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:: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas. Nº 5, Ano III, Outubro de 2006, periodicidade semestral – ISSN 1981-061X. OS MODOS DE PRODUÇÃO NA OBRA DE NELSON WERNECK SODRÉ Maria de Annunciação Madureira * Resumo Com a aprovação da Declaração de Março de 1958, a problemática dos modos de produção adquiriu crescente importância teórica e tática para o PCB, e implicou em alterações significativas nos escritos de Nelson Werneck Sodré, historiador brasileiro cuja obra mais se identificou com aquela orientação pecebista. Palavras-chave: modos de produção, PCB, marxismo, revolução brasileira, capitalismo. The modes of production in the Nelson Werneck Sodré’s writings Abstract The debate of modes of production acquired theoretician's importance and policy’s preeminence with the Declaração de Março de 1958. This document marks a big alteration in the PCB’s politics and an expressive modification in the Nelson Werneck Sodré’s writings, one of best know Brazilian Marxist historian. Key-words: modes of production, PCB, marxism, brazilian revolution, capitalism. A problematização dos modos de produção reporta-se diretamente à orientação teórico-política adotada pelo PCB a partir da Declaração de março de 1

Os modos de produção na obra de Nelson Werneck Sodré

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  • :: Verinotio - Revista On-line de Educao e Cincias Humanas. N 5, Ano III, Outubro de 2006, periodicidade semestral ISSN 1981-061X.

    OS MODOS DE PRODUO NA OBRA DE

    NELSON WERNECK SODR

    Maria de Annunciao Madureira*

    Resumo

    Com a aprovao da Declarao de Maro de 1958, a problemtica dos

    modos de produo adquiriu crescente importncia terica e ttica para o PCB, e

    implicou em alteraes significativas nos escritos de Nelson Werneck Sodr,

    historiador brasileiro cuja obra mais se identificou com aquela orientao

    pecebista.

    Palavras-chave: modos de produo, PCB, marxismo, revoluo brasileira, capitalismo.

    The modes of production in the Nelson Werneck Sodrs writings

    Abstract

    The debate of modes of production acquired theoretician's importance

    and policys preeminence with the Declarao de Maro de 1958. This document

    marks a big alteration in the PCBs politics and an expressive modification in the

    Nelson Werneck Sodrs writings, one of best know Brazilian Marxist historian.

    Key-words: modes of production, PCB, marxism, brazilian revolution, capitalism.

    A problematizao dos modos de produo reporta-se diretamente

    orientao terico-poltica adotada pelo PCB a partir da Declarao de maro de

    1

    http://www.verinotio.org/revista5_modosproducao.htm#_ftn1#_ftn1http://www.verinotio.org/revista5_modosproducao.htm#_ftn1#_ftn1

  • 1958, e especificamente parcela mais conhecida da obra de Nelson Werneck

    Sodr que, em 1962, com a publicao da Formao histrica do Brasil,

    apresentou uma pioneira interpretao da formao social brasileira coerente

    com aquelas diretrizes partidrias. No mago desse tema se entrelaam duas

    questes:

    a) a que envolve a discrepncia entre o pensamento de Marx e o

    chamado marxismo; e

    b) a do atraso do capitalismo no Brasil, que motivou o pensamento

    social brasileiro, tanto no campo da direita quanto no da esquerda, a priorizar

    anlises e a elaborar propostas voltadas para a resoluo da incompletude do

    capital em nosso Pas.

    1. Parmetros crticos para a discusso da problemtica dos modos de produo na realidade brasileira

    O carter democrtico e burgus da revoluo brasileira esteve inscrito na

    orientao terico-poltica do PCB desde que o problema da revoluo se

    apresentou para o Partido: A primeira vez que se formulou nitidamente o problema central da revoluo no

    nosso pas, o problema do seu carter e das suas foras motrizes, ela apareceu

    como agrria e antiimperialista, revestindo um contedo democrtico-burgus.

    Em torno da palavra de ordem pela revoluo agrria e antiimperialista girou

    toda a propaganda do Partido e toda a sua atividade se apoiou precisamente

    sobre a acepo que dela se depreendia sobre as classes em luta (Vianna, 1995,

    p. 140).

    Foi Caio Prado Jr. quem chamou a ateno para o fato de que a ao

    revolucionria pecebista, em vez de ser a interpretao da conjuntura presente e

    do processo histrico do qual resulta (Prado Jr., 1987, p. 19), orientava-se por

    concepes tericas insuficientes, de origem remota, cujo ponto de partida no

    era a anlise das condies econmicas, sociais e polticas vigentes no Pas,

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  • mas um esquema terico abstrato, admitido sem indagao prvia, aplicado

    realidade brasileira:

    inadequada teoria original da revoluo brasileira, /.../ velha /.../ de quase meio

    sculo, se perpetuou no fundamental e essencial, com mnimos retoques e

    acrscimos secundrios que no lhe alteram a substncia. Continuou-se, e ainda

    se continua a falar, respeitando o esquema original traado na base da

    experincia europia, e sem mais indagao erigido em lei geral da moderna fase

    evolutiva de todas e quaisquer sociedades humanas, continuou-se a falar no

    Brasil naquela revoluo democrtico-burguesa destinada a eliminar os restos

    feudais supostamente presentes em nosso pas (Prado Jr., 1987, p. 39).

