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    UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS –  UNISINOS

    UNIDADE ACADÊMICA DE GRADUAÇÃO

    CURSO DE FILOSOFIA

    DIANA TASCHETTO

    O RACIONALISMO CRÍTICO DE POPPER: UMA RAZÃO CONVENCIONALISTA

    São Leopoldo

    2013

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    DIANA TASCHETTO

    O RACIONALISMO CRÍTICO DE POPPER: UMA RAZÃO CONVENCIONALISTA

    Trabalho de Conclusão de Curso apresentadocomo requisito parcial para a obtenção dotítulo de Licenciado pelo Curso de Filosofia da

    Universidade do Vale do Rio dos Sinos  –  UNISINOS

    Orientador TCC I: Prof.ª Dra. Anna Carolina Krebs Pereira Regner

    Orientador TCC II: Prof. Dr. Luiz Rohden

    São Leopoldo2013 

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    AGRADECIMENTOS

    Meus agradecimentos se dirigem todos à professora Anna Carolina K. P. Regner,

    embora estes sejam, ainda, insuficientes para agradecer por suas críticas, seu cuidadometiculoso e sua infinita paciência, que me proporcionaram as condições para a redação deste

    trabalho. Todo o meu assíduo esforço teria sido infrutífero não fosse por seu auxílio, a quem

    devo o desenvolvimento de minha capacidade crítica e filosófica. Muito me honra tê-la tido

     por orientadora. A ela, minha eterna admiração e gratidão.

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    ―There is no such thing as philosophy-free science; there is only science whose philosophical

     baggage is taken on board without examination.‖ 

     — Daniel Dennett, Darwin's Dangerous Idea, 1995 

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    RESUMO

    O tema do presente trabalho consiste no racionalismo crítico defendido pelo filósofo

    da ciência austríaco Karl R. Popper. Este propõe um modelo epistemológico e ontológico paraas ciências empíricas que rompe com a secular tradição indutivista e com as correntes

    subjetivistas e relativistas que passaram a dominar a ciência ocidental a partir do início do

    século XX, em uma defesa e justificação de uma metodologia objetiva e racional para a

    ciência, essencialmente conjetural. Os princípios epistemológicos por Popper apresentados,

    seus argumentos principais e as imediatas consequências filosóficas, ontológicas e científicas

    serão indicados, discutidos e analisados, bem como os argumentos dos principais críticos da

    arquitetura popperiana. A reflexão filosófica destes permitirá analisar se e até que ponto a

    ―lógica‖ da pesquisa científica popperiana resistiu à pressão das críticas e se esta é adequada

    como modelo epistêmico para a Ciência, permitindo, garantindo e estimulando seu progresso.

    Palavras-chave: Racionalismo. Indução. Dedução. Objetividade. Verdade.

    ABSTRACT

    The theme of this work consists in the critical rationalism as it is defended by the

    Austrian philosopher of science Karl R. Popper. He proposes an epistemological and

    ontological model for the empirical sciences which breaks with the secular inductivist

    tradition and with the relativistic and subjectivistic trends that started ruling Occidental

    Science since the beginning of the twentieth century, in the defense and justification of an

    objective and rational methodology for science, essentially conjectural. The epistemological

     principles which have been by Popper presented, his main arguments and the immediate

     philosophical, ontological and scientific consequences will be here shown, argued and

    analyzed, as well as the arguments introduced by the major critics of the Popperian

    architecture. The philosophical analysis of these concepts, arguments and principles will

    enable us to see if and until what point Popperian‘s ―logic‖ of scientific research has resisted

    under the pressure of its criticisms and if it is adequate as an epistemic model to science,

    allowing, guaranteeing and stimulating its progress.

    Keywords: Rationalism. Induction. Deduction. Objectivity. Truth.

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    LISTA DE ILUSTRAÇÕES

    Figura 1 –  O Balde Mental ................................................................................................... 66 

    Figura 2 –  A Incomensurabilidade Entre Teorias .................................................................. 92 

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    SUMÁRIO

    1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 9 

    2 A EPISTEMOLOGIA..................................................................................................... 13 

    2.1 O PROBLEMA DA INDUÇÃO ..................................................................................... 14 

    2.1.1 Verdade e graus de verdade ...................................................................................... 14

    2.1.2 A contradição das inferências indutivas ................................................................... 16

    2.1.3 Uma teoria do conhecimento não-indutiva ............................................................... 18

    2.1.4 Até que ponto o Princípio da Transferência é aceitável? ......................................... 19

    2.1.5 Certeza e Verdade ..................................................................................................... 20

    2.2 O CRITÉRIO DE DEMARCAÇÃO ............................................................................... 21 

    2.2.1 Ciência e não-ciência: uma nova distinção ............................................................... 212.2.2 A base empírica: a questão da justificação dos enunciados básicos ........................ 22

    2.2.3 A formação de teorias científicas .............................................................................. 24

    2.2.4 O que define a racionalidade científica? ................................................................... 26

    2.3 A LÓGICA DA PESQUISA CIENTÍFICA: A DEDUÇÃO............................................ 29 

    2.3.1 Condições para uma explicação científica ................................................................ 29

    2.3.2 Uma epistemologia exclusivamente dedutiva ............................................................ 30

    2.4 A INTERPRETAÇÃO POPPERIANA DA PROBABILIDADE .................................... 32 2.4.1 Argumentos contra a probabilidade indutiva .......................................................... 32

    2.4.2 É possível falsear enunciados probabilísticos? ......................................................... 34

    2.4.3 O argumento original de Popper sobre a Probabilidade ......................................... 36

    2.4.4 A interpretação da probabilidade em termos de propensão .................................... 40

    2.5 O MÉTODO CRÍTICO .................................................................................................. 45 

    2.5.1 A noção de refutabilidade ......................................................................................... 45

    2.5.2 A Verdade como ideal regulador .............................................................................. 532.5.3 A visão popperiana de progresso científico .............................................................. 55

    3 META-EPISTEMOLOGIA: PRINCÍPIOS GERAIS DA EPISTEMOLOGIA

    POPPERIANA ................................................................................................................... 63 

    3.1 O CONCEITO DE OBJETIVIDADE ............................................................................. 64 

    3.2 O PAPEL DO SENSO COMUM NO RACIONALISMO CRÍTICO POPPERIANO ..... 65 

    3.3 O EMPIRISMO E A TEORIA DO BALDE MENTAL .................................................. 65 

    3.4 UMA APOLOGIA AO REALISMO .............................................................................. 67 

    4 A ONTOLOGIA POPPERIANA ................................................................................... 71 

    4.1 A TEORIA DOS TRÊS MUNDOS ................................................................................ 72 

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    4.1.1 Em defesa de uma filosofia pluralista ....................................................................... 72

    4.1.2 A interação dos mundos ............................................................................................ 75

    4.1.3 A autonomia do Mundo Três .................................................................................... 78

    4.1.4 Teorias são independentes de seus autores? Epistemologia Sem Sujeito

    Conhecedor ........................................................................................................................ 80

    4.2 POPPER E DARWIN: UMA EPISTEMOLOGIA EVOLUCIONISTA .......................... 81 

    5 CRÍTICOS ...................................................................................................................... 86 

    5.1 PAUL K. FEYERABEND ............................................................................................. 86 

    5.1.1 O método falseacionista............................................................................................. 87

    5.1.2 Pluralismo ontológico: argumentos contra a teoria dos três mundos ..................... 93

    5.2 IMRE LAKATOS .......................................................................................................... 95 

    5.2.1 Background epistemológico e as bases para a modificação lakatosiana: as fases de

    Popper ................................................................................................................................ 96

    5.2.2 O falseacionismo sofisticado como a modificação lakatosiana do falseacionismo

    metodológico de Popper: A metodologia dos programas de pesquisa científica............ 101

    5.2.2.1 Heurística negativa ................................................................................................. 105 

    5.2.2.2 Heurística positiva .................................................................................................. 106

    5.3 MARCELO DASCAL ................................................................................................. 109 6 CONCLUSÃO ............................................................................................................... 115 

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 126 

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    1 INTRODUÇÃO

    ―Logical positivism, then, is dead, or as dead as a philosophical movement

    ever becomes.‖ 

    John Passmore

    Admiramos a Grécia antiga porque fez nascer a ciência ocidental. A racionalidade

    consistiu, desde que o homem tomou consciência do pensamento crítico, na distinção

    manifesta entre a raça humana e os demais membros da Natureza, e a potência intelectual

    superior, que o homem historicamente conferiu à racionalidade, o levou a procurar formar, de

    qualquer maneira, mas segundo a própria lógica, uma imagem clara e simples do mundo. Para

    atingir uma ciência que descreva a realidade, porém, há de se ter em mente o eterno confrontoentre os dois componentes fundamentais do conhecimento: empirismo e razão; e seus

    historicamente construídos ideais problemáticos  –   objetividade e verdade. O Templo da

    Ciência, porém, apresenta-se como um edifício atemporal e de mil formas: possui

    características próprias em determinadas situações. Sendo dinâmica e histórica, a ciência

     possui a ambição de ser um conhecimento bem fundado  –   mas, pergunto, o que é ―bem-

    fundado‖? A despeito de sua plausibilidade inicial, a crítica consistente de Hume à indução

    mostrou que o elenco de princípios que formaram a base da ciência eram, na realidade,inconsistentes com a própria exigência de racionalidade: a indução não tem a sanção da razão.

