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Os encantes e a cura: os Tremembé e suas concepções sobre a
ação dos encantados na cura espiritual1
Sérgio Góes Telles Brissac2 (MPF/Ceará)
Resumo
A partir de pesquisa etnográfica realizada entre os Tremembé de Almofala, povo indígena que habita o litoral oeste do estado do Ceará, esta comunicação visa delinear as suas
concepções acerca dos encantados e sua relevância nos ritos de cura. Primeiramente, busca-se
descrever, a partir das falas dos pajés ou curadores entrevistados, o que são para os Tremembé os encantados: entidades que tanto podem ser ancestrais como seres presentes no território da
etnia – nas lagoas, nas matas, nos mangues e no mar. Em seguida, evocam-se os inícios da
atuação dos especialistas de cura no contexto da vivência de encontro entre eles e os encantados.
Por fim, apresentam-se múltiplas facetas da cura no trabalho espiritual com esses seres, constatando a abrangência da noção de cura entre os Tremembé.
Palavras-chave: Tremembé, cura, encantados.
Os Tremembé e os encantados
No litoral oeste do estado do Ceará vivem os Tremembé. Desde a década de
1980, os Tremembé de Almofala, município de Itarema, vêm se organizando e
demandando seus direitos como povo indígena, sobretudo a demarcação de sua terra
tradicionalmente ocupada, além dos direitos relativos à saúde, educação escolar e a um
meio ambiente preservado e gerido de forma sustentável. A partir do ano de 2005, tenho
acompanhado as iniciativas dos Tremembé quanto à efetivação desses direitos,
trabalhando como antropólogo no Ministério Público Federal. Ao buscar conhecer esse
povo com o qual trabalho, chamou-me a atenção a sua densa experiência na relação com
o seu território, relação que é revestida de um profundo respeito aos seres espirituais
que nele se fazem presentes, os encantados, ou os encantes. Algumas pessoas vivenciam
essa experiência com uma especial intensidade: os curadores e curadoras.
Neste trabalho, construirei minha argumentação sobretudo a partir das narrativas
de quatro especialistas de cura entre os Tremembé: Dona Maria Lídia, Maninho, Dona
Elita e o Pajé Luís Caboclo. Este último, que na organização social dos Tremembé de
1 Trabalho apresentado na 28ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 02 e 05 de
julho de 2012, em São Paulo, SP, Brasil. 2 Doutor em Antropologia (Museu Nacional/UFRJ) e Analista de Antropologia/Perito do Ministério
Público Federal no Estado do Ceará. Sócio efetivo da ABA.
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Almofala detém o cargo de Pajé, declarou que
“Os encantados são os nossos ancestrais que já se foram. Na época,
nós tinha muitas mata, a mata também é encantada, ela faz parte, e dá
sua grande contribuição com as ervas medicinais. E os nossos
ancestrais, pessoas que já se foram, sem nome, a gente nem conhece mais, há centenários anos atrás, sempre nos contribui na hora da
necessidade da cura, na necessidade da ausência do remédio na
doença, e sempre quem fornece todo esse remédio é as nossas mata, nosso Guajara, nossa Caipora, que faz parte do encanto das mata. Isso,
a sociedade branca não conhece esse segredo. As nossas mata são os
nossos médicos e a nossa medicina que a gente chama de tradicional. Nós temos vários remédios, a grande parte acabou. No nosso caso, dos
Tremembé de Almofala, o batiputá acabou, o milome tá se acabando, a
janaguba tá se acabando, podói se acabou, o tiú, a batata de purga...
Mas ainda existem muitos.” (Entrevista ao autor, 2012).
Figura 1: Pajé Luís Caboclo no quintal de sua casa, Varjota, Almofala, 2011. Foto do autor.
Na compreensão do Pajé Luís Caboclo, os encantados estão relacionados aos
ancestrais e às matas. Por outro lado, “a sociedade branca não conhece esse segredo”,
assim, o domínio dos encantados se configura como a esfera do étnico, é o que se
encontra “dentro” dos Tremembé, em relação ao qual a “sociedade de fora” desconhece.
