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Os desafios à força - img.travessa.com.brimg.travessa.com.br/capitulo/SEXTANTE/CORACAO_SEM_MEDO_UM_POR_QUE... · ao nosso alcance.” – Kelly McGonigal, autora de Os desafios

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“Eu amo a abordagem prática que Jinpa usa para tirar a compaixão do pedestal das ideias impossíveis e trazê-la para a realidade confusa que é o dia a dia da vida humana. Este é um dos livros mais importantes para esses tempos difíceis.” – Richard Gere, ator

“Uma leitura inspiradora que não apenas demonstra o poder da com-paixão, mas também revela como a bondade e a autocomiseração estão ao nosso alcance.” – Kelly McGonigal, autora de Os desafios à força de vontade

“Abraçar a compaixão nos permite acessar nossa habilidade natural de criatividade e empatia. Recomendo fortemente este livro e este programa para quem busca relações mais significativas com as pessoas e o mundo à sua volta.” – David Kelley, coautor de Confiança criativa

“Parte autobiografia, parte manual de treinamento para uma vida saudável, parte bela tapeçaria que entrelaça o antigo pensamento budista e a ciência moderna, este livro traz ensinamentos úteis para qualquer pessoa. Ele ex-plica por que a compaixão é tão essencial para o mundo moderno e ofere-ce conselhos práticos sobre como cultivá-la.” – Richard J. Davidson, autor de O estilo emocional do cérebro

UM CORAÇÃO SEM MEDO

Para meus falecidos pais, que, apesar de todas

as dificuldades como refugiados tibetanos na

Índia, instilaram em mim a fé na bondade

essencial da humanidade.

S U M Á R I O

Introdução 9

PARTE I: POR QUE A COMPAIXÃO IMPORTA 21

Capítulo 1O segredo mais bem guardado da felicidade: compaixão 22

Capítulo 2A chave para a aceitação de si: compaixão por si mesmo 42

Capítulo 3Do medo à coragem: rompendo a resistência 58

PARTE II: TREINANDO A MENTE E O CORAÇÃO 75

Capítulo 4Da compaixão à ação: transformando intenção em motivação 76

Capítulo 5Abrindo espaço para a compaixão: como o foco consciente nos mantém no caminho 93

Capítulo 6Saindo da inércia: escapando da prisão do egoísmo 112

Capítulo 7“Que eu seja feliz”: cuidando de si mesmo 129

Capítulo 8“Assim como eu”: expandindo o círculo de cuidado 146

PARTE III: UM NOVO MODO DE SER 167

Capítulo 9Maior bem-estar: como a compaixão nos torna saudáveis e fortes 168

Capítulo 10Mais coragem, menos estresse, maior liberdade: transformando a compaixão em nossa postura básica 181

Capítulo 11O poder do uno: o caminho para um mundo mais compassivo 195

Agradecimentos 212

Notas 215

9

I N T R O D U Ç Ã O

Nada é mais poderoso que uma ideia cujo tempo chegou.– VICTOR HUGO

L embro-me de caminhar entusiasmado ao lado de Sua Santidade, o Dalai Lama, segurando sua mão e tentando acompanhar seu passo.

Eu devia ter uns 6 anos quando ele visitou o Lar do Castelo Istirling para Crianças Tibetanas em Shimla, no norte da Índia, onde eu vivia com mais de duzentas crianças refugiadas. O Lar fora criado pela instituição britânica Save the Children em 1962 e instalado em duas antigas casas coloniais situadas em uma pequena colina. Nós, crianças, nos ocupa-mos naquele dia de ensaiar canções enquanto os mais velhos limpavam as ruas e as decoravam com os símbolos tibetanos da boa sorte – o guar-da-sol, os dois peixes dourados, a concha, a flor de lótus, o nó infinito, o vaso, a roda de oito raios dharma e a bandeira da vitória. Havia muitos policiais indianos em torno da escola. Lembro-me de jogar bola de gude com alguns deles enquanto esperava pelo grande momento. E, quando ele chegou, foi realmente mágico. Uma fumaça espessa erguia-se de uma fornalha de cal feita especialmente para a ocasião. Vestidos com nossas melhores roupas coloridas e segurando nas mãos o kata – tradicional lenço branco tibetano de saudação –, nos posicionamos dos dois lados do caminho que levava à escola e cantamos a plenos pulmões.

Eu havia sido um dos escolhidos para acompanhar o Dalai Lama en-quanto ele visitava a escola. Em certo momento, perguntei-lhe se eu po-deria me tornar um monge. “Estude bastante e você poderá se tornar um monge no momento que desejar”, respondeu ele. Olhando para trás, acho que a única razão para eu desejar uma coisa dessas tão cedo era que havia na escola dois professores que eram monges – e eram os adul-

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tos mais gentis e eruditos de lá. Além disso, pareciam sempre felizes e tranquilos – até mesmo radiantes, às vezes. E o que era mais importante para nós, crianças: eram eles que contavam as melhores histórias.

Assim, quando a primeira oportunidade surgiu, aos 11 anos de idade, ingressei em um mosteiro, apesar dos protestos de meu pai. Ele ficou cha-teado porque eu estava desperdiçando a chance de me tornar o provedor da família – os pais da geração dele queriam que os filhos estudassem e fossem trabalhar num escritório. No entanto, pelos dez anos seguintes eu vivi na pequena comunidade do mosteiro Dzongkar Choed. Foi lá, no verde permanente das calmas colinas de Dharamsala, no norte da Índia, que comecei a praticar o inglês ao lado de hippies que estavam em busca da iluminação.

Fiz dois grandes amigos: John e Lars. John era um americano recluso que morava sozinho em um bangalô perto da cabana de meditação de um famoso mestre. Eu me encontrava com ele uma ou duas vezes por semana. Foi ele quem me apresentou a panquecas e presunto. Lars era um dinamarquês que morava perto do mosteiro. Eu o visitava com fre-quência para conversar e comer torradas com geleia.

Na primavera de 1972, o mosteiro foi transferido para o sul da Ín-dia, onde havia começado um programa de reassentamento de tibeta-nos. Aos 13 anos, juntei-me aos outros monges desbravando florestas, cavando fossos e trabalhando nos milharais. Nos primeiros dois anos, enquanto preparávamos o local, recebíamos um salário diário de 0,75 rupias indianas, que equivalia a menos de 1 centavo de dólar.

Havia pouca educação formal em Dzongkar Choede – não é costume jovens monges frequentarem escolas seculares regulares. Mas, quando a comunidade se mudou para o sul, eu já havia memorizado todos os textos litúrgicos de que precisava. O dia de trabalho terminava às quatro da tarde, portanto eu tinha algum tempo livre, e decidi melhorar meu inglês. No entanto, sem oportunidade de praticar conversação, tive que me virar lendo histórias em quadrinhos. Um dia, consegui um rádio transistor usado e passei a ouvir diariamente o BBC World Service e a Voice of America (VOA). Naquela época, a VOA tinha um programa “transmitido em inglês especial” no qual o apresentador falava devagar

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e repetia cada frase duas vezes. Isso foi imensamente útil, já que minha compreensão da língua era muito básica.

Como eu era o único jovem do mosteiro que sabia ler e falar inglês – mesmo que de forma rudimentar –, isso me destacava dos outros meni-nos. Havia um mundo muito maior além da comunidade de refugiados e do mosteiro no qual apenas eu podia entrar. Através do inglês, os países de que eu ouvia falar nos noticiários ganhavam vida e começavam a fazer sentido para mim – Inglaterra, Estados Unidos, Rússia e meu amado Ti-bete, que tinha caído nas mãos da China comunista.

Por volta de 1976, quando eu tinha 17 anos, conheci a Dra. Valentine Stache-Rosen, uma indologista alemã especializada em textos em sâns-crito e chinês que manifestou grande interesse pelo meu progresso no inglês. Ela me apresentou à literatura ocidental e transformou meus co-nhecimentos da língua. Não consigo imaginar aonde a vida teria me levado se não fossem sua ajuda e sua generosidade.