    Por sua vez, tampouco o pensamento puro apreende a realidade, como os antigos

    acreditavam com veneração. Filósofos procuraram, após Hume, resgatar desesperadamente o

    aparente imprescindível  status  racional e institucionalizado da ciência, cujo sucesso é

    inegável. Uma vasta gama de modelos racionais e métodos científicos, foi, portanto,

    apresentada, por cientistas e filósofos preocupados. No início do século XX, porém, a ciência

    e a filosofia se encontraram em um cenário histórico extremamente privilegiado: Einstein

     publicou, em 1905, cinco artigos que mudaram o rumo da física; pouco depois, em 1913,

    Bohr publicava três artigos que inauguraram a mecânica quântica, ao mesmo tempo em que,

    em Viena, filósofos, matemáticos e cientistas de alto nível trabalhavam em cooperação em um

    seminário único, motivados por indagações lógico/semânticas de aguçada profundidade

    epistemológica que deram origem à posição hoje conhecida como positivismo lógico.

    Este breve arrazoado histórico é imprescindível para compreender adequadamente o

    racionalismo crítico popperiano, tema do presente trabalho, posto que este surgiu como reação

    ao ideário do positivismo lógico, movimento concentrado no denominado por seus

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     participantes ―Círculo de Viena‖, agrupados em torno de Moritz Schlick, responsável pela

    ―virada‖ na história da filosofia1. Além do próprio Schlick, em filosofia, do Círculo também

    faziam parte Otto Neurath, Rudolf Carnap, Victor Kraft, Edgar Zilsel, Friedrich Waissmann e

    Herbert Feigl; no campo matemático e científico, Hans Hahn, Phillip Frank, Karl Menger e

    Kurt Gödel. O racionalismo crítico de Popper contrariava alguns pontos centrais do

    Positivismo Lógico, como sua abordagem da indução e do critério de significatividade

    empírica de termos e proposições, uma vez que envolvia a redução de proposições universais

    a proposições singulares.

    A influência da lógica e da matemática, devida, principalmente, a Russel e Frege,

    ligada ao principio fundamental do empirismo humeano e à análise lógica da linguagem

    apresentada por Wittgenstein em seu Tractatus Logico-Philosophicus, em uma época em que

    a filosofia de Hegel dominava o pensamento europeu resume, rigorosamente, o malho

    histórico e a contextualização explicativa do positivismo lógico. Embora as opiniões não

    tenham sido unânimes acerca de um mesmo ponto e os pontos de vista tenham mostrado

    divergências significativas mesmo entre os membros principais do Círculo, os princípios

    cristalizaram-se de tal modo que um conteúdo doutrinal característico pode ser resumido

    como segue:

    A linguagem da ciência como sistema axiomático interpretado; 

    Critério verificacionista do significado; 

    Dicotomia teórico/observacional; 

    Dicotomia analítico/sintético; 

    Dicotomia descobrimento/justificação; 

    Unificação da ciência. 

    A filosofia, neste âmbito, é um sistema de análise do sentido das preposições 2   –  

     proposições metafísicas não fazem sentido e, portanto, não há tarefa metafísica para os

     positivistas lógicos. Sua visão linear e cumulativa do progresso científico é perigosamente

    reducionista: teorias científicas não podem ser rechaçadas, mas apenas ter seu alcance

    estendido. Como a análise lógica consistia no critério de demarcação entre proposições com

    1  Nenhum progresso, na posição de Schlick, havia objetivamente acontecido em filosofia até o advento do

    positivismo lógico: os novos desenvolvimentos da lógica e a “virada metodológica” permitiram, segundo estaposição, “livrar” os filósofos dos problemas tradicionais da teoria do conhecimento. 2 Uma proposição “com sentido” é uma proposição passível de determinação de verdade ou falsidade, deacordo com o positivismo lógico.

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    significado e sem significado, outro critério de demarcação era necessário  –   um capaz de

    determinar quais proposições satisfariam o primeiro critério de significação; e a verificação

    empírica fez as vezes deste critério.

    Karl Popper, nascido em 28 de julho de 1902, em Viena, Áustria, filósofo, matemático

    e físico de formação, entrou em contato com o Círculo de Viena, segundo sua autobiografia

    (2005), em 1926 ou 1927, através de um artigo publicado por Otto Neurath, antes mesmo de

    ter apresentado sua tese de doutorado, posicionando-se, desde o início, contra esta doutrina

    neojustificacionista: ―[...] all this made me feel that, to every one of their main

     problems, I had better answers –  more coherent answers –  than they had.‖ (POPPER, 2005, p.

    90).Julgando-se seu principal algoz, acusa a si mesmo como responsável pela dissolução do

    Círculo;3 provocada, principalmente, pela recepção geral das teses epistêmicas apresentadas

    em sua agora clássica obra  A Lógica da Pesquisa Científica, de 1934. A proposta deste

    trabalho é apresentar e analisar o racionalismo crítico de Karl Popper exposto na obra citada e

    em textos que lhe são orbitantes e posteriores, suas implicações na ciência, seu alcance em

    termos epistemológicos e procurar determinar até que ponto a caracterização racional que

    Popper confere à sua metodologia não-indutivista é aplicável e/ou aceitável como modelo

    epistemológico para a ciência.

    Com o objetivo de alcançar os objetivos acima explicitados, o desenvolvimento do

     presente trabalho está dividido em quatro capítulos. No primeiro capítulo após a introdução

    serão abordados, de um modo geral, os principais aspectos de sua epistemologia. Não será

    dedicada muita atenção a detalhes biográficos, pessoais e históricos, posto que a tese principal

    de Popper não se modificou desde sua primeira publicação em 1934, a não ser no caso da

     probabilidade, cujas mudanças foram adequadamente indicadas e ressaltadas no corpo do

    texto, e algumas novidades no que concerne à ontologia

    4

    . A posição popperiana quanto ao problema da indução, ao problema da demarcação e ao uso da dedução como método, tratados

    neste capítulo, permaneceram inalterados até a morte do filósofo, em 17 de novembro de

    1994, em Londres.

    Para compreendermos adequadamente sua epistemologia, urge o esclarecimento dos

    metaprincípios que formam a sua base, e que são o objeto do segundo capítulo. A discussão

    3“Everybody knows nowadays that logical positivism is dead. But nobody seems to suspect that there may be a

    question to be asked here—the question ‘Who is responsible?’ or, rather, the question ‘Who has done it?’ *…+Ifear that I must admit responsibility. Yet I did not do it on purpose: my sole intention was to point out whatseemed to me a number of fundamental mistakes.” (POPPER, 2005, p. 99).4Ver cap. 4 do presente trabalho.

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    destes princípios remete à compreensão da ontologia que permeia toda a teoria do

    racionalismo crítico popperiano, imprescindível para uma adequada visão de conjunto, tema

    do terceiro capítulo. Por fim, no quarto capítulo após a introdução serão apresentadas,

    resumidamente, as principais críticas ao modelo popperiano: a metodologia anárquica de Paul

    Feyerabend, a ―reformulação‖ do racionalismo em termos de reconstrução histórica

    apresentado por Imre Lakatos e a lúcida crítica de Marcelo Dascal as quais, por considerarem

     problemáticos diferentes aspectos, resumem com aguçada profundidade epistemológica as

     principais contradições e dificuldades identificáveis nos pontos centrais do racionalismo

    crítico de Popper. Na conclusão serão discutidos os argumentos popperianos segundo seus

     próprios termos e segundo as exigências de seu próprio sistema e, concomitantemente, o

    alcance das críticas dos autores trabalhados, se foram capazes de refutar/aperfeiçoar o modelo popperiano e, se este for o caso, até que ponto o fizeram, procurando traçar um panorama

    geral do elenco de dificuldades que envolvem o tripé do racionalismo, a saber, objetividade,

    racionalidade e verdade.

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    2 A EPISTEMOLOGIA

     No presente capítulo tratarei dos aspectos centrais da proposta epistemológica

     popperiana. A exautoração da teoria científica mais bem corroborada de todos os tempos, asaber, a mecânica newtoniana, implicou no reconhecimento de que elementos fundamentais

    irredutíveis e evidentes, como a noção de verdade demonstrada, os raciocínios indutivos e a

    ideia de que os princípios provêm diretamente da experiência  –   expressa na famosa

    declaração de Newton hypotheses non fingo  –   deveriam ser revisados. O problema da não

    validade das inferências indutivas dá origem à necessidade de um novo critério de

    demarcação, capaz de distinguir entre ciência e não-ciência, e o estabelecimento de um novo

     padrão de racionalidade, identificado com a dedução lógica de princípios os quais são, por sua

    vez, invenções espontâneas do espírito humano e, justamente por este motivo, falíveis, e

    sujeitos à crítica e à reformulação. A teoria de Popper, caso fosse bem sucedida, explicaria o

    sucesso da ciência e o que legitima o estatuto epistêmico que atribuímos a seus resultados,

    além de proporcionar uma série de condições que o cientista deve seguir para fazer parte do

     jogo científico. Como Popper argumenta a favor de sua epistemologia falibilista, dedutivista e

    objetivista, em detrimento de toda uma tradição indutivista e que ele chama de subjetivista,

    será o objeto de discussão nesta primeira parte. A estrutura da prática científica, em termos

     popperianos, será esquematizada e analisada a partir do ponto de vista de seus pressupostos

    epistêmicos.

    Ainda neste capítulo, discutirei a aplicação dos princípios epistemológicos

     popperianos em áreas que requeriam, à época de Popper e de acordo com este, solução prática

    imediata. É o caso da questão da probabilidade e da articulação desta dentro de um programa

    objetivo e não-indutivo, o que, em minha opinião, consiste em um dos maiores méritos

     popperianos. As ideias de Popper impressionam, em uma primeira leitura, mas a articulaçãode um sistema lógico-dedutivo para as ciências, em termos de crítica racional, implica em

     problemas extralógicos mais complexos, como pretendo mostrar na sequência.

