ORLANDI Imagem de Palhaco

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Luiz Orlandi

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    Imagem de palhao e liberdade

    Luiz B. L. Orlandi Resumo: Deleuze, em Imagem-tempo, estabelece a unidade indivisvel de uma imagem atual e de sua imagem virtual como suficiente para afirmar a irredutibilidade da imagem-cristal aos muitos e distintos elementos que esta pode ter. Tem-se a a operao temporal constitutiva da imagem-cristal, isto , o paradoxo do tempo que, a cada instante, desdobra o presente em duas direes heterogneas lanadas uma ao futuro e outra ao passado. Para Deleuze, o cristal deixa ver essa ciso que constitui o tempo. Dentre as implicaes desse paradoxo da imagem, cabe perguntar pelo papel da diferena intensiva nessa ciso temporal, nessa coalescncia de direes heterogneas. A presente conferncia quer ser apenas uma introduo a essa pergunta. Dedicatria: Em homenagem a Waldemar Seyssel, o Arrelia, e a Ibrahim

    Ferrer, ambos falecidos neste ano de 2005, neste centsimo ano do nascimento

    de Sartre e dcimo da morte de Deleuze.

    Questo: Considerando os limites cronolgicos aqui estabelecidos,

    considerando o uso implcito de conceitos deleuzeanos e considerando o grave

    inconveniente de no ser eu um artista, como levar um enredado discursivo,

    alinhado entre criana e palhao, a misturar-se com um subseqente canto em

    prol de certa liberdade, de tal modo que, atravs de uma distoro dos

    sentidos1, atravs de uma agitao do imaginrio, possamos experimentar

    aqui a juno, a coalescncia2 de uma imagem intensiva? E, depois, em

    Conferncia feita no dia 6/10/05 no encerramento do VI Simpsio Internacional de Filosofia: Nietzsche e Deleuze Imagem, Literatura e Educao. Fortaleza:2-6/10/2005. Dep. de Filosofia-IFCH-Unicamp, CEMODECON e Ncleo de Estudos da Subjetividade PUC-SP. 1 Apreender a intensidade, independentemente do extenso, ou antes, da qualidade nos quais ela se desenvolve, o objeto de uma distoro dos sentidos. Uma pedagogia dos sentidos volta-se para este objetivo. Gilles Deleuze, Diffrence et rptition, Paris: PUF, 1968, p. 304. [Trad. br. de Luiz B. L. Orlandi e Roberto Machado. So Paulo: Ed. Graal, 1988, p. 378]. 2 Coalescncia: conferir G. Deleuze, Critique et clinique, Paris: Minuit, 1993, p. 83. [Trad. br. de Peter Pl Pelbart. So Paulo: Editora 34, 1997, p. 74-75: o imaginrio e o real devem ser antes como que duas partes, que se pode justapor ou superpor, de uma mesma trajetria, duas faces que no param de intercambiar-se, espelho mvel . No limite, o imaginrio uma imagem virtual que se cola ao objeto real, e inversamente, para constituir um cristal de inconsciente. No basta que o objeto real, que a paisagem real evoque imagens semelhantes ou vizinhas; preciso que ele desprenda sua prpria imagem virtual, ao mesmo tempo que esta, como paisagem imaginria, se introduza no real segundo um circuito em que cada um dos dois termos persiga o outro, intercambie-se com o outro. A viso feita dessa duplicao ou desdobramento, dessa coalescncia. nos cristais do inconsciente que se vem as trajetrias da libido. A respeito de coalescncias em msica, ver G. Deleuze e Flix Guattari, Mille Plateaux, Paris: Minuit, 1980, p. 380.

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    havendo tempo, que nome dar imagem assim obtida por operaes que no

    pretendem submet-la a um correlato representado ou representativo?

    * * * Primeiramente, ento, como obter o envolvimento mtuo de vestgios de

    pensamento conceitual e de emoes que enredem o bloco palhao-criana e grito

    por liberdade? Procurarei fazer isso, levando em conta uma situao

    aparentemente simples e comum. Trata-se de uma cena ocorrida h muito tempo e

    narrada em crnicas de autoria incerta. A cena a que me refiro ocorreu h muitos

    anos, repito, e, alm disso, efetuou-se num territrio que j no existe, do ponto de

    vista fsico. Devo salientar, ainda, que a crnica por mim escolhida delineava

    muito rapidamente a situao, valorizando lembranas, claro, mas sem o intuito

    de provocar o sentimento subjetivo da saudade. Vale dizer que o cronista no

    estava preocupado em cultuar um passado empiricamente vivido.