Nessa mesma época, conheci o professor que mais tarde se tornaria uma das mais importantes influências em minha formação budista. Famoso por sua erudição e sua poesia, Zemey Rinpoche era a pessoa mais delica-da que eu já conhecera. Eu já havia lido diversos textos dele na escola, e encontrá-lo pessoalmente reacendeu meu entusiasmo pelo aprendiza-do que originalmente tinha me inspirado a me tornar um monge. Em nosso primeiro encontro, Rinpoche reconheceu minha mente irrequie-ta e me adotou como discípulo. Então, no verão de 1978, deixei minha pequena comunidade para ingressar em Ganden, um grande mosteiro acadêmico também no sul da Índia, a dez ou doze horas de ônibus dali.

Em 1985, vinte anos depois de ter acompanhado Sua Santidade na visi-ta à minha escola, tive a honra – ainda que acidental – de ser intérprete de um seminário ministrado por ele. O intérprete contratado não pôde com-parecer ao primeiro dia do evento, então me perguntaram se eu poderia substituí-lo. Poucos dias depois, fui avisado de que o Dalai Lama desejava me ver. Quando cheguei ao seu escritório, ele me disse: “Conheço você. É um bom debatedor do mosteiro de Ganden. Mas não sabia que falava inglês.” Ele comentou que alguns ocidentais que compareceram ao semi-nário elogiaram a minha pronúncia. Por isso ele perguntou se eu estaria

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disponível para ser seu intérprete quando ele precisasse, especialmente durante suas viagens. Meus olhos se encheram de lágrimas. Nunca, nem em meus sonhos, eu imaginara que um dia eu o serviria tão de perto.

Assim, comecei a acompanhar o Dalai Lama em suas viagens inter-nacionais, ajudando-o nas palestras e nos projetos de seus livros. Nessas atividades, tenho sido seu principal intérprete desde 1985, servindo a essa notável voz de compaixão já há quase trinta anos.

Desde o começo, Sua Santidade deixou claro que eu não pertenceria ao seu quadro permanente de auxiliares, pois seria um desperdício de minha educação monástica e de meu talento. Em vez disso, aconselhou-me a me concentrar nos estudos e a perseguir uma vida independente dedicada à erudição. Esse foi um gesto verdadeiramente compassivo de sua parte.

Com o tempo, compreendi que meu destino era servir de intermediá-rio entre a tradição budista tibetana clássica e o mundo contemporâneo. Talvez minha estranha experiência da juventude – tendo crescido em um mosteiro, mas fascinado pela cultura ocidental – tenha me prepa-rado para esse papel. Não havia muitas pessoas com a minha formação que soubessem inglês. Quando meu domínio da língua cresceu, tomei consciência de que poderia me tornar a ponte entre as duas culturas que eu tanto amava.

A motivação de cumprir esse destino da forma mais eficiente possível me levou à Universidade de Cambridge, na Inglaterra, onde dei início a uma nova fase da minha vida. E, felizmente, minhas experiências con-firmaram que muitas coisas boas podiam sair do encontro da tradição budista clássica com o pensamento ocidental contemporâneo. Este livro é parte desse trabalho de interpretação intercultural.

A compaixão sempre me interessou. Na infância, eu a recebia. Graças aos milhares de cidadãos ingleses que contribuíram com a organização Save the Children, mais de mil crianças tibetanas, como eu, encontraram um lar seguro para crescer enquanto nossos pais lutavam para se adaptar a uma terra cujos costumes e cuja língua não conheciam. Graças a pessoas como Valentina Stache-Rosen e Zemey Rinpoche, encontrei um propó-sito – apesar de minha educação pouco convencional. Em minha vida profissional, servindo ao Dalai Lama tão de perto, tive o privilégio de tes-

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temunhar em primeira mão o que significa viver com completa convicção nessa qualidade humana definidora que chamamos de compaixão.

Hoje sou casado, pai de duas adolescentes, moro no Canadá e minha vida é muito diferente da que levava naquele mosteiro tibetano na Índia. Todos os dias, como a maioria das pessoas, enfrento os desafios típicos da vida moderna, tentando conciliar trabalho, família e relacionamen-tos, pagar as contas e, ao mesmo tempo, manter a sanidade e o otimis-mo. Mas é nos ensinamentos da tradição budista que encontro muitas das ferramentas que me ajudam a ultrapassar os obstáculos do dia a dia. Espero partilhar algumas delas com você.

d

O que é compaixão? A maioria de nós concorda que é algo importante tanto em nossa vida pessoal quanto para a sociedade em geral. Além disso, é indiscutivelmente parte de nossa experiência humana cotidiana. Amamos e cuidamos de nossos filhos; quando confrontados com alguém que esteja sentindo dor, instintivamente nos sentimos mal por aquela pessoa; ficamos comovidos quando alguém recorre a nós num momento de aflição. A maioria de nós concordaria que a compaixão tem algo a ver com o real significado de uma vida boa. Por isso não é coincidência que ela acabe se revelando a base comum em que os ensinamentos éticos de todas as principais tradições – religiosas e humanistas – se encontram. Mesmo na acirrada arena política, trata-se de um valor que ambos os lados do espectro se mostram ansiosos por reivindicar para si.

Apesar de nossas experiências e crenças sobre o assunto, a compaixão não desempenha um papel central em nossa vida nem na sociedade. Na cultura contemporânea, temos uma relação muito confusa com valores como bondade e compaixão. Para algumas pessoas, é uma questão reli-giosa ou moral, uma preocupação particular do indivíduo, com pouca ou nenhuma relevância social. Outras questionam a possibilidade de existência do altruísmo e suspeitam de sentimentos como compaixão, que colocam o bem-estar dos outros em primeiro lugar. No outro extre-mo, essas qualidades se elevam a ponto de ficarem fora de alcance para

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a maioria de nós, tornando-se exclusividade de indivíduos excepcionais, algo a ser admirado em pessoas como Madre Teresa, Nelson Mandela e o Dalai Lama, mas que não se mostra relevante para o nosso dia a dia.

Em uma definição ampla, compaixão é uma preocupação que surge quando vemos o sofrimento do outro e desejamos que ele acabe. A pala-vra latina que lhe deu origem significa literalmente “sofrer junto de”. De acordo com a historiadora Karen Armstrong, a etimologia das palavras correspondentes em línguas semíticas – rahama-nut em hebraico, rah-man em arábe – está ligada a um termo que significa útero, evocando o amor da mãe por seu filho como uma expressão arquetípica da nossa compaixão. Em essência, esse sentimento é nossa resposta à realidade inevitável da condição humana: nossas experiências de dor e sofrimento.

A compaixão nos oferece a possibilidade de reagir ao sofrimento com compreensão, paciência e bondade em vez de – digamos – medo e re-pulsa. Ela faz com que estejamos abertos à realidade do sofrimento e em busca de seu alívio. A compaixão é o que conecta o sentimento de empatia a atos de bondade, generosidade e outras expressões de nossas tendências altruístas.

Quando sentimos compaixão diante da necessidade ou do sofrimento de alguém, três coisas acontecem de forma quase instantânea: percebe-mos o sofrimento ou a necessidade do outro; construímos uma ligação emocional com aquela situação; e reagimos instintivamente, desejando que aquele sofrimento acabe. A compaixão pode levar à ação porque ficamos dispostos a fazer algo para melhorar a situação do outro. Hoje, os cientistas estão começando a mapear a base neurobiológica da com-paixão e a explorar suas profundas raízes evolutivas.

Em termos de sociedade, há muito ignoramos o papel fundamental de nosso instinto de compaixão na hora de determinar nossa natureza e nosso comportamento. E acreditamos sem pestanejar na narrativa po-pular que procura explicar todas as nossas ações pelo prisma da compe-tição e do egoísmo.

