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Origenes Lessa - Memorias de Um Cabo de Vassoura

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Livro infantil

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Orgenes Lessa

Prmio Mrio de Andrade, 1975

Memrias de um Cabo de VassouraIlustraes Lee38a EdioEDIOURO

Vocabulrio

As explicaes contidas nas notas de rodap visam um maior entrosamento do leitor com o texto.

Muitas vezes, durante o decorrer da leitura, palavras ou formas de expresso so apenas parcialmente interpretadas ou nem mesmo isso acontece. Assim, o que se verifica um mau aproveitamento do trabalho literrio e, o que pior, um possvel desinteresse pela leitura.

Objetivamos, ento, dentro de cada texto e de acordo com o contexto, abrir novas fronteiras para o pequeno leitor, oferecendo-lhe maiores esclarecimentos, proporcionando-lhe um enriquecimento de vocabulrio e, ao mesmo tempo, um aprimoramento de sua forma de expresso.

Sempre existiro outras formas que no as usadas para fazer uma criana compreender o que leu.

Em se tratando de interpretao, o trabalho estar sempre em aberto para quaisquer modificaes.

Esperamos, assim, atingir nossos propsitos.

A EquipeAgradecimento

A Editora agradece equipe de professores, escolhidos criteriosamente em um colgio que h muitos anos vem utilizando, sistematicamente, os livros da Ediouro. Esta equipe foi convidada pela Direo da Empresa para a difcil tarefa de examinar o vocabulrio de cada livro, procurar explicar o significado dos termos ao nvel de compreenso dos alunos e fazer uma classificao dos diversos livros de acordo com a idade dos presumveis leitores.

Sabamos que muitas divergncias poderiam surgir e ainda surgiro no futuro, especialmente quanto ao modo de interpretar os vocbulos.

Por isso os professores insistiram na idia de a Editora rever, no futuro, parte do trabalho ora efetuado.

Assim a Editora espera que outros professores, no manuseio dirio destes livros, nos enviem sugestes e crticas para que possamos, com o passar do tempo, aperfeioar o que j foi feito.

Desejamos expressar nossos agradecimentos pela to valiosa colaborao da equipe chefiada por Betty Zimmerman.Orgenes Lessa

Paulista de Lenis. Orgenes Lessa nasceu em 12 de julho de 1903 e viveu a sua primeira infncia em So Lus do Maranho, onde seu pai, historiador, jornalista e pastor protestante, esteve frente de uma igreja local. filho de Vicente Themudo Lessa e Henriqueta Pinheiro Lessa.

Aps sua estada no Maranho, voltou para So Paulo, em 1912. Depois de tentar vrias carreiras, entregou-se definitivamente ao Jornalismo, Publicidade e Literatura, a partir de 1928.

Ao tomar parte na Revoluo Constitucionalista de 1932, foi preso e removido para o Rio de Janeiro. No presdio de Ilha Grande, escreveu a reportagem No H de Ser Nada..., trabalho que o projetou nos meios literrios. Desde 1970, passou a dedicar-se a literatura infanto-juvenil, escrevendo vrios livros, como: Memrias de um Cabo de Vassoura; Napoleo em Parada de Lucas; Confisses de um Vira-Lata; Memrias de um Fusca; Os Homens de Cavanhaque de Fogo; A Escada de Nuvens; A Floresta Azul; A Cabea de Medusa; Juca Jabuti, Dona Lencia e a Super ona; Procura-se um Rei; As rvores Aflitas e A Multiplicao Milagrosa; Chore no, Taubat... O Mundo Assim, Taubat; As Letras Falantes; Podem me Chamar de Bacana; Jaso e os Centauros Invisveis e outros.No entanto, Orgenes Lessa se iniciou na Literatura como contista e seu primeiro livro foi O Escritor Proibido, publicado em 1929. Entre os livros desse gnero, citam-se Omelete em Bombaim; Passa Trs; A Desintegrao da Morte; Balbino, Homem do Mar e 9 Mulheres. Seus contos tm sido traduzidos para diversas lnguas e figuram em inmeras antologias nacionais e estrangeiras.

Destacam-se entre suas novelas e romances O Feijo e o Sonho (Prmio Antnio de Alcntara Machado), com milhares de exemplares vendidos; Rua do Sol (Prmio Carmem Dolores Barbosa); A Noite sem Homem (Prmio Fernando Chinaglia); O Evangelho de Lzaro (Prmio Luza Cludia de Souza, do Pen Club do Brasil) e Beco da Fome.Alm de No H de Ser Nada..., escreveu ainda Ilha Grande, sobre a Revoluo Constitucionalista. Publicou tambm um estudo sobre Getlio Vargas na Literatura de Cordel. Maria Eduarda

O. L.Eu j fui cabo de vassoura, confesso. Um cabo de vassoura como tantos outros. Seria longo contar tudo o que tenho passado nesta longa vida, desde que me arrancaram da rvore em que fui tronco e me levaram a uma oficina, onde fui cortado, torneado e mil coisas sofri, at conhecer a nova funo que me reservava o destino.

Meus irmos de floresta, muitos corta dos comigo na mesma ocasio, depois que deixaram de ser galho ou tronco de rvore para ser madeira, que como nos chamam depois do serrote ou do machado, esto espalhados por esse mundo de Deus. Muitos, hoje, so caixas e caixotes. Graas a isso, tm acabado conhecendo at pases estrangeiros, levando laranjas ou latas de conserva. Outros acabaram mesas, cadeiras, armrios, mveis de toda sorte. Tenho primos que so portas, janelas e se contentam olhando o movimento da rua. Alguns, to orgulhosos no tempo das folhas, quando o vento passava e assobiava no arvoredo, so hoje, apenas, soalho. Fraco destino, para quem vivia na altura e sonhava, na pior das hipteses, ser, pelo menos, teto ou armao de telhado, coisa que, para ser vista, obriga o bicho homem a levantar a cabea. Ser pisado e repisado o dia inteiro, tbua humilde de assoalho, por ps desconhecidos, de sapato sujo, triste para quem j foi rvore e enfrentou raios e ventanias.

Tenho visto e ouvido muita queixa pela vida a fora. Mas o triste, mesmo, a suprema humilhao para quem foi rvore, acabar caixo de defunto.

Esse era o grande terror de meus irmos de madeira, quando aguardvamos, cheios de inquietao, no depsito, o nosso aproveitamento industrial como costumava dizer, em nossas conversas noturnas, o pesado porto de peroba, j industrializado e veterano.

Lembro-me muitas vezes do porto a nos gozar:

Vocs falam muito, mas vo acabar, embaixo da terra, agentando cadver...

Eu, que ainda era tronco, madeira sem muita categoria, pelo que notava na conversa dos homens, ficava gelado. Se pudesse, pelo menos, ser poste de iluminao, seria um consolo. Mas poste de madeira, com o tal progresso dos homens, vem perdendo o cartaz h muito tempo...

Destino de quem foi rvore ou galho dureza...

Os homens que nos utilizam e nos utilizaram, desde o comeo dos tempos, cortando, serrando, aplainando, enfiando pregos, so de uma insensibilidade impressionante. Pensam que madeira no tem alma. Classificam-nos entre as coisas "inanima- das". Os seres animados so eles. Eles e os bichos. E quando falo bichos, digo desde o leo, que nobre e valente, o tigre, que ligeiro e feroz, a guia, que domina os cus, at cobra traioeira, covarde e venenosa, que se arrasta no cho, e mesmo a miseriazinhas insignificantes como a pulga, sugadora de sangue humano em casa onde no h limpeza e DDT, e ao cupim, que destri a madeira, principalmente a de natureza mais frgil, como o meu caso, que no sou carvalho nem jacarand, sou apenas pinho.

Para o nosso grande inimigo (o homem, no o cupim), ns no passamos de "coisa". Que pode ser aproveitada de mil modos, sempre para satisfazer exclusivamente ao seu egosmo e aos seus interesses imediatos, com uma indiferena total pelo que possamos sentir.

Nunca passou pela cabea desses monstros o que pode passar pela cabea de uma rvore, ou pelo corao, quando um homem se aproxima de machado em punho.

E ningum pode ter idia do que , para qualquer de ns, depois de corta aqui e corta ali e desce o machado ou passa a plaina, a viso de um simples prego. Como no temos o dom de ficar arrepiados, o sofrimento puramente espiritual. O prego trazido por mo impiedosa, posto contra ns, em posio vertical, o martelo se ergue, desce a pancada fatal. Pan! Pan! O prego entrando... A madeira rasgada... E a ironia de saber que o cabo do martelo ou do machado de madeira tambm...

Vingana da gente quando o sujeito erra o golpe e acerta, no no prego, mas no dedo... cada palavro que a gente escuta...

Pior, porm, do que machado, serrote e prego, destino trgico e sem conserto, a madeira que o bicho homem utiliza apenas como lenha.

Destino de lenha fogo!

Esquecido esse negcio de prego e maus-tratos que sofremos ao longo da vida, claro que h muita coisa bonita no destino da gente.

Ser barco, deslizando flor das guas...

Ser mastro de navio...

Ser pau de bandeira, o pessoal batendo continncia...

Ser portal de palcio, ser porta de igreja, ser altar bem trabalhado (a preparao dura, mas o resultado compensa), ser mvel de luxo, ser bero de criana, acabar escultura, so coisas que nos consolam de qualquer sofrimento: serrote, serra mecnica, entalhe de pancadas cruis...

Eu tive um colega (colega em madeira, no na profisso) que viajou muito. Esteve em Congonhas do Campo. Conheceu um santo, no de pedra sabo nem de mrmore, de madeira. Vocs precisavam ver o orgulho com que ele dizia:

Eu fui esculpido pelo Aleijadinho... Vem gente me conhecer de todos os cantos da terra...

Claro que essa conversa s ns entendemos. Nossos temores e alegrias escapam aos homens, insensveis, por natureza, s nossas mais ntimas reaes. Que so como as dos homens, as mais diversas. Como entre os homens, h madeira para tudo. H madeira cujo sonho ser cadeira, por exemplo. A mim, a coisa sempre repugnou-me. No gostaria de ver gente sentada com aquela parte em cima de mim... E a verdade que h madeira que gosta de ser pisada, se alegra em ser cho... H pau para toda obra. H gosto para tudo. Mas h madeira que preferia at ser lenha a ser cano de espingarda, por exemplo. Em compensao h pau que gosta de abrir cabea de homem, manobrado por outros homens, nessa horrvel rivalidade que separa os seres humanos.

Uma coisa eu digo: tenho visto de tudo. Tenho visto homem brigando com homem, oprimindo o homem, perseguindo o homem. Mas nunca vi madeira brigando com madeira, pau batendo em pau, a no ser quando manejado por homens. Que estes, sim, raramente so flor que se cheire...

No vou contar tudo o que vi e sofri no depsito. Nem na marcenaria para a qual fui transferido, depois que dois ou trs sujeitos bigodudos estiveram discutindo preo e condies ao nosso lado. Fomos vendidos s toneladas como escravos, um carregamento gigantesco de pinho. Nosso aproveitamento industrial estava traado e ainda no sabamos o que seria de ns.

Eu quero ser caixote dizia um colega meu, um tronco robusto que ia ser tbua, mas no sabia de qu. Como caixote a gente tem chance de correr o mundo.

Eu queria ser transformado em piano... Virar msica...

Piano de pinho? perguntava com ironia um tronco de jacarand. E ainda mais pinho nacional? Vai esperando...

Descobri logo que os da nossa espcie tinham cotao muito baixa no mercado. Mvel barato. Casa humilde. Utilizao inferior. Eu me encolhi mentalmente.

No quero nem pensar...

