz,

    passando por Lvi-Strauss, essa tem sido a base do entendimento sobre o que etnograa. Eventos consistem no acontecimento then and there (Peirce1955: 75). Sempre tangveis, s vezes esperados, outras vezes meros acasos,

    produzindo revelaes ou perplexidades, sua atualidade depende de suasrelaes com outros elementos existentes2.

    (iii) Nesse sentido, entendemos que rituais so tipos especiais de eventos,mais formalizados e estereotipados e, portanto, mais suscetveis anlise

    porque j recortados em termos nativos. Em outras palavras, tanto eventosordinrios, quanto eventos crticos e rituais partilham de uma natureza similar,mas os ltimos so mais estveis, h uma ordem que os estrutura, um sentidode acontecimento cujo propsito coletivo, e uma percepo de que eles sodiferentes. Eventos em geral so por princpio mais vulnerveis ao acaso e aoimpondervel, mas no totalmente desprovidos de estrutura e propsito se oolhar do observador foi previamente treinado nos rituais.

    (iv) Um quarto ponto pode ser explicitado: rituais e eventos crticos de umasociedade ampliam, focalizam, pem em relevo e justicam o que j usual

    nela; se h uma coerncia na vida social como antroplogos acreditamos, ento otipo de anlise que se aplica a ri tuais tambm serve a eventos. (Esta perspectivano exclusiva da antropologia, naturalmente, e foi utilizada anteriormente porJakobson, por exemplo, ao estudar a afasia e perceber nesse distrbio lingstico

    princpios bsicos da linguagem em geral.) Estamos, portanto, lidando comfenmenos semelhantes em graus diversos3.

    (v) Em razo da nfase na perspectiva etnogrca preciso salientar queno compete aos antroplogos denir o que so rituais. Rituais, eventosespeciais, eventos comunicativos ou eventos crticos so demarcados

    em termos etnogrcos e sua denio s pode ser relativa nunca absolutaou a priori; ao pesquisador cabe apenas a sensibilidade de detectar o que so,e quais so, os eventos especiais para os nativos (sejam nativos polticos,o cidado comum, at cientistas sociais)4.

    (vi) Focalizar rituais tratar da ao social. Se esta ao se realiza no contexto

    de vises de mundo partilhadas, ento a comunicao entre indiv-duos deixaentrever classicaes implcitas entre seres humanos, humanos e natureza,humanos e deuses (ou demnios), por exemplo. Quer a comunicao se faa

    por intermdio de palavras ou de atos, ela difere quanto ao meio, mas nominimiza o objetivo da ao nem sua eccia. A linguagem parte da cultu-ra; tambm possvel agir e fazer pelo uso de palavras. Em outros termos,a fala um ato de sociedade tanto quanto o ritual5. H uma conseqnciafundamental dessa constatao: a antropologia sempre incorpora, de formaexplcita ou implcita, uma teoria da linguagem.

    (vii) At pouco mais de duas dcadas, a teoria lingstica dominante na an-tropologia provinha de Ferdinand de Saussure. A denio de signo como

    a relao entre conceitos e imagens acsticas, se por um lado destacou adimenso psquica da lngua, por outro deu nfase estrutura e arbitrariedadecomo denidoras da lingstica (que seria parte da semiologia) na cinciaque se armava (Saussure s/d). O carter social da lngua estava estabelecidoe permitia analogias com outros cdigos. Ao focalizar rituais, no entanto, o

    paradigma saussureiano mostrou-se restrito, j que nos rituais a ao toou mais importante que o pensamento6.

    (viii) Com Peirce e Jakobson devolve-se a dimenso da ao linguagempela presena fundamental do Objeto em suas abordagens tericas os doisautores (um, lsofo; outro, lingista) iluminam a performance dos signose enfatizam a linguagem em uso. Em Peirce, o signo representa alguma

    coisa, seu objeto (1955: 99), o que permite, sem se tornar uma unidademonoltica, tomar a forma de um cone (um signo que se refere ao Objetoque denota meramente em virtude de caractersticas prprias), um ndice(um signo que se refere ao Objeto que denota em virtude de ser realmenteafetado por esse Objeto) ou umsmbolo (um signo que se refere ao Objetoque denota em virtude de uma lei, usualmente em asso-ciao a idias gerais;cf. Peirce 1955: 102). J para Jakobson, o contexto da situao reete--se nas diferentes funes da linguagem, que inuenciam e/ou informam osignicado dos signos. Quando dirigida de forma primordial ao remetente,domina a funo emotiva; ao destinatrio, a funo conativa; ao contexto,

    rituaiScOMOeStratgiaanalticaeabOrdageMetnOgrfica

  • 7/29/2019 o_dito_e_o_feito

    6/115

    1110 O ditOeOfeitO

    a funo referencial; prpria mensagem, a funo potica; ao contato, afuno ftica; e ao cdigo, a funo metalingstica (Jakobson s/d)7.

    (ix) Em vrios dos ensaios que se seguem, Austin (1962) ter um lugar cen-tral. Ele rejeita a idia de que os enunciados apenas descrevem situaese, portanto, podem ser considerados falsos ou verdadeiros. O autor refora

    a noo de que diversas palavras em pronunciamentos aparentemente des-critivos indicam (isto , no descrevem) as circunstncias nas quais elesocorrem. Palavras so atos e podem ser referenciais como nosso sensocomum pressupe , mas tambm fazer coisas por meio de seu prprio

    pronunciamento. Desse ngulo, Austin recorta atosperformativos, que soaqueles nos quais a enunciao j constitui sua realizao: Eu prometo um exemplo. Trata-se de expresso que no apenas exprime algo no presenteou no futuro, mas um compromisso, uma ao, com uma fora intrnsecaque o autor chama de ilocucionria8.(x) O potencial e a riqueza de autores como Peirce, Jakobson e Austin seroexaminados, de diferentes perspectivas e ngulos, nos ensaios desta coletnea.

    Partindo de um ponto de vista performativo do ritual, desenvolvido por Tambiah(1985), os autores deste livro do maior ou menor nfase a um desses tericosda linguagem, dependendo do dilogo com o material etnogrco que estoexaminando. Vale ressaltar, como ltimo ponto, que a partir de Peirce, Jako-

    bson e Austin, estamos no domnio da ao, do ato, do rito. Nesse contexto,quando contemporaneamente antroplogos de outras vertentes enfatizam afala (do nativo e do antroplogo) como forma de questionamento da autoriada etnograa em suas dimenses polticas, xamos nosso interesse na ao (ecompreendemos inclusive a fala como tal), exatamente porque entendemosque o ato e o processo tm uma dimenso terico-poltica que nasce datemporalidade do evento, da criatividade do vivido, da perda e do ganhoinevitveis do instante histrico. No exame do evento e do ritual, objetivos

    terico-intelectuais e poltico-pragmticos se unem.

    Em suma, os trabalhos aqui apresentados focalizam o que os sujeitos fazem,tanto ou mais do que dizem fazer. Parte-se da perspectiva durkheimiana que vnos cultos e rituais verdadeiros atos de sociedade nos quais so reveladas vises demundo dominantes de determinados grupos. Nesse contexto, ritos continuam sendoa contrapartida das representaes, mas muitas vezes analiticamente superiores peladimenso impondervel, aspecto fundamental da vida em sociedade. Nos textos aquireunidos, rituais e eventos ampliam, acentuam, sublinham o que comum em umasociedade, trazendo como conseqncia o fato de que o instrumental analtico utilizado

    para o exame de rituais mostra sua serventia para a anlise de eventos naturalizados ouexcepcionais de uma sociedade. Um outro ponto merece destaque: a fala um eventocomunicativo e deve ser colocada em contexto para que seu sentido seja compreen-dido. No possvel, portanto, separar o dito e o feito, porque o dito tambm feito.Considerando-se esta dimenso bsica, preciso ento ressaltar que a etnograa bemmais que um mero descrever de atos presenciados ou (re)contados a boa etnograa

    leva em conta o aspecto comunicativo essencial que se d entre o pesquisador e nativo,o contexto da situao, que revela os mltiplos sentidos dos encontros sociais. A n-fase na dimenso vivida como meio de acesso a vises de mundo est marcada no livro

    pela prpria natureza dos ensaios: exceto dois deles, todos so anlises de materiaisetnogrcos especcos. Aqui temos a teoria em ao nas anlises.

    A estrutura do livro

    O livro est dividido em quatro partes: um ensaio introdutrio compreende a pri-meira delas, onde fao um exame sobre o estudo de rituais na antropologia para entointroduzir a perspectiva performativa de Stanley Tambiah, ao mesmo tempo que procuro

    homenagear o autor por meio de um comentrio detalhado sobre seu livro LevellingCrowds, que ilustra como o estudo de rituais permite explicitar componentes centraisde cenrios de violncia contempornea.

    Na segunda parte, dois trabalhos tm por objetivo mostrar o rendimento analticode clssicos da teoria da linguagem no exame de eventos atuais. Ana Flvia MoreiraSantos inspira-se em Charles Peirce para analisar a pea teatral Um Beijo no Asfalto,de Nelson Rodrigues, indicando como processos de tipicao se desenvolvem no

    pela descrio de uma dada realidade, mas pela construo dialgica, em um jogo queinclui interesses, poder e desejo. Jayme M. Aranha Filho, por sua vez, elege comointerlocutor Roman Jakobson para examinar as mensagens enviadas por espaonavesna expectativa de encontrar um destinatrio extraterrestre. Esse contexto inusitado lhe

    permite observar como a inexistncia de um destinatrio emprico repercute no modelo

    de conversao, revelando, em diversas situaes, as relaes hierrquicas das seisfunes da linguagem que Jakobson prope.Todos os ensaios da terceira parte focalizam gneros de eventos comunicativos,

    resultado de pesquisas de campo empricas individuais. Para Wilson Trajano Filho,este gnero so os rumores na Guin-Bissau. Depois de estud-los como narrativasda nao, Trajano agora escrutina esse mesmo fenmeno no contexto da web e indicacomo a denio de rumor como um gnero narrativo oral complexo que se caracteriza

    por uma estrutura de transmisso aberta, dialgica e dramtica e por um forte valorperformativo se mantm nos fruns de discusso da internet, colocando em questo anecessidade propalada do print capitalism nos processos de construo nacional. J

    rituaiScOMOeStratgiaanalticaeabOrdageMetnOgrfica

  • 7/29/2019 o_dito_e_o_feito

    7/115

    1312 O ditOeOfeitO

    Carla Costa Teixeira elege as bravatas como gnero a ser examinado no contexto doCongresso Nacional brasileiro, a partir do processo de cassao do deputado federalSrgio Naya. Carla caracteriza a bravata como uma mentira ritual, um ato de fala cujamensagem comunicada no constituda por sua referencialidade ao contexto comu-nicativo, mas pelo compromisso rmado pelo prprio ato de fala. Tipo especco delinguagem defensiva, as bravatas do deputado no o livraram da cassao.

