OITO TEMAS PARA DEBATE Violência e segurança pública

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OITO TEMAS PARA DEBATE Violncia e segurana pblica Alba ZaluarResumo O texto aborda algumas das idias mais disseminadas hoje nos meios de comunicao de massa, assim como no acadmico, para entender a questo da violncia e propor polticas pblicas no Brasil. A reduo da explicao pobreza e desigualdade impedem um entendimento mais complexo da questo. As proposies sobre a existncia de uma cultura da violncia e do monoplio legtimo da violncia, ambas falsas, terminam por dificultar a compreenso dos diversos conflitos na arena social e poltica. As interconexes entre a economia legal e a ilegal nos trficos so tambm pouco acionadas nas teorias necessrias para polticas pblicas mais eficazes e democrticas. Palavras chave Violncias, pobreza, trficos, polticas pblicas.

O tema da violncia no Brasil assumiu grande importncia na discusso pblica e tomou um rumo muito marcado pela recente histria poltica do pas e pelo papel que nela tiveram os intelectuais que trabalhavam nas universidades e organiza- es no governamentais. Os ltimos 25 anos cobrem um perodo da histria do pas marcado por profundas mudanas polticas, sociais e econmicas, das quais os cientistas sociais participaram como pesquisadores e como cidados. O grande de- safio para eles, bem como para os militantes de movimentos polticos e os cidados do pas foi explicar como, justamente no perodo em que o pas recuperava as instituies da democracia, ocorreu grande aumento da criminalidade e das violncias, seja a institucional, seja a domstica, seja a difusa violncia urbana. Nas paradoxais tentativas de encontrar respostas para este enigma, muitas foram as proposies repetidas ad nauseam nos meios de comunicao de massa ou nos estudos mais es- pecializados.1 [1] A pobreza a causa da criminalidade. Esta afirmao, repetidamente utilizada na defesa dos pobres, mas que justifica a preferncia, carregada de suspeitas pr- vias, que policiais tm pelos pobres, baseia-se no pressuposto utilitarista de que, movido pela necessidade, o homem agiria para sobreviver. H uma reduo da complexa argumentao para o primado do homo economicus, comandado exclusi- vamente pela lgica mercantil do ganho e da necessidade material. Essa uma das dimenses a serem consideradas, mas de fato explica a ambio de enriquecer de todos, sem importar o nvel de sua renda e a sua origem social. Estudos recentes mostram que os pobres so as maiores vtimas de furtos, roubos e

assassinatos, es- tes ltimos nos locais onde o trfico de drogas domina e no h policiamento que proteja a populao. Esse argumento economicista no deixa enxergar a dimenso

SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n.o 38, 2002, pp. 19-24

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do poder, do simblico e da paixo destrutivos: o triunfo sobre o outro, o orgulho pela destruio do outro, o prazer de ser o senhor da vida e da morte, o gozo no ex- cesso de liberdade na festa dentro da comunidade dos comparsas, presentes tanto em assaltos mo armada quanto em grandes massacres. Wolfgang Sofsky (1998),2 socilogo alemo que estudou o terror e escreveu um tratado sobre a violncia, nar- ra com crueza o que vem a ser essa paixo. Escolhe, para ilustr-la, o personagem Gilles De Rais, nobre francs contemporneo de Joana DArc, que adquiriu o gosto de matar durante a Guerra dos Cem Anos e continua a faz-lo quando no h mais guerra. Caou, torturou e matou meninos com a ajuda de seus servos, conforme suas confisses. A reduo da criminalidade violenta pobreza tampouco permite analisar os seus efeitos inesperados. Essa criminalidade aumenta a pobreza e os so- frimentos dos pobres, na medida em que impede o acesso aos servios e institui- es do Estado, tais como escolas, postos de sade, quadras de esporte, vilas olm- picas etc., e ameaa os profissionais que atendem a populao pobre. Tambm ameaa os jovens pobres que, em funo da atividade que exercem em seus empregos, so obrigados a entrar em favelas inimigas e so mortos enquanto traba- lham para viver, caso sejam reconhecidos como moradores de favelas inimigas. [2] A desigualdade social a explicao da violncia. Baseada principalmente no di- ferencial de renda entre os mais ricos e os mais pobres, ou no diferencial de IDH (ndice de Desenvolvimento Humano), essa tese pressupe que a revolta moveria os homens a agir violentamente para diminuir as distncias e as invejas que a desi- gualdade provoca. Considera a dimenso do poder, mas no aprofunda a dimen- so subjetiva da desigualdade, nela includa a da violncia j mencionada. A desi- gualdade, por ser medida em ndices, tende a ser reduzida ao que quantificvel, principalmente renda monetria, escolaridade e expectativa de vida. Conti- nuam excludos dos ndices, no entanto, os