    Foi tambm Caio Prado Jr. quem apontou a origem do carter

    democrtico-burgus da teoria da revoluo brasileira. Esta orientao terico-

    poltica adotada pelo PCB foi elaborada, em suas linhas gerais, no final da

    dcada de 1920. Baseava-se no perfil econmico-social atribudo aos pases

    asiticos e latino-americanos e na natureza de sua revoluo, includo no

    Programa da Internacional Comunista adotado pelo VI Congresso Mundial,

    reunido em Moscou em 1928.

    O perfil econmico-social atribudo aos pases asiticos e latino-

    americanos fundava-se na suposio de que os pases coloniais, semicoloniais

    ou dependentes dentre os quais se inclua o Brasil se encontrariam em

    transio do feudalismo para o capitalismo. Em conseqncia, sua etapa

    revolucionria seria de cunho democrtico-burgus. As principais referncias

    polticas dessa etapa revolucionria eram a orientao leninista na conduo da

    Revoluo Russa e a prpria Revoluo Russa, transformada em modelo

    revolucionrio:

    A sua etapa revolucionria seria, portanto, sempre dentro do mesmo esquema

    consagrado, o da revoluo democrtico-burguesa, segundo o modelo leninista

    relativo Rssia tzarista, tambm pas atrasado, do ponto de vista capitalista, e

    ainda emergindo dos remanescentes do feudalismo para o capitalismo (Prado Jr.,

    1987, p. 36).

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  • Como o Brasil foi considerado um pas semicolonial, com caractersticas

    feudais, a teoria da revoluo brasileira adotada pelo PCB se revestiu,

    conseqentemente, de carter democrtico-burgus. A nica originalidade desse

    esquema terico, ainda conforme Caio Prado Jr., foi a introduo do

    antiimperialismo. Assim, essa revoluo seria agrria porque deveria superar a

    etapa feudal, e antiimperialista, porque se oporia dominao das potncias

    capitalistas:

    Revoluo agrria e antiimperialista: eis o quadro em que se incluiria a

    conjuntura revolucionria daqueles pases. Antiimperialista porque oposta

    dominao das grandes potncias capitalistas; agrria porque se tratava de

    neles superar a etapa feudal em que, em maior ou menor grau, eles ainda se

    encontravam (Prado Jr., 1987, p. 37).

    O procedimento do qual derivou esse esquema terico, e o conseqente

    carter democrtico-burgus da teoria da revoluo brasileira, funda-se na

    universalizao do processo de transio para o capitalismo que se desenvolveu

    em algumas formaes sociais europias notadamente na Inglaterra e na

    Frana para as demais formaes sociais, transformando-o em trajetria

    obrigatria, em modelo universal.

    Ao criticar a existncia de um modelo universal de revoluo e revelar a

    necessidade de resgatar as especificidades do desenvolvimento histrico de

    nossa formao social, nico meio de elaborar uma teoria da revoluo brasileira,

    Caio Prado Jr. exps um problema terico que envolveria os esforos de vrios

    estudiosos: a aparente contradio entre a tendncia universal do capital e as

    formas singulares com que essa relao social se desenvolve nas vrias

    formaes sociais. Assim, o historiador paulista apontava a natureza

    essencialmente nica do capitalismo, que um s e o mesmo em toda a parte

    seja qual for o grau de desenvolvimento, extenso e maturao das relaes

    capitalistas de produo, ao mesmo tempo em que reconhecia que essa relao

    social assume caractersticas peculiares nas diversas formaes sociais: seja

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  • qual for a feio particular em que o capitalismo se apresente em cada pas da

    atualidade (Prado Jr., 1987, p. 16).

    Nesse sentido, avano considervel foi a conquista terica obtida por J.

    Chasin (1999) que, dialogando com a problemtica do desenvolvimento do

    capitalismo no Brasil, identificou a particularidade do processo de objetivao do

    capitalismo verdadeiro em nosso Pas, por ele denominada de caminho ou via

    colonial. Seu procedimento terico incorporou o esclarecimento de que na

    prpria Europa a transio para o capitalismo conheceu outra trajetria histrica,

    denominada por Lnin de via prussiana de que o caso alemo referncia,

    em comparao com o ingls e o francs , trajetria ou via histrica de transio

    para o capitalismo referida e conceitualmente caracterizada pelos clssicos do

    marxismo desde Marx, que distinguia enfaticamente a por ele denominada

    misria alem do caminho histrico assinalado pela ocorrncia de revolues de

    tipo europeu (Marx, 1987).

    Comparando as expresses concretas das caractersticas abstratas

    comuns aos casos brasileiro e alemo, Chasin pde constatar que o caminho

    no-clssico de objetivao do capitalismo acolhe no uma forma particular, mas

    duas trajetrias distintas de constituio do verdadeiro capitalismo: a forma

    particular do caminho prussiano e um outro particular, prprio aos pases, ou pelo

    menos a alguns pases (questo a ser concretamente verificada), de extrao

    colonial (Chasin, 2000, p. 45).