    Outro gnero de evento analisado por Christine de Alencar Chaves a partir daMarcha Nacional do MST em 1997. Para Christine, como um ritual de longa durao,a Marcha produziu um capital simblico conquistado ao longo da caminhada, revelan-do o potencial de agregao de um fenmeno to antigo e generalizado como so as

    peregrinaes. Como demonstra a autora, a Marcha Nacional, como ao coletiva decarter expressivo, percorreu mais que estradas: criou e atravessou umsolo moral. Noltimo captulo deste conjunto de ensaios, John Comerford mostra como o vnculo entremorfologia social e sentido est presente nas reunies de camponeses por meio de umaetnograa minuciosa dos elementos que as compem, focalizando a negociao da pauta,o poder da coordenao, o papel das discusses e do pblico, chegando tenso entredois tipos de concepes: uma mais igualitria, que enfatiza valores de participao, eoutra, mais hierrquica, quando aqueles quefalam bem se destacam no corpo social.

    A quarta parte abre com a nota exploratria de Moacir Palmeira sobre poltica etempo. Aqui, Moacir amplia a noo de tempo da poltica que desenvolveu anterior-mente, e que geralmente se constitui em um perodo marcado por rituais e interdies.Mas tempo tambm termo nativo entre populaes camponesas para se referir aoutros fenmenos (festas, safra, plantio, Quaresma, greve) e at personalidades. Oautor lana ento a idia provocativa de que, nesses contextos, a ordem social no

    percebida em termos orgnicos ou mecnicos, como foi naturalizada pelo senso comumintelectual, mas em termos de adequao de comportamentos a determinadas nalidades

    postas em um certo momento. Trata-se, portanto, da identicao de uma sociologianativa que no divide a sociedade em esferas ou domnios de uma estrutura social,mas sim em tempos, momentos quando o poder se torna fora. As implicaes desta

    proposta so instigantes e desaadoras.

    Dois trabalhos encerram o livro sugerindo um clima de tempo em dois contex-tos muito diferentes. Para examinar as eleies na Assemblia Geral da ONU, Paulode Ges Filho utiliza o instrumental da anlise de rituais para indicar os paradoxosque permeiam as relaes no mundo das naes: em circunstncia em que se pretendeexaltar a igualdade e a simetria, recorre-se s diferenas e chamam-se as hierarquias;em um espao que se pretende pblico, negocia-se a portas fechadas. Mesmo na ONU,o tempo da poltica est marcado por campanhas, consultas, negociaes e eleies: quando se expressa o ideal de uma ordem internacional democrtica. Atravessandooutros espaos e tempos, Carlos Alberto Steil vai retratar o processo de etnizao da

    poltica em Rio das Rs, Bahia, onde as categorias posseiros e trabalhadores rurais

    so ressignicadas como negros e remanescentes de quilombo. Nesse movimento, simblica a caravana que se dirige a Braslia e percorre um roteiro que inclui os Mi-nistrios da Cultura e da Justia, Palcio do Planalto, Procuradoria-Geral da Repblicae Polcia Federal. Carlos Steil v o percurso como uma via-crcis, que comporta quedase percalos, mas que tambm produz um novo sentido no qual reivindicar direitossociais a partir de uma histria e identidade se torna ato legtimo.

    Agradecimentos

    Nunca possvel agradecer a todos que ajudam na realizao de um evento e nafeitura de um livro. Aproveito esta oportunidade para explicitar a dvida com WilsonTrajano Filho, que contribuiu para a preparao do Seminrio que deu origem a estelivro no que diz respeito ao seu desenho e organizao, e que, como cordenador doPrograma de Ps-Graduao da Universidade de Braslia na poca, tornou-o vivel. EstePrefcio tambm deve muito sua leitura rigorosa. Lus Roberto Cardoso de Oliveirafoi solidrio quando tudo apontava para diculdades a vencer. A Moacir Palmeira,coordenador do projeto Uma Antropologia da Poltica, agradeo tanto a participaono encontro quanto pela pequena jia com que nos brindou, ento e agora. A Rosa

    Cordeiro devemos o trabalho de infra-estrutura, realizado invariavelmente com com-petncia e serenidade. A Tema Pechman, o agradecimento pelo no copidesque e pelacumplicidade nas artes de se fazer um livro. Finalmente, sou grata aos participantes,quase todos antigos alunos, que me deram o maior presente, o entusiasmo do encontroe das discusses, e a graticao de sentir que valeu a pena.

    Notas

    1No projeto Uma Antropologia da Poltica: Rituais, Representaes e Violncia, uma divisode trabalho fez da UnB o ponto de referncia para a linha de pesquisa sobre rituais. Vrios dosautores do livro fazem parte desse projeto maior (ver Peirano (2000) para ensaios que resultaramde curso recente sobre o tema, oferecido no 1 semestre de 2000 na Ps-Graduao em Antro-pologia Social na Univ ersidade de Braslia).

    2

    Ver Mauss (1925), Malinowski (1922), Lvi-Strauss (1962) e Geertz (1995). Madan (1994: 128)insiste que o antroplogo est constantemente hoping to be surprised (nfases no original).

    3No por acaso, esses princpios bsicos (metafricos e metonmicos) que Jakobson detectou jhaviam sido explicitados por Frazer na sua teoria da magia.

    4 Tambiah (1985). Para a idia de great events, ver Tambiah (1985: 130); para a idia de eventoscomunicativos, cf. Daniel (1996); para critical events, ver Das (1995).

    5 Para o desenvolvimento desse ponto especco, ver Leach (1966).

    6 Silverstein (1977) aborda o vnculo entre a lingstica e a antropologia em termos das conse-qncias para a pesquisa de campo. A arbitrariedade dos signos pode ser constatada j em 1954,

    rituaiScOMOeStratgiaanalticaeabOrdageMetnOgrfica

  • 7/29/2019 o_dito_e_o_feito

    8/115

    1514 O ditOeOfeitO

    quando Leach argumenta que no interessa saber por que as mulheres casadas inglesas usamanel em um dedo especco e as mulheres kachins, um turbante (Leach 1954). Naturalmente,o estruturalismo de Lvi-Strauss o grande devedor de Saussure. Ver Sahlins (1981), para umensaio que procura incluir a ao e a mudana na perspectiva saussuriana. (A nfase nos rituaise a incompatibilidade que tinha com a lingstica ento predominante, talvez tenham levadoTurner (1967) a optar pela perspectiva junguiana.)

    7 Vale ressaltar que, para Peirce, no h cones, ndices ou smbolos puros, mas uma hierarquiade valores dominantes em cada signo, e, para Jakobson, algumas funes so predominantes,mas no exclusivas. Para a noo de contexto da situao, ver Malinowski (1930).

    8 Se a locuo performativa tem um fora ilocucionria, o enunciado referencial tem, para Austin,fora locucionria. Por outro lado, os efeitos no-antecipados de uma ao so consideradosperlocucionrios. importante salientar que locues performativas no obedecem a critriosde verdade mas, nas circunstncias apropriadas, so felizes ou corretas. Chamo a atenopara a inevitvel associao entre a idia de fora ilocucionria, que realiza a ao pela prpriaenunciao, com a noo de transferncia na magia, formulada por Mauss (1925).

    Parte I

    rituaiSeeventOS

  • 7/29/2019 o_dito_e_o_feito

    9/115

    1716 O ditOeOfeitOcaPtulO 1

    A anlise antropolgicade rituais

    Mariza G. S. Peirano

    Como o renamento terico das cincias sociais no linear mas espiralado, freqenteque eventuais reapropriaes do passado sejam utilizadas como alavancas heursticas.Tal fato no deriva de uma nostalgia intelectual, ou de um fascnio por teorias anterio-res, nem da idealizao de seu poder explicativo, mas porque, revisitadas, essas teoriasrevelam aspectos inesperados nas combinaes e bricolagens que, ento como agora,so, estas sim, produtos sempre atuais. Teorias sociolgicas tm vnculo com a realidadeemprica na qual so geradas, mas no so por esta determinadas; a relativa autonomia

    das teorias sociolgicas as faz ao mesmo tempo efmeras e contnuas. minha proposta que o estudo de rituais, tema clssico da antropologia desde

    Durkheim, assume um especial signicado terico e, menos bvio, poltico, quandotransplantado dos estudos clssicos para o mundo moderno. Nessa transposio, o focoantes direcionado para um tipo de fenmeno considerado no rotineiro e especco,geralmente de cunho religioso, amplia-se e passa a dar lugar a uma abordagem que

    privilegia eventos que, mantendo o reconhecimento que lhes dado socialmente comofenmenos especiais, diferem dos rituais clssicos nos elementos de carter probabils-tico que lhes so prprios. Voltarei a este ponto. Por enquanto, basta mencio-nar que,na anlise de eventos, mantm-se o instrumental bsico da abordagem de rituais, masimplicaes so redirecionadas e expandidas.

    Esta a perspectiva geral deste ensaio. Nele, procurarei situar a anlise de ri-tuais

    na histria terica da antropologia (cf. Peirano 1995; 1997) e seu vnculo com o examede eventos contemporneos, assim como indicar as conseqncias ao mesmo tempodisciplinares e polticas dessa abordagem analtica. O ensaio divide-se em cinco sees:na primeira, discuto o tema magia e cincia como promotor da teoria antropolgicano incio do sculo; em seguida, apresento o contraste entre mitos e ritos e os aspectos

    positivos e negativos dessa dicotomia; na terceira parte, introduzo o tema da ecciasocial e situo a abordagem performativa para a anlise de rituais; na quarta, vinculorituais a eventos mediante a relao entre cultura e lin guagem; na quinta seo, examinoem detalhe o livro Leveling Crowds, de Stanley Tambiah, publicado em 1996, comoexemplo da relao entre anlise de rituais e teoria sociolgica. Um eplogo em dois

  • 7/29/2019 o_dito_e_o_feito

    10/115

    1918 O ditOeOfeitO

    tempos focaliza a relao entre eventos, acasos e histrias no contexto da (poltica da)teoria contempornea.