No interior desse âmbito do segredo étnico, está presente o binômio representado pela
ancestralidade e a natureza. Desta forma, tanto os encantados podem ser aqueles “sem
nome”, os Tremembé que “já se foram”, “há centenários anos atrás”, quanto podem ser
aqueles de nomes específicos, como o Guajara, a Caipora, a Mãe d’Água, que fazem
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parte “do encanto das mata”, ou seja da natureza do território étnico.
A título de comparação, observemos a definição de encantado dada por
Francelino de Shapanan, chefe de terreiro de tambor de mina, tradição maranhense, em
Diadema, São Paulo:
“Encantado é um termo genérico para designar entidades que não são
voduns, orixás ou inquices. No tambor-de-mina, são divindades que descem ao mundo dos vivos com o mesmo prestígio dos deuses
africanos, tendo com estes grandes correlações, relações de respeito e
culto quase que paralelos. Para o povo do tambor-de-mina, o encantado não é o espírito de um humano que morreu, que perdeu seu
corpo físico, não sendo por conseguinte um egum. Ele se transformou,
tomou outra feição, nova maneira de ser. Encantou-se, tomou nova
forma de vida, numa planta, num acidente físico-geográfico, num peixe, num animal, virou vento, fumaça. Está presente entre nós, mas
não o vemos. Ele encantou-se e permaneceu com a mesma idade
cronológica que tinha quando esse fato se deu.” (Shapanan, 2004: 318-319).
As relações entre a encantaria ou pajelança maranhense e as práticas de cura dos
povos indígenas do Ceará já foram observadas em trabalho que escrevi juntamente com
Luciana Nóbrega, apresentado no GT “Curas Espirituais” na 27ª RBA (Brissac e
Nóbrega, 2010: 17). Aqui pode-se observar como a definição apresentada por
Francelino de Shapanan distingue-se do primeiro tipo de encantados a que se refere o
Pajé Luís Caboclo, já que para o chefe de terreiro maranhense “não é o espírito de um
humano que morreu”, e assemelha-se com o segundo tipo de encantado descrito pelo
Pajé Tremembé, aqueles que fazem parte dos encantos da natureza presente no território
étnico. Acerca destes encantados, vejamos o que escreve o antropólogo Gerson Augusto
de Oliveira Júnior, que realizou estudos etnográficos entre os Tremembé:
“Os índios advertem que os rios, os córregos, as lagoas, a chuva e o
mar não se encontram submetidos aos desejos humanos e, por isso,
nos falam da existência de seres divinos que interferem nas ações dos homens sobre o meio ambiente. Ao longo de minha convivência com
os Tremembé, ouvi e registrei depoimentos sobre seres encantados que
atuam como guardiões da natureza. Um deles, conhecido como
Guajara, mora no mangue. Apesar de invisível, manifesta-se em forma humana ou animal. É deveras dissimulado e intimida as pessoas de
diversas maneiras. Costuma interferir nas ações humanas sobre o meio
ambiente, persegue os pescadores e impede que a pesca se realize. Às vezes propõe-se a ajudá-los e aponta alternativas para certas situações.
Não é prudente ignorar seus ensinamentos e desobedecê-lo. O Guajara
não aceita ser contrariado, agindo com rigor e penalizando quem ousa afrontá-lo.” (Oliveira Júnior, 2006: 152).
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Figura 2: Dona Maria Lídia, Barro Vermelho, Almofala, 2011. Foto do autor.
Esse rigor dos encantados, que podem corrigir aqueles que os afrontam ou que
não respeitam a natureza também é afirmado por Dona Maria Lídia, de 71 anos,
moradora do Barro Vermelho, Almofala. Ela conta que seu pai tinha de oferecer um
pouco de fumo à Mãe d’Água, antes de ir pescar:
“Meu pai contava muita história de encante... Ele disse que tinha um
cantinho lá na barra. Olha, minha filha, quando eu ia pescar tinha que ir lá naquele cantinho deixar um fumo pra Mãe d’Água. – E pra quê?
