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o ARTIGO de que essas transformações são o resultado do avanço das forças produtivas e da luta de classes, de modo a ser possível identificarem-se diver- sos modos de produção no desenvolvimento social. A base de qualquer deles encontra-se nas relações de produção e, fundamentalmente, no tipo de propriedade dominante. Disto decorre a identificação da propriedade privada dos meios de produção como base do modo de produção capitalista. Entretanto, é bastante discutível a natureza AS FORMAS ORGANIZACIONAIS DO ESTADO -FERNANDO C. PRESTES MOTTA Professor Titular do Departamento de Administração e Recursos Humanos da EAESP/FGV. A organização, as instituições, os valores, as crenças e as normas de uma sociedade pas- sam necessariamente por transformações que alteram as relações de dominação em seu inte- rior. O materialismo histórico assume a posição Revista de Administração de Empresas São Paulo, 28(4) 15-31 Out.lDez. 1988 15

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de que essas transformações são o resultado doavanço das forças produtivas e da luta de classes,de modo a ser possível identificarem-se diver-sos modos de produção no desenvolvimentosocial. A base de qualquer deles encontra-se nasrelações de produção e, fundamentalmente, notipo de propriedade dominante. Disto decorre aidentificação da propriedade privada dos meiosde produção como base do modo de produçãocapitalista.

Entretanto, é bastante discutível a natureza

AS FORMASORGANIZACIONAIS DO ESTADO

-FERNANDO C. PRESTES MOTTAProfessor Titular do Departamento de Administração eRecursos Humanos da EAESP/FGV.

A organização, as instituições, os valores, ascrenças e as normas de uma sociedade pas-

sam necessariamente por transformações quealteram as relações de dominação em seu inte-rior. O materialismo histórico assume a posição

Revista de Administração de Empresas São Paulo, 28(4) 15-31 Out.lDez. 1988 15

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modelo de otimização, cuja administração re-quer um conhecimento complexo que envolveas ciências exatas e sociais e que, antes de maisnada, é um .conhecímento político instrumen-tal. Em nossos dias, determinadas sociedades,como a norte-americana ou a brasileira, apre-sentam um sistema de poder difuso, onde o Es-tado e as grandes empresas nacionais e multina-cionais constituem-se nas organizações formaisfundamentais, seguidas de várias outras comoos grandes partidos políticos, os grandes sindica-tos, o exército, as igrejas, as grandes universi-dades, além de instituições que não são organi-zações formais, como algumas grandes famílias.Em sociedades como as do bloco soviético ou achinesa, o Estado absorve as demais organi-zações formais, ou estende-se em braços queconstituem essas organizações, formando umbloco burocrático único, a que chamo mo-nopólio do Estado capitalista, por entendê-locomo nível jurídico-institucional de uma mo-dalidade de capitalismo. Desnecessário insistirmuito na importância da tecnoburocracia nessesdois formatos organizacionais básicos.

Por definição a tecnoburocracia é autoritária,na medida em que o que a legitima é a técnicadesenvolvida a serviço de seu poder, o que tam-bém não significa que a sociedade não se possabeneficiar dessa técnica ou até mesmo doexercício desse poder em casos determinados. Épor essa razão que a análise organizacional con-vencional é uma ideologia política repressiva, aserviço da categoria social que precisa submetero Estado e controlar a sociedade. Daí decorre anecessidade da análise do Estado para a com-preensão das formas contemporâneas e antigasde dominação.

O Estado forma-se mediante a dominação deuma sociedade por outra ou por uma parte deuma sociedade sobre os seus demais membros, asaber, a sociedade civil. Nos dois casos, o Estadobaseia-se na dominação, seja mediante consenti-mento, seja mediante violência. O comporta-mento dos dominantes e dos dominados é quevai determinar um ou outro caso. A históriafornece-nos exemplos de mudanças gradativas,mediante as quais o consentimento pode trans-formar-se em resistência passiva, esta em resis-tência ativa e, como conseqüencia, em rebelião,tanto quanto exemplos de como uma rebeliãopode ser sufoca da ou cooptada, ou até mesmo

da propriedade social, oposta à privada, dosmeios de produção. Com isto quero afirmar quecertamente é diversa a situação em que dominaa propriedade de fato dos meios de produção porum grupo ou classe social, daquela em que defato a propriedade está em mãos de toda a socie-dade, o que historicamente se associa à comuni-dade primitiva ou a certos momentos históricosde determinadas formações sociais.

Se entendermos a propriedade como um con-ceito simplesmente jurídico, categoria que só fazsentido em determinados modos de produção,torna-se difícil esclarecer esse ponto. Todavia, sedermos ao termo uma dimensão sócio-política,que leve em conta a força do Estado, é possívelque as coisas se tomem mais claras e fique maiscompreensível o fato de que nos tempos con-temporâneos, tanto nos países onde prevalece apropriedade privada quanto nos países ondepredomina a propriedade estatal, uma categoriasocial se impõe à sociedade, concentrando poderpolítico e econômico, baseada numa proprie-dade coletiva de classe.

Esse fenômeno tem sido estudado de muitasformas e nos mais variados matizes ideológicosda direita à esquerda. Assim, para Galbraith, ocapitalismo é fruto de uma revolução industrialque substituiu a terra pelo capital como fatorprincipal de produção. Numa segunda fase, atécnica passou paulatinamente a substituir ocapital enquanto fator estratégico de produção'!'.Embora a tecnoburocracia deite raízes profundasna milenar história da humanidade, é nasgrandes guerras do século XX que ela se parecefirmar enquanto categoria social no mundo con-temporâneo. De fato, sua visibilidade aumentamuito com a ideologia do progresso, que subli-nha a "importância decisiva" do desenvolvi-mento econômico, a partir da Segunda GuerraMundial.

A concentração de esforços para o aumentodos índices de crescimento econômico parece terconferido à tecnoburocracia um papel efetiva-mente central no cenário internacional, bemcomo parece ter contribuído para a legitimaçãodesse grupo detentor do controle das organi-zações complexas. Decorre também dessefenômeno o interesse pela análiseorganizacio-nal, responda ela por qualquer nome, de Taylorà antropologia das organizações, à análise deredes sociais aplicada às organizações, etc., con-siderando-se, evidentemente, que isto não im-plica um julgamento de valor a propósito docaráter científico de muitos desses estudos.

Em termos simples, as organizações formaissão sistemas sociais planejados segundo um

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1. Vide GALBRAITH, John K. O Novo Estado In-dustrial. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968,Cap.V.

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conduzida por uma vanguarda que se pretendeeterna, e como tal busca eternizar-se no poder,mesmo considerando-se que, pela sua próprianatureza situacional, as vanguardas não podemser eternas.

Um dado desses exemplos é o fato 'de a legiti-mação do poder dos dominantes associar-sesempre a algum tipo de prestação de serviço aosdominados, bem como sua deterioração quandoesse serviço não é mais prestado ou, por algu-ma razão interna ou externa, não mais desejado.Via de regra, o consentimento implica algumnível de dependência, de forma que qualquermudança na relação de dependência se refletena relação de dominação. O entendimento daaristocracia no interior das sociedades arcaicasou da tecnoburocracia nas sociedades contem-porâneas toma-se possível pela percepção deque o recebimento de um determinado serviçodesejado ou a aparência de recebimento origi-nam o consentimento, e, portanto, apouca ne-cessidade de recurso à violência, salvo em mo-mentos críticos ou na periferia dos grandes im-périos.

Algumas sociedades históricas caracterizam-se pelo fato de a relação de poder ser passível deidentificação no domínio dos mais velhos sobreos mais novos. Nesses casos, o domínio estábaseado no privilégio do acesso à comunicaçãocom os antepassados e com o deus, associada àsobrevivência eao fortalecimento da sociedadecomo um todo. Há também outras sociedadesque apresentam uma aristocracia formada poruma linhagem de chefes e sacerdotes. Em algu-mas delas, a transferência de poder de um chefea outro faz-se pela herança de bens materiais as-sociados a forças sobrenaturais.

É dessa forma que as representações sociaisque configuram a religião asseguram as con-dições de reprodução das relações sociais. O Inca,no Peru pré-colombiano, representa a divin-dade, o Sol. Como agradecimento pelos be-nefícios advindos do Sol, os indivíduos o pre-senteiam e a ele se submetem. Nesses casos, areligião influencia diretamente a produção e areprodução das relações sociais. Todavia, quan-do a diferenciação social ultrapassa as hierarqui-as baseadas na fanu1ia, o serviço prestado precisaser tangível.

Essa relação de prestação de serviços é res-ponsável por mudanças estruturais profundasnas funções da sociedade. Aspectos decorrentesdessas mudanças são claramente identificáveis.Alguns deles dizem respeito ao posicionamentodos estratos dominantes no que se refere ao con-trole global da utilização dos recursos comuns a

toda a sociedade, ao controle da circulação debens e serviços e ao acesso especial ao produtodo trabalho social. Toma, assim, corpo um climaque leva a minoria dominante a apropriar-sedos meios de produção e do sobretrabalho,criando uma dependência que não é apenas so-cial e ideológica, mas claramente material, o quenão significa uma determinação única, masuma condição de reprodução.

É desse modo que se engendram e se modifi-cam as relações de poder e se originam as hier~-quias que caracterizam o Estado. Tais hier r-quías, por sua vez, pressupõem ordens e elas s,Por ordens entendo divisões, identificadas aAntiguidade, que resultam da formação do Esta-do-cidade e que se caracterizam por representa-rem uma determinada relação de dominação eexploração que, gradualmente, se distancia dasrelações de produção da comunidade primitiva.As classes representam grupos sociais perten-centes a um mesmo nível hierárquico, que re-sultam de um determinado processo de pro-dução e, fundamentalmente, das relações depropriedade vigentes.

