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O índio na cultura brasileiraBerta G. Ribeiro
América Latina: a pátria grandeDarcy Ribeiro
Prefácio: Eric Nepomuceno
O índio na cultura brasileiraBerta G. Ribeiro
Prefácio: Ana Arruda Callado
América Latina: a pátria grandeDarcy Ribeiro
Prefácio: Eric Nepomuceno
Os Correios, reconhecidos por prestar serviços postais com
qualidade e excelência aos brasileiros, também investem em
açõesquetenhamaculturacomoinstrumentodeinclusãosocial,
pormeiodaconcessãodepatrocínios.Aatuaçãodaempresavisa,
cadavezmais,contribuirparaavalorizaçãodamemóriacultu-
ralbrasileira,ademocratizaçãodoacessoàculturaeofortaleci-
mentodacidadania.
ÉnessesentidoqueosCorreios,presentesemtodooterritório
nacional, apoiam, com grande satisfação, projetos da natureza
desta Biblioteca Básica Brasileira e ratificam seu compromisso
emaproximarosbrasileirosdasdiversas linguagensartísticase
experiênciasculturaisquenascemnasmaisdiferentesregiões
dopaís.
A empresa incentiva o hábito de ler, que é de fundamental
importância para a formação do ser humano. A leitura possibi-
litaenriquecerovocabulário,obterconhecimento,dinamizaro
raciocínioeainterpretação.Assim,osCorreiosseorgulhamem
disponibilizaràsociedadeoacessoalivrosindispensáveisparao
conhecimentodoBrasil.
Correios
Os Correios, reconhecidos por prestar serviços postais com
qualidade e excelência aos brasileiros, também investem em
açõesquetenhamaculturacomoinstrumentodeinclusãosocial,
pormeiodaconcessãodepatrocínios.Aatuaçãodaempresavisa,
cadavezmais,contribuirparaavalorizaçãodamemóriacultu-
ralbrasileira,ademocratizaçãodoacessoàculturaeofortaleci-
mentodacidadania.
ÉnessesentidoqueosCorreios,presentesemtodooterritório
nacional, apoiam, com grande satisfação, projetos da natureza
desta Biblioteca Básica Brasileira e ratificam seu compromisso
emaproximarosbrasileirosdasdiversas linguagensartísticase
experiênciasculturaisquenascemnasmaisdiferentesregiões
dopaís.
A empresa incentiva o hábito de ler, que é de fundamental
importância para a formação do ser humano. A leitura possibi-
litaenriquecerovocabulário,obterconhecimento,dinamizaro
raciocínioeainterpretação.Assim,osCorreiosseorgulhamem
disponibilizaràsociedadeoacessoalivrosindispensáveisparao
conhecimentodoBrasil.
Correios
O livro, essa tecnologia conquistada, já demonstrou ter a
maiorlongevidadeentreosprodutosculturais.Noentanto,mais
queossuportesfísicos,asideiasjádemonstraramsobreviverain-
damelhoraosanos.EsseéocasodaBibliotecaBásicaBrasileira.
EsseprojetoculturalepedagógicoidealizadoporDarcyRibeiro
tevesuassementeslançadasem1963,quandoforampublicados
osprimeirosdezvolumesdeumacoleçãoessencialparaoconhe-
cimentodopaís.SãotítuloscomoRaízesdoBrasil,Casa-grande
&senzala,AformaçãoeconômicadoBrasil,OssertõeseMemóriasde
umsargentodemilícias.
Esse ideal foi retomado com a viabilização da primeira fase
dacoleçãocom50títulos.Aotodo,360milexemplaresserãodis-
tribuídos entre as unidades do Sistema Nacional de Bibliotecas
Públicas,contribuindoparaaformaçãodeacervoeparaoacesso
públicoegratuitoemcercade6.000bibliotecas.Trata-sedeuma
iniciativaousadaàqualaPetrobrasvemjuntarsuasforças,cola-
borandoparaacompreensãodaformaçãodopaís,deseuimagi-
nário e de seus ideais, especialmente num momento de grande
otimismoeprojeçãointernacional.
Petrobras-PetróleoBrasileiroS.A.
O livro, essa tecnologia conquistada, já demonstrou ter a
maiorlongevidadeentreosprodutosculturais.Noentanto,mais
queossuportesfísicos,asideiasjádemonstraramsobreviverain-
damelhoraosanos.EsseéocasodaBibliotecaBásicaBrasileira.
EsseprojetoculturalepedagógicoidealizadoporDarcyRibeiro
tevesuassementeslançadasem1963,quandoforampublicados
osprimeirosdezvolumesdeumacoleçãoessencialparaoconhe-
cimentodopaís.SãotítuloscomoRaízesdoBrasil,Casa-grande
&senzala,AformaçãoeconômicadoBrasil,OssertõeseMemóriasde
umsargentodemilícias.
Esse ideal foi retomado com a viabilização da primeira fase
dacoleçãocom50títulos.Aotodo,360milexemplaresserãodis-
tribuídos entre as unidades do Sistema Nacional de Bibliotecas
Públicas,contribuindoparaaformaçãodeacervoeparaoacesso
públicoegratuitoemcercade6.000bibliotecas.Trata-sedeuma
iniciativaousadaàqualaPetrobrasvemjuntarsuasforças,cola-
borandoparaacompreensãodaformaçãodopaís,deseuimagi-
nário e de seus ideais, especialmente num momento de grande
otimismoeprojeçãointernacional.
Petrobras-PetróleoBrasileiroS.A.
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o ix
sumário
Apresentação xi
Prefácio–AnaArrudaCallado xiii
Prefáciodaautora 3
Parte I – O saber indígena I Anaturezahumanizada.Osaberetnobotânico 9
Introdução 9
1. Ousodosolo 11
2. Técnicasagrícolas 14
3. “Aagriculturanômade” 21
4. Remanejamentodecapoeiras 23
5. Seleçõesgenéticasdeplantas 29
6. Repertóriodeplantascultivadas 35
a)Grãos,tuberosasefeijões 35
b)Fruteiras 41
7. Plantasestimulantes,medicinaiseindustriais 45
a)Principaisprodutoscultivados 47
b)Principaisprodutosdecoleta 51
c)Farmacopeiaindígena 56
II Anaturezadomada.Osaberetnozoológico 63
Introdução 63
1. Capturadeproteínaanimal 66
2. Estratégiasdecaça 76
3. Capturadeproteínavegetal 80
4. Tabusalimentareseconservacionismo 87
Conclusões:ecologiaculturalversus depredação 92
Parte II – A cultura indígena no Brasil moderno III Subculturas,técnicas,saboresaber 99
Introdução 99
1. Subculturas 101
a)Culturacrioula 107
b)Culturasertaneja 108
c)Culturacabocla 110
d)Culturacaipiraeculturacaiçara 113
e)Culturagaúcha 115
2. Oequipamentodetrabalhoeconforto 116
Introdução 116
a)Casaeabrigoprovisório 118
b)Aredededormir 124
c)Caçaepesca 128
d)Culináriaindígenanadietapopular 134
3. Medicinapopularemagia.Língua.Arte 141
Introdução 141
a)Rezasemezinhas 142
b)Crençaseassombrações 150
c)Alínguaboa 155
d)Arteindígenaeartepopular 161
Conclusões:Aquestãoindígenaeo problemadaterra 174
a � � r i c a l at i n a – a �át r i a g r a n d e | d a r c � r i b e i r o xi
apresentação
AFundaçãoDarcyRibeirorealiza,depoisde50anos,osonho
sonhado pelo professor Darcy Ribeiro, de publicar a Coleção
BibliotecaBásicaBrasileira–aBBB.
A BBB foi formulada em 1962, quando Darcy tornou-se o
primeiroreitordaUniversidadedeBrasília–UnB.Foiconcebida
comoobjetivodeproporcionaraosbrasileirosumconhecimento
maisprofundodesuahistóriaecultura.
Darcy reuniu um brilhante grupo de intelectuais e profes-
sorespara, juntos,criaremoqueseriaauniversidadedofuturo.
Eraosonhodeumageraçãoqueconfiavaemsi,quereivindicava
–comoDarcyfezaolongodavida–odireitodetomarodestino
emsuasmãos.DessaentregagenerosanasceuaUniversidadede
Brasíliae,comela,muitosoutrossonhoseprojetos,comoaBBB.
Em1963,quandoministrodaEducação,DarcyRibeiroviabili-
zouapublicaçãodosprimeiros10volumesdaBBB,comtiragem
de15.000coleções,ouseja,150millivros.
A proposta previa a publicação de 9 outras edições com 10
volumescada,poisaBibliotecaBásicaBrasileiraseriacomposta
por100títulos.AcontinuidadedoprogramadeediçõespelaUnB
foiinviabilizadadevidoàtruculênciapolíticadoregimemilitar.
Comamissãodemantervivosopensamentoeaobradeseu
instituidore,sobretudo,comprometidaemdarprosseguimento
àssuaslutas,aFundaçãoDarcyRibeiroretomouapropostaea
atualizou,configurando,assim,umanovaBBB.
Aliada aos parceiros Fundação Biblioteca Nacional e Editora
UnB, a Fundação Darcy Ribeiro constituiu um comitê editorial
que redesenhou o projeto. Com a inclusão de 50 novos títulos,
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o xia � � r i c a l at i n a – a �át r i a g r a n d e | d a r c � r i b e i r o xi
apresentação
AFundaçãoDarcyRibeirorealiza,depoisde50anos,osonho
sonhado pelo professor Darcy Ribeiro, de publicar a Coleção
BibliotecaBásicaBrasileira–aBBB.
A BBB foi formulada em 1962, quando Darcy tornou-se o
primeiroreitordaUniversidadedeBrasília–UnB.Foiconcebida
comoobjetivodeproporcionaraosbrasileirosumconhecimento
maisprofundodesuahistóriaecultura.
Darcy reuniu um brilhante grupo de intelectuais e profes-
sorespara, juntos,criaremoqueseriaauniversidadedofuturo.
Eraosonhodeumageraçãoqueconfiavaemsi,quereivindicava
–comoDarcyfezaolongodavida–odireitodetomarodestino
emsuasmãos.DessaentregagenerosanasceuaUniversidadede
Brasíliae,comela,muitosoutrossonhoseprojetos,comoaBBB.
Em1963,quandoministrodaEducação,DarcyRibeiroviabili-
zouapublicaçãodosprimeiros10volumesdaBBB,comtiragem
de15.000coleções,ouseja,150millivros.
A proposta previa a publicação de 9 outras edições com 10
volumescada,poisaBibliotecaBásicaBrasileiraseriacomposta
por100títulos.AcontinuidadedoprogramadeediçõespelaUnB
foiinviabilizadadevidoàtruculênciapolíticadoregimemilitar.
Comamissãodemantervivosopensamentoeaobradeseu
instituidore,sobretudo,comprometidaemdarprosseguimento
àssuaslutas,aFundaçãoDarcyRibeiroretomouapropostaea
atualizou,configurando,assim,umanovaBBB.
Aliada aos parceiros Fundação Biblioteca Nacional e Editora
UnB, a Fundação Darcy Ribeiro constituiu um comitê editorial
que redesenhou o projeto. Com a inclusão de 50 novos títulos,
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxii b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxii
a Coleção atualmente apresenta 150 obras, totalizando 18 mil
coleções, o que perfaz um total de 2.700.000 exemplares, cuja
distribuiçãoserágratuitaparatodasasbibliotecasqueintegram
oSistemaNacionaldeBibliotecasPúblicas,eocorreráaolongo
detrêsanos.
A BBB tem como base os temas gerais definidos por Darcy
Ribeiro: O Brasil e os brasileiros; Os cronistas da edificação;
Culturapopulareculturaerudita;EstudosbrasileiroseCriação
literária.