O problema com uma história como essa é que ela se realiza por si só. Quando sempre ouvimos que no fundo somos criaturas egoístas e agressivas, presumimos que o mundo é “cada um por si” – e nada mais

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lógico que enxergar os outros como fonte de rivalidade e antagonismo. Assim, em vez de criar vínculos, nos relacionamos com os outros cheios de apreensão, medo e suspeitas. Por outro lado, se nossa história dis-ser que somos criaturas sociais, dotadas de instintos de compaixão e bondade, e que, como seres profundamente interdependentes, nosso bem-estar está ligado ao dos demais, isso transforma nossa forma de ver e nos comportarmos no mundo. Por isso as histórias que contamos sobre nós mesmos são tão importantes.

Por que agora?

Hoje diversos fatores parecem indicar que chegou a hora da compaixão. À medida que o mundo se torna cada vez menor – com a população crescendo rapidamente e os recursos naturais escasseando, sérias ques-tões ambientais e a proximidade de povos, culturas e religiões proporcio-nada pela tecnologia, pelas mudanças demográficas e por uma economia global –, mais urgente se torna a necessidade de desenvolvermos o espí-rito de coexistência e cooperação. Estamos juntos nessa, e a compaixão tem muito a ver com a unidade da raça humana.

Em uma série de tocantes diálogos com o Dalai Lama, o cientista Paul Ekman defendeu que o desafio mais importante de nosso tempo é alcançar aquilo que ele chama de “compaixão global”. Se pudermos acolher com seriedade a parte compassiva de nossa natureza – tanto em nível individual quanto social –, teremos uma chance real de criar um mundo mais humano.

Descobertas de diversos campos do conhecimento vêm mostrando que não somos apenas criaturas egoístas e competitivas, mas também seres afetuosos e cooperativos. Isso nos enche de esperança. Além disso, graças às tecnologias de obtenção de imagens do cérebro, hoje sabemos que esse órgão se altera fisicamente em resposta ao ambiente e às ex-periências da vida. Agora os pesquisadores estão começando a enten-der como o treinamento mental consciente afeta nosso cérebro. Esses avanços levaram à criação de um campo inteiramente novo de estudos

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conhecido como ciência contemplativa, que investiga os efeitos de prá-ticas contemplativas como a meditação na saúde, no desenvolvimento cognitivo, na regulação emocional, etc. Essa ciência nos diz que, quando treinamos a mente, literalmente transformamos nosso cérebro.

Lembro que, anos atrás, durante a Conferência Mente e Vida, o Dalai Lama lançou um desafio aos cientistas presentes. “Vocês, cien-tistas, fizeram um trabalho notável mapeando as patologias da mente hu-mana. Mas trabalharam pouco ou nada com qualidades positivas como a compaixão – sem falar de seu potencial de cultivo. As tradições con-templativas, por outro lado, desenvolveram técnicas para treinar a mente e fortalecer essas qualidades positivas. Então por que vocês não usam as poderosas ferramentas que têm para estudar os efeitos das práticas con-templativas? Quando a ciência compreender melhor os efeitos desse tipo de treinamento, aí então teremos a possibilidade de apresentá-lo a um pú-blico mais amplo, não como uma prática espiritual, mas como uma série de técnicas de bem-estar mental e emocional.”

Foram palavras proféticas. No Ocidente, a prática de mindfulness, ou atenção plena, começou a se disseminar com meditações budistas que alguns americanos pioneiros, como Jack Kornfield e Joseph Goldstein, levaram para os Estados Unidos na década de 1970, depois de passarem anos em mosteiros do Sudeste Asiático. As influências do mestre birma-nês-indiano S. N. Goenka e do mestre zen Thich Nhat Hanh também fo-ram importantes para esse movimento. Em 1979, Jon Kabat-Zinn passou a usar práticas de atenção plena para tratar pacientes com dores crônicas numa clínica da faculdade de medicina da Universidade de Massachu-setts. Mais tarde, esse tratamento recebeu reconhecimento científico e passou a ser conhecido como MBSR (mindfulness-based stress reduction – redução de estresse baseada na atenção plena).

A defesa explícita do Dalai Lama da adoção de práticas de treinamen-to mental também desempenhou um papel significativo no esforço de aumentar a consciência dos benefícios da atenção plena. Hoje esse termo aparece ligado a técnicas terapêuticas, estratégias de gerenciamento e es-portes competitivos. Uma busca da palavra mindfulness no site Amazon resulta em mais de 3 mil títulos.

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O cenário está montado. Há um crescente movimento científico para redefinir o lugar da compaixão em nossa compreensão da natureza e do comportamento humanos, e agora ela pode ter um grande impacto no mundo. Terapias com base no treinamento da compaixão vêm se mos-trando promissoras para o tratamento de problemas de saúde mental – de autocrítica negativa em excesso a casos de estresse pós-traumático e distúrbios alimentares. Já os educadores procuram cada vez mais le-var a bondade e a compaixão para o ambiente escolar, como parte do desenvolvimento social, emocional e ético das crianças. Nesse contexto, surgiu a oportunidade de criar um programa padronizado conhecido hoje como treinamento de cultivo da compaixão (TCC).

Treinamento de cultivo da compaixão em Stanford

A história do TCC começou em 2007, quando conheci o neurocirur-gião Jim Doty. Ele queria criar um fórum de profissionais de todas as áreas para investigar cientificamente o comportamento altruísta e suas motivações, sobretudo a compaixão. É claro que eu estava interessado em participar. O resultado foi o CCARE, sigla em inglês para Centro de Pesquisa e Educação da Compaixão e do Altruísmo da Universidade Stanford, que ajudou a colocar pesquisas desse tipo no escopo da ciên-cia. Eu me tornei professor visitante em Stanford e ajudei a desenvolver o treinamento de cultivo da compaixão.

O programa tem duração de oito semanas, com um encontro sema-nal de duas horas para aulas sobre introdução à psicologia e práticas de meditação guiada para ajudar a desenvolver maior consciência e melhor compreensão da dinâmica de nossos pensamentos, comportamentos e emoções. Entre as aulas, os alunos fazem “deveres de casa”: meditações guiadas pré-gravadas que começam durando cerca de quinze minutos e chegam a meia hora. Além disso, têm práticas informais, aproveitando as oportunidades do cotidiano para trabalhar as lições da semana.

Você pode se perguntar: será que práticas de meditação budista são eficazes mesmo que sejam despidas de seus elementos religiosos? Meu

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ponto de vista sobre a questão é objetivo. Como sou tradutor profis-sional, sempre admirei a passagem memorável de Sociedade e solidão em que Ralph Waldo Emerson escreveu: “O melhor de qualquer livro é traduzível – qualquer percepção ou sentimento humano real.” Acredito que esse princípio é verdadeiro não apenas para a tradução entre dife-rentes línguas, mas também para outras maneiras de transmitir percep-ções da condição humana. Se as práticas de compaixão do budismo nos tocam de um jeito decisivo e ajudam a nutrir e desenvolver o que temos de melhor, então com certeza essas técnicas tradicionais podem ser tra-duzidas para todos, não importando a etnia, a religião ou a cultura. Em outras palavras: as verdades mais profundas são universais.

Inicialmente, o TCC foi oferecido a estudantes de Stanford e ao públi-co em geral. Essa primeira experiência foi muito útil para aprimorarmos o programa. Eu reconheci, por exemplo, que a primeira versão do curso se concentrava demais na prática da meditação, o que não funcionava muito bem para pessoas que não fossem inclinadas a essa abordagem silenciosa e reflexiva. Para estas, os exercícios mais ativos ou interativos provaram ser mais eficientes na hora de evocar os estados mentais e emo-cionais que pretendíamos cultivar. Assim, incorporei técnicas diferentes, sobretudo exercícios interativos e discussões em sala de aula.

Para tornar o treinamento mais abrangente, busquei a ajuda de diversos colegas, especialmente três pessoas notáveis – Kelly McGonigal, professo-ra de Stanford e conhecida instrutora de ioga e meditação; Margaret Cul-len, terapeuta de família e treinadora certificada de atenção plena; e Erika Rosenberg, pesquisadora das emoções e professora de meditação. Essas três colegas se tornaram as primeiras professoras do TCC e, mais tarde, Monica Hanson e Leah Weiss se juntaram a elas. Kelly e Leah desenvol-veram um amplo curso de treinamento de professores no TCC. Até hoje, mais de uma centena de instrutores já se formaram e o programa passou a ser oferecido a um público muito variado, de um grupo de engenheiros do Google a redes de apoio a pacientes de câncer. Neste livro conto algu-mas histórias do programa. Para os interessados, as fontes utilizadas e os estudos científicos citados estão indicados na seção Notas.