Nas sociedades avançadas as dependênciasindividuais e coletivas são ocultadas pela igual-dade jurídica de direitos. Diferenças sociais,econômicas, sexuais, raciais, étnicas ou religio-sas não influem teoricamente no lugar que osindivíduos ocupam na estrutura produtiva. De-senvolve-se por toda parte a ideologia da igual-dade, que encontra subsídios para seu floresci-mento em determinadas interpretações do cris-tianismo, do pensamento liberal e do marxis-mo. De fato, a ideologia da igualdade serve jus-tamente para encobrir a desigualdade e osbenefícios que a minoria dominante dela au-fere 0).

Isto é bastante perceptível na concepção cristãtradicional de Estado. Os valores pregados deigualdade humana jamais corresponderam à de-sigualdade efetiva e à opressão baseada nessa de-sigualdade. Por toda parte, mesmo quando a in-fluência religiosa era dominante, perpetuavam-se e transformavam-se as opressões, sem resis-tência eficaz da Igreja, salvo em casos dos tem-pos recentes.

2. Vide EISENSTADT, S.N., "Analyse comparée dela formation de l'État selon le contexte historique" inReoue lnternationale de Sciences Sociales, Paris,XXIII, 4, 1980, e GODELlER, Maurice, "L'État. Les pro-cessus de sa formation, la diversité de ses formes et deses bases" in Revue lnternationale de Sciences Soei-ales, Paris, XXIII, 4, 1980.

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dução e na divisão do trabalho. A crise de quetanto se fala refere-se, assim, ao papel do Estadode criação de condições para a "con tra-tendência" à da queda da taxa de lucro, que sig-nifica a elevação da taxa de exploração, que re-percute na luta de classes (4).

As lutas referem-se ao fato de as classes domi-nantes não conseguirem assegurar a permanên-cia da exploração senão sob a .luta permanentecontra a população trabalhadora. Assim, a lutade classes permanente permeia um processoeconômico caracterizado pela necessidade deacumulação, pela concentração e centralizaçãodo capital, pelo crescimento da taxa de mais-valia, pela mudança tecnológica acelerada repre-sentada pela automação ou robotização. Na rea-lidade, é difícil distinguir as formas de luta declasses desse processo que, em si, manifesta essaluta e cujos efeitos reproduzem de forma am-pliada as condições de seu desenvolvimento. OEstado capitalista tem sua razão de ser na repre-sentação do interesse político de longo prazo doconjunto -das classes dominantes, num determi-nado bloco histórico, sob a hegemonia de umade suas frações, a saber, o capital monopolista.Procurando satisfazer esse interesse, o Estadoprocura equilibrar as demandas do capital mo-nopolista e do não-monopolista. Esses setoressituam-se em conjunto no terreno da domi-nação política que se dá eminentemente en-quanto administração, compondo o blocohistórico. Nessa situação, o Estado precisa teruma certa autonomia para desempenhar suaparte na organização das elites dominantes sob ahegemonia do capital monopolista. Tal autono-mia relativa confere a alguns setores datecno-burocracia pública, especialmente aqueles maisdiretamente ligados à esfera da economia, umpapel estratégico.

As formas correntes do processo de monopo-lização e a hegemonia do capital monopolistaimpõem nos nossos dias, porém, uma restriçãoconsiderável a essa autonomia relativa. De qual-quer modo, entretanto, o estabelecimento deuma política do Estado em favor do blocohistórico gera contradições de classe no interiordo próprio Estado. Este encarrega-se, na verdade,dos interesses do conjunto do capital monopo-lista, conjunto este impregnado de contradições

Em épocas antigas, até mesmo a escravidãochegou a ser tolerada e, mais que isto, justificadacomo conseqüência do "pecado original" e aproximidade do Estado e da Igreja foi, como é deconhecimento geral, muito mais fonte de privi-légio e desigualdade, que de igualdade (3). Essasobservações em nada subestimam a grandeza depontificados como o de João XXIII.

Entretanto, entendo ser atualmente ne-cessário deslocar a atenção para o papel do Esta-do no contexto atual de crise política e dasrelações dessa crise com a crise econômica e coma própria economia, o que implica compreen-der as relações entre a luta econômica e a lutapolítica de classes, tanto quanto a forma pelaqual as contradições de classe encontram reper-cussão no interior do próprio Estado. Se é ver-dade que o espaço, o objeto e o conteúdo dosconceitos do político e do econômico modifi-cam-se de um modo de produção para outro,não é menos verdadeiro que isto também ocorrede estágio para estágio e de configuração paraconfiguração do próprio modo de produção ca-pitalista. E assim que, face às mudanças nasrelações de produção, se inscreve Q papel funda-mental do Estado no ciclo das condições para aprodução, reprodução e acumulação do capitalna atual fase do capitalismo monopolista emque se encontram países como os Estados Uni-dos, Itália, Grã-Bretanha, França, Alemanha Oci-dental, Suécia, Noruega, Dinamarca, Holanda,Bélgica, Japão, Canadá, Austrália, NovaZelândia e outros, bem como as áreas de in-fluência norte-americana, européia e japonesano Terceiro Mundo. Evidentemente, essaconstatação vale para a União Soviética e suaárea de influência, e também para a China.

O importante a considerar é que as mudançasnos espaços do Estado e da economia e as formasde intervenção do primeiro na segunda fazemcom que as repercussões políticas da criseeconômica se modifiquem: a crise econômicatransforma-se em crise política mais direta e ra-pidamente que em estágios menos avançadosdo capitalismo e agora não mais _apenas emnível nacional, mas em nível mundial. A com-preensão do papel do Estado passa, assim, peloentendimento de todo o ciclo de reprodução docapital social (condições de produção - produção- consumo - repercussão do produto social), bemcomo da circulação do capital, no contexto dasalterações nas relações de produção, na repro-dução de força de trabalho, tanto quanto nas no-vas formas de divisão do trabalho. Configura- seurna crise do Estado que é, a um só tempo, crisede legitimidade e mudança nas relações de pro-o

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3. Vide SOLARI, Cioele. La Formazione Storica eFilosofica dello Stato Moderno. Napoli, Cuida, 1974,p.41.

4. Vide POULANTZAS, Nicos (Org.) La Crise del'État. Paris, Presses Uníversitaires de France, 1976.

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inter e intra subconjuntos, o que leva às tentati-vas de harmonização do conjunto, nem sempreviáveis (5).

A autonomia relativa do Estado inscreve-se aum só tempo na contradição principal da socie-dade, isto é, na relação entre elites dominantes eclasse trabalhadora e nas contradições internas aessas elites. Dessa forma, o modo instituicionalde ação do Estado é determinado pela configu-ração das relações de classe e pelas relações deforça que se dão nas lutas de classe. A domi-nação aparece tanto como repressão de classequanto como garantia do processo "de repro-dução material, o que vem a significar que a for-ma de atuação do Estado, no sentido de garantira reprodução, é determinada, em seu conteúdo,pelo movimento do capital e pelas luta de clas-ses, tanto quanto pela sua transposição para onível organizacional do Estado, ou seja, na lin-guagem marxista, para o nível do aparelho deEstado (6).

Já que todos os membros da sociedade têm in-teresse em sua reprodução material, o Estadoaparece como a garantia desse "interesse geral",do que decorre sua aparente neutralidade e au-tocolocação acima das classes. Os aparelhos deEstado consagram e reproduzem a dominaçãoexercendo a repressão, inclusive a violênciafísica, mas participam da coordenação de umjogo de compromissos nunca permanentes en-tre o bloco histórico e a classe trabalhadora, ousetores da classe trabalhadora.

Essa coordenação visa ao consenso ideológicovia desorganização e divisão da classe trabalha-dora, bem como à unificação problemática daselites dominantes. Todavia, tais elites existemem cooperação e concorrência interna e em lutacom a classe trabalhadora. Essa luta, que podeimplicar colaboração momentânea de classes oupactos sociais, sem que por essa razão deixe deser luta, já que as classes só existem em luta, nãoé externa ao Estado, pois ocorre em seu própriointerior. Assim, a configuração dos aparelhos deEstado, o papel ideológico ou repressivo, bemcomo a estrutura de cada aparelho ou ramo de-pendem não apenas da relação de forças no in-terior do bloco histórico, mas do papel que de-vem desempenhar com relação à classe traba-lhadora, o que se reflete claramente nas difer-enças encontradas, por exemplo, no aparelho es-colar e, até mesmo, em seu ramo universitário.

As organizações educativas desempenham opapel de articuladoras de setores da classe traba-lhadora como apoio do bloco histórico, impe-dindo sua aliança com a classe trabalhadoramais ampla e identificando-os com as elites

dominantes de cuja cultura obtêm um vislum-bre geralmente suficiente para criar uma espéciede "temor reverencial". Nas universidades, osintelectuais desempenham o duplo papel de"preceptores" dos príncipes modernos - os filhosde tecnoburocratas ou de burgueses, entre osquais estão aqueles em processo de conversão àcondição tecnoburocrática - e de agentes de di-fusão dos valores dominantes pelas frações não-hegemônicas das classes dominantes e até mes-mo, em poucos e raros casos, junto a filhos doproletariado m.

De qualquer modo, nunca é demais frisar queé em razão do papel econômico do Estado nomundo contemporâneo que uma série defunções, que consistiam em fazer face à quedatendencial da taxa de lucros, são em si geradorasde uma crise que ultrapassa o econômico. Acompreensão desse fenômeno implica consi-derar a instabilidade hegemônica, visto que a re-produção induzida pelo capital internacional nointerior de várias formações sociais desloca par-celas importantes do capital nacional, cindindosetores das classes dominantes. À medida que aintervenção do Estado se dá nesse processo,gera-se uma crise política, uma vez que a defesado "interesse geral" do bloco histórico fica com-prometida.