Hoje eu no quero nem lembrar o que foram aqueles dias de espera. Nem vou contar o que passei quando vi aqueles tornos mecnicos, as serras eltricas, todo aquele instrumental que nos iria estraalhar. E quanto sofri quando um cara, que examinava lote por lote e tronco por tronco, separou o meu e disse... No. No conto mesmo. melhor passar por cima. Meu velho tronco foi transformado em tronquinhos, em varinhas finas e redondas, que eu no podia atinar para o que podiam servir. Sei que fui vendido, num grande lote de tronquinhos iguais, a um fabricante qualquer. Num caminho nos meteram.

Vamos ver um pouco do mundo disse um companheiro ao ser transportado para o gigante de rodas.

No vimos. O caminho era fechado. O caminho saiu, rodou, parou, rodou de novo, rodou e parou um infinito de vezes. Ao fim de muito rodar, parada definitiva. Abriu-se a porta. Veio um operrio e nos carregou para a fbrica. ramos jogados no cho com a maior crueldade. Da a pouco, torno outra vez. Fizeram-me, numa das pontas, uma espcie de pescoo. Veio algum de lixa na mo e nos deu um vago polimento. E quando dei por mim, tinha na outra ponta uma barba espetadia, presa a mim por um troo de lato e tome prego! que eu custei saber o que significava. Fiquei muito tempo sem entender. Fui amarrado, viajei de novo, acabei num armazm.

O senhor tem vassoura? perguntou uma freguesa entrando no armazm...

O vendedor apontou para o nosso lado.

A mulher veio, examinou uma, examinou outra.

Eu levo esta.

Eu desconfiava, eu intimamente sabia, mas no queria acreditar. Agora no tinha mais dvidas... No passava de cabo de vassoura, um msero cabo de vassoura...

S quem foi cabo de vassoura pode avaliar o que eu passei. A mulher me pegou muito sem jeito, vrias compras numa sacola meio rasgada, e saiu para a rua. Eu queria apreciar o movimento, mas ia de cabea pra baixo. O bigode de piaava estava l no alto (eu teria de agentar aquele cara muito tempo agarrado a mim) e gozava a minha humilhao. Ele via e contava.

Pena voc, a embaixo, no poder apreciar... Vem ali uma morena daquelas, de parar o trnsito... D pra ver?

No respondi.

Olha s que casa bonita... Alta pra chuchu... Estamos numa rua importante...

Eu s via o cho e em posio muito incmoda. Papis rasgados, muito p de gente, indo e vindo, sujeiras de toda qualidade: casquinhas de sorvete, caixinhas de chiclete, latas enferrujadas, pedaos de vidro, cascas de frutas. Algum, um pouco adiante, escorregou numa casca de banana e foi ao cho. Eu vi de perto o dono do escorrego, todo machucado.

Viu a cara dele? perguntou rindo a barba de piaava na outra ponta.

Vi. E da?

O que que ele disse?

Em primeiro lugar, eu no repito essas coisas. Em segundo lugar, eu estava com pena, o infeliz se machucou muito. E a nossa dona traduziu o que eu pensava:

incrvel como h pessoas inconscientes neste mundo (naturalmente se referia ao mundo dos homens...). Ento isto coisa que se faa? Deixar casca de banana na calada?

Mas o homem j estava de p e o resto, ou o rosto, eu no podia ver. Sei que ele saiu resmungando e a parte propriamente vassoura do meu novo estado ria com uma inconscincia e uma crueldade que tinha qualquer coisa de desumano. Ou melhor: humanssima...

Divertida ela estava l em cima.

Olha que vitrina mais linda!

No dava pra ver. Mas fiquei sabendo que a vassoura estava de bom humor e contava tudo, s para me machucar.

pena voc ser a parte de baixo, meu querido. O mundo uma beleza! O bicho homem sabe fazer coisas! O homem maravilhoso. As mulheres, ainda mais...

Ela estava divagando. Eu queria era saber o que estava na vitrina. Mas no ia dar a confiana de perguntar. Felizmente ela estava na base do massacre e falou tudo.

Que vitrina estupenda! S brinquedos de luxo! Coisas finas! Coisas fabulosas! Bonecas! Avies! Automveis! Cavalos! (Era a primeira vez que eu ouvia a palavra.) Foguetes astronuticos!

Eu ouvia tudo aquilo sem entender muito (ainda no estava habituado com o mundo dos homens) e, no fundo, embora humilhado, admirava a capacidade rpida de conhecer as coisas humanas que a minha parte propriamente vassoura vinha demonstrando. No contive a minha admirao:

Como que voc sabe tudo isso?

A que ela me humilhou de uma vez:

Crnio, meu filho, crnio! Eu sou a parte de cima. Eu sou a cabea!

E gargalhava com o maior desprezo.

Felizmente a minha humilhao no durou muito. Eu, alis, tinha a intuio de que assim ia ser. Nossa dona entrou numa casa enorme. (Eu, naturalmente, ao contar estas coisas e ao dizer-lhes o nome, no quero dar a entender que j as conhecia, fui aprendendo com o tempo...). Subiu dois degraus de mrmore (o nome eu soube depois) e parou diante de uma espcie de gabinete, de onde descia um barulho crescente e saa um ventinho que me consolava do calor da rua. Era um elevador que baixava.

Eta vassourinha ordinria!

No gostei da frase. Vinha da porta do elevador. No foi ouvida pela nossa dona (os humanos so incapazes de penetrar a alma da madeira). Ela estava se queixando do calor da rua e do preo das coisas.

Est tudo pela hora da morte! Carssimo! Carssimo! O dinheiro no compra mais nada!

Havia uma outra dona no elevador. A nossa continuava a falar.

Feijo um absurdo! Sabo o preo do presunto, antigamente! E voc sabe quanto eu paguei por esta droga de vassoura que voc est vendo?

Meu complemento vassoura estremeceu, no mais ntimo dos seus espetinhos de piaava, quando a outra dona o olhou, com o maior pouco caso:

Eu sei... Eu comprei uma igual. E o pior que no vale nada...

Fiquei espera de uma reao. No veio. Minha parte vassoura, que era o objeto de tamanho desprezo, fingiu no ouvir.

A mulher continuava.

Voc passa essa porcaria no cho, em vez de limpar, suja mais...

Eu estava comeando a entender. A gorducha insistia:

...Esfiapa-se toda... A gente tem que varrer a prpria vassoura que se desfaz... Uma vergonha! Uma vergonha...

O que que a nossa amizade est dizendo? perguntei com malcia... Aqui embaixo eu no ouo nada direito...

Mas a barba pretensiosa, l em cima, no quis responder.

Tinha perdido completamente o rebolado...

Mas o bom ou o pior... viria depois. A dona saa do elevador, tocava uma campainha, uma porta (essa era preguiosa e resignada) se abriu.

Entregou-nos cozinheira, depois de colocar sobre uma mesa de frmica (tenho um nojo de plsticos...) a sacola de compras.

Eu acabava de travar relaes com meu primeiro inimigo: a cozinheira. S me reconciliei com ela, tempos depois, quando a vi queixar-se copeira das durezas de sua vida, um filhinho doente, o marido desempregado. Ser gente nem sempre um cu aberto. S no precisarmos comer, vestir, fingir importncia, como acontece com os humanos, j uma grande coisa. Muita madeira que se queixa da vida, se pensasse no que acontece com os nossos exploradores, grandes e pequenos, ou que se enche de inveja quando os v refestelados numa poltrona a tomar usque ou bater papo, ficaria muito feliz dentro da sua passiva condio de utilidade domstica, tantas vezes humilhante. Fome, pelo menos, no conhecemos. Nem dor de barriga, que uma das coisas mais feias que eu tenho visto nos humanos. Mas preciso voltar minha cozinheira. Ela me pegou pelo meio, olhou-me de cabo a rabo, ou melhor, de cabo vassoura, e perguntou:

No encontrou coisa melhor, Dona Sara?

A dona tinha, mesmo, jeito de Sara. Pra rimar com taquara. Taquara rachada. Era uma voz desafinada e desagradvel. E foi com essa voz que ela falou:

Eram todas iguais. Tudo muito ordinrio...

Tratava-se do meu inimigo no 2. Mas o meu inimigo no 1, a cozinheira, que eu acabei perdoando mais tarde, como disse, porque muito infeliz, atirou-me a um canto, junto pia:

Nunca vi coisa mais nojenta!

Ao lado havia uma lata de lixo, repleta de cascas de batatas, sementes de tomate, restos de comida, leo a escorrer de uma lata de sardinha, com a lngua pra cima, com ar de fome ou de sede, um saco vazio de acar, borra de caf, barbante, poeira, papel amarrotado, jornal amassado, um par de sapatos velhos, de boca aberta e buraco na sola.

Dizer que eu ou que ns... ramos mais nojentos que aquilo, era muita vontade de ofender.

Se era isso o que ela pretendia, conseguiu em cheio. Sorte dela foi que a patroa no entendeu o que eu pedia, do fundo das minhas entranhas de cabo de vassoura:

Me acerta nela, patroa! No meio da testa... Me bota pra quebrar...

Quando o destino de cabea baixa, o melhor pensar noutra coisa. Ningum me tinha dito nada. Eu sabia que era vassoura. Ou cabo de... Mastro de navio, no era. Pau de bandeira tambm no. Nem era bandeira... No era espada. No era automvel. No era avio. No morava em Niteri. No tinha sido talhado pelo Aleijadinho ou por qualquer artista importante, para vir gente do mundo inteiro me conhecer. No era colar em pescoo de madame. No era aparelho de televiso. No era taa de champanha. No era jia. Era aquela coisa comprida e magrela. Apenas. Tinha aquela barba pobre l embaixo... Ah! Sim! Agora a barba de piaava estava l embaixo e eu nem notara! Eu, de cabo, na quina da parede, ela de focinho no cho, ns dois emendados para o resto da vida, a um canto da cozinha, cheirando a alho e cebola, s podia ser aquilo... O cho de azulejo barato estava cheio de restos de tudo. Havia at gua e caf derramado. Fechei os olhos da alma e procurei mudar meu pensamento. Voei para a floresta onde crescera livre e me fizera rvore. Recordei com saudade as carcias do vento. Lembrei os banhos de chuva, que eram freqentes no vero. Tinha a impresso de estar vendo todas as rvores agitando os galhos a pedir o socorro do cu, quando trovejava e os relmpagos estalavam e se ouvia de longe uma colega atingida por um raio infeliz. At isso eu lembrava com saudade. At essa agonia...

Depois pensava em passarinho cantando e colegas floridas, uma quaresmeira muito nossa amiga, um velho mulungu do norte, que era todo flor no meio do ano, um operoso joo-de-barro que fez casa quase ao meu lado, num galho robusto.

As palavras da cozinheira, que provocava a copeira, no me devolveram terrvel realidade. Voltei para a floresta. Revi aquele cara do machado, que nos derrubou. Pensei no velho porto de peroba, do depsito onde morei muito tempo. Voltei ao velho mulungu meu vizinho, to orgulhoso de parecer toda uma flor gigantesca, visvel e admirada a grande distncia pelos que passavam na estrada.

Nisso, a patroa entrou de novo na cozinha.

Por favor, Maria! Isso tambm demais, muita sujeira!

E cortando uma explicao qualquer que a mulher queria dar, com as muitas ocupaes do momento:

Eu quero que voc me diga pra que foi que eu comprei vassoura? Comprei para enfeite? Me diga! Quero tudo isso muito limpo, t bem? E j!

Sem palavra, a Maria me agarrou pelo meio e comeou a esfregar, com fria, minha barba no cho. Nas cascas, no caf derramado, no lixo.

Eu era apenas o cabo. Foi um alvio. A minha parte propriamente vassoura que passava o lixo na cara...

Devo confessar, muito envergonhado, que, quando senti a barbicha da piaava misturada no lixo, esfregada com raiva nas sujeiras do cho imundo eu me lembrei do que ela fizera comigo, na vinda do armazm, e tive um sorriso de vingana.

A infeliz me gozara na rua, j contei. Julgava-se mais importante. Estava, no momento, por cima, e se gloriava disso. No foi companheira. Falava, orgulhosa, no que estava encontrando, nas garotas e vitrinas que via, como se ela fosse um ser privilegiado e eu apenas uma coisa por baixo.

pena voc ser a parte de baixo, meu querido! O mundo uma beleza!

