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Rev. Pat. Trop. (2): 3, 345-361, 1973 CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO CALAZAR EM MATO GROSSO * GIOVANNI BARUFFA** PAULO CURY *** RESUMO Os Autores comunicam oito casos de Calazar observados no Hospital Santa Maria Bertilla, em Guiratinga, Mato Grosso, entre janeiro de 1971 e abril de 1972, A idade dos pacien- tes variava entre 18 meses e 25 anos, sendo que 4 tinham acima de 18 anos. As características clínicas e la- boratoriais obedeciam aos padrões conhecidos com exceção de um pa- ciente que apresentou icterícia. Todos foram tratados com Glucan- time, com ótimos resultados conse- guindo-sc a cura clínica e parasitoló- gíca em todos os pacientes. Na opinião dos AÃ. o Leste de Mato Grosso constitui uma área de endemia calazarígena, com incidência infanto-juvenil e mantida por reser- vatórios selvagens haja visto o cara- ter silvestre e esporádico da distribui- ção dos casos. INTRODUÇÃO Os casos publicados de CA- LAZAR em Mato Grosso so- mam-se a 4: um caso de MIGO- NEtl7) , em 1913, diagnosticado em Assumpción, porém natural de Porto Esperança; um caso de OLIVEIRA <18>, em 1938; um caso de ARRUDA e cols.(3), em 1939, e um caso de VILELA e LUCIANO<22>, em 1966. O presente trabalho tem por finalidade acrescentar 8 casos de Calazar por nós observados no período de fevereiro de 1971 até abril de 1972, no Hospital San- ta Maria Bertila, de Guiratinga. Área geográfica de procedência: A área de procedência dos 8 casos compreende os municípios de Guiratinga, Rondonópolis, Te- souro e Jaciara (Fig. 1) O município de Guiratinga, com uma superfície de 5.813 Km2 e uma população de 15.255 habitantes <I9), um terço dos quais vive na sede, encontra-se no les- te de Mato Grosso, região do Al- to Araguaia, a uns 350 Km de Cuiabá, entre os paralelos 16 e 17 sul e os meridianos 53 e 54 W.Gr. O território do Municí- pio constitui a divisa de duas grandes bacias fluviais: a do To- * Trabalho realizado pela Cadeira de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Fac. Mcd. da Univ. Católica Pelotas-RCS. ** Prof. Tit. da Cadeira de Doenças Infecciosas c Parasitarias. *** Dlrcior Médico do Hi>sr>. Sm. MiiriH Bertila Ouiriit(niia-MT.

OLIVEIRA - matogrossobrasil.com.br · Baixa em 05/04/71 com his-tória de febre, emagrecimento, tosse, diarreia, epistaxes esporá-dicas, aumento do volume abdo-minal, iniciados 3

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Rev. Pat. Trop. — (2): 3, 345-361, 1973

CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO CALAZAR EMMATO GROSSO *

GIOVANNI BARUFFA** PAULO CURY ***

RESUMO

Os Autores comunicam oito casosde Calazar observados no HospitalSanta Maria Bertilla, em Guiratinga,Mato Grosso, entre janeiro de 1971e abril de 1972, A idade dos pacien-tes variava entre 18 meses e 25 anos,sendo que 4 tinham acima de 18anos. As características clínicas e la-boratoriais obedeciam aos padrõesconhecidos com exceção de um pa-ciente que apresentou icterícia.

Todos foram tratados com Glucan-time, com ótimos resultados conse-guindo-sc a cura clínica e parasitoló-gíca em todos os pacientes.

Na opinião dos AÃ. o Leste deMato Grosso constitui uma área deendemia calazarígena, com incidênciainfanto-juvenil e mantida por reser-vatórios selvagens haja visto o cara-ter silvestre e esporádico da distribui-ção dos casos.

INTRODUÇÃO

Os casos publicados de CA-LAZAR em Mato Grosso so-mam-se a 4: um caso de MIGO-NEtl7), em 1913, diagnosticadoem Assumpción, porém natural

de Porto Esperança; um caso deOLIVEIRA <18>, em 1938; umcaso de ARRUDA e cols.(3), em1939, e um caso de VILELA eLUCIANO<22>, em 1966.

O presente trabalho tem porfinalidade acrescentar 8 casos deCalazar por nós observados noperíodo de fevereiro de 1971 atéabril de 1972, no Hospital San-ta Maria Bertila, de Guiratinga.

Área geográfica de procedência:

A área de procedência dos 8casos compreende os municípiosde Guiratinga, Rondonópolis, Te-souro e Jaciara (Fig. 1)

O município de Guiratinga,com uma superfície de 5.813Km2 e uma população de 15.255habitantes <I9), um terço dos quaisvive na sede, encontra-se no les-te de Mato Grosso, região do Al-to Araguaia, a uns 350 Km deCuiabá, entre os paralelos 16 e17 sul e os meridianos 53 e 54W.Gr . O território do Municí-pio constitui a divisa de duasgrandes bacias fluviais: a do To-

* Trabalho realizado pela Cadeira de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Fac. Mcd.da Univ. Católica — Pelotas-RCS.

** Prof. Tit. da Cadeira de Doenças Infecciosas c Parasitarias.*** Dlrcior Médico do Hi>sr>. Sm. Miir iH Bert i la — Ouiriit(niia-MT.