Também é preciso levar em conta que a inter-venção do Estado em domínios freqüente e er-roneamente tidos como menos significativos,mas que constituem o cerne do Estado - taiscomo educação, urbanismo, transportes, saúde,energia, habitação, silos etc., que são de fato con-dições gerais de produção - pode ter o efeito deaumentar a visibilidade da dominação e da ex-ploração em determinadas sociedades. É aindaimportante considerar que a acentuada desigual-dade do desenvolvimento do capitalismo no in-terior de cada formação social, face ao papel doEstado de "facilitador" dos investimentos es-trangeiros criando pólos de desenvolvimentoem cidades e regiões em detrimento de outras,pode provocar, em nível nacional, a decadência

5. Vide HlRSCH, [oachín, "Remarques théoriquessur l'~tat bourgeois et sa crise" in POULANTZAS, Ni-cos, La crise de l'État, op. cit., p. 108; e POULANTZAS,Nicos, As Classes Sociais no Capitalismo de Hoje, Riode Janeiro, Zahar, 1978, p. 171.

6. Vide HIRSCH, [oachín, Op. cit., p. 112.

7. Vide POULANTZAS, Nicos. L'État, le Pouvoir,le Socialisme. Paris, Quadrige/Presses Universitairesde France, 1981, p. 68.

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real desse poder que, em si, constitui a naturezado Estado, cuja base econômica está nas con-dições gerais de produção e em todo o cicloeconômico.

O arbítrio dos dominantes através desses apa-relhos pode levar à revolta e à revolução. Poressa razão, a violência institucionalizada é se-cundada pela ação dos aparelhos ideológicos,voltados para a ínternalização dos valores ne-cessários à reprodução do sistema econômico eda dominação. O trabalho ideológico tende a in-tensificar-se no sentido de modelar sociedadeshomogêneas, uniformes e intolerantes, o quenem sempre se manifesta abertamente, mas,com freqüência, se oculta na falsa fachada da to-lerância e da permissividade. O Estado contem-porâneo age fundamentalmente por meio deseus aparelhos econômicos, repressivos eideológico. De fato, não importa tanto se taisaparelhos constituem instituições públicas ouprivadas; importa, isto sim, seu papel na repro-dução ampliada do capitalismo internacional eda estrutura social que lhe é própria e específica.

A constatação de que o Estado é um conjuntode organizações e instituições complexas autori-za-nos a pensá-lo como uma grande organizaçãocomplexa, como um sistema dotado de conexõesde tipos múltiplos, formais e informais, de con-figurações variadas, onde os elementos apresen-tam-se agrupados em níveis maiores ou me-nores de densidade. As formas assumidas poressa organização não são indiferentes para a so-ciedade, referindo-se imediatamente às con-dições materiais de vida, ao nível de liberdade eopressão e à luta da população e, de forma espe-cial, da classe trabalhadora. Deste modo, não sepode considerar o Estado como algo tão abstratoa ponto de encobrir as diferenças entre o Estadoassistencial, um Estado fascista ou um Estado dotipo encontrado nas sociedades soviética, chine-sa e outras onde não há burguesia. Também,evidentemente, não é possível considerar o Es-tado independentemente dos modos de pro-dução. E bastante e suficientemente óbvio queasdiferenças entre modos de produção como oasiático, o antigo, o mercantil e o capitalista im-

8. Vide VIVENT, Jean Marie. "L'~tat en Crise" inPOULANTZAS, Nicos, La Crise de l'État, op. cit., p.101. .

da unidade que sustenta a legitimidade dos de-tentores do poder de Estado. Finalmente, con-vém lembrar que se o aspecto "selvagem" dascrises econômicas é freqüentemente limitadopelo Estado, isto se faz pela criação de crises ra-zoavelmente controladas, ao menos nos paísesmais desenvolvidos do chamado bloco ociden-tal, as quais implicam taxas de desemprego e in-flação relativamente constantes que, no entanto,podem agir no sentido de insuflar a luta declasses. No terreno movediço da luta de classes,o Estado balança entre o capital monopolista e ocapital não-monopolista, entre integração plenano mercado mundial e defesa sistemática daindústria nacional, entre interesses mais pro-priamente burgueses e mais especificamente tec-noburocráticos, entre deflação e inflação e entretotalitarismo e liberalismo. Tais oscilações, con-tudo, incapacitam as elites dirigentes no sentidoda definição e implementação firme e clara desuas diretrizes, o que não precisa ser necessaria-mente negativo, mas que não deixa de ter con-seqüências importantes (8).

De qualquer forma, os dirigentes continuama contar em muitos casos com a legitimidade dovoto. Todavia, essa base é paradoxal, na medidaem que a burocratização crescente, imposta pelatécnica e a maior necessidade de soluções técni-cas, que engendra o poder tecnoburocrático cres-cente e a sociedade de massas na qual a doutri-nação suprime o sentido de responsabilidade in-dividual, chocam-se com qualquer noção con-vencionai de democracia (95. Nos países subde-senvolvidos, com freqüência a ausência efetivade democracia dispensa artifícios sutis. Istodeve-se ao fato de que as leis do centro não sãodiretamente aplicáveis à periferia, porque me-diadas pela economia mundial e pelas relaçõesde dominação que lhe são inerentes.

O Estado, em larga medida, é o "locus" dacristalização da necessidade de reprodução am-pliada do capitalismo em nível internacional e,portanto, o "locus" da violência ou do consenti-mento necessários para que tal reprodução serealize. Daí os matizes diversos assumidos pelosdiferentes Estados capitalistas, conforme a di-visão de trabalho internacional (lO). Formas di-versas de acumulação levam a formatos institu-cionais diversos de Estado. De qualquer modo,porém, o Estado é sempre poder que obriga oscidadãos a cumprirem as funções necessárias aofuncionamento e à reprodução ampliada que ocaracteriza, do capitalismo internacional. Oschamados aparelhos repressivos do Estado, istoé, a polícia, os tribunais, as prisões, as forças ar-madas e a administração constituem exercício

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9. Vide BOBBIO, Norberto e outros. O Marxismo eo Estado. Rio de Janeiro, Graal, 1979.

10. Vide MATHIAS, Gilberto e SALAMA, Pierre. OEstado Superdesenvolvido. São Paulo, Brasiliense,1983.

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plicam Estados de natureza e caráter organiza-cional diversos.

O capitalismo substituiu um mundo de po-vos estanques, dotados de culturas relativa-mente herméticas, onde preponderavam asrelações nacionais e intra-econômicas, pela ho-mogeneização cultural que caminha pari passucom a internacionalização da economia. Assim,os limites dos mercados transcenderam frontei-ras políticas e assumiram contornos mundiais.O desenvolvimento das forças produtivas e aluta de classes em nível mundial implicam atransição de solidariedades e antagonismos na-cionais para solidariedades e antagonismos in-ternacionais. A produção e a reprodução do ca-pitalismo rompem a perspectiva local e os na-cionalismos. Isto faz com que as análises con-vencionais das burguesias e tecnocracias nacio-nais tenham apenas um valor relativo naapreensão da lógica e da dinâmica da domi-nação. Os fatos burguês e tecnoburocrático pre-cisam ser compreendidos no aspecto holísticoque é sua característica atual. Nada ou muitopouco se pode deles deduzir, sem a visão domovimento transacional do capital. É im-possível, neste. final do século XX, falar de Esta-do como um dado presentemente observável,sem perceber que sua essência decorre do capital,entendido como uma relação social e não comopura e simples somatória de meios materiais deprodução. Do mesmo modo, a apreensão do es-sencial do capital não se pode dar sem conside-rar o Estado, garantidor por excelência da manu-tenção das relações de produção e participantedecisivo da própria instituição dessas relações.

Essa situação acentua a diferença entre pro-prietários privados do capital e gerentes ou pro-prietários coletivos do capital, se dermos à pa-lavra propriedade um sentido econômico epolítico e não meramente jurídico. As elites tec-noburocráticas fortalecem-se por toda parte, im-pregnando com sua lógica as diversas insti-tuições e impedindo qualquer compreensão domundo social contemporâneo sem a conside-ração desse fato (11). Entretanto, paralelamenteaos interesses específicos da burguesia e:da tec-noburoracia, aos seus modos particulares deoperação e de busca de legitimidade, o essencialda oposição de classe é mantido. Com isto reafir-mo que a apropriação do. trabalho excedente soba forma de mais-valia continua sendo a con-dição básica de realimentação de privilégios declasse. Não há Estado neutro, há o Estadomaciçamente presente.

Nas palavras de Salama e Mathias, "em suaimediaticidade, o Estado é percebido como um

monstro de múltiplos tentáculos, distante,terrível. É seu modo natural de ser. A autono-mia relativa dos aparelhos de Estado em relaçiloao governo, a legitimidade buscada, o grau deaceitação de uma política econômica, tudo issoreforça mas não cria essa impressilo de um Esta-do situado acima das classes. Desse modo, para-doxalmente o Estado aparece como o que é (algopresente maciçamente) e como o que nilo é(neutro)" (12).

Seria, todavia, enganoso perceber o Estadocomo um conjunto desarticulado de peças sol-tas. O Estado não é a expressão de uma partilhade poder político entre classes e frações de clas-ses. O que é importante frisar, bem ao contrário,é o fato de que ele exprime, além de contra-dições internas de seus aparelhos, uma unidadeinterna própria, que é a unidade de poder daclasse ou da fração de classe hegemônica. O re-sultado disto é que seu funcionamento revela apredominância de alguns aparelhos sobre ou-tros. Aqueles que predominam constituem asede do poder da classe ou da fração de classe he-gemônica. Dessa forma, o Estado é dinâmico, namedida em que mudanças ou modificações nahegemonia levam a mudanças, modificações oudeslocamentos nas relações de predominânciaentre os aparelhos, o que acaba por determinarmudanças nas formas do Estado, tanto quantonas formas do regime político (13).

Por seu turno, a estrutura organizativa do Es-tado capitalista trata de garantir uma aparenteeficiência no trato da coisa pública. É assim que,mediante o processamento das demandas s0-ciais pelo aparelho de Estado, este trata de esta-belecer o nível de ameaça ao sistema que repre-sentam, isoladamente ou em conjunto. É dessemodo que o Estado ignora, negocia ou pura esimplesmente cede. Há, na realidade, toda umaburocratização que racionaliza esse processo.Pode-se mesmo falar de uma determinação da"agenda", ou seja, de uma eleição das matériasque irão passar pelo debate e pelas diferentes fa-ses do processo decisório. Isto implica que cadademanda, por suas caracte~sticas próprias, de-

11. Vide GORZ,André. Critica 4a Divisão do Tra-balho. SãoPaulo,Martins Fontes,1980,p. 175.

12. MATHIAS,Gilberto e SALAMA,Pierre. Op.cit.,p. 19.

13.VideCOT,J. - P. e MOUNIER,J. - P. "Pour unesociologiepolitique" in LOJKINE,Jean,Le Marxisme,l'État e la question urbaine, Paris, Presses Universi-tairesde France,1977,Cap. I, 3, 3, p. 164e seguintes.