E ria, no propriamente na minha cara, mas na minha ponta.

Ela, agora, estava conhecendo a beleza do mundo... O focinho no azulejo sujo... A poeira a subir-lhe pela barba. Ela amassada contra o cho. Enfia aqui. Enfia ali. Arrasta imundcie. Sente o cheiro dessa meia lama...

Conheceu, papuda?

Mas acontece que, onde ela ia, eu ia tambm. Do lado de cima, mas ia. Era levada contra a sujeira, mas eu ia atrs. Maria a introduzia embaixo do fogo, que a patroa comandava a operao-limpeza, eu tinha que acompanhar sua triste visita.

E eu logo percebi que a sua humilhao era minha tambm. Talvez pior. Para todo mundo, ela era "a" vassoura, eu apenas o cabo. Sem ela eu seria apenas um pedao de pau e eu ainda me lembro, no meu tempo de rvore, do destino que tinham os pedaos de pau: fogo de caipira, lenha para o fogo...

Se ela estava errada antes, quando se imaginava por cima, eu erraria agora, tendo a mesma atitude. Na realidade e no fundo, ns no ramos santo de igreja, nem trono de rei, nem cadeira de balano. Na sala pegada havia uma. De palhinha e madeira, naturalmente. Graciosa, leve, meio danando, meio cantando. Quem agentava o pior dos humanos era a palhinha do assento. A parte de madeira balanava, ia e vinha, e a gente que nela repousava tinha um ar de bem-aventurana de fazer inveja. Em cadeira de balano os homens ficam bons, como em nenhum outro lugar. paz no rosto, corao aberto, mo tranqila. E a cadeira vai e a cadeira vem, macia e calma. Que diferena, meu Deus! O fato que eu no nasci cheio de curvas acolhedoras, mas reto e rijo. Pra cadeira de balano no servia. Tinha o destino traado, no tal aproveitamento industrial de que falava o porto. Fugir da vassoura eu no podia. Estvamos intimamente ligados. Fugir quele emprego, tambm no. Eu no podia fintar a cozinheira, quando ela me pegasse. Era fazer o que ela quisesse: a cara no lixo! E s no lixo da cozinha, que nos outros cmodos da casa a famlia usava aspirador de p, um aparelho de voz grossa e metido a bacana. Esse nem sequer nos dava confiana. Estava guardado num armrio embutido na cozinha e, quando saa para o trabalho, nos outros cmodos da casa, tinha pra mim ou pra ns um ar de profundo desprezo. At hoje no entendi por qu. Ns, pelo menos, no precisvamos engolir a sujeira...

Acabada aquela primeira operao- limpeza, que tanto me atormentou, mas na qual me identifiquei com a minha parte vassoura e passei a sentir por ela uma profunda simpatia, tive uma grande surpresa.

A operao fora dura.

Dona Sara de voz de taquara (rachada) tinha sido impiedosa.

Olha aquele canto como est, Maria. s p... Passa a vassoura...

Maria obedeceu.

Veja embaixo da pia. Est horrvel!

Ela viu e varreu. Ou melhor, ns varremos.

Esta cozinha est uma vergonha! Voc muito relaxada, Maria! Olha s aquilo...

Maria olhou na direo do olhar de Dona Sara, o teto.

Tem at teia de aranha!

Maria suspirou.

Voc vai limpar ou no vai?

Vou ver se d jeito.

O jeito que ela deu foi nos virar de cabea pra baixo. Quer dizer, a parte vassoura pra cima, a parte eu no rumo do cho, como no passeio pela rua. Ergueu-nos na ponta do brao, ergueu-se na ponta dos ps, com esforo (ela se queixava de dores nas costas) e tocou a piaava nas teias de aranha.

Olha a "mame" subindo disse alegremente a minha parte vassoura, no primeiro momento. Agora eu vou...

Me deu aquela raiva... Mas logo tive pena. A coitada no terminou a frase. Estava toda enrodilhada naquela teia escura, que lhe entrava pelos fios, um trabalho danado, depois, para a Maria tirar... E logo em seguida eu estava na minha posio natural e impulsionava, sob o comando da cozinheira, o triste varrer das mil sujeiras, at que Dona Sara, de voz de taquara, se deu por satisfeita.

Est bem, Maria, est bem. V se conserva agora a casa limpa...

E j saindo:

Pe mais gua no arroz, criatura. Se no, ele acaba queimando. Voc nunca aprende.

Ah! Taquara rachada! Sempre se queixando... Sempre reclamando...

Quando ela nos favoreceu com a sua ausncia, Maria nos deixou outra vez no mesmo canto onde havamos comeado nossa triste misso.

Foi ento que eu entendi bem minha parte vassoura e me identifiquei com ela. Estvamos no tal canto da cozinha, eu por cima, ela por baixo, toda ruim... Molhada - Empapada de poeira, teia e outras tristezas da vida moderna. Voc viu que trabalho bonito a gente fez? Viu que limpeza perfeita? Eu sou a maior!

Ela cultivava o otimismo, por sistema. Procurava ver o lado melhor de todas as coisas.

Agora que voc vai ver, meu filho... Vamos botar esta cozinha nos eixos! Acabar com essa pouca-vergonha!

Sorte que a nossa inimiga no 1 no entendia lngua de madeira. Alis, no devia ser muito forte em linguagem humana, porque a todo momento eu ouvia a patroa gritar-lhe:

Ser que voc no entende, criatura? Tudo o que eu mando, voc faz ao contrrio...

Mas foi injustia minha cham-la de inimiga no 1. Foi a primeira pessoa cuja inimizade eu senti, diferente. Comeou logo xingando, mal eu entrei na cozinha. Mas no era m. Era uma sofredora. Acordava cedinho, antes de todo mundo na casa. Virava-se o dia inteiro. Comeava a trabalhar antes dos outros tomarem o caf e ainda estava arrumando e ajeitando coisas depois que todo mundo estava dormindo, ou vendo novela na televiso. Lava, esfrega, corta, descasca, bota no fogo, tira do fogo, ferve a gua, passa o caf, pica a cebola, mi a carne, limpa o camaro, vigia a panela, passa o bombril na frigideira, bate a omeleta, esconde o prato quebrado, que a patroa est chegando...

Quem a via resmungar o dia inteiro tinha at medo. Parecia uma fera.

A colher caa no cho.

Peste de colher!

A faca estava sem corte.

Faca mais ordinria!

A patroa chamava.

Se quiser, chame outra vez, que eu no estou ouvindo dizia baixinho para a panela mais prxima.

Mas tudo aquilo era aparncia. Com o tempo fui vendo, fui me convencendo. E mesmo quando ela esfregava a minha cara no cho, isto , a minha cara-vassoura, porque no havia outro jeito. que a patroa exigia. E s quando a patroa reclamava...

Eu achava timo. Ficava na moleza, no meu canto, olhando a vida, ouvindo rdio. Nesse ponto, eu no tinha nada em comum com o meu complemento de piaava: estava muito pouco interessado em botar a cozinha nos eixos.

No custava nada usarem o aspirador de p na cozinha tambm...Mas a famlia no era somente a Maria, Dona Sara e a arrumadeira, que no trabalhava na cozinha. Tinha Seu Conrado, fregus habitual da cadeira de balano. Tinha o Renato. Tinha o Mariozinho. Quando eles estavam em casa, de volta da escola, sempre havia mais gente. Gente em comeo. Criana. Criana comeo de mulher ou de homem. como rvore crescendo. S que rvore, mesmo quando pequena, no chora, no faz barulheira, no precisa estudar, no escorrega, no grita, no xinga, no corre, no brinca, no pula, no desobedece.

Criana, principalmente, desobedece... Basta dizerem "no", ela faz. E s vezes se d muito mal...

No brinque com fogo.

Ela brinca e se queima.

No atravesse a rua, sem olhar antes os automveis...

Por no obedecer, um amigo do Mariozinho ficou trs meses no hospital. No fique na chuva! Renato teve uma semana de cama, com uma tal de pneumonia, que uma doena cacete.

Alis, no gosto desse costume dos homens de nos usarem como termo de comparao para as coisas desagradveis. Foi sem querer que eu falei "doena cacete". Cacete pau, madeira, da nossa famlia. Aprendi com os humanos a usar a palavra, mas no acho direito. Quando querem dizer que algum, da confraria deles, no tem assunto, ou fala demais, ou repete sempre a mesma coisa, dizem que um sujeito "cacete". Quando se ameaam entre si, nas suas disputas, falam em "baixar o pau!" S para nos envolver numa idia desagradvel, num sentimento desumano, mesmo porque hoje, nas suas pelejas, eles usam coisas bem mais complicadas. O que mais me irrita, porm, que, quando querem chamar algum de cnico, de mentiroso, dizem que o infeliz "cara-de-pau!" Cara-de-pau por qu? Algum j viu pau mentir? Algum j viu madeira fazer mal? Se o pau desce na cabea de algum, foi homem que o moveu. Por conta prpria, por maldade prpria, nunca. Se alguma vez galho de rvore desabou matando gente, foi raio, foi vento, foi velhice, foi imprudncia de quem ficou embaixo...

verdade que, vivendo no meio dos homens, s vezes a gente se deixa contaminar por certos maus sentimentos. Eu mesmo ainda h pouco, ao contar as minhas impresses na cozinha de Dona Sara, quando me vi insultado pela Maria, pedi em pensamento dona da casa: "Me acerta! Me acerta no meio da testa!"

Felizmente ela no me entendeu nem estava disposta a perder a empregada. Porque eu iria ficar envergonhado para o resto da vida...

A gente nunca deve seguir os maus exemplos que essa raa nos d. Devemos assistir a tudo o que eles fazem de errado quando erram, claro com a maior cara de pau. Mas no bom sentido... Mas eu estava falando nos meninos. De casa, eram dois. Na casa, quando eles estavam, havia sempre muito mais. O Ivzinho. O Ricardinho. O Fernando. A Cludia. O Gil Vicente. Cada um mais levado que o outro.

Ih, l vm os demoninhos!

Era sempre a exclamao da Maria quando os via chegar. Mas aquilo, depois fiquei sabendo, era da boca pra fora. Ela adorava criana. Porque alegrava a casa. Porque era uma boa desculpa, quando alguma coisa saa errada. E porque atrapalhava completamente a vida da Marlene (a arrumadeira, no a cantora de rdio). Esta ficava quase doida com a desordem que eles faziam pela casa toda.

Pelo amor de Deus, seu Ivzinho! Eu acabei de encerar! Olha que eu conto Dona Sara...

Maria, que s vezes ficava de olhos cheios d'gua (devia estar pensando no filhinho doente), intervinha:

Deixa. Criana isso mesmo. Precisa brincar...

Eu, do meu canto, mais ouvia que via. A baguna era nos outros cmodos da casa. Criana no vem brincar em cozinha. O trabalho dobrado no ia ser meu. Era da Marlene (sonhava acabar cantando no rdio), era do aspirador de p, era da colega dele, a enceradeira. Muito espevitada, muito pra frente, tambm metida a bacana. Mas s o brilho que ela deixava nos meus colegas do assoalho j me comovia.

At hoje eu no entendi por que que no se encera cabo de vassoura. A gente ia trabalhar, pelo menos, com um pouco mais de satisfao. Certo?

Eu estou abrindo o corao. Comecei a falar, vou falando. Oxal no me achem "cacete"... Sou hoje um cavalo de pau. Observo as coisas, procuro entender. Muitas vezes no entendo, claro. Mas que o mundo dos homens mesmo confuso. difcil de aceitar. um mundo terrvel. Vive da explorao dos outros mundos. O animal, o vegetal, o mineral, o csmico. s vezes o homem tem coisas simpticas. Pega uma flor e cheira... Colhe a flor e a leva namorada, num gesto gentil. Isso eu acho bonito. Mas pegar uma goiaba inocente, uma laranja inofensiva, uma pobre banana, que no faz mal a ningum, que estava sossegadinha no seu cacho, tomando sol... descascar a infeliz e... e comer a coitada... isso eu no posso aceitar! De maneira nenhuma!

