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    ORDEM, HEGEMONIAETRANSGRESSO

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    MINISTRIODAS RELAES EXTERIORES

    Ministro de Estado Embaixador Celso AmorimSecretrio-Geral Embaixador Antonio de Aguiar Patriota

    FUNDAO ALEXANDREDE GUSMO

    Presidente Embaixador Jeronimo Moscardo

    A Fundao Alexandre de Gusmo, instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada aoMinistrio das Relaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaessobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. Sua misso promover a sensibilizao da opinio pblica nacional para os temas de relaes internacionaise para a poltica externa brasileira.

    Ministrio das Relaes ExterioresEsplanada dos Ministrios, Bloco HAnexo II, Trreo, Sala 170170-900 Braslia, DFTelefones: (61) 2030-6033/6034Fax: (61) 2030-9125Site: www.funag.gov.br

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    Braslia, 2010

    Ordem, Hegemonia e Transgresso

    2 edio, Revista e Atualizada

    GEORGES LAMAZIRE

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    Copyright Fundao Alexandre de GusmoMinistrio das Relaes ExterioresEsplanada dos Ministrios, Bloco HAnexo II, Trreo70170-900 Braslia DFTelefones: (61) 2030-6033/6034Fax: (61) 2030-9125Site: www.funag.gov.brE-mail: [email protected]

    Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conformeLei n 10.994, de 14/12/2004.

    Equipe Tcnica:Maria Marta Cezar LopesHenrique da Silveira Sardinha Pinto FilhoAndr Yuji Pinheiro UemaCntia Rejane Sousa Arajo GonalvesErika Silva NascimentoFernanda Leal WanderleyJuliana Corra de Freitas

    Programao Visual e Diagramao:Juliana Orem e Maria Loureiro

    Impresso no Brasil 2010

    Capa:Manabu Mabe, Crculo de Luz150 x 180 cm - 1980

    L215 o Lamazire, Georges.Ordem, hegemonia e transgresso. Braslia :FUNAG, 2010.212p.

    ISBN: 978.85.7631.260-4

    1. Guerra fria. 2. Nova ordem mundial. 3. Regimeinternacional - Conceito. 4. Desarmamento. 5.Conselho de Segurana das Naes Unidas -Resoluo.

    CDU: 327

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    Dedicatria

    Para minhas filhas Christiana e Carolina.

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    A Viva, pela tolerncia com a provisria obsesso de todo redatorde tese.

    A Octavio de Souza, pela amizade antiga e fraterna.Ao Embaixador Marcos Castrioto de Azambuja, pela iniciao aos

    meandros das Naes Unidas.Ao Embaixador Celso Lafer, pelo estmulo constante e pela leitura

    atenta e generosa da tese original.Ao Embaixador Ronaldo Mota Sardenberg, pelos comentrios crticos

    que muito enriqueceram a arguio.Ao Embaixador Gelson Fonseca Jnior, pelo dilogo sempre

    inteligente e amigo.

    Agradecimentos

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    Sumrio

    Apresentao, 11

    Introduo, 17

    1. O fim da Guerra Fria e a noo de nova ordem mundial, 211.1. A invaso do Kuaite e o contexto ps-Guerra Fria, 251.2. O papel das Naes Unidas no perodo ps-Guerra Fria, 311.3. Segurana, desarmamento e no proliferao na nova ordem, 331.4. Unipolaridade e multipolaridade, 35

    2. O conceito de regime internacional e o regime de no proliferaode armas de destruio em massa, 452.1. Regimes de segurana cooperao com desconfiana, 572.2. O regime de no proliferao de armas de destruio em massa, 602.3. Caractersticas do regime, 652.4. Diferenas entre os sub-regimes, 70

    3. A resoluo 687 (1991) do Conselho de Segurana das NaesUnidas, 753.1. Consideraes preliminares, 753.2. A questo da disciplina, 82

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    3.3. O desarmamento do Iraque, 833.4. Outras disposies relevantes, 953.5. Uma comparao histrica, 97

    4. A experincia da UNSCOM na implementao da seo C daresoluo 687 (1991), 1034.1. A constituio da UNSCOM, 1054.2. A implementao das resolues pela UNSCOM, 1064.3. Descrio e relato das principais atividades da UNSCOM, 1094.4. Observaes sobre a experincia da UNSCOM, 1274.5. O caso iraquiano e as salvaguardas da AIEA, 1294.6. O papel do Conselho de Segurana na rea de no proliferao, 133

    5. A diplomacia brasileira e o papel renovado do Conselho, 145

    Concluses, 155

    Anexo I - Resolues pertinentes do Conselho de Segurana, 161Anexo II - A questo da verificao, 171

    Anexo III - O contexto estratgico da no proliferao, 183

    Bibliografia, 193

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    Apresentao

    Revisitar um trabalho acadmico na rea de relaes internacionais quinzeanos depois quase sempre uma experincia ambgua, mormente quando oleitor o prprio autor. Erratas to imaginrias quanto tardias proliferam aolongo da leitura. As teorias utilizadas j no so as mais atuais, nem talvez as

    mais relevantes. A conjuntura internacional, obviamente, outra, derrogandocertezas com sua autoridade retroativa. Algumas tendncias confirmaram-se,outras no. A tentao do anacronismo constante. O que pode ficar de umestudo como este, tanto tempo depois, que justifique minimamente umareedio?

    Os fatos, em primeiro lugar, que coligidos em seu momento, espera-se,com alguma objetividade, ainda guardam evidncia e pregnncia, para almde qualquer positivismo. Em segundo, as percepes ou concluses, quesobrevivem menos claramente. No entanto, como se sabe, de tudo fica umpouco. Por isso, um punhado delas segue abaixo, para registro e tambmpara servir de guia a quem se aventurar nas muitas pginas que se seguem aesta introduo.

    A primeira concluso a sublinhar seria a identificao da hegemonia,sobretudo, como capacidade de liderana na cristalizao de regras queordenaro os aspectos polticos, estratgicos e econmicos no mbitointernacional - para no dizer tambm domstico. Como afirma explicitamenteo texto, "finalmente, este trabalho buscou sublinhar o fato de que o poder

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    define-se cada vez mais como a capacidade de promover valores, normas emecanismos institucionais que sejam aceitos pela comunidade internacional" (p.149). O poder militar segue relevante, mas s pode ser exercido dentro de umquadro mnimo de regras de legitimao no necessariamente de legitimidade que passam pelas organizaes internacionais efetivamente multilaterais, mas chegaat a nveis inferiores, porm ainda parcialmente eficazes, de persuaso, comoorganizaes regionais, alianas de geometria varivel, consensos provisrios deparcelas da opinio pblica mundial, campanhas na mdia, etc,1,2.

    Vale acrescentar agora alm das dvidas inevitveis, a qualquer tempo,sobre a real universalidade ou generalidade dos interesses apresentados pelolder hegemnico que perodos de transio e crise parecem particularmentepropensos a uma deslegitimao de hegemonias, na medida em que o ldertorna-se cada vez mais "particular" em seu ponto de vista sobre o mundo.

    A segunda concluso digna de meno diz respeito ao carter da atuaoprecpua do Conselho de Segurana das Naes Unidas, que se situa noterreno da ao, ou reao, frente a ameaas paz e segurana internacional,no da avaliao jurdica de direitos ou obrigaes3 . Como diz o comentrio

    1 Esta () capacidade de liderana na definio de regras que ordenaro os aspectos polticos,estratgicos e econmicos da vida internacional remete ao conceito de hegemonia, ao qual

    recorreremos ao longo do trabalho, aproveitando dois de seus sentidos explorados pela literatura,o de hegemonia com forte componente de superioridades efetiva em recursos de poder militar c/ou econmico, prevalecente na academia norte-americana; e o de hegemonia como capacidade degerar consentimento dos liderados, que se aproximaria mais do seu uso em Gramsci tal comorecuperado por Cox (1993). claro que ambos os conceitos convergem, c que nem o primeiroprescinde do elemento ideolgico, nem o segundo da possibilidade de recurso em ltima instncia fora. .(p. 28)2 There is a close connection between institutionalization and what Gramsci called hegemony.Institutions provide ways of dealing with conflicts so as to minimize the use of force. There is anenforcement potential in the material power relations underlying any structure, in that the strongcan clobber the weak if they think it necessary. But force will not have to be used in order toensure the dominance of the strong to the extent that the weak accept the prevailing powerrelations as legitimate. This the weak may do if the strong see their mission as hegemonic and notmerely dominant or dictatorial, that is, if they are willing to make concessions that will secure the

    weaks acquiescence in their leadership and if they can express this leadership in terms of universalor general interests, rather than just as serving their own particular interests. (p.38)3 Ao comentar tanto a velocidade com que o Conselho passa das medidas econmicas aorecurso fora, como o carter discriminatrio que alguns observadores atribuem a seu ativismonessa ocasio, em contraste com outras similares, Sur desenvolve anlise sobre a natureza doConselho de interesse para este trabalho: Sagissant enfn du caractre discriminatoire delintervention du Conseil, on peut rappeler, mme sil faut le dplorer, que la Charte ne garantitpas une galit de traitement des Etats ni mme des situations sur la base de critres matriels.