Ora, pra ela me proteger, pra eu pegar peixe. Ali, hoje é só o mar, o
mar comeu muito. Eu me alembro que a gente tinha de passar um
morrinho pra nós ir pro mar. Tudo era barra. Aí ele dizia: o dia que eu não levava o fumo dela, naquele dia eu não pescava nada, e se fosse
pescar em outro canto, levava uma pisa... E como era essa pisa? É
como os pais da gente que pega a gente pelo braço e dá uma pisa? Não! É porque é o encante! A gente fica com o corpo todo dormente,
todo quebrado e é ela! Aí quando a gente ia e levava o fumo, aí não
tinha nada. É a Mãe d’Água, é a Dona do mar e é a Dona do peixe.” (Entrevista ao autor, 2011).
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Essas relações de reciprocidade entre os encantados e os seres humanos
possibilitam que os Tremembé vivenciem uma relação de respeito e proximidade com o
meio ambiente no qual habitam: as matas, as lagoas, as dunas, o mar estão perpassados
pela presença desses seres guardiões. A Mãe d’Água, como diz Dona Maria Lídia, é “a
Dona do mar e é a Dona do peixe”. Esse senhorio exercido por esse encantado sobre as
águas abre aos Tremembé, povo de pescadores, a possibilidade de, em meio à dureza da
vida na pesca, sentirem-se protegidos por um ser poderoso que lhes pode ser propício.
Mais que isso, como afirma, Oliveira Júnior, os encantados revestem de plausibilidade a
própria existência humana:
“Nota-se que as formas como os grupos e as sociedades humanas concebem seres imaginários constituem-se numa evidência clara da
sua concepção de mundo, porque nesta última encontram-se
estabelecidos os limites do que é imaginável, daquilo que é possível e impossível para o domínio do homem. Logo, a maneira como esses
seres – Guajara, Mãe d’Água, Guarapirá – são representados, deve ser
vista como manifestação de uma visão de mundo no qual o homem, os
animais e as entidades mágicas são concebidos como parte indissociável da natureza. Como expressão de uma maneira de pensar
e conceber o real, esses seres articulam-se nas malhas de uma rede
simbólica, conferindo plausibilidade ao mundo e à existência humana.” (Oliveira Júnior, 2006: 158).
Encontrar-se com os encantados e tornar-se curador
Maninho, na faixa dos 30 anos de idade, morador do Barro Vermelho, Almofala,
trabalha com os encantados. Ele disse: “de dez anos pra cá, vivo nessa função”. Ele
narra o início de seu trabalho espiritual:
“Com dez anos de idade, eu tava sofrendo muito. Achei uma mãe de
santo, a Tia Neném. A Dona Alzira, dos Torrões, também me ajudava.
Ela passou um banho pra mim – cebola, alho, descarrego – pra limpar o corpo e ter força pra receber. Vinha primeiro São Jorge, pai de croa,
depois a Rainha do Mar, até doze caboclo em cada linha. Eu só podia
receber no centro. Aí ela foi e fez um encruzo pra eu poder me
concentrar só. Eu afirmo os pontos. Aqui em casa, ou vou nos matos. Eu vou ali nos cajueiros...” (Entrevista ao autor, 2011).
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Figura 3: Dona Elita, da Tapera, junto ao altar de seus trabalhos, 2011. Foto do autor.
É recorrente a afirmação do sofrimento antecedendo a iniciação como curador,
tema, aliás, clássico na fenomenologia da religião (Eliade, 1968: 21-34). Juliana
Gondim3, em artigo sobre as práticas de cura entre os Tremembé, narra a trajetória de
iniciação de Dona Elita, curadora da Tapera que também pude conhecer, e aponta como
são frequentes percursos semelhantes em outros curadores:
“Ao me contar seu processo de iniciação, Dona Elita, como várias outras pessoas que entrevistei, refere-se a ele como uma fase muito
difícil da sua vida, onde não conseguia dar conta de seus afazeres
diários, pois os espíritos tomavam conta de seu corpo a qualquer momento e ela não conseguia controlá-los, o que também estava
acontecendo com o rapaz que havia requisitado o trabalho dos pajés.