    Magia e cincia

    Passado meio sculo, fcil reconhecer a revoluo que as idias de Lvi-Strauss

    representaram na antropologia. Desde o nal do oitocentos, atormentados com a dis-tino entre magia, cincia e religio ora para colocar estes fenmenos em seqnciaevolutiva, ora para procurar caracteriz-los como mais, ou menos, primitivos e civili-zados, ou, ainda, para demonstrar a racionalidade em contexto , em algumas dcadasos antroplogos j haviam alcanado um nvel alto de sosticao nas consideraesque desenvolveram a respeito desses temas at hoje pertinentes. Mas na seqncia quevai de Tylor e Frazer a Durkheim, Mauss e Lvi-Bruhl, ou de Tylor e Frazer a Malino-wski, Evans-Pritchard e Radcliffe-Brown, Lvi-Strauss ocupa um lugar de destaque

    por haver dado aquele passo fundamental que, ao sintetizar o passado da disciplina eharmoniz-lo com as preocupaes ento presentes, produziu um renamento notvel.Para o prprio autor, no se tratava de uma nova bricolagem, mas de ruptura com osautores que o precederam. De qualquer forma, fosse por meio de continuidade ou de

    ruptura, com Lvi-Strauss chegou ao m o longo processo no qual, na antropologia, aaproximao entre as coordenadas de tempo (evolutivo ou histrico) e espao (etno-grco) se resolveu de maneira conclusiva com a premissa de que todos, primitivos ecivilizados, com ou sem escrita, com mais ou menos tecnologia, somos no s racionaisem contexto, psiquicamente unos, mas, como Radcliffe-Brown j havia antevisto umadcada antes, pensamos da mesma forma (em termos binrios) e temos, todos, nossa

    prpria magia, cincia e religio.Nesse contexto, dois trabalhos de Lvi-Strauss, ambos publi cados no incio da

    dcada de 60, oferecem complementaridade interessante. Um tornou-se marco dadisciplina; o outro, um simples artigo de divulgao. Rero-me ao livro O PensamentoSelvagem e ao artigo A Crise Moderna da Antropologia1. Apesar da au-dincia e dosobjetivos diversos a que se destinavam visveis no estilo de argumentao , os doistextos complementam-se no cerco que Lvi-Strauss fazia (ir)racionalidade.

    Em O Pensamento Selvagem reconhece-se o argumento otimista. Seqnciade Totemismo Hoje, nele a soluo para a diferena entre magia, cincia e religioexplicitava-se: primitivos e modernos pensam do mesmo modo; magia, arte e cinciaso formas de conhecimento paralelas; se os primitivos tm magia, tambm operamcienticamente, e ns, modernos, alm de cincia, tambm vivemos a magia e o tote-mismo baseados na bricolagem. Se possvel hoje levantar restries maneira obsoletacomo Lvi-Strauss utiliza a idia de cincia2, o fato que a revoluo, antevista porDurkheim e Mauss (e retomada por Lvi-Bruhl), estava realizada de fato: primitivos emodernos estavam lado a lado. verdade que a magia ainda conservava uma inexo

    arcaica de sombra que antev a cincia3, assim como diferentes tipos de classicao(taxonmicas e metafricas) se mantinham subjacentes, respectivamente, cincia e magia. Os ritos eram contrastados com os jogos pelo resultado previsvel dos lti-mos: nos ritos, a assimetria entre profano e sagrado produzia uma unio, nos jogos, aestrutura criava eventos; os ritos vinculavam-se bricolagem, os jogos, cincia. Masentre todas as novidades introduzidas por Lvi-Strauss, foi a noo de bricolagem que

    representou a maior delas e produziu a euforia que tornou opacas quaisquer objees sua proposta. As idias bsicas defendidas em O Pensamento Selvagem tornaram-sea partir da auto-evidentes, isto , foram agregadas ao senso comum da antropologia.

    Esse um processo que se repete constantemente na histria da disciplina. Trata-seda contnua incorporao dos antecessores, mas vivida como ruptura e inovao. As-sim, Mauss criticou Frazer no seu intelectualismo e o incorporou como parte de suaanlise sociolgica; Evans-Pritchard demoliu Malinowski e seu pendor exclusivamenteetnogrco e assimilou suas idias nas suas anlises estruturais; Lvi-Strauss criticoutanto Malinowski quanto Radcliffe-Brown e se interpretou erroneamente o primeironaquilo que considerou a fora do estmago do primitivo, incorporou o segundo na sua

    pergunta fundamental: por que esses pssaros? O destino do prprio Lvi-Strauss noseria diferente. Inicialmente suas idias produziram uma exploso em vrias direes:

    desde a aproximao entre as cosmologias primitivas e os sosticados debates da -losoa ocidental, at mostrar que tudo que se detectava no mundo primitivo tinha seucorrespondente moderno, dos tabus alimentares aos sistemas capitalistas de vesturio.Mais recentemente, os estudos antropolgicos sobre a cincia cam a lhe dever seulugar na linhagem intelectual4.

    Escrito na mesma poca, A Crise Moderna da Antropologia tem uma estratgiaretrica diversa: dirigido a um pblico amplo, o enunciado do problema parece, noincio, pessimista. Focalizando o possvel m da antropologia e utilizando o termocrise no prprio ttulo, o quadro aparentemente conspi ratrio: de um lado, os povos

    primitivos desaparecem quantitativamente; de outro, os Estados recm-independentesmanifestam sua intolerncia em relao s pesquisas etnogrcas. O sentido bidire-cional das pesquisas, baseado na igualdade da mente humana, se em O Pensamento

    Selvagem defendido teoricamente, aqui descartado pragmaticamente: o que umadiversidade desejvel para uns, isto , para os antroplogos, sentida como desigual-dade insuportvel para outros, os nativos. quando Lvi-Strauss executa uma de suasmanobras retricas conhecidas para (re)armar que, na verdade, a antropologia nuncase deniu em termos absolutos: ela sempre se desenvolveu como uma certa relaoentre observador e seu objeto. Assim, se inevitvel que o mundo se ocidentalizee se torne uma grande aldeia mestia, este mesmo mundo continuar mantendo osdesvios diferenciais que os antroplogos antes procuraram em civilizaes distintase longnquas. O resultado da argumentao mltiplo: primeiro, no resta nenhumadvida sobre o futuro da antropologia porque seu objeto no um tipo de sociedade,

    a anliSeantrOPOlgicaderituaiS

  • 7/29/2019 o_dito_e_o_feito

    11/115

    2120 O ditOeOfeitO

    mas as sempre-presentes diferenas culturais; segundo, e como conseqncia, estoeliminadas crises atuais ou futuras: Enquanto as maneiras de ser ou de agir de certoshomens forem problemas para outros homens, haver lugar para uma reexo sobreessas diferenas que, de forma sempre renovada, continuaro a ser o domnio da an-tropologia (Lvi-Strauss 1962: 26).

    Hoje podemos ver esses dois textos como representando, respectivamente, a re-

    novao terica e o otimismo pragmtico da disciplina5. Mas, passados alguns anos,vericamos a complementaridade dos dois e a importncia de A Crise..., inclusivenas suas implicaes epistemolgicas: Lvi-Strauss a negava a (im)possibilidade deuma suposta homogeneizao planetria, assim como deixava claro que a antropolo-gia no seria afetada pelas conseqncias da ocidentalizao do mundo moderno. Aantropologia estava pronta, como sempre, para enfrentar mudanas.

    Estas so questes at hoje debatidas. Para muitos, the new indeterminate emer-gent worlds with which we all now live (Fischer 1999: 457) trazem desaos tericos,se no prticos, mas a antropologia continua sendo the most useful of checks on the-orizing becoming parochial, ethnocentric, generally uncomparative, uncosmopolitan,and sociologically ungrounded (ibidem: 457). esse otimismo que encontramos nostextos de Lvi-Strauss dos anos 60, concernentes tanto horizontalidade das prticas

    humanas quanto tarefa a que se destinava a antropologia, de revelar os mecanismosde um mundo com novos contornos empricos.

    Mitos e ritos

    No momento em que se estabelecia a horizontalidade entre magia, cincia e reli-gio, estava eliminada, como conseqncia, a dicotomia entre primitivos e modernos.Mas, no espiralar da histria, outras dicotomias (res)surgiram, ou tornaram-se maisevidentes e, em certo sentido, perversas. Chamo aqui a ateno para o processo inte-lectual que levou Lvi-Strauss e os estruturalistas a questionarem o totemismo comoinstituio e, em seu lugar, estabelec-lo como um mecanismo, de tipo totmico, bom

    para pensar. Este mecanismo contrastava com aquele visto como simplesmente bompara comer preocupao pragmtica atribuda a Malinowski como base de sua teoriasociolgica. Se, portanto, de um lado, se abria caminho para desconstruir uma sriede categorias, como totemismo, magia, religio, e, nesse processo, even-tualmente,outras tantas, como economia, parentesco, poltica, de outro, faltava algo importante

    para se retornar, com proveito, ao fato social total. O prprio Lvi-Strauss comentou,retrospectivamente:

    La gnration laquelle jappartiens fut essentiellement proccupe dintroduireun peu plus de rigueur dans notres disciplines; elle sest donc efforce, chaque foiquelle tudiait des phnommes, de limiter le nombre des variables quil fallait

    considrer. [...] Car videmment, nous le savious, que lconomie, la parent, lareligion taient lies; nous le savons depuis Mauss, qui nous la enseigne et la

    proclam avec Malinowski (1975: 184-185; nfases minhas).

    Essa lucidez sobre a ligao entre os fenmenos da economia, do parentesco, dareligio etc. no o impediu, contudo, de manter e defender a dicotomia mitos versus

    ritos, exigindo inclusive um estudo separado dos dois, de modo a fazer dos mitos a viaprivilegiada de acesso mente humana. Aos ritos era relegada a execuo dos gestos e amanipulao dos objetos, a prpria exegese do ritual passando a fazer parte da mitologia:

    On dira que [le rituel] consiste en paroles profres, gestes accomplis, objetsmanipuls indpendamment de toute glose ou exgse permise ou appele parces trois genres dactivit et qui relvent, non pas du ritual mme, mais de lamythologie implicite (Lvi-Strauss 1971: 600).