346 Rev. Pit. Trop. — (2): 3 — Julho/Setembro, 1973

AMAZONAS

Glovtnnl Baruffi & col. — Contribuição ao Estudo do Caluuv.. Í47

RONDÕNIA

PROCEDÊNCIA

Guiratinga 3 Casos

Rondonopolis 3 Casos

Jaciora I Caso

Tesouro l Caso

Culobfl T«ourojociara

' GuiratingaRondonopolis

MINASGERAIS

SÃOPAULO

PARANÁ

ESTADO OE MATO GROSSO

cantins através do rio das Gar-ças, afluente do Araguaia e a doParaguai, por intermédio dos riosPrata e Areia, afluentes do RioVermelho que, através do S.Lourenço e Cuiabá, desaguam noRio Paraguai. No município ori-ginam-se vários riachos e córre-gos tributários de um ou de ou-tro sistema fluvial. A Oeste deGuiratinga e a uma distância deuns 120 Km, encontra-se a cida-de de Rondonopolis, sede de umvasto município, com uma su-perfície de 8.783 Km2 e uma po-pulação de 62.551 habitantes,mais de~urn terço vivendo na se-de <19). Rondonopolis, importan-te centro rodoviário, encontra-senuma região de grandes potencía-lidades agrícolas e pastoris. Oterritório é banhado por váriosrios e córregos, o -principal dosquais, o Rio Vermelho, pertenceà bacia do Rio Paraguai, atravésdo S. Lourenço e Cuiabá. í

A cidade de Tesouro, sede domunicípio homónimo, encontra-se a 60 Km ao norte de Guiratin-ga. A superfície do município éde 2.534 Km2, e a população de5.836 habitantes, sendo que pou-co acima de um terço dos mes-mos vivem na sede(19). O Muni-cípio é atravessado pelo Rio dasGarças, tributário, através doAraguaia, do Rio Tocantins.

Jaciara encontra-se a uns 80Km a noroeste de Rondonópolis.A superfície do município é de3.937 Km2, com uma populaçãode 32.057 habitantes, sendo que,aproximadamente 30.000 vivemna sede. O município é atraves-sado pelo Rio S. Lourenço, per-tencente, portanto, à bacia doParaguai.

Os quatro munícípioi, contí-guos um ao outro, formam umaferradura aberta para o norte, Biconcavidade da qual entra o mu-nicípio de Poxoréo. A regilotem uma altitude .variável entro200 e 600 m, sendo a altitudemédia maior no município deGuiratinga. Os pontos mala ele-vados são representados pela Ser-ra da Saudade ou de S. JerÔni-mo, entre Guiratinga e Rondonó*polis, que constitui a divisa dóidois sistemas hidrográficos jámencionados. A referida serracom outras menores (Serra doPrata, Serra das Araras, etc.) faxparte do Planalto Central de Ma-to Grosso e, não raro, constituem-se em enormes rochedos de pa-redes verticais, de um vermelhoocre. a base coberta de densamata, isolados ou agrupados, ouem chapadões interrompidos porcortes abruptos e profundos ca-nyons cobertos por densa vege-tação .

A região possui duas esíaç&eibem definidas: o verão, de outu-bro a março, caracterizado porabundantes precipitações, e o in-verno, de abril a setembro, prati-camente sem chuvas. As preci-pitações anuais variam entrel . 100 a l .500 mm. A tempera-tura média anual oscila em tor-no de 24°C<2>. ..

Os vales fluviais e os pés daserra são cobertos de densas flo-restas, atualmente, em parte, der-rubadas para lavoura. A florestacaracteriza-se por clima tropicalúmido c solo extremamente fértUe aproveitado para agricultura in-tensiva (arroz, milho, cana-de-açúcar, feijão, etc.). Os chapa-dões e as zonas planas, particular-mente na parte leste da região,

348 Rev. Pat. Trop. — (2): 3 — Julho/Setembro, 1973

têm como vegetação predominan-te o "cerrado" de densidade va-riável de acordo com o tipo desolo, geralmente arenoso e aabundância das precipitações. O"cerrado" é constituído de espar-sas gramíneas, árvores de peque-no porte, palmeiras anãs, etc. Aolongo dos cursos de água o cer-rado é substituído pela "galleryforest" com solos de elevada fer-tilidade .

Os municípios considerados vi-vem essencialmente de agricultu-ra, praticada sobretudo nos fér-rteis solos da mata derrubada, ede pecuária, mais desenvolvidanos "cerrados" (zebu, etc.). Ain-da existem, sobretudo nos muni-cípios de Guiratinga e Tesouro,pequenas empresas de garimpoque operam ao longo dos rios ecórregos. É uma atividade emextinção devido ao progressivoesgotamento das jazidas e depó-sitos .

A população é muito hetero-génea, predominando mineiros,baianos e nordestinos, além depequenos núcleos de gaúchos epoucos remanescentes de índiosBororós. Grande parte da popu-lação, particularmente os assala-riados agrícolas, vivem em con-dições higiênico-sanitárias muitoprecárias e têm alta percentagemde analfabetismo.

Casos clínicr. :

Da abertura do Hospital SantaMaria Bertila, em 16 de marçode 1970, até maio de 1972, fo-ram internados no mesmo, cercade 2.750 pacientes (a capacida-de do hospital é de aproximada-mente 100 leitos), sendo que 8eram portadores de CALAZAR.

(3%). Os 8 pacientes com Cala-zar baixaram no período de de-zembro de 1970 até abril de1972. Cinco dos oito pacientessão naturais da região e nuncasairam dela. Três nasceram em.outros Estados, porém residiamna região por um tempo não in-ferior a dois anos (Tabela 1).

Caso "l":

N. A. L., masculino, branco,com 3 anos de idade, natural deMontalvene (M.G.), reside hámais de 2 anos no distrito de Va-lerico, município de Guiratinga.Mora em casa de "pau a pique",próximo ao rio Areia, em zonaainda parcialmente coberta demata virgem. Baixa no hospitalem 02-12-70 por apresentar, des-de outubro: febre diária, tosse,diarreia, emagrecimento, aumen-to do volume abdominal e vómi-tos, e epistaxes esporádicas. Ape-sar da febre, conserva discretoapetite.