    Esse percurso, que desconheceu a ocorrncia de processos

    revolucionrios, foi impulsionado no Brasil apenas no ps-Segunda Guerra

    Mundial devido forma especfica que a expanso imperialista adquiriu nesse

    perodo. Sem jamais romper com a condio de pas subordinado aos plos

    hegemnicos da economia internacional, o capital industrial permaneceu

    incompleto em nosso Pas. Resultou dessa subordinao estrutural ao

    imperialismo o seu carter atrfico, e a incompletude das prprias classes sociais

    que aqui se constituram.

    A estreiteza econmica da burguesia brasileira, manifesta em um processo

    de industrializao subordinado ao imperialismo, fundado no arrocho salarial e

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  • conciliado com a estrutura agrria de origem colonial, determinou a sua estreiteza

    poltica. Subordinada ao imperialismo e antidemocrtica, a burguesia brasileira

    jamais elaborou e encaminhou um projeto de cunho nacional, nos limites do

    capitalismo, do qual as classes subordinadas pudessem participar. A dominao

    proprietria revelou-se incapaz de oferecer perspectivas materiais e espirituais

    para o conjunto da nao, incapacidade congnita materializada na excluso

    social, na no integrao vida nacional de parcelas expressivas da populao

    brasileira, na inexistncia em nosso Pas de uma sociabilidade regida por

    princpios sociais, polticos e econmicos democrticos, ainda que nos limites da

    regncia do capital. Por isso, na particularidade da via colonial, as formas

    genuinamente burguesas de dominao poltica se alternaram entre o

    bonapartismo e a autocracia burguesa institucionalizada, que excluem a figura da

    democracia liberal.

    Por no distinguir, por no particularizar as diferentes formas de

    objetivao do capitalismo, o esquema terico apresentado no VI Congresso da

    III Internacional Comunista e adotado pelo PCB considerava que as formaes

    sociais obrigatoriamente passando por etapas ou estgios histricos sucessivos

    pelo feudalismo e pelo capitalismo , at atingir o socialismo:

    a humanidade em geral e cada pas em particular o Brasil naturalmente a

    includo haveriam necessariamente que passar atravs de estados ou estgios

    sucessivos de que as etapas a considerar, e anteriores ao socialismo, seriam o

    feudalismo e o capitalismo. Noutras palavras, a evoluo histrica se realizaria

    invariavelmente atravs daquelas etapas, at dar afinal no socialismo (Prado Jr.,

    1987, p. 32).

    Em conseqncia, e embora ao longo dos anos a linha poltica do PCB

    houvesse sido bastante alterada, a compreenso da estrutura social brasileira

    permaneceu basicamente a mesma, de maneira que o desenvolvimento do

    capitalismo no Brasil processo que simultaneamente levaria destruio do

    feudalismo ou dos restos feudais existentes no Pas era considerado condio

    prvia para o avano do socialismo. Por isso, o objetivo do Partido sempre foi o

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  • de contribuir para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, com a colaborao

    do proletariado, e no superar o capital e o capitalismo em nosso Pas.

    2. A problemtica dos modos de produo na obra de Nelson Werneck Sodr

    A Declarao de maro de 1958 representou uma profunda mudana tanto

    na linha poltica do PCB quanto na compreenso de Nelson Werneck Sodr

    acerca do desenvolvimento histrico brasileiro.

    No caso especfico da obra werneckiana, as primeiras indicaes de sua

    nova maneira de interpretar a formao social brasileira j aparecem em Razes

    histricas do nacionalismo brasileiro, aula inaugural proferida no Iseb em maro

    de 1959 e publicada em livro no mesmo ano.

    Sistematizada em Formao histrica do Brasil, essa nova interpretao

    da formao social brasileira a terceira elaborada por nosso autor, no conjunto

    de sua obra se distingue das duas anteriores, inscritas no campo do

    pensamento conservador brasileiro, devido no a alteraes significativas em sua

    maneira de compreender a Histria, que pouco se modificou, mas por admitir a

    existncia de uma frao de classe burguesa a chamada burguesia nacional

    capaz de participar do encaminhamento e concluso do processo de

    desenvolvimento do capitalismo em nosso Pas.

    preciso lembrar que o pensamento conservador brasileiro tematizou, sob

    o seu vis ideolgico o que no sinnimo de haver resolvido , a problemtica

    da identidade nacional ou da falta de identidade enquanto nao da formao

    social brasileira, materializada na excluso social da ampla maioria da populao

    do Pas.

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  • Com o diagnstico da realidade nacional elaborado a partir de trs ndulos

    centrais recorrentes o antiliberalismo, a ausncia de um povo constitudo e,

    portanto, a inexistncia de uma nao brasileira, e a incapacidade das elites

    brasileiras de conduzir os rumos da nao , as diversas vertentes do

    pensamento conservador elaborado nas primeiras dcadas do sculo XX tambm

    apontavam um encaminhamento poltico confluente, a renovao conservadora:

    somente um Estado forte poderia dirigir os rumos do Pas, estabelecer um regime

    poltico coerente com seu traado histrico e ultimar o processo de formao da

    nacionalidade brasileira.