Impulsionados pelas utopias do professor Darcy, apresenta-
mos ao Brasil e aos brasileiros, com o apoio dos Correios e da
Petrobras, no âmbito da Lei Rouanet, um valioso trabalho de
pesquisa,comodesejodequenosreconheçamoscomoaNova
Roma, porém melhor, porque lavada em sangue negro, sangue
índio, tropical.ANaçãoMestiçaqueserevelaaomundocomo
uma civilização vocacionada para a alegria, a tolerância e a
solidariedade.
PaulodeF.RibeiroPresidente
FundaçãoDarcyRibeiro
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o xiii
prefácio – ana arruda callado
A nada simples Berta G. Ribeiro
Nãoseassusteoleitorque,emvezdecomeçarolivrojáusu-
fruindodasabedoriadeBerta,passarporeste(quaseiaescreven-
dosimples)prefácio.Bertanãoescrevecomplicado,nãodificulta
a vida de nenhum leitor. Ela é culta, mas também didática,
professora.
Otítuloescolhidopormiméumreparoatrevidoquefaçoà
grande antropólogaManuelaCarneirodaCunha,autora da in-
troduçãoaestetrabalhoemsuaprimeiraedição,de1987,portan-
toaindaemvidadeBerta.
“Éumlivropreciosoquerevelatrabalho,seriedadeesimplici-
dade:asmesmasvirtudescardeaisqueadmiroemBertaRibeiro”,
escreveuManuelaentão.
Meu reparo a este resumo inteligente é o fato de que, ao
debruçar-me sobre a pessoa e o trabalho de Berta Ribeiro para
traçar-lhe um perfil biográfico, deparei-me com uma persona-
lidade complexa, misteriosa até. Educada, suave, quase sempre
fechada–nadasimples.
Menina judia romena, Berta aos 11 anos perdeu a família e
ficouvivendoemlaresemprestados,emumpaísestranho.Aos
21anosencontrouDarcyRibeiro,comquemficoucasadapor20
anos.Ajudou-onaorganizaçãodemuitosdeseusmaisimportan-
testrabalhos.Acompanhou-onopoderenoexílio.Ficoutãoou
maisbrasileiraqueomarido.
Separadadele, tornou-senãosóumaconhecedoraprofunda
da cultura dos primitivos habitantes do Brasil, como por eles
seapaixonou.Dedicou-sedecorpoealmaaeles,nãocomoum
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxii
a Coleção atualmente apresenta 150 obras, totalizando 18 mil
coleções, o que perfaz um total de 2.700.000 exemplares, cuja
distribuiçãoserágratuitaparatodasasbibliotecasqueintegram
oSistemaNacionaldeBibliotecasPúblicas,eocorreráaolongo
detrêsanos.
A BBB tem como base os temas gerais definidos por Darcy
Ribeiro: O Brasil e os brasileiros; Os cronistas da edificação;
Culturapopulareculturaerudita;EstudosbrasileiroseCriação
literária.
Impulsionados pelas utopias do professor Darcy, apresenta-
mos ao Brasil e aos brasileiros, com o apoio dos Correios e da
Petrobras, no âmbito da Lei Rouanet, um valioso trabalho de
pesquisa,comodesejodequenosreconheçamoscomoaNova
Roma, porém melhor, porque lavada em sangue negro, sangue
índio, tropical.ANaçãoMestiçaqueserevelaaomundocomo
uma civilização vocacionada para a alegria, a tolerância e a
solidariedade.
PaulodeF.RibeiroPresidente
FundaçãoDarcyRibeiro
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxiv
cientista que observa seu objeto de estudo sob o microscópio,
como um inseto. Conviveu com eles; dividiu autoria de obras
comeles.Seurostosériosóseabriaemsorrisosemcontatocom
criançasíndias.
Não ficou só nos estudos; foi à luta em defesa deles. E, poli-
tizada, estendeu essa defesa ao meio ambiente, ao hábitat dos
“seus”índios.AmazôniaUrgente,livroeexposição,foiseuúltimo
grandetrabalho.
Nestelivroquevocêstêmemmãos,elademonstraaimpor-
tância da contribuição cultural que diversas nações chamadas
atéhojede“primitivas”fizeramaostambémchamadosatéhoje
“civilizados”.
NoprefácioqueescreveuapresentandoesteOíndionacultura
brasileira,afirma:
...procurou-seenfatizarqueaculturaindígenacontinua
ativa, embora inibida para desenvolver sua criatividade e
potencialidades.Nãoobstante,éumorganismovivo.Muito
sepodeaprendercomela,sevencermosopreconceitoeo
desprezoquesempreselhevotou.
Emtodaasuavastaobra,formadadelivros,artigos,conferên-
ciaseexposições,BertaG.Ribeiro(oGdeGleiser,seunomede
solteira) tomou partido. Foi uma estudiosa meticulosa, perfec-
cionista,aomesmotempoqueumamilitante,dacausaindígena
edacausasocialista.
Embora tenha se destacado especialmente pelo estudo da
cultura material dos índios brasileiros (e de outros países da
América),seustrançadosdepalhaetecidos,nãodeixouescapar
nenhum aspecto de sua cultura – e, para ela, cultura é “a ação
humanasobreanatureza”.
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o xv
Aquioleitorvaiseinteirardastécnicasagrícolas,dafarmaco-
peia,dasestratégiasdecaça,dostabusalimentares,daecologia
cultural de nossos indígenas, e de como algumas dessas práti-
caspassaramafazerpartedodiaadiadegrandescontingentes
populacionaisquecomelestiverammaiscontato.Nasculturas
cabocla,caiçaraesertaneja,elaapontaessaherança,emcrenças,
namedicinacaseira,nosmitosemesmonastécnicasdeplantio
edeconstruçãodehabitações.
VãotambémouviravozlúcidaeindignadadeBertacontraa
políticaindigenistapraticadanopaís,comaeternamenteinjus-
tadistribuiçãodaterra,comodescasooficialquenãoésópara
comosíndios,mascomtodosospobres,osexcluídos.
AnA ArrudA CAllAdo é jornalista e escritora. doutora em comunicação e cultura pela ufrj - universidade federal do rio de janeiro.
O índio na cultura brasileiraBerta G. Ribeiro
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 3
prefácio da autora
O presenteestudoresultadeumacompilaçãodedadosesuaorganizaçãofeitasegundoumesquemaquelevaemconta,emordemdecrescente,acontribuiçãodoíndioàcultu-
rabrasileira,anívelecológico,tecnológicoeideológico.
Atarefaaqueaautorasepropõeéarrojadaepenosa.Arrojada,
portentarresumiremumacentenadepáginasolegadoindígena
àculturabrasileira.Penosa,porquesetornadifícilpriorizar,sele-
cionareresumirumaherançaqueoeuropeuadventício,aoinvés
depreservarehonrar,sósepreocupouemvilipendiaredestruir.
Apardisso,acarênciadetempoeminhasprópriaslimitaçõesre-
presentaramosóbicesmaiores.Poressesmotivoseumapreferên-
ciapessoal,coloqueiênfasenoquemepareceuolegadodecisivo,
primordialepermanente:orespeito,oamoreahumanizaçãoda
naturezacomofontederecursosàalimentaçãoeaobem-estardo
homemeàcuradesuasenfermidades.
Aocontráriodoquesejulgacomumente,oíndionãoeraleigo
em história natural. Pelo contrário, sua contribuição à biologia
(floraefauna),àagricultura,bemcomoàmedicinaempírica,mal
começaaseravaliada.Comefeito,oaborígineamericanologrou
domesticar centenas de vegetais alimentícios, cultivando-os
cominstrumentossumáriosquenãoagridemoecossistema.Na
verdade, o índio relaciona-se harmonicamente com seu nicho
ecológico, equilibrando a biomassa humana com a fitomassa e
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o4
azoomassa.Desenvolve,conscientementeounão,umapolítica
agrícolaedemogenéticaquedefendeepreservaanatureza,con-
diçãodesuaprópriasobrevivência.
Diante de tantos prodígios da botânica e da agricultura abo-
rígine, eminentes cientistas como Karl F. von Martius e, mais
recentemente, F. C. Hoehne julgaram que as inúmeras espécies
domesticadassópodiamserobradepovoscomculturasuperior,
depois“asselvajados”,queteriamaquivividoantesdosqueforam
encontrados pelos europeus. Ambos admitem, contudo, que o
imigranteadventícioexerceuinfluênciadeletériaeirrecuperável
sobreohabitantenativo.Nãosósobreoqueencontrouvivo,mas
tambémsobreasuahistória.Oquesefazagoraéreconstituí-laa
partirdefragmentosesparsos.
O presente trabalho não tem a pretensão de suprir a lacuna
apontada. Vale assinalar o problema, para o qual este estudo é
umamodestacontribuição.Maisdoqueumelencodetraçoscul-
turaislegadospeloindígenaaobrasileiro,oqueseexpõeaqui,nos
primeiroscapítulos,éuminventáriodosaberindígenaatual,no
quedizrespeitoaoseuecossistema.Maisqueresgataramemória
dopassado,oquesepropõeéreavaliaracontribuiçãoqueoíndio
vivopodedaràculturabrasileiraeuniversal.
Aprimeirapartebaseia-seempesquisasrecentesfeitassoba
perspectiva da antropologia ecológica e etnobiologia, e em mi-
nha própria experiência em estudos de economia indígena. Os
exemplos são quase todos de tribos da Amazônia. Em primeiro
lugar,porquealiserealizam,presentemente,investigaçõessobre
essestemas.Emsegundo,porqueocabocloamazônicoéhojeo
principalherdeirodaadaptaçãomilenardoíndioàflorestatro-
picalúmida.
A segunda parte, dedicada à etnografia da cultura brasileira
noquerevelaexplicitamenteainfluênciadoaborígine,sefunda-
mentatotalmenteemfontesbibliográficasreferentesàsociedade
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 5
ruralbrasileira.Elasseressentemdafaltadedocumentaçãosobre
afrequênciaerepresentatividade,nosentidoqualitativoequanti-
tativo,dasatividadeseconômicasrurícolas(técnicasdeprodução,
equipamentoprodutivo)eaosseusmétodosdecontroleedefesa
de recursos naturais. Devido a isso, não foi possível comparar,
em profundidade, a experiência indígena com as práticas e co-
nhecimentosdaspopulaçõesrurais.Acreditoqueestudoscomo
os referidos, feitos em relação às tribos indígenas, são também
urgentesenecessáriosnoquedizrespeitoàspopulaçõesrurais,
igualmentedescaracterizadascomoavançodatecnologiaindus-
trialnocampo.
Umlivro,comoopresente,emboradirigidoaumpúblicomais
amplo,e,portanto,nãoespecializado,nãodeveriasertrabalhode
umasópessoa,masdeumaequipemultidisciplinarquepudesse
darcontadavariedadeecomplexidadedetemasquelhecaberia
abranger.Orecursodaautorafoiapelarafontessecundárias.As
citações,àsvezesemnúmeroexageradoetamanhoabusado,se
justificam porque condensam o assunto em foco e ao mesmo
tempo o documentam. Ainda assim, inúmeros temas deixaram
deserabordadoseoutrosexigiramumdesenvolvimentomaior.
O que se procurou mostrar, sobretudo, foi que o primitivo
habitante deixou aos que o sucederam um país pujante e belo.
Passados487anosdaconquista,oquevemoséadepredaçãoeo
desrespeitoànaturezaeaoequilíbrioecológico.Oquepresencia-
moséoaumentodafomeedadesnutrição.Oqueseconstataé
a malversação da terra por uma minoria, unicamente para fins
lucrativos.