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    do texto citao de Serge Sur reproduzida em nota de p de pgina, "adescrio do Conselho de Segurana como no relevando de um Estado dedireito aponta para a diferena entre uma ordem baseada na segurana deuma outra possvel baseada no direito." (p. 69)

    A terceira concluso, baseada em anlise do diplomata e especialista suecoJohan Molander, antecipa traos de comportamento que puderam serconfirmados quando da discusso, no Governo do segundo Presidente Bush,sobre a existncia ou no de armas de destruio em massa no Iraque. Molander,ao analisar a atuao da UNSCOM (United Nations Special Comission) noIraque, enfatizava que "as comunidades de informao recebiam positiva eimediatamente novas e inesperadas descobertas, mas demonstravam umatendncia a resistir a descobertas negativas". (p. 117 e 118)

    Uma quarta concluso que vale mencionar seria aquela que diz respeito relevncia da obteno de um assento permanente no Conselho deSegurana das Naes Unidas por parte do Brasil. O trabalho explora vriosargumentos favorveis a essa postulao, tais como o de que a participaoem todos os foros da governana mundial essencial para garantir voz e votonas modificaes de regras e padres em curso na ordem mundial, elementoessencial do exerccio individual ou coletivo, unipolar ou multipolar, da hegemonia,tal como apontado na primeira destas concluses4; o de que a presena de um

    Estado menos poderoso no Conselho no traz apenas riscos, mas tambmoportunidades5; e o de que a atuao do Conselho crescentemente extrapola a

    II appartient au Conseil d apprcier discrtionnairement si une situation donne constitue unemenace ou une rupture de la paix qui justifie une action, et quelles sont les modalits de cetteaction. En dautres termes, la Charte institue au profit du Consel un Etat de police et ne cre pasun Etat de droit. (sublinhado pelo autor, 1992, p. 7) (p.68)4 A leitura dos expedientes enviados pela Delegao neste perodo sugere a observao de quea ausncia do Conselho restringe a capacidade de obter informaes e dilui a prpria necessidadede definir uma posio doutrinria ou poltica a cada momento da evoluo do tratamento daquesto. () Esta constatao seria um argumento adicional a instruir a meta brasileira de obterassento permanente no Conselho de Segurana. Tenha este rgo ou no a capacidade e avocao para atuar com base em precedentes, no h dvida que a se testam e se impem

    conceitos e prticas que, direta ou indiretamente, afetam a ordem internacional e o mundo emque se move a diplomacia brasileira. No estar no Conselho significa ter menos informao - pormais que se desdobrem os agentes diplomticos brasileiros para consegui-la indiretamente - esobretudo ter menos capacidade de influncia na conformao das regras que vo balizando aconvivncia internacional. (p. 136)5 Um ponto adicional que cabe registrar e o de que, em contraste com a percepo ingnua daquesto, a presena no Conselho permite muitas vezes fazer um linkage invertido, do maisfraco para o mais forte. Se um voto dissidente de um Estado menos poderoso pode-lhe trazer

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    mera gesto de casos concretos, apontada acima, para almejar um papel deformulador, de "legislador", e de criao de "precedentes", ainda que polticose no estritamente jurdicos, que ter sempre grande impacto para a maioriados estados, mesmo aqueles no envolvidos diretamente na questo emdiscusso6.

    Uma quinta e ltima concluso, esta relativa ao campo estrito e, paramuitos, abstruso da verificao de acordos de desarmamento, no sentidode que a verificao na verdade no verifica. O trabalho cita especificamentetrecho de Serge Sur e as teorias de Karl Popper para melhor enquadrar essaquesto7. Essa idia, primeira vista absurda para o senso comum, subjaz sdificuldades ou mesmo impossibilidade de algum ator internacional provarcabalmente que no possui armas de destruio em massa, o que torna adiscusso de tais casos, que vm ocupando h dcadas o centro do debateinternacional, to interminvel como inconclusiva.

    problemas, em contrapartida os Estados mais fortes buscaro muitas vezes aproximaes emfuno da necessidade de contar com seu apoio. A participao - ainda que enquanto no-protagonista - do processo decisrio traz, portanto, riscos e oportunidades. Se isso j ocorre emalguma medida quando um Estado est na condio de membro no-permanente, ocorre commuito mais vigor na de membro permanente. Em suma, a presena no Conselho aumenta acapacidade de interlocuo propriamente diplomtica do pas envolvido. (p. 137)6 O terceiro ponto aquele que apresenta relevncia direta para leste trabalho. 0 aspecto

    mais ambguo da nova fase na atuao do Conselho radica nessa capacidade de criardireito, no necessariamente em seu sentido estritamente jurdico, mas seguramente nocampo da efetividade poltica. Para um pas como o Brasil - que reconhecidamente nopossui inimigos, que no tem controvrsias internacionais por dirimir e que portanto notem o que temer de decises tpicas sobre assuntos de seu interesse nacional direto -, oaspecto mais preocupante do novo Conselho de Segurana seria sua crescente tendnciaa legislar e intervir em temas globais como no-proliferao, meio ambiente e direitoshumanos, entre outros. Mesmo que, por sua natureza, as resolues do Conselho sedirijam a situaes especficas e no constituam normas aplicveis a terceiros - at mesmopor seu carter de rgo de exceo -, no h dvida que elas podem inovar, estabelecerprecedentes, determinar agendas e, por fim, criar um clima poltico-ideolgico que favoreacertas interpretaes da realidade e no-outras. Este carter, talvez no de precedente,mas seguramente de referncia importante, foi sempre bem apontado pela Delegao emNova York na documentao aqui aludida..(p. 142 e l43)7 Le plus souvent, la vrification est un processus ngatif, en ce quelle aboutit ne pas tablirla preuve quun comportement donn a t suivi - ainsi on ne peut dmontrer quil n y a pasdarmes de destruction massive dans 1espace, et la verification se satisfait de ne pas apporter lapreuve inverse. (Sur 1988, p. 9) Em termos de filosofia e lgica da cincia, segundo Karl Popper,isto significa que apenas possvel falsificarenunciados universais, nunca verific-los, poissempre pode surgir um enunciado particular - um dado - que contrarie a afirmao universal (parauma tentativa de aplicao dos conceitos popperianos defalsificao cfalsificabilidade rea daverificao de acordos de desarmamento, ver Lamazire, 1990). (p. 167)

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    As percepes acima mencionadas esto entre aquelas quepermaneceram razoavelmente relevantes entre 1995, quando foi defendidano Curso de Altos Estudos (CAE) do Instituto Rio Branco a tese que deuorigem a este livro, e 2010. Muitas outras perderam fora, ou foramdesmentidas pela evoluo constante e sempre imprevisvel da realidadeinternacional. Espera-se indulgncia, entretanto, com o fato de que o autortenha preferido listar as primeiras e deixado ao leitor a tarefa de identificar assegundas.

    Georges Lamazire

    Braslia, 10 de setembro de 2010

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    Introduo

    Ao final dos anos oitenta, duas tendncias se manifestaram com crescentevigor na cena internacional: o recurso s Naes Unidas e, sobretudo aoConselho de Segurana, para o encaminhamento de conflitos antesaparentemente insolveis; e a aceitao, primeiro pelo ento bloco socialista

    e logo pelos no alinhados, de acordos de desarmamento, bilaterais oumultilaterais, que comportavam medidas de verificao cada vez maisintrusivas(*) 1.

    (*) Edward Ifft observa que: The point of this brief historical survey is that, although OSI [on-site inspection] was accepted in some forms in earlier agreements, it fell far short of the reallyintrusive OSI which has become the norm in the 1990s. In fact, it was largely a stumbling blockin international negotiations until the mid 1980s. At that time, the real breakthrough was madein the INF Treaty, followed by the Protocols to the Threshold Test Ban and Peaceful NuclearExplosions Treaties, two US-USSR agreements on Chemical Weapons, the CFE Treaty, theSTART Treaty, the Open-Skyes Treaty, the Vienna Document, and the Chemical WeaponsConvention, completed in 1992 at the Conference on Disarmament in Geneva. (Ifft, in Dahlitz,1994, p. 14) Cabe observar que nesse conjunto de acordos a maioria bilateral (EUA/URSS);

    trs se deram entre alianas militares ou no contexto de organizaes regionais; e apenas um, aconveno qumica, constitui um acordo multilateral universal.1 Bernauer (1993) mostra esta evoluo no que se refere s armas qumicas: Significant progresswas made in the second half of the 1980s, particularly after 1987 when the positions of theformer Socialist countries and Western countries on international verification compliance withthe projected treaty-obligations converged. (Bernauer 1993, p. 2) Cabe acrescentar que aretirada do ento bloco socialista deixou a descoberto o Grupo dos 21, que reunia os pases nopertencentes a nenhum dos blocos, e a China em sua reticncia quelas medidas.

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    Aps a invaso do Kuaite pelo Iraque, em agosto de 1990, e ao longodo processo que leva resoluo de cessar-fogo resoluo 687 (1991) e criao da Comisso Especial das Naes Unidas (United NationsSpecial Commission-UNSCOM), esses dois processos convergem de formaemblemtica.

    O Conselho de Segurana das Naes Unidas aprova uma srie deresolues sob o Captulo VII de carter praticamente indito, culminando,em um primeiro momento, com a autorizao aos Estados-membros parao (1990) e, mais tarde, obtido este resultado, com a imposio de umconjunto de severas medidas ao Estado invasor atravs da resoluo 687(1991).

    Esta ltima prescreve, em particular, medidas de desarmamento comrelao a armas de destruio em massa e seus vetores de lanamento, emedidas de verificao de alto grau de intrusividade, nunca antes adotadasde modo unilateral e coercitivo, ao amparo do Captulo VII da Carta e dandoao Conselho e a seu rgo subsidirio todos os poderes para suaimplementao.

    A resoluo 687 (1991) cria, portanto, novas perspectivas e interrogaesna rea de no proliferao de armas de destruio em massa. Seu efeitopotencial no se limita dissuaso de eventuais Estados agressores ou

    proliferadores, pois influencia tanto os mecanismos de controle dastransferncias internacionais de tecnologias sensveis como a verificao dosacordos de desarmamento, temas de grande relevncia para a comunidadeinternacional e para a diplomacia brasileira.

    A discusso sobre o reforo do sistema de salvaguardas da AgnciaInternacional de Energia Atmica (AIEA) seria um exemplo. Outro, a maiorlongo prazo, seria o conjunto de propostas que vo surgindo no sentido deum envolvimento maior do Conselho de Segurana em temas de desarmamentoe, sobretudo, de no proliferao.

    por esta razo que este trabalho escolheu centrar-se, dentre o conjuntode temas suscitados pelo chamado segundo conflito do Golfo ativao do

    sistema de segurana coletiva da Carta das Naes Unidas; direitos humanos;meio ambiente , no tema das medidas de desarmamento e verificaoimpostas ao Iraque e sua repercusso no regime internacional de noproliferao de armas de destruio em massa.

    A relevncia desta discusso talvez seja acrescida pelo fato de quasetoda a literatura acadmica sobre o assunto como de resto sobre segurana,

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    IINTRODUO

    no proliferao e desarmamento2 provir dos pases industrializados eperceber a questo com vis particular.

    A resoluo 687 (1991), ademais, marca o importante momento doperodo denominado de primeiro ps-Guerra Fria , marcado pelo otimismoe pelas expectativas de construo de uma nova ordem mundial. Se hojeestas esperanas parecem prematuras e o carter demasiado ambicioso daprpria expresso tornou-se ponto consensual, importa sublinhar dois fatosque escapam a este destino.