    Quanto ao perfil, identidade da nao que se constituiria pelo alto

    atravs da ao de um Estado fortalecido e excluindo a participao popular, as

    divergncias eram profundas e acirrada a luta ideolgica que se estabeleceu

    entre as diversas vertentes do pensamento conservador brasileiro. Era essa a

    questo decisiva que alimentava a luta poltico-ideolgica travada ao longo da

    dcada de 1930.

    As diretrizes interpretativas e programticas para os problemas nacionais

    abarcavam um gradiente que comportava desde propostas que sustentavam a

    necessidade de realizar uma modernizao capitalista no Brasil, por meio da

    industrializao, at aquelas que afirmavam a vocao agrcola do Pas, o qual

    deveria permanecer, coerentemente, agrrio.

    Entre os industrialistas, destacou-se o pensamento de Azevedo Amaral.

    Por sua vez, a proposio ruralista mais acabada foi exposta no iderio

    integralista elaborado por Plnio Salgado. H que indicar, porm, que as prprias

    determinaes estruturais de nossa formao histrica /.../ fizeram conhecer

    variadas formas de combinao conciliada entre essas duas vertentes (Rago

    Filho, 1998, p. 270).

    A grande mudana operada na terceira interpretao da formao social

    brasileira elaborada por Nelson Werneck Sodr no de natureza terico-

    filosfica, mas poltica: o avano industrial dos anos 1940/50 teria propiciado o

    surgimento de uma frao progressista da elite brasileira a burguesia nacional,

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  • de maneira que a tarefa de encaminhar o desenvolvimento do capitalismo no

    Brasil no caberia mais a um Estado fortalecido e coeso que exclua a

    participao popular, como nosso autor sustentara nos anos 1930/40, mas

    poderia e deveria ser efetivada sob um regime poltico democrtico, contando

    com a participao do proletariado, dos camponeses, das camadas mdias

    urbanas e da frao burguesa ligada aos interesses nacionais.

    Asseveramos que essa terceira interpretao da formao social brasileira

    elaborada por Sodr conheceu poucas alteraes significativas de cunho terico-

    filosfico. Ele prprio reconheceu no haver grandes rupturas em sua maneira de

    compreender a Histria ao longo de sua extensa e prolfica atividade intelectual.

    Foi o reconhecimento da manuteno, em suas linhas bsicas, de sua

    compreenso da Histria, que levou nosso autor a afirmar, repetidas vezes em

    sua memorialstica, que a sua obra esteve inscrita no campo do pensamento

    marxista desde a dcada de 1930, quando, por paradoxal que possa parecer,

    suas anlises estavam enraizadas no campo do pensamento conservador

    brasileiro.

    De acordo com Sodr, sua aproximao do pensamento marxista teria

    ocorrido ainda no Colgio Militar, no final da dcada de 1920, por influncia de

    seu professor de Histria, Isnard Dantas Barreto. Embora no houvesse

    emprestado livros de Marx nem discutido suas obras, foi ele [quem] me iluminou

    o caminho para o marxismo e para o materialismo histrico, particularmente

    (Madureira, 1999, p. 270).

    Essa afirmao revela a confluncia entre a compreenso de Histria

    elaborada por Sodr nos anos 1930 e aquele conjunto de princpios filosficos

    que, embora guarde grande distncia em relao ao pensamento de Marx, foi

    apresentado e difundido sob a chancela do marxismo. Seu eixo terico est

    assentado na questo do mtodo.

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  • 2.1 - O mtodo histrico na obra de Nelson Werneck Sodr

    A compreenso de Histria que lastreia a obra de Sodr, apresentada nos

    livros e artigos de sua autoria publicados nos anos 1930/40, constituiu-se a partir

    do dilogo estabelecido entre nosso autor e, fundamentalmente, a filosofia

    comtiana. Essa compreenso de Histria um dos elementos que singularizam o

    pensamento werneckiano no ambiente intelectual brasileiro ao longo do sculo

    XX.

    Para Sodr, a Histria no seria esttica, fixa ou permanente, mas dotada

    de movimento. Por isso, as pesquisas histricas deveriam resgatar e evidenciar a

    dinmica da Histria, substituindo a Histria narrativa pela interpretativa:

    O processo histrico passou a ser considerado em sua nica e basilar afirmao

    de continuidade e desenvolvimento e no mais como uma sucesso de episdios

    esparsos, em que as explicaes careciam de mrito e de fundamento. O mtodo

    narrativo passou a ser substitudo pelo mtodo explicativo. A histria deixou de

    ser uma fonte de literatura morna para se tornar uma interpretao densa da

    distenso coletiva atravs do tempo e do espao (Sodr, 1940, pp. 219-20).