    Mitos e ritos marcariam uma antinomia inerente condio humana entre duassujeies inelutveis: a do viver e a do pensar. Ritos faziam parte da primeira; mitos,da segunda. Se o rito tambm possua uma mitologia implcita que se manifestava nasexegeses, o fato que em estado puro ele perderia a anidade com a lngua (langue).

    O mito, ento, seria o pensar pleno, superior ao rito que se relacionava com a prtica.O resultado paradoxal dessa distino foi fazer ressurgir, com novas vestimentas, avelha e surrada dicotomia entre relaes sociais (ou realidade) e representaes.Embora Durkheim tenha insistido na necessidade de incluir os atos de sociedade noestudo do domnio social, tendo enfatizado que pela ao comum que a sociedadetoma conscincia de si, se arma e se recria periodicamente, e embora Mauss tenhavisto a magia como uma forma individual privilegiada de um fenmeno coletivo, masecaz de forma sui generis, por vrias dcadas a apropriao histrica destes autores inclusive por Lvi-Strauss separou heuristicamente os dois nveis: os mitos caramassociados s repre sentaes e os ritos, s relaes sociais empricas (como na propostade van Gennep).

    Curiosamente, at os contendores de Lvi-Strauss na poca contriburam para a

    analogia mitos = representaes. Vindo da tradio britnica, Victor Turner procurouresgatar a dimenso do viver, denindo os rituais como loci privilegiados para se ob-servar os princpios estruturais entre os ndembu africanos, mas tambm apropriados

    para se detectar as dimenses processuais de ruptura, crise, separao e reintegraosocial, cujo estudo ele havia iniciado com sucesso mediante a idia de drama social

    ritos seriam dramas sociais xos e rotinizados, e seus smbolos, no mbito da razodurkheimiana, estariam aptos para uma anlise microssociolgica renada. Fascinado

    pelos processos, conitos, dramas em suma, pelo vivido , para Turner, smbolosinstigam a ao. Em 1975, ele dizia, no contexto de sua polmica com o estruturalismo:

    a anliSeantrOPOlgicaderituaiS

  • 7/29/2019 o_dito_e_o_feito

    12/115

    2322 O ditOeOfeitO

    On earth the broken arcs, in heaven the perfect round (1975: 146), observando queem nenhuma sociedade os sistemas simblicos se realizam em sua perfeio6.

    No contexto dos anos 60, Edmund Leach tambm contribuiu para o tema com umpequeno ensaio que se tornou clssico. Antes, ele j havia procurado reduzir a distinomito/rito quando concebeu os kachin birmaneses como engajados em comportamentosque eram menos ou mais tcnicos, e menos ou mais rituais (Leach 1954). No artigo de

    1966, Leach passa a distinguir trs tipos de comportamentos: alm do racional-tcnico(dirigido a ns especcos que, julgados por nossos padres de vericao, produzemresultados de maneira mecnica), o comunicativo (que faz parte de um sistema queserve para transmitir informaes atravs de um cdigo cultural) e o mgico (que ecaz em termos de convenes culturais). Para o autor, os dois ltimos tipos eramconsiderados rituais. Assim, de um lado, Leach dava um grande passo no distin-guindo comportamentos verbais de no-verbais. Como conseqncia, ele aproximavao ritual do mito. Esta era uma grande inovao: o ritual era um complexo de palavras eaes e o enunciado de palavras j era um ritual. O ritual tornava-se, assim, linguagemcondensada e, portanto, econmica, e o primitivo, um homem sagaz e engenhoso. Con-tudo, por se manter el ao estruturalismo como orientao, Leach aproximava demais,em excesso, o ritual do mito, fazendo com que ele perdesse sua especicidade: como

    o principal objetivo do ritual era transmitir e perpetuar o conhecimento socialmenteadquirido, tanto o rito quanto o mito estavam igualmente inseridos na ordem da mentehumana. A dimenso do bom para viver desaparecia.

    Desnecessrio relembrar que foi Victor Turner, e no Leach, quem recebeu reco-nhecimento social como o especialista do estudo dos rituais. Ambos, no entanto, noderam importncia a um ponto central, que era o de perceber que traos formais, querde mitos ou de ritos, so produtos tambm culturais que resultam de cosmologias dis-tintas. Evans-Pritchard (1929) havia esclarecido esse ponto por meio de um pre-ciosoachado etnogrco, quando comparou os azande e os trobriandeses. Usando-os comocones da frica e da Melansia, Evans-Pritchard associou-os, respectivamente, aosrituais e aos encantamentos verbais. Se hoje temos a liberdade de retomar essa linhade trabalho, na dcada de 60 os antroplogos ainda estavam preocupados em manter oque haviam conquistado no perodo ps-Malinowski, isto , um pouco mais de rigorna disciplina como reconheceu Lvi-Strauss em 1975. Para tanto era necessriolimitar o nmero de variveis a considerar, o que resultou, por exemplo, tanto na rejei-o etnograa iatmul enquanto experimento etnogrco e analtico (Bateson 1936),quanto na armao da especicidade irredutvel de cada um dos sistemas (que maistarde seria desconstruda), como parentesco, economia, poltica, religio. A relaoentre esses sistemas, ensinados e proclamados por Mauss e Malinowski, cou emsegundo plano, assim como a relao entre etnograa e anlise antropolgica. Todo

    passo inclui avanos e recuos. Este foi parte do preo que a antropologia pagou pelosavanos do estruturalismo.

    Eccia

    Distinguir relaes sociais e representaes um recurso heurstico na anliseantropolgica. Mas sociedades no se reproduzem apenas porque os indivduos serelacionam e porque pensam o mundo; o movimento e o dinamismo das sociedades

    derivam da eccia de foras sociais ativas para usar a idia-me de Durkheim.Em outras palavras, a sociedade no um ser nominal e de razo, mas um sistema deforas atuantes, e a eccia das idias e crenas precisa ser includa na anlise expli-cativa, somando-se ao, para que se identiquem os mecanismos de movimento ede reproduo da sociedade.

    O papel fundamental da noo de eccia foi reconhecido quando Mauss props,na teoria da magia, que um podersui generisvinculava o mgico, os ritos e as represen-taes (Mauss 1974). Para ele, no s atos e representaes so inseparveis, quanto indispensvel a incluso das noes de crena (a magia no percebida: cr-se nela,:126), fora e poder mgicos (os ritos mgicos explicam-se de modo muito menosfcil pela aplicao de leis abstratas do que como transferncias de propriedades cujasaes e reaes so previamente conhecidas, :104; ou h mais transferncia do que

    associao de idias, :96), fundidas no mana (a fora por excelncia, a verdadeiraeccia das coisas, :140). Mana, essa categoria inconsciente do entendimento, com-bina qualidade, substncia e atividade (o mana no simplesmente uma fora, umser; tambm uma ao, uma qualidade e um estado, :138). Embora raramente atinjaa conscincia, ele inerente magia como fenmeno social:

    Estamos, pois, em posio de concluir que por toda parte existiu uma nooque envolve a noo do poder mgico. a noo de uma eccia pura, que,no obstante, uma substncia material e localizvel, ao mesmo tempo que espiritual, que age distncia e, portanto, por conexo direta, se no por contato,mvel e motora sem mover-se, impessoal e revestidora das formas pes-soais,divisvel e contnua. Nossas vagas idias de sorte e de quintessncia so plidassobrevivncias dessa noo muito mais rica (:146-147) .

    Mauss continua:Poder-se-ia ainda dizer, para mais bem exprimir como o mundo da magia

    superpese ao outro sem destacarse, que nele tudo se passa como num mundoconstrudo em uma quarta dimenso do espao, da qual uma noo como a demana exprimiria, por assim dizer, a existncia oculta (:147; nfases minhas).

    E conclui:

    a anliSeantrOPOlgicaderituaiS

  • 7/29/2019 o_dito_e_o_feito

    13/115

    2524 O ditOeOfeitO

    Vimos como raro ela atingir a conscincia e como ainda mais raro que naconscincia encontre sua expresso. que uma noo como a de mana ine-rente magia, como o postulado de Euclides inerente nossa concepo deespao (:147).

    Estabelecida no incio do sculo, a noo de eccia inaugurada por Mauss no

    fez muitos seguidores nas dcadas seguintes. Por volta dos anos 50, ela foi brevementeretomada por Lvi-Strauss com referncia somente tangencial sua origem em doisensaios que se tornaram conhecidos, mas descontinuados na sua obra. O estruturalismoestava mais atento s classicaes em si do que ao movimento e dinmica da socie-dade, incluindo a transferncias, valores, poderes7. Tudo indica que foi necessria aexausto do estruturalismo enquanto projeto direcionado mente humana para que a

    preocupao etnogrca voltasse a dominar a antropologia nas dcadas de 70 e 80 eo rito pudesse ser recuperado agora no s como um mecanismo bom para pensar,mas tambm ao social boa para viver. A proposta durkheimiana que percebia nasociedade a fonte das representaes coletivas, mas que reconhecia sua eccia noscultos, fazia um retorno saudvel:

    O culto no simplesmente um sistema de smbolos pelos quais a f se traduz ex-teriormente; o meio pelo qual ela se cria e se recria periodicamente. Consistindoem operaes materiais ou mentais, ele sempre ecaz (Durkheim 1996: 460).

    nesse contexto que surgem os ensaios tericos sobre ritual de Stanley Tambiah.Diretamente inuenciado por Edmund Leach (cf. Tambiah 1996c), e por seu estmulotransformado em antroplogo (ou convertido disciplina), Tambiah recebeu comolegado o desao que Leach no conseguiu realizar plenamente: o experimento decombinar os postulados estruturalistas de Lvi-Strauss com os ideais etnogrcosde Malinowski. Mas Tambiah acrescentou j difcil tarefa o enigma maussiano daeccia8.

    O caminho foi percorrido por etapas: em 1969, Tambiah defendia que cultures andsocial systems are, after all, not only thought but also lived (1969: 459) no contexto

    de um dilogo com o artigo de Leach (1964) sobre o abuso verbal. Entre o intelectua-lismo de Lvi-Strauss (natural species are chosen not because they are good to eat but

    because they are good to think) e o moralismo de Meyer Fortes (animals are good toprohibit because they are good to eat), Tambiah defendia um espao para a reconcilia-o entre as propriedades estruturais dos sistemas simblicos qua systems e a ecciados smbolos em unir indivduos e grupos a regras morais de conduta (1969: 458).