O Dalai Lama certa vez disse que chegará o tempo em que o mundo

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irá reconhecer a importância dos cuidados com a mente – da mesma forma que hoje aceitamos que uma boa alimentação e exercícios físicos são o segredo para a saúde física.

Sobre este livro

A compaixão é parte fundamental da natureza essencial do ser humano. A chave para a felicidade individual e o bem-estar da sociedade como um todo é entrar em contato com nossa parte compassiva e lidar com nós mesmos, com os outros e o mundo a partir dela. Cada um de nós pode adotar medidas práticas para colocar a compaixão no centro da sua vida e do mundo que compartilhamos. Na Parte II deste livro mos-trarei quais são essas medidas.

Portanto, o objetivo deste livro é simples e ambicioso ao mesmo tem-po: redefinir a compaixão como algo que todos possam entender e trans-formá-la num desejo consciente, não apenas num ideal. Quero tirá-la de seu pedestal e torná-la uma força ativa no dia a dia. Ao apresentar um treinamento sistemático para a mente e o coração, este livro mapeia o caminho para tornarmos a compaixão nossa postura principal, a âncora de uma vida mais feliz, menos estressante e mais gratificante.

O paradoxo da compaixão é que nós mesmos somos seus maiores beneficiários. Como veremos na Parte I, a compaixão nos torna pessoas mais felizes. Ela nos tira do nosso estado de espírito costumeiro, com a cabeça cheia de decepções, arrependimentos e preocupações, e nos leva a concentrar a atenção em algo maior. Ao contrário do que poderíamos pensar, a compaixão nos deixa mais otimistas, porque, apesar de surgir a partir de uma situação difícil, seu maior desejo é o fim do sofrimen-to e a possibilidade de fazermos algo a respeito. A compaixão nos dá um sentido de propósito que vai além de nossas habituais preocupações mesquinhas. Nosso coração fica mais leve e nosso estresse diminui, o que nos torna mais pacientes e nos ajuda a compreender melhor a nós mesmos e os outros. Além disso, a compaixão nos leva a valorizar ainda mais a bondade dos outros em relação a nós.

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Uma médica de 32 anos que participou do TCC relata como a com-paixão a ajudou:

Às vezes atendo 35 pacientes num dia. Então parei de me sentir co-nectada com eles, que parecem ter se tornado apenas números. Eu estava me sentindo totalmente esgotada e cheguei a pensar em de-sistir da medicina. As coisas começaram a mudar quando entrei no TCC e comecei a prática da compaixão. Eu mudei. Comecei a usar as três respirações profundas antes de entrar na sala de atendimento e a não ficar com o paciente anterior na cabeça. De alguma forma, eu só conseguia prestar atenção na pessoa diante de mim. O sofrimento do paciente à minha frente começou a importar de novo e, o que é mais importante, percebi que podia oferecer às pessoas meus cuida-dos, não apenas uma receita. Meu dia de trabalho ainda é difícil, com todo tipo de cobranças, mas estou menos estressada. Sinto que o que faço tem um significado e estou mais equilibrada. Agora pretendo continuar praticando a medicina e a compaixão.

Comemoro o fato de nunca estarmos totalmente livres dos ditames da compaixão. Nascemos à mercê dos cuidados de alguém. Crescemos e chegamos à idade adulta porque outras pessoas cuidaram de nós. Mes-mo no auge da autonomia da maturidade, a presença ou a ausência da afeição dos outros é capaz de determinar nossa felicidade ou tristeza. Essa é a natureza humana. Somos vulneráveis, e isso é bom. Um coração sem medo abraça essa verdade fundamental da condição humana. Po-demos desenvolver a coragem para ser mais compassivos com o mundo e viver com o coração aberto para a dor – e a delícia – do que significa ser humano. Como somos extremamente sociais e morais, cada um de nós anseia por ser reconhecido e valorizado. Queremos ter importância, sobretudo na vida das pessoas que amamos. Gostamos de acreditar que nossa existência serve a um propósito, e estamos sempre em busca de sentido. A conexão com os outros, a diferença real que podemos fazer na vida dos demais e a alegria trazem valor e propósito à nossa existên-cia – esse é o poder da compaixão.

PARTE I

Por que a compaixão

importa

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1O segredo mais bem

guardado da felicidadeCOMPAIXÃO

O que é aquilo que, quando você tem, faz com que possua também todas as outras virtudes? É a compaixão.

– ATRIBUÍDO AO BUDA

Que sabedoria você pode encontrar que seja maior que a bondade?– JEAN-JACQUES ROUSSEAU (1712–1778)

Minha mãe morreu quando eu tinha 9 anos. Na época eu estava num internato para refugiados tibetanos em Shimla. Meus pais eram par-

te de um grupo de mais de 80 mil refugiados que haviam deixado o Tibete depois da fuga do Dalai Lama para a Índia, em 1959. Muitos desses, inclu-sive meus pais, terminaram em acampamentos de construção de estradas no norte da Índia. Como o Tibete tinha sido anexado à República Popu-lar da China, a Índia, país vizinho, de repente se viu precisando defender uma fronteira de mais de 3 mil quilômetros de extensão. Daí a urgente necessidade de novas estradas. Os tibetanos recém-chegados eram a mão de obra ideal para enfrentar o desafio de construir estradas em altitudes ele-vadas. Meus pais trabalhavam na estrada da pitoresca estação na colina de Shimla, uma cidade a quase 2 mil metros de altitude, na montanhosa fron-teira com o Tibete. Mas, apesar das dificuldades físicas, das mudanças de acampamento a cada poucos meses e de estarem longe dos filhos na maior parte do tempo, eles conseguiram criar boas memórias de minha primeira infância. Eu ainda me sinto aquecido e grato ao lembrar aqueles anos.

Mais tarde descobri que minha mãe morrera de uma causa totalmente

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evitável. Enquanto dava à luz minha irmã no acampamento, ela sofreu um sangramento complicado pela poeira da estrada e a falta de cuida-dos médicos. Pouco tempo depois, fez o trajeto de seis horas de ônibus de Shimla a Dharamsala para visitar meu pai, que estava muito doente em uma clínica tibetana. Ela morreu alguns dias após sua chegada. A essa altura, meu irmão mais novo já estava na vila de crianças tibetanas em Dharamsala e, como não havia ninguém para cuidar de minha irmã recém-nascida, ela também foi deixada aos cuidados da vila. Eu me lem-bro de quando visitei o “quarto dos bebês”, o bangalô de teto verde que tinha uma fileira de berços onde minha irmã vivia junto de outras crian-ças pequenas, muitas delas órfãs.

Já meu pai, depois que se recuperou totalmente, tornou-se monge e foi morar num mosteiro.

Para minha sorte, havia o tio Penpa. O irmão da minha mãe era um homem alto e magro, tinha maçãs do rosto proeminentes e mancava um pouco por causa de um problema no joelho. Ao contrário do meu pai, que usava o cabelo no estilo tradicional tibetano, com duas longas tran-ças vermelhas enroladas na cabeça, tio Penpa mantinha os cabelos curtos e “modernos”, complementados por um fino bigode. Como tinha sido monge, ele sabia ler e conseguia até entender algumas placas de ônibus e trens em inglês. Numa época em que me sentia um órfão, tio Penpa me tratou como se eu fosse seu filho. Duas de suas filhas estavam no mesmo internato que eu e, toda vez que meu tio ia vê-las ou levá-las de férias para o acampamento de construção de estradas, eu ia junto.