E eu nem quero pensar de que jeito elas vo acabar... Mas o homem come tudo. o mais devorador dos animais. Come animados, inanimados e desanimados. Na minha vida de cabo de vassoura eu via tudo. Parece que a natureza toda dominada pelo homem. Madeira que o diga... Felizmente madeira ele no come. Mas raro o fruto de rvore que lhe escapa.

s vezes ele derruba uma rvore s para comer o que ela tem dentro de si, como acontece com o palmito. Mete a mo embaixo da terra e arranca, do fundo do cho, batata, inhame, aipim. s vezes, come a coisa crua. No geral, cozinha, frita, assa, pe no fogo (a Maria que o diga). Folhas, gros, frutos. E at bichos. Triste, quem nasceu galinha! Infeliz, quem nasceu boi ou vaca! Desgraado, quem cair na rede! Caiu na rede peixe, o homem come!

At o leite dos bezerrinhos ele toma!

J fui rvore. J fui cabo de vassoura. Hoje sou cavalo de pau. Tenho visto muita coisa. Tenho entendido muito pouco. Ou ser que eu sou burro e no cavalo?

E a tal histria... Eu comeo a contar uma coisa e me distraio, vou na moleza do papo e me distraio, esqueo o principal.

Eu estava falando no Mariozinho, no Renatinho, no Iv, no Gil Vicente. Nos garotos de casa e nos garotos de fora. Eram todos mais ou menos iguais. Criana como bezerrinho, tudo muito parecido. J botam nome neles exatamente pra isso: o nico meio de diferenar.

Teu nome Mariozinho, t? O teu Iv, t bem? Quando eu chamar pelo nome vocs j sabem quem .

A explicao simples. Tem criana no mundo pra chuchu. (Chuchu eles comem tambm, vi a Maria descascar e pr na panela.) Depois serviu com camaro, um bichinho meio avermelhado que eles pegam no mar. Nem o mar escapa! (Tiram at o sal da gua do mar!) Mas, como ia dizendo, tem um dilvio de criana no mundo. S formiga tem mais... Mas cada famlia tem duas, trs, no mximo. E como tudo mais ou menos parecido, pra evitar confuso e pra no ter que dar comida para as crianas dos outros (gente s pensa em comer...) eles botam os nomes pra fazer diferena. Combinam tudo. "O meu Fernando, o teu Gil Vicente, t?" Mas tudo muito complicado. s vezes tem mais de uma criana com o mesmo nome. (Eu acho que eles no tm muita imaginao.) No sei como que os pais se arranjam pra saber qual o seu Joo (foi o que eu mais conheci) no meio de uma joozinhada que no tem fim. E o negcio deve ser to difcil que eles inventaram tambm um tal de sobrenome. Tem Joozinho Simes. Tem Joozinho Pereira. Tudo porque tudo muito parecido. S com a prtica eu comecei a distinguir.

Claro... No comeo fogo. Olho... Todos tm dois. Cabea. Todos tm uma. O Renato tem dois braos? O Ivzinho tambm. A Marlia tem duas mos? A Claudinha tambm. Eles e elas, salvo pequenas diferenas, que nem d para notar, parecem todos sados da mesma oficina. Dedos, todos tm cinco em cada mo. Pernas, cada um tem duas... Conheci um de uma perna s, mas foi desastre de automvel. Alis, desobedincia. Dona Sara sempre dizia:

Cuidado quando atravessarem a rua. Lembrem-se do que aconteceu com Zequinha...

verdade que s vezes h uns mais claros, outros menos claros. Mas a diferena s na cor. O resto tudo igual. Mesmo nmero de cabea, mesmo nmero de braos, mesmo nmero de ps, mesma capacidade de inteligncia, mesma capacidade de comer... E o mesmo direito, claro. E pra mim, que no tenho preconceito de cor sou um cavalo de pau inteligente, superior a muita gente boa... a semelhana continua a mesma.

No meu tempo de rvore, a gente ficava observando sava passar. Eu dava um galho, dava todas as folhas, pra quem soubesse me dizer quem era esta, quem era aquela. Passava uma, passava outra, passava mais outra. Uma delas voltava. Era uma, era a outra, era aquela outra ou era uma nova sava? Impossvel saber. Assim com as baratas: Assim com os sanhaos. Assim com os bem-te-vis. Assim, principalmente, com os urubus, que voavam muito alto, procurando bicho morto pra comer (devem ter aprendido com os homens). Assim com as cobras. Assim com os lagartos. Tinha que ser assim com as crianas...

Mas, como eu ia dizendo e mais uma vez me perdi, com a prtica comecei a distinguir. E vou falar no Mariozinho, que foi o meu grande amigo no mundo da desobedincia e da travessura.

Sou hoje um velho cavalo de pau. Vou contar coisas do tempo em que ainda no era. Nem velho, nem cavalo de pau. Ainda cabo de vassoura. Dessa fase j contei muita coisa. Mas ainda no tinha falado do meu primeiro encontro com o Mariozinho.

J fazia muitos dias, isto , muitas varreduras, muito pito de Dona Sara na Maria, muito lava, muito descasca, muito cozinha, muito serve mesa, muito anoitece e muito amanhece, muita implicncia do aspirador engole-poeira, muita badalao da enceradeira (eu uma vez pedi para ela me encerar, ela confessou que tudo dependia da arrumadeira ou da Maria). Ns, os inanimados, manuais ou eltricos, nunca trabalhamos sozinhos. Apenas pensamos...

Mas, antes de me perder em recordar o que pensava, acho melhor contar o que acontecia. Eu e a barbicha de piaava j estvamos resignados nossa misso. E o que curioso: at estranhvamos quando Maria passava muito tempo sem nos esfregar no cho (eu me sentia esfregado tambm...). Dava aquela vontade de gritar como Dona Sara:

Olha que vergonha esse cho, criatura!

s vezes, ela parecia entender. E chape, chape, chape, varria. De m vontade, mas varria.

Olha aquela casca de laranja, Maria.

Estava embaixo da mesinha.

Ela no entendia (especialidade dela era no entender...) e muitas vezes ns voltvamos para o canto ou para o armrio embutido (a porta era de madeira e me contava o que acontecia l fora) com o desgosto do servio malfeito. Porque, com o tempo, eu me convenci de uma coisa: o que a gente faz tem de ser bem feito. Um cozinha, outro lava, um arruma, outro varre, um canta, outro estuda, mas o que faz deve ser feito da melhor maneira possvel. E se eu continuava a me chatear com aquele negcio de meter a cara no lixo, mais chateado ficava quando a varreo era malfeita. Parecia incompetncia nossa.

Nem para varrer eles servem!

Mas sempre sonhava em ser coisa melhor, em fazer coisa melhor, em no viver para ser misturado com o lixo. Esse o sonho de toda vassoura, pelo menos de todo cabo de vassoura. por isso que, para variar, alguns cabos de vassoura de mau carter gostam de ser usados na cabea dos outros...

Foi num dia desses, de pensamento insatisfeito, que entrou, pela primeira vez, na cozinha, o Mariozinho.

Claro que eu sabia tudo da vida dele. Ouvia as referncias de Maria, da arrumadeira, de Dona Sara, ouvia as gritarias e travessuras que eles faziam na casa e principalmente o que as portas, janelas e outros meus irmos de madeira me contavam.

Mais de uma vez ele esteve para entrar no cmodo onde vivamos, mas, ou algum o chamava, ou algum gritava alto:

Cozinha no lugar de criana! Nesse dia ele entrou. Maria j ia tocar o garoto, mas foi desarmada com uma pergunta:

Seu filhinho melhorou, D. Maria? Ela se amoleceu toda e contou uma poro de coisas sobre o filho, o Marcos.

Eu espiava o garoto rosado, a camisa saindo da cala, o olhar travesso.

Quando ele ficar bom, a senhora traz ele pra brincar com a gente?

E vo deixar, meu filho? disse Maria com o olhar enternecido.

U! Eu deixo!

Mas a conversa no continuou. Ele acabava de me descobrir. Veio chegando, me pegou pelo meio, como os outros costumavam fazer. Eu estava deslumbrado e constrangido. Com ele, eu tinha vergonha de voltar ao lixo. Ah, se eu pudesse virar gente, como o filho da empregada, e ser convidado pelo Mariozinho pra brincar, aumentar a sujeira da casa e no ter que varrer!

Ih, l vou eu de focinho no cho!

No comeo, eu no entendi bem. De fato, a minha parte vassoura estava pra baixo. Mariozinho passava uma perna por cima de mim, segurava-me altura do pescoo que me haviam talhado na oficina.

E, de repente, comigo entre as pernas, saiu galopando pela casa.

"Xi! Ele tem um sistema esquisito de varrer..." pensei eu, com a minha parte vassoura a se arrastar s cegas por tapetes e coisas inteiramente novas para a nossa experincia.

De qualquer maneira, eu estava fascinado. Conhecia o resto da casa, muito superior a tudo o que havia at ento no meu pequeno mundo. Vi pessoalmente a famosa cadeira de balano, os outros mveis, a televiso, o rdio, os espelhos (vi-me no espelho e me achei o maior, galopando sem saber por qu!), e comeava a ter, pela primeira vez, uma sensao de orgulho, ao derrubar com a vassoura coisas encontradas no caminho, animado por uma espcie de grito de guerra:

Oa! Oa!

Parecia que ele tentava me comunicar alguma coisa, dando-me uma pancadinha amiga no flanco, falando comigo. Aquele oa! oa! era francamente comigo. Pela primeira vez algum me dirigia a palavra, embora curta.

Foi maravilhoso. Passamos pela televiso vrias vezes. Estava ligada. Varri, varremos, mas num sentido de alegria e desordem, mil coisas encontradas, principalmente brinquedos. Alguns, uma beleza!

Oa! Oa!

O material era mais leve, brinquedos de plstico (nunca fui com a cara dos plsticos!). Varramos tudo (no bom sentido, no novo...)

Eu estava na maior felicidade, quando ouvi uma outra espcie de grito de guerra. Pensei que vinha da televiso. Era da arrumadeira.

Menino impossvel! Que diabo de menino!

Arrancaram-me de Mariozinho com fria, reclamando contra a desordem j feita, levaram-me de cabea pra baixo rumo cozinha.

Como que voc permite uma coisa dessas, Maria?

E jogou-me contra o velho canto.

Que foi? perguntou Maria, assustada.

Travessuras do Mariozinho! Transformou a vassoura em cavalo de pau, fez uma baguna na casa!

Deixa o menino brincar disse Maria, agora a minha amiga particular no 1.

Pois se ele fizer isso outra vez, vai ter! Eu conto tudo a Dona Sara!

E saiu resmungando.

S ento avaliei bem o que se passara. Era a minha primeira experincia cavalar. Hpica, se preferem. E tinha gostado.

Mas como sofri depois, devolvido minha antiga condio de cabo de vassoura! Aps haver conhecido o esplendor de cavalgar, imponente e fogoso Oa! Oa! Oa! aquele regresso ao mundinho do lixo, um mundo imundo, foi um longo inverno amargurado.

Mariozinho no foi mais visto na cozinha. Alis, andou at de castigo.

Minha amiga porta, no seu eterno ir e vir, prisioneira dos gonzos, me contou.

A arrumadeira tinha dado parte. Dona Sara voltava das compras, ouviu tudo de cara amarrada, pintou o sete com meu novo amigo. Que no se fazia uma coisa daquelas... Que no se desarrumava a casa daquele jeito... Que ele estava estragando a vassoura... Que ela no tinha dinheiro para comprar outra... (ser que eu sou caro?)