    De um lado, para um Estado determinado, o Iraque, as medidas entotomadas permanecem vigentes. De outro, o processo de reforo do regimede no proliferao de armas de destruio em massa adquiriu desde entoimpulso aparentemente irreversvel, contando simultaneamente com a adesoquase universal ao Tratado de No proliferao de Armas Nucleares (TNP)e a norma que ele consagra; e com os meios de assegurar seu cumprimento,(enforcement) evidenciados pela ao do Conselho de Segurana no casodo Iraque.

    Cabe aqui preliminarmente retomar a fecunda distino com que trabalhaCelso Lafer (1995) entre trs campos do estudo das relaes internacionais:o estratgico-militar que aqui denominaremos mais geralmente de campoda segurana correspondente ao tema da paz e da guerra e da

    sobrevivncia dos Estados como unidades independentes; o campoeconmico, alusivo ao que representa um pas para outro como mercado;e o campo dos valores, relativo s afinidades e divergncias quanto sformas de conceber a vida em sociedade. Poderamos considerar os doisprimeiros como correspondendo a dois subsistemas do sistema internacional,e o terceiro como uma dimenso que atravessa tanto o espao da seguranacomo o da vida econmica.

    2 interessante notar que o prprio termo desarmamento toma matiz diverso conforme osautores. Conceito caro aos estados perifricos e aos menos armados, recorda a certos pases

    polticas de appeasement de triste memria, ou mesmo a ideia de um pacifismo utpico eingnuo. Como aponta Julie Dahlitz: ... the word disarmament carries very differentconnotations in the various languages. In some languages it refers to all types of de-weaponizationand anti-proliferation without denoting any side inference. Unfortunately, in the English language,it stubbornly carries the inference oftotal and immediate abandoning all defenses, as in the verbto disarm and the adjective disarming implying a defenseless vulnerability. That would bethe antithesis of common security, the acknowledged universal objective of weaponselimination (Dahlitz, in Dahlitz, p. 2).

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    Na resoluo 687 (1991) entrecruzam-se, por sua vez, trs dimensesrelevantes do subsistema de segurana, dentro do sistema internacional: a) asegurana internacional propriamente dita, que pode por sua vez ser divididaemsegurana coletiva, conforme o mecanismo inscrito na Carta, no CaptuloVII; e defesa coletiva, enquanto implementao do direito de legtima defesaindividual ou coletiva previsto igualmente na Carta (OTAN), em seu artigo51; b) o desarmamento, conceito mais carregado de conotaes reformistase utpicas promovido, sobretudo, historicamente e no exclusivamente pelosestados mais fracos na ordem internacional com base em ideais de igualdadee paz; e c) a no proliferao de armas de destruio em massa, polticaessencial para a preservao da hierarquia internacional e, portanto para seuspromotores, pressuposto da manuteno da ordem.

    A no proliferao, entretanto, que era vista tradicionalmente pela maioriada comunidade internacional como um simples captulo, parcial e provisrio,do processo de desarmamento, vem sendo tratada como uma meta autnomae suficiente. Alguns autores j passam a recorrer, inclusive, ao termocontraproliferao (counterproliferation) para identificar medidas maisenrgicas de no proliferao.

    No caso da resoluo 687 (1991), em nome ao mesmo tempo dasegurana internacional e da no proliferao que se procede ao

    desarmamento de um s pas, fazendo claramente deste processo um eventoparadigmtico e pedaggico.Uma questo, alis, que atravessa o debate sobre a resoluo 687 (1991)

    e a Comisso Especial das Naes Unidas (UNSCOM) a de saber seconstituem precedente para aes similares; e se anunciam um papel crescentedo Conselho de Segurana nesta rea to sensvel. Esta avaliao ser feitaao longo do trabalho, mas, sobretudo, na seo 4.6.

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    As foras iraquianas invadiram o Kuaite s 4 horas do dia 2 de agostode 1990. Em pouco mais de um dia, a resistncia militar kuaitiana haviacessado, o Governo kuaitiano havia fugido para a Arbia Saudita e SaddamHussein tentava apresentar ao mundo umfait accompli2. A ocupao militar

    do Kuaite durou 210 dias. Terminou ao fim da primeira guerra, plenamentetecno-estratgica, em que o papel da informtica, das armas inteligentes edos meios de comunicao globais foram fundamentais3.

    A invaso do Kuaite pelo Iraque e a reao internacional que se seguiuinscrevem-se de maneira central no contexto do perodo que se convencionoudenominar de ps-Guerra Fria. Tornou-se lugar-comum apontar que os

    1. O fim da Guerra Fria e a noo de nova

    ordem mundial1

    1 Mantemos a expresso nova ordem mundial entre aspas para frisar o carter retrico damesma, surgida em um contexto histrico preciso e proposta por determinados atores polticos.2 Para uma pormenorizada e abrangente anlise do desenrolar dos acontecimentos, ver Matthews(1993).3 Como diz Der Derian: For six weeks and one hundred hours we were drawn into the mostpowerful cyberspace yet created, a technically reproduced world-text that seemed to have noauthor or reader, just enthusiastic participants and passive viewers. This is not to reify or deifysome new technological force in our society. But it is to recognize the possibility that we havebecome so estranged from the empty space left by the decline of American hegemony and theend of the Soviet threat that we eagerly found in cyberspace what we could no longer find in thenew global disorder comfort and security in a superior techno strategy (Der Derian, 1992, p.175).

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    eventos de 1989 e 1990 desarticularam a estrutura bipolar Leste/Oeste quedominava as relaes internacionais, sobretudo no terreno poltico-militar-estratgico, mas com evidentes efeitos tambm na rea econmicaengendrando o que Lafer e Fonseca Jr. (1994) chamaram deperodo das

    polaridades indefinidas; inverteram a prioridade entre os nveis estratgicoe econmico nas percepes dos atores internacionais; e deslocaram para oeixo centro/periferia4, mais em um mbito simblico do que efetivo, o contrasteentre as aglutinaes de interesses no plano internacional que antes cabia aoeixo Leste/Oeste.

    Este novo quadro internacional produziu efeitos de diversa intensidade eexpresso, alguns deles aparentemente paradoxais. A imploso do sistemasovitico na ex-URSS e em seus aliados da Europa Central e Oriental, sepor um lado sacramenta uma srie de acordos internacionais que marcam ofim da Guerra Fria acordos CSCE, CFE, dissoluo do Tratado de Varsvia, por outro engendra conflitos de carter tnico-religiosos que pulverizarama ordem estatal antes vigente em vrias partes daquelas regies.

    Neste contexto, os EUA e o Ocidente surgem de modo evidente comoos vencedores da Guerra Fria . Como enfatiza Rubens Ricupero (1994), aaliana ocidental permanece de p, a oriental se desfaz o Tratado deVarsvia se autodissolve em abril de 1991; o sistema poltico-econmico

    ocidental fica intacto e sai revalorizado, enquanto o sistema sovitico capitulano plano dos valores, para ser mais adiante simplesmente abandonado5.

    4 Adotou-se ao longo do trabalho a oposio centro/periferia, seguindo sugesto encontrada emBuzan: Although South is a better term than Third World, the best available ser of terms tocapture the relationships of the 1990s comes from the centre-periphery approach elaboratedin the dependency literature of the 1960s and 1970s. Centre here implies a globally dominantcore of capitalist economies; periphery a set of industrially, financially and politically weakerstates operating within a set of relationships largely constructed by the centre. (...) This approachcaptures the key elements of hierarchy that now shape international relations, withoutnecessitating recourse to misleading geographical images (Grifo nosso, Buzan, 1991, p. 4232)5 Hippler: Gorbachevs speech to the United Nations in December 1988 bore testimony to the

    ideological surrender of the second superpower (1994, p. 45) No esta a avaliao de Weisset alli, mais matizada: Gorbachev officially redefined the Soviet Unions relationship with theUN in 1988 at the General Assembly, calling for an extension of his domestic new thinking toapply to the management of international conflicts. The shift in Soviet policy resulted from thecountrys need to withdraw support from numerous conflicts and concentrate on economicreform. (...) UN peacekeeping provided a face-saving means to withdraw from what Gorbachevdescribed as the bleeding wound of Afghanistan (Grifo nosso, Weiss, 1994, p. 60). Hippler,contudo, concorda com a motivao das reformas: The aim of Gorbachevs policies was to

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    Este quadro, qualquer que seja o matiz que se deseje emprestar anlise,do triunfalismo de um Fukuyama moderao de analistas mais prximos,como Ricupero (1994) e Lafer e Fonseca Jr. (1994), no permite outraconcluso geral a no ser reconhecer um predomnio incontrastado dos pasescentrais, e norte-americano em particular,no tabuleiro estratgico-militar-geopoltico, o que leva a uma situao de unipolaridade6 segundo alguns, euma multipolaridadeno plano econmico, alis, em grande parte j presenteantes da fragmentao do polo sovitico7, 8.

    Independente da anlise precisa que se faa deste perodo, conclusocorrente que, pelo prprio fato de que o fim da Guerra Fria no marcou umaderrota militar tradicional como a napolenica e as alems de 1918 e 1945

    introduce economic reforms to prevent the USSR from sinking to the level of a developingcountry. With this in mind he consciously accepted that the Soviet Union had to give up itsposition as a world power (Hippler, 1994, p. 48). As reformas gorbachevianas no conseguiramnem uma coisa nem outra.6 Celso Nunes Amorim, em palestra como Ministro das Relaes Exteriores, observou compropriedade que o conceito padece de uma contradio implcita, pois a ideia de polo implica aomenos dois. O termo, apesar disso, ser utilizado ao longo do trabalho tendo em vista seu usocorrente na literatura sobre o ps-Guerra Fria e a ausncia de alternativas.7

    preciso dizer que a ideia de uma bipolaridade declinante no plano militar talvez refletissemelhor o estado real da distribuio dos recursos do que o conceito de unipolaridade. A Rssiaainda uma superpotncia no plano nuclear e mesmo convencional. O que falta Rssia e sobraaos EUA vontade poltica para usar os recursos militares. isso que define a unipolaridadecomo retrato do momento estratgico. Cabe enfatizar que mesmo a suposta colaboraoprivilegiada EUA-URSS de que falava Baker em outubro de 1990 (Baker James, American-Soviet Cooperation Regarding Regional Conflicts Necessary, USIS wireless file, 24 October1990, pp. 6, 4, citado por Hippler, 1994, p. 64) para combater new threats to the emergingWorld Order no sobreviveu muito Guerra do Golfo, quando foi instrumental os EUAnecessitando aval, a URSS necessitando credibilidade. A parceria no prosperou, sobretudoporque os novos problemas caam nas reas de influncia tradicionais de cada um: no Haiti, osEUA no precisavam da Rssia: na ex-Iugoslvia, os interesses cedo divergiram; e na reacorrespondente a ex-URSS ou atual Rssia, os EUA evitavam maior envolvimento.8 A ideia de multipolaridade duvidosa, como dizia Nye, bem verdade que em obra de 1990.