Ele dava a cada um de nós a mesma quantidade de trocados: duas rupias indianas – cerca de 5 centavos de dólar. Quando cresci e entendi melhor as dificuldades que meu tio e meus pais enfrentaram naqueles primeiros dias como refugiados na Índia, passei a apreciar ainda mais sua compaixão e sua bondade. Eram estranhos em um novo país, viven-do em tendas improvisadas à beira da estrada, sob a chuva impiedosa das monções. O dinheiro era escasso, mas meu tio partilhava o pouco que tinha. Tio Penpa se tornou uma das pessoas mais importantes da minha vida e continuamos próximos até sua morte, apesar de todas as mudanças que me levaram para longe de seu mundo familiar.

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Nascidos para criar vínculos

O educador americano Fred Rogers certa vez disse: “Quando eu era pe-queno e via coisas assustadoras no noticiário, minha mãe dizia: ‘Procure os que estão ajudando. Você sempre vai ver alguém que está ajudando.’” Se olharmos bem, sempre podemos encontrar pessoas que estão aju-dando – com gestos grandes ou pequenos –, porque isso é algo que nós, humanos, nascemos para fazer.

Meu tio Penpa não era um santo. Mas ele, como todos nós, havia sido dotado da capacidade natural de sentir a dor do outro e se preocu-par com seu bem-estar. Indivíduos extraordinariamente compassivos, como Madre Teresa e o Dalai Lama, podem até parecer pertencer a uma espécie diferente, mas também são humanos. No entanto, nosso instin-to para a compaixão é mais como nossa capacidade de aprender uma língua do que uma característica inata como, digamos, a cor de nossos olhos. Nem todo mundo vai se tornar um Shakespeare, mas, através da exposição e da prática, podemos nos tornar especialistas numa língua à nossa própria maneira. A compaixão de Madre Teresa e do Dalai Lama se destaca porque eles trabalharam para desenvolvê-la. A semente da compaixão está presente em todos nós.

Além disso, pequenos atos de compaixão podem ter um impacto maior do que se imagina.

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Historicamente, no Ocidente, ao menos desde o Iluminismo – sobre-tudo desde a teoria da evolução de Darwin –, a visão dominante propa-ga a ideia de que somos uma espécie egoísta e que a competição é nossa maior força motivadora. Thomas Huxley, muitas vezes descrito como o “cão de guarda” de Darwin por sua tenacidade em divulgar as ideias do cientista, via a existência humana como um espetáculo de gladiadores no qual “o mais forte, o mais rápido e o mais astuto sobrevivem para lutar no outro dia”. Tomando como base essa suposição de que nossa natureza é essencialmente egoísta, cientistas e filósofos passaram a se es-

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forçar para encontrar no egoísmo a motivação por trás de todas as ações humanas. Se o interesse por trás de um comportamento particular ainda não tivesse sido revelado, a explicação estava incompleta, especialmen-te entre os pensadores que tinham formação científica. A ideia de que algum comportamento humano pudesse ser realmente desinteressado era descartada como simples ingenuidade. Na melhor das hipóteses, o altruísmo era tido como um comportamento irracional, possivelmente nocivo para a pessoa que o adotasse; na pior, os altruístas não passavam de hipócritas ou estavam enganando a si mesmos.

Sempre achei esse ponto de vista pouco generoso. Em meus anos de formação, quando era um jovem monge, aprendi, segundo a tradição budista, que a compaixão (assim como outras características positivas) é uma qualidade inata e que sua expressão através da bondade é algo completamente natural. Tudo é uma questão de cultivar o que temos de melhor e conter nossas tendências destrutivas, como a raiva, a agressivi-dade, a inveja e a cobiça.

Eu tinha muitas discussões sobre o altruísmo com meus colegas em Cambridge. Citava exemplos de atos de bondade e compaixão, mas al-guém sempre contrapunha: “Ele deve ter ganhado alguma coisa, senão não o faria.” Por isso, durante toda a minha carreira, venho buscando dissidentes do paradigma do egoísmo. Suas fileiras estão crescendo no Ocidente e você vai conhecer vários deles ao longo deste livro. O filó-sofo americano Thomas Nagel, por exemplo, defende que o altruísmo não é incoerente, pelo menos em princípio, e o psicólogo Daniel Batson passou grande parte de sua vida profissional demonstrando que o com-portamento humano genuinamente desinteressado existe sim. Parece que não demos crédito suficiente a nós mesmos – e nos tornamos presas da profecia autorrealizável do egoísmo.

Eu sou o outro

Hoje, mesmo no meio científico, há um crescente reconhecimento de que a visão egoísta da natureza humana é simplista demais. Além desse

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traço, os estudos também devem levar em conta o importante papel que o instinto de cuidado desempenha como motivador das ações humanas. Agora sabemos que a cooperação esteve lado a lado com a competição durante a evolução humana. Grande parte da força desse novo movi-mento científico vem do estudo da empatia. Novas pesquisas nas mais variadas disciplinas vêm demonstrando que somos motivados em gran-de parte pela empatia.

A empatia é nossa capacidade natural de entender o sentimento do outro e partilhar sua experiência. Ela tem dois componentes: uma res-posta emocional aos sentimentos de alguém e a compreensão cognitiva da situação. A resposta emocional pode tomar a forma de ressonância, na qual experimentamos uma emoção semelhante à da outra pessoa – uma espécie de sentir com o outro –, ou de lamento – sentir pelo outro –, sem chegarmos a sentir o que aquela pessoa está sentindo.

A palavra empatia foi usada pela primeira vez pelo psicólogo Edward B. Titchener em 1909 para traduzir a complicada palavra einfühlungs-vermögen, surgida em algum ponto do século XIX. O sentido literal des-se termo alemão é “ser capaz de sentir junto” e conota a sensibilidade aos sentimentos do outro. Apesar de ser uma palavra tão recente, as pessoas reconhecem esse fenômeno há muito tempo. Esse conceito está no coração da Regra de Ouro, que é a base ética de todas as principais tradições espirituais: “Não faça aos outros o que não quer que façam a você.” Numa das formulações budistas dessa regra – “Tome seu corpo como exemplo e não faça mal aos outros” –, a conexão com a empatia é ainda mais explícita. Também podemos encontrar essa ideia em fon-tes não religiosas. No romance filosófico Emílio, ou Da educação, Jean--Jacques Rousseau pergunta: “Como podemos nos deixar comover pela piedade a não ser nos transportando para fora de nós mesmos e nos identificando com o sofredor?” O filósofo escocês David Hume com-para nosso sentimento natural em relação às outras pessoas – o modo como suas dores e seus prazeres ressoam em nós como se fossem nossos – à maneira como as cordas de um violino reverberam com os sons das outras cordas. O próprio Charles Darwin falou de nossos “bem-dotados instintos sociais” e sugeriu que eles “levam um animal a ter prazer na

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companhia de seus pares, a sentir certa simpatia por eles e lhes prestar vários serviços”.

A tradição budista expressa ideias semelhantes a partir de uma pers-pectiva diferente. Lemos muito sobre a capacidade natural de empatia que surge de nosso sentimento de conexão ou identificação com o ou-tro. Alguns dos primeiros textos budistas descrevem essa identificação como “uma apreciação clara” da natureza senciente do outro, enquan-to outras fontes a caracterizam como “uma noção de consideração pelo outro” ou a “valorização do outro”. Desse modo, quando sentimos empatia, não estamos apenas reconhecendo os sentimentos do outro, mas também honrando-os.

No cérebro, a empatia envolve diversos sistemas importantes. Primei-ro, e antes de tudo, o sistema límbico, conhecido especialmente por seu papel no processamento de sinais emocionais. Depois, a empatia ativa redes neurais que fazem parte de um sistema de criação de vínculos, que tem papel crucial na interação entre uma criança e sua mãe, por exem-plo. Por fim, quando surge como resposta ao sofrimento de alguém, a empatia está associada ao que cientistas chamam de matriz da dor, as regiões do cérebro associadas a nossa experiência pessoal de dor. Ima-gens do cérebro indicam que a empatia tem raízes profundas em partes evolutivamente antigas do cérebro, assim como em partes mais novas, como a região cortical, que nos permite assumir a perspectiva do ou-tro. Descobertas da neurociência indicam também que, pelo menos na experiência humana da empatia, há uma conexão íntima entre nossas percepções e atitudes, de um lado, e as emoções e motivações, de ou-tro. Assim, se mudamos nossa percepção e nossas atitudes em relação a alguém, podemos na verdade mudar o modo como nos sentimos em relação a essa pessoa.