    Nos dez anos seguintes, o projeto de unir simbolismo e eccia sociolgica foidesenvolvido em vrios artigos, muitos deles utilizando como estratgia a reanlise declssicos da disciplina, demonstrando assim a riqueza dos textos etnogrcos e indi-

    cando que, na antropologia, ao se renar uma anlise anterior com novo instrumentalterico rende-se, ao mesmo tempo, homenagem ao autor original. Vejamos a seqncia:em 1968, apoiado no material trobriands de Malinowski, Tambiah publicou um ensaiono qual indicava que a linguagem da magia no era qualitativamente diferente da lin-guagem usual, mas uma forma intensicada e dramatizada da mesma. As mesmas leisde associao que se aplicam linguagem em geral esto presentes na magia como

    metforas e metonmias, por exemplo , exceto que na magia o objetivo transferiruma qualidade ao recipiente, quer via propriedades da linguagem, quer por meio desubstncias e objetos rituais.

    A transferncia de propriedades continua a ser objeto de reexo em Tambiah(1973), quando ento a reanlise da magia azande leva o autor a experimentar as idiasde Austin (1962) sobre atos performativos e sua fora ilocucionria nas analogiasmgicas, positivas e negativas. Tambiah a indicava estar consciente de seu rompimentocom a distino entre langue/parole de Saussure e enfatizava que o ato mgico temsignicados predicativos e referenciais, mas tambm performativo. Em artigo de 1977,Tambiah introduzia a noo de cosmologia para explicar a cura nos ritos budistas naTailndia por meio da meditao. E em 1979, havia renado seu instrumental analticoa ponto de, nalmente, elaborar um texto-sntese sobre a abordagem performativa do

    ritual9

    .Diferente de seus predecessores, contudo, Tambiah tomava como ponto de partidaa no-pertinncia de denir o ritual em termos absolutos. Aos nativos cava delegadaa distino possvel (relativa ou absoluta) entre os diversos tipos de atividade social, eao etngrafo a capacidade de detect-la. Para Tambiah, os eventos que os antroplogosdenem como rituais parecem partilhar alguns traos: uma ordenao que os estrutura,um sentido de realizao coletiva com propsito denido e tambm uma percepo deque eles so diferentes dos do cotidiano. Mas o ritual faz parte de uma cosmologia:

    Thus, while we must grant the importance of cultural presuppositions, of cos-mological constructs, as anterior and antecedent context to ritual, we must alsohold that our understanding of the communicative aspects of ritual may not befurthered by imagining that such a belief context adequately explains the form ofthe ritual per se. But t he clue for synthesizing this seeming antinomy has already

    been revealed, in the fact that cosmological constructs are embedded (of coursenot exclusively) in rites, and that rites in turn enact and incarnate cosmologicalconceptions (Tambiah 1985: 130).

    Na verdade, o carter performativo do ritual est implicado na relao entre formae contedo que, por sua vez, est contida na cosmologia. Para Tambiah, a inevitabilidadeda perspectiva cosmolgica foi gracamente expressa por Wittgenstein no aforismo:if the ea were to construct a rite, it would be about the dog (apudTambiah 1985:

    a anliSeantrOPOlgicaderituaiS

  • 7/29/2019 o_dito_e_o_feito

    14/115

    2726 O ditOeOfeitO

    129). Por cosmologia, ento,

    I mean the body of conceptions that enumerate and classify the phenomenathat compose the universe as an ordered whole and the norms and processes thatgovern it. From my point of view, a societys principal cosmological notions areall those orienting principles and conceptions that are held to be sacrosanct, areconstantly used as yardsticks, and are considered worthy of perpetuation relativelyunchanged (1985: 130).

    E acrescenta:

    As such, depending on the conceptions of the society in question, its legalcodes, its political conventions, and its social class relations may be as integralto its cosmology as its religious beliefs concerning gods and supernaturals. Inother words, in a discussion of enactments which are quintessentially rituals in afocal sense, the traditional distinction between religious and secular is of li ttlerelevance, and the idea of sacredness need not attach to religious things denedonly in the Tylorian sense (1985: 130).

    E, portanto:

    Anything toward which an unquestioned and tradition alizing attitude is adop-ted can be viewed as sacred. Rituals that are built around the sacrosanct characterof constitutions and legal charters or wars of independence and liberation, andthat are devoted to their preservation as enshrined truths or to their invocationas great events, have a traditionalizing role, and in this sense may share similarconstitutive features with rituals devoted to gods or ancestors (1985: 130).

    Ao evitar a denio rgida de ritual, a relao entre ritos e outros eventos torna-se,tambm, exvel, em uma plasticidade engendrada pela situao etnogrca. Isto ,somente uma determinada cosmologia pode explicar por que, em certos contextos,mitos, ritos, tabus, proibies tm a capacidade de dizer e fazer coisas diferentes, j

    que semanticamente eles so tanto separados quanto relacionados: se uma sociedadeprivilegia ritos, outra pode enfatizar mitos (cf., p. ex., Evans-Pritchard 1929).

    Como sistemas culturalmente construdos de comunicao simblica, os ritosdeixam de ser apenas a ao que corresponde a (ou deriva de) um sistema de idias,resultando que eles se tornam bons para pensar e bons para agir alm de serem social-mente ecazes. Tambiah arma que a eccia deriva do carter performativo do rito emtrs sentidos: no de Austin (em que dizer fazer como ato convencional); no de uma

    performance que usa vrios meios de comunicao atravs dos quais os participantesexperimentam intensamente o evento e, nalmente, no sentido de remeter a valores

    que so vinculados ou inferidos pelos atores durante a performance (Tambiah 1985:128). Em outras palavras, os rituais partilham alguns traos formais e padronizados,mas estes so variveis, fundados em constructos ideolgicos particulares. Assim, ovnculo entre forma e contedo torna-se essencial eccia e as consideraes culturaisintegram-se, implicadas, na forma que o ritual assume10.

    A ao ritual assim compreendida consiste em uma manipulao de um objeto-

    smbolo com o propsito de uma transferncia imperativa de suas propriedades parao recipiente. Assim, o ritual no pode ser considerado falso ou errado em um sentidocausal, mas, sim, imprprio, invlido ou imperfeito. Da mesma maneira, a semnticado ritual no pode ser julgada em termos da dicotomia falso/verdadeiro, mas pelosobjetivos de persuaso, conceptualizao, expanso de signicado, assim comoos critrios de adequao devem ser relacionados validade, pertinncia, legiti-midade e felicidade do rito realizado (Tambiah 1985: 77-84)11.

    Em suma, ao considerar o rito etnogracamente, Tambiah reintegra a centenriapreocupao dos antroplogos com as caractersticas intrnsecas do ritual, dissolven-do-as. Tambiah segue, portanto, a trajetria consagrada das disciplinas humanas nosculo XX: focalizar o que o senso comum considera diferente, estranho, anmalo

    para dissolver sua bizarria e depois reagreg-lo na uidez do usual. Foi assim com

    a afasia, quando Roman Jakobson provou que ela poderia ajudar-nos a desvendarmecanismos tanto lingsticos quanto mentais, presentes em qualquer comunicaoverbal; com os sonhos, quando Sigmund Freud demonstrou que eles eram bons paraanalisar, indicando mecanismos do consciente e do inconsciente; com o totemismo,quando Lvi-Strauss detectou nesses fenmenos mecanismos analgicos entre culturae natureza, presentes no simbolismo em geral. No caso dos rituais, focaliz-los em suaespecicidade para demonstrar que so momentos de intensicao do que usualtorna-os loci privilegiados verdadeiros cones ou diagramas para se detectar traoscomuns a outros momentos e situaes sociais. Se existe uma coerncia na vida social

    como os antroplogos acreditamos , o que se observa no fragmento do ritual (querseja a resoluo de conitos, Turner; transmisso de conhecimentos, como queriaLeach; ou o vnculo entre ao social ecaz e cosmologia, seguindo Tambiah) tambmse revela em outras reas do comportamento que o pesquisador investiga. Vivemossistemas rituais complexos, interligados, sucessivos e vinculados, atualizando cosmo-logias e sendo por elas orientados.

    Ritos e eventos

    O sculo que valorizou a cincia como realizao mxima tambm deu valorcentral funo referencial da linguagem. Nos ltimos cem anos, o senso comumocidental concebeu a linguagem como um processo paralelo e correspondente ao pro-cesso mental. Esta foi a viso preponderante da comunicao verbal, que dominou

    a anliSeantrOPOlgicaderituaiS

  • 7/29/2019 o_dito_e_o_feito

    15/115

    2928 O ditOeOfeitO

    inclusive a lingstica tradicional que dela evolveu. No decorrer do sculo, contudo,confrontadas com outras tradies no-europias, essa nfase na funo da proposi-cionalidade da linguagem foi sendo questionada, mas a observao de Malinowski,de que [...] there is nothing more dangerous than to imagine that language is a processrunning parallel and exactly corresponding to mental process, and that the functionof language is to reect or to duplicate the mental reality of man in a secondary ow

    of verbal equivalents (Malinowski 1935 apudSilverstein 1977), no foi reconhecidacomo fundamental seno recentemente, assim mesmo apenas por alguns lingistas eantroplogos. Ainda vivemos sob o domnio da funo referencial.

    Para se ter uma dimenso das implicaes dessa viso basta mencionar queLvi-Strauss, assim como todos que adotaram a abordagem estruturalista em geral,considera a relao entre gramtica (linguagem) e cultura como especular, implicandouma analogia estrutural entre esses dois planos de descrio (seguindo, portanto, asidias de Saussure). Se, no entanto, aceitamos que a linguagem extrapola a funoreferencial, abrimos espao para usos e funes (culturais) da linguagem que derivamdo que Malinowski (1930) chamou de contexto da situao. Tais funes e usosdecorrem de propriedades intrnsecas linguagem, isto , no so acrescidas depois ouquando a lngua posta em uso; elas so inerentes ao fenmeno mesmo da linguagem.