Examinado por nós, em02-02-71, apresentava: peso: 10kg.; altura 95 cm; temp. axilar38,5°.C, pele e mucosas intensa-mente pálidas; hipotonia e hipo-trofia muscular acentuadas; se-creção nasal abundante; discretaalopécia fronto-parietal; cabelossem brilho, quebradiços; cíliosalongados. Abdómen volumosocom circulação colateral visívelna parte superior; fígado percutí-vel desde o quarto interposto até4 cm além do rebordo costal, comsuperfície lisa e doloroso; baçomuito aumentado, alcançando,com sua margem medial, a linhaxifo-umbilical e ultrapassandocom o polo inferior a linha um-bilical transversa, tem superfície

•-. • T A B E L A l :

CALAZAR NO LESTE DE MATO GROSSO

NJ°

1

2

3

4

5

6

7

8

•Nome

N. A. L

H. P. O.

J. B. S.

Sexo

M.

M.•

M.

Í. A. J. j .-'•

E. D. A. M.

S. S. . M.

M. R. S.

J. R. M.

Idade

3 anos

7 anos.

Cor Naturalidade

Br.

Br.

22 anos ' Br.

18 mês. Pd.

18 anos Br.

22 anos Pd.

2 anos Br.

25 anos Br.

Mcntalvene (M. G.)

Tesouro

Ubatã (Bahia)

Rondonópolis

Arr. Bandeira (Guiratingo)

Maranhão

Jussimeira (J aclara)

Rondonópolis

Procedência

Valerico (GuiraHnga)

Tesouro

Valerico {Guiratinga)

Rondonópolis

Arr. Bandeira (Guiratinga)

Rondonópolis

Jussimeira (Jaciara)

Rondonópoíis

Datta debaixa

02.12.70

05.04.71

20.05.71

29.07.71

03.1 1 .71

10.01.72

12.0T.72

05.04.72

Meses dedoença

3

3

3

11

6

2

2

2

350 Rcv. Pat. Trop. — (2): 3 — Julho/Setembro, 1973

lisa, consistência firme e doloro-so à palpação. Apresentava ain-da micropoliadenopatia. A cur-va térmica mostrou um caráterirregular com tendência à forma"contínuo-remitente".

Antes da baixa e depois" dámesma o paciente tinha sido sub-metido a ciclos de terapia anti-malárica e antibiótica sem ne-nhum resultado. Suspeitando tra-tar-se de Calazar, realizamospunção da medula esternal, em02-02-71, encontrando numero-sas leishmanias intra e extracelu-lares. Os demais exames labo-ratoriais deram os seguintes re-sultados:

Hemograma: Hgb: 9 g%; He-mácias: 3.100.000; Hematôcri-to: 20%; Hemossedimentação:37 mm na 1a. hora;

Leucócitos: 4.200 sendo: 18bastonetes; 6 segmentados; 63linfócitos; 11 monócitos; 2 me-tamielócitos.

Vidal: negativo; PPD: nega-tivo; Formol geleificação: posi-tivo.

Urina: traços de albumina;Fezes: cistos de G. lamblia;

ovos de Necator (—]-); ovos deAscaris: (-|—) e ovos de Ente-robius (-- -).

Eletroforese das proteínas plas-mátícas:

37,0% — 2,59 gr.6,8% — 0,47 gr.9,8% — 0,68 gr.9,2% — 0,65 gr.

37,2% — 2,61 gr.

Albumina:Alfa "l":Alfa "2":Beta:Gama:

100,0 — 7,00 gr.Foi submetido a tratamento

com GLUCANTIME em razãode 2 ml da sol. a 30%, ao dia(60 mg/kg de peso ao dia), du-rante 15 dias. Nos primeiros

dias apareceram sinais de intole-rância, com adinamia profunda,vómitos, inapetência,, diarreia es-verdeada, acentuação da tosse.A partir do quinto dia, os fenó-menos diminuíram de intensida-de e desapareceu definitivamentea febre, A melhora das condi-ções gerais e o aumento do ape-tite foram se processando comgrande rapidez. Após um inter-valo de 15 dias, repetiu-se o ci-clo com a mesma dose de medj-cação e mesma duração. Umapunção medular executada entreo primeiro e o segundo ciclo deuresultados negativos para leish-manias. Como terapias comple-mentares e sintomáticas empre-garam-se; uma transfusão de300 ml de sangue total, antihel-mínticos, além de vitamínicos.

Caso "2":

H. P. O., masculino, branco,com 7 anos, natural e residenteno município de Tesouro. Moraem casa de "pau a pique", emzona de floresta, -na beira do rioBandeira.

Baixa em 05/04/71 com his-tória de febre, emagrecimento,tosse, diarreia, epistaxes esporá-dicas, aumento do volume abdo-minal, iniciados 3 meses antes.

Ex. físico: peso 14,5 kg.; altu-ra 114 cm; temp. 39,5°C; apá-tico . Cútis e mucosas pálidas, hi-potonia e hipotrofia muscular,cabelos sem brilho com "entra-das" nas regiões fronto-parietais;abdómen volumoso; o fígado a3 cm abaixo do rebordo costal,de superfície lisa e indolor à pal-pação; o baço grandemente au-mentado com o polo inferior al-cançando a linha branca; os mem-bros inferiores edemaciados (-1-).

Giovanni Baruffa & col. — Contribuição ao Estudo do Calazar... 351

Executa-se punção da medulaesternal que é positiva para leish-manias intra e extracelulares.

Foi tratado com GLUCANTI-ME na razão de 2 ml da soluçãoa 30%, ao dia, durante 15 dias.A febre cai no quinto dia e ascondições gerais melhoram rapi-damente. Vinte dias após a con-clusão do ciclo, repete um segun-do ciclo de Glucantime com amesma dosagem diária. Revisa-do 3 meses após a conclusão dosegundo ciclo, encontra-se emótimas condições.