    Em primeiro lugar, os atores envolvidos no apresentam recursos de poder equivalentes emtodas as categorias; e em segundo lugar, como observava Stanley Hoffmann, a multipolaridadetradicional provinha de uma distribuio igualitria dos poderes de coero, enquanto opolicentrismo atual resulta da desvalorizao da capacidade de poder coercitiva (Nye, 1990, p.235). Ao contrrio das velhas balanas de poder, os atores centrais agora no tm nem de longecapacidades militares equivalentes o que, Nye tambm recorda, no seria desejvel, tendo emvista os riscos inerentes a um equilbrio de poder com vrios polos, com sua flexibilidade namudana de alianas, em uma era marcada pela possibilidade de acesso a armas nucleares.

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    , no surgiram grandes propostas de reconstituio do mundo. (Lafer eFonseca Jr., 1994)

    Pode especular-se que isso no ocorreu, por que: 1) esperava-se que osistema de segurana coletiva das Naes Unidas impedido de operar pelaguerra fria pudesse agora ter sua eficcia comprovada; 2) a conhecidadesconfiana anglo-saxnica para com projetos constantes de reformasconstitucionais manifestava-se atravs de um desejo de adaptao mais doque de reforma e ou de revoluo9; e 3) a potncia hegemnica ao fim da 2a

    guerra, promotora das instituies de So Francisco e Breton Woods, saade novo hegemnica ao menos em face de seu principal desafiante e comas qualificaes correntes do ps-Guerra Fria , e no tinha, portanto,motivos ou interesse em maiores reviravoltas10.

    essa a apreciao de Rubens Ricupero, quando demonstra que a no-discusso de forma institucional de uma nova ordem, em processo formal,como no Congresso de Viena e nas negociaes de Versalhes e SoFrancisco, que marcam etapas de ampliao, democratizao euniversalizao do processo decisrio, se deve a dois fatores. O desenlaceno-militar da Guerra Fria deixa de p por algum tempo as estruturas bsicasdo Estado sovitico permitindo prorrogar a fico de seu status desuperpotncia; por outro lado, a democratizao e a universalizao do

    processo decisrio mundial aparentemente atingiram o limite tolervel pelosistema de poder, ao menos por ora, com a proliferao de Estados que seseguiu descolonizao afro-asitica e, mais recentemente, desintegraoda ordem territorial europeia e centro-asitica imposta pelos soviticos.(Ricupero, 1994, p. 81)11

    9 Rubens Ricupero se refere ao processo ps-1989 dizendo que: ... em lugar de codificaesnapolenicas cartesianas e acabadas, o processo mais o da Common Law ou da constituioinglesa, em que o edifcio vai sendo erguido pragmaticamente, tijolo a tijolo (Ricupero, 1994, p. 81)10 Como indica Gilpin: Individuals, groups, and other actors use their powers to create socialand political institutions that they believe will advance their interests. Thus the objectives of asocial or political institution primarily reflect the interests of its more powerful members.

    When these interests or the relative powers of individuals (or of groups and states) change,there will be attempts to change the nature of the institution and its objectives in order to reflectsignificant changes in interest and power (Gilpin, 1981, xi).11 Gilpin fala com propriedade que os tratados negociados ao fim das grandes guerras dacivilizao europeia serviram como constituies dos sistemas interestatais (Gilpin, 1981, p.36). dele tambm a iluminadora diviso dos tipos de mudana internacional entre: 1) mudanade sistemas correspondente diferena na natureza dos atores (imprios, cidades-estados,estados-nao); 2) mudana sistmica mudana em qual Estado governa o sistema e

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    Deixando para mais adiante a discusso do carter unipolar ou multipolardo sistema internacional assim definido, bvio que o refluxo militar esobretudo ideolgico do ex-campo socialista ensejou uma clara e intensificadahegemonia dos valores ocidentais e tornou desnecessria qualquer profundarevoluo nas regras da convivncia internacional.

    Caberia aqui apontar uma diferena entre o processo ps-Guerra Fria eanteriores mudanas no sistema internacional. Se no passado a guerraestabelecia a nova hierarquia de prestgio internacional (Gilpin, citadopor Ruggie, 1986, p. 177), com a autodissoluo de um dos polos de poder,(no s a ex-URSS, mas todo o campo socialista) a guerra no foi necessriapara rearrumar a hierarquia de prestgio e faz-la compatvel com as realidadessubjacentes de poder, inaugurando segundo alguns a era histrica em que opoder econmico seria mais decisivo do que o militar.

    1.1. A invaso do Kuaite e o contexto ps-Guerra Fria

    A invaso do Kuaite pelas tropas iraquianas deu-se em pleno clima deeuforia ps-Guerra Fria . O incidente ocasionou the first unequivocalstatement by the Security Council about a breach of the peace since 1950and the Korean War (Weiss, Coate e Forsythe, 1994, p. 68)12.

    Esta constatao reforaria o carter de operao paradigmtica epedaggica,alm de suas motivaes prticas mais imediatas, da intervenocontra o Iraque. Perante ameaas no eixo centro/periferia, adissuasopassavaa ser buscada em um sistema de segurana coletiva das Naes Unidas revivificado,e no mais na dissuaso nuclearadaptada ao conflito Leste/Oeste.

    H variados nveis de anlise sobre os objetivos e interesses envolvidosem toda a operao de resposta ao Iraque, que no se excluem, antes secomplementam e interagem de forma sinergtica. Kodmani-Darwish eChartoni-Dubarry listam os principais:

    3) mudanas nas interaes dentro do sistema isto , modificaes nas interaes polticas,econmicas ou outras entre os atores do sistema internacional. Esta ltima no implica emcmbio na hierarquia global de poder e prestgio no sistema, mas pode levar a mudanas nosdireitos e regras corporificadas em um sistema internacional (Gilpin, 1981, p. 43).12 O mesmo ponto realado por outros autores: The 1991 American-led UN intervention inthe Iraq-Kuwait conflict was the first time a UN-sanctioned, collective-security and/orenforcement measure had been launched since the Korean War in 1950 (Knight e Yamashita,1993, p. 285).

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    Les enjeux rgionaux et internationaux de cette crise semblaient dsle dpart inextricablement lis. Ils sont tout la fois le ptrole,lquilibre stratgique regional, lavenir de la prolifration des armesnuclaires, balistiques et chimiques (NBC), et partant, la nature desconflits rgionaux futurs, la scurit dIsrael, lordre internationalde laprs-guerre froide et la place des tats-Unis dans celui-ci, enfinlavenir politique de George Bush (p. 50).

    Sem negar a existncia e pertinncia da dimenso regional, este trabalho por seu prprio objeto centrar-se- mais nos aspectos de carter global,sobretudo a partir da tica norte-americana, ator principal e lder de toda aoperao poltico-diplomtica-militar13.

    Cabe assim chamar a ateno para que a reao progressivamentearticulada pelos EUA permitisse alcanar, deixando de lado os aspectosvinculados poltica interna dos EUA (eleies presidenciais de 1992), umasrie de objetivos diplomticos.

    Primeiramente, demonstrar que no mundo ps-Guerra Fria era possveluma ao unida da comunidade internacional, sob liderana norte-americana,para enfrentar ameaas paz e segurana internacionais. Em segundolugar, legitimar esta operao pelo recurso ao sistema de segurana coletiva

    da Carta, que por sua vez se legitimava, na mesma medida, pela eficciarecuperada. Em terceiro lugar, usar o Conselho para amarrar diversos doschamados novos temas globais ao mbito da segurana internacional: noproliferao de armas de destruio em massa; direitos humanos; meioambiente este, paradoxalmente, muito menos, no se tendo aproveitadoa fundo outra oportunidade oferecida pelo conflito14. E em quarto lugar,

    13 Em suma, focalizar-se- a agenda global norte-americana, sem esquecer que havia tambmuma agenda regional norte-americana de grande relevncia.14 Sobre meio ambiente, cabe lembrar que o derrame deliberado de petrleo e a sabotagem dos

    poos de petrleo kuaitianos por ordem de Saddam Hussein desataram importante controvrsiasobre se atos como esses estariam sob as disposies da Conveno sobre a Proibio do UsoMilitar ou qualquer outro Uso Hostil de Tcnicas de Modificao Ambiental (conhecida comoENMOD Convention), que entrou em vigor em 1978, cabendo registrar que o Iraque no parteda mesma, por no t-la ratificado. Embora a discusso no tenha conseguido consenso quanto,a saber, se os atos de Saddam, embora hostis e com finalidades militares, constituam umamodificao ambiental, isto no impede se reconhea o carter indito das aes iraquianas ea enorme repercusso internacional que obtiveram (Cf. Fauteux, 1992, p. 6).

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    assegurar uma ordem regional estvel que garanta o suprimento em longoprazo e com preos razoveis de petrleo ao Ocidente mais importantedo que assegurar apenas o no controle pelo Iraque do leo kuaitiano,segundo Hippler15, 16.

    Cabe sublinhar que o Iraque preenchia as necessidades do momentocom perfeio. Aparecia como motivo ideal para uma interveno combase na preservao da ordem interestatal, sob vrios aspectos: claraviolao territorial agresso e ocupao17; proliferao de armas dedestruio em massa18; violaes de direitos humanos; e ameaas ao meioambiente.

    Esses objetivos multissetoriais e em diversos nveis no eram privilgiodos Estados Unidos. Todos os atores, tanto no jogo diplomtico doConselho de Segurana como no jogo geopoltico do Golfo Prsico,perseguiam diversas metas, que vinham convergindo ou divergindo, emum jogo complexo, desde a guerra Ir-Iraque, o chamado primeiroConflito do Golfo19.

