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Universidade Estadual de Maringá – UEM Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350 _________________________________________________________________________________________________________ “OS CUS DE JUDAS”: LUGARES ABANDONADOS PELA MEMÓRIA Ana Paula Silva (PG - UFV) Enquanto n’Os lusíadas Camões exalta as conquistas coloniais, em Os cus de Judas Lobo Antunes substitui essa exaltação pelo tom de lamentação e angústia com que o protagonista narra suas memórias da guerra contra a independência das colônias africanas. Assim, nesta narrativa, o espírito épico e coletivo da exaltação ao imperialismo dá lugar ao questionamento de um indivíduo que se sente fracassado como ser humano e estrangeiro em sua pátria após a experiência da guerra contra as colônias africanas. Para o personagem de Lobo Antunes, a guerra colonial não se trata de uma luta em defesa de um território e da manutenção do projeto imperial, mas sim de uma invasão dos espaços do outro. Assim, neste trabalho, pretende-se mostrar como o romance “Os cus de Judas” problematiza a memória coletiva portuguesa do colonialismo a partir das memórias de um “retornado” das guerras coloniais. Segundo Gomes (1993, p. 84), o romance português contemporâneo tem um caráter combativo, sendo alvo de sua crítica, de um lado, os problemas político-sociais de Portugal e, de outro, o universo do romance e os mecanismos da ficção: “(...) o romance português contemporâneo não só fará um inventário crítico da situação sociopolítico- econômica portuguesa, como também fará um inventário crítico da linguagem, do modo de narrar e do compromisso do escritor com a realidade.” Neste contexto, o romance “Os cus de Judas” chama a atenção para as guerras coloniais na África e a situação dos “retornados”, problematizando a imagem épica da conquista de um Grande Império. No romance, um médico relata suas memórias da Guerra Colonial. Nessa narrativa, observa-se a incompreensão dos soldados, que não se identificam com a guerra, tampouco com o sonho imperialista: “O médico competente e responsável que desejavam que eu fosse, consertando a linha e agulha os heróicos defensores do Império, que passeavam nas picadas a incompreensão do seu espanto (...)” (ANTUNES, 1984, p. 41). Como mostra a citação, o narrador não participa do sonho imperial, como

“OS CUS DE JUDAS”: LUGARES ABANDONADOS PELA MEMÓRIA

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“OS CUS DE JUDAS”: LUGARES ABANDONADOS PELA MEMÓRIA

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“OS CUS DE JUDAS”: LUGARES ABANDONADOS PELA MEMÓRIA

Ana Paula Silva (PG - UFV)

Enquanto n’Os lusíadas Camões exalta as conquistas coloniais, em Os cus de Judas

Lobo Antunes substitui essa exaltação pelo tom de lamentação e angústia com que o

protagonista narra suas memórias da guerra contra a independência das colônias

africanas. Assim, nesta narrativa, o espírito épico e coletivo da exaltação ao

imperialismo dá lugar ao questionamento de um indivíduo que se sente fracassado como

ser humano e estrangeiro em sua pátria após a experiência da guerra contra as colônias

africanas. Para o personagem de Lobo Antunes, a guerra colonial não se trata de uma

luta em defesa de um território e da manutenção do projeto imperial, mas sim de uma

invasão dos espaços do outro. Assim, neste trabalho, pretende-se mostrar como o

romance “Os cus de Judas” problematiza a memória coletiva portuguesa do

colonialismo a partir das memórias de um “retornado” das guerras coloniais.

Segundo Gomes (1993, p. 84), o romance português contemporâneo tem um caráter

combativo, sendo alvo de sua crítica, de um lado, os problemas político-sociais de

Portugal e, de outro, o universo do romance e os mecanismos da ficção: “(...) o romance

português contemporâneo não só fará um inventário crítico da situação sociopolítico-

econômica portuguesa, como também fará um inventário crítico da linguagem, do modo

de narrar e do compromisso do escritor com a realidade.” Neste contexto, o romance

“Os cus de Judas” chama a atenção para as guerras coloniais na África e a situação dos

“retornados”, problematizando a imagem épica da conquista de um Grande Império. No

romance, um médico relata suas memórias da Guerra Colonial. Nessa narrativa,

observa-se a incompreensão dos soldados, que não se identificam com a guerra,

tampouco com o sonho imperialista: “O médico competente e responsável que

desejavam que eu fosse, consertando a linha e agulha os heróicos defensores do

Império, que passeavam nas picadas a incompreensão do seu espanto (...)” (ANTUNES,

1984, p. 41). Como mostra a citação, o narrador não participa do sonho imperial, como

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sua família, que esperava um dia ver nele as virtudes de herói épico dos seus

antepassados.