Que ele j tinha brinquedo demais e no precisava inutilizar uma coisa to til (agora ela reconhecia...). E que ele estava proibido, aquele dia, de ver a televiso (garanto que no perdeu grande coisa...).

Confinado na cozinha de novo (s quem tinha o privilgio de rever todos os dias o resto da casa era o papa-lixo do aspirador metido a granfa) eu me consolava com a idia de que um dia Mariozinho me havia preferido a todos os brinquedos caros (passramos por cima de muitos, com a maior altivez...) e me passeara pelo apartamento todo, num galope genial... Oa! Oa! Oa!

Mas agora eu era apenas cabo de vassoura e recordava com saudade aquela experincia gloriosa.

Ah, se ele aparecesse aqui outra vez! Que beleza sair pela casa num galope legal, vendo, pisando, revirando as coisas!

Mas no aparecia. Eu ficava todo murcho no meu canto, conversando com a parte de baixo (era outro material, piaava, era outra vida, embora identificada comigo). E a minha parte vassoura participava da mesma sensao. Ela tambm tivera o gosto, no de varrer, mas apenas de revolver o lixo encontrado, bagunando tudo, deixando mais trabalho para o vaidoso engole-poeira e para a enceradeira, cujo trabalho tambm era de focinho no cho. (Ah, se algum me encerasse!)

Mariozinho estava rigorosamente proibido de aparecer em nossos domnios. Tnhamos notcia dele pela conversa das pessoas de carne e osso e dos meus confrades de madeira. Sabamos de seus brinquedos, correrias e travessuras. Sabamos de seus estudos, passeios e castigos.

Tomara que ele fique logo doutor como o pai!

s vezes diziam que ele ia ser mdico. Outras contavam que ele queria ser chofer de praa, depois mudava de projeto, queria ser aviador. Teve uma ocasio em que chegou a notcia de que ele queria crescer e virar astronauta. Uma vez quem me contou foi a porta, onde um dia me encostaram Mariozinho mudara de idia: queria trabalhar com carrinho de vender sorvete, pra tomar sorvete sem pagar. E um dia eu fiquei todo derretido de ternura. Soube que ele no queria mais ser nem mdico, nem motorista, nem astronauta, nem sorveteiro. Queria, quando crescesse, virar soldado de cavalaria...

Ah, que ele gostou de montar no papai!

E aquilo me consolou do muito varrer e nos levou a mim e parte de baixo a ter outra vez o gosto antigo de caprichar na limpeza. Porque a obrigao de cada um deve ser sempre cumprida da melhor maneira! Havia um cartozinho na parede, posto por Dona Sara, e eu vi a patroa ler uma vez em voz alta o que ele dizia:

"S perfeito em tudo o que fizeres..."

Era uma direta para a Maria e uma indireta para ns...

E pensando no Mariozinho e sabendo que a nossa cozinha era a cozinha da casa dele, s queramos que a Maria trabalhasse bem.

"Varre aquela casca de banana, Maria..."

O tempo ia passando e Mariozinho nada... S de longe. S de gritaria no outro lado. S de arrumadeira se queixando da muita baguna e dos muitos Renatinhos, Gil Vicentes, Ivzinhos, Marcos e Joes que ele trazia para aumentar a desordem...

Enquanto isso, amos envelhecendo. Quer dizer, eu no... Eu me sentia cada vez mais rijo. Mas a parte de baixo estava se esfiapando, cada varredura de cho era desgaste nas pontas, era fio que escapava e se transformava em mais sujeira, levada para a lixeira do prdio.

Esta vassoura j no vale nada!

Esta porcaria tem de ser trocada...

Dona Sara muito muquirana, j devia ter comprado outra vassoura...

Minha parte de baixo, na sua inconscincia (a piaava nunca brilhou pela inteligncia), ficava contente ouvindo aquilo.

Que bom! Assim eu me aposento, no trabalho mais!

que a infeliz no sabia que o prdio tinha incinerador de lixo. Se ela no sabia, no era eu quem iria contar. Para que atormentar a coitada com aquela horrvel perspectiva? Fogo foi sempre o grande espantalho da nossa raa.

Destino de madeira fogo! dizia um pau de lenha meu amigo, ainda nos tempos da floresta.

Eu continuava curtindo a minha angstia e a saudade daquela tarde inesquecvel. Em silncio. Em silncio e com medo. Que inveja da porta com sua viagenzinha curta, de ir e vir, sempre no mesmo lugar, no seu eterno abrir e fechar! Mas, pelo menos, vendo as coisas, vendo a vida com tranqilidade. Para ser devorada pelo fogo, teria que ser com o prdio inteiro. E isso era difcil... Que inveja da mesa! Sempre parada. Sempre agentando peso de pratos, panelas e compras. Mas garantidona... Mesa no se joga fora, no se pe no fogo. Se fica velha, vende-se ou d-se...

A mesa continua sempre. E o assoalho? Pata humana, casco de visitante no lombo o dia inteiro... Gente indo e vindo, pisando, pisando. Mas o assoalho firme, no varrendo, mas varrido... Mais ainda: de aspirador sugando-lhe os sujos. E o que maravilhoso: sempre de cara luzidia, com a enceradeira renovando tudo...

Ests ficando um cacareco, hem, meu velho?

Era a mesinha que falava. Aquilo me doeu.

Eu, no. A vassoura.

E da? Cabo de vassoura, vassoura ...

Fiz como o aspirador de p. Engoli o insulto. E l comigo:

"... O negcio vai mal... Se eu tenho de morrer na flor dos anos, se Mariozinho desobedece em tanta coisa, por que que ele no arranja uma desobedincia comigo?"

Sim, eu no queria morrer antes de um galope final, ouvindo o Mariozinho no seu grito de guerra:

Oa, oa, oa, meu cavalo de pau!

O dia to temido chegou. Maria passou-nos pelo cho, a sujeira ficou. Passou outra vez. Com fora. Nada...

Hoje eu falo com Dona Sara. Ou ela me d vassoura nova, ou no fao mais a limpeza. Esta no vale nada! Vou jogar esta porcaria na lixeira!

E abriu a porta que dava para o corredor de servio.

"Adeus, minha gente!", pensei eu. Mas foi tal a tristeza de tudo o que era madeira na casa, to grande o protesto mudo de todos (mudo para os humanos, ou melhor, para os desumanos), que provocou uma espcie de fora no ar, que conteve Maria.

Ela parou, j no corredor, pensou um pouco e voltou, deixando-nos outra vez no armrio embutido.

melhor mostrar primeiro Dona Sara. Se no, ela pensa que eu joguei fora uma vassoura de luxo, toda de fios de ouro... Ela que resolva.

Patroa patroa disse eu piaava, que no tinha idia do que poderia ter acontecido, mas concordou plenamente.

Estvamos no armrio fechado, aguardando a tragdia. A porta me olhava com uma pena infinita.

Que chato, hem?

da vida murmurei de alma na ltima lona.

At o aspirador de p me olhava com simpatia. Afinal, a vassoura varria o pior lixo da casa. Ele no confessava, mas achava sua misso muito triste. Ficava s vezes de barriga estufada e era preciso uma operao-limpeza, que envergonhava qualquer um. E se no comprassem outra vassoura? E se resolvessem que ele, sozinho, devia cuidar da cozinha tambm?

Afinal, ouvi conversa fora.

Dona Sara voltava de visitar uma parenta.

A prosa s podia ser a nosso respeito. Era. A voz de taquara rachada reclamava contra a sujeira.

A culpa no minha disse Maria.

Voc no tem tempo, no ? disse a patroa, com ar de quem a chamava de preguiosa.

Tempo eu tenho. No tenho vassoura...

O qu?!

A vassoura acabou.

Voc jogou fora?

Ia jogar. Mas achei melhor a senhora ver primeiro...

E abriu a porta do armrio.

Eu me sentia to pequenino, to pequenino, que pensei que ela no me visse. Mas qual! Foi logo me pegando ou nos pegando e falou patroa: Olha s o jeito dela... Est no fim... Passamos para a mo de Dona Sara.

Realmente quem passava era eu. Sobrava apenas eu. A parte propriamente de vassoura estava completamente liquidada.

Dona Sara me olhou, muito sria, e voltou-se para Maria:

Tambm voc escangalha com tudo! Nunca vi uma coisa igual! Voc me quebra at prato de matria plstica! Minha Nossa Senhora! Nunca vi! Se voc tomasse um pouco mais de cuidado, a vassoura no acabava desse jeito...

Pela primeira vez eu dava inteira razo a Dona Sara. Mas s podia esperar aquela sentena:

Est bem. Pode jogar fora. Eu compro outra. No sei o que vai ser de mim com tanta despesa... Vassoura est custando os olhos da cara. Tudo est custando os olhos da cara... No sei onde vamos parar...

Eu, eu sei onde ia... No incinerador...

Vou morrer sem meu galope final... Vou morrer sem ver Mariozinho...

Dona Sara voltou para a sala da cadeira de balano. Maria me agarrou outra vez. O rdio cantava:Quando eu morrer No quero choro nem vela, Quero uma fita amarela Gravada com o nome dela...

Com o nome dela eu no queria. Nem de Dona Sara. Mas do Mariozinho aceitava. Juro que aceitava e morria feliz...

Felizmente no morri. Mariozinho no podia falhar. Acabava de entrar.

Maria!

Ns j amos saindo, quando aquela voz iluminou a terra... Parecia um cantor...

Maria voltou-se:

Que que h, meu filho?

Os olhos de Mariozinho estavam em mim.

Voc vai jogar fora essa vassoura?

Sua me que mandou, j no vale mais nada.

Escuta, Maria, eu falei com mame. Ela deixou. Voc pode me dar a vassoura.

Maria mostrou o maior espanto:

O qu?! Pra qu? Pra que que voc quer uma porcaria destas?

Coitada... No falava por mal. Ignorncia... Eu estava to feliz que me sentia capaz de perdoar qualquer coisa... Deixa comigo disse Mariozinho.

Mas evidentemente Maria pensou que o garoto estava sacando. E no lhe deu muita importncia. Abriu a porta do corredor.

Voc tem cada idia, menino... Deixa de bobagem... Aumentar a baguna da casa... Vai estudar, meu filho. Seno, voc nunca chega a doutor. Voc pensa que seu pai no estudou?

Eu continuava na mo dela e de cabea para baixo, os fiapos l no alto, confirmando tudo o que ela havia dito: uma porcaria de vassoura.

Ela se encaminhou para a lixeira. Minha angstia foi ao auge. Gritar no podia. Gente no entende. Fugir no poderia. No era vassoura automtica.

L vou eu pro fogo! Ciao, Mariozinho, ciao! Obrigado pelo pensamento... Deus faa de voc um bom mdico... ou um bom soldado de cavalaria. Voc tem muito jeito...

E fechei os olhos da alma, pra no ver o resto...

Mas ningum morre na vspera. Enquanto no chega a hora da gente, todos os santos ajudam. Maria no conseguiu abrir a porta da lixeira. Estava emperrada. Puxou, puxou, nada.

Que droga de porta! J enguiou outra vez! Estou cansada de reclamar com o zelador. todo dia a mesma coisa...

Tornou a puxar. Tornou a fazer fora. A porta firme. Resmungou. Reclamou. Protestou. De repente, viu a janela e teve uma idia. Ergueu-me no ar e j ia me atirar pela janela, quando Dona Sara, com uma voz divina, gritou:

No faa isso, Maria. Pode cair na cabea de algum!

Eu at no sei como que Maria teve uma idia daquelas. J pensou? Me atirar pela janela! E se eu fosse cair na cabea de um coitado que no fez mal a ningum, uma criana que no tinha desobedecido me, um zelador de edifcio dando duro para sustentar a famlia? Ainda bem que Dona Sara, com aquela voz maravilhosa, pensava em tudo isso.

Voc est maluca?

Maluquice no, ignorncia... Coitada da Maria, com o filhinho doente... E se eu tivesse cado na cabea do filhinho dela? Ele no estava ali, mas podia estar. Como podia estar qualquer outra criana. Toda criana boa. Estava ali, por exemplo, a criana mais fabulosa do mundo, o Mariozinho...