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    2.1 O PROBLEMA DA INDUÇÃO

    ―Thus the problem of induction is solved. But nothing seems less wanted than a simple solution to an old-age

     philosophical problem. However this may be, I am still waiting for a simple, neat and lucid criticism of the

    solution which I published first in 1933… and later in The Logic of Scientific Discovery.‖ 

    - Karl Popper

    2.1.1 Verdade e graus de verdade

     Nenhuma epistemologia deve tentar explicar os motivos de termos êxito em nossas

    tentativas de explicar o mundo: nunca se mostrou nem se pode mostrar (racionalmente) que

    qualquer teoria é verdadeira, depois da crítica à indução feita por David Hume5. Contudo,

    segundo Hume, o que deve ser abandonado é a busca pela  justificação racional e lógica das

    inferências causais no sentido de justificar a afirmação de que, a partir da experiência,

    determinada teoria  x  é verdadeira: qualquer teoria do conhecimento que sustente tal

     pressuposto não leva a sério a crítica lógica de Hume à indução - método que Bacon

    consagrara como o método científico por excelência das ciências empíricas. Segundo Hume,

    se houvesse uma justificação racional para a indução, a crença de que o futuro será como o

     passado deveria ser justificada em termos de razões ou lógicas, ou empíricas. Não o é: não é

    impossível pensar que o futuro seja diferente do passado, nem a experiência provê razão, pois,

    se o fizesse, estaria já pressupondo o que deve ser provado  –   que há razão para crer que o

    futuro será como o passado. Karl Popper, levando a crítica humeana a sério, defende, então,

    que todas as teorias são hipóteses. De qualquer forma, o suposto não sugere que devamos

    abandonar a procura pela verdade: a noção de verdade desempenha um papel de idéia

    reguladora  –  realizamos testes, eliminando a falsidade, em busca da verdade: o fato de não

    sermos capazes de dar às nossas hipóteses uma justificativa não significa que tais suposições

    não possam ser verdadeiras e que não correspondam aos fatos. O alvo da ciência, na visão popperiana, é a verdade, no sentido de uma busca por maior verossimilitude ou maior

    correspondência com os fatos através de conjeturas ousadas e pela procura crítica do que é

    falso entre as teorias concorrentes.

    Assim, Popper é um defensor do realismo: o fato de que as teorias que fabricamos

    sejam verdadeiras ou não depende exclusivamente da confrontação das suas consequências

    5  Ver HUME, David.  An Inquiry Concerning Human Understanding. Oxford: University Press, 2007;especialmente a parte II.

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    com os fatos. A obra de Alfred Tarski6 mostra que é possível trabalhar com a idéia de verdade

    objetiva, de verdade como correspondência com os fatos, sem nos perdermos em antinomias  –  

    o que o leva a definir a realidade como aquilo a que correspondem asserções verdadeiras7.

    Destarte, o falseacionismo que Popper defende permite a nossas teorias colidirem com fatos

    na procura pela verdade, abrindo a possibilidade, a partir dessa contraposição, de ajustarmos

    nossas teorias ou de desistirmos delas: a ideia de verossimilitude ou aproximação da verdade

    é utilizada como  parâmetro para a escolha de teorias  –   se aceita como ―mais verdadeira‖ 

    aquela que corresponder com os fatos melhor que outra (em determinado tempo t ).

    Popper considera a crítica lógica à inferência indutiva de Hume conclusiva.

    Generalizações feitas a partir de observações singulares e específicas não podem ser

    racionalmente justificadas: a repetição não tem força como argumento e disso conclui Hume

    que nosso conhecimento do mundo é crença sem qualquer base racional, transformando-se

     próprio Hume em um cético8. Em contrapartida, Popper, apesar de subscrever a posição

    humeana no que diz respeito à falta de justificação lógica dos procedimentos indutivos, não

    compartilha a posição cética do filósofo escocês e sua conclusão que nossas teorias são

    crenças. Popper defende que, apesar de não podermos aceitar a justificação das teorias como

    verdades no sentido clássico de leis universais, absolutas e imutáveis, não há nada de

    6Especificamente as obras Tarski, A., 1983. Logic, Semantics, Metamathematics, second edition, ed. by J.Corcoran. Indianapolis: Hackett e Tarski, A., 1944, “The Semantic Conception of Truth and the Foundations ofSemantics”, Philosophy and Phenomenological Research, p. 341 –376.7Não há, aqui, certa circularidade na distinção entre “fatos” e “asserções”? Como admitir “correspondênciacom os fatos” sem admitir que as asserções que os descrevem sejam verdadeiras?8Hume defendeu que razões não demonstrativas não podem justificar conclusões, nem mesmo em grausprobabilísticos. Seu ceticismo, porém, não diz respeito à possibilidade do conhecimento enquanto tal, mas àsua fundamentação: a generalização de ideias particulares, provocadas por um número finito de experiências,consiste em um mecanismo mental, produto da influência do hábito. As inferências, com as quais construímosas bases de nosso conhecimento, de acordo com Hume, não são determinadas pela razão, mas são resultadode uma relação entre percepções. Não há nenhum argumento demonstrativo capaz de provar a relação de

    semelhança entre eventos passados e futuros, mas a imaginação realiza essa extrapolação dos fatos.Conhecimento é crença subjetiva em uma regularidade empírica baseada em associações entre experiênciasque nos levam a projetar relações análogas em eventos futuros. Nossos raciocínios e ações são resultados dainfluência da crença em regularidades derivadas, por sua vez, do hábito ou costume. A crença é uma partesensitiva de nossa natureza: a falibilidade das inferências indutivas por falta de evidência não fez David Humeabraçar um ceticismo total, compreendendo que não possuímos em nosso entendimento medida alguma deverdade ou falsidade: “*...+ não podemos deixar de considerar certos objetos de um modo mais forte e plenoem virtude de sua conexão habitual com uma impressão presente, como não podemos nos impedir de pensarenquanto estamos despertos, ou de enxergar os objetos circundantes quando voltamos nossos olhos para elesem plena luz do dia. Quem quer que tenha-se dado ao trabalho de refutar as cavilações desse ceticismo [...] fezuso de argumentos na tentativa de estabelecer uma faculdade que a natureza já havia antes implantado emnossa mente, tornando-a inevitável. “ (HUME, David. Tratado da Natureza Humana. São Paulo: UNESP, 2009.)

    À dicotomia falsa razão ou razão nenhuma, Hume não adota uma posição dogmática a favor de qualquer umdos lados, mas garante que, por força de nossa própria natureza, acreditamos que o fogo aquece e que o pãoalimenta, e que se alguma impressão é vívida e combina com alguma propensão, deve receber nossoassentimento. 

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    irracional em uma aceitação crítica das teorias científicas: uma aceitação que é tentativa, pois

    está aberta à revisão por novos testes e, portanto, à refutação. Preferimos como melhor

    candidata à ―verdade‖ a hipótese que melhor resistiu a testes até determinado tempo t . Com

    efeito, na visão popperiana, não há nada de irracional na admissão de teorias bem testadas à

    luz da discussão crítica.

    2.1.2 A contradição das inferências indutivas

    Popper salienta a importância da distinção feita por Hume entre um problema lógico e

    um problema psicológico na procura por justificação das inferências indutivas. Apesar de não

    ter encontrado fundamentação lógica e racional para o método indutivo, Hume afirma haver

    uma mesma fundamentação presente no raciocínio das pessoas sensatas  –   resultado docostume ou hábito; inferências decorrentes da experiência de eventos que costumam seguir

    um ao outro devido a um mecanismo de associação de ideias sem o qual dificilmente

    sobreviveríamos. Popper, porém, não concorda com a solução de caráter psicológico

    apresentada por David Hume: expectativas podem surgir sem repetição, ou mesmo antes de

    qualquer uma (POPPER, 1999). Assim, segundo Popper, por razões lógicas, a teoria indutiva

    de David Hume sobre a formulação de crenças é insustentável. Só o conhecimento objetivo,

    assegura Popper, é passível de crítica: o conhecimento subjetivo só é criticável quando setorna objetivo. Traduzindo, destarte, todos os termos psicológicos e/ou subjetivos em termos

    objetivos, Popper aplica esse método de abordagem ao problema da indução, apresenta novas

    formulações e uma ousada solução para posteriormente, através do princípio de transferência

    (argumento heurístico formulado por Popper, segundo o qual o que é verdadeiro em lógica

    também o é em psicologia9) para refutar a solução positiva fornecida por Hume ao problema

     psicológico da indução; pretendendo mostrar que inferências dessa espécie são indefensáveis

    tanto lógica quanto psicologicamente.

    A primeira reformulação lógica do problema humeano da indução proposta por Popper

    consiste no seguinte: estamos autorizados a considerar que experimentações e testes nos

    oferecem base sólida para justificar que as verdades empíricas, por sua vez, justificariam os

    enunciados de leis universais? De acordo com Popper, seguramente não: justificar enunciados

    universais é justificar mais do que a experiência autoriza; é concluir para além dos resultados

    que os testes são capazes de nos fornecer.

    9 Sobre a formulação do princípio de transferência, ver POPPER, Karl. Conhecimento Objetivo. Belo Horizonte,Itatiaia, 1999, p. 14-40 e seção 2.1.4 do presente trabalho.