Sabe-se, pelo relato, que o narrador se trata de um médico retornado da Guerra

Colonial, que foi casado, tem duas filhas e vive solitário em seu apartamento. O

personagem, em vez de glória, mostra seu fracasso, enquanto ser humano, e de Portugal,

como país que se prende a um projeto imperial anacrônico. Com o término da guerra, a

grande quantidade de ex-combatentes, quando retornada, foi marginalizada na

sociedade portuguesa. Para o personagem, a vivência dos horrores da guerra

impossibilita-o de efetivar o retorno à pátria, retomando suas relações sociais. Nessa

situação marginal em relação à sociedade, a pátria torna-se irreal para o narrador, sendo

substituída pela memória da África: “O certo é que, à medida que Lisboa se afastava de

mim, o meu país, percebe?, se me tornava irreal, o meu país, a minha casa, a minha filha

de olhos claros no seu berço, irreais como estas árvores (...), moramos numa terra que

não existe. (...) Luanda, enevoada, subiu ao meu encontro (...).”(ANTUNES, 984,p. 80).

Depois de passar pela “aprendizagem da agonia”, na guerra, não há possibilidade de

interação com a realidade no retorno a Lisboa: “(...) Descíamos para as Terras do Fim

do Mundo (...) janeiro acabava, chovia, e íamos morrer, íamos morrer e chovia, chovia,

sentado na cabina da caminhoneta, ao lado do condutor, de boné nos olhos, o vibrar de

um cigarro infinito na mão, iniciei a dolorosa aprendizagem da agonia.” (ANTUNES,

1984,p.32). A participação na guerra como médico proporciona ao narrador o contato

próximo com a experiência da morte. A memória da morte e o sofrimento, no entanto,

não desaparecem quando do retorno à pátria, por isso aos retornados será necessária

“uma penosa reaprendizagem da vida”. (ANTUNES, 1984, p.45). A vida solitária do

narrador mostra essa impossibilidade das relações sociais após a vivência da “agonia”

na África . O espaço do bar, a noite e o álcool é a única situação que permite ao

narrador entrar em contato com o outro, ainda que num diálogo em que a voz deste

outro apareça apenas na fala do próprio narrador. Isso porque nesse espaço a realidade

se desprende do espírito, portanto, tornando o espaço de alguma maneira também irreal:

O encanto dos bares, não é?, consiste em, a partir das duas da manhã, não ser a alma a libertar-se do seu invólucro terrestre e a seguir

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verticalmente para o céu no esvoaçar místico de cortinas brancas das mortes do missal, mas a carne que se livra, um pouco espantada, do espírito, e inicia uma dança pastosa de estátua de cera que se funde até terminar nas lágrimas de remorso da aurora, quando a primeira luz oblíqua nos revela, com implacabilidade radioscópica, o triste esqueleto da solidão sem remédio. (ANTUNES, 1984, p.39)

O romance desenvolve-se em torno de uma conversa do narrador com uma mulher

encontrada casualmente num bar e terminada na casa dele. A interlocutora é impassível,

apenas ouve, e a conversa é entrecortada algumas vezes por expressões fáticas dela ou

pedidos de atenção feitos por ele. O narrador tem a necessidade de falar, apesar de a

interação efetiva não ser possível, pois é preciso falar das experiências da guerra, mas

tanto é impossível romper a solidão quanto transmitir essas experiências. Benjamim

(1985, p.115) aponta essa impossibilidade de transmissão de experiências observando o

silêncio de combatentes que voltavam do campo de batalha na Primeira Guerra

Mundial: “(...) Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado

silenciosos do campo de batalha. Mais pobres de experiências comunicáveis, e não mais

ricos.” Transmitir as experiências da guerra só se tornou possível para o narrador no

ambiente de devaneio, da irrealidade. É necessário falar sobre a guerra, como uma

tentativa de se livrar dessas memórias, de se libertar dos traumas, porém, na realidade

da guerra, as palavras não estão ao alcance dessa experiência:

“Nunca as palavras me pareceram tão supérfluas como nesse tempo de cinza (...), à medida que trabalhava o coto descascado de um membro ou reintroduzia numa barriga os intestinos que sobravam, nunca os protestos me surgiram tão vãos, nunca os exílios jacobinos de Paris se me afiguraram tão estúpidos: se me perguntam porque continuo no Exército repondo que a revolução se faz por dentro, explicava o capitão de óculos moles e dedos membranosos atrás de seu cigarro eterno, o capitão que puxou da pistola para o pide magrinho que atirara um pontapé a uma rapariga grávida e o expulsou da companhia indiferente às ameaças azedas do outro (...)” (ANTUNES, 1984, p.41).

Assim como as palavras são insuficientes para descrever a experiência da guerra,

também os discursos comunistas são vãos e estúpidos diante da barbárie na África. O

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País também precisa falar e ouvir sobre a Guerra Colonial, para que se conheça o avesso

do sonho de um império. Segundo Lourenço

Treze anos de guerra colonial, derrocada abrupta desse império, pareciam acontecimentos destinados não só a criar na nossa consciência um traumatismo profundo – análogo ao da perda da independência – mas um repensamento em profundidade da totalidade da nossa imagem perante nós mesmos e no espelho do mundo. Contudo, todos nós assistimos a este espetáculo surpreendente: nem uma nem outra coisa tiveram lugar. É possível que a profundidades hoje ainda não perceptíveis supure uma ferida que à simples vista ninguém apercebeu. (2007, p. 46)

Para Eduardo Lourenço (2007), essa “inconsciência coletiva” diante da Guerra

Colonial se deve à imagem camoniana de “povo colonizador por excelência”. Em Os

cus de Judas, essa imagem arquetípica do herói épico é questionada no relato das

memórias do colonizador. Tem-se, no relato das memórias, uma tentativa de superação

do trauma da guerra e não de transmitir as experiências de aprendizagem por que passa

um herói épico ao enfrentar os desafios de uma viagem. No seu desdobramento,

Portugal também precisa “tomar consciência” da Guerra Colonial, para superar a

imagem imperial e assim tomar consciência também do drama que vivem os retornados

das colônias africanas. Nesse sentido, compreende-se a expressão que dá título ao livro,

pois as colônias africanas em guerra teriam sido banidas da memória dos portugueses.

O arquétipo do herói épico encontra-se nas referências familiares do narrador:

As tias instalavam-se a custo no rebordo de poltronas gigantescas decoradas por filigranas de croché, serviam o chá em bules trabalhados com custódias manuelinas, e completavam a jaculatória designando com a colher do açúcar fotografias de generais furibundos, falecidos antes do meu nascimento após gloriosos combates de gamão e de bilhar em messes melancólicas como salas de jantar vazias, de Últimas Ceias substituídas por gravuras de batalhas: – Felizmente a tropa há-de torná-lo homem. (ANTUNES, 1984: 12)

A noção de nobreza garantida pelos objetos e pela imagem dos heróis das fotografias

de batalhas contribui para o sentido épico das conquistas portuguesas nas lembranças da

infância do narrador. Contudo, essas lembranças são ironizadas, pois o relato delas é

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posterior à experiência na Guerra Colonial. Assim, os gloriosos combates são

diminuídos para jogos de gamão e bilhar, e aquele ambiente de gravuras de batalhas

sugere, para o narrador adulto, apenas melancolia.