    As pesquisas histricas no poderiam prescindir dos estudos filosficos:

    so eles que tomam o carter de explicao dos movimentos da sociedade, nos

    seus impulsos e aspiraes, nas suas mudanas e inquietudes (Sodr, 1940, p.

    225).

    Sensvel ao movimento histrico, o intrprete deveria abandonar o talento

    descritivo e buscar uma explicao da vida do homem e da sua subordinao ao

    meio ambiente (Sodr, 1940, p. 225).

    Inspirado pela filosofia da histria elaborada por Comte, para quem a lei

    fundamental da evoluo /.../ serve de base nova filosofia geral (Comte, 1978,

    p. 88), nosso autor considerava o movimento histrico, a dinmica social,

    obedecendo a princpios evolucionais. Em seus escritos, to freqentes quanto

    as afirmaes a respeito da marcha evolutiva dos acontecimentos histricos

    (Sodr, 1938, p. 235) so as declaraes de apoio aos esforos daqueles que

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  • buscaram interpretar o estado de perene evoluo de todas as manifestaes da

    atividade humana (Sodr, 1938, p. 213).

    A compreenso de Nelson Werneck Sodr acerca do movimento evolutivo

    foi formada a partir de um amlgama da proposio comtiana com a de Darwin,

    filtrada pelo pensamento de Azevedo Amaral.

    preciso lembrar, sempre que se faz referncia incorporao das teses

    evolucionais pelas pesquisas sociais, que, historicamente, o evolucionismo

    sociolgico anterior ao outro [ao evolucionismo biolgico] (Lvi-Strauss, 1991,

    p. 15, colchetes nossos). Comte pressupunha que tanto a existncia individual

    quanto a social estariam sujeitas ao processo evolutivo. Seu sistema filosfico

    pretendia apreciar o ncleo essencial da teoria positiva, /.../ consistindo em

    descobrir a verdadeira teoria da evoluo humana, ao mesmo tempo individual e

    coletiva (Comte, 1978, p. 112).

    O processo evolutivo obedeceria a leis imutveis, de acordo com as quais

    os fenmenos mais simples sofreriam modificaes que dariam origem a outros

    mais complexos. A evoluo histrica seria regulada pela generalidade

    decrescente dos fenmenos correspondentes, ou, o que implica no mesmo, por

    sua complicao crescente (Comte, 1978, p. 113).

    A complexificao dos fenmenos seria assinalada por fases, cada uma

    resultando da anterior e preparando a prxima: nas fases determinadas duma

    mesma evoluo fundamental, /.../ cada uma resulta da precedente e prepara a

    seguinte, seguindo leis invariveis que fixam sua participao na progresso

    comum (Comte, 1978, p. 71).

    J a obra de Azevedo Amaral est ancorada numa perspectiva

    evolucionista no clssica: embora aceitasse o progresso como fenmeno natural,

    o jornalista carioca reconhecia a importncia desempenhada pelas crises de

    mutao pelas revolues no sculo XX, alterando bruscamente o lento desenvolvimento evolutivo e possibilitando a

    emergncia de personalidades polticas que conduziriam a sociedade na trilha de

    novos rumos. As revolues encerram, portanto, a possibilidade de alterao do

    curso natural da sociedade, do rompimento de uma ordem de fatores que

    retardam ou impedem o progresso social. A personalidade poltica emergente

    11

  • seria legitimada ao cumprir a funo de garantir a ordem, a autoridade e construir

    a nacionalidade, ao fundar o Estado (apud Rago, 1993, p. 49).

    A interpretao de nosso autor acerca do transformismo de Darwin

    (Sodr, 1938, p. 178), expresso cunhada por Haeckel (Faria, 1959, pp. 63-75),

    resultou na idia de que tanto a existncia do mundo natural quanto a do social

    integrariam um nico e permanente processo evolutivo, assinalado por perodos

    de mutaes. Essas transformaes regeriam o dinamismo das sociedades e de

    todos os organismos vivos (Sodr, 1938, p. 213).

    Todos os seres, fossem eles naturais ou sociais, sofreriam mutaes,

    passariam por crises revolucionrias que alterariam o sentido histrico de seu

    desenvolvimento posterior: os momentos crticos da humanidade se caracterizam pela mudana de

    orientaes e pelo esclarecimento de novos caminhos, pela runa de instituies

    e pela renovao da estrutura social, com ntidos rumos e com tendncias

    pronunciadas /.../, mudanas precisas e ntidas, pela runa dum mundo de

    concepes, quer na ordem social, quer na ordem poltica, quer na ordem

    econmica, quer na ordem esttica, por uma substituio de valores e pela

    abertura de novos horizontes na vida da humanidade e no evolver dos

    acontecimentos histricos (Sodr, 1938, p. 170)[1].

    Os perodos revolucionrios, das mutaes, tornariam um fenmeno mais

    complexo e indicariam a passagem de uma fase ou etapa do desenvolvimento

    social para outra, historicamente superior: Como ndice dos mais sensveis e

    sinal positivo de todas as manifestaes dos agrupamentos humanos, as

    mutaes exteriores marcam as etapas positivas do desenvolvimento de uma

    sociedade (Sodr, 1938, p. 5).