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e de seus aliados, daquela ou daquelas classesque, se apropriando do sobretrabalho, torna-seou tornam-se classes economicamente domi-nantes e, com a força do Estado, politicamentedominantes. Dessa forma, fica exposta com todaa clareza a idéia fundamental para qualqueranálise do Estado, a saber, sua percepção comoproduto e manifestação do antagonismo incon-ciliável das classes. Disto decorre o fato de o Es-tado apresentar-se como uma estrutura de poderque submete a sociedade a uma ou mais classeseconomicamente dominantes, o que por si só jácaracteriza uma forma de exploração e domi-nac;,ão. .

E, pois, enquanto estrutura de dominação queo Estado deve ser visto como uma organizaçãocomplexa, que no seu braço restrito tem comoelementos constitutivos básicos uma elitepolítica, de modo geral recrutada nas própriasclasses dominantes, uma tecnoburocracia civil,que se ocupa da administração da sociedade, quese organiza hierarquicamente e define, elaprópria, seus critérios de recrutamento e seleção,bem como uma tecnoburocracia militar, da mes-ma forma organizada e cuja função extrapola adefesa contra eventuais ataques externos, con-centrando-se principalmente no que é definidocomo ordem interna. O Estado restrito possui omonopólio de determinados poderes e direitos,como o de legislar e montar um ordenamentojurídico impositivo que obriga coercitivamenteos cidadãos. Da mesma forma, tem o poder deestabelecer, cobrar e arrecadar impostos. Tais po-deres e direitos exclusivos do Estado configuramo que em certos meios acadêmicos é chamado demonopólio da violência legítima, noção inspira-da em Max Weber.

Quer-me parecer que a leitura de Gramscileva a entender o Estado de duas formas. Emprimeiro lugar, é possível usar o termo Estadocomo sinônimo de seus aparelhos repressivos,isto é, de administração, exército, magistratura,etc., e é também possível, usá-lo para incluirtanto esses aparelhos repressivos quanto os de-mais. O primeiro uso separa o Estado da socie-dade civil; o segundo não. No primeiro caso, oEstado é um sistema de poder organizado e cen-tralizado que se relaciona com outro sistemamenos formalizado e mais difuso, que é a socie-dade civil. Dessa forma, a sociedade civil aparececomo "locus" da organização da sociedade fora

termine os atores que serão convidados. De ou-tro lado, o controle da "agend a" determinaquem participa do jogo.

O mesmo pode ser dito do tratamento proces-sual dos assuntos escolhidos para a"agenda".Um mesmo assunto pode vir a ser processadomediante óticas diversas. É possível tratar umamatéria a partir de uma ótica distributiva, redis-tributiva ou simplesmente regulatória. Isto fazcom que a adoção de uma ou outra ótica possadebilitar uma causa modal ou ainda levar a de-cisões drásticas relacionadas a causas incon-seqüentes. Destarte, o Estado exibe todas as carac-terísticas de estrutura e funcionamento de qual-quer organização complexa. O manejo dos"assuntos de Estado" requer um saber que é pro-duzido nos meios universitários, especialmentenas escolas de elite, portanto, em meios muitodistantes da classe dominada.

De fato, geralmente o termo Estado é usadopara nomear uma determinada organizaçãocriada pela sociedade e que a gerencia. Esse ter-mo não indica de nenhuma forma a sociedadecomo um todo, mas apenas uma de suas partes.Essa parte emerge do conjunto e a ele se s0-brepõe, dominando-o. Em qualquer sentido, tra-ta-se de um poder estruturado e organizado for-mal e informalmente, que comporta uma estru-tura jurídica e organizacional. Engels, sumari-ando a análise histórica que faz das origens dafamília, da propriedade privada e do Estado, as-sim se expressa:

"... o Estado não é, de forma alguma, umaforça imposta do exterior à sociedade. Nilo étampouco, a 'realidade da idéia moral', a'imagem e a realidade da razão', como pretendeHegel. É um produto da sociedade numa certafase do seu desenvolvimento. É a confissllo deque essa sociedade se embaraçou numa in-solúvel contradiçllo interna, se dividiu em an-tagonismos inconciliáveis de que não pode des-vencilhar-se. Mas, para que essas classes an-tagônicas, com interesses econômicoscontrários, nllo se entre-devorassem numa lutaestéril, sentiu-se a necessidade de uma força quese colocasse aparentemente acima da sociedade,com o fim de atenuar o conflito nos limites. da'ordem'. Essa força que sai da sociedade, ficando,porém, por cima dela e se afastando cada vezmais, é o 'Estado' " (14).

Para Engels, antes de mais nada, o Estado éuma estrutura organizada para a manutençãodo sistema de classes vigente. É, assim, uma es-trutura que surge de uma necessidade de con-tenção do antagonismo, o que faz dele o repre-sentante da classe ou das classes mais poderosas

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14. Vide ENGELS, F. A origem da famaia, da pro-priedade privada e do Estado. Rio de Janeiro, Vitória,1964, pp.135-136.

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do Estado, como conjunto de grupos sociais quese organizam para perseguir a satisfação de de-terminados interesses ou necessidades. Sindica-tos, empresas, associações de classe e famíliassão algumas das expressões da sociedade civil.

Pensando dessa forma, o Estado deriva seupoder da sociedade civil e, ao mesmo tempo,tem o exercício de seu poder ampliado ou limi-tado por ela. Pode-se pensar também que o Esta-do é mais ou menos democrático, de acordocom a maior ou menor participação da socie-dade civil (15). Existem países dotados de umatradição importante de sociedade civil forte,como é o caso dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha. Outros têm uma história mais carac-terizada pela fraqueza da sociedade civil face aosaparelhos repressivos do Estado, como é o casoda Alemanha, da França até certo ponto, doJapão, da União Soviética, de Portugal e do Bra-sil, entre outros. Com freqüência, aqueles que seinspiram em Gramsci chamam o Estado, enten-dido basicamente como o conjunto de seus apa-relhos repressivos, de sociedade política. A ex-pressão "sociedade política" opõe-se, dessa for-ma, à expressão" sociedade civil".

Gramsci desenvolveu o conceito de Estadointegral elucidando a questão da ditadura e dahegemonia (16). É a noção de Estado integral quepossibilita levar em conta todos aqueles meiosde direção moral e intelectual de que dispõe oEstado, meios pelos quais a classe dirigente nãoapenas justifica sua dominação, mas, especial-mente obtém o consentimento ativo dos domi-nados. É então a noção de Estado integral que co-loca a questão da hegemonia numa posição cen-tral. Não basta a uma classe ser dominante. Elaprocurará de todas as formas ser também diri-gente, isto é, obter ideologicamente o consenti-mento da população (17). De qualquer modo, aanálise histórica do Estado é sempre a históriados modos de produção. Seguindo a evoluçãodas articulações entre relações de produção e de-senvolvimento das forças produtivas é tambémpossível seguir a evolução das formas institu-cionais de dominação.

Assim, a própria noção de Estado pré-capitalista comporta enormes variações, com otraço comum da identidade clara entre classedominante e elite dirigente. No modo de pro-dução asiático, todos, direta ou indiretamente,dependem do Estado. "A burocracia confunde-secom o Estado" (18), apresentando-se como classe-Estado, cujas rendas e poder derivam direta-mente desse controle. Nesse caso, o excedente éapropriado através da tributação. A burocraciapatrimonial que vive do tributo confunde-se

quase totalmente com a classe dominante. Asdistinções entre nobreza e burocracia são tênues.O modo de produção antigo, do qual Grécia eRoma antigas constituem casos históricos con-cretos, gerou um tipo de elite dirigente que, em-bora menor que a classe dominante, constituiparte significativa desta.

A aristocracia é composta dos senhores de es-cravos e de terras. O controle desses meios deprodução asssegura-lhes a condição de classedominante, embora nem toda a classe domi-nante constitua a elite que dirige o Estado. Toda-via, tanto o modo de produção asiático (Chinaclássica, Egito antigo, Mesopotâmia, Peru pré-colombiano) quanto o modo de produção antigoexibem Estados altamente organizados e fortes.Já diverso é o Estado gerado pelo modo de pro-dução feudal, no qual o soberano é tão somenteo senhor feudal mais poderoso, estando a maiorparte dos senhores encastelada nos feudos, si-tuação em que a elite dirigente do Estado seapresenta como pequena parcela da classe domi-nante (19).

É a dissolução do Estado feudal que origina o

15. Vide PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Estado eSubdesenvolvimento Industrializado. São Paulo,Brasiliense, 1977, pp. 7~2.

16. Vide GRAMSCI, Antonio. Passato e Presente.Torino, Eunaudi, 1966, p. 72.

17. Vide GRAMSCI, A. Mlufuiavel, a Polltica e o Es-tado Moderno. Rio de Janeiro, Cívílízação Brasileira,1976; MACCHIOCHI, Maria Antonieta, A Favor deGramsci, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976. Para umavisão um pouco diversa, vide também MILIBAND,Ralph, O Estado na Sociedade Capitalista, Rio de Ja-neiro, Zahar, 1972; e BUCI-GLUCKSMANN, Chris-tine, Gramsci et l'Êtat. Pour une théorie matérialistede la philosophie, Paris, Fayard, 1975, pp. 114-116.