Aonde a pesquisa está nos levando?

Na tenra infância, onde estão as raízes do afeto e da bondade? Dois psi-cólogos, Felix Warneken e Michael Tomasello, examinaram essa ques-

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tão fazendo experimentos. Queriam saber se bebês (de 14 a 18 meses) demonstram uma vontade genuína de ajudar. Um dos experimentos envolveu alguém pendurando uma toalha num varal, acidentalmente deixando o pregador cair e fingindo não conseguir pegá-lo. Em outro cenário, o pesquisador tenta colocar uma pilha de revistas dentro de um armário, mas finge não ser capaz de abrir a porta porque suas mãos es-tão ocupadas. Em ambas as situações, quase todas as crianças tomaram uma atitude e ajudaram. Em estudos subsequentes, Warneken e Toma-sello descobriram que as crianças estavam dispostas a ajudar mesmo quando isso envolvia alguma dificuldade ou interrompia a brincadeira.

O curioso é que também descobriram que recompensar as crianças era contraproducente. As que foram recompensadas se tornaram me-nos propensas a ajudar no futuro do que as que nunca tinham sido re-compensadas. Outros estudos também mostraram que crianças muito pequenas, de 6 meses, parecem preferir brinquedos que simulem um comportamento de ajuda àqueles que o impedem. Como eu gostaria que já tivesse conhecimento desse exemplo em minhas discussões sobre o egoísmo em Cambridge.

Pessoalmente, fiz descobertas semelhantes com minhas filhas. Quan-do a mais velha, Khando, tinha cerca de 15 meses, meu sogro estava à espera de uma cirurgia de quadril e sentia muita dor. Precisava de uma bengala para andar e, com frequência, para reduzir a dor, deitava de bar-riga para baixo na cama. Sem que ninguém tivesse mandado, Khando começou a levar a bengala e a oferecê-la sempre que percebia que o avô precisava se levantar.

O que todas essas descobertas sugerem é que nossa capacidade de realizar atos de generosidade, de demonstrar um comportamento al-truísta e sentir empatia e compaixão é inata, não algo que aprendemos durante a socialização ou pela exposição cultural. Apenas mais tarde, com a socialização, começamos a diferenciar aqueles que merecem nos-sa bondade dos que não a merecem. Em certa medida, Rousseau estava certo ao falar da influência corruptora da sociedade sobre o puro instin-to de bondade de um bebê. Como argumentou Richard Davidson, pio-neiro no campo da ciência contemplativa, se nossa capacidade natural

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de sentir compaixão é parecida com nosso potencial linguístico, então alguém que não encontre a compaixão (ou a linguagem) em seus anos de formação pode deixar de desenvolver ou expressar essa capacidade.

Os benefícios da compaixão

Empatia é sentir por (ou junto de) outra pessoa e entender seus senti-mentos. Sobretudo quando testemunhamos alguém sofrendo, a com-paixão surge a partir da empatia, acrescentando a ela a vontade de que o sofrimento acabe e o desejo de fazer algo a respeito. A compaixão é mais um estado de empoderamento do que apenas uma resposta empática à situação. A bondade é a expressão dessa compaixão por meio da ajuda prestada, uma forma básica de altruísmo. A compaixão é o que permite que nossa reação empática se manifeste na forma de bondade.

Em algum ponto da vida, a maioria de nós experimentou o poder da bondade – a compaixão em ação. Já recebemos a generosidade de alguém, como meu tio Penpa fez comigo, e fomos uma fonte de genero-sidade para alguém. Seja um simples sorriso ou um aceno de um colega quando ansiamos pelo reconhecimento de alguém, um amigo ouvindo com paciência quando reclamamos de alguma frustração, um conselho sábio de um professor que realmente se importa conosco num momen-to crítico, o abraço amoroso do cônjuge quando estamos abatidos ou a ajuda de alguém durante um momento muito difícil – quando os raios da bondade chegam até nós, nos sentimos relaxados, reconhecidos e valorizados, nos sentimos afirmados. No entanto, costumamos esquecer de realizar atos bondosos ou não os apreciamos o suficiente. Ajudar os outros é parte do cotidiano de pais, cuidadores de idosos, profissionais da área de saúde e professores – a bondade é tão onipresente que nos acostumamos com ela e deixamos de lhe dar o devido valor. Ou a consi-deramos um extra, algo que não é essencial, um luxo para quem se dê o trabalho de despender o tempo e a energia necessários. Mas, na verdade, o nosso mundo depende da oferta e da aceitação de atos de bondade.

A maioria de nós dirá que costuma sentir compaixão. Como está lendo

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este livro, você provavelmente também diria que isso é parte importante de sua identidade. Mas, não raro, esses sentimentos param por aí. A me-nos que trabalhemos a compaixão, a pratiquemos e mudemos nossos hábitos, transformando-a numa força ativa em nossa vida, ela continua-rá sendo apenas algo que nos acontece – uma reação automática à dor e à necessidade de nossos entes queridos ou ao sofrimento agudo de um estranho. Se ficarmos por aí, não conseguiremos explorar o poder transformador da compaixão.

Aceitando a bondade

Você consegue pensar em alguém que na sua vida tenha sido uma figura de bondade – cuja mera lembrança o preenche de alegria e gratidão? Pode ser um professor que o tenha incentivado na escola, ajudando-o a reconhecer seus pontos fortes no início da vida. Pode ser uma amiga leal que o faz sem-pre lembrar que ela está ao seu lado. Ou podem ser seus pais, que lhe deram uma base poderosa enquanto você crescia. Se ninguém lhe vier à memória, deixe a questão em aberto e torne a pensar nela amanhã.

Por que a bondade dos outros, sobretudo quando a aceitamos em al-gum ponto muito difícil da vida, deixa uma marca tão profunda em nossa mente? A resposta simples é que atos desse tipo nos tocam no nível mais profundo de nossa humanidade – onde somos mais humanos.

Todo mundo sabe que a bondade que recebemos dos outros nos faz bem, mas nem todos se beneficiam da mesma forma. Essa variável pa-rece ser influenciada pelo nível de compaixão de cada um. Uma equipe de cientistas estudou 59 mulheres em São Francisco. As participantes preencheram um questionário que media seu nível individual de com-paixão. Então foram divididas aleatoriamente em dois grupos. Uma se-mana depois, foram a uma sessão num laboratório em que precisavam fazer três coisas: proferir um discurso na presença de dois pesquisado-res, participar de uma entrevista e submeter-se um teste de matemática. Cada uma teve cinco minutos para pensar num discurso, com eletrodos na cabeça para medir suas ondas cerebrais e certas funções corporais.

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Num dos grupos, um dos pesquisadores fazia comentários positivos, como “Você está indo bem”, sorria e acenava em aprovação ou fazia ou-tros gestos afirmativos enquanto as participantes estavam envolvidas em suas tarefas. Para o outro grupo, os pesquisadores não ofereceram qual-quer incentivo positivo.

As participantes que tiveram pontuação mais alta em seu nível de compaixão e receberam sinais de incentivo dos pesquisadores apre-sentaram pressão sanguínea mais baixa, menor presença de cortisol e maior variabilidade dos batimentos cardíacos – indícios associados à saúde física e ao bem-estar social, especialmente durante a tarefa mais estressante de todas: o discurso. Elas também relataram gostar mais dos pesquisadores. Esses efeitos não foram observados naquelas que tinham um baixo nível de compaixão e receberam gestos de incentivo nem na-quelas que, apesar dos altos níveis de compaixão, não receberam enco-rajamento. Ao resumir suas descobertas, os pesquisadores notaram que “as pessoas mais compassivas podem ser mais beneficiadas pelo incenti-vo dos outros, particularmente em situações de estresse agudo”. Em ou-tras palavras, para nos beneficiarmos mais da generosidade dos outros, temos que estar com nossa própria generosidade a postos.