    No era grande, dizia a crnica, a distncia fsica intercalada entre a criana

    em movimento e aquele imenso conjunto de luzes enfileiradas em serpentinas que

    subiam aos cus. A distncia no era enorme, mas cada centmetro vencido era

    como que simultaneamente carregado e descarregado da inquietao presa aos

    passos da criana. Paradoxalmente, aquele vigor infantil nem mesmo parecia notar

    seu prprio esforo para vencer essa distncia movedia. E a criana, despistando o

    motivo do seu desassossego, divertia-se com seu poder de ziguezaguear entre os

    transeuntes ao longo do percurso. Esgueirando-se com sorridente vivacidade, ela

    se aproxima, finalmente, da profuso de luzes que inflama essa noite de frias

    escolares, sempre to bem-vindas. Lembrou-se, por contraste, da pouca iluminao

    da ruela de onde partira. E at mesmo a praa, que acabara de atravessar, pareceu-

    lhe opaca em face dessa ofuscante claridade. Ao mesmo tempo, esse

    deslumbramento, misto de luminosidades e expectativas, aparece como aquilo que

    a criana mais queria, a destinao excepcional da rua e da praa, territrios das

    suas dirias e costumeiras andanas. Pra, um instante, como quem faz de tudo

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    aquilo uma dobra a ser para sempre recolhida. Contempla, sorrindo, admirada, o

    gigantismo daquele cone de pano colorido, iluminado e cheio de msica.

    Em seguida, j de posse do seu bilhete de entrada, inesperado presente

    recebido h alguns dias, apresenta-o a um excntrico porteiro. Excntrico, porque

    suas vestes so coloridas e seu rosto exibe um sorriso em cores. Assim que entrega

    o bilhete, a criana v aquele pedao de papel transformar-se em borboleta ao

    sabor do ligeiro volteio das mos do porteiro. E essa borboleta, visvel e invisvel

    em sua esvoaante magia, leva o olhar da criana a acompanh-la at o seu pouso

    no vermelho da cortina que se v logo adiante. Sabe que deve passar pela cortina,

    como acaba de fazer a borboleta e como inmeros outros humanos j o fizeram

    antes dela, e continuam fazendo agora mesmo. criana, falta apenas deslizar pelo

    vo que ginga entre as duas flexveis metades daquela vermelhido tremeluzente.

    Tudo parece dizer a ela: siga o vo que a antecedeu ou inflame suas prprias asas,

    siga os passos dos outros ou invente os seus, v em frente! E, provavelmente como

    tantos outros, sua leve indeciso parece sugerir que nela tambm se acende o

    sentimento de no saber ainda o que ver no para alm dessa entrada. J ouviu

    suas primas mais velhas contarem coisas a respeito do que se esconde atrs dessa

    ou de outras cortinas. Coisas que oscilam do maravilhoso ao assustador, ao que

    capaz de causar gargalhadas, mas tambm temores ou apenas alguns tremeliques.

    J ouviu falar disso. Sabe at o nome da coisa toda que a envolve ali nesse

    presente, essa coisa em forma de conjunto ferico, em forma de tenda que tende ao

    suntuoso e fascinante. Sabe que aquilo tudo se chama circo. CIRCO.

    Todavia, prossegue a crnica, o que ns, aqui de fora, no sabemos, e que

    talvez no saibamos jamais, seja porque nos esquecemos, seja porque nos

    descuidamos, o que no sabemos muito bem dar uma resposta seguinte

    pergunta: o que pode fazer um nome no corao de uma criana? E o que pode

    fazer, nesse pulsante corao, a coisa nomeada? Tudo seria mais simples, talvez, se

    essa prodigiosa mquina sangnea no fosse vibrao de encontros e

    desencontros das percusses que saltam dos nomes e das coisas, e que saltam sem

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    harmonia pr-estabelecida entre eles. A est: a primeira vez que a criana se

    aproxima de uma coisa chamada circo. Esta vez a sua primeira entrada, seu

    primeiro acesso a esse mundo at ento nomeado, mas desconhecido. De algum

    modo ela deve estar sentindo a importncia dessa experincia. Ou melhor, um

    dos momentos de sua vida em que se arma como decisivo esse aprendizado de que

    no se conhece muito bem a coisa cujo nome se sabe, cujo nome fica muitas vezes

    apenas pinguepongueando entre a boca e as informaes que chegam dos outros.