    Distinguindo-se de Comte, para quem as modificaes sociais resultariam

    em progresso contnua, em complexificao crescente dos fenmenos, Sodr

    admitia que o processo evolutivo poderia conhecer fases involutivas. Em sua

    perspectiva, as revolues sociais gerariam etapas positivas quando produzissem

    avano histrico, e negativas quando, atuando de forma contra-revolucionria,

    originassem a regresso histrica. Assim, e referindo-se evoluo do sistema

    de trocas em direo atividade mercantil desde a Antigidade, nosso autor

    12

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  • afirmou que o advento do feudalismo teve conotao regressiva: a economia

    retrocedeu a formas primitivas. Retrocesso que a expanso islmica aumentaria,

    pela reduo ainda mais acentuada da rea geogrfica de aplicao das trocas

    (Sodr, 1944, p. 9).

    Quanto evoluo em seu sentido positivo, Sodr incorporou o

    determinismo histrico do pensamento comtiano e considerou a progresso

    histrica possvel deslocadora da humanidade no rumo da sociedade industrial: O carter pacfico industrial para o qual tende a civilizao moderna advm,

    naturalmente, da maior capacidade que ela possui para o aproveitamento das

    foras naturais, capacidade que o surto cientfico lhe proporcionou (Sodr, 1938,

    p. 176).

    Ao comportar a ocorrncia de crises revolucionrias e contra-

    revolucionrias que determinariam o carter progressivo ou regressivo de seu

    desenvolvimento, a evoluo histrica seria assinalada pela heterocronia. Nosso

    autor atribuiu a Oliveira Vianna o mrito de evidenciar as heterocronias que

    teriam caracterizado a formao social brasileira: O sr. Oliveira Vianna, num de seus livros mais lcidos [Populaes meridionais

    do Brasil], aponta um dos erros mais comuns em que incidem os estudiosos das

    coisas brasileiras: o de tomar como um todo a nossa terra e a nossa gente,

    deixando de estabelecer os traos de diferenciao, as peculiaridades regionais,

    para a explicao dos fatos histricos, dos movimentos polticos e das mutaes

    sociais (Sodr, 1938, p. 118).

    O conceito de heterocronia, porm, foi extrado do pensamento comtiano.

    Ao investigar a dinmica da histria, Comte buscava desvendar o curso

    espontneo da evoluo humana (Comte, 1978, p. 71). Sua filosofia da histria

    est sintetizada na lei dos trs estados. O esprito humano se desenvolveria

    atravs de trs estgios ou fases distintas, a teolgica que corresponderia

    infncia da humanidade , a metafsica, de transio identificada com a

    juventude , e a positivista ou da maturidade: cada ramo de nossos conhecimentos, passa sucessivamente por trs estados

    histricos diferentes: estado teolgico ou fictcio, estado metafsico ou abstrato,

    estado cientfico ou positivo. Em outros termos, o esprito humano, por sua

    natureza, emprega sucessivamente, em cada uma de suas investigaes, trs

    13

  • mtodos de filosofar, cujo carter essencialmente diferente e mesmo

    radicalmente oposto /.../. Da trs sortes de filosofias, ou de sistemas gerais de

    concepes sobre o conjunto de fenmenos, que se excluem mutuamente: a

    primeira o ponto de partida necessrio da inteligncia humana; a terceira, seu

    estado fixo e definitivo; a segunda, unicamente destinada a servir de transio

    (Comte, 1978, p. 4).

    A existncia de trs etapas na evoluo humana no resultaria da

    substituio de uma pela outra. O processo evolutivo da humanidade no seria

    homogneo, mas assinalado pela coexistncia de fases distintas, pelo fenmeno

    da heterocronia, em que o surgimento de um estgio mais avanado de

    desenvolvimento do esprito humano no necessariamente eliminaria o

    precedente. No incio do estgio positivista da evoluo histrica, o nico

    definitivo (Comte, 1978, p. 113), encontrar-se-iam elementos das etapas

    evolutivas prvias. Para Comte, a heterocronia, essa coexistncia na fase

    positivista inicial de estgios anteriores do desenvolvimento do esprito humano,

    seria a causa das crises morais, intelectuais e sociais: a desordem atual das inteligncias vincula-se, em ltima anlise, ao emprego

    simultneo de trs filosofias radicalmente incompatveis: a filosofia teolgica, a

    filosofia metafsica e a filosofia positiva. claro que se uma qualquer dessas trs

    filosofias obtivesse, na realidade, preponderncia universal e completa, haveria

    uma ordem social determinada, pois o mal consiste sobretudo na ausncia de

    toda verdadeira organizao. a coexistncia dessas trs filosofias opostas que

    impede absolutamente de estender-se sobre algum ponto essencial (Comte,

    1978, p. 18).