18. TRAGTENBERG, Maurício. Burocracia e Ideo-logia. São Paulo, Ática, 1974, p. 28.

19. Vide MARX, Karl, Elementos Fundamentalespara la Critica de la Economia PoUtica, Buenos Aires,Siglo XXI, 1971; - - - e HOBSBAWN, Erie, Forma-ciones Economicas Precapitalistas, Cordoba, CadernosPasado y Presente, 1971; C.E.R.M., Sur les Societés Pre-capitalistes - textes choisies de Marx, Engels, Lenine,Paris, Editions Sociales, 1973; -, "Premíêres Societésde Classes et Mode de Produetion Asiatique" in Re-cherches Internationales It la lumiére du Marxisme,57-58, janvier-avril, 1967;--, Sur le Mode de Produc-tion Asiatique, Paris, Editions Sociales, 1969; e PEREI-RA, Luiz Carlos Bresser, op. cit.,pp. 83-85.

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do excedente através dos mecanismos de merca-do, atuando como coordenador relativamentepassivo da economia. O Estado liberal é a formade Estado típica da primeira fase do modo deprodução capitalista, na qual se generaliza amercadoria. Nesse modo de produção, os meiosde produção, de administração e de trabalho sãoseparados dos trabalhadores. Paulatinamentevão desaparecendo a figura do artesão, o put-ting-out system e a manufatura, surgindo afábrica como unidade básica de produção. Agora,a apropriação do excedente já não se faz medi-ante utilização direta da força e da pilhagem,mas através da obtenção da mais-valia. O tributodo modo de produção asiático, a escravidão domodo de produção antigo, a corvéia do modo deprodução feudal, a pilhagem do mercantilismocedem lugar à mais-valia como forma domi-nante de exploração.

A evolução histórica do capitalismo em for-mações sociais centrais exibe modalidades diver-sas de Estado, bem como uma tendência razoa-velmente convergente, que refletem o recortena estrutura de classes, promovido pelo capita-lismo em cada formação social específica. As-sim, enquanto países como a Inglaterra, pionei-ra da Revolução Industrial, conheceram o Esta-do li-beral, outros países, de industrialização tar-dia, como a Alemanha, conheceram o Estadofascista. Nesse segundo caso, observa-se queuma aristocracia agrária ou uma burguesia mer-cantil recorreu a um Estado já amplamente bu-rocratizado e militarizado para a criação degrandes conglomerados econômicos.

O Estado liberal associado ao capitalismo con-correncial articula os interesses dominantes pro-movendo direitos políticos e a democracia re-presentativa. É, assim, um Estado no qual flo-resce a figura do político profissional cn e se de-senvolve um aparato administrativo, controla-do pela burguesia dotada de poder econômico epolítico. Não é desprezível nessa forma de Esta-do o papel do exército. Paralelamente ao desen-volvimento do mercado, ele continua a ser umdos pilares do Estado. Como afirma Giddens,"não seria necessário enfatizar até que ponto opoder político militar moldou o caráter das so-

Estado moderno. A revolução comercial forta-lece a centralização política e, portanto, o poderdo soberano, em tomo do qual se forma umacategoria de letrados, que constituem os anteces-sores históricos da tecnoburocracia capitalista.Na verdade, a primeira forma de Estado moder-no que se estabelece, o Estado absolutista, cor-responde a uma transição do pré - capitalismoao capitalismo. Trata-se de um período de reor-ganização da classe dominante, dividida em tor-no de uma contradição de interesses. Em tornodo rei, concentra-se sua fração mais importanteque, no entanto, mostra-se incapaz de impor to-talmente seu poder à fração que permanece nosfeudos. Os. grupos aristocráticos que cercam osoberano aliam-se aos comerciantes enriqueci-dos, constituindo O Estado absolutista. A socie-dade civil baseia agora seu poder nas terras daaristocracia e no capital da burguesia. Essas clas-ses são muito maiores que a elite dirigente, ain-da fundamentalmen.te recrutada na aristocracia,mas que logo também começará a ser recrutadana burguesia, através de um enobrecimento de-sta última. O Estado absolutista é um Estadoforte que possibilitará a acumulação primitiva,necessária ao desenvolvimento capitalista.

Despesas militares para a guerra, consumosuntuário, construção de grandes .monumentos,constituíam parte considerável do destino doexcedente econõmíco nas formações sociais pré-capitalistas. Com a burguesia inaugura-se umperíodo no qual esse excedente começa a ser acu-mulado em estoques de mercadorias, meios detransportes e, em pouco tempo, nas manufatu-ras. Isto foi possível, em grande parte, pela pi-lhagem que caracteriza a pirataria, bem ,comopela exploração das novas terras e pelos mo-nopólios comerciais. O Estado absolutista garan-tiu essa pilhagem que, por sua vez, garantiu asrevoluções burguesas que ocorreram inicial-mente na Inglaterra e França e que abriram ca-minho para a Revolução Industrial ao). Como oEstado absolutista corresponde ao mercantilis-mo como política econômica, ele éfreqüentemente chamado Estado absolutistamercantil. É, por excelência, um Estado cujo blo-co histórico é constituído pela aristocracia. emtomo do rei e pela burguesia ascendente. Toda-via, uma vez levada a cabo a Revolução Indus-trial, a burguesia toma-se inquestionavelmentedominante, fazendo triunfar paulatinamente oEstado capitalista liberal.

Este, muito menos presente que o Estado ab-solutista mercantil, volta-se para assegurar àburguesia, cujas empresas ainda operam de for-ma relativamente independente, a apropriação

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20. Vide MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro,Civilização Brasileira, 1975, Livro I, Capo XXIV.

21. Vide WEBER, Max. Economia y Sociedad. Mé-xico, Fondo de Cultura Economica, Tomo 11, pp. 1062-1063.

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cieâaâes avançadas" (22). É possível verificar aimportância do exercício e dos modelos de disci-plina militar até mesmo nas formas de organi-zação interna da fábrica que começam a preva-lecer no final do século XIX e início do séculoXX;e não é por acaso que alguns dos primeirosteóricos da administração tenham sido mili-tares.

Se isto é verdadeiro para o Estado liberal, ain-da o é mais para o Estado fascista, mormente docapitalismo de oligopólios nos países de indus-trialização tardia corno a Alemanha. Estado re-gulador e forte, dotado de uma burocracia de-senvolvida em períodos anteriores, forma-seante a premência de defesa do mercado internoe da conquista de mercados externos caracteriza-dos pela alta competitividade. O fascismo criacorpo em países nos quais o Estado intervémviolentamente na polítízação de um proletaria-do urbano de formação recente.

Essa modalidade de Estado capitalista mani-festa-se, por vezes, em uma política desenfreadade expansão e em um alto nível de repressão in-terna, baseados no domínio de um partidopolítico controlado pela aliança entre a burgue-sia local e a tecnoburocracia civil e militar do Es-tado, aliança esta que traz as sementes da contra-dição, na medida em que a autonomia relativada tecnoburocracia partidária pode começar acriar problemas para a burguesia (23). Na reali-dade, essa é apenas urna das contradições exibi-das pelo Estado fascista. É preciso igualmenteconsiderar que o desenvolvimento de um Esta-do nacional baseado no expansionismo bu-rocrático militar e em urna burguesia local cho-ca-se com a internacionalização da economia ca-racterística da expansão do capitalismo. Entre-tanto, o Estado fascista contribuiu consideravel-mente para o desenvolvimento e unificação datecnoburocracia pública e privada, corno tam-bém o faz o Estado assistencial. Resta ainda terem conta que o capitalismo convive contingen-cialmente com formas totalitárias e não é neces-sariamente liberal em todas as formações sociaisem que se implanta e se desenvolve. Urna de-monstração inequívoca desse fato está nos re-gimes militares que dominaram urna multipli-cidade de países periféricos mas industrializadosnas últimas décadas, nesses casos a serviço dainternacionalização da economia.

Países corno a Inglaterra e os Estados Unidos,não tendo conhecido o fascismo, verão paula-tinamente o Estado liberal ceder lugar ao Estadodo bem-estar ou Estado assistencial. Essa formade Estado regulador caracteriza-se por uma forte

participação tecnoburocrática que convive comuma classe trabalhadora dotada de ampla tra-dição de luta e reivindicações, bem corno decrescente poder de barganha. As novas formasde equilíbrio relativo entre as classes possibili-tam o desenvolvimento de organismos regula-dores da economia. Por seu turno, é no interiordesses organismos reguladores que se fortalece atecnoburocracía estatal que, articulada à tecno-burocracia privada e sindical vai se constituindonuma força social bastante poderosa, que paula-tinamente vai burocratizando e controlando avida social. A informática, a robotização, apolítica de energia nuclear e os grandes veículosde comunicação de massa, localizados nosgrandes oligopólios ou no Estado restrito esca-pam de todo controle popular. O controle socialconcentra-se gradativamente nas mãos da tecno-burocracia.

Esse Estado regulador assistencial é fruto docrescimento acelerado das empresas, que setransformam em poucos e grandes conglomera-dos financeiros e oligopólios de toda ordem,bem corno do desenvolvimento dos sindicatos,que também buscam monopolizar as reivindi-cações operárias. Pouco a pouco, essas contin-gências levam ao enfraquecimento acentuadodo mercado corno princípio regulador da econo-mia e à concentração desse papel no Estado am-plo, isto é, no conjunto de instituições que se ar-ticulam formal e informalmente corno aparelhode poder das classes dominantes e que assegu-ram a realização e a distribuição da mais-valia.

Todavia, é preciso considerar que o Estadoregulador assistencial, enquanto experiência tec-noburocrática, é certamente mais tímido que osdos fascismos europeus.· Além de menos sis-temática, ela confere um peso muito maior àburguesia tradicional e ao mercado não-planificado. De qualquer forma, porém, o Estadoassistencial desenvolve a ação planificadora cen-tral tecnoburocrática e estreita a aliança entre atecnoburocracia estatal e sindical Q4>.