    Circo, circo, circo...trapzio, trapzio, trapzio... mgico, mgico, mgico...

    palhaos, palhaos, palhaos... Sim, j ouvi essas palavras! Mas, que ser o que

    verei? Que ser de mim l dentro? Pra onde me levar o que vier a aparecer?

    como se essas perguntas, filtradas em vibrtil silncio, j estivessem

    recompondo a sensibilidade dessa criana como formigamento de expectativas

    ressurgentes. Nesse momento, torna-se mais evidente que algo j comea a

    estremecer seus nervos, talvez um misto de querer ver e de temer o que ver. H

    cruzamento de relmpagos escondidos em sua pele; e eles avisam que se trata de

    uma aventura, de uma nova aventura, esse salto entre a palavra circo e a coisa que

    j comeou a envolv-la desde seu deslocamento inicial em direo ao cone de

    luzes. Uma aventura plena de desenvolturas, pois que se desencadeia entre

    potncias de envolvimento e dobraduras: potncia de palavras e potncia de

    coisas num redemoinho de mundos que se abrem e se fecham na presena ou na

    ausncia dos outros. Como exprimir isso que ferve nessas potncias? Como

    exprimir o que se agita nessas potncias? Como exprimir esse complexo

    dinamismo, essa espao-temporalidade fremente, esse dinamismo capaz de

    fecundar mundos absolutamente distintos: multiplicidade de mundos em palavras

    e multiplicidade de mundos em coisas interseccionando outros mundos que se

    abrem e se fecham mutuamente em suas travessias pelos humanos? O aprendizado

    que a se apossa da criana o de uma aventura que impregna o destino dos

    humanos, mesmo daqueles que fazem de um nico nome, Deus, por exemplo, o

    criador de todas as coisas, porque tambm o crente parece viver merc do

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    inesperado, mesmo que este o ameace apenas como simulacro demonaco. A

    criana comea a aprender que ser infindvel esse outro ziguezaguear entre dizer

    e perceber, entre a dizibilidade e a perceptibilidade que perpassa bocas e posturas

    dos humanos. Mesmo antes de reascendido pela poesia, pela msica, ou pelos

    sustos da vida, esse aprendizado dos encontros entre as diferenas j leva a criana

    a sentir que at as palavras brutas so grutas explosivas onde se esconde o

    explosivo avesso das coisas. Um dia ela perguntar pela potncia capaz de atiar

    essas explosividades clandestinas.

    O sinal de que esse aprendizado j se faz atuante aparece na fisionomia da

    criana logo aps ter ela atravessado a cortina. O primeiro impacto de rebrilhos de

    alegria mostra-se nos seus olhos infantis. Mas o que seria um olhar infantil? Seus

    olhos esto agora vidos pelos detalhes internos do imenso caleidoscpio, como se

    eles pudessem apalpar as linhas de fora que jorram entre aquela rea central,

    circular, o tal de picadeiro, e as ondas de mil e um semblantes encantados que se

    distribuem pelas fileiras sobrepostas da imensa arquibancada. No lhe haviam dito

    que isso tambm j circo! Que circo, isso que a est invadindo pelos poros

    todos. E j no circo essa circulao de vendedores de multicoloridos pirulitos

    expostos em tabuleiros? No seria circo tambm isso, essa beleza que ela ainda no

    havia reparado nas meninas e meninos? Essas unhas esmaltadas? Esse rosado nos

    lbios sorridentes? Esse bem-estar dos adultos? E a brancura aucarada dos

    algodes-doces? E a profuso de cores das vestimentas? E a msica no meio da

    zoeira toda?

    De repente, tendo j encontrado seu pequeno lugar, a criana envolvida

    por uma nova tonalidade do ambiente. que a iluminao e todo o barulho de h

    pouco vo sumindo, e sumindo em proveito de uma nunca vista dramaturgia de

    fluxos de luminosidade e sonoridade. J no se trata de um excesso de luzes e sons

    indiferentes aos gestos dos participantes. O que agora se difunde uma outra

    composio feita de combinaes de nuanas destinadas a redimensionar detalhes.