Caso "3":

J. B. S., masculino, pardo, com22 anos, natural de Ubatá(Bahia), residente desde os 16anos no município de Jaciara(MT), empregado há um anonuma fazenda agrícola de Vale-rico (Guiratinga).

Baixa em 20/05/71, queixan-do-se de febre que surgiu trêsmeses antes, emagrecimento, adi-namia, tosse e catarro, aumentode volume abdominal, dor nos hi-pocôndrios, diarreia, edema dosmembros inferiores e epistaxesesporádicas.

Ex. físico: Peso 50,4 kg., al-tura 1,63 m; temp. 38,6°C; mu-cosas intensamente pálidas, hipo-tonia e hipotrofia musculares, pe-le áspera, micropoliadenopatia,alopécia fronto-parietal, cíliosalongados; abdómen volumoso;fígado 4 cm além do rebordo cos-tal, de consistência firme, indo-lor; baço com seu polo inferioralcançando a linha transversaumbilical, de superfície lisa, con-sistência parenquimatosa, indo-lor; edema das regiões maleolares(- -). O paciente apresenta ainda

sialorréia e coriza discretamenteabundantes. A punção esternalmostra grande número de leish-manias intra e extracelulares.Formol geleificação ( ).

Em 25/06/71 inicia o trata-mento com Glucantime (l am-pola diária = 1,5 gr.) durante 15dias. No quarto dia .a tempera-tura normaliza e as condições ge-rais iniciam rápida melhora. Em28/07/71, após uma suspensãode 18 dias, inicia-se um segundociclo de Glucantime, com as mes-mas doses e duração. Deixa ohospital em 12/08/72, tendo re-cuperado 4 kg. Revisado 3 me-ses após, continuava em perfeitascondições, tendo reiniciado nor-malmente suas atividades.

Caso "4":

S. A. J., feminina, branca,com 18 meses, natural e proce-dente de S. José do Povo, mu-nicípio de Rondonópolis, próxi-mo ao de Guiratinga. Os paisreferem que a paciente adoeceuseis meses antes, com febre quo-tidiana, tosse seca, emagrecimen-to, aumento do volume abdomi-nal, diarreia. Vista por outrosmédicos, foi submetida a ciclosrepetidos de antimaláricos e an-tibióticos sem nenhum resultado.

Baixa em 27/09/71, peso 8,2kg, altura 78 cm; temp. 37,8; pa-nículo adiposo e turgor diminuí-dos, musculatura hipotrófica, mu-cosas e cútis pálidas, secreção na-sal abundante, cílios alongados ecabelos quebradiços; abdómen vo-lumoso com circulação colateralvisível na parede abdominal, par-ticularmente no epigástrio, comfluxo ascendente. Fígado grande-mente aumentado, chegando a

352 Rev. pat. Trop. — (2): 3 — Julho/Setembro, 1973

atingir a linha umbilical transver-sa, superfície lisa e consistênciafirme, indolor; o baço chega, como polo inferior, a dois centíme-tros da sínfise pubiana, liso e in-dolor. A punção da medula es-ternaí mostra gfande número deleishmanias livres e intracelula-res . Formol-gelificação positiva

-). Tratada com Glucan-time, l ml diário durante 18 dias.Ao fim da primeira semana atemperatura normaliza e as con-dições gerais iniciam rápida me-lhora. Após um intervalo de 15dias, faz novo ciclo de Glucanti-me, com 2 ml diários, durante 8dias. Revisada em janeiro de1972 a paciente encontra-se emótimas condições gerais: peso10,8 kg e altura de 81 cm; o fí-gado ainda ultrapassa o rebordocostal, de 2 cm; e o baço é pal-pável a dois dedos do rebordocostal. Os pais referem que apaciente vem gozando ótima saú-de desde a alta hospitalar.

Caso "5":

E.D.A., masculino, branco,18 anos, natural e residente nomunicípio de Guiratinga, moraem casa de "pau a pique" em zo-na de floresta, na proximidadedo rio Bandeira e dedica-se à la-voura . "!

Baixa em 03/11/71, comqueixas de febre, tosse, emagre-cimento, adinamia, aumento dovolume abdominal, diarreia, ini-ciados há seis meses.

Ex. físico: Más condições ge-rais, cútis e mucosas pálidas ab-dómen aumentado de volume, fí-gado ultrapassando 4 cm o re-bordo costal; baço a l cm da sín-fise pubiana, ambos de consistên-

cia firme, lisos e indolores. Peleseca e áspera, cabelos quebradi-ços e sem brilho, com discretaalopécia nas regiões temporo-pa-rietais, edema (- -) nas regiõesmaleolares. Punção esternal po-sitiva para leishmanias.

Tendo recusado a baixa, foitratado ambulatorialmente, coml amp. diária durante 10 dias.A temperatura caiu definitiva-mente ao sexto dia. Revisadodois meses após, permanecia emboas condições gerais, persistin-do ainda moderada hepato-esple-nomegalia.

Caso "6":

S. S., masculino, pardo, 22anos, natural do Maranhão, resi-dente há mais de dois anos nomunicípio de Rondonópolis em-pregado agrícola numa lavourade arroz em zona de mata der-rubada próximo ao município deGuiratinga.

Baixa em 10/01/72, referin-do o início da doença atual aofim de novembro de 1971. Des-de então apresenta febre quoti-diana, cefaléia, sudorese profusa,adinamia intensa, tosse, diarreiae esporadicamente vómitos. Pro-curou repetidas vezes recursosmédicos, tendo recebido ciclos detratamento antimalárico e anti-biótico. Um mês antes, frente aoagravamento do quadro clínico,internou-se durante vários diasnum hospital em Rondonópolis.Aos sintomas referidos acima, ti-nham se associado emagrecimen-to, aumento do volume abdomi-nal, oligúria com urina escura,fezes claras, icterícia e frequen-tes epistaxes. No dia 03 de ja-neiro de 1972 pediu alta. No

Gíovanni Baruffa & col. — Contribuição ao Estudo do C a l a z a r . . . 353

mesmo dia recebeu uma injeçãono deltóide esquerdo. Permane-ceu até o dia 10 de janeiro emcasas de amigos, que o trouxe-ram ao Hospital Sta. Maria Ber-tila de Guiratinga.