O prazer de ajudar

Trata-se de uma via de mão dupla: quando fazemos algo bondoso a outra pessoa por compaixão, nos sentimos bem porque a bondade afirma um traço fundamental da condição humana – a necessidade e a gratidão pelos vínculos com outros seres humanos. A compaixão e a bondade também nos libertam do confinamento sufocante aos nossos próprios interesses e nos levam a sentir que fazemos parte de algo maior. Se em geral nos arrastamos pela existência diária, cegos pelo egoísmo e pela ruminação, a compaixão nos tira os antolhos e coloca nossa vida em perspectiva.

Não é surpresa nenhuma, portanto, que os cientistas tenham iden-tificado efeitos positivos da compaixão no cérebro. Quando ajudamos alguém devido a uma preocupação genuína por seu bem-estar, nossos níveis de endorfina – o hormônio associado à sensação de euforia –

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aumentam, causando o que conhecemos como “o prazer de ajudar”. Em estudos nos quais os participantes eram orientados a estender a com-paixão aos outros de forma consciente, os centros de recompensa no cérebro foram ativados – a mesma área cerebral que se acende quando pensamos em chocolate ou outra guloseima. Assim, em certo sentido, meus colegas de Cambridge estavam certos: quem pratica compaixão recebe uma recompensa, embora não no sentido egoísta que eles supu-nham. A satisfação advinda de uma ação altruísta é efeito dela, não seu objetivo. Esta é a pegadinha – feliz – da compaixão: quanto mais ajuda-mos os outros, mais saímos ganhando.

Outros estudos mostraram que crianças relataram um aumento em seu nível de felicidade quando foram encorajadas a agir com bondade e que se envolver em atos desse tipo aumenta sua aceitação entre seus pares – algo muito importante para os adolescentes.

O fato de ficarmos mais felizes quando estamos menos preocupados com nossa própria felicidade é um paradoxo. Da sensação de inspira-ção à paixão, nossas experiências mais profundas de felicidade surgem quando transcendemos nossa estreita individualidade. O nascimento de minha primeira filha me vem à mente. Mesmo num nível mais prosaico, sabemos que tendemos a nos esquecer de nós mesmos quando viven-ciamos um bom momento. O contrário também é verdadeiro: a inibição que sentimos quando estamos muito preocupados com o que podem pensar de nós é uma forte barreira à felicidade. Às vezes as pessoas che-gam a extremos destrutivos apenas para escapar dessa sensação – como, por exemplo, abusando do álcool e de outras drogas.

Quando sentimos compaixão em relação a alguém, passamos a ver o mundo sob uma luz mais positiva. Na superfície, isso parece não fa-zer sentido. Um pouco de bom senso já é suficiente para sugerir que o foco da compaixão no sofrimento faria o mundo parecer sombrio e nos deixaria mais pessimistas. No entanto, um estudo do qual participei em Stanford sugere o oposto.

Mostramos aos voluntários imagens de rostos de pessoas e pedimos que, de forma consciente, sentissem compaixão por algumas delas. Depois de uma pausa, os participantes viram imagens de obras de arte

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moderna e as avaliaram. Entretanto, antes de cada slide, uma das imagens de rostos anteriores piscava por uma fração de segundo, rápido demais para que isso fosse percebido conscientemente. Os voluntários deram no-tas mais altas às obras de arte que apareceram depois dos rostos para os quais tinham estendido sua compaixão antes. Essa ligação – entre sentir compaixão e perceber o mundo sob uma luz mais positiva – pode ex-plicar por que indivíduos mais compassivos em geral tendem a ser mais otimistas também.

Quanto mais compaixão, mais propósito

Para mim, o que a compaixão e a bondade têm de melhor é o modo como dão propósito à vida. Não há nada como se sentir útil. Seja em casa ou no trabalho, quando conseguimos fazer alguma diferença aju-dando os outros, nos sentimos cheios de energia e orientados, mais efi-cazes e controlados. Ter um propósito na vida é um dos fatores cruciais para a felicidade pessoal – e chega a afetar nossa longevidade.

Um estudo amplo sobre o efeito de três meses de meditação com práticas de compaixão descobriu efeitos interessantes sobre a telome-rase dos participantes, uma enzima que repara nossos telômeros. Essas estruturas ficam na ponta das moléculas de DNA e vão encolhendo à medida que envelhecemos. Os participantes cuja avaliação indicou que possuíam um claro sentido de propósito na vida tiveram um aumen-to na telomerase, sugerindo um retardamento do processo de envelhe-cimento. Diversos outros estudos de grande escala em populações de idosos também mostraram como o voluntariado desacelera o envelhe-cimento (mais uma vez, esse benefício foi observado apenas quando o trabalho foi feito com o desejo sincero de ajudar os outros).

Quanto mais compaixão, menos estresse

O Dalai Lama com frequência diz que ter mais compaixão pode fazer com que nos sintamos menos estressados. Isso também pode parecer sem sentido, já que a compaixão depende de reconhecermos os fatos

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desagradáveis da vulnerabilidade e do sofrimento – nossos e dos outros –, mas a ciência concorda. O truque, como no caso da felicidade, parece ser ficarmos livres do estresse do julgamento e das preocupações em relação a nós mesmos. Ficamos mais leves quando tiramos o foco de nossos próprios interesses – e do peso que costuma vir com eles – e nos voltamos para os outros. Os causadores de estresse podem continuar existindo, mas deixarão de nos afetar tanto. Isso porque o que torna nossa resposta normal ao estresse tão intensa é a forma como ele pesa e parece prestes a nos engolir. A compaixão, por outro lado, nos deixa mais leves. Sentimos que nossa carga individual diminui um pouco, a colocamos em perspectiva e percebemos que não estamos sozinhos.

Outro fator que faz a compaixão ter esse efeito benéfico sobre o es-tresse é a postura compreensiva e tolerante que tende a acompanhá-la. Ficamos menos incomodados e ofendidos pelos outros quando senti-mos compaixão em relação a eles. Com maior compaixão – sobretudo por nós mesmos –, passamos a ser mais gentis e pacientes com nossas próprias falhas. Quando nos julgamos de forma muito severa, sentimos vergonha e tentamos esconder nossas imperfeições – e isso é muito es-tressante! Com a sinceridade, a aceitação e a transparência que vêm com a autocompaixão, não temos mais nada a esconder. E, com nada a es-conder, temos menos coisas de que ter medo.

Um estudo de graduandos de Harvard que estavam se preparando para o processo seletivo de programas de pós-graduação mostrou como uma simples intervenção usando “reavaliação” – encarando os sintomas relacionados ao estresse de forma positiva (por exemplo, constatando que a taquicardia previa um desempenho melhor, não pior) – mudou a forma como os estudantes reagiram ao estresse dos exames. Aqueles que reavaliaram a situação, além de conseguirem melhores notas nos testes, também conseguiram retornar a seu estado normal mais rápido depois do evento estressante. Na verdade, a falta de autocompaixão é tão estressante e endêmica no mundo moderno que o próximo capítulo trata apenas dessa questão.

Finalmente, como já vimos, a compaixão, por nos trazer maior apoio social, tem efeito provado contra os impactos negativos do estresse a

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longo prazo. O conforto proveniente da autocompaixão ajuda a liberar o hormônio oxitocina – o mesmo liberado por mães enquanto amamentam seu bebê –, associado a níveis reduzidos de inflamação no sistema cardio-vascular, um importante fator em doenças do coração. Como veremos adiante, estudos também mostraram como cultivar a preocupação pelo bem-estar dos outros fortalece o tônus do nervo vago, que regula nossa frequência cardíaca, modula os níveis de inflamação do corpo e é um importante marcador de nosso estado geral de saúde.