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    Hume perguntara se uma proposição universal é verdadeira quando justificada por

    razões empíricas, ou se aquilo do que temos experiência permite inferir aquilo do qual não

    temos experiência, e constatara que não, porque um enunciado dessa espécie afirma mais do

    que pode fazê-lo. Popper alega solucionar o problema ao substituir as palavras ―é verdadeira‖

     por ―é verdadeira, ou é falsa‖, e a pergunta, então, agora, é se estamos autorizados a

    considerar que uma teoria seja verdadeira ou falsa, tendo como premissa uma base empírica

    sustentada por testes e experimentos. Para esta pergunta, a resposta de Popper é positiva: não

     podemos inferir uma teoria de afirmativas advindas da observação. Disso não decorre,

    contudo, que não possamos refutar uma teoria através do método do falseamento  –   o

    falseamento da conclusão estende-se às premissas. O que Popper propõe então é uma

    extensão lógica do problema de Hume: segundo a tabela-verdade da disjunção, para que adisjunção seja verdadeira, basta que um de seus membros o seja. Assim, a extensão lógica de

    ―p ou q‖ garante que razões empíricas sejam suficientes para falsear, embora não para

    verificar, teorias.

    Em Conhecimento Objetivo, Popper afirma propor somente uma reformulação do

     problema humeano que consiste em uma generalização deste. As condições de verdade em

    sua reformulação, contudo, como foi indicado acima, mudam, e nos defrontamos com um

     problema mais complexo do que aquele indicado no Tratado da Natureza Humana: o quadro,

    agora, é mais amplo. A extensão lógica introduzida por Popper ao problema elimina a

    irracionalidade e o ceticismo oriundos do método verificacionista indutivo. O conhecimento é,

    sim, possível; e é o reconhecimento dessa possibilidade, argumenta Popper, que torna clara a

    relação entre teorias e observações; enquanto a indução é uma inferência sempre inválida por

    não poder ser justificada empiricamente em todas as suas asserções e conduzir, desse modo,

    ao apriorismo ou à regressão infinita. O método de teorias conjeturais e de ensaio e erro

    defendido por Popper se justifica, já que é capaz de indicar a teoria falsa por meio de testes

    empíricos.A sustentação para o novo sistema de método de investigação que Popper propõe é

    a relação exclusivamente dedutiva que, segundo Popper, nos permite afirmar conclusivamente

    a falsidade de hipóteses universais se aceitarmos a verdade de afirmativas singulares que as

    contradigam.

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    2.1.3 Uma teoria do conhecimento não-indutiva

    "There is a mask of theory over the whole face of nature... Most of us are unconscious of our perpetual habit of

    reading the language of the external world and translating as we read."

    - Whewell, 1837

    Popper, tendo demonstrado que sistemas de conceitos inferidos indutivamente são

    inválidos tanto em termos lógicos quanto psicológicos, propõe um novo sistema

    epistemológico de investigação científica, cuja validade não é questionada por estar de acordo

    com regras firmemente estabelecidas de falseamento através de dedução pelo modus tollens. 

    Sistemas de conceitos são arbitrariamente criados: contudo, as proposições derivadas

    da teoria somente adquirem ―sentido‖ ou ―conteúdo‖ através de conexões com as experiênciassensoriais. A teoria é prévia e intuitivamente formulada paralelamente à experiência (e

    nenhum caminho lógico leva a essa construção). É a teoria que permite o que podemos

    observar: somente a hipótese permite que, a partir de nossas impressões sensoriais, possamos

    deduzir os fenômenos subjacentes e comparar as previsões das teorias com os resultados dos

    experimentos e suas imbricações mútuas.

    Com o auxílio de enunciados previamente aceitos o pesquisador estabelece o princípio

    ou teoria que servirá de base para sua dedução (uma nova teoria, por mais revolucionária que

    seja, ainda assim presume que leis existentes e aceitas são dignas de confiança: a teoria

    einsteiniana da relatividade, por exemplo, que revolucionou a física clássica,  supõe  que

    mesmo no sistema de referência em movimento, os raios de luz se propagam do relógio para o

    observador como se espera que se comportem, ou seja, de acordo com as leis de Maxwell 10).

    Quando tal formulação obtiver êxito, ou seja, quando as bases da teoria estiverem

    estabelecidas, começa o desenvolvimento das consequências ou das ―predições‖ que,

    deduzidas da teoria, deverão ser confrontadas com fatos singulares na experiência. Se o

    resultado (feito todo o necessário trabalho de confrontação com o material empírico) for

     positivo,  ou seja, se as conclusões se mostrarem aceitáveis ou comprovadas, a teoria estará

     provisoriamente corroborada: até o tempo t  não se descobriu, mediante severa crítica e testes

    rigorosos, motivos para rejeitá-la (provisoriamente porque nada garante que, a qualquer tempo

    no futuro, a teoria não se deparará com decisões negativas que nos obrigarão a rejeitá-la).

    10As leis de Maxwell descrevem os fenômenos eletromagnéticos. Einstein admite que não pôde evitar oemprego das equações diferenciais desenvolvidas por Maxwell na formulação de sua teoria da relatividade.Ver: EINSTEIN, Albert. Como vejo o mundo. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1981, p. 53.

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     Nada que se assemelhe a inferências indutivas pode ser identificado no processo

     proposto por Popper 11: as hipóteses que, tendo sido confrontadas com o conjunto de fatos

    experimentais por testes rigorosamente críticos, sobreviveram, não podem ser consideradas

    ―verdadeiras‖ ou mesmo ―prováveis‖ –  mas apenas a (aparente) melhor aproximação com a

    verdade disponível até o momento. Os problemas que a lógica indutiva trouxe ao

     procedimento científico podem ser eliminados pelo método da prova dedutiva sem que, em

    seu lugar, surjam outros. A ciência consiste, então, para Popper, em uma sequência de

    sistemas dedutivos cada vez melhores.

    2.1.4 Até que ponto o Princípio da Transferência é aceitável?

    O princípio de transferência apresentado por Popper é uma conjetura heurística quedefende que o que se mantém em lógica se mantém concomitantemente em psicologia  –  

     princípio pelo qual Popper transfere a solução negativa do problema lógico da indução ao

     problema psicológico que Hume outrora solucionara positivamente: o princípio refuta, então,

    a justificação do uso de inferências indutivas sob quaisquer perspectivas. Os resultados

    lógicos devem ter aplicações psicológicas ou, mais geralmente, biológicas  –   contudo,

    conhecimento científico, dentro da perspectiva popperiana, é conhecimento objetivo, de

    acordo com a lógica: mas disso, acredito, não segue que os fenômenos psicológicos, enquantotais, sejam ―lógicos‖. 

     Nada garante que nossas crenças sejam formadas da maneira que Popper descreve, e

    não consegui identificar justificação para a correspondência defendida por Popper entre lógica

    e mundo empírico. O problema da justificação do princípio de transferência será, assim,

    retomado mais adiante; já que a arquitetura da epistemologia de Popper se baseia em um

     princípio que, em minha percepção, carece de força lógica. Poderíamos sustentar, em favor do

    conceito do princípio de transferência, que exista uma estrutura lógica no mundo: contudo, tal

     posição seria crença metafísica. Nesse caso, seria um princípio científico? Não. Ou, não sendo

    científico, justificaria nosso uso do princípio para reduzir o problema psicológico da indução

    ao problema lógico? Parece que não; e Popper parece, aqui, entrar em contradição com o

    critério de demarcação que ele mesmo estabeleceu12.

    11Isso na visão de Popper. Mostrarei, mais tarde, que uma metodologia científica falseacionista exclusivamente“dedutiva” é uma ilusão epistemológica. 12Sobre o critério de demarcação popperiano, ver seção 2.2.

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    2.1.5 Certeza e Verdade

    Todo conhecimento científico, de acordo com Popper, está sujeito a um processo de

    crítica permanente. As teorias são conjeturas altamente informativas que, embora não sejam passíveis de verificação, são capazes de resistir a testes rigorosos: embora a posse de uma

    verdade eterna e imutável não passe de sonho utópico, busca-se o processo de sua aquisição:

    testamos pela verdade, eliminando a falsidade.

    As teorias ou são verdadeiras ou são falsas (apesar de não podermos saber quando são

    verdadeiras) 13. Contudo, mostrando que a justificação de inferências indutivas leva a uma

    regressão ad infinitum  e adotando um sistema de investigação dedutivo de corroboração

     provisória, não sabemos e jamais poderemos saber se nossa teoria é, de fato, verdadeira ounão –  a objetividade exigida pela ciência torna inevitável a queda do ídolo da episteme; e toda

     produção científica torna-se eternamente provisória. O procedimento científico, enquanto ato

    epistemológico é essencialmente falível: ―só existe um meio de fazer avançar a ciência: é o de

    atacar a ciência já constituída‖ (BACHELARD14  apud FERNANDES, 1970, p. 367), o que

    fazemos, segundo Popper,no interesse da procura da verdade. Não podemos confundir a

    objetividade da verdade com a ―certeza subjetiva do saber‖: embora a busca da verdade seja o

    objetivo da ciência, nosso saber é conjetural, no sentido de uma maior aproximação daverdade. Por maior que seja nosso sentimento de certeza, esse não é critério para a

     justificação da validade da teoria: ninguém duvidava da validade absoluta da teoria

    gravitacional de Newton até o surgimento da teoria da relatividade de Einstein –  o que mostra

    que podemos melhorar mesmo a mais certa das certezas. Ao descobrir teorias cada vez

    melhores, capazes de se submeter a testes cada vez mais severos, de acordo com Popper

     podemos nos aproximar gradativamente da verdade objetiva.