Ao Ex. físico: peso 54 kg (an-tes de adoecer teria pesado 74kg), altura 1,74 m, temp. 38,6°C;mau estado geral, escleras fran-camente icterícias, urina colúri-ca, musculatura hipotrofica, mar-cha penosa, sialorréia contínuaque obriga o paciente a se limpara boca continuamente com o len-ço; cabelos quebradiços e discre-ta alopécia fronto-parietal, cíliosalongados, pele áspera e seca;abdómen volumoso; fígado pal-pável, liso, dolorosu e a 3 cm.do rebordo ccstal; baço a 4 cmdo rebordo costal, de consistên-cia firme, um pouco doloroso àpalpação; micropoliadenopatia ge-neralizada: no deltóide esquerdoestão presentes os sinais clássicosde processo inflamatório profun-Ção. Frequência cardíaca 88do; não se percebe ainda flutua-BPM, rítmica, PA 120/80 mmHg.

A punição medular executadano mesmo dia não mostrou leish-manias. Eritrossedimenatção na1a. hora: 79; hematócrito 15%;Hgb 5 g%; Hemácias 1,6 mi-Ihões/mm3, hipocromia com ani-so e poiquilocitose. Leucócitos15.000, segmentados 35, basto-netes 20, linfócitos 40, monóci-tos 5. Urina escura, dens. 1009,ácida, albumina ( /- -), 5 leucócitos por campo,30-40 eritrócitos por campo, ci-lindros granulosos, hemãticos eOpiteliais, discreta bacteriúria epresença de pigmentos biliares.

O quadro hepato-renal e aleucocitose fez com que se sus-peitasse de Leptospirose ictero-hemorrágica e, portanto, subme-temos o paciente a 20 milhõesdiários de Penicilina G cristalinavenosa e 2 g diários de Ampicili-na por via oral.

Cinco dias após a baixa proce-demos a drenagem do abcesso nodeltóide esquerdo. Um leucogra-ma realizado no dia 16, deu osseguintes valores: Leucócitos:4.400, segmentados 57, basto-netes: 5, linfócitos 32, monócitos6. Um proteinograma eletrofo-rético realizado na mesma datamostrou:Albumina: 20,4% — 1,55 g.Alfa "l": 6,0% — 0,45 g.Alfa: "2" 6,5% — 0,49 g.Beta: 14,1% — 1,07 g.Gama: 53,0% — 4,04 g.

100,0% — 7,60 g.E Formol-gelificação deu re-

sultado fortemente positivo.A permanência invariável das

condições gerais e da febre ape-sar da terapêutica instaurada eda drenagem do abcesso, nosorientou novamente para a hipó-tese de Calazar. Repetimos apunção da medula esternal e, des-ta vez, após percorrer algunscampos microscópicos, encontra-mos várias leishmanias extrace-lulares.

Iniciamos, de imediato, a tera-pia com Glucantime, l ampolapor dia, durante 12 dias. Aoquarto dia a temperatura norma-lizou, ao sexto dia o paciente ini-ciou a deambulação. A icteríciadesapareceu em uma semana e oapetite e as condições gerais me-lhoraram com impressionante ra-pidez .

354 Rev. Pat. Trop. — (2): 3 — Julho/Setembro, 1973

Após intervalo de 15 dias re-petimos outro ciclo de dez ampo-las de Glucantime; o pacientedeixa o hospital em março, pe-sando 71 kg.

Caso "7":

M.R.S., feminina, branca, de2 anos, natural e residente emJucimeira (município de Jacia-ra-MT). A família mora numafazenda agrícola da cultivo dearroz e cana, em zona de flores-ta em grande parte derrubada.Baixa em 12/01/72, com histó-ria de febre quotidiana iniciadadois meses antes, emagrecimento,tosse, catarro nasal, diarreia, au-mento de volume abdominal, pa-lidez cutânea.

Ex. físico: na baixa: peso 8,200kg.; altura 80 cm; temperatura37,8°C? pele áspera e pálida, tur-gor diminuído, mucosas pálidas,musculatura hipotrófica, discretaalopécia fronto-parietal, cíliosalongados, catarro nasal, sialor-réia; frequência cardíaca de 160bpm. Abdómen distendido comveias superficiais visíveis na re-gião epigástrica e corrente de bai-xo para cima. Fígado liso, apa-rentemente indolor, alcançando alinha transversal umbilical; Baçonitidamente aumentado, liso, deconsistência firme, alcançando alinha transversal umbilical; mi-cropoliadenopatia generalizada,não dolorosa; a pacietne apresen-ta-se psiquicamente apática.

Exames laboratoriais: Hemá-cias 1.800.000/mm3. Hb 4,8g%hematócrito 16, L e u c ó c i t o s4.200/mm3; segmentados 16,bastonetes 34, linfócitos 44, mo-nócitos 4, metamielócitos 2. Eri-trossedimentação na 1a hora 41.

Formol-gel negaítvo. Punção damedula esternal: numerosas leish-manias intra e extracelulares.Urina: traços de albumina, l—3cilindros hialinos/campo.

Proíeinograma:Albumina: 30,7% — 1,75 g.Alfa "l": 8,0 — 0,45 g.Alfa "2": 14,0% — 0,80 g.Beta: 12,0% — 0,68 g.Gama: 35,3% — 2,02 g.