Procurou-seaclarartambémqueahistóriadaculturaéprinci-
palmenteoregistrodaaçãohumanasobreanatureza.Maiscedo
do que se pensa, chegará a hora de começar de novo: voltar ao
substratodahistóriadatecnologiaprodutivaebuscarnelaosen-
tidoprimáriodacultura.
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o6
Finalmente, procurou-se enfatizar que a cultura indígena
continuaativa,emborainibidaparadesenvolversuacriatividade
e potencialidade. Não obstante, é um organismo vivo. Muito se
podeaprendercomela,sevencermosopreconceitoeodesprezo
quesempreselhevotou.Inversamente,associedadestribais,na
medidaemqueselhesdeemoportunidades,muitotêmaapren-
dercomacivilizaçãouniversal.
Acultura,inclusiveaindígena,nãoéumarealidadeestática.
Adopassadoseencontranosmuseusebibliotecas;adopresente
é recriada a cada dia. Toda ela deve ser vivificada como um pa-
trimôniohumanocomum.Sóassimserádadaatodosospovos,
pormenoresquesejam,afaculdadedeelegerereelaborarosbens
culturaiscomunsquedesejemadotar,semqualquerlaivodede-
pendência,imposiçãoousubalternidade.
ArealizaçãodestetrabalhomuitodeveaoConselhoNacional
deDesenvolvimentoCientíficoeTecnológico(CNPq)que,desde
1976,meconcedeumabolsadepesquisador,quetempermitido
minhadedicaçãoexclusivaaestudosdeculturaindígena.Parao
presentetrabalhorecebiaajudadobibliotecárioMarcoAntônio
Lemos, do Museu Nacional, a quem publicamente agradeço. E
tambémdeJanetChernela,cujaleituracríticadaprimeiraparte
me foi muito útil. E, ainda, de Hamilton Botelho Malhano, por
algumasilustrações.
BertaG.Ribeiro
PARTE IO SABER INDÍGENA
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 9
ia natureza humanizada.
o saber etnobotânico
Introdução
H ácercadetrêsdécadas,osantropólogoscomeçarama interessar-se pelo saber indígena, isto é, procura-ram avaliar como povos ágrafos classificam seu ambiente na-
turalecultural.Partiamdopressupostodequecadapovopos-
suiumsistemaprópriodeperceber,organizareclassificarsua
realidade ambiental e cultural. Esses sistemas de classificação,
expressos por códigos mentais, estariam mapeados na lingua-
gem.Ouseja,podemserinferidossegundoamaneiracomoas
coisasdoambientesãodesignadaseaformacomoessesnomes
sãoorganizadosemconjuntosmaiores.Namedidaemquetais
classesdefenômenossãoestruturadashierarquicamente,num
processodeinclusãoabrangente,elasformamumataxonomia.
Os sistemas de classificação usados pelas sociedades mais
simples vêm a ser um dos objetos de estudo da etnobiologia.
Compreende a etnobotânica e a etnozoologia que analisam as
taxonomiasdefolk,ouetnotaxonomias.Emoutraspalavras,o
sistema taxonômico de povos iletrados (populações campone-
sas)oudepovossemescrita(populaçõestribais).Comoessesa-
berétransmitidooralmente,oantropólogoeobiólogoutilizam
a própria linguagem e sua semântica como dado a ser exami-
nado.Omodelosemânticoprocuraelucidaralógicainternado
sistema, visto como essencialmente simbólico. Nesse sentido,
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o10
oscomponentessemânticosoferecemuminteresseespecialàs
suasinterpretações.
Àperspectivadaetnobiologia–ou,maisamplamente,daet-
nociência–associa-seaantropologiaecológicaouetnoecologia.
Aqui,oobjetodeestudoéarelaçãodohomemcomoseuambien-
te,noâmbitodassociedadestribais.Algunsmodelosdesenvolvi-
dos pela antropologia ecológica procuravam explicar a origem
de uma prática, como, por exemplo, os tabus alimentares, em
termosdesistemaadaptativoquetendeapreservaroecossiste-
ma.E,emfunçãodisso,contribuirparaasobrevivênciabiológica
do grupo humano, visto como essencialmente dependente dos
três componentes do sistema: o inorgânico, o orgânico (vegetal
eanimal)eoclimático,interpretadospelosistemaideológico,ou
superorgânico.
EmbrilhantecapítulodeOpensamentoselvagem,denominado
“Aciênciadoconcreto”,ClaudeLévi-Strauss(1976:19-55)coloca
emrelevooprodigiosoconhecimentodoambientenaturalpor
partedesociedades tribais.Maisque isso,procuramostrarque
o nativo estuda sem cessar o seu hábitat. Observa e classifica
nãosóosanimaiseplantasnecessáriosàsuaexistência,como
também os que formam os elos da cadeia de um ecossistema,
determinandoseuequilíbrio.Concluique“asespéciesanimais
e vegetais não são conhecidas na medida em que sejam úteis;
elassãoclassificadasúteisouinteressantesporqueprimeirosão
conhecidas”(1976:29).
A riqueza da nomenclatura nas línguas nativas de espécies
vegetais e animais, de sua morfologia e de técnicas para a sua
utilizaçãoetransformaçãolevouinúmerosestudiososdaetnobo-
tânicaeetnozoologiaaadmitirquedificilmenteomeionatural
habitadoporpopulaçõesindígenaspoderáserdesenvolvidosem
aincorporaçãodessesaber.Umdeles,lamentandoodesapareci-
mentodosgrupostribaisemnossopaís,afirma:
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 11
Comaextinçãodecadagrupoindígena,omundoper-demilharesdeanosdeconhecimentoacumuladosobreavidaeaadaptaçãoeecossistemastropicais. (...)Amarchado desenvolvimento não pode esperar muito tempo paradescobriroqueseestáprestesadestruir(Posey1983:877).
Naspáginasqueseseguem,procurareimostraroconhecimen-todoambienteecológico,otipodeadaptaçãoeapercepçãodarelaçãoexistenteentreavidaanimalevegetal,eahumana,porpartedealgumastribosindígenasbrasileiras,comoprincipalle-gadoànossacivilização.Osexemplosselecionadosdizemrespei-toatribosamazônicas,ondevêmsendolevadasacabopesquisassegundoaabordagemdaetnociência.
1. O uso do solo
Vejamos, inicialmente, o conhecimento e a classificação dossolosporpartedosKayapó,dotroncolinguísticoJê,dosuldoPará,edosKuikuro,grupoKaribdonortedeMatoGrosso,segundoosrelatos de Posey (1983), para os primeiros, e de Carneiro (1983),paraosúltimos.
OsKayapósituamsuasaldeiasemáreasdetransição,afimdeque possam tirar vantagem das várias zonas ecológicas do seuecossistema.
Cadazonaéassociadacomplantaseanimaisespecífi-cos.OsKayapótêmumprofundoconhecimentodocom-portamento animal e sabem quais as plantas associadascom determinados animais. Os diversos tipos de plantassão,porsuavez,associadoscomtiposdesolos.Cadazonaecológicaé,portanto,umsistemaintegradodeinteraçõesentre plantas, animais, o solo e, naturalmente, o Kayapó
(Posey1983:880).
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o12
Porsuanomenclatura(nãocitadanatabelaabaixo)verifica-se
queosKayapóreconhecemtrêsgrandeszonasecológicasnoseu
território. Elas são divididas em subzonas e em áreas de transi-
ção interzonais (não especificadas na Tabela I por motivos de
simplificação).
Tabela I Zonas e subzonas ecológicas distinguidas pelos Kayapó
1. Savana 3. Floresta
1.1 savanadepastobaixo 1.2 savanacomárvores
3.1 florestadegaleria (debeira-rio)
1.3 savanacompastoalto 3.2 selvadensa
3.3 florestaalta2. Montanha 3.4 florestacomclareiras
intermitentes
Assubcategoriasdetiposdefloresta(3.1,3.2,3.3)sãosubdivi-
didas,parafinsdecultivo,segundosuasrespostasàsinundações
periódicas,previsíveisounão.Sãopreferidasasterrasdealuvião
maisricas,equecorrespondemàsterraspretas.Tratosde“terra
firme”,nãosujeitosainundações,sãotambémselecionadospara
aagricultura,afimdecompensarosdanosquepossamsercausa-
dosaoscultivosemterrasalagáveis.
Naszonasecológicas(ouecozonas)classificadaspelosKayapó
como “florestas com clareiras intermitentes” – que permitem a
penetraçãodeluzsolar,equivalendoporissoàscapoeirasouro-
çasabandonadas–esses índiosdistinguem“relaçõessistêmicas
quelhespermitemselecionarterrasagricultáveisdetiposvege-
tativos,bemcomoformularestratégiasdecaçaecoletabaseadas
noamadurecimentodefrutosqueatraemanimaisdecaça”(Posey
1983:881).
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 13
Oautorrelacionatrêstiposdesolos–preto,vermelho,amarelo–
naclassificaçãodosKayapó.Emcadaum,ounumacombinação
dedoisoutrês,frutificamárvoresdecujosfrutos,folhaseraízesse
servemdeterminadasespéciesanimais–porcão,paca(brancae/
ouvermelha),cutia(brancae/ouvermelha),jabuti,veado,anta–
eohomem.Ousohumanoinclui:alimentício,medicinal,como
iscaouvenenodepeixe,emanufatureiro(utilizaçãodamadeira).
(Cf.TabelaII,op.cit.)
RetornaremosváriasvezesaPoseynodecorrerdestecapítulo.
Passemos,agora,aoutrocasoilustrativo,paratratardoconheci-
mentoeusodosoloporoutratribo.
Os Kuikuro, estudados por Carneiro (1983), em quem nos
baseamosparaesteresumo,vivemnoCuluene,umdosforma-
doresdorioXingu.Classificamcomumadenominaçãotribalo
quesepresumesejaaflorestaprimária,quecobreamaiorparte
do seu território. A vegetação que cresce nas capoeiras recebe
outro nome. É a floresta secundária. Ela é deixada crescer du-
rantealgumtempoparadesenvolver-se.Avegetaçãoqueainda
nãoatingiuoestágiodeflorestaprimária,masultrapassouode
florestasecundária–adecapoeiras–,édistinguidapordiversos
nomespelosKuikuro.Essasdesignaçõesremetematrêsespécies
deárvorespredominantesemditafloresta.Representamvarian-
teslocaisdeflorestaemtransiçãoregenerativadesecundáriaa
primária.
Asárvoresquenelaspredominam,equejustificamsuadesig-
nação,sãoasquemelhorresistemàqueimaanualdemacegaque
cresceabaixaaltura.Emboraofogoretardeocrescimentodessas
árvores, nas capoeiras, ele enriquece o solo, tornando-o apto ao
cultivo da mandioca. Análises da composição mineral dos dois
tiposdesolo–florestaprimáriaeflorestasecundária,ondepreva-
leceumadastrêsespéciesdeárvoresresistentesaofogo–mostra-
ramqueosegundotipodesolo(florestasecundária)éumpouco
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o14
superior,apresentandoteormaisaltodecomponentesminerais,
ematériaorgânica,bemcomoacidezmenor.
OsKuikurodistinguemoutrotipodesolocomumtermoespe-
cíficoqueremeteàsuacomposiçãoenãoàsárvoresqueformam
acoberturavegetal.Aflorestaprimáriaédesoloarenoso,verme-
lho.Esteoutrotipoédeterrapretae,segundoosKuikuro,produz
tubérculos maiores de mandioca que o anteriormente citado. É
tambémosolopreferidoparaplantarmilho,umavezqueemter-
ravermelhaaproduçãoébemmenor.Amandioca,quenãoexige
nutrientesnamesmaproporçãoqueomilho,éplantadaemsolo
deflorestaprimária,queaindaexisteemabundânciaemredorda
aldeia.
