Origem Pensamento Cientifico

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Metodologia de Estudo Cientifico

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    A Origem do Pensamento Cientfico O ser humano levou milhes de anos para evoluir at o estado atual. Essa evoluo levou ao aparecimento de capacidades artsticas, religiosas e cientficas na mente humana, que so consideradas por muitos como as mais nobres das nossas capacidades. O linguista norte-americano Steven Pinker (1989) pergunta: como teria sido possvel que a evoluo tenha produzido um crebro capaz de realizaes especializadas e complexas como a matemtica, a cincia e a arte, dada a total ausncia de presses seletivas para essas habilidades abstratas em qualquer momento da histria? Antes de tratarmos dessa pergunta, acho que vale a pena refletir um pouco sobre a afirmao que est contida na pergunta de Pinker. Ser que de fato a posse de habilidades abstratas no oferece qualquer tipo de vantagem seletiva aos indivduos que a possuem? Voltando pergunta de Pinker, uma das grandes questes para os interessados na evoluo humana e na histria da cincia : Como surgiu a cincia? Segundo o arquelogo norte-americano Steven Mithen (2002), a capacidade de pensar cientificamente se origina na mente humana a partir do momento em que trs propriedades crticas aparecem e interagem (a interao essencial). Essas trs propriedades so:

    Habilidade de gerar e testar hipteses (uma propriedade presente no apenas em humanos, mas em outras espcies animais tambm);

    Capacidade para desenvolver e utilizar ferramentas para resolver problemas especficos (essa capacidade se tornou ainda mais importante a partir do momento em que os humanos primitivos passaram a usar sistemas externos de memria por exemplo, pinturas rupestres e entalhes em madeira ou marfim para preservar informaes);

    Uso de metforas e analogias (as ferramentas do pensamento, segundo Daniel Dennett, 1991). Essas metforas e analogias podem se restringir a um domnio apenas, mas se tornam muito mais poderosas quando ultrapassam os limites entre os domnios, como na associao de uma entidade viva com algo que inerte, ou

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    na gerao de uma idia sobre algo que tangvel. Para dar alguns exemplos, falamos do corao como uma bomba mecnica, do eltron como uma nuvem de probabilidade, da seleo natural como um relojoeiro cego, da soluo de uma equao como bem comportada, etc.

    Ainda segundo Mithen, a capacidade de interligar essas trs propriedades e, em particular, de explorar o uso de metforas e analogias envolvendo elementos de diferentes domnios, se tornou possvel entre 100 e 30 mil anos atrs, quando a mente humana adquiriu o que ele chamou de fluidez cognitiva. No nosso objetivo aqui destrinchar as vrias etapas da evoluo da mente humana e muito menos tentar determinar em que ponto dessa evoluo a cincia surgiu. Do ponto de vista desta disciplina, o que gostaria de destacar dos pargrafos acima a enorme quantidade de tempo que a humanidade levou para atingir o estado de fluidez cognitiva do qual fala Mithen. Os nossos primeiros antepassados teriam vivido na frica h aproximadamente seis milhes de anos, mas somente a partir dos ltimos cem mil anos dessa histria (menos de 2% do tempo total) que comearam a aparecer vestgios de algo que hoje em dia poderamos chamar de cincia, arte e religio. Outro ponto importante para reflexo que a cincia no surgiu de repente ou foi inventada num dado momento. Ela evoluiu ao longo do tempo, medida que as pessoas descobriam novas ferramentas e tcnicas, adotavam novos hbitos de comportamento e desenvolviam novas maneiras de pensar na tentativa de explicar os fenmenos sua volta. E essa evoluo no parou; a cincia continua a evoluir (pensemos nisso para a prxima aula). Uma questo interessante, e que, provavelmente, nunca ser totalmente respondida, se o surgimento da cincia poderia ser um processo de gnese independente na mente humana ou se ele necessariamente precisaria que outras formas de compreenso e explicao do mundo surjam primeiro para depois aparecer e evoluir. Refiro-me aqui s chamadas formas mtico-religiosas de explicao do mundo, que, segundo as evidncias arqueolgicas e histricas, teriam surgido primeiro do que a cincia. Falaremos sobre o que a cincia depois, mas neste ponto conveniente estabelecer alguma forma de distino entre explicaes cientficas dos fenmenos e explicaes