     A certeza não faz parte da ciência. Diz respeito a um processo subjetivo que, por

    definição, não corresponde à razão: crenças, por mais fortes e bem justificadas que sejam, não

    obedecem a qualquer rigor lógico e são incapazes, portanto, de fornecer razões confiáveis e

    evidentes, em termos teóricos. Determinada teoria  x  não é considerada verdadeira porque o

    cientista que a formulou tem a convicção de que sua hipótese seja correta  –  em ciência, exige-

     13 De acordo com a visão popperiana. Esta asserção será discutida adiante neste trabalho.14 Citação de Bachelard, filósofo francês, contemporâneo de Popper que defendeu a historicidade da

    epistemologia e a relatividade do objeto e que, como Popper, sustentava que o conhecimento científico éconstruído através da constante análise dos erros anteriores. Ver a obra BACHELARD, Gaston.  A Formação doEspírito Científico: Contribuição Para Uma Psicanálise do Conhecimento.  Rio de Janeiro: Contraponto, 1996 e ,do mesmo autor, O novo espírito científico. Lisboa: Edições 70, 1996.

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    se enunciados de evidências empíricas logicamente relacionados entre si. A verdade é real e

    objetiva, embora inalcançável –  o que não deve desanimar-nos pois, de acordo com Popper, se

    o modus tollens  dá a oportunidade aos cientistas de rejeitarem falsidades e não rejeitar

    verdades, então eles podem decidir que as teorias que foram rejeitadas por entrarem em

    conflito com a experiência são falsas, embora nada garanta que as teorias que não foram

    refutadas não o serão a qualquer tempo. O falseamento, assim, na visão de Popper, é

    necessário para o conhecimento positivo, pois nosso conhecimento cresce e é aperfeiçoado

     por um método crítico que nos permite eliminar as hipóteses falsas em relação à evidência

    disponível15.

    2.2 O CRITÉRIO DA DEMARCAÇÃO

    2.2.1 Ciência e não-ciência: uma nova distinção

    Popper considera o problema da demarcação entre ciência empírica e ciência não

    empírica logicamente central em epistemologia. Empiristas tradicionais identificavam a

    indução como único método para distinguir ciências e pseudociências. Empiristas lógicos

    afirmavam que proposições são científicas se puderem ser reduzidas a ―sentenças

     protocolares‖, que seriam as proposições mais elementares compostas somente por termos

    observacionais e cuja validade poderia ser demonstrada pela experiência, por exemplo:

    ―escrevi este texto às 20h58min do dia 07 de setembro de 2012.‖ 

    Ambas as posições são incapazes de demarcar o que é científico e o que não o é, pois

    ambas aceitam que uma base empírica particular é suficiente como critério de verificação de

    um enunciado universal. Ora, se aceitarmos a crítica de Hume à indução, todo conceito ou

    hipótese científica deve ser rejeitada como ―metafísica‖ por não  poder ser empiricamente

    verificada; a pretensão lógica humeana, levada ao extremo, atribui aos sistemas científicos e

    aos enunciados metafísicos um  status  idêntico. Com o critério de demarcação proposto pela

    tradição e levando a sério a crítica humeana, a ciência parece perder seu caráter racional!

    Popper propõe um novo critério que não possua as mesmas falhas lógicas do método indutivo;

    um critério de acordo com a lógica dedutiva que não considere a verificabilidade,  mas a

     falseabilidade de um sistema.

    15  As condições de verdade de uma teoria não se limitam a critérios lógicos. Sobre a validade do métodofalseacionista e sobre o alcance do método crítico, na medida em que os aplicamos à prática científica, ver ocapítulo 6 deste trabalho.

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    Popper reconhece que um sistema só poderá ser considerado empírico ou científico se

    for passível de confrontação com a experiência. A teoria da unificação das forças da natureza

    ou teoria das cordas, por exemplo, que pretende unir as incompatíveis teorias da relatividade e

    a quântica em uma única estrutura matemática, apesar de sua plausibilidade e de ter aberto

    todo um novo espectro de respostas possíveis a questões muito antigas, não é passível de

    teste: toda elegância e apelo matemático da teoria não possui evidência real e nenhuma

     previsão testável, motivo pelo qual é desacreditada. Apesar de a razão ser a estrutura do

    sistema, é a experiência que decide o futuro da teoria. Com tal pressuposto, Popper procura

    solucionar a questão prescindindo-se da indução através de um critério de sentido negativo: a

    falseabilidade. Asserções serão empíricas se houver conjunções finitas de asserções empíricas

    isoladas que a contradigam. Em outras palavras, para ser científico um enunciado ou teoriadeve ter pelo menos um  falseador potencial   –   deve ser logicamente possível um fato que

     possa ser observado e que possa entrar em conflito com a teoria.

    Teorias pseudocientíficas, não científicas ou metafísicas são irrefutáveis, pois nada

     proíbem. A verdade de uma teoria, afirma Popper, contrariamente ao senso comum, não pode

    ser inferida de sua irrefutabilidade, mas da possibilidade de seus enunciados serem decisíveis

    em um único sentido, o negativo; de ser suscetível de comprovação através de tentativas

    sistemáticas e contínuas de falseamento.

    2.2.2 A base empírica: a questão da justificação dos enunciados básicos

    O objetivo da ciência é explicar a realidade. Sendo o sistema científico composto por

    dois elementos –  o empírico e o racional -, Popper se defronta com o problema da justificação

    da relação que une o discurso teórico aos fatos experimentais. Ao problema de saber se existe

    a relação entre fato observável e sistema teórico, Popper chama de problema da ―base

    empírica‖. 

    A tradição positivista de Viena defendia a posição de que existiam sentenças  –   as

    chamadas sentenças protocolares –  que, como já mencionei acima,seriam capazes de traduzir

    com exatidão nossas experiências sensoriais, dado a sua estrutura. Popper não aceita a teoria

     positivista: enunciados observacionais, mesmo os mais ―elementares‖ ou ―atômicos‖,

    transcendem total ou quase totalmente os limites atualmente acessíveis à nossa experiência:

    [...] não há como emitir um enunciado científico sem ultrapassar, em muito, aquiloque pode ser conhecido de maneira incontestável, ‗com base na experiênciaimediata‘. [...] Toda descrição usa nomes (ou símbolos, ou ideias) universais; todoenunciado tem o caráter de uma teoria, de uma hipótese. O enunciado ‗aqui está um

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    copo com água‘ não admite verificação por qualquer experiência observacional. Arazão está no fato de que os universais que nela ocorrem não poderem sercorrelacionados com qualquer experiência sensorial específica. (Uma experiênciaimediata é ‗imediatamente dada‘ apenas uma vez; ela é única.) Usando a palavra‗copo‘  indicamos corpos físicos, que exigem certo comportamento legalóide, e ao

    mesmo cabe dizer com respeito à palavra ‗água‘. Os universais não admitemredução a classes de experiências [...](POPPER, 1993, p. 101).

    Os empiristas acreditavam ordinariamente que a base empírica consistia em

    observações ―dadas‖. Newton, o primeiro criador de um sistema de física teórica, imenso e

    dinâmico, estabelecera o princípio: hiphoteses non fingo. Dados e teorias vêm segura e

    diretamente da experiência e a ela se referem. A noção de espaço absoluto, contudo,

    implicando inércia absoluta, embaraçava mesmo a Newton: não há experiência que possa

    corresponder a tal noção. O caráter fictício dos princípios é evidente quando se observa, na

    história do desenvolvimento científico, teorias radicalmente diferentes que explicavam de

    modo satisfatório os mesmos fenômenos –  as previsões do modelo ptolomaico eram melhores

    que as feitas pelo modelo de Copérnico, além de suscitar menos problemas e de concordar

    melhor com a evidência empírica imediata. Só um insensato colocaria em dúvida o modelo

    astronômico que Copérnico e Galileu demonstraram estar equivocado: fatos já conhecidos e

    explicados foram reinterpretados por uma nova visão de mundo.

    Vê-se então que é a teoria que decide o que iremos observar; os fatos são criados pelateoria, já que os aparentes ―dados‖ são sempre interpretados à luz de concepções previamente

    formuladas e que, portanto, sofrem influência do caráter hipotético de todas as teorias. É

    impossível, assegura Popper, pronunciar sentenças sem pressupor uma regularidade nos

    objetos referidos pelos nomes universais. Os termos ―copo‖ e ―água‖ são disposicionais:

    denotam ―corpos físicos que exibem um comportamento sob  a forma de leis‖  (POPPER,

    1994, p. 423). Isso se aplica a todos os universais descritivos.

    Enunciados básicos, então, não são redutíveis aos dados dos sentidos. Desempenham,contudo, papel vital no empreendimento científico: apesar de todos os termos serem teóricos e

    disposicionais, alguns o são mais do que outros (Idem, p. 424).  Enunciados existenciais

    singulares, formados por termos de alto teor teórico e que dizem respeito à ocorrência de

    eventos observáveis são hipóteses testáveis determinadas no espaço e no tempo; como ―chove

    em Sapiranga no dia 1º de setembro de 2012.‖ Não estamos justificados em demonstrar o

    caráter definitivo da verdade dessa proposição. Enunciados básicos, porém, são assertivas que

     podemos testar com facilidade: determinam se uma teoria é ou não passível de ser falseada;

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    são enunciados falseadores ou corroboradores. São a base empírica dos sistemas científicos,

    satisfeitos por todos os enunciados existenciais singulares e testáveis intersubjetivamente.