OutrotipodesoloécaracterizadopelosKuikuroporsualoca-
lizaçãoaolongodosrioselagos,Correspondeaoquesecostuma
chamar“florestadegaleria”,cujafertilidadeequivaleàdafloresta
primária.
Como se vê, nesta breve explanação, os Kuikuro levam em
contanaclassificaçãodosolo,parasuautilizaçãoagrícola,omeio
inorgânicoeoorgânico.Percebemaoperatividadedessasduasdi-
visõese,comovimosnoexemploKayapó,asrelaçõesentreplan-
ta/animal/homem,asquaisnãosãovistasisoladamentesenãoem
modelointerativo.
2. Técnicas agrícolas
Numestudopioneiro,hojeclássico,sobreaadaptaçãoindí-
genaàAmazônia,aarqueólogaBettyJ.Meggersafirma:“Opon-
toaseracentuadoaquiéqueaagriculturaitinerantenãocons-
tituiummétododecultivoprimitivoeincipiente,tratando-se,
aocontrário,deumatécnicaespecializadaquesedesenvolveu
emrespostaàscondiçõesespecíficasdeclimaesolotropicais”
(1977:42).
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 15
Asvantagensdachamada“agricultura– dotipoextensivoiti-
nerante”,tambémconhecidacomotécnicadederrubada,queima
ecoivara–reconhecidasportodososestudiososmodernosquese
debruçamsobreotemapodemserassimsumariadas,conforme
selêemMeggers(1977:42/44)ePosey(1983:890):
1) Mantémafertilidadeinorgânicadosolonamedidaem
quenãoerradicaatotalidadedavegetaçãoqueocobre.
Um campo totalmente limpo, como ocorre nas zonas
temperadas,ajudaadestruir,numclimatropical,osnu-
trienteseaestruturadosolo.
2) Odesmatamentodeumpequenolotedeterra,decada
vez,esuautilizaçãotemporária,minimizaotempoem
queasuperfícieéexpostaaocalordosoleafortespan-
cadasdechuva.Ambosendurecemosolo,anulandosua
permeabilidade,volatizamosnutrientes,carreiamohú-
musparaosrioseoslagos,causamerosãoealixiviação
dosolo,impedindoarestauraçãodosnutrientes.
3) O plantio de espécies diversas, de alturas diferentes, a
exemplodoqueocorrenaflorestanatural,reduzoim-
pactodosoledachuvasobreacultura,evitandoapro-
pagaçãodaspragas,comoacontecenasmonoculturas.
4) Ocultivodecertasplantasnativas,asquaisfavorecem
a recaptura de micronutrientes e não competem por
nutrientes essenciais, representa uma adaptação bem-
-sucedida a condições climáticas locais, à baixa fertili-
dadee forteacidezdosolo,bemcomoaoutros fatores
nocivosdostrópicos.
5) Adispersãodoscamposcultivadosminimizaaincidên-
cia de pragas sobre a plantação e de insetos daninhos,
obviandoousodepesticidasque,alémdedispendiosos,
atentamcontraoecossistema.
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o16
6) Areferidadispersãogeográficadoscultivosfazcomque
espécies de vegetais e animais sejam preservadas em
“corredoresnaturais”queseparamasroças,representan-
doimportantesrefúgiosecológicos.
7) Aqueimaempequenaescala,praticadapelo indígena,
e o apodrecimento de galhos e troncos deixados sem
queimar devolvem ao solo nutrientes necessários para
alimentarosbrotos.
8) Ousodaestacadecavarparaasemeaduraépreferívelao
daenxada,doaradooudotrator.Estes,revolvendopro-
fundamenteoterreno,aumentamooxigênio,aceleran-
doadecomposiçãodamatériaorgânicaedanificandoa
estruturadosolo.
Ocultivoitineranteconstitui,portanto,umasoluçãoecoló-
gicaracionalencontradapelohabitantenativo.Suacontraparte
é uma baixa concentração demográfica e uma dispersão dos
agrupamentoshumanos.NocasodoBrasil,elarepresentariaum
benefício,porquepermitiriaaocupaçãototalemaisharmônica
do território. Isso só poderia ser alcançado, no entanto, com a
mudançaradicaldaestruturafundiáriaquenoséimpostadesde
aconquista.Estruturaantinacionaleantipopularqueimpedeo
acesso à propriedade da terra aos que nela labutam, ou àqueles
quequeiramtorná-laprodutivacomoseutrabalho.
Vejamosemdoiscasosespecíficos–índiosKuikuroeKayapó,
ondeforamfeitostrabalhosdecampoecologicamenteorientados
–astécnicasdecultivodealgumasplantasselecionadasporsua
importânciamaiornadietaaborígine.
OsKuikuro,depoisdeescolheremotratodeterraaserplan-
tada, segundo as características anteriormente apontadas, ini-
ciam a limpeza da macega que cresce sob as árvores. As roças
sãotradicionalmentecircularesemedemmenosdeumhectare
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 17
(0,65ha),emmédia.Alimpezadoterrenotemlugargeralmente
doismesesantesdoiníciodaschuvas,istoé,emjunho,noalto
Xingu.Derrubaminicialmenteasárvoresmaisaltas,localizadas
nocentrodoterreno.Suaquedaéorientadadeformaaatingir
outras,menores,ouqueestejampresasàsmaioresporcipóen-
roscadonacopa.Derrubadaamata,édeixadasecarpordoisou
trêsmeses.
OsKuikurosabemquandoéchegadaahora da queimapela
apariçãodaconstelaçãodopatonoladoorientaldocéu,antesdo
raiardosol.Eaindapelapostadeovosdetracajásnaspraiasdo
rioCulene.Aqueimaéfeitaàtarde,quandoaroçaestábemseca,
observando-se a direção do vento. Os Kuikuro colocam várias
tochasdeentrecascanoperímetrodaáreaderrubadanoladode
ondeoventosopra,quedessaformaajudaaespalharachama.A
queimaduracercadeduashoras.
Aoperaçãoseguinteéacoivara.Consisteemempilharetornar
aqueimarospausegalhosnãoconsumidospelofogoanterior.Ao
mesmotempoérecolhidaalenhaparausodoméstico.Quando
terminaaoperação,queduradenoveadezhoras,apenas7a10%
do terreno fica coberto de paus e galhos. Segundo os cálculos
feitosporCarneiro,ascinzasaumentamimediatamenteafertili-
dadedosolo,emalgunscasosdobrandoaquantidadedesaissolú-
veisetriplicandoouquadruplicandoseuteordepotássio,cálcio,
magnésioetc.Comparandoamostrasdeterradeflorestaprimária
comasdeflorestasecundária,apósaqueima,aúnicavantagem
da primeira em relação à segunda é quanto à composição mais
altadepH.Ocarvão,quetambémaumentaafertilidadedosolo,
levamesesparadesfazer-sequímicaemecanicamente.Constitui,
porisso,umareservadenutrientesparaaabsorçãomaislentae
gradualdaplantaemcrescimento.
Acoivaraeasegundaqueimatêmlugar,geralmente,ummês
antesdasprimeiraschuvas,proporcionandoaosKuikurotempo
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o18
suficienteparaprocederaoplantio.Estesefazatravésdaabertura
depequenascovas.Aoserescavada,aterraficamaisfriávelesolta;
asraízessãoremovidaseascinzaseocarvãomisturadosaosolo.
AdistânciaentreascovasnumaroçademandiocadosKuikuro
édecercadedoismetros.Assim,numaroçadetamanhomédio
haverá1.400covas,recebendocadaqualdezmudasdemandioca.
Quandoasmudassãodemaiordiâmetro,plantam-seapenastrês
em cada cova. São necessárias aproximadamente 58 horas para
plantartodaumaroça,oqueé feito individualmenteoucoma
ajudadeparenteseoutrosmembrosdacomunidade.
Carneirorecolheucercade46nomesnativosdecultivaresde
mandiocaentreosKuikuro.Entretanto,apenasquatrooucinco
variedades são plantadas numa única roça. Todas de mandioca
brava (Manihot esculenta). Elas são distinguidas pelos Kuikuro
segundoaalturadaplanta,acordahaste,asfolhasepecíolos,a
distânciaentreas folhase, sobretudo,aquantidadeequalidade
dos seus tubérculos, bem como o tipo de amido que fornecem.
Entretanto, as seis variedades preferidas pelos Kuikuro respon-
dempor95%desuaplantação.
Dependendo dos cuidados que se tenha em cercar e limpar
umaroçaentreosKuikuro,elapodedurardedoisacincoanos.É
deixadanãosódevidoàexaustãodosolo,senãotambémàinva-
sãodamacegadifícildecontrolardepoisdealgumtempo.
OsKayapóplantamnãoapenasnaroça,mastambémformam
pomaresdentrodasaldeias.E,oqueémaisimportante,plantam
nastrilhasqueligamasroçasàsaldeias,noslocaisondeencon-
tramárvorescaídasnomeiodamata,ondederrubamumpaupara
tiraromeleaceradeabelhas,emsítiosemmemóriadeparentes
mortoseem“micronichosespeciais,taiscomonasproximidades
derochasprovenientesdebasalto” (WarwickE.Kerr1986:159).
(VertambémPosey1986a.)SegundoKerr,
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 19
Os Kayapó plantam para assegurar sua subsistência,
parabancodegermoplasma,parafinsmedicinais,práticas
religiosaseparaatrairacaçaadeterminadoslogradouros.
Transferemmudasdamataparaastrilhasouparacantei-
rosnaroça.Visitamfrequentementeascapoeirasinclusive
paracoletarlenha(1986:159).
Oreferidoautorafirmaqueabatata-doceéoprincipalprodu-
to agrícola Kayapó. A mandioca vem ganhando terreno devido
àproduçãodefarinhaparaavenda.Quasetodososagricultores
Kayapóobservamodesenvolvimentodabatata-doceparaefetuar
o plantio das demais culturas. Ao brotar a batata, planta-se o
milho.Depoisqueomilhoalcançadoispalmos,planta-seocará
(Dioscoreasp.),amandioca,amacaxeiraeoariá(Calatheaallouia),
umamarantácea.Umindícioparacomeçaroplantiodabatata-
-doce é o canto de certo pássaro, de uma espécie de cigarra e o
florescimentodobarbatimão,uma leguminosa (Vatairea cf. ma-
crocarpa/Benth/Ducke). Detalhe curioso quanto ao cultivo da
batata-doceéofatodeosKayapóatearemfogoàroçadepoisquea
semeiam.Segundoinformaoautorcujotrabalhovenhoresumin-
do,“étécnicamodernasubmeterasbatatas-docesa48°Cdecalor
durante45a60minutos,afimdedestruirosvírusqueporventura
tenhameobterramasisentasdevírus”(Kerr1986:166).
Outrapráticaéforrarascovascomfolhasdeumarbustopara
evitarpragasnasfolhas(ibidem)eaumentaraprodução.
Abatata-doceassimcomoocarásãoplantadosnasgrandestri-
lhas.Desteúltimo,semeiamduasvariedadesporcova.Observação
importantefeitaporKerréadequeosKayapó
forramacovaabertaparadepositarobulbocompedaçosde
formigueiros(Aztecasp.)oudetermiteirosaéreos;colocam
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o20
outrotantoemcimadobulboefechamacovacomterra.
Plantam sempre duas variedades por cova, obtendo gran-
de produção. Este método promove, efetivamente, uma
constante competição com a correspondente seleção dos
melhorescultivares(Kerr1986:168).