    De acordo com Sodr, a falta de homogeneidade, a heterocronia que

    assinalaria o processo evolutivo estaria evidenciada nas mudanas das fases

    histricas: A passagem da economia feudal economia burguesa /.../ no se faz

    uniformemente, apenas pela unio entre a classe que surge e o rei, contra os

    senhores feudais, com conseqentes vantagens para o povo. Ela se reveste, em

    vrias regies, de aspectos diversos e, muita vez, assistimos, como na

    Alemanha, o retrocesso do trabalho livre condio de servo (Sodr, 1944, p.

    19).

    14

  • A heterocronia da evoluo histrica afetaria de maneiras diversas todas

    as formaes sociais, originando um conjunto de caractersticas peculiares que

    faria com que cada fase ou estgio desse processo fosse vivido de maneira nica,

    singular, em cada pas: Efetivamente, o feudalismo teve, em cada pas, caractersticas prprias e, como

    exemplo, poderamos apontar o seu carter hierrquico em certas naes, em

    contraste com o aspecto dispersivo em outras. Mas, no fundo, o que traou os

    lineamentos das instituies feudais foi a posse precria e o usufruto do solo por

    parte dos que o lavravam, no importando o carter de interdependncia dos

    senhores, entre si, ou para com o rei, a no ser para quem se disponha a fazer

    uma histria detalhada do tempo (Sodr, 1938, p. 10).

    O conjunto de caractersticas singulares de uma dada formao social em

    processo de mudana para uma nova fase ou estgio da evoluo histrica

    particularizaria, distinguiria o traado histrico daquela comunidade em

    comparao com a tendncia evolutiva mais geral, universal: Em nenhuma outra nao da Europa o povo se mostrou to refratrio s

    influncias essenciais do mundo feudal como na comunidade lusitana. Isto leva

    muitos historiadores, dos mais objetivos no estudo da Idade Mdia, a afirmar que,

    rigorosamente, em Portugal no houve feudalismo. Essa resistncia s

    influncias dos padres caractersticos da sociedade contempornea marca,

    fundamente, o isolamento de Portugal (Sodr, 1938, p. 17).

    Ao particularizarem o traado histrico de uma formao social, os traos

    singulares gerados pela heterocronia do processo evolutivo permitiriam que a

    ocorrncia de certos fenmenos, caractersticos de determinada fase do

    desenvolvimento histrico, viesse a ser abreviada, prolongada ou at mesmo

    desconhecida naquela sociedade: Na ponta da Europa, um pequeno povo, atravs de anos e anos de luta

    extremada contra uma civilizao oposta, uma crena adversa, uma absoro

    que o ameaa, vai constituir, mais cedo do que as demais naes do mundo

    cristo, uma conscincia nacional e ultimar a obra unificadora do poder real,

    surgindo em plena Idade Mdia como nao organizada. Esse particularismo,

    esse refugir dos padres comuns da cultura em formao do resto da Europa,

    essa autonomia na marcha e na integrao, Portugal leva-os mais longe quando,

    15

  • depois de uma crise profunda e dispersiva, aparece a casa de Aviz (Sodr, 1938,

    p. 17).

    De acordo com a compreenso de Histria de Sodr, a evoluo social

    seria determinada no pelas modificaes do esprito humano, como afirmava

    Comte, mas pelas revolues ocorridas no processo de produo, as quais

    regeriam todos os demais fatores sociais, os espirituais, inclusive: As coisas do esprito se me afiguram divorciadas das coisas materiais, e

    professando por elas um culto verdadeiro, consegui permanecer at hoje, e

    acredito que permanecerei sempre, fundamentalmente materialista. Materialista,

    evidentemente, porque coloco as funes espirituais dependendo das coisas

    materiais bem claras. Acredito que a vida esteja demonstrando, diante dos

    nossos olhos, a cada passo, que as condies materiais de existncia individual

    e coletiva influem poderosamente sobre as concepes espirituais dominantes

    ou subterrneas (apud Gaio, 2000, pp. 11-12).

    Influenciado pela obra de Azevedo Amaral autor que se distingue dos

    pensadores de sua poca pela referncia e importncia atribuda ao econmico.

    /.../ Essa tnica /.../ responsvel pela originalidade da ideologia azevediana

    frente ao quadro do pensamento conservador (Rago, 1993, pp. 49-67), Sodr

    entendia que a produo material determina os rumos polticos, as mudanas

    sociais e os mitos espirituais de uma coletividade: o desenvolvimento material que rege a formao e a evoluo dos postulados

    polticos e das transformaes sociais. Uma coletividade tem a organizao

    poltica e mesmo os mitos espirituais que lhe permitem a organizao econmica

    em que se assenta (apud Gaio, 2000, p. 12).

    Contrapondo-se ao pensamento comtiano que sustenta que a existncia

    social seria regida por bases morais, pela evoluo do esprito humano, Sodr

    afirmava que a moral, assim como a totalidade do edifcio social, deriva e

    determinada pelo processo de produo: Querer explicar certos fenmenos histricos, certos movimentos humanos,

    assentando essa explicao em bases simplesmente morais inverter a ordem

    das coisas porque os mitos morais derivam do processo de produo e esses

    processos variam muito, sendo causa de todo o edifcio social (apud Gaio, 2000,

    p. 12).