Em geral, tais pessoas costumam ter as primeiras visões e ouvir vozes
ainda na infância. Na adolescência ou na fase adulta, estas visões se intensificam e, ocasionalmente, passam a incorporar espíritos e
manifestar sintomas como desmaios, vertigens ou alucinações que são
confundidos com loucura. Esse drama só cessa quando as pessoas decidem aceitar o dom, ou, como muitos depoimentos expressam,
‘aceitar o destino que Deus lhes deu’, procurando desenvolver-se,
frequentando as ‘baias’ ou ‘montando o próprio terreiro e trabalhando com seus encantados’.” (Gondim, 2009: 314).
3 Registro aqui meu agradecimento a Juliana Gondim pelo estimulante diálogo acerca dos encantados e a
cura entre os Tremembé.
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Se na trajetória de iniciação há os primeiros encontros com os encantados,
posteriormente, o curador vai tecendo uma familiaridade com esses seres. Maninho,
quando falou-nos a respeito de uma lagoa próxima de sua casa, a Lagoa Verde, afirmou
que nela mora a Mãe d’Água:
“Na Lagoa Verde tem a Mãe d’Água. É uma mulher muito alva, de
cabelos compridos. Quando a lagoa seca, ela se muda pra Lagoa da Cambôa. Tem também a Rainha do Mar, que não tem rabo de peixe,
ela é a protetora, eu me pego com ela. A Mãe d’Água também não tem
rabo de peixe. Já a Sereia do Mar tem rabo de peixe. A Rainha do Mar incorpora e vem ajudar.” (Entrevista ao autor, 2012).
A afirmação de Maninho, de que a Mãe d’Água é “mulher muito alva” recorda-
me o que dizem os mazatecos, povo indígena do México, com o qual realizei trabalho
etnográfico por ocasião do doutorado (Brissac, 2008), a respeito do Chikon Tokosho, o
“encantado” que habita a mais alta montanha do município de Huautla de Jiménez. Para
os mazatecos, cada lugar tem o seu Dono, o seu Senhor, que é a montanha mais elevada
da região, que é o próprio Chikon, ou o lugar de sua morada. Ora, o Senhor de Huautla,
daquele lugar habitado por pessoas de tez morena, é, assim como a Mãe d’Água para
Maninho, muito alvo. A própria palavra Chikon significa puro, branco, claro,
A propósito, ouçamos a narrativa de Melésio, um curador mazateco que conta a
sua experiência visionária em um rito de honguitos – cogumelos psicoativos – quando
se sentiu chamado a trabalhar para o seu povo:
“E comecei a dizer: o que passa é que em nosso povo há muitos enfermos, não tem dinheiro, não têm remédios. O que busco somente
é se algum dia pudesse saber sobre isso seria pra ajudar os doentes.
Deveras que buscas isso? Se era verdade o que eu estava dizendo. E logo me mostrou uma espécie de balança. Venha, sobe aqui, vou te
pesar. Se aguentas os sofrimentos que vás passar... E disse que teria
que pesar a palavra. Aí me pesou e disse que estava bem. Aí depois me levou como a uma casa, não é casa, mas como uma choça, muito
pobre a choça. Mas por dentro a casa brilhava. Puro branco. Aí estava
uma mesa e uma cadeira. E no meio da mesa uma bíblia. Mas não era
uma bíblia das que lêem os sacerdotes, mas sim era um livro escrito em nossa língua. E me disse o velhinho: Abre! Abre o livro. Choch ai,
abre! Abri o livro. Ele me disse: vás poder ler o que está aí? Eram
palavras em mazateco. Aí disse: Sim, posso. Vocês, os honguitos, vão me explicar o que diz aqui? E comecei a falar um montão de orações
aí.” (Brissac, 2008: 113).