Ele que tinha ido chamar Dona Sara, para confirmar que ela dera licena. E Dona Sara, com sua voz to rara, to clara (h muita rima linda pra Sara, eu agora via...), confirmava:

Eu dei licena, Maria. Pode dar a vassoura para o Mariozinho. Ele pediu...

E entregando-me ao meu novo senhor, futuro capito de cavalaria, ou marechal:

Mas nada de montar aqui dentro. No me faa desordem na casa. V brincar no jardim ou na calada, entendido?

Dona Sara, de voz rara, de voz clara, me salvara...

Foi um olol, um eiel, um alal!

Oa, oa, oa!

ramos donos do mundo!

Cavalgvamos, febris, pela calada.

Oa, Napoleo!

Me chamava de Napoleo! Napoleo tinha sido um grande imperador, eu ouvira essa conversa uma vez. E eu me sentia o prprio imperador dos cavalos de pau.

Pleque, pleque, pleque...

Plaque, plaque, plaque...

Ploque, ploque, ploque...

Que corrida maravilhosa! Como a vida era bela! Como era bom galopar!

Como passavam, buzinando, meus colegas de rodas!

Homens passavam a p. Deus lhes desse um dia um bom cavalo de pau ou pelo menos um automvel...

Estava um guarda na esquina. Coitado... Infantaria...

Uma criana olhava, triste, da janela... No devia perder a esperana. Se no desobedecesse mais, no ficaria de castigo...

Passou uma carrocinha de sorvete, Mariozinho nem ligou. Ele e Napoleo galopavam felizes...

Passou, muito carregada de embrulhos, uma empregada do prdio, que noite ia bater papo com a Maria, terminado o trabalho. Frutas, batatas, ovos, bacalhau... E apertada com o brao, contra o corpo, uma vassoura nova. Tive a impresso de que a reconhecia, dos meus tempos de armazm. Mal deu tempo de falar, eu galopava.

Voc por aqui? Para onde vai?

Sei l!

Fomos at a esquina. Voltamos. A empregada ia entrar na porta de servio. Minha colega me olhava cheia de angstia. Mariozinho me freou para convidar um amiguinho. Cinema no domingo... Olhei melhor a colega.

Voc no a 27 daquele lote?

Exato, meu filho.

Olha, vai ser fogo!

Eu sei...

Mas no desanime, t bem? Se na casa onde vai trabalhar houver criana, voc ainda pode acabar Napoleo...

O que isso?

Outra vez eu te explico.

J no dava mais tempo. Galopvamos de novo.

No h bem que sempre dure. Todo galope tem fim. No atropelamos ningum, ningum reclamava contra ns (a humanidade no faz outra coisa seno reclamar, tudo pretexto...), mas no melhor da festa apareceu Renatinho. Era o irmo de meu amigo e senhor.

Mame est chamando. Hora de lanche...

Diz que depois a gente sobe.

Ela disse pra voc subir sozinho.

O qu?!

Pra deixar o cabo de vassoura.

Cabo de vassoura? perguntou Mariozinho muito espantado. Que cabo de vassoura?

U! Esse a!

S ento percebemos que era de mim que ele falava.

Ah, isso no! Prefiro ficar sem lanche.

Como que eu no havia de gostar de Mariozinho? Preferia morrer de fome a me perder! Coisa que s se encontra na floresta... Amizade de rvore velha, de madeira de lei!

Ela disse que est passando da hora. Que voc tem de subir...

Sozinho eu no subo. S com o Napoleo...

E indiferente aos conselhos de Renati- nho, num trote mais modesto, entrou no playground do edifcio, foi at a entrada de servio e chamou o elevador.

Eta cavalinho bacana!

Guarde o bicho na garagem sugeriu Renatinho. Assim mame no bronqueia.

Eu comeava a achar Renatinho mais inteligente.

perigoso. Algum pode roubar. Renatinho riu.

Roubar essa besteira? Renatinho me pareceu o mais perfeito bobo-alegre do mundo.

Besteira por qu? Mariozinho era o maior!

Eu estou brincando com voc. Ele at que um cavalo legal.

Renatinho parecia burro, mas no era. Estava na cara. Sabia dar valor a quem o tinha.

Eu subo com ele, de qualquer jeito disse Mariozinho.

Ele estava disposto a arriscar a vida por minha causa. Aquilo me comoveu.

Acho bom no fazer isso, Mariozinho. Mame falou bem claro. Deixar aqui embaixo. A casa est cheia de cacareco...

Eu no podia entender como aquela voz to linda de Dona Sara podia ter dito palavras to duras contra o nobre imperador dos cavalos de pau...

Mariozinho continuava em dvida. No podia desobedecer. Se desobedecesse, seria pior. Foi at garagem escolher um lugar mais seguro. Eu estava de corao mais pequenino que uma pulga.

Nisso, Mariozinho teve uma idia. Perguntou ao mano:

Seu lanche voc j tomou?

J. Tomei um copo de vitaminas de todas as letras: A, B, C, D, E, F, G...

Voc capaz de me fazer um favor?

Qual?

Voc olha o Napoleo aqui embaixo at eu descer do lanche? um minutinho s...

Depois de uma rpida hesitao, Renatinho perguntou:

Posso dar uma voltinha com ele?

Pode. Mas sem sair da calada, t? No v cair!

Eu, hem?

Os dois entraram de acordo, Mariozinho subiu, Renatinho me acariciou com simpatia, montou, deu-me um tapa no lombo:

Vamos, Napoleo!

Samos de novo, jardim adentro, calada a fora, galopando.

Mas no era a mesma coisa...

Eu gostava de Mariozinho no s por ser bom cavaleiro. Era pela inteligncia. Ele levava todo o mundo na conversa. Quando desceu, minutos depois, j voltava com permisso para me guardar no armrio dos brinquedos.

Mame disse que eu s no podia montar dentro do apartamento. S pode ser na calada...

Eu at achei graa... Que interesse tinha eu em galopar num apartamento, que era mais apertamento que outra coisa, como dizia a arrumadeira? Eu queria era espao, queria a rua! Quem nasceu na floresta, quem dominou as rvores, como pinheiro, precisa de amplido! E o gostoso era estar ali fora, vendo os colegas de quatro rodas se perseguindo na rua, vendo os pedestres correrem, assistindo ao grande espetculo do mundo!

Mariozinho participava da mesma opinio e ficou at feliz. Tinha pretexto para descer mais vezes, porque precisava passear a cavalo para fazer exerccio...

Foi assim que eu passei a viver o melhor tempo da minha vida. Fora promovido a cavalo. De pau, mas cavalo. De brinquedo, mas cavalo. Tinha, afinal, um nome, como todas as crianas, como gente humana. E um nome de encher a boca. Todo mundo conhecia. Eu vi isso, quando os mais velhos e os mais novos, da raa de Mariozinho, ficavam sabendo que eu tinha sido batizado de Napoleo. Eles davam risadas, mas achavam o nome bonito. E falavam, com respeito, do primeiro Napoleo. Tinha sido imperador de um pas chamado Frana. Deu surra numa poro de pases. Ganhou da Alemanha, da ustria, da Itlia, pases que eu no conhecia (eu sou cavalo de pau, no tenho obrigao de saber Geografia). Ganhou da Espanha, ganhou de Portugal. Deu de goleada na Inglaterra. Fazia todas as guerras montado num cavalo branco, meu colega. Se era branco, no tinha sido encerado, a coisa que eu mais desejei a vida toda... Quando ia atacar um pas, mandava buscar o cavalo no pasto, montava e saa correndo na frente das tropas:

Avante, pessoal!

Ningum agentava a parada. Fugia todo mundo. Os reis caam do cavalo, pedindo perdo, ele botava outros reis no lugar deles. Arranjou emprego de rei para toda a famlia. Os irmos, os primos, os cunhados. (Eu ainda vou arranjar um lugar de cavalo para o cabo daquela vassoura que encontrei, a 27 do meu antigo lote no armazm...) Nem Pel foi to importante. (Era outro rei que o pessoal citava muito na casa de Mariozinho.) De modo que eu tinha razo de gostar daquele nome e de me sentir um cavalo de pau realizado e feliz.

S de uma coisa eu no gostava. Sempre que o pessoal falava em Napoleo, algum lembrava que ele tinha acabado muito mal. No fim da vida, fizeram uma sujeira com ele. Ele estava com um exrcito pequeno e cansado. Veio um exrcito maior e descansado e estragou tudo. O coitado morreu prisioneiro numa ilha chamada Santa Helena.

Por sinal que Helena, alm de nome de uma santa e de uma ilha, era tambm o de uma tia de Mariozinho. s vezes aparecia na casa e nunca me olhava com bons olhos...

Todo Napoleo tem seu dia de Santa Helena. Eu tive muitos. Estava no armrio, de volta do meu fogoso galopar na calada, e pensava logo no meu grande colega, derrubador e fazedor de reis...

Depois de conhecer as alegrias do galope ou do trote, das freadas bruscas, para no atropelar uma criana ou uma velha senhora, que j no podia montar, ser fechado num armrio sem luz (tinha lmpada, mas estava queimada) era um castigo cruel.

Dizem que os meus colegas de quatro patas (no me refiro a Napoleo que s tinha duas, digo, dois ps, como em geral todo gnero humano), dizem que, depois do galope, esses colegas so recolhidos em casas especiais feitas para o seu justo descanso. Cocheiras, cavalarias, estrebarias, sei l... Com gente para lavar-lhes o corpo, enxugar-lhes o suor, trazer comida. Eu no queria tanto. Felizmente no preciso comer. De empregados tambm no preciso. Alis, dispenso com muito prazer. Minha vida, quando tinha contato com a Maria e particularmente a Marlene, era cheia de altos e baixos, mais baixos que altos, diga-se a verdade... Mas a escurido daquele quartinho apertado era de morte...

Pior que a escurido, a confuso...

Havia de tudo. Brinquedos velhos, sempre ameaados pela arrumadeira de serem jogados no lixo. Os coitados sofriam...

Ser hoje o meu dia?

Ouvia sempre essa conversa l dentro.

Podiam, pelo menos, dar a gente para alguma criana mais pobre havia sempre algum dizendo.

Era um automovinho arrebentado, um ursinho de barriga rasgada, uma bola furada, uma locomotiva sem rodas, um avio que no funcionava, um revlver quebrado, uns cacarecos de matria plstica. Todos eles tremiam de medo quando a Marlene abria a porta do armrio e envenenava a alegria da luz que trazia com a eterna queixa:

Eu no sei que mania tm estes meninos de guardar tanto brinquedo velho... S para dar trabalho...

Os pobrezinhos ficavam gelados.

Mas havia tambm brinquedos novos, embora no muito importantes. Seu Conrado, alis, Dr. Toledo, como as empregadas diziam, era um mo aberta. Dava sempre dinheiro pra brinquedo novo, que facilmente envelhecia.

Voc estraga essas crianas dizia Dona Sara. No devia comprar tanta coisa. Eles no tm cuidado... Escangalham com tudo...

Bem que ela tinha razo...

O Renatinho pisou em cima de mim no dia em que eu cheguei dizia o automovinho arrebentado.

E era preciso abrir a minha barriga com uma faca pra saber se eu tinha comido alguma criana? perguntava o ursinho de pelcia amarela, temeroso da lata do lixo, olhando com inveja um astronauta ainda inteiro, vindo do Japo.

Esse era o convencimento em pessoa. S porque tinha mola. Quando algum dava corda, ele ficava todo prosa, mexia a cabea, para cima, para baixo, para a esquerda, para a direita, dava uns passos ridculos, agitando os bracinhos, com aquela roupa boba de astronauta. Tomava um ar importante, como se a tal de astronutica fosse o melhor brinquedo inventado no mundo... Ningum gostava dele de to pedante e convencido. Mas a raiva maior era quando ele comeava a falar umas coisas que ningum entendia. Pra mim, era japons...