As referências da família tornam-se claras na citação seguinte:

O espectro de Salazar pairava sobre as calvas pias labaredazinhas de Espírito Santo corporativo, salvando-nos da idéia tenebrosa e deletéria do socialismo. A PIDE prosseguia corajosamente a sua valorosa cruzada contra a noção sinistra de democracia (...). O cardeal Cerejeira, emoldurado, garantia, de um canto, a perpetuidade da Conferência de São Vicente de Paula, e, por inerência, dos pobres domesticados. O desenho que representava o povo em uivos de júbilo ateu em torno de uma guilhotina libertária fora definitivamente exilado para o sótão, entre bidés velhos e cadeiras coxas, que uma fresta poeirenta de sol aureolava do mistério que acentua as inutilidades abandonadas. (ANTUNES, 1984, p.13)

Essas referências são o nacionalismo de Salazar e a religião católica. Eles o queriam

ver como guerreiro exemplar, era essa a formação que esperavam que o exército lhe

desse. Nota-se, nesse trecho, também a seleção de memórias no grupo familiar por meio

da exposição dos objetos representantes do ideal guerreiro-religioso e do “exílio” da

pintura que representava o ideal “libertário”. Ao grupo familiar interessava a memória

do socialismo como “idéia tenebrosa e deletéria”. Entretanto, a representação dessas

lembranças no romance subverte esse sentido que o grupo familiar impunha aos objetos

da casa. Depois de passar pela experiência do combate nas colônias africanas, o

narrador ironiza os valores que constituem a imagem do seu passado. A metamorfose

pela qual passará o personagem não será positiva. Além disso, a imagem da multidão,

que na Revolução Francesa vê cair a nobreza, agora assisti ao seu próprio enforcamento.

A multidão vê seus filhos seguirem para a morte na África, enquanto a burguesia, na

qual se inclui o narrador, assiste a sua partida como sonho de um feito heróico:

De modo que quando embarquei para Angola, a bordo de um navio cheio de tropas, para me tornar finalmente homem, a tribo, agradecida ao Governo que me possibilitava, grátis, uma tal metamorfose, compareceu em peso no cais, consentindo, num arroubo de fervor patriótico, ser acotovelada por uma multidão agitada e anônima

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semelhante à do quadro da guilhotina, que ali vinha assistir, impotente, à sua própria morte. (ANTUNES, 1984, p.13)

Segundo Halbwachs, citado por Burke (2000, p. 70): “São os indivíduos que

lembram, no sentido literal, físico, mas são os grupos sociais que determinam o que é

‘memorável’, e também como será lembrado.” O fato de o desenho da guilhotina

constar no relato do narrador já é significativo do fracasso do grupo familiar em

selecionar seu esquecimento. A noção de história como produto de grupos sociais é

marcada também nesta citação: (...) a idéia de uma África portuguesa, de que os livros de História do liceu, as arengas dos políticos e o capelão de Mafra me falavam em imagens majestosas, não passava afinal de uma espécie de cenário de província a apodrecer na desmedida vastidão do espaço (...) (ANTUNES, 1984, p. 104).

A memória coletiva que se presta como referência para a construção das imagens das

lembranças tanto quanto a história citada enquanto disciplina são histórias de grupos

sociais, impregnadas da religiosidade e do imperialismo do colonizador. Dessa maneira,

a história não é artifício de verossimilhança, não serve apenas como referência do real

no plano literário, mas é tratada como um discurso. O romance ironiza a história oficial

da Guerra Colonial, com a associação dos combatentes aos heróis dos Descobrimentos,

“Cabrais” e “Gamas”, e mostra como os discursos oficiais minimizaram os horrores da

luta: (...) calcule o senhor presidente o que será desaparecer de súbito um bocado de si, os legítimos descendentes dos Cabrais e dos Gamas a sumirem-se por frações um tornozelo um braço (...), faleceu em combate explica o jornal, mas é isto falecer seus filhos da puta (...), cobriam-se as bombas de napalm com oleado e o governo afirmou solenemente Em caso nenhum recorreríamos a tão cruel meio de extermínio, eu vi cobrir as bombas em Gago Coutinho (...) (ANTUNES, 198, p. 91).