A cura para a solidão

A compaixão contribui para relacionamentos melhores. A bondade age como a cola que mantém os vínculos com nossos entes queridos intactos e nos protege contra rompimentos que as desavenças e o distanciamento emocional podem causar. Pesquisadores também descobriram que a co-nexão social fortalece o sistema imunológico. Assim, a bondade, como fator-chave para a criação e a manutenção de nossas relações sociais, aju-da a nos mantermos saudáveis. Em relacionamentos amorosos, ser bon-doso e gentil nos torna mais atraentes. Olhando para trás, hoje percebo que algumas das coisas que me atraíram em minha mulher foram sua gentileza, seu grande coração e o lindo sorriso que os acompanha.

A compaixão, portanto, é uma grande ferramenta contra a solidão, que é uma das mais dolorosas formas de sofrimento. Ao nos ajudar a criar vínculos, esse sentimento dissolve as barreiras que fazem com que nos sintamos isolados. A importância desse efeito colateral não pode ser desprezada. Um estudo recente da Universidade de Chicago acompa-nhou mais de 2 mil pessoas acima de 50 anos pelo período de seis anos e descobriu que a solidão extrema tem o dobro de chance que a obesi-dade e a hipertensão têm de ser a causa da morte entre idosos. Aqueles que relataram ser solitários tinham um risco 14% mais alto de morrer. Alguns estudos sugerem que a solidão extrema é mais perigosa que o fumo. Trata-se de uma dor em nosso “corpo social” que precisa ser re-mediada se quisermos levar uma vida saudável. As pessoas solitárias são como peixes nadando longe de um cardume, expostos aos predadores.

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A vigilância constante que uma ameaça desse tipo exige está associada a níveis muito mais altos de cortisol pela manhã – é lutar ou fugir antes mesmo de o dia começar. Com o tempo, a solidão prolongada prejudica nosso equilíbrio hormonal e danifica o sistema nervoso.

Infelizmente, a solidão está se tornando uma epidemia. Isso com certeza terá implicações mais sérias, tanto em termos de sofrimento individual quanto de custos públicos de saúde. Um estudo sociológico descobriu que cerca de 25% dos americanos não têm com quem se abrir. Uma pesquisa britânica similar, de 2012, revelou que mais de um quinto dos participantes se sentiam sozinhos a maior parte do tempo – e um quarto deles relataram que passaram a se sentir ainda mais sozinhos ao longo da pesquisa, que durou cinco anos.

Não há dúvida de que existe uma ligação entre a solidão dissemina-da na atualidade e a ênfase da cultura contemporânea na autonomia e no estilo de vida individualista, que tendem a enfraquecer as conexões sociais. Será que a ascensão de redes sociais como o Facebook pode re-verter essa tendência cultural? Até agora, as pesquisas foram inconclu-sivas. É cedo demais para dizer, mas eu duvido muito. Na verdade, com o declínio da interação ao vivo, temos grandes chances de que a geração mais jovem experimente a solidão de forma ainda mais aguda.

Uma vez vi o Dalai Lama abraçar um completo estranho. Sua San-tidade participava de um seminário sobre budismo e psicoterapia em Newport Beach, na Califórnia. Certa tarde, entre o pequeno grupo de pessoas que esperavam do lado de fora da casa onde o Dalai Lama estava hospedado, um homem visivelmente perturbado gritou para ele. Sua Santidade foi ao seu encontro e, com muita paciência, ouviu o homem desfiar suas reclamações sobre a falta de sentido da vida. O Dalai Lama pediu então que ele pensasse nas coisas boas da vida e na importância de sua presença na vida de seus entes queridos, assim como em tudo de bom que podia fazer na vida, ajudando os outros. Nada funcionou. En-tão, por fim, Sua Santidade parou de falar e lhe deu um abraço apertado. O homem soluçou alto e depois ficou calmo e relaxado.

Numerosos estudos já mostraram que os vínculos sociais da vida real são a cura para a solidão – o que não é nenhuma surpresa. Abrir

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o coração aos outros, se preocupar com as pessoas e permitir que nosso coração seja tocado pela bondade dos demais – vivendo a vida de modo a expressar nossa compaixão essencial – são medidas capazes de criar fortes conexões sociais. Nascemos para estabelecer vínculos. Nossa ân-sia por conexão – não apenas com nossos irmãos humanos, mas tam-bém com os animais – é tão profunda que determina nossa experiência da felicidade.

A bondade é contagiosa

Uma das mais animadoras descobertas recentes da ciência sobre esse assunto, especialmente se levarmos em consideração a epidemia de so-lidão, é que a bondade é contagiosa. A gentileza dos outros nos torna mais gentis. Nós não apenas nos sentimos bem quando vemos alguém ajudar outra pessoa como também somos levados a ajudar. Alguns pes-quisadores chamaram esse fenômeno de “elevação moral”, utilizando a observação de Thomas Jefferson sobre como ficamos inspirados quando vemos ou pensamos em atos de caridade. Imagine um efeito dominó da bondade. Partindo de cada um de nós, seus efeitos podem se espalhar, criando novas consequências, e assim por diante.

Na próxima vez que alguém for bondoso – mostrando preocupação ou ajudando alguém em dificuldade –, veja se consegue perceber qual é sua reação instintiva. Antes de qualquer pensamento consciente, seus olhos se acendem? Seu coração se sente elevado? Sua boca forma um sorriso?

Três cientistas – das universidades de Cambridge, Plymouth e Cali-fórnia – demonstraram a natureza contagiosa da compaixão com um experimento engenhoso. Eles compararam estudantes universitários di-vididos aleatoriamente em dois grupos. Um grupo assistiu a trechos de programas de comédia ou história natural enquanto o outro foi expos-to a cenas edificantes (do programa de Oprah Winfrey) que envolviam pessoas ajudando outras. Informados de que o experimento testaria sua memória, os participantes precisavam completar uma tarefa no com-putador relacionada ao que tinham assistido. Quando a tarefa suposta-mente deveria começar, o pesquisador fingia ter dificuldade para abrir o

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arquivo. Depois de fracassar em diversas tentativas, dizia ao participante que ele ou ela podia ir embora e receberia os créditos de participação do mesmo jeito. Quando o estudante se levantava para sair, o pesquisador perguntava, como se tivesse pensado nisso apenas naquele momento, se o voluntário estaria disposto a preencher outro questionário para ajudar em outra pesquisa. O questionário tinha sido projetado para ser tedioso e chato, e não haveria qualquer recompensa.

Os resultados foram impressionantes. Os participantes que viram atos de bondade tiveram mais propensão a ajudar o pesquisador com o estudo não recompensado. Dos que concordaram em participar, os do grupo que assistira a Oprah gastaram duas vezes mais tempo na tarefa. Testemunhar atos de gentileza nos torna mais compassivos – e a com-paixão é um grande indicador de comportamento altruísta.

Por sorte, as oportunidades para sermos bondosos no cotidiano são abundantes. Podemos dar beijos de bom-dia em nossos entes queridos, ceder o assento no ônibus a uma mulher grávida, deixar um motorista apressado nos ultrapassar no trânsito ou oferecer um ombro a um cole-ga. Podemos também fazer trabalhos voluntários ou doar parte de nossa renda para ajudar os outros. Se pensarmos bem, a maioria de nós tem muitas oportunidades de exercitar a gentileza todos os dias.

E, se não tivermos o hábito de pensar nisso, podemos aprender – a Parte II do livro vai lhe mostrar como.

Em todo o mundo, cada vez mais pessoas têm se organizado para pro-mover a bondade. No movimento “Passe adiante”, em vez de retribuir uma boa ação a quem a realizou, as pessoas espalham a bondade fazen-do algo de bom para alguém diferente. Em muitas escolas essa ideia pas-sou a fazer parte do currículo. No Reino Unido, foi lançada pela BBC, em 2008, uma campanha para promover 1 milhão de “atos aleatórios de bondade”. Imagine se a compaixão não fosse mais um segredo da fe-licidade e se tornasse um valor celebrado, um princípio organizador da sociedade, um motor da mudança?

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