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Quando, em sua vivência iniciática, o futuro curador mazateco pensa em seu
povo, no qual há tantos doentes e necessitados, ele se sente pesado em uma balança,
examinado se será capaz de suportar os sofrimentos que adviriam a ele em seu ofício.
Em seguida, é conduzido a um casebre paupérrimo, que, paradoxalmente, brilhava, era
“puro branco”. O brilho, a pureza e o branco são para os mazatecos atributos do chikon,
palavra que tem como significado literal “puro”. Também Maninho encontra-se com a
pureza e a brancura da Mãe d’Água. Assim como o chikon mazateco, também o
encantado dos Tremembé apresenta-se em sua alva claridade e vem auxiliar os
curadores em seus trabalhos.
A cura nos trabalhos com os encantados
Dona Maria Lídia rememora alguns ritos significativos dos quais participou,
realizados nas matas da região de Almofala:
“Esse negócio de trabalhar, uns chamam macumba, outros chamam
tundá. Tem os encantados do mar, tem os encantados dos astros, tem
os encantados da mata. Tundá é eles, dentro de uma roda, se entoam4...
Que diz que é pegando as forças, vem os guias. Eles falam, dizem que
andam é nos astros, é no mar, é na mata. Eles são os protetor da mata.
Eles, esses encantados, uns são do mar, é um encante do mar. Diz que
é tão bonito lá... Diz que quando é de madrugada parece aqui na terra, o cântico do galo. Eles se acordam como com o cântico do galo. Eu tô
no mar ou tô na terra? Os pescadores perguntam. Aí é que se lembra...
Então são os encante do mar. E na mata, a pessoa que tem essa vocação com eles... Quando a gente entra dentro duma mata, aí houve
uns cochichinhos, aí são eles... Quando a gente olha pra trás não vê
nada. Quando a gente entra dentro da mata, tudo silencioso... parece
que a mata quer falar!” (Entrevista ao autor, 2011).
O trabalho com os encantados, que entre os povos indígenas no Ceará é muitas
vezes chamado de tundá, acontece principalmente durante a baia, ou seja, a dança em
roda, quando os participantes recebem os encantados, ficando entoados. Apresentam-se
os encantes dos astros, das matas e do mar. Dona Maria Lídia evoca a experiência
daqueles que se sentem em contato com os encantados: aqueles que estão no mar, por
um momento não sabem onde se encontram: “Eu tô no mar ou tô na terra?”; aqueles que
estão nas matas, escutam sons estranhos. A forma como ela descreve essa sensação é
4 O termo “se entoar” significa “se atuar”, ou seja, a incorporação dos encantados naqueles que
participam dos trabalhos.
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recorrendo ao paradoxo: “tudo silencioso... parece que a mata quer falar!”, à semelhança
dos versos de São João da Cruz (1988: 583, tradução minha):
“Meu Amado, as montanhas,
os vales solitários, nemorosos, […]
A noite sossegada,
junto aos levantes da aurora; a música calada,
a solidão sonora […]”.
O recurso a essas figuras de linguagem parece buscar dar conta de uma experiência
quase inefável. É algo vivido pela pessoa não apenas em seus pensamentos, mas em
seus sentimentos e em seus sentidos corporais: percepção alterada do tempo e espaço,
audição diferenciada, assim como os demais sentidos, e, além disso, uma vivência
estética: “Diz que é tão bonito lá...” Tudo isso, como observa Maués (2009: 135-139), a
partir das contribuições de Csordas, pode nos conduzir a uma abordagem que vá além
da antropologia de representações e práticas e mesmo de uma antropologia da
performance, não no sentido de que tais enfoques estejam superados, mas sim de que
possam ser postos em diálogo com uma abordagem da corporeidade. Pensar o
embodiment ao estudar a experiência existencial desses curadores é, ao meu ver, buscar
se situar aquém dos produtos culturais para a partir desse lugar intentar captar o que
Csordas, seguindo Merleau-Ponty, chama de começos existenciais:
“A fenomenologia é uma ciência descritiva de começos existenciais [existential beginnings], não de produtos culturais já constituídos. Se
nós pudermos captar esses começos existencias na cura, nós estaremos
bem encaminhados em direção a uma compreensão de sua especificidade experiencial. Nosso objetivo é captar o momento de
transcendência no qual percepção e objetivação iniciam, constituindo
e sendo constituídas pela cultura” (Csordas, 1997: 8).