22. GIDDENS, Anthony. A Estrutura de Classes dasSociedades Avançadas. Rio de Janeiro, Zahar, 1975, p.326.

23. POULANTZAS, Nicos e MILlBAND, Ralph.Debate sobre o Estado Capitalista. Porto, Afrontamen-to, 1975, p. 2I.

24. Vide BERNARDO, João. Capital, Sindicatos,Gestores. São Paulo, Vértice, Biblioteca do Futuro,1987.

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o aparelho de Estado. É enquanto tal que o Esta-do se apresenta como onisciente, na medida emque se informa de todos os conflitos, e onipre-sente, na medida em que se manifesta em todasas instituições e esferas de sociedade, o que tomainteligível a noção de Estado amplo. O Estadoprecisa satisfazer às expectativas que ele mesmocria no seu esforço de silenciar os conflitos, apla-cando os descontentes. É própria desse Estado apreocupação terapêutica. Assim, no esforço degarantir fluxo e refluxo de força de trabalho, eleprecisa desenvolver as políticas sociais que con-figuram as condições gerais de produção. Quan-do, simultaneamente, o Estado assume o com-promisso de atender às necessidades do capitalglobal e de assegurar suas base de legitimação,mediante voto e apoio popular, emaranha-seem contradições sempre mais graves, que procu-ra resolver através de novas políticas, que de-pendem de recursos que só podem provir daacumulação ampliada do capital. Não sendoportanto capaz de romper esse círculo vicioso,seu único interesse es·i na preservação dasrelações de produção Q7> e é por essa razão que aluta de classes assume a forma de luta contra oEstado amplo e sua subjetividade massiva. "Noquadro da sociedade civil, observa-se o apareci-mento no seio da esfera privada, cuja im-portância sobre o plano público não cessou decrescer, uma esfera social repolitizada ondeinstituiçães sociais e aquelas (instituições) do Es-tado fundem-se num complexo único defunções, de tal modo que não é mais possívelfazer uma diferenciação nos termos das noçõesde público e privado" (28).

O capitalismo monopolista de Estado é im-pulsionado pela internacionalização da econo-

Tais considerações indicam a necessidade dese pensar a expressão capitalismo monopolistade Estado para descrever um sistema dominadopor grandes empresas monopolistas ou oligopo-listas, que nos nossos dias trocaram a concorrên-cia de preços pela concorrência tecnológica emercadológica. Os preços tomam-se mais e maisobjetos de acordos, origem da expressão preçosadministrados. É também um sistema no qual opapel econômico do Estado é fundamental. Essepapel não é apenas desempenhado pelo Estadoempresário, ou seja, pelo Estado que atua atra-vés de grandes empresas públicas ou de econo-mia mista, mas também pela atuação na econo-mia mediante uma política e um planejamentoeconômico agressivo, que, via de regra, incluisalários, ordenados, taxas de juros e lucros, tantoquanto a orientação dos investimentos. Desne-cessário parece-me insistir em que tal ação nãose restringe a um Estado convencional mas quese concretiza no Estado amplo (25).

De seu lado, os sindicatos cada vez mais po-derosos exigem do Estado investimentos emobras públicas tais como saneamento, pavimen-tação, iluminação, saúde, educação, transportes,cultura e lazer. Tais obras sociais, embora de in-teresse da classe trabalhadora, garantem umcampo fértil de existência para a tecnoburocraciaestatal e fornecem à tecnoburocracia privada eao empresariado as condições gerais necessáriasà produção e ao crescimento de produtividade.Nessa fase, o consumo da tecnoburocracia crescecom repercussões claras na estética dominante.O pós-moderno no final do século XX significapara a tecnoburocracia o que o neoclássico, no fi-nal do século XIX, significou para a burguesia.Proliferam também os aparelhos ideológicos. Háuma explosão de faculdades e universidades;uma cultura de massa vai se firmando atravésda editoração, do cinema, principalmente com ovídeo-cassete, da televisão e de outros desenvol-vimentos da indústria eletrônica. A publicidade,especialmente, domina as consciências e istoocorre tanto na esfera pública quanto na priva-da. "Já que as empresas privadas sugerem a seusclientes, nas decisões de consumo, a consciênciade cidadãos do Estado, o Estado precisa 'voltar-se' a seus cidadãos como consumidores. Destemodo também o poder público apela para a'publicity' "Q6)

A própria distinção entre esfera pública e pri-vada passa a ter utilidade apenas relativa, já queao Estado cabem as funções da manutenção dasrelações de produção, na defesa do capital globale, de forma alguma ele se restringe ao interessede frações de classe determinadas que controlam

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25. Para uma diferenciação clara dos conceitos deEstado amplo e Estado restrito, ver BERNARDO,João, "Gestores, Estado e Capitalismo de Estado" inEnsaio, São Paulo, Editora Ensaio, nll 14, 1985.

26. HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural daEsfera Pública. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984,p.229.

27. Vide OFFE, Klaus. Mudanças Estruturais do Es-tado Capitalista. Tradução brasileira de Bárbara Frei-tag. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984, apudFREITAG, Bárbara, A Teoria Critica Ontem e Hoje,São Paulo, Brasiliense, 1986, pp. 126-129.

28. HABERMAS, Jürgen. L'Éspace Publique - Ar-chéologie de La Publicité comme dimension constitu-tive de la societé bourgeoise. Traduzido do alemãopor Marc B. de Launay. Paris, Payot, 1978,P: 156.

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mia, via empresas multinacionais, e pela gene-ralização da automação, que possibilita a centra-lização do controle das grandes organizações,que vai favorecendo também o poder tecnobu-rocrático nos países periféricos. Nesses casos, osaparelhos econômicos e administrativos do Es-tado convencional funcionam como gerentes docapital monopolista internacional. Isto tem le-vado a um acoplamento dos poderes legislativo,.judiciário e executivo em benefício do último eem prejuízo do primeiro, e à marginalização dasinstâncias de poder local, favorecendo igual-mente o desempenho político das forças arma-das. De fato, o Estado regulador periférico é alta-mente burocratizado, tendendo a uma solidarie-dade com a tecnoburocracia internacional. EsseEstado, pensado em termos convencionais, pro-cura ainda compatibilizar os interesses interna-cionais com os da alta burguesia ou empresaria-do local (freqüentemente gestor de parte do capi-tal internacional de que é sócio) e com os da mé-dia tecnoburocracia igualmente local. Dessa for-ma, tanto nos países ditos centrais quanto nosperiféricos parece evidente o caráter anacrônicodaquelas colocações que procuram atribuir à tec-noburocracia o caráter de ,simples funcionáriado empresariado nacional. E bastante difícil, nosdias que correm, não perceber que métodos es-pecíficos de operação, monopólio de infor-mações, capacidade de influência e monopóliotécnico da decisão conferem à tecnoburocraciauma autonomia considerável. Tudo isto fazdela uma categoria social que interpreta de acor-do com seus próprios interesses os interesses dapluralidade social e que participa ativamente daapropriação do sobretrabalho sob forma de orde-nados e outros benefícios.

Sobretudo é importante considerar que a tec-noburocracia obtém privilégios e amplia as or-ganizações que constituem a base de seu poder.Isto é em larga medida possível no capitalismo,porque é a atividade das instituições bu-rocráticas, com seus aparatos reguladores, pro-dutivos, repressivos e ideológicos que sustenta adominação de classe e sua reprodução em escalainternacional (29). Todavia, no complexo sistemade equilíbrio de forças que caracteriza o capitalis-mo, a tecnoburocracia também participa da pro-dução de bens, do estabelecimento de regu-lações e da prestação de serviços que visam satis-fazer alguns interesses das classes dominadas.Dessa forma, é preciso identificar três papéisbásicos desempenhados pela tecnoburocracia nomundo contemporâneo. Em primeiro lugar, elaage como representante de seu próprio inte-resse. Em segundo lugar, promove e assegura os

interesses da alta burguesia ou empresariado e,em terceiro lugar, procura satisfazer interessesde grupos menos privilegiados. E geralmenteem nome desse terceiro papel que a tecnoburo-cracia afirma a legitimidade de seu poder.

Em nível de aparência, esta complexidade depapéis leva a tecnoburocracia do Estado conven-cional a situar-se em âmbitos diversos. Entre-tanto, "se bem que os diferentes papéis que de-sempenha o aparato estatal possam ser visuali-zados, analiticamente, como três dimensões deatividades diferenciadas, o balanço final não é oresultado nem de uma programação racionalnem de uma distribuição ao acaso, mas sim doconfronto, da luta política ao redor de recursosescassos entre atores sociais portadores de inte-resses conflitivos e contradit6rios" (30). Os apare-lhos de Estado administrados pela tecnoburocra-cia constituem portanto uma arena de conflitos,mas são exatamente esses conflitos que lhes dãoespecificidade e dinâmica próprias. Com efeito,nos aparelhos de Estado os administradores sãoatores ativos que possuem autonomia suficientepara a articulação funcional de seus interessesespecíficos como os interesses de diferentes se-tores da sociedade civil.

Essas considerações levam à percepção da di-ficuldade relacionada à questão da avaliação daeficácia e da eficiência dos aparatos burocráticos.Geralmente se diz que uma tecnoburocracia éeficiente quando satisfaz interesses compartilha-dos por diversos segmentos da sociedade, espe-cialmente os mais desfavorecidos, aos quais nonível do discurso se propõe servir. Contudo,quando se observa que a tecnoburocracia age naarena da luta de classes, que suas instituiçõesvisam primordialmente satisfazer interesses eobjetivos próprios e do empresariado (este, emlarga medida, também gestoríal), a avaliação tor-na-se mais difícil. A eficiência do Estado en-quanto rede organizacional parece estar justa-mente no sucesso ou insucesso na preservação eampliação do poder tecnoburocrático, ao mesmotempo que serve à alta burguesia ou empresaria-do, sob a capa de representante e promotor deum interesse geral.

29. Vide OSZLAK, Oscar e O'DONNEL, Guilher-mo. "Estado y Políticas Estatales em América Latina:Hacia una estrategia de investigaci6n" in Doc. CEDES/C.E. CLACSO 4, Buenos Aires, 1976.