Ainda que neste trecho o narrador afirme que testemunhou o fato, não se deve perder

de vista que se trata de uma obra literária, portanto, sem compromisso com a

veracidade. Burke (2000, p.74) ressalta o caráter de representação ao comentar os meios

de transmissão das memórias: “Precisamos nos lembrar de que esses relatos não são

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atos inocentes da memória, mas antes tentativas de convencer, formar a memória de

outrem.” Nesse sentido, no romance de Lobo Antunes, o relato do narrador pode ser

uma maneira de lutar contra o esquecimento desse episódio na história portuguesa, visto

que não se trata de um episódio amplamente discutido no País, apesar dos 13 anos de

guerra:

Se a revolução acabou, percebe?, e em certo sentido acabou de fato, é porque os mortos de África, de boca cheia de terra, não podem protestar, e hora a hora a direita os vai matando de novo, e nós, os sobreviventes, continuamos tão duvidosos de estar vivos que temos receio de, através da impossibilidade de um movimento qualquer, nos apercebemos de que não existe carne nos nossos gestos nem som nas palavras que dizemos, nos apercebemos de que estamos mortos como eles (...). (ANTUNES, 1984, pp.52-53)

Segundo Eduardo Lourenço (2007, p. 62): “A revolução de Abril foi recebida e

festejada como uma simples mudança de cenários gastos que não alteraria o pacatíssimo

e delicioso viver à beira-mar plantado, nem alteraria em nada a imagem que os

Portugueses se faziam de si mesmos.” De acordo com o autor, a Revolução não

significou, para Portugal, um momento de tomada de consciência das mazelas mais

profundas do colonialismo e a revisão do mito de povo colonizador. Os horrores da

guerra só foram percebidos pela população quando “milhares de retornados invadem de

súbito a pacífica e bonacheirona terra lusitana...” (LOURENÇO, 2007, p.63). Esse

quadro que se apresenta ao povo português fará com que seja necessário não apenas a

revisão do que foi a Guerra Colonial, mas também da postura da população diante do

colonialismo e da Revolução de Abril, considerando as verdades históricas como

discursos produzidos.

O romance estrutura-se em torno da temática da guerra colonial e do pós-guerra.

Entretanto, Maria Alzira Seixo (2002, p. 499) aponta a experiência pós-colonial na obra

de Lobo Antunes como “motivação pretextual de escrita”. As guerras e os

deslocamentos que o colonialismo provocou são pretextos para a transfiguração de

experiências humanas. Desse modo, a situação do pós-colonialismo leva à

problematização, por exemplo, de questões relativas à identidade e à relação com o

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outro. Não se trata, portanto, apenas da identidade portuguesa, mas da construção de

identidade nesta complexa situação de encontro com o outro. O narrador se vê numa

guerra em que não reconhece o outro como inimigo, não reconhece como seu o

território pelo qual luta, não se sente superior quando vence, tampouco considera vitória

a morte do inimigo. Ademais, essas complexas relações sociais não se resolverão com o

fim da guerra. O drama dos soldados da Guerra Colonial não se resolve com a volta

para casa. O sentimento de pertença à pátria que os enviou a “lugares abandonados pela

memória” é rasurado pela permanência dessa memória da agonia nos retornados e pelo

esquecimento da guerra na sociedade.

A aprendizagem que se esperava tornar o narrador um grande herói também não

ocorre: De fato, e consoante as profecias da família, tornara-me um homem: uma espécie de avidez triste e cínica, feita de desesperança cúpida, de egoísmo, e da pressa de esconder de mim próprio, tinha substituído para sempre o prazer da alegria infantil, do riso sem reservas nem subentendidos, embalsamado de pureza, e que me parece escutar, sabe?, de tempos em tempos, à noite, ao voltar para casa, numa rua deserta, ecoando nas minhas costas numa cascata de troça. (ANTUNES, 1984, p.25)

O personagem retorna da guerra “mais humano”, porém não superior em virtudes e

mais sábio pelas aprendizagens da viagem. Ao contrário, “mais humano” significa, aqui,

na medida normal dos homens, sem a superioridade dos valores épicos. A aprendizagem

que se fez nesta viagem aos “cus de Judas”, afinal, foi a da agonia. A esta aprendizagem

se opõe a aprendizagem da infância, esta sim, da alegria, que é ainda guardada na

memória, mas que apenas ecoa às suas costas, sem preencher a vida, que fora

substituída pela memória da agonia nos “cus de Judas”. Nesse sentido, compreende-se a

expressão que dá título ao livro, pois as colônias africanas em guerra teriam sido

banidas da memória dos portugueses, por isso é preciso narrar de outro modo que não o

da história oficial esses horrores.

REFERÊNCIAS

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BENJAMIM, W. Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte e política. Ensaios

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LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade. Lisboa: Editora Gradiva, 2000.

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