    Contudo, como justificá-los? Parece que uma dose de psicologismo econvencionalismo é introduzida aqui. Se exigirmos uma justificação definida em termos

    lógicos, Popper terá que admitir que somente enunciados podem justificar enunciados

    (POPPER, 1993, p. 100). Enunciados básicos são, destarte, falíveis em, pelo menos, dois

    aspectos: referem-se a objetos externos que (adotando, aqui, uma postura não-dogmática)

     podem ou não existir, ou podem possuir características diferentes daquelas apreendidas pelos

    sentidos do observador. Ao mesmo tempo, enunciados básicos, como todos os enunciados, de

    acordo com Popper, são contaminados teoricamente: dependem da interpretação do

    experimentador, e esta, por sua vez, depende da crença e do estado de espírito daquele. Esses

    enunciados básicos não são, portanto, verificáveis, mas são aceitos temporariamente com base

    em convenções previamente estabelecidas pela comunidade científica. Mas como, pergunto,

    aceitar enunciados básicos, que são os agentes falseadores da hipótese, imbuídos de valores de

    verdade, se estes repousam somente em uma decisão consensual baseada nos sentimentos de

    certeza experimentados pelos cientistas que realizam o experimento? É estranho que Popper,

    ao mesmo tempo em que pretende retirar da prática científica todo o subjetivismo, defenda

    uma definição de agentes falseadores que não são passíveis, por sua vez, de falseamento, e

    que são contaminados tanto no sentido psicológico quanto no lógico. Claro, Popper poderá

    retrucar que os enunciados básicos constituem um consenso temporário, porque falíveis. Mas

    como serão testados e provados falsos? Por outros falseadores potenciais, aceitos, também,

    consensualmente? O processo parece levar a um regresso (potencialmente) infinito16.

    2.2.3 A formação de teorias científicas

    Popper não discursou muito sobre como são formadas as teorias científicas. A

     brevidade de suas observações, contudo, não deve nos iludir sobre a importância desse

     processo: adota a mesma posição defendida por Einstein e pela Escola de Copenhague, ou

    seja, a concepção de que as teorias são formadas intuitiva e paralelamente à experiência. A

     justificação desse pressuposto está no grau de compreensão da realidade que podemos

    alcançar com sua ajuda: na medida em que uma teoria confronta-se com a realidade temos

    16O argumento da regressão infinita é utilizado pelo próprio autor em sua crítica à indução e a utilização desta

    como critério e método científico pelos positivistas lógicos. Se Popper não percebeu que os problemas lógicosidentificáveis no Positivismo Lógico de Viena infiltraram-se em seu próprio sistema ou se simplesmenteresolveu ignorar o fato, é impossível dizer. Nada comenta sobre o assunto, nem nas respostas aos seus críticos,nem em sua biografia. A controvérsia será retomada mais adiante, na conclusão deste trabalho.

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    consciência de que uma realidade existe  –   algo nos avisa que nossas hipóteses podem estar

    equivocadas. Por esses e outros motivos, Popper se declara um empirista e um realista.

     Newton nos deixou a impressão de que, em sua física, não fizera suposições outras quenão aquelas exigidas pelos fatos experimentais. Sugeriu-nos que não lançara mão de hipóteses

    e que deduzira seus conceitos básicos e axiomas tão somente dos fatos da experiência. Fosse

    correta sua concepção da relação entre teorias e fatos experimentais, sua física jamais teria

    exigido qualquer espécie de modificação, já que jamais teria levado a resultados que não

    correspondessem ao mundo empírico. Sendo sua teoria consequência dos fatos experimentais,

    sua física estaria acima de qualquer dúvida, sendo tão final e definitiva quanto aqueles fatos.

    Segundo Popper, foi a experiência realizada em 1855 por Michelson e Morley querevelou que a relação entre teorias e mundo empírico é bem diversa da maneira como foi

     postulada por Isaac Newton, pois revelava um fato tal que seria logicamente impossível se as

    concepções teóricas da física newtoniana encerrassem toda a verdade. Experimentos

     posteriores, como o da radiação do corpo negro e o teste de Eddington, vieram a confirmar a

    conclusão da necessidade de adicionar/reformular certos pontos de vista do pensamento

    newtoniano. Em outras palavras, as teorias não são deduzidas por abstração  –   portanto,

    através de métodos lógicos –  das observações experimentais como defendeu Newton (posiçãoque os profissionais da ciência, em geral, aceitaram de bom grado até o século XX): o teórico

    só chega à formulação da teoria por via especulativa.

     No método que o cientista utiliza as inferências não caminham dos fatos à teoria, mas

    fazem o processo inverso: a partir da teoria se assumem os fatos experimentais. O caráter

    fictício dos princípios não é evidente somente porque encontramos exemplos de mudanças

    drásticas na estrutura de sistemas científicos universal e dogmaticamente aceitos, como expus

    acima, mas também porque é possível estabelecer dois princípios radicalmente diferentes que,

    no entanto, concordam em grande parte com a experiência: de acordo com Popper, é fácil

    obter confirmações para quase toda teoria, desde que as procuremos. Daí a importância de um

    método crítico rigoroso e de teorias com formulações abrangentes, livres de estratagemas e

    estratégias ad hoc, precisas e que façam predições arriscadas.

    Assim, portanto, de acordo com Popper as teorias são propostas especulativamente e

    delas são deduzidas as consequências e predições a que dão lugar, por meio das quais as

    teorias podem ser confrontadas com os fatos da experiência. Qualquer teoria faz mais

    suposições que os fatos empíricos, por si mesmos, fornecem ou implicam. Por esta razão é

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    que qualquer teoria, como defende Popper, está eternamente sujeita a ser rejeitada ou

    modificada, quando do advento de novas evidências que sejam incompatíveis com seus

     princípios básicos: a concepção de espaço e tempo absoluto foi refutada pela teoria da

    relatividade restrita, e a causalidade foi afrouxada pela mecânica quântica, já que malogra na

    localização das partículas materiais  –  e tais conceitos são premissas básicas da concepção de

    natureza de Newton, que se conservou por quase dois séculos como guia científico! Não há

    autoridade imune à crítica, e toda teoria permanece indefinidamente provisória.

    A postulação axiomática é, portanto, como afirmou Popper (1999), o ―elemento

    irracional‖ na construção do sistema teórico. Depende da criatividade do cientista. As

    consequências dessa construção serão posteriormente testadas através de confrontações com

    fatos singulares na experiência. Conclui-se então que a ciência é formada por processos

    hipotético-dedutivos de conjetura e refutação; posto que o critério é descobrir qual conjunto

    de suposições teóricas cujas consequências e previsões melhor correspondem com os dados

    experimentais até o momento, em um processo contínuo e crítico de tentativa e erro que nos

    aproxima progressivamente da verdade, tanto falsificando conclusivamente nossa suposição

    quanto confirmando-a até que a pressão dos fatos provoque novas reformulações e

    inovações17.

    2.2.4 O que define a racionalidade científica?

    Os problemas (1) da racionalidade do procedimento científico e (2) da racionalidade

    das teorias e de sua aceitação por parte da ciência são, da maneira como foram apresentados

     por Popper, segmentos do que o filósofo denominou ―problema da demarcação‖ ou ―problema

    de Kant‖18cuja solução, entretanto, está intimamente relacionada ao problema da indução,

    analisado acima.

    Popper admite, com Hume, que a evidência empírica de certos exemplos não permite

    que estendamos conclusões de observação das quais tivemos experiência a outros exemplos

    dos quais não tivemos experiência (passados ou futuros). Inferências indutivas, como

    sabemos, para Popper são inaceitáveis tanto em princípio quanto como instrumento ou critério

     para distinção entre ciência e não ciência, não restando qualquer resquício lógico para a

    17

    Identifico, aqui, o mesmo problema indicado em 2.1.2: como determinar ou justificar hipóteses falseadorasque, contrapostas aos fatos, corroboram-se e falseiam a teoria se os próprios fatos dependem da teoria e nadanos garante a validade da hipótese falseadora?18 Para detalhes, ver POPPER, Karl. A Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo, Cultrix, 1993, p. 34.

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    sustentação de uma generalização que parte de asserções individuais observadas

    empiricamente a qualquer tempo no passado.

    Hume identificava, contudo, um poder psicológico na indução: embora inválido porleis lógicas, desse recurso supostamente fazemos (com êxito!) uso cotidianamente, por força

    do hábito (HUME, 2009, p. 229).Inferências indutivas não podem ser provadas pelo

    raciocínio demonstrativo, já que o que se situa no âmbito do  possível não pode ser

    demonstrado. Não pode, concomitantemente, ser justificada através de um raciocínio

     probabilístico, posto que todo argumento provável baseia-se na suposição de que há uma

    semelhança entre passado e futuro (a justificação do argumento da validade do raciocínio

    indutivo repousa em um processo indutivo, tornando o argumento uma petição de princípio).

    Hume, assim, assume que é o hábito –  a associação fortalecida pela repetição –  o mecanismo

     principal de nosso intelecto, mecanismo segundo o qual vivemos e agimos. O conhecimento

    humano descreveria, na visão humeana, a fé subjetiva nas regularidades com base em

    associações formuladas por hábito ou costume.