efeitos menos visveis da violncia ins- titucional e da violncia difusa no social, assim como o acesso justia. No caso da violncia policial, a dualidade observada por A. L. Paixo (1988) permanece: a pol- cia para os moleques, elementos e marginais (os pobres) e a polcia para os doutores e senhores (os ricos).3 No plano social, no entanto, h processos igualitrios que amenizam a violncia, por um lado, e aumentam a revolta, por outro. Na ndia, por exemplo, pas considerado pelos ndices internacionais muito menos desigual que o Brasil, vigora um sistema de castas que probe certas ocupaes superiores aos membros das castas mais baixas, atribuindo-lhes as consideradas mais vis. O casa- mento intercasta tambm proibido. Dois jovens enamorados que pertenciam a castas diferentes foram mortos por seus respectivos parentes no ano de 2001. H vrias dimenses da desigualdade que no foram incorporadas nos ndices: a civil (inclusive a existncia de leis anti-racistas), a poltica, a cultural, a institucional etc. Alm disso, os homens que se juntam nas hordas, bandos ou quadrilhas de trans- gressores ou marginais, muitas vezes ainda festejados como opositores ordem vi- gente, no agem violentamente para acabar com a violncia ou inverter a ordem so- cial, visto que a desigualdade existe em alto grau dentro das organizaes e redes da criminalidade transnacional contempornea, dominada pelo mercado selva- gem dos trficos. A desigualdade parte da microestrutura de poder no interiorOITO TEMAS PARA DEBATE 21

das quadrilhas e se manifesta no s na diviso do butim que cabe a cada um, mas tambm no diferencial de submisso aos instrumentos da violncia. Os que esto nos escales mais baixos sofrem muito mais o medo e o martrio de viver ameaa- dos pela morte cruel e implacvel nas mos dos inimigos. Vivem sob o imprio do interdito da traio e da ao independente do comando. A violncia cria um abis- mo absurdo entre o que detm o instrumento, que obriga a submisso, e a sua vti- ma, que no tem defesa nem recurso. Tem que obedecer. Essas formas extremas de violncia desmantelam culturas e possibilidades de associao culturas que te- riam sido inventadas para conter tais paixes ou impulsos humanos , sem que consigam faz-lo completamente. [3] A cultura da violncia existe e cresce. Segundo essa assertiva, uma cultura es- pecfica encapsularia a violncia em certas sociedades ou civilizaes. Mas a vio- lncia no se refere aos critrios de tal ou qual civilizao, nem s regras de uma so- ciedade dada, nem mesmo de um

tempo histrico determinado. Ela imanente ou presente, mesmo que limitada ou relativamente controlada, em todas as culturas, assim como a cultura da paz. Tem outros nomes na antropologia: reciprocidade negativa ou positiva e destruio de coisas e pessoas ou construo de laos sociais mesmo entre inimigos, numa viso que dicotmica mas que no exclui a tenso permanente entre esses dois plos nos confrontos competitivos e conflitivos do potlacht, do esporte moderno e de muitas trocas agnicas. Nessas trocas, as regras que impedem a completa destruio dos outros so acordadas e vigoram para que o jogo continue. Quando a violncia irrompe, muitas vezes, por uma conjuno de aes retroalimentadas por outras aes individuais ou coletivas, ela governada no apenas pelo clculo racional, mas pela paixo ou emoo descontrolada. A vio- lncia absoluta se exalta e se propaga indefinidamente no circuito das vinganas, mas tambm dos prazeres destrutivos que se tornam viciados e excessivos. Quan- do baseada no massacre ou no terror, ela inverte o mundo familiar, cria a incerteza, destri a previsibilidade das aes. Os olhares tornam-se vagos, no h mais terre- no seguro, perde-se o cho, o abrigo e a proteo, tal como vimos acontecer ao vivo e em cores no dia 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque, mas tambm no Iraque e no Afeganisto. Tais aes descontroladas no so mais combates entre duas qua- drilhas ou grupos em guerra, mas verdadeiros massacres de quem no est envol- vido e no tem meios de defesa, porque os massacres acontecem dentro de ambientes fechados (como nas torres do WTC). Esses excessos, no Brasil, so promovidos pelos grupos de extermnio, sejam eles compostos de policiais ou traficantes, den- tro de casas, bares, favelas, onde o fator surpresa impede que as vtimas fujam (s vezes para serem caadas) ou se defendam com armas de potncia similar. As con- seqncias sociais so catastrficas na medida em que no mais possvel prever o comportamento alheio, deixando portanto de funcionar os parmetros do perigo e da ordem, assim como os fundamentos da confiana, sem a qual no existe vnculo social positivo. Nessas situaes, o medo sem direo, isto , o pnico que preva- lece. Atinge, embora desigualmente, tanto os pobres e camadas mdias da favela quanto os pobres e camadas mdias do asfalto, os primeiros porque esto no centro da ao de guerra e so vtimas de crimes violentos, os segundos por estarem na22 Alba Zaluar