    Com isso, a realidade das coisas, pequenas ou grandes, se desdobra ao ser tocada

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    por essas recombinaes de distintos eflvios luminosos e sonoros. E a arte de cada

    corpo circense, de cada um desses corpos avidamente contemplados pelo olhar

    infantil, essa arte que escancara sua predileo pelo risco e pelo impossvel3,

    essa arte relanada ao para sempre de uma memria iluminada e sonorizada em

    graus variveis de arrojos e sutilezas. A criana agora uma presa desse jogo

    encantado de corpos em arte. Ela no o juiz do espetculo. No o analista das

    competncias. Ela se encontra em estado de paixo. a presa. Mas no aquela

    condenada morte como presa de uma teia de aranha. No! a presa de instantes

    de vida, de uma vida de instantes gloriosamente intensos. Essa criana, ali no circo,

    arrebatada por um arco de intensidades.

    Essa intensificao de xtases, esse intensivo arco de arrebatamentos, oscila

    entre dois plos: um plo, digamos adulto e um plo criana. O que a crnica

    procura dizer, nesse ponto, que esse arco balana entre o suspense amedrontador

    (por exemplo, aquela emoo vivida com respirao contida em face do perigo

    assumido pelos trapezistas soltos no ar) e, no outro plo, o riso incontrolvel, a

    gargalhada que embaralha o sublime e o grotesco, o trgico e o cmico. Esse riso

    vai escapando da boca, envolve o corpo todo em face daquilo que os palhaos de

    verdade conseguem fazer naquele espao-tempo que eles transfiguram graas ao

    exerccio da liberdade do seu apresentar-se4. com essa liberdade (claro que muito

    complexa e de delicada construo, mas este um outro problema), com essa

    liberdade, a liberdade de propiciar novos encontros, com ela que os palhaos

    praticam, por exemplo, as mais absurdas maquinaes de cores impressas em suas

    fisionomias; com essa liberdade que eles se articulam aos mais disparatados

    dispositivos, desde os sapatos quilomtricos at as perucas endoidadas; com essa

    liberdade que eles se entregam s quebras do rotineiro, com ela que eles se

    articulam aos transtornos e remexidas do andar, do falar, do cantar, do mostrar, do

    esconder, do conversar, do olhar, do pensar... e por a vai. Enfim, todos os verbos 3 Mrio Fernando Bolognesi, Palhaos, So Paulo: Editora Unesp, 1 reimpresso, 2003, p. 44. 4 Cf. a trajetria do clown a partir do sc. XVI at caracterizar-se pela gratuidade de suas intervenes e a liberdade de improvisao, como diz Bourgy citado por Bolognesi, op. cit., p. 63.

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    no infinitivo (amar, morrer, peidar, correr, sentar, fingir, cantar, latir, assoviar,

    propor, silenciar, fugir, barulhar, indispor, nadar, curtir, velejar, sumir, ler, pensar,

    etc., etc.,) todos os infinitivos esto disposio da liberdade clownesca, da

    liberdade palhaal de ir aos ilimitados mundos das palavras e das coisas, dos

    humanos e outros animais, para combinar e recombinar os elementos mais

    dspares. No h verbo que no esteja disposio das subverses de um

    verdadeiro palhao.

    Ou melhor, um palhao se constri. Mas, no limite, o que propicia ao

    palhao construir-se como verdadeiro palhao? Isso parece acontecer, diz a

    crnica, quando ele consegue entregar-se a uma liberdade que ultrapassa at

    mesmo a ele prprio, a uma liberdade extra-humana digamos, aquela que coincide

    com a explorao combinatria das linhas virtuais que pulsam no infinitivo de

    cada verbo que a humanidade foi e capaz de enunciar pela boca, posturas e

    atitudes, de cada verbo que a humanidade foi e capaz de desbravar pelas artes,

    cincias, tcnicas e filosofias, mas tambm de cada verbo que os animais so

    capazes de ruminar, de cada verbo que os vegetais so capazes de germinar, que os

    minerais so capazes de sintetizar e misturar, que as coisas so capazes de

    suscitar...que os deuses, demnios e professores so capazes de ensinar e aprender.

    Tudo matria de poesia, diz o poeta. Tudo matria de pesquisa, diz o cientista;

    tudo matria disponvel para o pensamento conceitual, diz o filsofo.

    Certamente, eles tm razo. Mas as performances de um palhao remetem a algo

    mais estranho. Por que? Porque de tudo, com delicadeza ou contundncia, eu

    posso extrair o mais ntimo sorriso ou a clera de um riso, diz o palhao, seja para

    o bem ou para o mal, pois meu hbitat a potncia de uma liberdade combinatria

    de pensar e agir que no se esgota na liberdade desta ou daquela potncia.