    Em uma visão dicotômica, com um padrão estrito do que seja ‗racional‘, se nosso

    conhecimento não é um mecanismo racional, então é irracional. Hume, ao destruir de uma só

    vez o racionalismo e o empirismo19

      torna-se um cético, à luz da tradição racionalista doconhecimento. Embora ele veja a si mesmo como um cético moderado, muitos consideram

    seu ceticismo devastador o suficiente para inviabilizar a possibilidade do conhecimento. Sua

    crítica não pode ser ignorada: Einstein (1981, p. 33), em seu texto em homenagem a Russell

    afirma não entender como, depois de Hume, ―tantos filósofos, em geral bem considerados,

    tenham podido redigir páginas tão confusas e encontrado leitores gratos.‖ As consequências

    da crítica humeana e o que ela representa são, porém, inadmissíveis do ponto de vista

    racionalista da ciência. Muitos se ocuparam, após a publicação do Tratado da Natureza Humana,  em procurar uma solução que satisfaça nossa pretensão de seres racionais. Nesse

    contexto, Popper teve uma contribuição importante na controvérsia, posto que afirmou ter

    resolvido o paradoxo completamente 20 . Segundo ele, nem homens nem animais utilizam

    inferências indutivas em seus processos de raciocínio. Agimos ―de acordo com a razão e não

    com a indução‖; não porque tais inferências são injustificáveis, mas porque não são um  fato: a

    indução, diz Popper, não existe. Certamente, a garantia de Popper não deixa de ser débil,

    19

    Sobre as implicações epistemológicas e ontológicas da filosofia de David Hume, ver POPPER, Karl.Conhecimento Objetivo. Belo Horizonte, Itatiaia, 1999, p. 93.20Nesta opinião, contudo, Popper, como ele mesmo ironicamente comenta em Replies to my Critics, estárelativamente sozinho. Ver SCHILPP, 1967, p. 1090 ss.

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    ainda que busque ser amparada pelo modus tollendo tollens da lógica, a qual, porém, nada diz

    a respeito da exigência da refutação e dos requisitos e de dificuldades próprias do processo de

    falseamento.

    Popper defende que toda a estrutura problemática dos procedimentos indutivos

    desaparece se aceitarmos a falibilidade do conhecimento e sua característica conjetural. Hume

    demonstrara não ser possível formular leis gerais partindo de observações individuais finitas.

    Contudo, o suposto não nos proíbe de recorrer às observações: essas têm a função de  falsear  

    as teorias que formulamos não a partir de dados empíricos, indutivamente, mas anterior e

     paralelamente a eles, intuitivamente, através de um método crítico de conjetura e refutação

    dedutivo  –   onde o modo como o falseamento de uma conclusão acarreta o falseamento do

    sistema do qual ela deriva; método que corresponde ao modus tollens da lógica tradicional:

    Indução por repetição não existe. O que parece indução é raciocínio hipotético, bemtestado e bem corroborado e de acordo com a razão e com o senso comum. Pois háum método de corroboração  –   a tentativa séria de refutar uma teoria quando umarefutação parece provável. Se essa tentativa falhar pode-se conjeturar, em terrenoracional, que a teoria é uma boa aproximação da verdade  –   melhor, de qualquerforma, do que sua predecessora (POPPER, 1999, p. 100).

    Tendo em vista a rejeição do método indutivo em prol do método dedutivo de testes, a

    tarefa do pesquisador científico não é mais procurar confirmações empíricas de umadeterminada hipótese  x  e buscar verificá-la experimentalmente. O cientista deve deduzir

    consequências lógicas e previsões da teoria que sejam passíveis de confrontações com os fatos

    na experiência, submetendo-as a teste na tentativa de refutá-las. Segundo Popper, é a atitude

    crítica  que define a racionalidade humana, que distingue Einstein da ameba: ―[...] Einstein,

    diversamente da ameba, conscientemente tentou o melhor que pôde, sempre que lhe ocorria

    uma nova solução, mostrá-la falha e descobrir um erro nela: abordava suas próprias soluções

    criticamente‖ (Idem, p. 226).

     Não agimos, defende Popper, de acordo com o hábito, mas de acordo com a mais bem

    testada de nossas hipóteses. O falseamento é o procedimento prático que diz respeito ao

    método para manipular os resultados científicos, sendo essa decisão referente à atitude crítica

    do cientista. O teórico não possui boas razões para crer que o resultado de determinada teoria

    seja verdadeiro na concepção clássica do termo, mas o de melhor  aproveitamento do ponto de

    vista de uma busca da verdade ou de verossimilitude (Ibidem, p. 97). Segundo Popper, uma

    vez que não há verificação conclusiva, escolhamos a hipótese que, à luz de testes severos e dadiscussão crítica, mostrar-se a mais bem testada até o momento. Dificilmente será postulado

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    como cético, diz Popper, aquele que crê no progresso contínuo do conhecimento, tornado

     possível pela mais racional das metodologias  –   a da discussão crítica; e que nos permite,

    mediante análises situacionais, aprender com os erros que cometemos21.

    2.3 A LÓGICA DA PESQUISA CIENTÍFICA: A DEDUÇÃO

    2.3.1 Condições para uma explicação científica

    A teoria da explicação científica popperiana diz respeito à meta da ciência, a saber,

     buscar explicações causais para os fenômenos observados no mundo empírico. Oferecer uma

    explicação causal de certo fato  y  significa deduzir um enunciado que o descreva, utilizando

     para tanto premissas dedutivas de uma ou mais leis gerais combinadas com enunciados

    singulares, as condições iniciais. Causalidade, então, aqui, supõe a relação entre os estados de

    um objeto, ou de um sistema de objetos, em diferentes instantes de tempo, tal que se possa

    deduzir   o estado futuro do sistema do conhecimento de seu estado atual, o que pressupõe a

    existência de uma teoria, axiomaticamente construída por (1) enunciados universais e (2)

    enunciados singulares, da qual possa se deduzir predições experimentalmente passíveis de

    falseamento.

    O princípio de causalidade adotado por Popper não deve ser confundido com aconcepção defendida por teses metafísicas indeterministas: diz respeito ao modelo de

    explicação científica que corresponde a uma decisão metodológica 22 que deve orientar o

    cientista a jamais abandonar a procura por leis universais e sistemas teóricos cada vez mais

    acurados; nem abandonar, sob qualquer circunstância, nossas tentativas de explicar

    causalmente os fenômenos. Na procura por explicações, aquilo que o teórico pretende

    explicar Popper chama de ‗explicandum‘. A solução tentada do problema (explicans), isto é, a

    explicação, consiste sempre em uma teoria, em um sistema dedutivo que permite explicar o

    ‗explicandum‘ relacionando-o às condições iniciais. Uma explicação completa consiste em

    demonstrar a derivação lógica do ‗explicandum‘ da teoria reforçada por algumas condições

    iniciais. O esquema lógico básico de toda explicação consiste em uma inferência dedutiva

    cujas premissas consistem em uma hipótese geral e em algumas condições iniciais

    (explicans), e cuja conclusão é o‗explicandum‘. O interesse do cientista pelas predições

    deduzidas do explicandum deve ser entendido como um interesse pela procura da verdade das

    21Sobre a discussão crítica, sua aplicação e justificação na prática científica, ver o capítulo 5 deste trabalho.22Tal sistema de explicação ficou conhecido como modelo nomológico-dedutivo devido aos estudos de CarlHempel. Popper, contudo, não utiliza essa nomenclatura em sua obra.

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    hipóteses que formula, ou seja, pelo seu interesse em testar sua teoria com o objetivo de

    identificar se é possível falseá-la.

    Os sistemas de enunciados científicos são formulações conjeturais que correspondem

     pretensamente a uma realidade objetiva, mas que dificilmente fornecem explicações

    completas e precisas. Para Popper, uma teoria mais abrangente deve corroborar o conteúdo de

    verdade da antiga teoria e corrigir seus erros (como Newton aperfeiçoou as teorias de Kepler e

    Galileu, e como Einstein depois aperfeiçoou a teoria de Newton, por exemplo 23). Contudo,

    apenas supomos que os fenômenos estão submetidos a determinadas leis gerais, pois tais leis

    são descrições conjeturais da natureza que podem ser falseadas a qualquer tempo, posto que

    não temos conhecimento do futuro. Portanto, nenhuma teoria é definitiva e jamais podemos

    estar seguros de demonstrar, através de nossas hipóteses, essências finais da natureza  –  mascada solução encontrada é esfinge fértil de novos enigmas.

    2.3.2 Uma epistemologia exclusivamente dedutiva

    Em termos estritamente lógicos, a conclusão de um argumento não pode ter maior

    extensão ou conteúdo do que sustentam as premissas. Uma proposição científica de caráter

    universal é instanciada por um conjunto de proposições singulares; mas por maior que seja o

    acúmulo de observações, não justifica o ―salto indutivo‖ para afirmações futuras, pois serianecessário recorrer a princípios como ―o futuro é semelhante ao passado‖ ou apelando para a

    ―uniformidade da natureza‖; extrapolando conclusões para casos desconhecidos a partir de

    eventos empiricamente observados, classificados e contados.

    Portanto, a ciência não é sistema de axiomas 24  bem-estabelecidos, verdadeiros ou

    mesmo prováveis. Contudo, o esforço por conhecer e a busca pela verdade continuam a ser as

    razões mais fortes para a pesquisa científica, e Popper propõe um sistema de investigação tal

    de forma que somente a lógica dedutiva seja suficiente para avaliar as proposições científicas,

    onde as dificuldades suscitadas pelo uso das inferências indutivas desaparecem.

    Recorramos ao modelo de Popper para ilustrar como o filósofo austríaco explica o

     progresso científico. O esquema visa demonstrar como ocorre o processo de substituição de

    23A posição de que as teorias indicadas foram aperfeiçoando-se gradativamente corresponde à perspectiva

    popperiana. Outros filósofos da ciência, como Kuhn e Feyerabend, sustentam posições alternativas.24Axioma aqui entendido como pressuposto básico de um sistema, selecionado de maneira tal que os demaisenunciados do sistema teórico sejam derivados do(s) axioma(s) por meio de transformações lógicas oumatemáticas. Nenhuma pretensão de verdade, porém, está implícita no termo.

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    determinada teoria x por outra teoria y, que demonstra melhor se adequar aos fatos do que sua

     predecessora, e porque este processo implica movimento:

    P1 → TT →EE →P2 

    ―P1‖ significa o problema do qual partimos; ―TT‖ é a hipótese proposta com o objetivo

    de resolver o problema; ―EE‖ diz respeito ao processo de eliminação de erros através de testes

    e críticas severas e ―P2‖ representa os problemas que emergiram do resultado dos testes e da

    discussão crítica.