periferia da ao e por serem vtimas de crimes contra a propriedade. Uma

estrat- gia pblica muito bem pensada e muito eficaz precisa ser montada para interrom- per esse circuito. Dizer que o medo aqui fruto da manipulao da mdia , portan- to, uma afirmao ideolgica que tenta negar o que acontece: no apenas a violn- cia institucional, mas sobretudo a violncia que resulta das transaes selvagens e ilegais dos trficos no crime-negcio. [4] Contam-se os mortos e os danos para avaliar o crescimento da violncia. Alm dos mortos e feridos que podem ser contabilizados em delegacias e hospitais, h tam- bm que se levar em conta os sofrimentos psquicos e morais. Os primeiros so vis- veis e publicitveis. Os segundos so invisveis, e deles pouco se fala. As vtimas da violncia que sobrevivem no tm apenas as deficincias fsicas que decorrem das agresses sofridas. As marcas traumticas no seu psiquismo so to ou mais gra- ves, e muitas jamais cicatrizam. Parentes e amigos das vtimas que sobrevivem tm tambm o seu ordlio de sofrimentos. Um exemplo a prpria humilhao sofrida cotidianamente por jovens (homens e mulheres) que no podem dizer no aos che- fes muito bem armados das quadrilhas ou aos policiais que se comportam tambm como dspotas, nos locais onde suas aes no podem ser denunciadas por causa do terror j implantado entre seus moradores. Denunciar a polcia como institui- o, numa tentativa infantil de afirmar que no se precisa dela, negar sua impor- tncia crucial na garantia dos direitos civis ou humanos o direito vida e pro- priedade e abdicar de torn-la mais capaz de um controlo democrtico da criminalidade, que vitimiza principalmente os pobres. preciso, portanto, modificar a polcia e seus mtodos de enfrentamento dessa situao terminal com a mxima ur- gncia. Acabar com a guerra entre comandos, e de policiais versus bandidos, para preparar policiais e moradores nas novas relaes de cooperao que se fazem necessrias. [5] O monoplio legtimo do uso da violncia que gera o medo e a violncia dissemina- dos no social. Este monoplio, que nunca existiu no Brasil, agora, com o armamento do crime organizado, dos grupos de extermnio, dos justiceiros e das empresas de segurana privada, continua no existindo, ainda mais claramente do que algumas dcadas atrs. Mas o Estado brasileiro nunca foi suficientemente forte para impe- dir o uso da violncia privada pelos proprietrios de terra e por grupos particulares de segurana. Mais uma razo para no negar o medo e confundi-lo com ideologia manipulada pela mdia. O Estado brasileiro nunca cumpriu nem medianamente a principal funo de todo Estado: dar segurana a seus

cidados, um direito muito valorizado por todos sem importar a escolha sexual, a religio, a cor da pele, o gnero, o nvel de renda, a escolaridade etc. , mas particularmente importante para todas as categorias minoritrias que no possuem os meios para sua defesa, no caso do ataque de quem est mais bem armado. Esses grupos precisam da prote- o estatal contra seus predadores. [6] A posse e o porte de armas pelos habitantes da cidade (cidados), que as compram na iluso de que se protegem, esto na raiz do problema. De fato, a facilidade de obter armas,OITO TEMAS PARA DEBATE 23