Minha vida em Santa Helena era de amargar. Ningum queria me reconhecer como brinquedo. Nem como cavalo. Muito menos como Napoleo. Para aqueles cacarecos velhos eu no passava de um simples cabo de vassoura, indigno da menor ateno.

s vezes ligava-se o rdio l fora e uma voz meio triste chegava at ns. Parecia traduzir o que eu sentia naquele amargo isolamento:Ningum me ama, Ningum me quer, Ningum me chama De meu amor...Ningum ali dentro, claro. E claro que por puro despeito. Inveja. Nunca nenhum deles era levado calada. Nunca nenhum tomava o elevador com Mariozinho. Nem com Renato. S o papai... S eu... S eu tinha nome. J contei qual era. E, s quando me via, o rosto de Mariozinho se iluminava de satisfao. Eles ficavam tinindo de raiva. Fingiam no me ver e ficavam contando vantagem. At o urso de barriga rasgada:

Sou de pelcia importada dizia ele ao trenzinho sem rodas. Material finssimo... E voc?

Bem, eu sou todo de fabricao nacional... Mas a indstria brasileira no fica devendo nada a qualquer indstria estrangeira respondia o trenzinho, aproveitando a ocasio para olhar com desprezo o astronauta. Meu azar foi que, outro dia, o Gil Vicente escorregou e caiu sentado em cima de mim, me acabou com as rodas...

Dona Sara que tem razo. Eles precisavam ser mais cuidadosos dizia o automovinho arrebentado.

Mas sempre melhor ter nascido brinquedo dizia o avio de asa partida. outra coisa...

A indireta era comigo.

claro dizia o ursinho de pelcia. Tem urso de verdade e tem urso de pelcia. Tem avio de verdade e tem avio de faz de conta... Olha: tem at cavalinho de brinquedo... Voc j viu algum?

evidente... confirmava o avio todo caqueirado. Eu conheci muitos na loja... Coisa muito bacana... Material de primeira. Com cara, com pescoo, com crina, com corpo igualzinho aos dos cavalos de verdade. Imitao perfeita... E com rabo e quatro patas, sacum? Porque eu no sei se voc sabe que cavalo no qualquer pedao de pau encontrado no lixo. um bicho completo... Tem tudo. Cabea, corpo, patas. E no uma, no duas: quatro!

Isso no nada... disse um tambor furado, em que ningum punha reparo. Na loja em que eu morei havia um cavalo de verdade quer dizer, de brinquedo mesmo... que, quando davam corda, at bufava e relinchava!

No diga!

Palavra! Legal pra chuchu! Dava gosto ver! Era patrcio desse cara a... Feito no Japo...

O astronauta no falava, mas, pelo jeito, entendia portugus. Ficou todo emproado. Os outros perceberam e no gostaram. Mas, s para me machucar, o tambor continuou:

Eu acho que tudo o que brinquedo de verdade, mesmo no sendo brasileiro, merece respeito. Vocs no acham? Brinquedo uma coisa sria... Criana que sabe...

Claro...

evidente... Um outro concluiu:

O importante ser brinquedo mesmo...Eu, no meu canto, ouvia tudo aquilo no maior constrangimento. Estava ficando complexado. Principalmente ao olhar a pose do astronauta, que no era s brinquedo mesmo e do que havia de mais moderno mas o nico realmente perfeito no meio de tanto ferro velho...

Nisso, ouviram-se passos fora e todo o mundo se calou. O pavor de serem jogados no lixo era comum e s o astronauta se sentia vontade. A porta se abriu. A claridade entrou. Mariozinho chegava. Foi um alvio geral. Mariozinho era amigo.

Ele comeou a afastar os brinquedos velhos acariciou o ursinho de barriga rasgada, que se rasgou todo de felicidade, pegou no astronauta, que s faltava falar em portugus, de to orgulhoso, deu-lhe corda, ficou a observar-lhe os movimentos. Eu via tudo aquilo, humilhado, j no mais Napoleo, apenas um velho cabo de vassoura. O astronauta erguido no ar, todo espevitado, mexia os bracinhos, a corda roncava, cumprimentava para todos os lados. Mas foi s. Acabada a corda, Mariozinho o colocou entre os outros brinquedos. E com surpresa de todos e at minha me pegou l no meu canto, me puxou para fora e montou, ali mesmo na sala...

Minha vingana era completa! Eu no resisti tentao... E voltando-me para o astronauta, antes de comear o galope, gritei-lhe:

Conheceu, Nagasqui? T me estranhando, arigat?Era tudo o que eu sabia de japons. Mas ele, mesmo com a corda acabada, virou o rosto com desprezo.

Acho que a minha pronncia estava errada.

Mas eu sempre voltava para o armrio embutido como o primeiro de meu nome para Santa Helena. Com uma diferena a favor. O outro, que nascera tambm numa ilha, a Crsega, foi para Santa Helena e ficou l at morrer. Estava muito bem guardado por soldados ingleses. Com soldado ingls no se brinca. No soldadinho de chumbo (o armrio estava cheio deles), muito menos de matria plstica. osso duro de roer. Naturalmente ele sonhou fugir a vida inteira. Mas nunca houve um cara de fora que o ajudasse. Comigo no. Havia o Mariozinho. Havendo Mariozinho, a calada era minha, o playground do prdio, a aventura pelo mundo...

Santa Helena, para mim, era um compasso de espera, mais nada. s vezes, um, dois, trs dias. Mas eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, Mariozinho voltava. Com o tempo adquiri esta certeza. No me preocupava com o despeito, as indiretas, as fofocas. Toda aquela cacarecada podia resmungar vontade, alegar que tinha sido feita em fbrica de brinquedos e no de vassoura, dizer que tinha conhecido trenzinhos eltricos, com trilhos, tneis, estaes e sinaleiras automticas, lembrar que havia conhecido bonequinhas louras, que seriam verdadeiras estrelas de cinema. No s de abrir e fechar os olhos, como a que Claudinha trazia algumas vezes, ou de chorar fanhoso como a da linda Alexandra, prima dela. Bonecas de andar, de sentar, de erguer os braos, at de falar e cantar.

Eu agora no dava a menor confiana.

Deixa pra l!

E como eles sentiam o meu pouco caso e reconheciam o meu cartaz junto a Mariozinho e Renato (de vez em quando ele vinha pedir uma carona) aos poucos o pessoal foi mudando.

Uma tarde em que voltava, muito excitado, das aventuras da rua, o da barriga furada, o tal ursinho de pelcia importada, me falou:

Tava boa a rua, cavalinho?

Confesso que a pergunta me surpreendeu. "Eles" no me ligavam... Estavam querendo se chegar. E eu achei bom. Mas respondi com a maior superioridade:

Eu tenho nome.

Ele no ficou zangado por isso.

Tinha muito movimento, Napoleo? Muita gente?

S Napoleo? Dobre a lngua. No fomos criados na mesma loja de brinquedos. Mais respeito.

Pois no, Seu Napoleo...

O bichinho estava mesmo procurando assunto e queria agradar. Chegara a minha vez de fazer o duro. Voc fala francs?

Infelizmente no. Sou nacional. S a parte de pelcia que foi importada. Mas da Itlia...

Pois bom ir aprendendo. Meu av, na Frana, era tratado de mon empereur... Mas pode-me tratar de "meu imperador", que d na mesma...

T bem concordou ele. De outra vez eu digo...

Fiz um ar de generosidade imperial e concedi em perguntar:

O que que voc quer saber?

Se a rua estava alegre...

Se a rua estava clara acrescentou o trenzinho...

Se tinha muito movimento perguntou, ansioso, o automovinho arrebentado.

Fale um de cada vez...

Se a rua estava alegre... disse o ursinho.

Parecia um carnaval, meu filho!

Se a rua estava clara... disse o trenzinho sem rodas.

Parecia a voz de Dona Sara... (gratido eu tenho).

Se tinha muito movimento... disse o automovinho.

Nunca vi tanto automvel na minha vida!

Palavra?

E de verdade, t bem?

De verdade eu no gosto. So muito brutos...

At que ele tinha razo. Mas a culpa no dos automveis, de quem dirige. Automvel bem guiado no faz mal a ningum.

A culpa dos motoristas disse eu, usando as minhas observaes da calada. No dia em que o bicho homem compreender que automvel meio de transporte e no de morte, tudo vai mudar...

Aquele pensamento causou profunda impresso.

O pensamento seu? perguntou, com a maior admirao, o tamborzinho furado.

nosso...

Eu tinha ouvido aquilo numa conversa do Dr. Toledo.

Meu cartaz foi aumentando. A tal ponto, que eu j nem sentia muito a minha priso no armrio embutido. J no estava mais na Ilha de Santa Helena. Parecia mais uma Ilha de Paquet, que toda flores, a mais linda da Baa da Guanabara. (Prestar ateno na conversa dos outros ensina muita coisa...) E como eu trazia sempre a experincia do mundo exterior (s vezes o Mariozinho me esquecia na sala e s me guardava quando a voz to doce de Dona Sara lhe dizia: "olha, voc se esqueceu de recolher o Napoleo..."), como sempre eu trazia as novidades, fui acabando, mesmo, uma espcie de imperador do armrio embutido.

Conta as coisas! diziam mal eu vinha chegando.

Voc viu hoje a Claudinha?

O Gil Vicente apareceu?

Renatinho ainda est namorando a Alexandra?

No. Ele agora est apaixonado pela Maria Joo.

Maria Joo? U! Tem Maria Jos por que no h de ter Maria Joo?

Todos acharam graa, as perguntas continuavam.

A Marlene ainda no foi despedida?

De jeito nenhum! Dona Sara tem um corao de ouro, no capaz de fazer mal a ningum.

Eu no podia esquecer que, graas a Dona Sara, de voz rara, de voz clara, do incinerador eu escapara...

E o mais engraado que o pessoal comeava a me pedir proteo, pedir favores.

Ser que voc me arranja um passeio na calada?

Eu no sou orgulhoso, deixava agora eles me chamarem de "voc". Afinal, eu era imperador apenas de brincadeirinha.

Pede para o Mariozinho me tocar de vez em quando suplicava o tamborzinho furado. De um lado eu ainda funciono...

Eu no fao questo que eles brinquem comigo dizia o ursinho da barriga rasgada. Meu tempo j passou. Eu s queria, uma vez ou outra, dar uma olhada l fora... V se consegue, t?

Eu no queria desiludir os infelizes. Eu sei o que sofre brinquedo desprezado.

Se der jeito, eu falo com ele...

Serve mesmo o Renatinho dizia o tambor.

Renatinho no tinha o mesmo cartaz do mano mais velho. Mas servia...

O problema deles era sair do armrio, viver...

O urso, coitado, com toda aquela pelcia importada (e rasgada), topava qualquer negcio.

Fala com os meninos, Napoleo. Diz pra eles me darem pro Gil Vicente. Outro dia ele me pediu, eles negaram. O Gil Vicente disse que tem uma tia capaz de me consertar a barriga... uma operao simples, simples...

T bem, t bem... Vou ver se d jeito...

Quando eu voltava das correrias imperiais todo mundo caa em cima de mim.

Voc pediu?

Falou com Mariozinho?

Voc resolveu o caso da minha operao na barriga?

Eu tinha que me explicar.

Hoje no deu jeito. Estive ocupado o tempo todo. Foi um tal de galopar...

Mas vocs no pararam nem uma vez? No possvel!

A gente parava, sim. Mas quando Mariozinho encontrava algum colega.

E ento?

, mas, em primeiro lugar, eu no vou me meter na conversa dos outros. Educao educao... E, depois, no posso comprometer o garoto...

Eles pensavam que era m vontade, mas no era. No ficava bem contar, diante dos amigos, que, a no ser eu, todos os brinquedos dele estavam na ltima lona...

Todos, no. Havia o astronauta. Brinquedo caro. Saa sempre o retrato dos colegas dele no jornal. Tinha at alguns que trabalhavam na televiso.