30. OSZLAK, Oscar. "Notas críticas para una teoriade la burocracia estatal" in Doc. CEDES/C.E. CLACSO8, Buenos Aires, 1977, p. 38.

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da Glasnost, distinguir um do outro no exercíciodo poder. Porém, pode-se afirmar que prevaleceabsolutamente o Estado A quanto aos critérios e.às formas que assume esse poder. O Estado Rsubsiste contudo como face publicitária, seja naUnião Soviética, seja nos demais países dessebloco C32>.

O totalitarismo na URSS é um complexomulti dimensional. A compreensão do fenô-meno sob a ótica da questão da tecnoburocracia éindiscutivelmente útil, mas não é necessaria-mente suficiente. As visões de estatismo ou demodo de produção tecnoburocrático são merasideologias que ocultam o fato central da tecno-burocracia ser uma classe constitutiva do capita-lismo e não o produto - produtor de qualquermodo de produção diverso do capitalismo ou dosocialismo. E preciso, certamente, e nisto con-cordo com Morin, compreender que o totalita-rismo da URSS "comporta características de or-ganização de classe, de casta, de mito, de religião,sem (que seja possível) o reduzir a uma dessascaracterísticas" (33). Sem dúvida o totalitarismosoviético é um complexo, mas o é na medidaem que o capitalismo é um complexo. A noçãode imperialismo ajuda a compreender o totalita-rismo soviético, apenas na medida que o capita-lismo é em si um complexo imperialista, embo-ra esse imperialismo possa assumir modali-dades diversas, o que de forma alguma leva à re-cusa do materialismo histórico como método deanálise. "É por essa razão que a decisão tomada afavor do materialismo histórico como critérioque permite orientar a pesquisa não é arbitráriaa meus olhos: o desenvolvimento das forçasprodutivas em associação com a maturidadecrescente das formas de integração social signifi-ca um progresso da capacidade de aprendizagemnessas duas direções que são o conhecimentoobjetioante à consciência moral-prática "(34).

De qualquer forma, porém, tecnoburocraciado Estado convencional ou restrito e tecnoburo-cracia dos grandes conglomerados, tanto quantodos grandes sindicatos burocratizados, consti-tuem uma única categoria social. "No processoeconômico global o Estado A (amplo) e o EstadoR (restrito) inter-relacionam-se. A relação entreambos é um dos aspectos da relação entre a ex-torsão da mais-valia e a sua distribuição. Antesde enunciar as grandes etapas atravessadas pelarelação entre os dois tipos de Estado convemdeixar claro que não há qualquer conjugaçaopreferencial de dadas formas de organização deum com dadas formas do outro. Assim, o EstadoR pode ser democrático sendo o Estado A alta-mente repressivo, o que implica um modelo deacumulação dispersa do capital, assente numaexploração baseada fundamentalmente na mais-valia absoluta; temos um exemplo desta conju-gação na monarquia censitária francesa. Inversa-mente, pode o Estado R ser ditatorial e o EstadoA aparecer relativamente mais permissivo,consoante um modelo em que a acumulação docapital é centralizada e a exploração se processaem termos da mais-valia relativa; um exemploé o capitalismo de Estado húngaro desde as re-formas de 1968-1969. Ou pode o Estado R ser de-mocrático e o Estado A ser também relativa-mente menos repressivo, implicando uma acu-mulação dispersa do capital e um desenvolvi-mento de mais-valia relativa; os regimes keyne-sianos, sobretudo os de antes da crise de 1974,são disso um exemplo. Pode ainda o Estado Rser ditatorial e o Estado A ser altamente repres-sivo, consoante um sistema de acumulação cen-tralizada do capital e de exploração fundamen-talmente assente na mais-valia absoluta; umexemplo disto é o capitalismo de Estado naURSS durante os dois primeiros planosqüinqüenais. As nuances são incontáveis, comoo são as variações possíveis de cada fator e as ar-ticulações entre eles" (31).

Os países do chamado bloco ocidental experi-mentaram um processo de desenvolvimentocapitalista, no qual a hegemonia do Estado Anão levou à assimilação total dos aparelhos doEstado R. Assim, estes subsistem malgrado suarelativa insignificância. Muito diferente foi oprocesso nos países do COMECON como aURSS, nos quais o centro do poder de Estado,que se afirmou inicialmente de forma plena noEstado R, deslocou-se posteriormente emdireção ao Estado A. Dessa forma, o percurso le-vou a que o Estado A acabasse por assimilar tãoplenamente o Estado R, que em nossos dias épraticamente inviável, mesmo com as reformas

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31. BERNARDO, João. "Gestores, Estado e Capita-lismo de Estado". Op. cit., p. 95.

32. Idem, ibidem, p. 97.

33. MORIN, Edgard. De la Nature de l'URSS. Com-plexe Totaliiaire et nouuel Empire, Paris, Fayard,1983, p. 272.

34. HABERMAS, Jürgen. "Pour une reconstructiondu matérialisme historique" in HABERMAS, Jürgen,Aprés Marx, traduzido do alemão por [ean-René Lad-míral e Marc B. de Launay, Paris, Fayard, 1985, p. 164.

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De qualquer modo e em qualquer caso, a tec-noburocracia busca legitimidade na sociedadeque a sustenta e a que teoricamente serve. Comotodo poder, o poder tecnoburocrático precisa serlegítimo, o que em termos políticos não tem ne-cessariamente um conteúdo ético, significandoapenas um conjunto de princípios e crenças queo sustentem. Todavia não se deve esperar que aanálise da busca da legitimidade saia das bocasdos tecnoburocratas. Etimologicamente teoriasignifica contemplação e, se para exercer o podera proximidade de seus centros é conveniente,para teorizar sobre ele, é preciso guardardistância. bualquer sociedade dispõe de um sis-tema de legitimação. Necessariamente, esse sis-tema deve corresponder tanto à multiplicidadede membros que a compõem quanto à multi-plicidade de circunstâncias nas quais uma açãoprecisa ser legitimada. Para que o sistema sejaválido para todos os membros da sociedadedeve ser simples o bastante e não extremamenteelaborado. Dessa forma, uma bandeira ou umhino servem à função legitimadora. Esse siste-ma ainda, além de simples, precisa ser conheci-do de todos. Para servir para quaisquer cir-cunstâncias, é preciso que possua uma lógicaque permita responder adequadamente aos dife-rentes problemas que se colocam. Contudo, paraque essas lógicas constituam sistemas de legiti-mação úteis, precisam relacionar-se a certas re-presentações de modo que estabeleçam tanto asfontes do poder legítimo quanto o "locus" deaplicação desse poder. E nessa linha que se situaa clássica distinção weberiana entre legitimidadetradicional, carismática e racional-legal. Enquan-to que a primeira se refere à distinção entre cul-tura e natureza, isto é, ao poder fundado emusos e costumes imemoriais e aplicação à natu-reza, a segunda refere-se à distinção entre sagra-do e profano. Já a legitimidade racional-legal re-fere-se à distinção natureza, locus de emergênciadas leis, e cultura, lugar de aplicação das leis vis-tas como conformes à natureza. Enquanto que oAntigo Regime francês assentava-se na legitimi-dade tradicional, a Revolução Francesa já se sus-tenta na legitimidade racional-legal que fazemergir. Dessa maneira, o governo dos in-divíduos foi sendo substituído historicamentepelo governo mediado pela norma impessoal,que difere das demais na medida em que nãopermite colocar explicitamente a questão da legi-timidade daqueles que governam por trás dasleis, algo que não ocorre com a legitimidade ca-rismática nem com a tradicional que muito cla-ramente explicitam os detentores legítimos dopoder. Esta peculiaridade parece fazer da legi-

timidade racional-legal algo mais frágil que ou-tras formas históricas de legitimidade. Assim, opoder no capitalismo é constantemente questio-nado, ao ponto de se falar em uma crise de legi-timidade. Não só se questiona o poder comotambém seu exercício (3S).

O sistema de legitimidade que se construiuno liberalismo pode possivelmente ser resumi-do na afirmação de que qualquer indivíduo,grupo ou organização baseia sua legitimidadeem um princípio que, quando contestado pelarealidade, deve modificar-se, desenvolvendoum novo discurso legitimador da ação (36). A le-gitimidade liberal repousa na substituição dopersonalismo e da superstição pela razão e, por-tanto, pela ciência. Está implícita a idéia de que aciência deve substituir o arbítrio do rei. A razãoaparece, no plano lógico, como mediação entreas "leis da natureza" e os "cidadãos livres eiguais". Sobretudo, "a doutrina liberal clássicasempre sustentou que a função do Estado é a degarantir a cada indivíduo não só a liberdade masa 'equal liberta' " (37). Assim, um sistema nãopode ser visto como justo se os indivíduos sãoapenas livres e não igualmente livres (38).

O liberalismo pressupõe ainda uma sociedadeorganizada em dois setores. O primeiro deles é osetor privado, no qual reinam as "leis da nature-za ", o mercado, a competição perfeita, a livreiniciativa. O segundo é o setor público, cujafunção é permitir a livre ação das "leis da natu-reza" no setor privado. Entende-se que a legi-timidade racional-legal permeia os dois setores,na medida em que as chamadas "leis da nature-za" e a conformidade a elas são tidas previa-

35. - -, Raison et Légitimité: problémes de légi-timation dans le capitalisme avancé, Paris, Payot,1980; e LAUFER, Romain, "Crise de légitimité dansles grandes organizations" in Revue Française de Ges-tion, 1977, apud LAUFER, Romain e PARADEISE,Catherine, Le Prince Bureaucrate. Maquiavel au Paysdu Marketing, Paris, Flamarion, 1982, p. 43.

36. Vide LAUFER, Romain e BURLAUD, A. Ma-nagement Public, gestion et légitimité. Paris, Dalloz,s/d, p. 9, apud LAUFER, Romain et PARADEISE,Catharine, op. cit., p. 43.

37. BOBBIO,Norberto. "Ma che cosa é questo socia-lismo?" in BOBBIO, Norberto, Le Ideologie e il poterein crisi. Pluralismo, Democrazia, Socialismo, Comu-nismo, Terza Via e Terza Forza, Firenze, Felice LeMonnier, 1981, p. 29.