    15 Para Hippler, Estados como a Arbia Saudita, o Kuaite, e outros Emirados servem, desde aSegunda Guerra, as seguintes funes: ensured continuity of the oil supply; maintained a

    consistent low-price policy, giving priority to the interests of the West-dominated worldeconomy over their own financial interests, or at least giving them equal priority; controlledand combated nationalistic or revolutionary movement or trends. O enfoque de Hippler demasiado geopoltico-regional, esquecendo o interesse complementar de garantir a estabilidadedo novo sistema internacional em gestao, inclusive pela reafirmao da norma de noproliferao.16 Matthews (1993, p. 100) traz interessante quadro sinptico com as razes para a intervenodos EUA, que inclui causas culturais, estratgicas, econmicas e polticas.17 O carter evidente da transgresso tambm foi fundamental para garantir o consensointernacional - como dizem Weiss et alli: "The world organization and its members statesprobably will not often face the classic interstate confrontation that precipitated the collectiveresponse in the Persian Gulf. Instances of cross-border attacks from national armies aimed atannexation of another state's territory are becoming rarer. Intrastate conflict is replacing interstateconflict as the dominant menace to international peace and security". (Weiss, 1994, p. 88)18 Cabe lembrar que o Iraque era suspeito, com fortes elementos de convico, de ter utilizadoarmas qumicas sobre sua prpria populao na Guerra contra o Ir.19 The United States, the Soviet Union, France, Britain, and China had separate nationalinterests and perspectives toward relations with Iran, Iraq, and other states in the region. Onsome points their interests coincided. They wanted to prevent outright dominance of the regionby either Iran or Iraq, to keep the Persian Gulf open for shipping, to stop the use of chemicalweapons, and to maintain the integrity of the Geneva Convention on prisoners of war. Otherinterests drew these states into conflict. (Hume, 1994, p. 4)

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    Thierry de Montbrial, a propsito, considera que entre os interesses empauta:

    Celui de la prservation de lordre internacional tait lvidencele plus partag entre les tats, tant donn la fluidit actuelle dusystme international (Kodmani-Darwish, 1991, p. 8).

    Como se ver, o tratamento do conflito Iraque-Kuaite e a imposio deum cessar-fogo abrangente atravs da resoluo 687 (1991) pelo Conselhotambm combinam interesses diversos e graus variados de adeso. Pode-sedizer que neste caso o interesse sistmico mais geral e mais consensual seriaa preservao da ordem interestatal, atravs da reiterao enrgica e prticada proibio de aquisio de territrios pela fora que rene duas questescentrais para o sistema internacional, a do no uso ou ameaa de uso dafora e da estabilidade das fronteiras, esta ltima em crise desde 1989, comos efeitos conhecidos. Por ser uma regra bsica, constitutiva do sistema,tende a gozar do apoio de grandes e pequenos Estados20.

    A segunda, em generalidade e grau de consenso, precisamente o combate proliferao de armas de destruio em massa. Aqui, entretanto, possvelverificar um desequilbrio relativo, os pases centrais manifestando apoio mais

    aberto a essa meta, inclusive atravs da participao de seus nacionais naUNSCOM. Os pases perifricos no deixam de temer a hiptese de extensoa outros estados do tratamento dado ao Iraque pelo Conselho, com fundamentopotencial em motivaes diversas.

    Seguem os objetivos geopolticos de cada ator, diferentes para os EstadosUnidos e o Reino Unido de um lado, e para a Rssia e a Frana de outro,mas que no caberia pormenorizar aqui.

    Referimo-nos acima aos interesses que se foram organizando em torno operao do Golfo, sem estrita ordem lgica ou cronolgica. Hippler (1994)faz um histrico mais preciso, enumerando as seguintes motivaespblicassucessivamente apresentadas para a presena militar norte-americana e da

    20 Durante a negociao da resoluo 660, a primeira da srie, na madrugada de 1o para 2 deagosto de 1990, este foi um dos argumentos principais do Representante Permanente norte-americano, Embaixador Thomas Pickering: Gradually Abulhasan (Kuaite) and Pickering madeprogress in getting others to see that was at stake was a rule of law, embodied in the UN charter,that should give weak, small states protection against the ambitions of stronger, larger neighbors(Hume, 1994, p. 188).

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    coalizo em geral: 1) defesa da integridade territorial da Arbia Saudita; 2)libertao do Kuaite e restaurao da famlia real kuwaitiana; 3) proteo dossuprimentos de petrleo ao Ocidente; e 4) eliminao das armas de destruioem massa do Iraque e enfraquecimento de sua mquina militar s vezesassociado, por setores norte-americanos derrubada de Saddam Hussein.

    Cabe observar, com Hippler, que o ltimo ponto era manejado comdiscrio,pois no estava coberto por nenhuma resoluo do Conselho eno fazia parte dos objetivos declarados da coalizo internacional21. Indicaainda que os trs primeiros objetivos pudessem ser alcanados sem recursomacio fora militar:

    However, the destruction of the Iraq military machine and theelimination of its nuclear, biological and chemical warfare potential,together with related research and production facilities, were not

    possible without a major war (Grifo nosso, Hippler, 1994, p. 18).

    O recurso guerra permitiria lograr esse objetivo primeiramente pelomacio bombardeio de instalaes sensveis e pela destruio de parte dosequipamentos das foras convencionais iraquianas; e em seguida pelaimposio de um acordo de cessar-fogo como resultado da derrota.

    Um fenmeno relevante ao qual importa aludir, embora escape ao objetodesta dissertao, foi o recurso macio, embora no oficial, OTAN napreparao e implementao dos planos para a operao militar no Golfo22, 23, 24.

    21 Stphane Bunel sublinha que: Le 3 avril 1991, la rsolution 687, dite de cessez-le-feu, changeait lesbuts de la guerre en imposant des mesures draconientes lIrak. (Bunel, in Anderson, 1994, p. 90)22 importante observar, com Hippler, que: What was striking in the Gulf War in fact was thatNATO as an institution legally had no role in the war, but that without the intensive use made ofNATO infrastructure for logistics, lines of communication and so on, the allies would not have beenable to resolve the conflict with the same efficiency and speed. (...) This experience further reinforcedNATOs tendency to be increasingly South-oriented, and strengthened the argument that in futurethe mobility and flexibility of the NATO forces should be substantially increased. There had been

    no formal extension of the NATO area by treaty agreement nor any official redefining of NATOstreaty obligations. The smooth coordination between the allies in the Gulf War has of course nowproved that such large-scale operations by NATO members states outside the NATO area will notneed any such formal sanctioning.(Grifo nosso, Hippler, 1994, pp. 146 e 147)23 Hippler esquece outro exemplo de extenso de facto da Nato, que foi a opo preferencialpela NATO feita pelos EUA sobre a OEA e o TIAR durante a Guerra das Malvinas.24 Sobre o crescente recurso OTAN como brao armado das Naes Unidas e do Conselho deSegurana em especial, cabe registrar observao de Boutros-Ghali: Much effort has been

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    O velho debate sobre a extenso das atividades OTAN para fora de suarea, sobretudo na direo dos pases perifricos, teve assim uma soluodada na prtica, sem necessidade de modificaes escritas e legais. A ironiaestaria na pouca eficcia demonstrada durante longo tempo pela OTAN nocontinente europeu, como evidenciado no tratamento da crise na ex-Iugoslvia25.

    Capeando o conjunto de interesses de diversa hierarquia acima analisados,o Presidente George Bush lanava a expresso nova ordem mundial. Aocasio foi o discurso sobre o estado da Unio em fins de janeiro de 1991(State of the Union Address, USIS, U.S. Policy Information and Texts, 31de janeiro de 1991, p. 17 e seguintes, citado por Hippler, 1994, p. 86).

    Hippler apequena o conceito ao atribuir-lhe apenas a funo tpica delegitimar a Guerra do Golfo aos olhos da opinio pblica norte-americana einternacional (Hippler, 1994, p. 87). Pode-se aventar a hiptese de que alegitimao foi recproca, a guerra servindo para legitimar o desenho nascentede uma nova ordem ps-Guerra Fria 26, 27.

    required between the Secretariat and NATO to work out procedures for the coordination ofthis unprecedented collaboration. This is not surprising given the two organizations very

    different mandates and approaches to the maintenance of peace and security. Of greater concern,as already mentioned, are the consequences of using force, other than for self-defense, in apeace-keeping context. (Boutros-Ghali, 1995, p. 29)25 Seria impreciso no salientar que as situaes no terreno eram sumamente diversas, a operaono Iraque caracterizando-se pela clareza de objetivos, nitidez de diviso entre os camposinimigos, facilidade do terreno e conciso do mandato expulsar os iraquianos do Kuaite (eacessria e implicitamente destruir parcialmente a mquina de guerra de Saddam). A especificidadeda situao iraquiana, que possibilitou a operao poltico-militar, sublinhada por Legault:The war against Iraq was unique from a strategic point of view: most of the Iraqi heartland isvulnerable to both air and sea power, and oil revenues represent almost ninety per cent ofBaghdads income from foreign trade. (Legault, 1993b, p. 411)26A posio sovitica na matria seguia como o corolrio de dois fatores: a poltica gorbachevianade restaurar a eficcia das Naes Unidas na rea de segurana internacional, como parte de seudesengajamento honroso do papel de superpotncia; e a oportunidade de demonstrar ao

    Ocidente que na nova fase Moscou estaria disposto a cooperar para impor a ordem nos pasesperifricos.27 Brzezinski recusa a iminncia de uma nova ordem, que tardaria anos para constituir-se. Assimconfunde uma verdadeira nova ordem que v alm da retrica de Bush com uma ordem novacomo simples novo arranjo macroestrutural, mesmo que este aporte modificaes relevantes: ofim da bipolaridade em si traz um novo ordenamento, ao extinguir o eixo Leste/Oeste e diluir oeixo Norte/Sul, ambos que estruturavam as relaes internacionais no perodo antecedente.(Brzezinski, 1993, p. 10)

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    A concepo de Bush envolvia o revigoramento das normas internacionaisexistentes e o estabelecimento de novas regras de conduta, relativas a temasde interesse global, amparados em uma capacidade global de fazer cumprir(enforcement) investida na ONU28, 29.

    1.2. O papel das Naes Unidas no perodo ps-Guerra Fria

    No necessrio insistir sobre um ponto que a literatura registra demodo quase unnime. O fim da Guerra Fria tornou possvel o funcionamento ainda que imperfeito, seletivo e passvel de crticas do sistema desegurana coletiva previsto na Carta de 1945. Escrevia recentemente oMinistro de Estado das Relaes Exteriores, Embaixador Luiz FelipeLampreia:

    O fim do bipolarismo e dos constrangimentos que ele provocavanos organismos internacionais abriu campo para um novo perfil daONU na promoo e manuteno da paz e da seguranainternacionais, mais prximo daquele idealizado h 50 anos(Lampreia, 1995).