    (Aqui, os nomes de referncia so, naturalmente, Peirce, Jakobson e Austin.) O caso dospronomes pessoais exemplar de um signo no qual o aspecto referencial e o indxicose combinam: dependendo de quem enuncia e para quem se enuncia o signicado dos

    pronomes muda. Por outro lado, determinados verbos so por sua prpria naturezaperformativos e, neste caso, dizer fazer (ver Austin 1962)12.

    A conseqncia mais imediata dessa relao entre o enunciado verbal e o contextoda situao que linguagem e cultura no se unem por laos isomrcos mas, sim, pormeio de um vnculo entre parte e todo, isto , a linguagem parte da cultura. Comoresultado, a lingstica passa a se associar antropologia no como duas disciplinasindependentes, fontes de inspirao mtua, mas em uma relao mais complexa umano pode prescindir da outra. A etnograa sem o conhecimento da lngua nativa ,

    portanto, impensvel em teoria (embora comum na prtica), assim como os estudosgramaticais sem a compreenso da funo ou uso das formas de fala, impossveis.

    Se, ento, a cultura engloba a linguagem, possvel delas tirar proveito mtuo.A lingstica renou o instrumental analtico em relao comunicao verbal; aantropologia renou a comunicao ritual: h um relativo consenso de que a teoria dalinguagem (incluo a lingstica e a losoa) foi um dos saberes mais amadurecidosneste sculo, com repercusses nas diversas humanidades. Mas entre lingstica eantropologia, uma antecede a outra. Se a teoria da linguagem viu seu orescer maiorno incio do sculo, foi na segunda metade deste que a antropologia foi reconhecidacomo fonte de idias alternativas ao senso comum, contribuindo assim para expurgarvalores ocidentais e etnocntricos das teorias sociolgicas.

    Como em um conjunto de bonecas russas, ento, a fala e/ou o rito passam a serreconhecidos como tipos de eventos culturais/sociais e, nesse caso, tanto a teoria dalinguagem quanto a antropologia passam a colaborar analiticamente. Mais: dado que aafasia revelou meios (metafricos e metonmicos) bsicos da linguagem usual, o ritualesclarece mecanismos fundamentais do repertrio social. Em outras palavras: falas eritos esses fenmenos que podem ser recortados na seqncia dos atos so-ciais so

    bons para revelar processos tambm existentes no dia-a-dia e, at mesmo, para seexaminar, detectar e confrontar as estruturas elementares da vida social.

    Uma das grandes lies da antropologia est, portanto, neste fato singelo masbsico: as leis de associao que se aplicam magia, ao ritual, ao totemismo, aos en-cantamentos etc. no so qualitativamente diversas das da linguagem ou ao so-cialcomum. Voltamos aqui, mais uma vez, clarividncia de Mauss quando este armouque o mundo da magia superpe-se ao outro sem destacar-se (1974: 147). Esclare-cida a questo, hora de realizar um movimento contrrio quele dos primrdios daantropologia, isto , em lugar de focalizar o bizarro e o extico, fazer retornar vidasocial costumeira as descobertas que foram feitas para os momentos ou fenmenos umdia considerados excepcionais.

    Riots como rituaisO fato de a antropologia reunir um grande repertrio de evidncias empricas,

    resultado cumulativo de trabalho de campo em vrias culturas, e de, ao mesmo tempo,renar seu instrumental terico a partir desses dados comparativos faz com que suasabordagens analticas sejam pertinentes para, em princpio, elucidar vrios tipos defenmenos em diferentes sociedades, e tambm sejam aptas a totaliz-los em teoriasrenovadas. Pode-se dizer que a antropologia universalista por disposio, mas se enri-quece, amplia seu repertrio e se sostica teoricamente quando confrontada com novosuniversos empricos. Como o objeto da antropologia no inerte, ele inui no olharque lhe dirigido, criando novas agncias (o kula, opotlatch, o mana) e estimulandorenamentos tericos. Disso resulta que, partindo de uma orientao universalista, aantropologia particulariza-se em ao e se torna antropologia da poltica, antropo-logia da religio, antropologia dos movimentos sociais, antropologia do gnero,antropologia do parentesco, antropologia das sociedades indgenas etc., terminando,assim, o perodo que j dura demasiado de subdividir a disciplina em antropologia

    poltica, antropologia econmica, antropologia losca etc. dessa perspectiva que se pode examinar o livro de Stanley Tambiah,Leveling

    Crowds. Ethnonationalist Conicts and Collective Violence in South Asia, publicadoem 199613. Tendo anteriormente desenvolvido trabalhos sobre a violncia no Sri Lanka(Tambiah 1986; 1992), em um sentido mais ou menos evidente Tambiah d continuidadea eles. Estes livros sobre seu pas de origem seguiram-se a uma trilogia sobre budismo e

    a anliSeantrOPOlgicaderituaiS

  • 7/29/2019 o_dito_e_o_feito

    16/115

    3130 O ditOeOfeitO

    poltica na Tailndia (1970; 1976; 1984), projeto desenvolvido de forma concomitante publicao de ensaios tericos de reanlise de material etnogrco clssico, assimcomo abordagem de uma teoria performativa do ritual (Tambiah 1979; 1985).

    At ento, embora suas propostas tericas sobre ritual e simbolismo estivessempresentes nos ensaios histrico-antropolgicos, era possvel perceber uma certa di-ferenciao entre estudos tericos e monogrcos14. J emLeveling Crowds as duas

    orientaes se combinam em sentido pleno. Tambiah mobiliza instrumental analticosobre ritual para construir seu livro dentro da tradio monogrca: de um lado, veri-cam-se as contribuies que se totalizaram na formulao de uma abordagem perfor-mativa15, de outro, a srie de erupes de violncia coletiva no Sul da sia, fenmenocontemporneo que desaa a capacidade interpretativa de socilogos, historiadores ecientistas polticos. Ao fazer dialogar a teoria, que no caso da antropologia se sustentana etnograa presente e passada, e os eventos contemporneos, Tambiah d prova da

    plasticidade e riqueza da disciplina de sua eterna juventude.Leveling Crowds tem como propsito discutir os conitos etnonacionalistas e a

    violncia coletiva no Sul da sia. Para alcanar este objetivo, Tambiah recorta um objetoemprico bsico, sobre o qual vai atuar analiticamente. Este objeto emprico no for-tuito: trata-se dos episdios de grande violncia coletiva que causam perplexidade tanto

    aos cientistas sociais, ao grande pblico, quanto aos jornalistas e mdia em geral porsua constncia e virulncia no mundo de hoje os riots. Para apresentar esses eventos,acontecimentos de difcil traduo na lngua portuguesa, Tambiah baseia-se em textosacadmicos, relatos ociais, reportagens jornalsticas e em sua prpria experincia.

    A primeira parte do livro inclui narrativas de riots no espao/tempo de Sri Lanka,ndia e Paquisto nos ltimos cem anos, entre budistas e catlicos (Sri Lanka, 1883),

    budistas e muulmanos (Sri Lanka, 1915), budistas e tamils (Sri Lanka, 1956-83),hindus e sikhs (ndia, 1984), hindus e muulmanos (ndia, 1992), muhajirs e sindhis(Paquisto, 1988-90), muhajirs e pathans (Paquisto, 1985-86). Independentementedas etnias, a leitura seqencial dos inmeros episdios, ao expor o leitor a uma grandediversidade de conitos, tem a fora (ilocucionria) de rearmar um padro.

    Nesse sentido, a primeira parte do livro deixa de ser puramente um relato de casosetnogrcos. A leitura sucessiva de espasmos de violncia que se repetem um apso outro, saqueando, depredando, tirando vidas, destruindo propriedades, provocandoincndios, amedrontando e causando pnico, fazendo vtimas e traumatizando popu-laes faz com que o leitor no apenas experimente, ele prprio, o impacto e o traumada violncia, mas tambm se sensibilize para o fato de que, recorrente e repetitiva,independentemente dos atores envolvidos, a compreenso desse tipo de fenmeno domundo moderno exige dos cientistas sociais uma abordagem nova. Como que cerzindosua narrativa, Tambiah vai ento inserindo comparaes com eventos contemporneos,assim como com casos histricos do Ocidente. No decorrer da exposio, introduz doisconceitos interligados para explicar a trajetria dos tumultos: porfocalizao, Tambiah

    indica os processos pelos quais incidentes locais e de pequena escala, ocasionadospor disputas religiosas, comerciais, familiares, envolvendo pessoas em contato direto,crescem cumulativamente at tornarem-se grandes questes abrangendo um grupoque se v como tnico e que, sob a inuncia de rumores de atrocidades, engaja a

    populao por meio de lealdades e antagonismos que dizem respeito raa, religio,lngua, nao, lugar de origem. Esse movimento de transformar pequenas disputas em

    grandes problemas, Tambiah chama de transvalorizao.Na segunda parte, os relatos continuam, mas o propsito agora desenvolver a

    anlise de modo a abranger os eventos e as questes tericas sobre a violncia coletiva.Em busca de um repertrio dos tumultos, Tambiah observa que os riots, esses fenmenosaparentemente espontneos, caticos e orgisticos, apresentam feies organizadas,antecipadas, programadas, assim como traos e fases recorrentes. possvel distinguirum padro de eventos provocadores, uma seqncia da violncia, estabelecer a duraorpida, vericar quem so os participantes, os locais onde se inicia e se espalha, e comotermina. factvel tambm observar por intermdio de que mecanismos se propaga,e conrmar o papel central dos rumores como profecias que se cumprem, ecazes naconstruo, produo e propagao dos atos de violncia. Rumores so causa de pni-co e parania, mas so tambm produto de pnico e parania. Na medida em que so

    repetidos inmeras vezes, os atos supostamente brbaros dos inimigos circulam, soreelaborados, distorcidos, geram outros rumores e, ao m, o pnico e a fria produzidospelos boatos levam perpetrao de atos to sinistros quanto aqueles atribudos aosoponentes. Boatos so de uma eccia cruel nesses contextos.