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    mtico-religiosas. Vamos assumir que explicaes cientficas seriam baseadas puramente em causas e processos naturais e no-intencionais enquanto que explicaes mtico-religiosas invocariam a interveno de entidades sobrenaturais, como deuses e divindades, ou de algum tipo de vontade ou esprito que anima as coisas. Segundo todas as evidncias arqueolgicas e histricas, as formas mtico-religiosas de explicao e entendimento do mundo surgiram antes na histria da humanidade do que as formas cientficas1. As evidncias antropolgicas tambm confirmam isso, pois todas as chamadas culturas primitivas conhecidas possuem formas mtico-religiosas de compreender o mundo, mas pouqussimas possuem algo que se possa chamar de cincia (conforme a definio dada acima). Por qu? Porque seria necessrio primeiro entender o mundo em termos de deuses e espritos para s depois aparecerem formas desencantadas ou dessacralizadas de compreend-lo? Talvez a resposta para esta pergunta seja porque um agrupamento humano que inicie suas tentativas de compreender e explicar os fenmenos observados usando apenas causas naturais, frias e sem propsito, no consiga tirar dessa matriz conceitual elementos ticos e morais suficientes para adquirir estabilidade social e prosperar. Por outro lado, um agrupamento humano que inicie sua trajetria vendo o mundo como algo mgico e sagrado teria uma vantagem competitiva em relao ao primeiro e rapidamente se tornaria dominante. Segundo o socilogo francs mile Durkheim (1912), o papel da religio o de estruturar a sociedade. Para ele, os rituais e prticas religiosas seriam mecanismos de manifestao da solidariedade e do esprito de grupo. O socilogo norte-americano Roy Rappaport (1999) vai mais alm e identifica o ritual como responsvel pela emergncia da prpria linguagem, caracterstica essencial para a evoluo humana. Durante a execuo de ritos, frmulas sonoras bsicas so repetidas tantas vezes que adquirem significado prprio, passando a ser usadas como referncias para a estruturao do mundo e da sociedade.

    1Uma importante consequncia disso que a esfera do sobrenatural, do divino e do sagrado, nas suas mltiplas manifestaes, esteve e ainda est, em grande medida, na base da constituio de todos os sistemas sociais, jurdicos e polticos humanos.

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    Talvez alguns cientistas se incomodem com a constatao de que o pensamento mtico-

    religioso precedeu o pensamento cientfico, mas o fato que no se pode tirar uma moral

    da cincia. O que a lei da gravitao universal, o princpio de ao das massas ou as

    distantes galxias tm a nos dizer sobre o que certo ou errado, o bem e o mal? Nada.

    Apesar disso, importante notar que depois de milnios de convvio em sociedade no

    mais necessrio tirar os princpios morais e ticos que regem uma sociedade de religies

    ou mitos de criao. Os modernos estados laicos em que vivemos tm suas leis e normas

    de conduta baseadas em princpios humanistas e ecolgicos de respeito ao ser humano e

    vida e natureza de maneira geral.

    Para terminar esta aula, vamos deixar para reflexo um exemplo dado pelo fsico hngaro

    Kroly Simonyi. Pense no grau de sofisticao necessrio para que se faa uma

    representao bidimensional de um objeto tridimensional, como o desenho de um biso

    em uma caverna pr-histrica, por exemplo (veja a figura abaixo). A representao

    bidimensional de um animal requer:

    alto grau de abstrao;

    elevado poder de observao;

    capacidade tcnica para realizar o desenho de maneira satisfatria.

    Pense tambm que um desenho como esse poderia significar no apenas a representao

    do conceito de biso (do particular para o geral), como a mente moderna imaginaria, mas

    tambm a invocao de poderes ou foras que levariam o ser humano que o desenhou a

    caar e matar um biso no dia seguinte (do geral para o particular). Acho que este

    exemplo ilustra bem a maneira unificada (mstica) entre representao e realidade como a

    cincia teria comeado a se desenvolver na mente primitiva.

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    http://kids.britannica.com/comptons/art-116468/Prehistoric-Caves

    Referncias

    Dennett, D. Consciousness Explained. Nova York: Little, Brown & Company, 1991.

    Durkheim, E. As Formas Elementares da Vida Religiosa. So Paulo: Martins Fontes,

    2003.

    Mithen, S. A Pr-Histria da mente: uma busca das origens da arte, da religio e da

    cincia. So Paulo: Editora UNESP, 2002.

    Pinker, S. Learnability and Cognition. Cambridge, MA: MIT Press, 1989.

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    Rappaport, R. Ritual and Religion in the Making of Humanity. Cambridge: Cambridge

    University Press, 1999.

    Simonyi, K., A Cultural History of Physics. CRC Press, Boca Raton, Fl, EUA, 2012.