    O palhao da crnica percebe que a nossa criana est deslumbrada,

    tomada pelas suas peripcias. Aproxima-se dela, toma suas mos e as beija como

    quem declara seu afeto e agradecimento. Afinal, o devir criana do palhao est bem

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    prximo dos devires moleculares5 que entrosam sua liberdade e aquele deslumbre

    infantil. como se o circo inteiro, com sua inesgotvel magia de ilimitaes, se

    concentrasse nessa imagem de palhao. Ao mesmo tempo, incansvel em seu af,

    em seu empenho, em sua lida de levar os outros a mudanas de estado, o palhao

    finge que toma um tapa da criana e cai de costas, momento em que salta do seu

    peito um avermelhado e pulsativo corao de plstico que vai subindo como balo

    l para o alto, para o mais elevado ponto interior do circo. Mas eu no bati nele,

    balbucia a criana em meio aos aplausos. Ento, que aconteceu? pergunta-lhe um

    adulto colado a ela. Que se passou?

    Silncio como resposta. Desmontado, o circo j se foi. Sua itinerncia j o

    levou. J no se encontra beira da praa. No cho gramado, mal se notam as

    marcas deixadas pelo picadeiro. Que se passou nesse territrio que me fez viver

    daquele jeito? Que isso que ao se passar me leva, me embala por alguns instantes,

    mas que depois no encontro em mim mesmo e nem nas coisas ao redor? De onde

    vem essa potncia de desterritorializao6 que por vezes acontece? No pode ser

    uma palhaada qualquer, como as praticadas por aqueles erroneamente

    adjetivados de palhaos. Preciso fazer alianas com palhaos de verdade para que,

    de repente, em outro instante, algo acontea, algo se passe, no igual ou

    semelhante ao que se passou, pois isso impossvel, mas que tambm me leve por

    intensas transpassagens7. Foi ento que a criana, fingindo-se preocupada com as

    perguntas do adulto, passou a lev-lo para perto de muitos outros palhaos de

    verdade, desses palhaos que so provedores de imagens instantneas do caos,

    mas imagens capazes de fazer da alegria e da tristeza um cristal em que brilha para

    sempre uma extraordinria afirmao da potncia de viver, essa potncia que

    5 Cf. G. Deleuze e F. Guattari, Kafka. Pour une littrature mineure, Paris. Minuit, 1975, cap. 2 e 4. E tambm Mille plateaux, op. cit., plat 10. 6 Penso aqui na desterritorializao dita absoluta com base na passagem escrita por Deleuze e Guattari em Quest-ce que la philosophie?, Paris: Minuit, 1991, p. 85. [O que a filosofia?, trad. br. de Bento Prado Jr. E Alberto Alonso Muoz, So Paulo: Editora 34, 1992, p. 116-117]. 7 H uma alegre seriedade no liame que nos leva dos palhaos criao de possibilidades de vida. Para que o leitor se convena academicamente disso, basta ler a magnfica tese de doutorado de Ktia Maria Kasper, tese defendida e aprovada na Faculdade de Educao da Unicamp em 19/02/2004.

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    tambm pode levar, em meio a lamentaes, a um canto pela liberdade, esse canto

    que se pode ouvir, por exemplo, na msica Bruca Manigu, de autoria de Arsenio

    Rodrigues e que ouviremos na voz de Ibrahim Ferrer 8

    * * *

    8 Transcrevo abaixo a letra cantada por Ibrahim Ferrer e, em seguida, a traduo feita por Damian Kraus com suas notas explicativas.

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    Bruca Manigu Yo son carabal negro de nacin. Sin la libertad no pueo vivi. Mundele cab, con mi corazn, tanto maltrat, cuerpo tafur eh Mundele cumba fiote siempre tangaruacha. queta por mucho, que yo lo ndinga siempre tamaltrat. Ya ne me tab Labio de buir (x2) coro Yenyere Bruca Manigu. Abre cuita buirindingo Bruca Manigu Ae. Si ramento suaro suare Bruca Manigu Ae. coro Ae, Chchere Bruca Manigu.