100,0 — 5,70 g.Em 17/01/72 inicia tratamen-

to com 2 ml. diários de Glucan-time durante 10 dias. Ao fim doquinto dia a temperatura norma-lizou e as condições gerais me-lhoraram rapidamente. Após 15dias de intervalo empreende-seum segundo ciclo de 10 dias deGlucantime. Deixa o hospital 2meses após a baixa em boas con-dições gerais com peso de 10 kg,fígado a um cm do rebordo cos-tal e baço palpável e a 2 cm dorebordo costal. Vista 3 mesesmais tarde, permanece em perfei-tas condições de saúde.

Caso "8":

J,R., 25 anos, branco, natu-ral e procedente da zona rural deRondonópolis. Baixa no dia05/04/72, relatando febre quo-tidiana, iniciada há 75 dias, ema-grecimento, adinamia, diarreia,e aumento de volume abdominal.Já tinha procurado em várias oca-siões médicos, tendo recebido tra-tamento com vários antibióticose antimaláricos em ciclos repeti-dos.

Ex. Físico: peso 48 kg, altura1,67 m, temp 38°C, hipotonia ehipertrofia musculares, pele secae áspera, alopécia fronto-parietal

Glovanni Baruffu & col. — Contribuição ao Estudo do Calazar... 355

discreta, mucosas descoradas, ab-dómen distendido, fígado palpá-vel, liso de consistência firme,um pouco sensível, a 4cm do re-bordo costal; baço grandementeaumentado de volume, com o po-lo inferior ultrapassando a linhaumbilical transversa e a margemmedial alcançando o umbigo, desuperfície lisa e consistência fir-me, pouco doloroso.

Hemácias 2.700.000/mm3,Hb 8 g%; leucócitos 5.000, seg-mentados 52, bastonetes 4, lin-fócitos 36, monóciíos 8, oesinó-filos 0.

A punção esternal revela nu-merosas leíshmanias intra e ex-tracelulares . Formol-gel positi-vo • j - . Urina com traços dealbumina. Tratado com uma am-pola diária de Glucantime durante15 dias, a temperatura com sur-pieendente rapidez. Repetiu-seum segundo ciclo de 15 dias deduração com as mesmas doses deGlucantime após intervalo de 15dias. Recebeu alta em ótimascondições gerais com peso de 57kg., tendo o fígado e o baço re-duzido grandemente seu volume:o fígado a l cm do rebordo cos-tal e o baço a 4 cm.

CONSIDERAÇÕES

Estamos convencidos de quenos 8 pacientes a doença seja au-tóctone da região leste do MatoGrosso. De fato, se é verdadeque só 5 pacientes são naturaisda região e nunca sairam dela, osoutros 3, apesar de naturais deoutros Estados onde existem fo-cos endémicos de Calazar, resi-diam na região há mais de 2anos, tempo suficiente para atri-buir à doença uma transmissão

"in loco". O Calazar tem umtempo de incubação variável, àsvezes superior a 6 meses, porémé muito improvável que excedade um ano. O tempo de doençados nossos pacientes, do inícioda sintomatologia até a entradano Hospital variou de 2 a 11 me-ses e, mesmo somando a este tem-po uma incubação de 6 meses, oprazo de residência na região dos3 não naturais da mesma é su-ficientemente grande para per-mitir-nos de atribuir a doença auma condição endémica regional.

Estudando a procedência dos8 casos chegamos à conclusãoque na região leste do Mato Gros-so o Calazar incide nas zonas ru-rais, antes florestas e atualmentelavouras, e acomete crianças eadultos jovens. A idade mínimados pacientes foi de 18 meses ea máxima de 25 anos, sendo que4 tinham mais de 18 anos e osoutros 4, menos de 7 anos (Tab.1). Um comportamento seme-lhante quanto à idade observou-se nos casos referidos por BAR-BOSA <4>, nas áreas calazaríge-nas do contíguo Estado de Goiáse parece diferente do observadono Ceará(I), na China e nas cos-tas mediterrâneas, pela aparenteausência de predileção pela ida-de infantil, aproximando-se, en-tão, do Calazar Sudanes (».«.">do Kenya(14) e da Somália < 6 > .

O reduzido número de casosnão permite inferências de ordemestatística, todavia chama a aten-ção o fato de 6 em 8 pacientesserem do sexo masculino. Foi re-petidas vezes assinalada umamaior incidência de Calazar nosexo masculino tanto em regiõesendémicas da África como da ín-dia (5,6, I2,20)f

356 Rev. Pat. Trop. — (2): 3 — Julho/Setembro, 1973

Resumimos em parte na Tab.II as características clínicas maissalientes. As mesmas obedecemaos padrões conhecidos. A fe-bre, presente em todos os casosse apresentou com caráter contí-nuo ou contínuo-remitente, acom-panhada de abundante sudorese,sem mostrar necessariamente adupla elevação diária que pude-mos documentar durante algunsdias só nos pacientes N,A.L. eJ.B.S. Apesar da febre e doemagrecimento e hipotrofia mus-cular, os pacientes não mostra-vam sentir-se particularmente male todos deambulavam esponta-neamente. Em todos constatou-se expansão abdominal devida àhepato esplenomegalia: o baçoalcançava ou superava a linhatransversa umbilical em 7 pa-cientes, e ultrapassava o rebordocostal de 4cm em l paciente; asuperfície era lisa, a consistênciafirme com escassa ou nula mani-festação de dor. O fígado alcan-çava a Unha transversa umbilicalem 2 pacientes e ultrapassava orebordo costal de 3 cm em dois,e de 4 cm em 4, tendo superfícielisa, consistência duro-elástica epouco sensível à palpação. Emtodos foi constatada alopéciafronto-paríetal em grau variável,e 5 apresentaram alongamentodos cílios. Comum foi a tosse, ocatarro nasal, episódios diarrêi-cos, o edema de grau moderadoe evidenciável nas regiões pré-ti-bial e maleolar. Em todos foiencontrada micropoliadenopatianão dolorosa; cinco apresentavamsialorréia e 4 referiram ou apre-sentaram epistaxes no hospital.O paciente S.S. de 22 anos, comfebre de dois meses de duração

e tratado com antibióticos e an-timaláricos, entrou no hospitalcom quadro ictérico, urina colú-rica, e hipocolia fecal. Segundonos ccnsta, é o terceiro caso deicterícia em Calazar relatado noBrasil. Os dois anteriores são:um de BARBOSA em Goiás em1966 w, e um de MARTINS eCols <16> no Ceará. Infelizmentepelas limitações laboratoriais en-tão existentes no Hospital Sta.Maria Bertilla, não foi possívelestudar adequadamente o casodo ponto de vista hepático.