38. Idem, ibidem, idem.

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chamado de Estado "gendarme". Paulatina-mente, tal Estado passa a atuar na área social,tanto quanto na economia, o que faz com que ocritério da potência pública comece a entrar emchoque com o direito de propriedade privada.Em breve o Estado deverá submeter-se ao mer-cado, na medida em que o melhor critério delegitimidade já não se adapta às novas funçõesassumidas. Começa a busca de suporte externopara o poder público que em breve se tornaráuma das características de todos os Estados bu-rocráticos modernos (40).

Procura-se então um novo critério de legiti-midade. A natureza do poder do Estado restritojá não legitima. A legitimidade passa a ser bus-cada na finalidade de sua ação. Aos poucos, de-senvolve-se a noção de Estado legítimo pelosserviços prestados à comunidade, inclusive, ealiás principalmente, ao setor privado. Essenovo critério chega a ser definido na França pordecreto. Suas conseqüências acabam institucio-nalizando a interpenetração dos setores públicoe privado. Dessa forma, certos setores públicossubmetem-se ao direito comum, enquanto cer-tos serviços privados submetem-se ao direitopúblico. Firma-se aos poucos o Estado do bem-estar, cujos limites com relação ao setor privadosão cada vez menos perceptíveis. O Estadocresce, e, com ele, a administração pública. Háuma expansão física do poder executivo queleva à inclusão de um número cada vez maiorde atividades nas esferas econômica e social.Essa inclusão implica a absorção de recursos fi-nanceiros de monta. Assim, no final do séculoXIX, a porcentagem do Produto Nacional Brutoalocada ao governo central era de 15% naFrança. Essa porcentagem passa em 1960 para40%, refletindo o crescimento continuado doexecutivo (41).

Todavia, o ano de 1945 serve de marco para acrise do critério do serviço como base do poderdo Estado. Em princípio, essa crise é uma crisede fronteira entre setor público e privado e, pordefinição, a crise do liberalismo.

mente como racionais e na medida em que sãotambém tidas como racionais as leis estabeleci-das de acordo com objetivos prévios que go-vernam a ação do poder público.

O liberalismo experimenta uma crise dessalegitimidade e essa crise emerge do setor priva-do, básica mas não exclusivamente, repercutin-do no setor público, que, por sua vez, também éfonte de crise. No caso do setor privado, o pri-meiro momento crítico ocorre como os Rocke-feller, os Du Pont de Nemours, os Vanderbilt.Na penúltima década do século passado, essesgrupos já começaram a dominar o mercado, de-sacreditando a concorrência pura e perfeita.Mesmo assim, no plano absolutamente ide-ológico,o credo liberal continuou dominante. Osegundo momento crítico virá apenas em mea-dos do século XX, quando a separação maisnítida entre tecnoburocratas e empresários alte-ra os riscos dos segundos. Igualmente, o chama-do interesse nacional, seja na produção de bens,seja na prestação de serviços considerados estra-tégicos, seja ainda na criação ou manutenção deempregos, torna a f31lênciadas grandes organi-zações impossível. E o momento em que se as-siste a um considerável movimento de concen-tração de empresas, não podendo mais o merca-do ser visto como fonte fundamental de legi-timidade do setor privado. Assim, a história dalegitimidade tanto do setor público quanto dosetor privado passa por dois momentos críticos:1880-1890 e 1945-1960<39>.

Na verdade, todos esses fenômenos relacio-nam-se ao fortalecimento da tecnoburocraciaprivada, isto é, do Estado amplo, cuja legitimi-dade não mais é fornecida pelas leis de mercadonem pelo direito de propriedade, no sentido dapropriedade privada dos meios de produção,mas sim pela crença no conhecimento técnico eorganizacional como fonte de salvação da socie-dade. É o triunfo sempre problemático da ideo-logia do progresso. No caso do setor público, aFrança constituiu um bom paradigma da criseda legitimidade liberal. Tomando como pontode partida o Antigo Regime, depara-se com ocritério da potência pública como fonte de legi-timidade. Trata-se de um sistema no qual a au-toridade governamental é herdeira da soberaniatradicional submetida tão somente à lei consti-tucional. A administração pública, por sua vez,submete-se a essa autoridade. Não há nesse casoqualquer subordinação do setor público ao setorprivado. Qualquer representante do Estado, as-sim definido jurídica e estatutariamente sub-mete-se apenas à jurisdição pública. O Estadorestrito é assim todo-poderoso e por essa razão é

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39. Vide LAUFER, Romain et PARADEISE, Cathe-rine. Op. cit., pp. 46-47.

40. Vide ROURKE, Francis E. Bureaucracy, Politicsand Public Policy, Boston, Little Brown, 1969.

41. Vide FRIEDRICH, Carl J. Constitutionai Go-vernment and Democracy. Theory and Practice in Eu-rope and America. Massachussets, Blais deU, 1968, pp.24-29.

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Já não se sabe, então, na França, o que é maté-ria de direito privado e o que é matéria de direi-to público. Pouco a pouco, cresce entre os tecno-burocratas do setor público a noção de que as leissão ultrapassadas e, portanto, que existem paranão serem obedecidas. Constituiu-se paulatina-mente um direito oficioso dos gestores públicos.O fato é que já não se pode falar em legitimidadedecorrente do serviço prestado. Aumenta, aospoucos, o arbítrio da tecnoburocracia governa-mental. As políticas nessa esfera, razão de ser datecnoburocracia pública e objeto de tratamentopretensamente científico nas entidades forma-doras de administradores públicos ou prestado-ras de serviços ao Estado restrito, parecem, antesde mais nada, configurar acordos explícitos ouimplícitos entre tecnoburocratas estatais, inte-resses econômicos nacionais e internacionais esetores da elite política. Assim, a tecnoburocra-da pública e seus parceiros "prestam o seu ser-viço" à nação (42). Aliás, convém recordar que aidéia de nação é algo que surge no século XVIII,servindo de justificativa para o Estado no mun-do moderno (43). O Estado passa a ser o "servidorda sua nação", ou até mesmo a ser identificadocom a própria nação. Os revolucionários de 1789usam e abusam da legitimação do Estado atravésdo conceito de nação, da mesma forma que pro-curam identificar de todos os modos os interes-ses do Estado com os interesses da nação e,numa operação final, Estado e nação.

O fato de tudo isso ocorrer na França não égratuito. Nos finais do século XVIII, Estado epovo pareciam mais identificados naquele paísdo que em qualquer outro local. Cabe lembrarque a Itália e a Alemanha não estavam aindaunificadas e que Inglaterra, Áustria e Espanhaeram reinos ou impérios que congregavam po-vos diversos. Não que a história francesa seja es-pecialmente única na Europa com relação à con-vivência dos povos diversos num mesmo país;todavia, a política de centralização que implicoumesmo a imposição de um idioma comum a to-dos os povos dá à França certa peculiaridade. Po-rém, se a idéia de nação surge para dar legitimi-dade ao Estado, corno a história parece indicar,então talvez seja mais próprio afirmar que é oEstado que cria a nação, ao contrário do que que-rem muitos. Todavia, corno nota Chantebout,isto de forma alguma implica que toda a popu-lação submetida a um determinado Estado ve-nha a se constituir necessariamente em urnanação, embora com muita freqüência isto ocor-ra. Há inúmeros casos atuais e passados que de-monstram que o fato de pessoas pertencentes auma mesma etnia ou que compartilham até

mesmo urna religião muitas vezes é determi-nante de quem domina o Estado de quem cria anoção de nação. Há casos, inclusive, em que ogrupo dominante parece tão atraente e podero-so, que indivíduos dos grupos dominados re-nunciam à sua identidade cultural e são por eleassimilados. Em suma, a nação é de fato uma co-munidade, mas ou é a comunidade dos que sãofavoráveis ao Estado ou a dos que lhe são desfa-voráveis (44). Tudo isto de fato parece apenas en-cobrir que o Estado restrito está principalmentea serviço da tecnoburocracia pública e da tecno-burocracia privada, que vão realizando um tra-balho lento de confisco do poder que lhe foraentregue pela burguesia, sob a capa de serviçoprestado à nação ou ao povo.

O setor público move-se por urna lógicaprópria, mas em essência esta difere pouco da dosetor privado a que efetivamente serve. Trata-seda lógica do conhecimento instrumental cornosalvação, inspirado na ideologia do progresso.Corno essa lógica está fundamentada no pressu-posto falso de que o progresso econômico bene-ficia a todos e confere poder legítimo aos que de-têm esse tipo de conhecimento, ela é frágil, epode converter-se inclusive na lógica da domi-nação tecnoburocrática baseada na segurança erelativa distribuição igualitária da renda, demodo a assegurar a conformidade social. Entre-tanto, pensada em termos internacionais, essaconversão é complexa sob as contradiçõeseconômicas, sociais, políticas e ideológicas do ca-pitalismo, o que parece indicar que a construçãode urna sociedade efetivamente igualitária nãopossa ser tarefa da tecnoburocracia mas sim daprópria sociedade, o que significa dizer, da classetrabalhadora, a única a não se beneficiar de for-ma significativa dos frutos de seu próprio traba-lho. Entretanto, é preciso frisar que, assim sen-do, cabe à classe trabalhadora e não às tecnobu-rocracías sindicais e partidárias, que indiscuti-velmente são úteis sob o capitalismo, principal-mente nas épocas de refluxo do movimentooperário, a tarefa que lhe é própria. O

42. Vide THOENIG, j.c, L'Ere des Technocrates.Paris, Editions d'Organisation, 1973.

43. Vide POLIN, R.; CHEVALIER, J.J. e DE-RATHÉ,R "L'Idée de nation" in Annales de philoso-phie politique, nll 8, Paris, Presses Universitaires deFrance, 1969.

44. Vide CHANTEBOUT, Bernard. Do Estado. UmaTentativa de Desmistificação. Rio de Janeiro, EditoraRio,1977, pp. 52-57.

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