tanto no comrcio legal como no contrabando, tem contribudo para o aumento dos homicdios e das leses srias nas vtimas de agresses. Mas os acidentes decorren- tes da imprudncia de manter uma arma em casa tm incidncia muito baixa. No se pode tampouco tomar o depsito da polcia, conhecida pela sua ineficcia e mi- nada pela corrupo, como o indicador do tipo de arma que prevalece entre os mo- radores da cidade. As mais poderosas, tecnologicamente superiores, mais caras e cobiadas no vo para o depsito. Trocam de mos no comrcio clandestino que flui entre policiais e bandidos, assim como no trfico ilegal que viaja clandestina- mente em navios e caminhes. O Porto do Rio de Janeiro, assim como de outras ci- dades, o centro dessa importao feita nas trevas dos pores e das noites. Por isso mesmo, a maior taxa de homicdio no Rio de Janeiro est na regio do Centro. Por isso, tambm, a guerra entre os comandos ocorre agora pelo domnio militar das fa- velas ao redor da Baa de Guanabara. As armas importadas, embora tecnologica- mente superiores (foram feitas para guerras entre Estados e desferem dezenas de tiros em segundos), so consideradas leves e podem ser carregadas por crianas. Essa revoluo tecnolgica nos armamentos tem sido amplamente utilizada, tanto nas guerras civis fratricidas quanto nos conflitos sangrentos entre quadrilhas e co- mandos do crime-negcio. Muito mais ateno deve ser dada, portanto, ao trfico ilegal e internacional de armas. [7] Traficantes que nasceram nas favelas so vtimas, mais do que responsveis, pelo tr- fico no Brasil. O mercado sem limites institucionais e morais importante no co- mrcio de drogas e armas. Esto imbricados com os fluxos de dinheiro para para- sos fiscais, como outras formas de comrcio ilegal e corrupo. Impossvel, portan- to, que para movimentar as

toneladas de drogas e os milhares de armas que aqui circulam, no haja redes interconectadas de negociantes que envolvem vrios personagens da economia legal e ilegal do pas. Se os trficos so males que aumen- tam a desigualdade, empobrecem ainda mais o povo e pioram o bem-estar social, ento preciso encontrar as formas de control-los e combat-los. No h como continuar a silenciar a respeito dos feitos de traficantes simplesmente porque so marginais e a origem humilde de alguns deles explica, justifica e faz perdoar seus atos. A luta por uma nova ordem mundial deve incorporar esses argumentos que esto por trs da tragdia do povo afego, mas tambm do paquistans e de vrios pases do sudeste asitico. Novas formas de investigao e interveno so indis- pensveis para que se possa falar de uma nova polcia. No com prdios novos, computadores ou viaturas apenas que isso ser alcanvel. [8] A segurana pblica no pode ser a preocupao central dos que atentam para a con- solidao da democracia no pas. Ao contrrio, este o ponto nevrlgico para conti- nuar o processo que se interrompeu por causa das indefinies e oscilaes das po- lticas pblicas no Brasil. Refazer os circuitos da reciprocidade positiva significa in- tegrar a populao nas prprias atividades da segurana pblica. Uma estratgia que no negue o conflito, e sim socialize os jovens na forma mais civilizada de lidar com ele, o que inclui os jovens que aderem s foras policiais. preciso mais ateno pedagogia e formao oferecida nas escolas e quartis no que diz respeito 24 Alba Zaluar

socializao para uma sociedade em que a civilidade, a confiana mtua e a previ- sibilidade do as condies bsicas para novos arranjos e prticas sociais. A parti- cipao importante na medida em que no h segurana sem que as pessoas compreendam os perigos e riscos que correm e faam, elas mesmas, o que podem para control-los ou evit-los. A participao igualmente importante, pois o que permite passar da normatividade burocrtica e autoritria para uma norma- tizao melhor aceita pelos que devem internalizar e praticar suas regras. Bairris- mos s atrapalham. Preparar cidados e policiais para a cooperao que se faz mais que imprescindvel condio sine qua non. O modelo da polcia comunit- ria no funciona onde os traficantes controlam militarmente o territrio e impem medo aos moradores. O alcance do trabalho policial pequeno e ainda se expe a acusaes de conluio com os criminosos. Antes, faz-se preciso tirar as pessoas de seus refgios privados, onde se aprisionam

naquilo que N. Elias cha- mou homo clausus e H. Arendt, a solido organizada, base do totalitarismo moder- no. Esse o grande desafio e o grande passo a ser dado no Brasil, em todos os seus estados, em todos os seus pequenos, mdios e grandes municpios. Notas. 1 Este texto foi preparado, numa verso original, para a apresentao do congresso da Associao de Ps-Graduao em Cincias Sociais (ANPOCS), no final de outu- bro de 2001. Nele procurei resumir os argumentos apresentados na discusso de al- gumas das afirmaes mais frequentemente repetidas. . 2 Sofsky, Wolfang (1998), Trait de la Violence, Col. NRF Essais, Paris, Gallimard. . 3 Paixo, Antnio Lus (1988), Crime, controlo social e consolidao da cidadania, em F. W. Reis, e G. ODonnell, A Democracia no Brasil: Dilemas e Perspectivas, Vrtice, So Paulo. Alba Zaluar professora titular de Antropologia no Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, coordenadora do NUPEVI (Ncleo de Estudos das Violncias) e assessora do Prefeito do Rio de Janeiro para Segurana Participativa. E-mail: [email protected]