Nenhum paciente apresentoulesões cutâneas (nódulos, ulcera-ções, etc. que evidenciassem umcomponentes dermotrópico à se-melhança de quanto se observano Calazar de outros países(11> 12).

Em todos os pacientes foramevidentes os sinais clínicos deanemia, porém só em 4 a mesmafoi documentada laboratorialmen-te. Nestes apresentou-se com ascaracterísticas de anemia normo-cítica e normocrômica, exceto opaciente S.S. onde foi hipocrô-mica com anisopoiquilocitose. Oleucograma apresentou leucope-nia, achado bem característico doCalazar, não superando os bran-cos, cm nenhum dos quatro, os5.000/mm3. O comportamentodo paciente S. S., no qual o leu-cograma realizado no momentoda baixa mostrou 15.000 leucó-citos/mm3, com desvio para à es-querda, é sem dúvida, em relaçãocom o abcesso da injeção no del-tóide esquerdo. Um segundo leu-cograma realizado após a drena-gem do abcesso mostrou a carac-terística leucopcnia do Calazar.

Aliás, foi justamente a Icuco-citose, não corrctamcnte intciprc-

T A B E L A I I

C A L A Z A R — SINTOMAS PRINCIPAIS E DURAÇÃO DOS MESMOS

N.A.L.'

Febre

Esplenomegol ia

Hepatomegalia

Adenopotia

Protruíão abdom.

Epistaxe

Icterícia

Tosse

Catarro nasal

Sialorréia

Edema

Along. cílios

+

+

+

+

H.P.O.

+

-U

++++—

+ +

+

4-

+

+~

AJopécia fronto-par. + +

Duração (meses 3 3

J.B.S.

f

+

+

+

+

+

+

•4-

j

S.A.. E.D.A.

-1- +

+

+ +

4- -f

+

4-

+

+ +

+

+

+

S.S.

+

+

+

+

+

+

+

+

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ji

M.R.S.

4-

-f

+

+

+

+

+

*

J.R,

+

+

+

+

+

+

+

4-

2 +

3 11 6 2 í + 2

358 Rcv. Pat. Trop. — (2): 3 — Julho/Setembro, 1973

tada, que nos fez abandonar ini-cialmente a hipótese diagnosti-cada de Calazar.

O formol-gel test, realizado nos4 pacientes acima lembrados, foipositivo em 3 e negativo na pa-ciente M.R.S. A negatividadepoderia ser atribuída ao fato queno momento da baixa a doençatinha só dois meses de duração esabemos que a positividade dareação acontece geralmente aos3 meses de doença <14). Por ou-tro lado, sabe-se que a reação po-de ser inconstante(12).

Em 3 pacientes (N. A. L,,S.S., e M.R.S., foi realizada aeletroforese das proteínas plas-máticas. Nos 3 houve reduçãoda albumina e aumento das glo-bulinas gama. No paciente S. S.,o único a apresentar icterícia,observou-se discreto aumento dabeta. No paciente N.A.L. foirealizada uma segunda eletrofo-rese 60 dias após à primeira, edepois da conclusão dos 2 ciclosde Glucantime, observando-senormalização do perfil eletroforé-tico.

Em todos os pacientes foi com-provada a presença de Leishma-nia Donovani, através da punçãoesternal. No presente trabalhonão consideramos três outros pa-cientes, com características clíni-cas de Calazar, resposta à tera-pia antimonial, mas nos quaisfaltou a demonstração da Leish-mania, por não ter sido feita apunção medular. Em 4 pacien-tes, após ter comprovado a pre-sença de Leishmania Donovanina medula, foram feitos 6 esfre-gaços e gotas espessas do sangueperiférico em 24 horas, aprovei-tando-se os picos febris e os pe-ríodos de eventual remissão, sem

contudo obter-se a demonstraçãoda Leishmania Donovani no san-gue periférico. Os casos são pordemais reduzidos em número pa-ra podermos fazer comparaçõescom os resultados obtidos na pes-quisa de Leishmania no sangueperiférico em outras regiões ca-lazarígenas <14>.

Todos os pacientes foram tra-tados com GLUCANTIME comresultados rápidos e favoráveistanto na febre quanto nas condi-ções gerais. Em 7 fni repetidoum segundo ciclo de Glucantimeapós um intervalo de 15 dias.Todos os pacientes foram reexa-minados num prazo variável en-tre 2 e 6 meses da alta hospita-lar. Em todos as condições ge-rais permaneciam boas e haviaredução marcada ou desapareci-mento da hepato-esplenomegalia.

Como se deduz das históriasclínicas, 5 pacientes tinham re-cebido tratamento com ciclos re-petidos de antibióticos e antima-láricos antes da baixa hospitalar.A circunstância deporia pela pou-ca familiaridade dos médicos daregião com referência ao Cala-zar.