    A nova ordem mundial anunciada pelo Presidente George Bush nopretendia ser muito mais do que a implementao dos mecanismos imaginadospelos redatores da Carta, no tendo de nova seno o fato de sua efetivaaplicao.

    Weiss, Coate e Forsythe (1994) descrevem as Naes Unidas comogovernance without government, ou de como os problemas transnacionaispodem ser gerenciados por autoridades pblicas na falta dos atributos normais

    28 A maioria dos analistas considera haver evidncia de uma relativa continuidade entre Bush eClinton. Hippler aponta para uma mudana verbal, de New World Orderpara o mais neutro

    Post Cold-War Era. Caber verificar se o novo Congresso norte-americano de maioria republicanatrar mudanas significativas nesta rea, em uma direo provavelmente mais realista.29 Por outro lado, esse consenso criado a partir da construo e difuso de certas normas deconduta dos Estados que baseia o recurso ao Conselho no caso do Iraque e, antes, tambm asinvestigaes do SG-NU no caso de alegaes de uso de armas qumicas pelo Iraque contra o Ir,com fundamento no Protocolo de Genebra de 1925, como norma de direito internacionalcostumeiro. Em ambos esses casos, ocorre um salto entre obrigaes internacionais nem sempreclaramente definidas e mecanismos de carter universal.

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    do Governo, entre os quais um verdadeiro legislativo, um sistema judiciriointegrado, um ramo executivo unificado e, principalmente, um monopliolegtimo do uso da fora.

    Dessas caractersticas, pode-se aventar que a ltima a qual o sistemadas Naes Unidas est mais prximo de apresentar. Na verdade, pode-seconsiderar que ressalvada a hiptese da legtima defesa, alis, presentetambm nas legislaes domsticas como exceo proibio do uso dafora incumbe ao Conselho de Segurana o monoplio do uso legtimoda fora, atravs do Captulo VII, que se avizinha assim de certascaractersticas do conceito de Estado na ordem interna.

    Esta anlise encontra respaldo em Sur (1988), quando caracteriza oConselho de Segurana como um rgo emergencial, dotado de umpoderde polcia, que o autor aproxima dos poderes especiais presentes no artigo16 da Constituio Francesa e que se pode igualmente comparar com oinstituto do Estado de Stio, como veremos mais detidamente no CaptuloIII30.

    Neste sentido, Albert Legault, aps referir-se aos dois paradigmas quesegundo ele tm dominado a histria das relaes internacionais peacethrough strength31 epeace through law comenta que:

    The Charter of the United Nations from that point of view is amarriage of the first two paradigms of international relations. ChapterVI of the Charter postulates that all efforts to find a peaceful settlement

    30 Neste sentido, revela notar, com Weiss et alli que: But the theory of the Charters operationalways entailed the notion that the persuasive role of Chapter VI should be seen against themore forceful role of Chapter VII. (Weiss, 1994, p. 30) Seguramente ser esta fora excepcionalatribuda ao Conselho de Segurana, atravs diretamente e por contaminao do Captulo VII,o que explica os diversos esforos tendentes apendurarno cabide da ameaa a paz e a seguranainternacionais questes mais prximas como no proliferao ou mais distantes como meio-ambiente e direitos humanos de modo a dar sua regulao os meios de implementao julgadosnecessrios.31 importante frisar que o sistema internacional efetivo o conjunto de estados com seusrecursos de diversa natureza quem d corpo estrutura legal-formal prevista na Carta Interms of a fundamental generalization, political factors outside the UN are primary and factorsinside the UN are secondary. The end of the Cold War, indeed the end of the Soviet Union,primarily explained the renaissance of UN security activities that began in the late 1980s. Itwas not the Security Council that ended the Cold War. It was the end of the Cold War thatallowed the Security Council to act with renewed consensus and commitment and vigor.(Weiss, Forsythe e Coate, 1994, p. 9)

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    to a conflict must be exhausted before the use of force can even becontemplated. But chapter VII authorizes the organization tocontemplate the use of force in the event of a breach of the peace, orof a military threat against international peace, providing there is aconsensus among the systems ruling powers to counteract the breachor threat (Legault, 1993b, p. 403).

    Uma caracterstica essencial do projeto de nova ordem mundial seriaassim o deslizamento claro da nfase do Captulo VI para o Captulo VII,como aponta David J. Scheffer:

    Other world orders also were predicated on confronting aggressionand upholding the rule of law. They, too, were premised on optimistic

    judgments about the future ability of the world community to settledisputes peacefully within a multilateral framework. But the latestworld order is unique in its primary emphasis on the use of collective

    military force to enforce international Law. The new world orderemerging from the Gulf conflict may achieve peaceful settlements ofmajor disputes, but its focus is on the multilateral enforcement ofinternational law (Scheffer, in Henkin, 1991, p. 154).

    1.3. Segurana, desarmamento e no proliferao na nova ordem

    A volta ao esprito, se no sempre letra da Carta, tinha um efeito especfico,alm da concentrao de poderes, sem contrapesos ou contra poderes, em umncleo de estados. Implicava novamente subordinar a lgica do desarmamento lgica da segurana fundada esta, aps as experincias amargas doappeasementdos anos 30, na dissuaso dos adversrios da paz e da estabilidadepela fora usada coletiva e legalmente pela organizao universal. Esta tendnciaera diversa quela dominante na Liga das Naes, que de um lado dava maiorpeso ao objetivo do desarmamento em seu Pacto e de outro no previa um

    mecanismo to enrgico como o Captulo VII da Carta de So Francisco32(Azambuja, 1995 e Gros Espiell, 1985).

    32 Em seu comentrio sobre o artigo 26 da Carta que atribui a responsabilidade pela apresentaode planos de desarmamento (o texto fala a rigor no estabelecimento: of a system for theregulation of armaments) ao Conselho de Segurana com a assistncia do Comit de EstadoMaior, Hector Gros Espiell sublinha o vnculo a existente entre o estabelecimento e a manuteno

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    A subordinao do desarmamento segurana, evidente na Carta dasNaes Unidas, se viu esquecida ou ocultada durante o longo perodo da GuerraFria. A paralisia do sistema de segurana coletiva previsto na Carta e o terrorao holocausto nuclear trouxeram para o primeiro plano o desarmamento, aabarcados processos conexos como o controle de armamentos bilateral entreas superpotncias; a no proliferao nuclear; e os acordos multilaterais dedesarmamento negociados na Conferncia do Desarmamento (CD).

    O retorno de um enfoque que subordina o tema do desarmamento aotema da segurana significa tambm a substituio de um idealismoantiguerra por um realismo da estabilidade. Tem como efeito implcitopoupar o poder militar das grandes potncias e protelar como utpicos oumesmo perigosos os objetivos do desarmamento geral e completo e daeliminao de armas nucleares que marcaram perodos anteriores.

    Esta subordinao implica manter uma separao estanque entre as duasvertentes correntemente reunidas sob a rubrica desarmamento: a dimensohorizontal, no sentido deparitria, ou seja, a continuidade do controle dearmamentos (arms control) bilateral entre as duas superpotncias nucleares nesta rea, a Rssia permanece superpotncia , processo por elasintegralmente controlado em termos de ritmo e escopo; e a dimensovertical,no sentido de hierrquica, assimtrica, ou seja, a intensificao dos esforos

    de controle da no proliferao de armas de destruio em massa, a includasinicialmente as armas nucleares, qumicas e biolgicas, s quaisprogressivamente se viram acrescentados os veculos portadores (sistemasde msseis balsticos). A estanqueidade desses dois processos se justificaria,

    da paz e da segurana internacionais e o desarmamento. Esta ideia j estava no Pacto da Liga dasNaes, que em seu artigo 8, pargrafo I, dizia: the members of the League recognize that themaintenance of peace requires the reduction of national armaments to the lowest point consistentwith national safety and the enforcement by common action of international obligations. Estetexto repete a ideia central do Ponto IV dos 14 Pontos do Presidente Wilson. Cabe observar queaponta tambm para a necessidade de que o desarmamento permita sempre que reste uma

    vantagem relativa, um minimun deterrent, um edge, que permita a um grupo de Estados impora ordem contra os eventuais infratores das obrigaes internacionais. Segundo Gros Espiell, aCarta se afastou do tratamento detalhado do desarmamento presente nos demais pargrafos doPacto para evitar repetir o seu fracasso. O jurista uruguaio assinala que: Dans lesprit desrdacteurs de la Charte, la question du dsarmement et de la rglementation des armementsnavait pas limportance autonome et essentielle quon lui avait prte dans le Pacte de la SDN,mais plutt un caractere subsidiaire et lon y pensait comme une matire o le Conseil descurit aurait remplir un rle important. (Cot e Pellet, 1985, p. 486)

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    segundo seus defensores, porque os primeiros tm que manter, ao longo de seuprocesso de desarmamento bilateral, um nvel constante dedissuasono apenasum face ao outro, mas ambos frente aos demais estados da comunidadeinternacional, mormente aqueles desviantes e desafiantes da ordem.

    1.4. Unipolaridade e multipolaridade

    A ordem internacional ps-Guerra Fria , de definio e interpretaoseguramente ainda prematuras, parece por ora caracterizar-se por certaunipolaridade no terreno militar, com a superioridade blica norte-americanaexprimindo-se principalmente atravs do sistema de segurana coletiva quegira em torno ao Conselho de Segurana; e por uma crescentemultipolaridadeno terreno econmico, na verdade j detectada no perododa Guerra Fria , como aponta Hippler.

    Even before the end of the Cold War, there was hardly anything leftof the postwar order as it existed among the main capitalist powers.

    America, it is true, was still the strongest state economically, politicallyand militarily, but this was increasingly due to its size rather than toits qualities. Its principal allies had become its competitors, and there

    could no longer be any question of U.S. domination of the worldeconomy or of its allies. (...) The world economy had become multipolarand it was therefore essential for the leading industrial nations West Germany, Japan and the U.S. to work together in controllingworld market forces (Hippler, 1994, p. 17).