    Riots apresentam, portanto, traos sintticos que, se no exaurem os eventos con-tingentes de seu signicado pragmtico, se sustentam em um repertrio cujos elementosso usualmente selecionados das formas cotidianas de sociabilidade, do calendrioritual de festividades, das sanes e punies populares e dos rituais de puricao eexorcismo. Esses elementos podem ser imitados, invertidos, parodiados, de acordo comsuas possibilidades dramticas e comunicativas. Realizando umpotlatch s avessas, asmultides que se engajam nos tumultos no so homogneas e tampouco compostas

    pelos criminosos e desocupados que o senso comum imagina, mas reetem parte doperl socioeconmico de cidades como Bombaim, Delhi, Calcut, Karachi, Colombo ese constituem de trabalhadores de fbricas, de servios de transportes (trens e nibus),de empregados em bazares e no pequeno comrcio, estudantes, alm de polticos,agentes locais, polcia16.

    Focalizar a rotinizao e a ritualizao da violncia e seu carter coletivo permitecompreender um aparente enigma: por que brutalidades cometidas por membros damultido inamada em nome de uma causa poltica vlida para uma coletividade(seja grupo tnico ou nacionalidade) no deixa marcas psquicas no agressor no planoindividual. So os aspectos de ritualizao que tambm permitem entender por que,depois de espasmos de violncia riots tm sempre curta durao , os participantes

    a anliSeantrOPOlgicaderituaiS

  • 7/29/2019 o_dito_e_o_feito

    17/115

    3332 O ditOeOfeitO

    logo voltam sua vida normal e continuam a viver junto aos seus (antigos) inimigos.Em termos do timingda violncia, a superposio de mltiplos calendrios religiososfaz com que muitas vezes o rudo das festividades de uma etnia coincida com o perodode recluso de outra: este um detonador infalvel de tumultos. Eventos pblicos com

    potencial de violncia incluem tambm: procisses carregando smbolos emotivose recitando slogans inamados; comcios com oratria estereotipada com aluses

    mtico-histricas transmitidas e amplicadas em alto-falantes; intimidao do oponentecom exploso de bombas em lugares pblicos; suborno para facilitar o movimento demultides; desaos, insultos e dessacralizao de smbolos religiosos.

    Em outro nvel interpretativo, Tambiah quer entender como esses fenmenos ur-banos incluem a destruio de propriedade com o propsito intencional de nivelamento(leveling) social. Vantagens que so percebidas no oponente devem ser eliminadas e adesigualdade sofrida pelo oprimido, compensada. Outro trao marcante que tanto osagressores quanto as vtimas muitas vezes vivem nas mesmas cidades, ou lado a ladoem distritos ou cidades prximas. De maneira sintomtica, as diferenas de convicos se transformam em dio quando existem vnculos anteriores essenciais entre as

    partes. Uma terceira considerao sobre a dinmica dos conitos: a unidade desejadae imaginada de uma coletividade tnica com freqncia difcil de se consumar em

    virtude de diferenas internas.Em outras palavras, mesmo no interior das etnias no h homogeneidade. Noh uma multido, mas vrias multides; as cristalizaes das coletividades que seautodenominam cingaleses, tamils, sikhs, hindus so episdicas e contextuais. Essasmesmas coletividades so traspassadas por interesses faccionais, sectrios, de casta,de classe, regionais, econmicos, o que faz com que haja muitos cenrios possveise a violncia dos tumultos seja muito mais dramtica e intensicada do que a ao

    planejada e antecipada. Tambiah ressalta, com evidente propsito de desaar algumasposies de vanguarda:

    We should not forget that sections of the civilian populace may collide, bothwith the aid of state agents whose loyalties are divided and against the repre-sentatives of the state taking part in the conict. These are complexities thatno contemporary witness of ethnic conicts can forget or mute. There is nomonolithic archenemy called colonialism available to be excoriated; and onecannot romanticize contemporary South Asian ethnic riots as pure resistanceand the attendant acts of arson, homicide, and injury as commensurate with aconscious undertaking on the part of the rioters (1996a: 317).

    Na ltima parte do livro, Tambiah reencontra Le Bon e Durkheim: para o primei-ro, as multides tinham um carter desestabilizador, destrutivo e degenerativo; parao segundo, eram fonte de sentimentos sagrados e representaes e prticas coletivas

    que celebravam solidariedade e integrao social. Tambiah tambm dialoga com E. P.Thompson e os historiadores dossubaltern studies, perguntando-se se o argumento daeconomia moral, desenvolvido para explicar os tumultos do sculo XVIII na Europa,

    pode aplicar-se aos riots atuais no Sul da sia.A resposta negativa. Os conitos de hoje no Sul da sia se desenvolvem em

    um contexto em que no existe uma ideologia cristalizada e coerente, e tampouco um

    corpo de normas e prticas polticas aceitvel e partilhado pela maioria da populao.H, na verdade, crise a respeito da idia de estado-nao. Os partidos apelam paranormas, tradies e valores particularistas e dividem os proponentes em protagonistase antagonistas em uma arena onde no existe uma economia poltica moral unitria.

    De fato, a dimenso nacional ocorre s avessas da prtica unicada. Essa dimenso visvel, por exemplo, quando um evento de dimenses nacionais explode em vrios

    pontos como bombas radiando do centro para a periferia, afetando centenas de cidadese aldeias, vinculando-se a estruturas locais de poder, complexos locais de castas, seitase grupos tnicos, adaptando a causa nacional a contextos e contingncias polticaslocais17. Assim, a questo paradoxal que o sul-asitico (especialmente a ndia) coloca

    para o mundo moderno, diz respeito ao fato de que democracia participativa, eleies,militncia de massa e violncia tnica no so conitantes em ao. A etnicidade

    hoje fora dominante, incorporando identidades e interesses religiosos, lingsticos,territoriais, de classe e casta; mas tambm o guarda-chuva sob o qual se aninhamidias e interesses pessoais, familiares e comerciais locais. Em suma, para Tambiah:

    The crisis of the nation-state in South Asia (and many other places) is dialec-tically linked with the surge of ethnonationalism. In India, Pakistan, Sri Lanka,and Bangladesh, the attempt to realize the nation-state on a Western Europeanmodel has virtually failed. The nation-state conception has not taken deep rootsin South Asia or generated a widespread and robust participatory public cul-ture that celebrates it in widely meaningful ceremonies, festivals, and rituals.The independence day parades and speeches, the opening of Parliament, theweak afrmations of the secular state in the face of sectarian claims to specialtreatment, and other markers of nation-state existence pale in public support and

    relevance when compared to the scale and intensity of calendrical religious andethnic festivals (1996a: 265).

    Tambiah compara o caso sul-asitico com o ocidental e conclui que o repertriocultural daquela regio no oferece as bases para a vida cvica do estado-nao. (Pa-rafraseando Mauss, no h um mundo ao qual se superpor a magia do estado-naosem se destacar.)

    The rituals and afrmations surrounding the monarchy as embodying nationalunity in Britain and the celebrations of civil religion focused on nation-making

    a anliSeantrOPOlgicaderituaiS

  • 7/29/2019 o_dito_e_o_feito

    18/115

    3534 O ditOeOfeitO

    events in the United States have no real paralels in the new nation-states of SouthAsia. The truly engaging foci of a public culture are to be found in the arena andfestivities linked to features of communal life, associated with literature, recita-tions, texts, sagas, mythologies, and popular theater, which celebrate and enactreligiopolitical and social memories and concerns of collectivities in place fora long time. This is why, for instance, the divisive themes but effective presen-tations of Hindu nationalism, Sikh nationalism, Sinhala Buddhist nationalism,

    and Dravidian nationalism so greatly constitute and dominate mass politics andparticipation in elections (Tambiah 1996a: 265).

    Os episdios de violncia tnica do nal do novecentos desaam as profeciasps-iluministas de que o declnio da religio era inevitvel. Eles tambm fazem face idia de que lealdades e sentimentos primordiais iriam desaparecer ou diminuir medida que interesses nacionais a eles se sobrepusessem. As exploses de violnciacontinuam a confrontar as explicaes convencionais da cincia social no que concernes democracias modernas. Nesse sentido,Leveling Crowds um marco nessa rea deinvestigao, produzido por um antroplogo que no se afasta da formao sociolgicaslida. (Por esse experimento, em 1997, Tambiah recebeu o prestigioso Balzan Prize.)

    Ao focalizar a religio em contextos nacionais,Leveling Crowds revelador da

    complexidade dos ideais e prticas do mundo moderno. Apoiado na anlise de ritual(de origem durkheimiana), Tambiah insere-se no projeto weberiano mais amplo, aoinvestigar historicamente os mltiplos planos da vida das comunidades, explicitandoos diversos agentes e interesses envolvidos, assim como os valores (religiosos) emquesto18. Mas h um subproduto a mais. O livro tambm nos indica o longo caminho

    percorrido pela antropologia no ltimo sculo. H cem anos, grandes debates procura-vam focalizar a relao entre religio, magia e cincia e, tambm, discutir a primaziaora do rito, ora do mito. Hoje podemos continuar a fazer uso da noo de ritual, mas emsentido ampliado, expandido, tornando-o instrumental analtico para eventos crticosde uma sociedade. Rituais indicam-nos o caminho das cosmologias, quer daquelasum dia consideradas tribais, primitivas, ou, hoje, modernas. Vivendo um processo deconstante renovao disciplinar, os antroplogos aprendemos com a experincia etno-

    grca acumulada de um sculo, a qual nos permite reiterar, independente da inclinaointerpretativa e dos objetos com que nos defrontamos, que a disciplina tem sido um doscontroles mais efetivos contra a tendncia de a teoria tornar-se paroquial, etnocntrica,sociologicamente supercial, no-comparativa e, portanto, pouco cosmopolita.

    EPLOGO EM DOIS TEMPOS

    No momento em que o ritual revisitado do prisma analtico, dois pontos de re-exo se impem: um, metodolgico, sobre a relao entre eventos e acasos; outro, de

    natureza da poltica da teoria, sobre a utilizao da abordagem de rituais por algumascomunidades de especialistas. Abordo brevemente as duas questes aqui, reservandoreexes mais aprofundadas para o futuro.