Em seguida, Dona Maria Lídia continua, descrevendo os trabalhos na mata e
como neles se dava as curas:
Bonito é, negrada, é o trabalho dos encantados na mata. A gente chama encantado, mas é assim como uma pessoa que recebe um guia.
É bonito, na mata. Eu já assisti dois trabalhos. Era de noite, doze hora
em ponto. A senhora que fazia esse trabalho já morreu. Onde foi mesmo? Tem a Baixa do Nego, tem as Pedrinhas, tem as Telhas... é
um monte de lugar pertinho... Nesses lugares ainda tem mata. [...]
Antigamente, não tinha televisão, e era aqui no pé do morro, e o
senhor já morreu, chamava Manoel Mariano, por apelido Manelão. Minha filha, parecia assim um dia de festa, se ajuntava dali da
Camboa, já ia chamando de gente... nós se mandava, quando chegava
10
o dia já vinha raiando! Ele saía curando... No começo do trabalho
dele, ele via, se a pessoa tivesse uma sujeira – sujeira que ele chamava
era os espíritos que andam vagando – ele ia pras matas. Na linha dos curador só vem os véinhos. Aí a gente pode perguntar as coisas pros
véinhos, porque eles já foram da terra, aí eles ensinam tudo: “Eu quero
soltar o meu ponto, a minha doutrina!” (Entrevista ao autor, 2011).
A cura se dá a partir da vinda da linha dos curador. São os véinhos (velhinhos)
que chegam, trazendo seu ponto (ou corimba ou doutrina), ou seja, sua cantiga que os
identifica, permitindo que a assistência fique ciente de que é chegado um momento de
cura. Na visão de Dona Maria Lídia, a cura está sobretudo relacionada com a limpeza de
influências nefastas de espíritos de mortos, que estariam causando em determinadas
pessoas uma sujeira, seja comportamento desequilibrado, seja doença. Por já terem
estado encarnados, os véinhos sabem das coisas da terra, tendo assim maior poder de
curar e de ensinar tudo.
Mas a ação dos encantados não se dá somente em circunstâncias especiais, como
as baias feitas na mata, no passado. Dona Maria Lídia cita também pequenos rituais,
realizados por ela na vida quotidiana:
“Quando a gente tá assim atrás de fazer uma viagem, ou atrás de um
negócio que a gente não sabe se vai dar certo mesmo – isso tudo é os
encantados que ensinou a gente – a gente pega um pires branco, pega perfume, se não tiver florzinha branca, a gente bota três galhinhos de
ramo verde, a gente coloca o pires, pega uma véinha, acende dentro do
pires, coloca os três pinguinhos de perfume e bota acolá num cantinho
e aí reza um Pai Nosso e oferece primeiramente, eles dizem assim, primeiramente ao Nosso Pai Tupã, que é o Nosso Pai Jesus Cristo. A
gente oferece a ele, se vai dar certo aquela viagem, aquele negócio, se
não vai ter rompimento naquela viagem, seja servido que a gente vá em paz e volte em paz. Isso se chama afirmar ponto.” (Entrevista ao
autor, 2011).