     Não sabemos: só podemos conjeturar (POPPER, 1993). Popper substitui a solução

     psicológica de Hume à indução pelo seguinte pressuposto: em vez de esperar passivamente

     pelas experiências, procuremos, de modo ativo, impor regularidades ao mundo. A

    experiência é o campo de teste, não o ponto de partida. Toda a tentativa de inferir, dedutiva ou

    indutivamente, os conceitos a partir da experiência, está condenada ao malogro. Experimento

    é ação planejada, onde cada passo é orientado pela teoria. Tentemos identificar similaridades

    e busquemos interpretá-las nos termos de leis que ousadamente inventamos, e que nunca são

    dogmaticamente defendidas, mas realizemos o procedimento oposto: procuremos demonstrar

    que nossas antecipações são falsas.

    Um ato de intuição criadora resulta em uma hipótese, iniciada em um contexto de

    conhecimento de fundo. Na tentativa de explicar o observável pelo inobservável propõe-se

    uma resposta hipotética ao problema. Os axiomas que compõem o sistema possuem alto grau

    de universalidade, e enunciados de nível de universalidade menor são deduzidos dos

     primeiros e levam à formulação de predições testáveis empiricamente. Experimentos são

    montados com o propósito de testar as predições. Resultados favoráveis não são considerados

    elementos de prova e demonstração de justificação, mas um encorajamento para continuar

    com a hipótese. O falseamento da conclusão do sistema, contudo, falseia o  sistema inteiro 

    (através do método tradicional de modus tollens) –  teoria e condições iniciais:

    ((t →p). ~p → ~t)

    ―Se p é deduzido de t e se p é falso, logo t também será falso.‖ Observemos que o

    método hipotético-dedutivo que Popper propõe reverte a ordem temporal do procedimento

    indutivo. Pela reformulação do problema de Hume, Popper afirma solucionar o paradoxo da

     justificação das inferências com soluções que se encontram inteiramente dentro da lógica

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    dedutiva, cuja validade é tradicionalmente aceita, posto que, do ponto de vista da dedução, há

    uma assimetria entre verificação e falseamento pela experiência (Idem, p. 23).

    2.4 A INTERPRETAÇÃO POPPERIANA DA PROBABILIDADE

    ―A verdadeira lógica deste mundo é o cálculo de probabilidades.‖ L. C. Maxwell (1831-1879)

    2.4.1 Argumentos contra a probabilidade indutiva

    Popper pretendeu deixar claro em sua obra  A Lógica da Pesquisa Científica (1993, p.

    414) a distinção entre a  probabilidade  de uma determinada hipótese e seu  grau de

    corroboração.  Frequentemente tomamos sentenças como ― x  corrobora h‖ e ― x  torna h 

     provável‖ como tendo o mesmo sentido e, assim, identificamos os dois conceitos  –   erro aoqual sucumbiram estudiosos da probabilidade como Keynes e Kaila 25 . Popper rejeita a

    identidade até então aceita como implícita desses dois conceitos, alegando-os na verdade

    diametralmente opostos: a hipótese melhor, com nível maior de universalidade e corroboração

    é na verdade a mais improvável, posto que graus ou níveis de corroboração não são passíveis

    de satisfazer as leis do cálculo de probabilidades.

    Hume deixara claro que construções indutivas, apesar do papel importante que

    desempenharam na história da ciência, não são dignas de crédito, e o terreno sublime da

    verdade demonstrável sempre exigiria um passo a mais para ser conquistado. Em vista disso,

     procurou-se colocar em seu lugar uma espécie de ―certeza diluída‖, a probabilidade; onde o

    nível de convicção resultante da observação baseada em evidências passadas pode ser descrito

    como o grau de confirmação de uma hipótese com base nas informações coletadas até o

    momento t 26. 

    Inferências estatísticas baseadas na fórmula de Bayes, cujas incertezas são

    modificadas periodicamente após a observação de novos resultados, assumem que a

    corroboração é função da probabilidade. Escrevemos C(h, e) para o grau de corroboração de h

    dado e, e P(h, e) para a probabilidade de h dado e, onde P(h, e) é uma função de

     probabilidade. Então temos

    C (h, e) = P (h, e)

    25

    Ver POPPER, Karl. A Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo, Cultrix, 1993, p. 297-299.26Essa concepção de probabilidade como confirmação da hipótese com base na evidência existente foidefendida por Rudolf Carnap em Fundamentos Lógicos da Probabilidade, 1950. Tanto Popper quanto Humenão admitem esse conceito de probabilidade chamada indutiva.

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    Popper argumenta em  A Lógica da Pesquisa Científica  que o cálculo de

     probabilidades foi desenvolvido em conexão com o estudo do acaso (1993, p. 165). Foi

    formulado, destarte, para a probabilidade estatística e não há quaisquer indicações de que

    devam seguir as mesmas regras formais. Popper negou esta possibilidade e defendeu que o

    grau de corroboração de uma teoria coloca-se na razão inversa de sua probabilidade lógica.

    Para Popper,

    C (h, e) ≠ P (h, e). 

    É de suma importância aqui salientar que Popper não adotou a interpretação

     propensional27 para tais hipóteses, mas escolheu uma interpretação lógica que se distingue da

    defendida por Keynes e Carnap, uma vez que Popper não identifica a probabilidade de h dadoe com o grau de crença racional que deve ser concedido a h dado e.28 Popper defende que a

     probabilidade deve ser atribuída a enunciados universais, ou seja, a proposições da forma

    (∀x)F(x), onde o quantificador se aplica a um conjunto potencialmente infinito de objetos  –  

    tais leis terão sempre grau de corroboração zero, de modo que P(h) = 0. A probabilidade,

    entendida em sua interpretação clássica, onde dividimos o número das possibilidades

    favoráveis pelo número de todas as possibilidades não escapa à crítica humeana à indução:

    ―mesmo após observar frequentemente a constante conjunção dos objetos, não temos razão para tirar qualquer inferência concernente a qualquer outro objeto que não aquele que tivemos

    experiência‖ (HUME, 2009, p. 120).

    Enunciados probabilísticos supõem que o futuro será igual ao passado e, como

    sabemos, nada estabelece essa relação: enleamo-nos então em uma regressão infinita ao

    apelarmos às observações empíricas com o objetivo de justificar as proposições demonstradas

     por cálculos de probabilidade.

    Argumenta Popper, nas seções 82 e 83 da  Lógica, que a situação deve ser examinada

    em termos de  simplicidade  ou dimensão  de uma teoria. Teorias simples, com alto grau

    informativo, dizem tanto sobre os fenômenos que dificilmente as leis que expressam resistirão

    aos testes a que serão submetidas. Quais as chances de uma equação simplíssima como  F =

    m.a, que equivale à segunda lei de Newton29, se aplicar com precisão à série de fenômenos

    27 Ver seção 2.4.4.28

     De acordo com Popper, essa função é desempenhada pelo grau de corroboração da teoria.29 Segunda Lei de Newton: “ A mudança de movimento é proporcional à força motora imprimida, e é produzidana direção de linha reta na qual aquela força é imprimida.” É considerada o princípio fundamental da dinâmica,onde F (força) resulta do cálculo entre m (massa) multiplicada por a(aceleração).

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    estudados por setores importantes da Física, como a mecânica e a dinâmica?  É extremamente

    improvável , assegura Popper. Em contrapartida, sistemas físicos simples, de elevado grau

    informativo e altamente testáveis, possuem grau elevado de corroboração. Predições de

    cartomantes, por sua vez, são tão cautelosas e imprecisas que a probabilidade lógica de se

    mostrarem corretas é extremamente alta, e é quase impossível falseá-las. O produto lógico de

    enunciados gerais, de leis do tipo (∀x)F(x) não tautológicas será igual a zero (P(h) = 0 para

    qualquer h), o que significa que quanto maior o grau de generalidade e corroboração de uma

    hipótese explicativa, decresce e se aproxima de zero o grau de probabilidade do sistema

    axiomático em questão 30 , posto que a corroboração e a probabilidade lógica são, como

    expressa Popper, inversamente proporcionais e o cientista deve, a fortiori,  aspirar por

    hipóteses altamente corroboráveis e de alta improbabilidade prévia.

    2.4.2 É possível falsear enunciados probabilísticos?

    A probabilidade indutiva 31 , segundo a qual para a confirmação de determinada

    hipótese exige-se somente que encontremos um número determinado de proposições

    elementares que possam ser verificadas com certo grau de probabilidade (na sua definição

    clássica, onde em p (x,y), x corresponde às possibilidades favoráveis e yao número de todas as

     possibilidades possíveis) não são passíveis de justificação, de acordo com David Hume.32

     Popper o acompanha nesta posição: enunciados probabilísticos aplicados como critério

    verificacionista, como defendiam os positivistas lógicos, não se justificam pois estendem o

    conhecimento de experiências singulares observadas para outras não observadas, e nenhuma

    estrutura lógica os liga entre si, sendo, portanto, insuficientes para a formulação das

    afirmativas mais importantes em ciência –  as leis universais.

    Como sabemos, Popper propõe um método científico de enunciados axiomatizáveis e

    de proposições lógicas daí deduzidas, as quais passamos pelo crivo experimental com o

    intuito de falseá-las, em um processo crítico de formulação e refutação contínuos, tendo em

    vista o crescimento gradual e não irredutível do conhecimento. Como os sentidos oferecem-

    nos somente resultados indiretos, desenvolvemos nossas teorias por via es