Uma vez me esqueceram na sala da TV, parecia todo mundo interessado nuns troos que estavam acontecendo no mundo da Lua.

Hoje o homem desce na Lua! dizia Seu Conrado, alis, Doutor Toledo.

A famlia estava to agitada que ningum pensava em mim. Fiquei assistindo palhaada. Uma conversa muito confusa com o pessoal do apartamento vizinho, com as prprias crianas, falando em foguete, em mdulo, uma poro de coisas complicadas. No moro muito em matria de cincia. No especialidade minha. No passo de um cavalo de pau. Decente. Vivido. Estimado. Respeitado pelos meus colegas de brinquedo. Mas um simples cavalo de pau.

A televiso estava ligada e havia na tela uns sujeitos falando por todas as juntas, mostrando mapas, dando nmeros e palpites, que provocavam a maior irritao entre os presentes. Doutor Toledo tinha s vezes verdadeiros acessos de fria.

Num dia como este, em que o homem realiza a maior faanha de todos os tempos, a maior conquista da cincia, ficam esses idiotas a dizer os maiores disparates!

Os outros concordavam com ele.

Quando a cincia humana leva o homem Lua, atravs do espao, depois de uma viagem de teretet milhares de quilmetros... (o nmero eu no guardei e a conversa no se entendia direito, porque os homens da TV no paravam de falar), numa hora destas...

Eu confesso que estava meio atordoado com tudo aquilo. Mas dava para perceber que uns tais de americanos tinham sado da Terra, e, naquele momento, deviam estar desembarcando na Lua. Lua, pelo jeito, era um negcio que havia nos confins do cu. Um negcio que s vezes enchia, s vezes esvaziava. J tinha ouvido falar naquela histria. Nunca o homem tinha estado l. Mas estava chegando...

Olhem... Olhem... agora!

Eu estava pensando que era a coisa mais importante do mundo. Mas depois eu vi que era um programa de televiso...

Chegaram...

Esto descendo...

Todo mundo olhou. Eu olhei tambm. No era nada daquilo. Em vez de homens, eram uns astronautas, andando muito devagar, como quem nunca tinha trabalhado antes na TV, meio com medo de cair, os braes erguidos.

Eu estava querendo saber o que havia de to importante naquele trabalho, quando algum tropeou em mim e me atirou no cho. Esqueceram Napoleo aqui na sala outra vez disse Dona Sara.

Apanhou-me no cho, sem zanga e atirou-me no armrio embutido. Fui bater no astronauta que dormia. Ele acordou assustado. Havia tempo que ele andava me olhando com vontade de puxar prosa. Eu tambm estava. Aproveitei a ocasio.

Estive assistindo a uns colegas seus na TV. No gostei. Acho voc muito mais... muito melhor de movimento... bem mais desembaraado. Voc trabalha muito melhor, t me entendendo?

Pouco, no? Eu no portugus muito...

Voc no manja portugus, meu chapa?

Comeando, no?

A, ns resolvemos trocar aulas. Eu ensinava portugus (que ele chamava de "basilelo") ele me ensinava japons. Um pouco eu j sabia. Nagasqui era nome de uma cidade. Arigat era obrigado. Eu ensinei Rio de Janeiro, ele me ensinou Tquio. Eu fiz que ele dissesse saudade. O astronauta achou lindo, repetiu muitas vezes, e me ensinou saionara. Saionara o mesmo que saudade?

Saudade, no. Comeo... Comeo de saudade...

Como assim?

Saionara ... antes da saudade... um pouquinho, no?

Te explica, meu chapa. Ele gaguejou um pouco:

Saionara ... saionara ... a... adeus! Ah, j sei! Saionara ciao!

Sim, porque eu tanto falo japons como italiano.

Algum tempo depois as coisas pioraram mesmo... Muito... Pra todos... O Natal estava chegando.

Natal alegria de criana, tristeza de brinquedo velho. Vai tudo pro lixo...

O tamborzinho furado, veterano do armrio, quando eu lhe contei, pensando ser muito bom, que os meninos estavam esperando o Natal, se encolheu todo.

Ah! Meu caro, estamos perdidos!

Por qu? perguntaram os outros.

O tamborzinho explicou. Ele tinha chegado no Natal anterior. Uma festa maravilhosa na casa. Luzes, bolas, doces, crianas dos outros apartamentos, primos, tios, tias (com certeza aquela tia Helena, que nunca me viu com bons olhos), e uma rvore linda no meio da sala, com bolinhas coloridas e velas acesas e embrulhos de presentes embaixo, amarrados com fitas de cor. Do fundo de seus embrulhos os brinquedos sabiam tudo o que se passava na sala. A prpria rvore contava.

Este o dia mais glorioso do ano! O dia do amor universal. Todo mundo fica bom... Todo mundo d presente. Vocs so presentes... E vo ver a alegria com que vo ser recebidos... uma coisa estupenda! Se os homens fossem mesmo inteligentes, eles faziam Natal o ano todo...

Devia ser mesmo... Todos riam, todos batiam palmas, as muitas crianas pulavam, cantavam, danavam.

Depois, chegou a hora. Seu Conrado saiu da sala, se vestiu de Papai Noel, um Papai Noel muito alinhado, no como aquele que trabalhava na porta da loja onde eu morei, e veio chegando muito solene, meio com passo de astronauta. "Viva Papai Noel!" "Viv!" Foi uma cena fabulosa! Ele pegava os embrulhos, lia o nome do ganhador de cada um, entregava o presente, o pacote se abria e a gente era recebida com gritos e palmas. Eu me lembro da alegria de Mariozinho quando me recebeu. Deu-me um beijo, pegou os pauzinhos e comeou a me tocar pan, pan, rataplan, pan, pan, rataplan! com tanto entusiasmo e com tanto barulho, que o pessoal ficou meio surdo. "Parece um tamborzinho do exrcito de Napoleo", disse o pai do Gil Vicente. Foi a primeira vez que eu ouvi o seu nome...

Meu nome muito conhecido disse eu. O pai de Gil Vicente deve ser craque em Histria Universal...

O tamborzinho continuava contando. Descrevia a festa como um deslumbramento!

Mas ento vale a pena esperar, meu querido disse o ursinho de barriga rasgada. Ns vamos ver uma beleza. Ou, pelo menos, ouvir...O tamborzinho ficou srio.

o que vocs pensam...

Houve uma pequena pausa. E depois, com voz meio rouca:

No dia seguinte ns todos era uma multido de brinquedos novos, todos lindos soubemos que a nossa casa seria este armrio embutido. A gente saa para brincar com os meninos. Acabada a brincadeira, armrio...

At a est certo disse eu. Casa precisa de ordem. Criana tambm. Hora de comer, comer. Hora de estudar, estudar. Hora de brincar, brincar. Hora de armrio, armrio...

Eu sei disse o velho tambor. Eu sei... Mas, na primeira vez que viemos para o armrio, o armrio estava como agora: cheio de brinquedo velho...

E da? perguntou, trmulo, um pequenino canho de matria plstica.

Da? Para nos arranjar a moradia, a arrumadeira (ainda no era a Marlene) desocupou o armrio...

Como assim?

Jogou toda aquela caqueirada na lixeira.

Um silncio pesado baixou sobre ns. O Natal se aproximava, com uma nova gerao de brinquedos...

O ursinho enxugou uma lgrima de faz-de-conta. O astronauta suspirou profundamente. O tamborzinho o tranqilizou:

Voc o nico que pode estar sossegado... Est em plena forma... Voc tem futuro... Tem mais: alguma coisa me diz que o futuro voc...

At Napoleo, que o favorito, capaz de ser varrido na limpeza geral...

Tia Helena vem sempre s festas de Natal? perguntei.

Pelo menos no ano passado ela estava.

No sou de sentir frio na espinha. Dessa vez eu senti.A aproximao do Natal mobilizara a casa inteira. No se falava noutro assunto. Mandavam-se cartes de Boas-Festas. Recebiam-se cartes de Boas-Festas. Faziam-se projetos. Os garotos levantavam os olhos sonhadores:

Que ser que eu vou ganhar?

Ser que Papai Noel me arranja um automvel de verdade?

Que bobagem, Renato... Quem precisa de automvel de verdade papai. O fusca dele t pedindo "arreglo". J no d mais nada...

Eu digo de verdade, mas de brinquedo. De a gente poder entrar e rodar, a gente empurrando o pedal, o pedal tocando as quatro rodas...

Ah! Isso sim... Fala com Papai Noel...

Aquele da loja?

No. Papai Noel bom o pai da gente. ele que compra. O outro s pra ver se os pais da gente entram na loja... Nesse negcio de Papai Noel eu moro...

Quer dizer que...

Papai Noel faz-de-conta...

Ento como que voc pediu pra papai falar com Papai Noel encomendando a bicicleta?

Quando ele falou em bicicleta (eu estava embaixo da mesa) confesso que senti outra vez aquele frio na espinha... Mas continuei acompanhando a conversa. Mariozinho explicava:

Pedir a Papai Noel um jeito do pai da gente no poder recusar. Se a gente pede direto, ele pode dizer que a situao est difcil e tal e coisa e tira o corpo... Ns sabemos muito bem que o dinheiro anda pouco... E a gente tem de concordar. Mas se o problema de Papai Noel ts me entendendo? a coisa muda de figura. O "velho" que se vire...

Mas no somente os meninos. O Doutor Toledo conversava com Dona Sara, as amigas falavam com ela. Era um tal de fazer projetos, de falar nas compras, de se queixar contra os preos, como eu nunca vi.

Quando eu ouvia Dona Sara se queixar dos preos, eu ainda ficava um pouco animado. Podia no haver dinheiro bastante para os brinquedos novos. Mas o tamborzinho, nessas coisas, tinha mais experincia.

Pra Natal eles arranjam... Fazem qualquer sacrifcio. E depois, hoje compra- se tudo a prestaes.

At bicicleta?

Principalmente bicicleta, meu querido...

Bicicleta na calada uma coisa to perigosa... disse eu, pensativo.

Mas no para um cavaleiro como Mariozinho...

Bom... l isso ... Meu compadre o maior...

O fato que aquele Natal parecia o fim do mundo. Quando eu falo nos brinquedos do armrio embutido, posso dar a impresso de que eles tinham vivido sempre abandonados. No era bem assim. Uma vez ou outra eles funcionavam. Apenas eu tinha um pouco mais de sorte. Mas agora a crise era total. Era abandono mesmo. A gente passava dias no escuro, s escutando as conversas na sala. Raramente Mariozinho dava as caras. E numa dessas ltimas vezes, antes no tivesse dado... Porque ele veio, me pegou, j entrou no elevador montado no papai (eu to emocionado...), mas, quando chegamos calada, o Ivzinho estava l, numa bicicleta nova, todo feliz. Mariozinho ficou deslumbrado e pediu para dar uma voltinha. O garoto deixou. Mariozinho me deixou no cho, deitado junto ao murinho do jardim, subiu na bicicleta e saiu pedalando.

Nunca passei humilhao maior... Nem quando varri pela primeira vez, vendo a minha parte vassoura esfregada no lixo...

Mariozinho ia, voltava, pedalando com gosto. Depois, o Ivzinho pediu a bicicleta, ele devolveu, agradecendo muito, ficou olhando o amigo bicicletar com uma inveja infinita e depois resolveu subir para o apartamento.

Vocs pensam que ele se lembrou de mim? Nem por sombras. Eu fiquei largado na calada, a morte na alma...

Salvou-me Dona Sara. Ela voltava das compras, trazendo uma vassoura nova (era a terceira, desde que eu passara a cavalo de pau), me viu no cho, gritou pelo filho.

Mariozinho?

Ele j ia pegar o elevador, ouviu o chamado, voltou.

Voc jogou fora o Napoleo?

Esquecimento, mame! Coitado do Napoleo! Desculpe...

Voltamos os trs para o