Omilhoéumdosmaisimportantesvegetaiscultivadospelos
Kayapó.Selecionamespigasmaioresparaoreplantio,colocando
cincogrãosporcovaaumadistânciade1,40cmumadaoutrae
acreditamqueasuapolinizaçãoéfeitapelasabelhas.Kerrobser-
vou que antes de os Kayapó plantarem o milho “socam os bul-
bilhos de Costos warmingi (Zingiberaceae) untando as sementes
comessamassa.Asplantasnascemesetornammaisvigorosas
comessetratamento”(1986:161).
Paraexplicararazãopelaqualasmulheresmisturamatinta
depequenasformigasvermelhas(provavelmentePhiedalesp.)ao
urucu(Bixaorellana)napinturaderostoduranteosrituaisdomi-
lho,PoseycitaumfragmentodemitoKayapóeinforma:
O mito começa a tomar sentido quando se entende o
complexo coevolutivo do milho, feijões, mandioca e a
formiga.
A mandioca produz um néctar extrafloral que atrai as
formigasparaaplantaaindajovem.Asformigasusamsuas
mandíbulasparapalmilharocaminhoatéonéctar.Dessa
forma,elascortamahastedafavaqueimpediriaocresci-
mento de planta ainda frágil. (...) O milho pode suportar
semdanootalodafavaeaprópriaplantalheforneceoni-
trogêniodequenecessita.Asformigassãomanipuladoras
naturaisdanaturezaefacilitamasatividadeshorticultoras
dasmulheres(Posey1983:882).
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 21
Oautorconcluiqueaanálisedosmitos–seadequadamente
decodificados–podefornecerinformaçãosobreasrelaçõesecos-
sistêmicaseaacuidadedoconhecimentoecológicodosíndios.
3. “A agricultura nômade”
Sobessetítulo,Poseyrelataemseuartigo,tantasvezescitado,1
asatividadesagrícolas“nômades”dosKayapó,istoé,foradorecin-
toestritodaroça.
Como vimos, esses índios exploram os recursos de dois am-
bientes ecológicos: o cerrado e a floresta. Têm em comum com
outrosgruposJê(Timbira,Xavante)emacro-Jê(Bororo)aaldeia
circular, a residência matrilocal, a divisão em metades, grupos
de idade, sociedades dos homens, casa dos homens (exceto os
Timbira)eodeslocamentosazonalparaacaçaeacoleta.
ArespeitocomentaJoanBamberger:“Foisemdúvidaporessas
longascaminhadasembuscadeprodutosespecíficos,ouparaou-
trospropósitos,duranteaestaçãoseca,queosKayapó,eosJêem
geral,adquiriramafamadecaçadoresecoletoresseminômades”
(1967:77).
AnalisandoasassertivasdeCarneiro(1973)sobreotamanho
eaestabilidadedasaldeiasdosKuikuro,edosgruposdafloresta
tropical,demodogeral,Bambergerafirmaqueomesmoracio-
cíniopodeseraplicadoaosKayapó(1967:83).Chamaaatenção,
contudo,paraofatodequeadensidadeeaestabilidadedeuma
aldeia não podem ser medidas apenas em função da ecologia,
mas levandoemconta fatoressocioculturais.CitandoTerence
Turner(1966:79/80),afirmaqueaculturaKayapó,devidoàsua
organização social dividida em metades, grupos de idade, não
1 Os temas desse artigo foram reelaborados e ampliados posteriormente (cf.Posey,1986a,1986b).
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o22
pode funcionar sem uma massa crítica que esse autor calcula
em 80 indivíduos. Conclui que “A disparidade entre os tama-
nhosdasaldeiasKayapóeentreestaseasdastribosdafloresta
tropical (por exemplo, os índios não Jê do Xingu) deve ser in-
terpretadacomooresultadodaculturaantesquedaecologia”
(1967:65).
Desenvolve essa tese nos capítulos seguintes, mostrando
queosKayapó“têmumadependênciamenornosprodutosda
roçaqueosKuikuro,dandomaiorênfaseàcaça,pescaecoleta”
(1967:83).
E que “durante o verão, na estação seca, quando fazem suas
andanças, os Kayapó se abastecem quase que cem por cento de
produtos de caça e coleta pelo espaço de três meses, podendo
eventualmenteumgrupovoltaràaldeiapararenovarseuesto-
quedemandiocaebananadasroças”(1967:84).
AsevidênciasencontradasporDarrellA.Posey,biólogoean-
tropólogoquedesde1977estudaosKayapó-Gorotire,trouxeram
elementos novos para a discussão. Diz Posey que, durante suas
expedições de caça, que duram até quatro semanas, os Kayapó
levam poucos mantimentos, abastecendo-se em “ilhas naturais
derecursos”.Mastambémcriam“camposnafloresta”deespécies
semidomesticadasquePosey (1983:886)calculaemcercade54,
muitassemelhantesaostubérculosmonocotiledôneos,nãoiden-
tificados botanicamente, citados por Maybury-Lewis (1967:334)
entreosXavante.Esseautornomeianalínguaxavanteeilustra
graficamente sete dessas raízes, algumas semelhantes a batatas,
outras a abóboras e outras ainda a macaxeiras. Segundo Posey,
essas plantas semidomesticadas crescem nas clareiras naturais
daflorestaondepenetraaluzsolar.SãotidaspelosKayapócomo
equivalentes às capoeiras. “Os transplantes são feitos (...) nas
adjacênciasdosacampamentosquesesituamsempreemzonas
ecológicasdetransição”(Posey1983:887).
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 23
Num mapa feito por Posey, com base em desenho indígena,
pode-severalocalizaçãodosacampamentos,das“ilhasnaturais
de recursos”, dos “campos na floresta”, bem como das trilhas e
acidentesgeográficosencontradosnumaexpediçãodecaçados
Kayapó. São milhares de quilômetros de caminhos – informa
Posey–abertospelosíndiosparainterligaraldeias,roçaseasrefe-
ridasáreasderecursosnaturais.
4. Remanejamento de capoeiras
Aconcepçãodequeaagriculturaitinerante,talcomopratica-
daimemorialmentepelosíndiosdaflorestatropical,éprimitiva,
ineficiente e predatória – porque os campos são abandonados
apósdoisoutrêsanosdecultivo–éatualmenterefutadacomo
uma falácia. Os estudos realizados por Darrell Posey entre os
Kayapómostramqueelescontinuamseservindodas“roçasaban-
donadas”umavezque,emboraoápicedaproduçãodureapenas
dedoisatrêsanos,asroçasarmazenam“batatas-docespor4a5
anos,oinhameeocarádurante5a6anos,mamãopeloespaçode
4a6anos.Algumasvariedadesdebananascontinuamadarfrutos
por15a20anos,ourucupor25anoseocupá(Cissusgongylodes)
por40anos”(Posey1986a:174-5).
Outra vantagem das capoeiras – na qualidade de clareiras
abertasnamatapelaaçãohumana–équeelaspropiciamumre-
florestamentonaturalque,alémdeatrairanimaisdecaça,provê
plantasúteis,aindanãoidentificadasbotanicamente,masqueos
índiosutilizamextensamente.Taissão,segundoPosey,“alimento
emedicamento;iscasparapeixeseaves;sapé;materialparaacon-
dicionamento; tintas, óleos repelentes contra insetos; matérias-
-primasparaaconstrução;fibrasparacordasefios;materiaispara
a higiene pessoal e produtos para o fabrico de artefatos” (Posey
1986a:175).
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o24
OprojetointerdisciplinardeetnobiologiaKayapódirigidopor
Poseycoletou368plantasparaidentificaçãocientífica,dasquais
94%sãodeusomedicinalpelosindígenas.
A afirmação de Daniel Gross (1975: 536) de que as capoeiras
espalhadaspelaflorestapropiciamacapturadeproteínaspelos
índios,porque,aocontráriodamatacerrada,oferecemabundân-
ciadebrotosefolhagemdequemuitasespéciesdafauna–inclu-
siveinvertebrados–sealimentam,éconfirmadapelapesquisade
Posey.Vaimaislongeafirmandoqueadispersãoderoçasantigas,
junto a concentrações populacionais nas aldeias, oferece o que
chama de “fazendas de caça” a seus habitantes (cf. Posey 1986a:
175).Adverte,aomesmotempo,queasatividadesdecaçaimpe-
demqueestaseexpandademasiadamente,ameaçandoaintegri-
dadedoscultivos.
Paraatrairacaça,osKayapóplantamfruteirasnasroçasnovas
cujosfrutosamadurecemaolongodosanos.Poseyacrescentaque:
O cultivo de árvores ilustra o planejamento a longo
prazo e o remanejamento da floresta, uma vez que mui-
tas destas árvores levam décadas até produzirem frutos.
A castanha-do-pará, por exemplo, só produz passados 25
anos.Algumasárvores,plantadasparaatrairafauna,pro-
duzemalimentosapreciadospelosíndios,constituindoum
elemento essencial para a subsistência dos Kayapó. Estas
antigasroçasdeveriamchamar-se,talvez,“hortasdecaça”,
paraenfatizaradiversidadedeseus recursos (op. cit.:175).
(VertambémSmith1977.)
Outraformaderemanejarafloresta–etambémoscerrados–
por parte dos Kayapó é a manipulação do que Posey chama
“plantas semidomesticadas”. Trata-se de transplantes feitos nas
clareiras naturais da mata, a que já me referi, de espécies que
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 25
requerem luz e insolação, e que também se adaptam bem nas
capoeiras.Apardeexpediçõesdecaça,osKayapóempreendem
excursões unicamente para fazer transplantes, utilizando, para
isso,locaisondetenhamderrubadoárvoresparaacoletademel
ouaquelesemqueencontramárvorescaídas,conformereferido,ou
nos locaisdeantigasaldeias.A issooautorchama“agricultura
nômade”,acreditandoquetais“camposnasflorestas”detectados
entreosKayapótambémocorramentreoutrosgrupos.
IssomefazrecordarumaexpediçãoquefizcomíndiosKayabi
paracoletartintadeentrecascadejequitibá(Carinianasp.),afim
de pintar um cesto. A caminhada no meio da mata fechada, de
clareiraseumaredeintrincadadetrilhosdurouduashoras.Em
toda essa área só havia um único jequitibá. Tê-lo-iam plantado,
perguntoagora?Ofatoéquechegaramaolocalevoltaramàal-
deiasemerrarocaminho.Sabiamexatamenteondeselocalizava
aárvorequelhesforneceopigmentoparaacestaria(cf.B.Ribeiro
1979:141-143).
Voltemos aos Kayapó. Registros de Terence Turner (1966)
indicam que eles perambulavam no sentido leste-oeste entre o
TocantinseoAraguaia,eemdireçãonorte-suldoPlanaltoCentral
doBrasil,atéorioAmazonas.
Durante essas longas marchas, os índios não levam
provisões e utensílios, devido a seu volume e peso.
Contudo, a alimentação de 150 a 200 indivíduos não
podeserdeixadaaoacaso.Paraesseefeito,sãocoletadas
etransplantadasplantasjuntoatrilhaseacampamentos,
produzindo-se,artificialmente,“camposnafloresta”.Esses
nichoscolocamàdisposiçãodoscaminhantes,edosque
os sucederem, todo o necessário à vida (...). A existência
de“ilhasnaturaisderecursos”eseussímiles,os“campos
na floresta” construídos pela ação do homem, permitem
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o26
aosKayapóprescindirdosprodutosdaroçadurantesuas
longasviagens(Posey1986a:177).
Comovimos,osKayapócontamcomasplantaçõeslinearesque
fazemaoladodasestradas(deatéquatrometrosdelargura)que
unemaldeiaseroças.Essasestradas(cercade1.500kmdecompri-
mentocomumamédiade2,50mdelargura),queunemasatuais
11aldeiasKayapó,sãoplantadascom“numerosasvariedadesde
inhames,batatas,marantaceae(ariá),Cissus(cupá),Zingiberaceae
eoutrasplantastuberosasnãoidentificadas.Centenasdeplantas
medicinaiseárvoresfrutíferasincrementamadiversidadedaflo-
raplantada”(op.cit.).