Ressalte-se aqui a identidade afirmada entre “Nosso Pai Tupã” e “Nossa Pai
Jesus Cristo”. A respeito dessa presença de elementos indígenas, do catolicismo popular,
assim como das religiões afro-brasileiras, considero que se aplica aqui o que Nóbrega e
eu afirmamos acerca do povo indígena Anacé:
“Compreendemos que nos defrontamos com um sistema simbólico, a
corrente dos encantados, a englobar, em ato, múltiplas realidades. São
desde vivências que poderiam ser consideradas de cunho mais
religioso, e então definidas como pertencentes à esfera das
11
religiosidades indígenas, ou afro-brasileiras ou do catolicismo popular,
até vivências de organização sócio-política, passando também por
outras, preponderantemente relacionadas às práticas de medicina tradicional. Enfim, consideramos eminentemente indígena, porque
próprio da vivência ameríndia, o movimento de englobamento
existencial que pudemos presenciar entre os Anacé.” (Brissac e Nóbrega, 2010: 19).
Dentre as realidades múltiplas englobadas na vivência Tremembé há, até mesmo,
certas tradições esotéricas, como se pode depreender na continuação da fala de Dona
Maria Lídia:
“A gente quer é limpar o caminho da gente, limpar os caminhos dos
filhos da gente, da família da gente. Eu não gosto muito de contar as
minhas coisas não, mas a minha filha, quando ela me dizia: ‘Mamãe,
por caridade me acuda que eu não sei o que faço, com tanto ponto pra eu decorar na minha cabeça!’ Eu digo: ‘Se valha do Rei Salomão! Se
valha, minha filha, a gente tem que se valer por Deus e os
encantados!’ ‘Ah, mamãe essa estória de encantado, eu sei lá!’ Porque elas já são de agora, né? Eu digo: ‘Mas tenha paciência! Se acorde de
madrugada e vá estudar seus pontos que você vai passar.’ Quando ela
chegava era batendo palma, que tinha passado. É muito bom... O Rei
Salomão é o Rei da Ciência, tudo quanto a gente quiser tem que se valer dele. Isso aí tudo é eles que me ensinaram. A gente faz o signo
de Salomão, assim, as cinco pontas, né? Agora, aqui, você vai acende
uma vela aqui, outra aqui, outra aqui, outra aqui, outra aqui; cinco velas, sabe? Agora ali você acenda e fique concentrado, e Deus
primeiramente, e pedindo a Deus que aquela ciência que Deus deu a
Rei Salomão, dê à gente também, pra conseguir! Eu já encomendo essas meninas quando elas vão pra escola... Tem a oração de Rei
Salomão, é tão comprida... Porque na hora que a gente quer conseguir
alguma coisa, a gente reza.” (Entrevista ao autor, 2011).
Rezas, pontos afirmados, baias, oferendas. Muitas são as ocasiões de contato
dos indígenas com os encantes. Quando entrevistei Itamar, liderança de outra terra
Tremembé, o Córrego João Pereira (única Terra Indígena até hoje já homologada no
Ceará), e irmão da Pajé Sebastiana, perguntei-lhe se para realizar uma cura o pajé
precisa se entoar. Segundo ele,
É de acordo com a necessidade. Às vezes basta um banho, uma planta
medicinal. Outras vezes, é preciso até fazer uma oferenda para os
encantados, por exemplo, deixar uma comida num serrote5... Os
serrotes são lugares de moradia de alguns encantados. Teve um pajé, que chegou a desencantar a Lagoa dos Negros; ele se vendeu pro
fazendeiro e enrolou a terra, pra que não acontecesse a demarcação.
5 Os serrotes são pequenos morros, presentes no território étnico.
12
Aí, depois que ele já havia falecido, foi preciso falar com ele. Então
ele veio, pediu muito perdão ao papai, e desenrolou pra que
acontecesse a demarcação. (Entrevista ao autor, 2012).
Com estas palavras de Itamar, fica patente que também as questões da luta da
terra podem ser objeto de cura. Esta abrange múltiplas dimensões, e pode-se relacioná-
la ao bem estar do povo Tremembé. De modo geral, tenho observado que entre os povos
indígenas do Ceará a relação com os encantados desempenham relevante papel nas
mobilizações étnicas.