    Eventos e acasos

    Para o senso comum, tumultos como os riots sul-asiticos descritos por Tambiahno so rituais no sentido estrito. Acostumamo-nos a associar rituais aperformancesauspiciosas. No entanto, h trs aspectos a considerar: primeiro, a populao sul-asitica,isto , os nativos, marcam esses momentos como distintos dos acontecimentos coti-dianos; segundo, trata-se de umaperformance coletiva para atingir determinado m;terceiro, os eventos possuem uma ordenao que os estrutura. Estes so traos funda-mentais de um ritual na denio heurstica e no-absoluta que Tambiah props em1979. No caso em tela, esses fenmenos tm uma designao especca so riots e,embora aparentemente espontneos, irracionais e caticos, quando analisados revelamfeies antecipadas, programadas, durao determinada, traos e fases recorrentes. necessrio ao etnlogo, portanto, desenvolver a sensibilidade para reconhecer nessesfenmenos os aspectos rituais alis, como Mauss fez em relao ao potlatch. E seMauss utilizou a destruio ritual de propriedade para desenvolver a teoria da troca, possvel se partir dos riots para discutir o destino do estado-nao e da democraciaem contextos etnicamente plurais.

    Eventos como opotlatch e os riots nascem de um repertrio cultural que no osfaz aberraes em termos sociolgicos: produzindo eventos intensicados, exaltados e,no caso sul-asitico, incluindo extrema violncia coletiva, por sua familiaridade quese tornam um desao para o cientista social. A questo bsica parte de uma perspectivacomparativa: o que faz com que a equivalncia de etnias, mais do que a liberdade e aigualdade dos indivduos, se torne o principal problema das democra-cias participativasem muitas das sociedades multitnicas do mundo moderno?Leveling Crowds demons-tra a rentabilidade analtica da (re)construo de repertrios culturais e cosmologias a

    partir de eventos ritualizados, no caso, trgicos em termos dos valores modernos maiscaros, inclusive os do cientista social.

    Mas eventos dessa natureza tm ainda outra face que preciso confrontar: deum lado, so reconhecidos como gramaticais em determinadas culturas como jnotamos, fazem parte de um repertrio cultural; de outro, eles ocorrem em momentose contextos impossveis de antecipar totalmente. Isto , embora a passagem de uma

    procisso festiva em frente do templo de outra etnia que se encontra reclusa j exibaelementos incitadores de violncia e tumulto, no se trata de uma fatalidade sociolgicao fato de que ocorrer um riotde grandes propores. Este exemplo traz tona a questodo grau de imponderabilidade dos eventos e dos acasos no cotidiano da vida social.

    Este um tema que j recebeu ateno detalhada no debate sociolgico de cunho

    a anliSeantrOPOlgicaderituaiS

  • 7/29/2019 o_dito_e_o_feito

    19/115

    3736 O ditOeOfeitO

    histrico (Weber 1992), assim como na histria da cincia (Latour 1995). No minhainteno retomar a discusso em profundidade, mas apenas apontar, primeiro, para ofato de que no se trata, no contexto presente, de examinar a causalidade dos eventos,mas sua interpretao para usar a expresso weberiana, o surgimento de indivduoshistricos. Em segundo lugar, sugerir que a ampliao da anlise de rituais para even-tos crticos de uma sociedade implica conceder aos fenmenos assim examinados uma

    liberdadesui generis, derivada de suas dimenses sociolgica e histrica. De um lado,ento, preciso reconhecer que eles so, em parte, sua prpria causa o evento temelementos que o tornam imprevisvel, uma surpresa, uma diferena; no fosse assim,no se trataria de um evento, mas somente da ativao de uma potencialidade, da meraatualizao de uma causa, da realizao de uma estrutura19. Por outro, justamente essestraos especcos dos eventos diferente dos rituais convencionais trazem comoconseqncia uma ampliao dos efeitos perlocucionrios (cf. Austin 1962), isto, dos resultados no-antecipados que derivam dos contextos culturais particularesnos quais ocorrem. Mas justamente a que, mais uma vez, Leveling Crowds nossurpreende quando Tambiah aponta para padres nesses efeitos: o que era possibilida-de, potencialidade, probabilidade de expanso e intensicao, no caso da violnciacoletiva no sul-asitico toma a forma de dois pares que Tambiah denomina, um, defocalizao e transvalorizao, e o outro, de nacionalizao e paroquializao.Para esses movimentos de violncia coletiva poderamos arriscar o rtulo, em princpiocontraditrio, de processos perlocucionrios. Essa possibilidade envolve uma questofundamental para desvendar mais profundamente os vnculos entre o ritual e o evento,mas que, aqui, ca apenas sinalizada.

    Eventos e stories

    Outro tema apenas sugerido diz respeito responsabilidade poltica como dimen-so intrnseca s cincias sociais. Como um sul-asitico de origem, Stanley Tambiahrelembra-nos esse vnculo. Em suas palavras:

    The conundrum that faces many of us South Asians is this: while we all should

    make the effort to comprehend and appreciate the reasons for the rejection ofWestern secularism by certain religious communities, we also have to face upto the question of what policy to put in its place in an arena where multiplereligious communities with divergent political agendas contest one another andmake claims that threaten to engender discrimination and inequality amongcitizens who in principle must enjoy the same civil rights and should peacefullycoexist (1996a: 19).Recordando que a prpria cincia social nasce engajada em projetos polticos de

    longa durao no sculo XIX, encerro este ensaio com uma provocao: na pesquisa

    antropolgica h sempre um acontecimento, seja evento, estria, relato, que detm certoprivilgio do momento etnogrco decisivo. Dados so construdos, fatos so feitos.Mas a articulao de experincias que o etnlogo vive e da qual participa (ou que reen-contra como documento ou memria, de natureza, mbito e domnio diversos) precisade uma ncora no apenas textual, mas cognitiva e psquica que totalize a experincia.A apropriao do momento efmero ou do incidente revelador tem nas experincias da

    disciplina o caso exemplar que levou Mauss, depois de analisar o kula e opotlatch, aexpressar o cuidado que o etnlogo precisa ter ao observar o que dado (ce qui estdonn). Vale a pena repetir, para no haver dvida: Or, le donn, cest Rome, cestAthnes, cest le Franais moyen, cest le Mlansien de telle ou telle le, et non pasla prire ou le droit en soi (Mauss 1925: 182).

    a essa tradio que podemos associar a escolha de Tambiah em elegerriots dosul-asitico como os incidentes crticos para sua monograa. So eles que representamo tangvel, a experincia vivida, o sofrimento episdico, a tentativa de capturar o ins-tante perdido mas crucial da pesquisa (ou da histria) e, no menos, de fazer coincidirobjetivos terico-intelectuais com poltico-pragmticos. So eles Roma, Atenas, omelansio da ilha tal20.

    Mas essa prtica usual? A resposta negativa. Em contraste com a opo peloevento, h mais de uma dcada um grupo signicativo de antroplogos nor-te-ameri-canos escolhe a construo de narrativas ou estrias (stories) como alternativa epis-temolgica e poltica, em um contexto no qual o exotismo, tendo dominado o olharda disciplina por um sculo, provoca intenso mal-estar em um mundo que se querigualitrio. Agora que passam a condenar a etnograa realista, a questionar a autoridadedo antroplogo como autor, a denunciar a validade dos fatos, a projetar um mundono-colonial, novas possibilidades para a construo do texto etnogrco incluemnotas de campo, biograas, entrevistas, co cientca, manifestos, comentrios21.

    nesse contexto que proponho a comparao entre o uso de eventos, de umlado, e de narrativas (stories), de outro, arriscando introduzir uma nova dicotomia eaumentar ainda mais a lista das muitas j existentes na disciplina. Mas impossvelno reconhecer esses dois tipos ideais na antropologia contempornea que, na verdade,correspondem a diferentes construes do objeto: onde esse objeto foi um dia pautado

    pelo exotismo, a antropologia hoje est em crise (e se abriga noscultural studies,feminist studies,science studiesetc.); onde o objeto encontrado na diferena (quer social,cultural ou outra), a anlise de eventos apropriada para resumir, expandir, suportar eencorajar o conhecimento que continua a se pretender universalista mas multicentradonas suas manifestaes. preciso esclarecer: se todo exotismo um tipo de diferena,nem toda diferena extica; a diferena compara e relaciona, j o exotismo separa eisola; a diferena produz uma teoria poltica, o exotismo produz militncia parte daetnograa. De forma intencional, as narrativas tornaram-se uma opo retrica paraalguns antroplogos; talvez de maneira menos consciente, anlises de eventos tm nos

    a anliSeantrOPOlgicaderituaiS

  • 7/29/2019 o_dito_e_o_feito

    20/115

    3938 O ditOeOfeitO

    feito examinar pressupostos bsicos da vida social. A anlise de rituais e de eventostem uma anidade eletiva com a opo pela diferena que preciso explorar em suaenorme potencialidade.

    Para Tambi,

    no seu 70 aniversrio

    Notas

    1 Este artigo, publicado no Le Courrierda UNESCO, passou despercebido e difcil encon-tr-lo mesmo nas melhores bibliotecas. No Brasil, A Crise... (1961) tornou-se texto bastanteutilizado em cursos de graduao, certamente por haver sido traduzido para o portugus no anoseguinte sua publicao original.

    2 Para Lvi-Strauss, cincia basicamente a capacidade de classicao. Ver os pargrafos deabertura do livro, em que o autor rev a literatura ento recente da ethnoscience. Para as deniesde cincia em geral, e no caso da antropologia em particular, ver Latour (1996).

    3 Ver Tambiah (1968), para uma apreciao crtica de O Pensamento Selvagem e as vacilaesde Lvi-Strauss em relao magia e cinci a, em comparao com os trabalhos de Malino wskie Evans-Pritchard.

    4

    Ver Rabinow (1996) e os mecanismos de bricolagem na cincia contempornea.5 Vale lembrar que Lvi-Strauss escreveu vrios textos para a UNESCO. Alguns deles, comoRaa e Histria, se tornaram marcos na disciplina, tendo sido incorporados em coletneasorganizadas pelo autor. J A Crise Moderna da Antropolog ia no recebeu, nem de seu prp rioautor, maior ateno. Ver Benthallk (1984) para a relao entre Lvi-Strauss e a UNESCO.

    6 importante enfatizar que Turner (1967) manteve a denio de ritual vinculada a crenasem seres ou poderes msticos. Para uma reanlise das rvores dos Ndembu estudadas por VictorTurner, ver Peirano (1995).

    7 Trata-se dos artigos A Eccia dos Smbolos e O Xam e a Magia (Lvi-Strauss 1970).Citando Lvi-Strauss em passagem signicativa: O xam fornece sua doente uma linguagem,na qual se podem exprimir imediatamente estados no-formulados, de outro modo informulveis.E a passagem a esta expresso verbal (que permite, ao mesmo tempo, viver sob uma