AcrescentaPoseyque:
Olevantamentofeitonumatrilhade3km,queuneaal-
deiaGorotireaumaroçapróxima,constatouaexistênciade:
1) 185árvoresplantadas,representandopelomenos15
espéciesdiferentes;
2) aproximadamente 1.500 plantas medicinais perten-
centesaumnúmeroindeterminadodeespécies;
3) cerca de 5.500 plantas alimentícias de um número
igualmentenãoidentificadodeespécies(op.cit.:178).
Roças são abertas e cuidadas por mulheres idosas em ele-
vações. São reservas de alimentos para prevenir a quebra de
colheitasemcasodeinundações.Capoeirasdeoitoadezanos
sãolimpasdemacegaereplantadas.Nessaselevaçõeseantigas
roças são plantados principalmente bananeiras, tubérculos e
marantáceasdegrandevalornutritivoealtamenteapreciados
pelosKayapó.
Nas próprias aldeias, em áreas adjacentes às casas, são plan-
tadas cerca de 86 espécies alimentícias e dezenas de plantas
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 27
medicinais.“AspráticasdecuradosKayapósãoaltamentesofis-
ticadas.Juntoacadacasasãoplantadasespéciesdeusomedici-
nalcorrente,algumasdelasdomesticadasousemidomesticadas”
(Posey1986a:181).
SegundoPosey,
Um dos principais resultados do remanejamento dos
quintaiséaformaçãodesolofértil.Algunsdosmaisricos
eprodutivossolosdaAmazôniasãoosdenominados“terra
pretadosíndios”.Acredita-sequetenhamsidoproduzidos
pela manipulação do solo amazônico, geralmente pobre,
por ação humana, isto é, indígena (ibidem). (Ver também
Smith,1980.)
Essesmétodosindígenasderecuperaçãodeflorestas,transfor-
mados em pomares, e melhoramento dos solos, transformados
em ubérrimas terras pretas, que só agora vêm sendo cientifica-
mente descritos, são um libelo contra o etnocentrismo dos que
formulamnossapolíticafundiáriaeagrária.Háquase500anos,
aclassedominantebrasileira–elatino-americanaemgeral–tei-
maemdesconheceraexperiênciadeadaptaçãoaos trópicosde
populaçãotidascomoprimitivas,incultaseselvagens.Essafoie
continuasendoumajustificativamoralsuficienteparacondená-
-lasaoextermínio.Tendoemmenteesseespantosogenocídioe
etnocídio,aoencerrarseuartigo,Poseyafirma:
Comosevê,aetnobiologiaapontanovosrumosparaa
pesquisanabaciaamazônica,ouondequerquesobrevivam
sociedadesindígenas,caboclasoucaipiras.Éprecisoterem
mente, porém, que as culturas indígenas se extinguem,
poucoapouco,acadadia.Urge,porisso,nãosótrabalhar
comafincoafimderegistrardadosvirtuais,mastambém
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o28
lutarparapreservarasterras,aliberdadeeodireitoàexis-
tênciadospovostribais(1986a:184).
Cabeacrescentarqueoutroestudoemandamento,entreos
índiosBora,doPeru,dirigidoporWilliamM.Denevan,estáche-
gandoàsevidênciasregistradaspeloprojetoKayapóencabeça-
doporWarwickE.KerreDarrellA.Posey.Emnotapreliminar,o
geógrafoJohnTreacy,membrodareferidaequipe,mostraqueos
BorautilizamummétodosemelhanteaodosKayapónomanejo
ereconstituiçãodaflorestasecundáriaemantigascapoeiras.Os
Boratransplantamespéciessilvestresparaváriosfins:alimento,
medicina,madeirasparaconstruçãoeparalenha,matéria-prima
para manufaturas e plantas utilitárias (cipós para amarrilhos,
porexemplo)(Treacy,1982:16).Dentreasfruteiras,oautorcita
as seguintes: palmeira pupunha (Bactris sp.), uvilha (Pourouma
cecropiaefolia),umari(Poraqueibasp.),caimito(Chrysophyllum
caimito), guava (Inga edulis) (op. cit.: 15). Treacy, da mesma
forma de Posey, refuta a ideia de que a agricultura itinerante
utilizaosoloapenasdurantedoisoutrêsanos.Aocontrário,
demonstraqueessapráticaagrícola“evoluinumsistemaagro-
florestalduranteoperíodoposteriordociclodecolheitaedu-
ranteosprimeirosanosdederrubadadafloresta.Emessência,
os estágios progridem de roça de mandioca para roça mista
mandioca-frutasparapomardefrutasresidualeparafloresta
alta”(1982:16).
Tudosedáporqueasfruteirasnãocompetemcomasoutrases-
pécies,decrescimentosecundário,porluminosidadeenutrientes
dosolo.Ocrescimentodemacegaépermitidoparaquedêlugara
novasqueimadas,afimdequeascinzasfertilizematerra.
A erradicação da floresta amazônica que ocorre em nossos
dias,comatotaldestruiçãodomantoflorestalemimensasexten-
sões para ceder espaço a pastagens ou a monoculturas exóticas
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 29
(Gmelina, eucalipto, pínus), tendo um vista a produção de ce-
lulose (a exemplo do tristemente célebre projeto Jari), é social,
econômicaeecologicamentecondenável.Nãolevaemcontaas
necessidadesdapopulaçãolocal–indígenaecabocla–nemasli-
çõesdopassadoquesóagoravêmalume,talvezdemasiadotarde,
considerando-seovultocriminosodadepredação.
5. Seleções genéticas de plantas
Ahistoriografiabrasileiradesconhece,praticamente,aimensa
contribuiçãodoaborígineamericanonoqueserefereapráticas
deconsequênciasgenéticasnadomesticaçãodeplantas.“Aagri-
culturanãopodedispensaroconhecimentodabotânica”,escreve
F. C. Hoehne (1937: 9), companheiro do Marechal Rondon nas
peregrinaçõesdesdepelossertõesdoBrasil,eautordamaisim-
portanteobrasobreosaberagrícolaebotânicodosilvícolabrasi-
leiro.Conformeindicaotítulo–BotânicaeagriculturanoBrasilno
séculoXVI–,oalentadotrabalhodeHoehnecompilaasinforma-
çõesdoscronistasdoséculodadescobertaedosnaturalistasque,
desdePisoeMarcgrave(séculoXVII),classificamasplantascom
orespectivonomeindígenae,apósoséculoXVIII,pelosistema
bináriodesenvolvidoporLineu.
Asformasoriginaiseagrestesdasplantasdomesticadaspelos
índioscontinuamsendopesquisadas.Aesserespeito,dispomos,
entre outros, do trabalho de Carl O. Sauer divulgado há pouco
em português (1986). Com referência a seleções genéticas em
plantasselvagensecultivadas,praticadasaindahoje,contamos
apenascomotrabalhodeWarwickE.KerreCharlesR.Clement
(1980), resultante de estudos feitos junto aos Tukuna, Desana,
Paumari,Cinta-LargaeoutrastribosdaAmazônia.(Vertambém
Kerr1986.)
Essassãonossasprincipaisfontesparaapresentediscussão.
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o30
Mandioca (Manihot esculenta)
Amaisimportanteplantaalimentícialegadaàhumanidade
peloantigohabitantedoneotrópicoéamandioca.2Devetersido
domesticadanaAmazôniaháquatrooucincomilanos(Kerr&
Clement 1980: 252), sendo cultivada hoje, além da América do
Sul, nas Antilhas, na América Central, no México, na Flórida
(EUA) e em extensas áreas tropicais na Ásia, África e Oceania.
Alémdeserumaplantaquedáfacilmenteemterrapobre,como
o podzol do alto rio Negro, de poder permanecer estocada na
própriaterraporperíodosmuitograndes,amandiocatemavan-
tagemdeserumalimentoricoemamidoefornecerumasériede
subprodutos.Comefeito,damandioca-bravaobtém-se,aparda
farinha,datapioca,dobeiju,amanicoera(emlínguageral),que
éoveneno(ácidohidrociânico)transformadoembebidanãofer-
mentadadepoisdesubmetidoàcocção.Atecnologiaalimentar
combasenamandiocainclui,entreosDesanaeTukanodoalto
Uaupés,cincoqualidadesdefarinha,setedebeiju,setebebidas
nãofermentadaseoitofermentadas(B.G.Ribeiro1980ms.:259).
Semembargo,afarinhadamandioca,emboraricaemvitamina
A,calorias (320)eaminoácidos(404mg),épobreemproteínas
(1,7g)(Gross1975:527).
Paracompensar,apresentainúmerasvantagensalémdasassi-
naladas.Seurendimentoébastantegrandeporunidadedeterre-
no,umavezqueasmanivaspodemsercultivadaspróximasumas
dasoutras,àrazãode10milpésporhectare(Schery1947:25),eo
crescimentoérápido.Outravantagemdocultivodetubérculos
comoamandioca,quandocomparadocomgrãos,comoomilho,
équeamandiocaépoucosuscetívelàspragas,cresceemsolos
semiáridoscomoosdoNordeste,temperadoscomoosdoSuldo
2 Alémdealimento,amandiocapodeviraserempregadacomocombustível.
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 31
Brasil e pouco férteis como as terras da Amazônia. Não exige a
queimatotalelimpezadoterreno.Seurendimentoporunidade/
trabalho é unidade/área, bem como seu componente calorífico
émaisaltodoqueodomilho.Este,contudo,contémmaisami-
noácidosqueamandioca:3.820mgcontra404(Gross1975:534e
TabelaI).
Nãoobstanteobaixoteordealimentoproteicoingeridopelas
populações indígenas, que baseiam sua dieta alimentar essen-
cialmentenamandioca,elasestãotãoadaptadasaessadietaque
nãoapresentamnenhumadoençacarencialeexibemgrandevi-
gorfísico.Sendopobreemproteínas,amandiocanãoretirado
solomateriaisnitrógenosnamesmaproporçãoemqueofazem
outrasplantas(Schery1947:25),produzindomaiorquantidade
deamidoutilizávelporhectaredoquequalqueroutracultura
conhecida(ibidem).Nessesentido,pode-seestenderaoutrosgru-
pos“mandioqueiros”oscálculosfeitosporRobertCarneiropara
osKuikuro:80a85%desuadietaprovémdamandioca(1973:98).
ExaminandoaintroduçãoemduasaldeiasTukanodecultiva-
resdemandiocaamarga(ManihotesculentaCranz),nosúltimos50
anos, Janet Chernela (1986) procura demonstrar a importância
depráticassociaisnadistribuiçãoediversificaçãodoscultivares.
Em três anos de trabalho de campo, a pesquisadora conseguiu
obterasdesignaçõesecaracterísticasdomaiornúmerodeculti-
varesdemandiocaemusoporumgrupoindígena:ototalde137.
Atualmente,afirmaChernela,
Botânicos e agrônomos vêm demonstrando crescente
interesse em recuperar a diversidade intraespecífica per-
dida,emvirtudedousodetécnicasmodernasdeseleção
ecruzamento.Amandioca(Manihotesculenta)éumexem-
plopoucocomumdeplantacujaricadiversidadegenética
foipreservadaecontroladapeloshorticultoresindígenas,
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o32
ao longo de milhares de anos de experimentação. Essa
perdaocorreuaofatoderaramentereconhecer-sequeos
sistemas aborígines de cultivo resultam da observação e
doremanejamentocuidadosodadiversidadegenética.(...)
Para obviar esse percalço, procura-se hoje reintroduzir,
mediantearecuperaçãodavariaçãointraespecífica,carac-
terísticasperdidas(Chernela1986:151).