    Caberia recordar, ainda o conceito de pentagrama kissingerianocomposto por EUA, URSS, CEE, Japo e China, para mostrar que amultipolaridade j era apontada como fenmeno em gestao h muito33.

    33 A propsito, cabe notar que Buzan diz com razo que: It seems time to revive the term greatpower. If one thinks how this term was used before 1945, Russia still qualifies. So do China andIndia, which might be seen as the contemporary equivalents of regional great powers such as Italy.Austria-Hungary or the Ottoman Empire before 1914. Despite their political oddities. Japan andthe EC are strong candidates, albeit more obviously in the economic than in the military andpolitical spheres. The United States is undoubtedly the greatest of the great powers. The termsuperpower, however, seems no longer appropriate in a multipolar world with so manyindependent centers of power and so few spheres of influence. (Buzan, 1991, p. 434)

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    A articulao entre os dois subsistemas, o de segurana e o econmico,no parece ser, no entanto, por simples justaposio, mas por um mecanismoem que o subsistema de segurana constitui a condio de possibilidade doeconmico, embora no o determine. Dizendo de forma mais direta, sempaz e estabilidade, no pode haver funcionamento normal da economiaglobal.

    Isso significa que, embora as relaes correntes entre Estados Unidose Unio Europeia, ou entre Estados Unidos e Japo, no incluamvisivelmente o elemento de poder militar, nos momentos de conflitointernacional esta dimenso volta a reaparecer como relevante34.

    Se na era da Guerra Fria esse elemento surgia pela ameaa atribuda ex-Unio Sovitica, tanto no cenrio europeu como asitico, semesquecer as reas estratgicas do mundo em desenvolvimento, agora oelemento desestabilizador passa a emergir ou da decomposio efragmentao de partes do ex-mundo socialista; ou diretamente de regiesdo mundo em desenvolvimento que detm recursos essenciais para ofuncionamento da economia mundial. Ayoob chama a ateno para esteponto relevante quando diz que:

    In this context Third World crises such as the one in the Gulf serve a

    useful American purpose. They help to refocus attention on the variableof military power and its continuing need and utility, in particular, toassure the industrialized countries access at reasonable prices toscarce commodities like oil. They also help demonstrate that the UnitedStates is the only major power with both the will and the militarywherewithal to perform this role of policing for the developed world,and that without its global military reach and its decisive politicalleadership, Europe and Japan would be left at the mercy of ThirdWorld extortionists like Saddam Hussein (Grifo nosso, Ayoob, 1993,

    p. 94).

    34 Celso Lafer aponta que: Os efeitos da bipolaridade iam muito alm do campo estratgico-militar. Delimitavam a autonomia do econmico, pois as exigncias estratgicas da solidariedadepoltica restringiam o alcance dos contenciosos comerciais ou financeiros. (Lafer, 1995, p. 2)Pode-se dizer que hoje esta solidariedade permanece latente e reativada quando surgem ameaascomo a representada pelo Iraque em 1990.

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    Para esclarecer a articulao entre os subsistemas de segurana eeconmico aqui proposta, revela mencionar trechos do volumeReflexessobre a Poltica Externa Brasileira, publicado pelo Ministrio das RelaesExteriores, Captulo II, Diplomacia na Transio Mundial. No contextoda anlise dos aspectos polticos do cenrio da globalizao, o texto afirmaque o movimento de globalizao parece ser compatvel com vrias formasde ordenamento poltico internacional (p. 97). Seguem trs cenrios poltico-militares: a unipolaridade; a balana de podere aparticipao ampliada(p. 97).

    No que se refere ao objeto especfico desta tese, situado na rea dasegurana e, portanto, das questes relativas ao poder militar, pode-seconsiderar o trao da unipolaridade como dominante, ainda mais secircunscrevemos sua aplicao ao perodo do imediato ps-Guerra Fria , aque pertence a guerra do Golfo e a adoo da resoluo 687 (1991)35. Estaunipolaridade de fundo militar complementa-se com fortes componentes deunipolaridade ideolgica de que seriam sintomas as teorias como a doFim da Histria, de Francis Fukuyama. Neste sentido, incorporamos nestetrabalho a definio de unipolaridade no documento do MRE acima citado:

    A unipolaridade, com um esquema de superpotncia, que, no

    entanto, teria agora de apoiar-se, no tanto no poder militar, aindainstrumental como ltimo argumento na resoluo de disputas, massim no poder econmico e na capacidade de liderar a definio das

    regras que regero a globalizao, e a montagem de um novoordenamento mundial nos planos poltico e econmico (Grifo nosso,p. 97).

    Esta definio de uma capacidade de liderana na definio de regrasque ordenaro os aspectos polticos, estratgicos e econmicos da vidainternacional remete ao conceito de hegemonia, ao qual recorreremos aolongo do trabalho, aproveitando dois de seus sentidos explorados pela

    literatura, o de hegemonia com forte componente de superioridades efetivaem recursos de poder militar e/ou econmico, prevalecente na academia norte-americana; e o de hegemonia como capacidade de gerar consentimento dos

    35 Lebow considera que: By any reasonable application of Waltzs criteria, the internationalsystem has shifted in the direction of unipolarity. (Lebow, 1994, p. 255)

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    liderados, que se aproximaria mais do seu uso em Gramsci tal comorecuperado por Cox (1993). claro que ambos os conceitos convergem, eque nem o primeiro prescinde do elemento ideolgico, nem o segundo dapossibilidade de recurso em ltima instncia fora.

    A articulao entre os modelos da unipolaridade e da multipolaridade,entre os subsistemas de segurana e econmico, se vem fazendo, no nvelconcreto, por intermdio da posio especial dos Estados Unidos, pas centralnos dois contextos e capaz de liderar tanto as coalizes mantenedoras daordem internacional como de participar na promoo de uma ordemeconmica global. A escolha das palavras aqui proposital: os EUA lideramna rea de segurana; e colideram na rea econmica.

    Esta interpretao contrasta com o conceito de hegemonia dissociadaproposto por Guilhon Albuquerque (1995), que frisa, ao invs dacomplementaridade dos dois papis norte-americanos, o crescente hiato entreambos:

    Por um lado, a perda da supremacia econmica restringe a capacidadedos EUA para tornar a liderana poltica e militar em hegemonia. Ao mesmotempo, a persistncia da liderana poltica e militar compromete, em funodos compromissos globais que ela implica, sua capacidade de recuperar acompetitividade econmica (Guilhon Albuquerque, 1995, p. 11).

    Nossa anlise, entretanto, recusa igualmente qualquer interpretaoexagerada da capacidade de qualquer potncia hegemnica recente exercersua hegemonia, j criticada por Nye:

    In the modern world, a situation in which one country can dictatepolitical and economic arrangements has been extremely rare. (...)Contrary to the myths about Pax Britannica and Pax Americana,

    British and American hegemonies have been regional and issue-specific rather than general (Nye, 1990, p. 40).

    Cabe ainda sublinhar que a unipolaridade na rea de segurana, apesar

    da liderana inconteste dos Estados Unidos, compartilhada, embora nopossa ser caracterizada como multipolar precisamente por que os estadosparticipantes no ncleo central atuam de modo unificado e contra adversrioscomuns.

    Neste sentido, Legault descreve o sistema de segurana internacionalem formao como tripartite:

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    ... a three-tiered security system seems to be in the offing, consistingof a reinforced collective-security system, a hard-core security systemstill composed of European NATO powers, and a soft security system,to emerge perhaps from the CSCE and such institutions as the G.7summit (Legault, 1993b, p. 411).

    Buzan apresenta uma verso mais clara desta anlise36. Para ele, multipolaridade nascente sobretudo de cunho econmico, e que ele recolhepelo retorno do conceito de grandes potncias contrape como fatofundamental da era ps-Guerra Fria uma comunidade de segurana (securitycommunity) entre os principais centros capitalistas de poder este grupo deestados no espera nem imagina possvel o recurso fora em suasinterrelaes.

    O modelo assim apresentado seria o de uma unipolaridade coletiva,no campo da segurana.

    O papel dos Estados Unidos na juno dos dois sistemas acima apontadono leva necessariamente confirmao da teoria da estabilidade hegemnica37

    36 importante notar, com Buzan, que: The capitalist security community that underpinned

    this coalition [contra o Iraque] acts as a major moderator to the new multipolar power structure.One danger of multipolarity (at least in its pre-1945, pre-nuclear manifestations) was that ashifting balance of power, driven by a plethora of antagonism and security dilemmas, wouldgenerate unstable patterns of alliances and periodic lapses into great-powers wars. But amultipolar system in which the three strongest powers are also a strong security community issomething quite new, and should defuse or perhaps even eliminate most of these old hazards.In the inelegant jargon of system theory, one could describe the new structure of power relationsas multipolar in the sense that several independent great powers are in play, but unipolarized inthe sense that there is a single dominant coalition governing international relations. It is thesingle coalition that gives force to the centre-periphery model and makes the new situationunique. (Grifo nosso, Buzan, 1991, p. 437) Kirton (1993) faz ainda uma interessante comparaohistrica, em que a ONU encarnaria o princpio da segurana coletiva manifestado na Liga dasNaes; a OTAN, o princpio da defesa coletiva presente nos sistemas de alianas do incio dosculo; e o G7 o princpio de concerto de potncias caracterstico do Concerto Europeu ao longo

    do sculo XIX.37 A teoria da estabilidade hegemnica atribuda por Robert Keohane a autores como CharlesKindleberger, Robert Gilpin e Stephen Krasner. Segundo ele: According to this theory, stronginternacional regimes depend on hegemonic power. Fragmentation of power between competingcountries leads to fragmentation of the international regime; concentration of power contributesto stability. Hegemonic powers have the capabilities to maintain international regimes that theyfavor. They may use coercion to enforce adherence to rules; or they may rely largely onpositive sanctions the provision of benefits to those who cooperate. (Keohane, 1989, p. 78)

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    entendida como centrada no papel fundamental do hegemon na defesa dasregras da economia liberal. inegvel, todavia, que os Estados Unidos vmassumindo papel central na manuteno do mnimo de ordem necessrio parao funcionamento da economia globalizada no perodo ps-Guerra Fria quehoje incorpora, aps o fim do socialismo, a totalidade dos fluxos relevantesde bens e servios38.