No que se refere à cura de doenças, especialmente aquelas fisicamente
perceptíveis, as plantas são largamente utilizadas, como afirma o Pajé Luís Caboclo:
“Todos os Tremembé sabem buscar a cura com as plantas. À meia
noite, adoece uma pessoa, ele sabe ir buscar no mato um jeito de curar,
todos os Tremembé sabem isso. Agora, quando é na hora de uma reza, quando é na hora de uma cura, aí tem as pessoas mais tradicional, mas
todos sabem, não ficam parados. Aí tá a importância dos nossos
ancestrais, dos encantados, porque quando chega a hora da necessidade, todos os Tremembé tem visão tradicional pras suas
próprias curas. Ele tem a vocação que na hora que a doença aparece
ele sabe qual é a árvore, qual é a folha, a raspa de pau que ele vai
pegar, ele vai ao mato e traz. E também o Guajara, a Mãe d’Água... Eles auxiliam na base da facilidade de encontrar as plantas medicinais,
porque são os encantes da água, da mata. Agora, pra nós tá difícil por
conta da destruição das nossas matas. Quando a turma destrói as mata, os encantes se ausentam. ” (Entrevista ao autor, 2012).
Ao entrelaçar a presença dos encantados ancestrais com a intuição dos
Tremembé na escolha das plantas medicinais na mata e, ao mesmo tempo, indicar a
relevância dos encantados na defesa da natureza, assim como dizer da ausência desses
seres dos lugares que sofreram degradação ambiental, o Pajé Luís Caboclo apresenta a
profunda unidade da cosmovisão Tremembé e a abrangência de sua noção de cura.
Refazendo o itinerário
Iniciamos o percurso deste trabalho buscando apresentar, a partir das falas dos
curadores, o que são para os Tremembé os encantados, detectando então o binômio que
denominei ancestralidade – natureza: os encantados antepassados sem nome e os
13
encantados com nomes específicos, como a Mãe d’Água, o Guajara, a Caipora,
presentes em locais determinados do território étnico Tremembé. As relações dessas
entidades com os seres humanos são de reciprocidade: o desrespeito à natureza e a eles
suscita o rigor, o respeito e as oferendas motivam uma atuação benfazeja.
Na sequência, nos defrontamos com a experiência de iniciação dos curadores,
frequentemente precedida de provações e sofrimentos. Nesse contexto, se dá um
encontro inicial com os encantados, e se começa a tecer uma relação de familiaridade
entre eles e o curador.
Ao ouvir a narrativa de Dona Maria Lídia, visitamos algumas formas de trabalho
de cura com os encantados. O tundá é talvez a vivência mais intensa, a qual nos
possibilita acenar para a relevância do enfoque antropológico de Csordas, o
embodiment, como via de acesso ao nível pré-objetivo, aquele da experiência
existencial, a qual é prévia aos conteúdos da cultura. A cura se dá aí, muitas vezes, em
estados de consciência diferenciados, e costuma ser relacionada com a limpeza de
influências espirituais nefastas. Continuando a acompanhar a fala da curadora
Tremembé, passamos a observar a cura em situações quotidianas, como as rezas, os
pontos afirmados e as oferendas. Nesse conjunto de práticas rituais, é possível detectar
diferentes vertentes de tradição que são englobados existencialmente na vida
Tremembé. Identificamos também a importante utilização de plantas medicinais pela
etnia e o papel significativo dos encantados nas questões relativas à luta dos Tremembé
pela terra, o que nos leva a perceber como é abrangente a noção de cura entre eles. Este
breve trabalho visa suscitar o aprofundamento da pesquisa etnográfica junto aos
Tremembé, sobretudo a partir da perspectiva da relevância e densidade do nível pré-
objetivo para a compreensão da experiência existencial desse povo no tocante à cura e a
seus encantados.
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