Escusado dizer da importância de informações como as que
Cherneladivulga.Atítulodecomparação,diriaqueKerr (Kerr
&Clement1980:253)encontrouemoutrogrupodamesmaárea,
osíndiosDesana,40cultivaresdemandioca,eRobertoCarneiro,
46variedadesdessetubérculo,conformeassinaleianteriormente.
NaobrasobreogêneroManihot,Rogers&Appanrelacionam98
espéciesdogêneroManihot,váriasdelascomatécincosubespé-
cies(1973:255/256–listanuméricadetaxa).
Kerr&Clementreferem-seaalgumasdas“seleçõesmaisim-
pressionantes feitas pelos índios da Amazônia” (1980: 254), que
tiveram a oportunidade de comprovar. “A variedade selvagem
do abio (Pouteria caimito), ainda encontrada nas matas, possui
frutos que pesam cerca de 30 gramas. No alto Solimões... os ín-
dios (Tukuna) selecionaram variedades que alcançaram até 180
gramasporfruto”(op.cit.:256).
O mapati (purumá, cucura, uvilha) (Pourouma cecropiaefolia)
éconsideradopeloscitadosautorescomopossívelsubstitutoda
uva na Amazônia. A respeito dessa fruta informam que “Os ín-
dios Tukuna melhoraram consideravelmente essa espécie. Nos
arredoresdeLetícia(altoSolimões)estãoosmelhorescultivares,
frutodessaseleção”(ibidem).
OutrafrutaobjetodaseleçãogenéticapelosíndiosTukunaéa
sapota(Quararibeacordata).SegundoKerr&Clement:“Aplanta
selvagemproduzfrutosapenascom9a12cmdecomprimento
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 33
por 3-5 cm de diâmetro. As seleções dos índios Tukuna (alto
Solimões)levaramaárvoresqueproduzemde3.000a8.000frutos,
quase esféricos, de10 a15 cm de diâmetro, pesando400 a1.300
gramas”(ibidem).
Apupunha(Bactrisgasipaes)assumeexcepcionalimportância
para as populações indígenas e caboclas da Amazônia devido
ao elevado teor de proteína e altas taxas de vitaminas A, B e C.
NativanaAmazônia,essapalmeirafoidomesticadapelosíndios.
Vejamosoprocessodeseleçãodesementesedeplantionarrado
aoDr.KerrporTolamanKenhiri,índioDesana,autordeumlivro
demitosdesuatribo.Aseleçãoéfeitasegundo:
1º)númerodecachos;2º)tamanhodosfrutos;3º)devem
sereliminadasasplantasqueproduzemfrutoscomman-
chasourachaspretas,quesecretamumaresinaescura(pa-
recebreu)equeseestragamecheirammal.
No momento do plantio procedem assim: a) põem os
frutos na água (numa vasilha); b) aquecem até mais ou
menos 50°C; c) ao atingir 50°C retiram as sementes de
quantas queiram plantar; d) plantam; e) replantam no
lugardefinitivoquandotêmummínimode10cmeum
máximode60cmdealtura.
Háváriascrendicesassociadasaocultivodapupunha,
entre os Desana. As duas principais são: a) raspando a
sementecomumralo,aplantanãoproduziráespinhos;
b)seamarrarasfolhasnovasemcima,aárvorecrescerá
poucoeproduzirácachosabaixaaltura(Kerr&Clement
1980:258).
ImportanteobservaçãodeVonMartiusconvémserlembrada
nessecontexto.Dizele:
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o34
(...)asvariedadeseraçasaumentamemnúmeronapro-
porçãodonúmerodeanosduranteosquaissetemovege-
talemcultura.Comoprovamaisevidentedofatodeque
estainfluênciaexiste,temosasplantascultivadasdurante
muitotempoemultiplicadaspormeiodeestolhosoure-
bentos, que perdem totalmente a faculdade de produzir
sementes.(...)
Comoespecialmenteimportanteparaestanossaasser-
ção,mencionoapalmeiraGasipáesouPupunha(Gulielma
speciosa), que, na maior parte, nas regiões tropicais da
América,ésempremultiplicadapelosaboríginespormeio
derebentoslaterais,ecujoputâmendurocomopedra,do
tamanho de uma ameixa regular, na cultura sucessiva,
muitasvezesseachatotalmenteatrofiadooutransforma-
doemumasubstânciacartilaginosa.
Quantosséculosnãoteriamsidoprecisosparadesabituar
estaárvoreaproduzirasuasementetãosólidaegrande(K.
F.v.MartiusapudHoene1937:40-41).
Oabacaxi(Ananascomosus)emestadoselvagempesaapenas
de100a200gramasemalalcança12cmdecomprimento.Asse-
leções genéticas feitas pelos índios produziram variedades com
ousemespinhoecomapartecomestívelmeioácidaoumuito
doce, nas tonalidades amarelo-gema, amarelo-claro e branca e
compesoquevariaentre800gramasa15quilos(Kerr&Clement
1980:258-9).
Umdosvegetaisindígenasmaisimportantesepoucoconhe-
cido é o cupá, ou cipó-babão (Cessus gongylodes), uma casta de
mandiocaarbóreaquedevetersidodomesticadahá,nomáximo,
1.000 anos. O cupá cresce rapidamente e é encontrado entre os
grupos Timbira e Kayapó, em estado selvagem e semidomesti-
cado, oferecendo, por isso, interessantes informações sobre o
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 35
processo de seleção genética de plantas, que ainda se processa,
atualmente,entregruposindígenas.Avariedadeselvagemalcan-
ça,nomáximo,1cmdediâmetro,eadomesticadapelosíndios,4
cm.Medraemsolospobres,easmanivassãoconsumidasassadas
oucozidas,tendogostodemacaxeira.Análisesquímicasdocupá
demonstramqueeletemgrandevalornutritivo:77,56%deágua,
1,2%deproteína,1,0%degordurae18,84%decarboidratos,bem
comoaltoteordevitaminas(A,B,B2,C,D2,E).Cemgramasda
plantaoferecem89,2calorias(Kerretalii1978:704).
6. Repertório de plantas cultivadas
No capítulo anterior, oferecemos um pálido exemplo dos
esforçosempreendidospelosíndiosparaobteremumaproduti-
vidademaiorporplantacultivada.Passados486anosdadesco-
berta,oestudodosmétodosporelesempregadosmalseinicia,
quando tantas seleções feitas em tuberosas, cereais e fruteiras
se perderam irremediavelmente. Na Tabela 11 apresentamos
a listagem parcial dos vegetais cultivados pelos aborígines. As
plantasmaisimportantesparaaeconomianacionalemundial,
aexemplodamandioca,jáexaminada,sãodescritasabaixocom
maisdetalhes.
a) Grãos, tuberosas e feijões
Milho (Zea mays)
O milho, da família das gramíneas, figura entre as três mais
importantes plantas que alimentam a humanidade. As outras
duassãootrigo(Triticumsp.)eoarroz(Oryzasativa).Omilhoé
cultivadoatualmenteemtodasasregiõestropicaisesubtropicais
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o36
domundo.Alémdealimentohumano,vemsendoutilizadonas
raçõesdesuínos,caprinos,galináceoseequinos.K.F.vonMartius
encontroudesignaçõesparaessecerealemmaisde60tribos(cf.
Hoehne1937:114).Sauer(1986)temdúvidasdequeomilhomais
primitivoqueseconhece,chamadotunicata,possaserencontra-
do em estado selvagem na bacia do Paraná-Paraguai, território
Guarani, onde, possivelmente, se teria originado. Na América
pré-colombianaeracultivado“atéasúltimasfronteirasagrícolas,
exceto no altiplano andino, excessivamente frio” (Sauer 1986:
61). Não obstante constituir espécie botânica única, fecundada
porcruzamento,aseparaçãogeográficaeaseleçãogenéticafeita
pelos cultivadores contribuíram para a preservação de uma ex-
traordinária variedade de formas: cerca de 250. O estudo dessas
variedades e de sua distribuição geográfica permitirá esclarecer
pontosobscurossobreaprópriaorigemdomilho,ahistóriada
agricultura e as migrações e contatos no Novo Mundo, afirma
Sauer(op.cit.:64).
Omilhoéconsumidopelosíndioscomolegume,istoé,assado,
cozido,ecomocereal,ouseja,reduzidoapófarináceocomquesão
feitosinúmerospratos.Entretanto,seuempregomaisnotávelé
naformadebebidafermentada–ofamosocauimdosTupinambá
–quealimenta,refrescaeembriaga.Veremosadiante,naTabela
IV,queoteordeproteínadomilhoultrapassaodoarroz(9,4para
7,2).Aquantidadedecaloriasdomilho(361)étambémsuperiorà
doarroz(357).Omilhocontémmaisaminoácidosqueamandioca:
3.820mgcontra404(Gross1975:534eTabelaI).Segundoesseautor,
omilhoéplantadopelastribosdaAmazôniacomosuplementoà
culturadamandioca.Issosedápelasseguintesrazões:1)omilhoé
menos produtivo que a mandioca por unidade-área; 2) o milho
exigeterrasmaisférteis,pluviosidaderegularepedemelhorefi-
ciêncianopreparodoscamposdecultivo;3)ostubérculos,como
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 37
amandiocaeasbatatas,quemadurammaislentamente,retiram,
nomesmoritmo,osnutrientesdeixadosnasuperfíciepelaquei-
ma;4)omilhotemquesercolhidoassimqueamadurece,aopasso
queamandiocapodeserarmazenadanaterraporváriosanosou
entãonaformadefarinha,durantemeses(ibidem).
Batata-doce (Ipomoea batatas)
Nas áreas em que grãos, como o milho, não se adaptavam
facilmente, tubérculos ricos em amido foram domesticados. É
ocasodabatata-doce,introduzidanaEspanhaem1526,apartir
deCuba.GabrielSoaresdeSouza,ograndetratadistadasplantas
indígenasbrasileirasnoséculoXVI,relacionouoitovariedades
caracterizadaspelacorepelopaladar.Paramuitastribos,dentre
astuberculíferas,depoisdoaipimedamandiocavemabatata-
-doce.OsAsurini,grupotupidomédioXingu,relacionaram20
nomesdecultivaresdebatatas.Jánãocultivavamtodosporque,
emsuasfugas,perderamasramasdametadedeles(cf.B.Ribeiro
1982:37).
Abatata-docetemumadistribuiçãomaiorqueamandiocana
América.Paraonorte,poucoultrapassouotrópicoeparaooeste–
avançandonazonatemperadadoaltiplano–alcançouoPacífico,
multiplicando-se por divisão (Sauer 1986: 71). Identificações
botânicas admitem a existência de centenas de espécies, sendo
a Ipomoea fastigiata uma espécie silvestre da América tropical
(ibidem).
A batata-doce era o alimento básico dos grupos Jê, família
linguística que inclui, entre outros, os Kayapó, os Timbira e os
Xavante.KerrePosey(1984)encontraramnasroçasdosKayapó-
-Gorotirebatatas-docescomatéquatroanosdeplantadas,distin-
guindoporinformaçãodessesíndios22cultivares.(VerTabelaII.)
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o38
Cará (Dioscorea sp.)
“Háoutrasraízescomobatatas,carás,mangarás”,escreveJosé
de Anchieta em 1570, passados 17 anos de sua permanência no
Brasil.Acrescentaque“estassecomemassadasoucozidas,sãode
bomgosto,servemdepãoaquemnãotemoutro”(apudHoehne
1937:105).Ocaráé frequentementeconfundidocomoinhame,
trazidodasilhasdeCaboVerdeedeS.Tomé,eaquiaclimatado.
Trata-sedaespécieAlocasiamacrorhiza,segundoHoehne(ibidem).