    Como un tienda derechito Bruca Manigu Ae. Un paso, un paso Ubbe Yobolle ila Bruca Manigu Ae. Ya yorrucu mandengo, Bruca Manigu Ae. Yo son carabal, son mandinga quiero mi libertad Ae Congo tiene teremende, Bruca Manigu Ae yaeooo Yo tatantando, lo mundele, Bruca Manigu Ae. Que esa negra A m me engaa, Bruca Manigu Ae (x2) xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

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    Bruca Manigu [Traduo e notas de Damian

    Kraus]

    Eu som i carabali iie negro da nao.iii

    Sem a liberdade no posso viv.

    O mundeleiv acaba cum meu corao, di tanto maltrat,

    o corpo t furi v, ah!

    O mundele fala fiote visempre t na garoa, mole.

    Eta! Por muntcho que eu ndinga

    sempre vai maltrat.

    J nem tava l lbio de rubi

    coro Ienier Bruca Manigu.

    Chora mgoa buirindingo

    Bruca Manigu, Ai!

    oc lamenta, suando, suado Bruca Manigu, Ai!

    Como tenda errante Bruca Manigu, Ai.

    Um passo, outro passo

    Ubbe Iobol Il Bruca Manigu, Ai!

    J iorrucu, mambembe! Bruca Manigu, Ai!.

    Eu som carabali; som mandinga

    Eu quero a minha liberdade, Ai!

    O Congo tem teremend, Bruca Manigu Ai iaiooo

    Eu t tantando. Oh! Mundele,

    Bruca Manigu, Ai!

    Que essa nega t me enganando,

    Bruca Manigu, Ai! (x2)

    coro Ai, Tchtcher Bruca Manigu.

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    Notas de Damian Kraus [Damian Kraus doutorando em Psicologia Clnica e participa do Ncleo de Estudos da

    Subjetividade PUC-SP] Compositor: Arsenio Rodrguez (1911-1970), gravada na verso mais conhecida em 1937, por Miguelito Valds. Audvel. In: http://www.musica.cult.cu/musica.htm Pg. 2 do lbum: O lbum abre com Bruca Manigu, a primeira composio gravada pelo lendrio Arsenio Rodrguez. Essa nova verso inspirada nos arranjos feitos originalmente por Anselmo Sacasas e gravada pela orquestra Casino de la Playa em 1937. Cantada em um pato que mescla espanhol e lnguas africanas, as letras contam a estria dos negros escravos que fugiram para as montanhas Maningu, escapando assim do sofrimento. Conforme minha pesquisa [agradeo a Miguel Arango Moral, cubano e negro, pela generosa contribuio] a atualizao de Ibrahim Ferrer envolve variadas superposies, ou camadas ou intensidades rtmicas e poticas: na introduo meldica, principalmente, vibra uma antiga msica cubana, Lamento esclavo [Lamento escravo] cuja autoria de Eliseo Grenet (1893-1950). Audvel. In: http://boleadora.com/medleyes.htm. Eis a recriao dela em portugus:

    Escravo sou, negro nasci

    negra a minha cor e negra a minha sorte

    coitado de mim. Sofrendo eu vou to cruel a dor

    que segue at a morte

    refro Sou lucum vii cativo

    Sem a liberdade eu no vivo

    Vai, minha nega Pantcha! vamos danar

    que os viii congo livre algum dia sero.

    i [som]: Intensificao potica, envolvendo a flexo do verbo ser, em sou, e o indefinido um [soy un=sou um] que, por sua vez, atravessada pelo son,[que dicionarescamente tambm som, em castelhano], ritmo tpico cubano, e ainda a terceira pessoa do singular, equiparvel portanto a eu . ii [Carabali]: Segundo o dicionrio de espanhol da Real Academia Espanhola, indivduo da raa negra da regio africana da costa de Calabar; pessoas famosas pelo carter indomveis Calabar. iii [nao ]: A nao como evocao de algum coletivo tribal. iv [mundele]: Segundo o dicionrio Houaiss, do quimbundo, regionalismo de Angola: pessoa da raa branca. ( usado tambm no Congo, na lngua lingala). v [furi ]: Pode ser dodo [?]. vi [fiote]: Voz da lngua ibinda, do povo Cabinda. Usada em forma pejorativa pelos portugueses em Angola. V. http://www.geocities.com/cabindalivre/lingua.htmlvii [lucum]: Ioruba falado em Cuba e os EUA. In: http://orishanet.org/vocabs.htmlviii [os congo]: H de se respeitar o erro de concordncia, recriando assim as tenses e hibridizaes que surgem das oralidades cubanas e brasileiras.

    Bruca Manigu Bruca Manigu Como tenda errante Notas de Damian Kraus