Uma explicação, a nosso verplausível, seria que o Calazar, an-tes quase desconhecido na região,tenha registrado urn aumento daincidência nos últimos anos, de-vido às modificações ecológicas(derrubadas etc). A doença, po-rém, continuaria mantendo noleste de Mato Grosso o caráteresporádico, de endemia prevalen-temente ou, exclusivamente sil-vestre, como afirmavam CHA-GAS e CHAGAS <7> ainda em1938.

Quanto aos vetores e reserva-tórios na região, nada temos a

Giovanni Baruffa & col. — Contribuição ao Estudo do Calazar. . . 359

acrescentar ao pouco que se co-nhece. O presumível vetor seriao Lutzomyia Longipalpis, encon-trado por MARTINS e Cols<15>no contíguo Estado de Goiás, epor FORATTINI e SANTOS Wno Mato Grosso. O reservatóriosilvestre poderia ser a raposa Ly-caloplex Vetulus, cujo territóriode dispersão compreende tam-bém o Mato Grosso. DEANE eDEANE <9> incriminaram este ca-nídeo como reservatório silvestreno Ceará, onde o Calazar é rela-tivamente frequente. As condi-ções mesológicas do Nordestenão são as mesmas do Leste doMato Grosso e não é improvávelque nesta última região outroscanídeos silvestres e talvez outrosmamíferos constituem importan-tes reservatórios. Recentemente,LAINSON e Cols<l3> encontra-ram nas proximidades de Belémdo Pará, num grupo de 6 raposasCerdocyon Thous, um exemplarinfectado cem Leishmania Dcno-vani. Apcs comentar que: "thisvould appear to form an idealreservoir of infection for manand his domestic animais, for atnight it leaves its home in theneighbouring forest and is to befound wandering in seaech offood, close ot human dwelling-places" <pag. 742), os AÃ. fri-sam: "the infected fox appearedin perfect health and might indeedbe regarded as the "ancient indi-genous reservoir" discussed byDEANE and DEANE (1962),unlike its counterpart Lycaloplexin Ceará" (pag. 744). Ò mesmocanídeo ou outro mamífero pode-resería constituir o "ancient in-digenous reservoir" também nanossa região.

No que tange aos reservatóriosdomésticos, não temos notíciasdo encontro na região de cãesinfectados e provavelmente osmesmos não representam a maiorfonte de infecção humana comoacontece no Ceará. É provável,como já observavam CHAGAS eCHAGAS <7>, que no Mato Gros-so o Calazar tenha um carátereminentemente silvestre e entãoesporádico, sem envolver re-servatórios domiciliares como oscães domésticos. LAINSON <13>apoiando-se em DEANE <8' afir-ma: "the conviction hás never-theless remained that, unlike Ka-la-azar of the drier North-eastregions, the disease in the fores-ted North is "principally one ofwild animais" (pag. 742). Asmesmas considerações poderiama nosso ver, ser aplicadas à re-gião leste do Mato Grosso, ondeo ambiente, em grande parte flo-restal, o pequeno número de ca-sos humanos até hoje relatados ea ausência de relatos de encontrode cães domésticos infectados es-tariam a favor da hipótese. Acha-mos todavia, que o eventual pa-pel dos cães na epidemiologia doCalazar no Leste do Mato Gros-so merece cuidadosa investigaçãotanto nos animais nativos quantonaqueles "trazidos pelos colonos,na sua maioria provindos de Mi-nas Gerais, do Nordeste e daBahia"Í4>. Os cães imigrados po-deriam desenvolver um papel degrande importância na implanta-ção na região de uma situação deendemia calazarígena com ciclodomiciliar, analogamente ao queacontece no Ceará.

360 Rev, Put . Trop. — (2): 3 — Julho/Setembro, 1973

CONCLUSÕES

1°. — A região Leste do Ma-to Grosso, constitui, a nosso ver,mais uma área de endemia de Ca-lazar no Brasil. Do ponto de vis-ta geográfico trata-se de uma ex-tensão da zona calazarígena doAlto Araguaia, individualizadaem Goiás por BARBOSA W.

2°. — Considerando a proce-dência dos nossos pacientes, osfocos calazarígenos da região pa-recem se situar sobretudo nas vi-zinhanças de rios, nos vales flu-viais e nos pés de serra, zonasque como vimos são ocupadaspor densas formações florestais,em parte derrubadas para lavou-ras . A localização dos focos nosfaz pensar que a endemia de Ca-lazar tenha na região um carátersilvestre e esporádico, ligada en-tão a reservatórios selvagens,como foi visto no Norte Flores-tal <8 '1 3>.

3°. — A incidência não pare-ce limitada às crianças, masabrange também os adultos jo-vens, aproximando-se neste as-pecto mais do comportamento doCalazar da África Oriental e doSudan, alimentados por reserva-tórios silvestres, e diferindo doCalazar mediterrâneo, tipicamen-te infantil e alimentado por re-servatórios domésticos <cão).

4°. — Achamos imprescindí-vel uma exaustiva investigaçãoepidemiológica tanto em relaçãoaos vetores quanto aos possíveisreservatórios silvestres e domés-ticos para definir a extensão e aprofundidade da endemia cala-zarígena na região.

SUMMARY

CONTRIBUTION TO THE STUDYOF KALAZAR IN THE STATE OF

MATO GROSSO (BRAZIL)

8 cases of Kalazar observed in theSanta Maria Bertila Hospital, Guira-tinga, Maot Grosso, between January1971 and April 1972 are reported.The age of the patients variedbetween 18 months and 25 ycars.The clínica! and laboratory data werein agreement with the classical des-cription of Kalazar with the excep-tion of one patient who developedjaimdice. Ali patients were treatedwith glucantimc and showed good re-covery from the clinicai and parasi-tological point of viés.

The Eastern region of the State ofMato Grosso seems to be an endemicárea of Kalazar, a disease thataffects both infants and young adultsand is supported chiefly by wild ani-mal reservoirs.

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