Aos“carazes”serefereaindaGabrielSoaresdeSouzacomgrande
riqueza de detalhes, confirmando sua distinção dos inhames. E
tambémaos“mangarazes”–taiobaoutaro(Xanthosomasp.)–,dos
quais seconsomemas folhaseas raízes, do tamanho de “nozes
e avelãs”, colhendo-se “duas novidades no ano” (Hoehne 1937:
208/9). Sauer (1986: 72) inclui no gênero Dioscorea os inhames
introduzidosdoVelhoMundo.Afirma,todavia,quenaAmérica
existem variedades silvestres desse gênero, distinguindo-se inú-
meras tuberosas comestíveis no Nordeste do Brasil (op. cit.: 72).
“UmaDioscoreaamericana,a‘yampee’(D.trifida,tambémreferida
como D. brasiliensis), pode ser uma planta verdadeiramente do-
mesticada”(ibidem).
Ariá (Calathea allouia)
Amarantáceamaiscomumedemelhorpaladar,domestica-
daportribosamazônicas,é,segundoKerr(1986:168),aCalathea
allouia.OsKayapóreconhecemcincovariedades.Trêsdelas“pro-
duzemdobulbodereservasdaraizeasduasrestantesbrotam
dabatata,oqueindicaumaseleçãocompletamentediferentena
históriadesuadomesticação”(op.cit.:169).Sãoconsumidasassa-
daseamassadascomfarinha.OsDesanapossuemdoiscultivares.
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 39
A análise química do ariá demonstrou que ele contém 66% de
proteínae13a15%deamido(pesoseco)(ibidem).
Feijões (Phaseolus sp.)
De grande importância alimentar são os feijões, da famí-
lia das leguminosas, devido ao seu alto conteúdo de proteína.
Comecemos pelo amendoim, que se destaca por seu teor de
gorduraeexcelentesabor.“Oamendoim(Arachishypogaea)”,diz
Sauer(1986:64),éumadasrarasplantascultivadasatribuídasao
Brasil; sua espécie selvagem mais próxima se encontra desde a
BahiaatéoRiodeJaneiro.”Consideraextraordináriasuadissemi-
naçãopré-colombiana.NaAméricaéregistradadesdeolitoraldo
BrasilatéoPeruenoaltiplanoperuano,oqueindicauma“ligação
cultural de considerável antiguidade entre o Brasil oriental e o
Peruocidental,litorâneo”(op.cit.:65).Emboranãotenhaatingido
grandeimportâncianoMéxico,apesardoclimapropício,Sauer
aventa a possibilidade de pertencer o amendoim “ao complexo
deculturadamandioca(amargaedoce)nasuadistribuiçãopelo
NovoMundo”(ibidem).
AexpansãodoamendoimnomardaChinaeaooceanoÍndico,
enãoàAméricanoNortecontinental,levaoreferidoautorapre-
sumirumadisseminaçãopré-colombianatrans-Pacífico,através
daqualoamendoimchegouàÁfrica(Sauer1986:65).
JosédeAnchieta,GabrielSoaresdeSouza,JeandeLeryeou-
troscronistassereferemafavasefeijõescultivadosnasroçasdos
TupidacostadoBrasil:Trata-sedeespéciesdogêneroPhaselous
que Soares descreve como sendo brancos, pretos, vermelhos e
outros pintados de branco e preto (cf. Hoehne 1937: 213). (Ver
TabelaII.)
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o40
Tabela IIPlantas indígenas cultivadas
Número de cultivares segundo a taxonomia tribal
nome designação científica tribo fonte nº cultivares
Mandiocaemacaxeira
ManihotesculentaManihotdulcis Kayapó Kerr&Posey1984
21
Mandioca Manihotesculenta Tukano Chenela1986 134
Batata-doce Ipomoeabatatas Kayapó Kerr&Posey1984 22
Batata-doce Ipomoeabatatas Asurini B.Ribeiro1982:37 20
Cará Dioscoreasp. Kayapó Kerr&Posey1984 21
Cará Dioscoreasp. Asurini B.Ribeiro1982:37 8
Milho Zeamays Kayapó Kerr&Posey1984 11
Milho Zeamays Asurini B.Ribeiro1982:37 9
Banana Musaparadisiaca,M.sapientum Kayapó Kerr&Posey1984 14
Banana Musaparadisiaca,M.sapientum Asurini B.Ribeiro1982:37 11
Banana Musaparadisiaca,M.sapientum Yanomami Lizot1980:31 11
Cupá Cissusgongylodes Kayapó Posey1983:884 4
Feijão Phaseolusvulgaris Kayapó Posey1983:884 4
Feijão Phaseolussp. Asurini B.Ribeiro1982:37 8
Feijão Phaseolussp. Kayabi B.Ribeiro1979:120 5
Amendoim Arachishypogaea Kayabi B.Ribeiro1979:120 6
Mangaritooutaioba
Xanthosomasp.Xanthosomasagittifolium
KayabiYanomami
B.Ribeiro1979:121Lizot1980:21
57
Ariá Calatheaallouia Desana Kerr&Clement1982:259 2
Pimenta Capsicumsp. Desana B.Ribeiro1980ms 14
Mamão Caricapapaya Kayapó Posey1983:884 4
Pupunha Guilielmagasipaes Yanomami Lizot1984:34 4
Pupunha Bactrisgasipaes Desana Kerr&Clement1980:258 1
Sapota Quararibeacordata Tukuna Kerr&Clement1980:256 1
Abacate(*) Perseaamericana Yanomami Lizot1980:29 1
Abacaxi(*) Ananasparguazensis Yanomami Lizot1980:22 1
Caju Anacardiumsp. Kayabi B.Ribeiro1979:121 1
Maracujá Passiflorasp. Kayabi B.Ribeiro1979:121 1
Abiu Pouteriacaimito Desana B.Ribeiro1980ms 1
Biribá Rolliniamucosa Desana B.Ribeiro1980ms 1
Cacau Theobromasp. Desana B.Ribeiro1980ms 1
Cucuraoumapati Pouroumacecropiaefolia Desana B.Ribeiro1980ms 2
Goiaba Psidiumsp. Desana B.Ribeiro1980ms 2
Graviola Annonasp. Desana B.Ribeiro1980ms 1
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 41
nome designação científica tribo fonte nº cultivares
Toá Gnetumsp. Desana B.Ribeiro1980ms 3
Umari Geoffroyasp. Desana B.Ribeiro1980ms 3
Ingá Ingáedulis;I.cinnamomea Desana B.Ribeiro1980ms 1
Miriti Mauritiaflexuosa Desana B.Ribeiro1980ms 1
Pequi Caryocarspp. Trumai Murphy&Quain1975:100 1
Tabaco Nicotianatabacum Kayapó Posey1983:884 3
Urucu Bixaorellana Kayapó Posey1983:885 6
Algodão Gossypiumarboreum Kayapó Posey1983:884 4
Caroá Neoglazioviavariegata Araweté B.Ribeiro1984 3
Flecha Marantaarundinacea Kayapó Posey1983:884 6
Cabaça Lagenariasiceraria;L.vulgaris Yanomami Lizot1980:23 7
Junco(**) Cyperus corymbosus; C. distants;C.articulatus YanomamiLizot1980:23Lizot1980:24 15
Barbasco(***) Phyllantuspiscatorum Yanomami Lizot1980:26 1
Paricá(**) Anadenantheraperegrina Yanomami Lizot1980:29 1
Cambará(****) Lantanatryphylla Yanomami Lizot1980:38 1
Coca Erytrhoxylumcaractarum Desana B.Ribeiro1980ms 1
(*) AbacateeabacaxisãotambémcultivadospelosWanana(informaçãopessoaldeJanetChernela).Aindicaçãodeumúnicocultivarsignificaamençãodaplantanabibliografiasemespecificaçãodecultivares.(**)Plantadeusomágico-ritual.(***)Venenoparapeixe.(****)Plantaodorífera.
b) Fruteiras
Poucosbrasileirosestãofamiliarizadoscomaimensariqueza
defrutasnativas,silvestresoucultivadas,ignorandoque,nocaso
dessasúltimas,séculosdeexperimentaçãoeseleçãogenéticade-
corremafimdetornarpossívelsuaretiradadanaturezaparaas
roçasindígenase,depois,nacionaiseinternacionais.Aotratardas
seleçõesgenéticasdeplantas,fizreferênciaaoabacaxieàpupu-
nha.Tratareiagoraapenasdabanana,domaracujáedocaju,para
nãoalongaremdemasiaadiscussão.
Ocaju(Anacardiumspp.)éamplamenteconsumidoemestado
selvagem e domesticado pelos índios no Brasil. A seu respeito,
escrevePauloCavalcante:
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o42
Reforçaahipótesedesuaorigembrasileiraofatodeque,
das22espéciesdescritasparaogêneroAnacardium,apenas
duasoutrêssãonativasdoBrasil.Maisdametadedases-
pécies conhecidas são citadas como nativas da Amazônia
brasileiraeáreaslimítrofes,tambémbrasileiras,dadosesses
quepermitemadmitirqueocajueiroteriaseuindigenato
naAmazônia,deondeirradiousuaculturaparaorestodo
mundotropical(1972:13).
OfrutocontémaltoteordevitaminaC,eacastanhaéricaem
proteína,aminoácidosegorduras.
Originário provavelmente do Brasil é ainda o maracujá
(Passifloraspp.).Impressionadocomseuaromaeabelezadasflo-
res,assimodescreveFreiVicentedeSalvador,em1627:
Maracujáéoutraplanta,quetrepapelosmatos,etam-
bémacultivamepõememlatadasnospátiosequintais;dá
frutodequatrooucincosortes,unsmaiores,outrosmeno-
res,unsamarelos,outrosroxos,todosmuicheirososegos-
tosos,eoquemaissepodenotaréaflor,porque,alémde
serformosaedeváriascores,émisteriosa...(apudHoehne
1937:319).
Hoehnefaladomaracujá-melão(P.macrocarpa),quedáfrutos
atédoisquilosemeio (ibidem).P. Cavalcante (1974:43) informa
queogêneroPassiflora,com400espécies,estáatualmentedifun-
didopelamaiorpartedaAméricatropicale,emmenornúmero,
naÁsiaeAustrália.
A palmeira açaí (Euterpe oleracea), de cujo bago violáceo,
que dá em cachos, se faz um vinho característico do cardápio
do Pará, é de enorme importância na alimentação indígena e
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cabocla da Amazônia. A seguinte citação (Chaves & Perchnik
1945:6),tomadadeCavalcante(1973:34-35),informasobreoseu
valornutritivo:
alimentoessencialmenteenergético,comumvalorcalóri-
cosuperioraodoleiteeumteordelipídiosduplodeste.A
riqueza em protídios não é muito elevada como também
nãooéapercentagemdeglicídios.Todaviaoaçaícomoé
consumidohabitualmenteadicionadodeaçúcareseamilá-
ceospodeserconsideradocomoumalimentoricodegran-
devalorcalórico.Oteordeminerais,cálcio,fósforoeferro
apresentainteresse.
A banana (Musa paradisiaca; M. sapientum) é uma das mais
antigasplantascultivadaspelohomem,origináriadaÁsia.Apa-
coba,noentanto,écitadanoséculoXVIporAndréThevetepor
JeandeLery,noRiodeJaneiro,eporGabrielSoaresdeSouzana
Bahia.Esteteveocuidadodedistinguirasbananeirasdaspaco-
beirasedeixarclaroque“Pacobaéumafrutanaturaldestaterra”
(cf.Hoehne1937:120-121,150-152,221-224).Atualmente,tantoas
variedadesnativascomoasintroduzidastêmgrandeimportância
nadietaalimentardeinúmerosgruposindígenas(verTabelaII