    Este trabalho interpreta, em suma, a operao do Golfo como umtodo e a resoluo 687 (1991) em particular por seus efeitos emlongo prazo, para o Iraque e para a comunidade internacional comoum exemplo de implementao da vertente poltico-militar daglobalizao, a unipolaridade complementando a multipolaridade, a leie a ordem (law and order) assegurando o funcionamento da economiamundial39.

    O sistema de segurana essencial para o bom funcionamento dosistema econmico tanto do ponto de vista global no contaminaodas relaes econmicas entre Estados Unidos, Japo e Unio Europeiapor consideraes poltico-estratgicas, pela lgica do amigo/inimigo como tpico manuteno do abastecimento de petrleo, a preosrazoveis, dos fluxos de transporte, etc.

    Gilpin comenta, a propsito, que o argumento corrente de que no

    mundo contemporneo o xito econmico substituiu o xito poltico emilitar como base da hierarquia internacional de prestgio de que seriamexemplos Alemanha e Japo esquece o fato fundamental de que:

    38 Uma verso de um historiador sobre o papel da hegemonia, menos comprometida comdeterminados esquemas tericos a de Paul Kennedy (1993): In general, the leading powerfavors international stability, to preserve the system in which it enjoys great influence andwealth: usually it has inherited a vast legacy of obligations and treaties, promissory notes todistant allies, and undertakings to keep open the worlds seaways. But executing a specialleadership role includes the danger of becoming the worlds policeman, combating threats to

    law and order wherever they arise, and finding ever more frontiers of insecurity across theglobe that require protection. (Kennedy, 1993, p. 293)39 Pode-se aqui contrastar essa viso com a perspectiva terceiro-mundista tradicional, bemrepresentada pela seguinte frase do prefcio da reedio do documento do Secretrio-GeralBoutros-Ghali:An Agenda for Peace: Just as there can be no lasting peace without development,so development efforts cannot succeed without a stable, peaceful environment. Os pasescentrais tendem a concentrar-se na segunda orao, e a pelo menos minimizar a relevncia daprimeira.

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    ... economic power can play the role that it does in todays world becauseof the nature ofthe economic and political order created and defended

    primarily by the United States (Grifo nosso, Gilpin, 1981, p. 34).

    Aceita esta constatao, no se trata de retirar concluses apressadas esimplistas e conceber como possvel a traduo direta deste poder militaratravs da ampla gama de relaes econmicas e regimes setoriais que marcamo processo de globalizao. O poder, sobretudo o militar, apresenta nasociedade internacional presente modestos nveis de fungibilidade como temenfatizado a literatura especializada40.

    O que importa aqui , sobretudo, realar que o caso iraquiano, ao implicarruptura inconteste daquela ordem jurdica, poltica, estratgica e econmica,constitua oportunidade para reafirmar ou afirmar normas internacionais41, 42.

    Der Derian reala dois processos convergentes servidos pelo conflito, oda identificao de outro inimigo; e a questo da ameaa mais difusarepresentada pelas mudanas no sistema internacional:

    Iraq served its purpose well as the enemy otherwhich redefined ourown essential identities; but it was the other enemy, the new threat

    posed by the de-territorialization of the state and a disintegrating

    40 Keohane, aps testar a teoria da estabilidade hegemnica em relao a vrios regimes econmicossetoriais monetrio, comercial, petrleo conclui que: The version of the hegemonic stabilitytheory that best explains international economic regime change between 1967 and 1977 is anissue structure rather than overall structure model. That is, changes in power resource specificto particular issue areas are used to explain regime change. Issue structure models such as this oneassume the separateness of issue areas in world politics; yet functional linkages exist betweenissue areas, and bargaining linkages are often drawn by policymakers between issue areas that arenot functionally linked. (Keohane, 1989, p. 95)41 Kodmani-Darwish e Chartoni-Dubarry chegam a atribuir ao protagonismo norte-americanotraos onipotentes, ao ventilar a hiptese de que a no-sinalizao clara dos EUA antes da invasodo Kuait de sua inaceitabilidade recorde-se a famosa entrevista da Embaixadora April Glaspie

    com autoridades iraquianas vspera da invaso, com sua nfase na inexistncia de acordo dedefesa bilateral EUA/Kuait que obrigasse Washington a intervir seria uma cilada, tendente aatrair Saddam Hussein ao desastre e a permitir a derrota, destruio e desarmamento do Iraque.42 Como mostra Mohamed Ayoob, alm de Cox e Hippler, o conflito tinha sua origem nocontexto regional, embora o Iraque tenha calculado mal as possibilidades de que assimpermanecesse: "While the American reaction globalized the crisis, it was basically just that - areaction to a crisis that was fundamentally grounded in regional realities". (Grifo nosso, Ayoob,1993, p. 87)

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    bipo lar or der that required the violent reconstitution of newmonological truths (Grifo nosso, Der Derian, 1992, p. 198).

    Robert W. Cox aporta subsdios fundamentais nessa direo. Aps definire distinguir dois sistemas econmicos, o Fordismo vigente at o incio dosanos 70 e a economia mundial de produo e finanas transnacionalizadas correntemente denominada como processo de globalizao , assim analisao autor citado o momento histrico presente:

    Today, two concepts of world order stand in conflict: the territorialconcept and the globalization concept. Of course, this opposition

    puts the question more starkly than reality will admit. These are twotendencies rather than two completed structures. And they are not

    just opposed, but also interrelated. The globalizing economy requiresthe backing of territorially-based state power to enforce its rules.Globalization results in a realignment of powers. The United Stateshas assumed the preeminent role in the promotion and enforcement ofits conception of a global economy that is largely self-regulated bythe interactions of private agents (Grifo nosso, 1993, p. 143).43, 44

    O que relevante na anlise de Cox primordialmente a vinculaoentre os pares territrio/poder militar e globalizao/poder econmico45.Como ele reitera:

    43 Neste sentido, Cox menciona a anlise de Karl Polanyi (The Great Transformation) quandoeste mostrou: how the British state used its legal force to create free markets in goods, money,land, and labour. For Polanyi as an economic historian and anthropologist, the self-regulatingmarket was never a natural phenomenon, but the artificial creation of coercive power in thepursuit of a Utopian idea. (Cox, 1993, p. 143)44 Cox exagera ao dizer do caso de um estado isolar-se da globalizao: This reaffirmation ofthe territorial principle of economic and social organization will be perceived as challenging thestructures of global economy, and will thus encounter the hostility of the territorial power that

    stands as the military bulwark for globalization. (Cox, 1993, p. 144) Como sabemos, aglobalizao econmica tem meios prprios de atrao ou coero sutil. A vertente militarsomente adquire emprego consensual quando a ordem ameaada pela fora.45 The U.S. intervention in the Gulf did, however, reveal in action the structure of worldpower underpinning globalization in the post-Fordist era. (Cox, 1993, p. 150) Cox frisa aindaque: The United States responded as the principal guarantor and enforcer of the globalizingworld economic order and, in that role, rallied support from other states deeply concernedabout the stability of the world economy. (Cox, 1993, p. 151)

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    There is a contradiction inherent in post-Fordism: the globalizationinterdependence principle is strengthened as the territorial national

    principle is weakened; but ultimately the security of globalizationdepends upon military force with a territorial basis (Sem grifo, 1993,p. 150).

    Em concluso, cabe reiterar que os conceitos de unipolaridade, ordem esegurana guardam estreita relao. Neste contexto, Coll (1993) conclui aexistncia de trs proibies que os EUA devem apoiar e fazer cumprir(enforce): inadmissibilidade da agresso armada; de crimes de guerra; e demacias violaes de direitos humanos (crimes contra a humanidade). Esseautor as define como um conjunto de normas minimalistas que podem impedirque o pluralismo degenere em caos e violncia.

    Omite, curiosamente, a norma de no proliferao de armas de destruioem massa, fundamental para a estabilidade internacional. Perante a ameaade desintegrao apresentada pelas foras centrfugas (Lafer, 1995), a normae o regime de no proliferao tm a funo unificadora, do ponto de vistaconceitual; e inibidora, do ponto de vista prtico, de buscar evitar o surgimentode crises regionais com implicaes planetrias, isto , umafragmentaocom capacidade de dano global, justamente o que o fim da Guerra Fria

    parecia haver afastado para sempre.A Guerra do Golfo foi, em concluso, uma operao que usou meiosmilitares para obter, alm de seus fins imediatos desocupao do Kuaite,fragilizao de Saddam Hussein, controle do petrleo efeitos poltico-ideolgicos de controle do sistema internacional e de suas regras defuncionamento. A opo preferencial das potncias centrais, entretanto, no ter que recorrer fora, valendo-se para isso de uma ordem consentidana qual os regimes internacionais desempenham papel fundamental comoveremos no captulo seguinte.

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    A anlise dos regimes internacionais tem influenciado fortemente a literaturasobre relaes internacionais na ltima dcada e meia1. Reflete, talvez, estefato a mescla de elementos provenientes do realismo e do idealismo queesta modalidade de anlise incorpora, apropriada a um perodo histrico

    marcado pela progressiva superao dos temas estratgico-militares pelostemas econmicos e globais, sem que se atingisse, no entanto, o patamar deum mundo baseado apenas na operao do direito e da razo. Bernauer, namesma linha de Krasner (1983), sublinha inicialmente o carter de reao aorealismo desta linhagem terica:

    The analysis of international regimes has, during the past 15 years,resulted in what one could call a research programme. This

    programme has been instrumental in directing the attention ofInternational Relations scholars away from the Realist preoccupationwith conflict and problems of international anarchy to questions ofinternational collaboration, that is, questions of how islands of order

    can form in an ocean of disorder (Grifo nosso o segundo trechoentre apstrofes de Haas , Ernst, Bernauer, 1993, p. 10).

    2. O conceito de regime internacional e o regime

    de no proliferao de armas de destruio em

    massa

    1 Segundo Bernauer, um artigo de John Gerard Ruggie na revistaInternational Organization considerado como a origem da anlise de regimes internacionais.

  • 7/28/2019 ordem_hegemonia_transgressao

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    GEORGESLAMAZIRE

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    De todo modo, h que dizer que o conceito de regime ele mesmoapresenta traos que atendem s preocupaes tanto de idealistas e comode realistas. Aponta para as inequvocas e crescentes manifestaes decooperao internacional, mas no omite a influncia dos fatores subjacentesde poder econmico e militar na criao, manuteno e operao dessesmecanismos institucionais2.

    A definio clssica de regime internacional se deve a Krasner:

    ... implicit or explicit principles, norms, rules and decision-makingprocedures around whi