    16

  • O desenvolvimento das idias acompanharia a marcha da evoluo social,

    resultando das transformaes sofridas pela produo material, das revolues

    processadas no campo econmico: Mudando, assim, as causas, mudando as condies de existncia, mudando os

    processos de relao da sociedade, era impossvel que os valores ticos e

    estticos permanecessem margem dessa transformao. Isso s seria

    possvel num organismo estratificado e morto, e as sociedades se caracterizam

    pelo seu dinamismo permanente (Sodr, 1940, p. 153).

    As bases morais de uma sociedade identificariam a fisionomia dessa

    sociedade, mas no se constituiriam no fator que determina e orienta o sentido

    das transformaes sociais: os pontos de vista da moral e dos sentimentos /.../, conquanto marquem muito

    bem a fisionomia das sociedades, carecem de importncia na explicao do

    desenvolvimento das sociedades, pois so apenas emanaes dos estados

    diversos por que passa a produo (Sodr, 1938, p. 168).

    Para Sodr, a organizao econmica de uma sociedade resulta da

    transigncia com o meio /.../ [d]a luta entre o homem e a terra (Sodr, 1990, p.

    118, colchetes nossos). Ao estabelecer essa relao com a natureza, o homem

    se adapta ao meio natural e obtm os recursos necessrios para assegurar a sua

    sobrevivncia: Do contato com a natureza, e da progressiva adaptao, o

    homem tem que tirar os recursos para a continuao de sua existncia (Sodr,

    1990, p. 125).

    Conforme a etapa evolutiva do desenvolvimento histrico, o homem, em

    sua relao com o meio natural, estaria subordinado ao da natureza: As

    peculiaridades locais no devem deixar de influir na criao dos homens que se

    formam sua sombra (Sodr, 1940, p. 230). Segundo nosso autor, a explicao

    desse processo caberia literatura, seria tarefa dos escritores, que precisariam

    abandonar o talento descritivo e buscar uma explicao da vida do homem e da

    sua subordinao ao meio em que desenvolve a sua atividade (Sodr, 1940, p.

    208).

    Nas fases histricas em que o homem estaria subordinado ao meio natural,

    o predomnio da natureza regeria as prprias relaes de produo. Assim, o

    17

  • regime de servido pastoril observado por nosso autor em Mato Grosso, no final

    dos anos 1930, seria uma relao de produo cuja organizao escapava ao

    controle do homem porque a prpria produo pastoril sofria forte determinao

    do meio natural em que se processava: No uma criao dos homens. uma

    imposio dos processos de produo (Sodr, 1990, p. 131).

    O fator econmico seria, ele prprio, passvel da evoluo, de ser

    revolucionado, segundo Sodr, que freqentemente se refere marcha evolutiva

    da produo (Sodr, 1990, p. 202). As mutaes econmicas resultariam do

    determinismo histrico que rege o processo evolutivo. Por isso, suas causas

    seriam naturais: a natural mudana dos meios da produo e o advento da era

    industrialista (Sodr, 1938, p. 176).

    Em seu sentido positivo, progressivo, as mutaes econmicas se

    desenvolveriam em direo produo industrial que, ancorada no avano

    cientfico, neutralizaria a ao exercida pela natureza sobre o homem: o extraordinrio desenvolvimento industrial de nosso tempo, antes de

    amesquinhar, mais em evidncia colocou o papel do homem na vida moderna, e

    se esse esforo formidvel se indica na sua capacidade em se amoldar a

    natureza s suas condies prediletas, subordinando-as ao seu trabalho,

    exercendo uma ao poderosa sobre o meio fsico, ao que neutraliza e

    equilibra aquela que este exerce, sem dvida, sobre o homem (Sodr, 1990, p. 181).

    As revolues realizadas no campo econmico, as transformaes

    sofridas pela produo material, impulsionariam a evoluo histrica e

    determinariam a ocorrncia das demais mudanas sociais: Considero /.../ que, entre os fatores que presidem a evoluo das sociedades, o

    econmico tem uma importncia superior. Acredito que isso seja cincia

    adquirida. Os demais fatores culturais, entretanto, encontram o seu lugar, no

    balano das foras (Sodr, 1944, p. 5).

    O determinismo econmico, a regncia da evoluo da produo material

    sobre os demais fatores sociais, implicaria a correspondncia entre cada

    transformao operada na organizao produtiva e o surgimento de

    determinadas modificaes equivalentes na organizao poltica e social:

    18

  • a mutao dos padres econmicos produz, necessariamente, uma mutao nos

    valores polticos. Isso axiomtico. As sociedades industrializadas no tm as

    mesmas instituies que as sociedades agrrias. Nem os agrupamentos

    humanos, acostumados a um certo padro de vida, que lhes proporcionado

    pela organizao econmica, podem ter a mesma moral e costumes idnticos

    aos dos outros agrupamentos humanos que vivem ainda da caa e da pesca, na

    mais primria situao corrente. fato corrente e comum, portanto, as mutaes

    econmicas alterarem o edifcio poltico (Sodr, 1998, p. 247).

    Uma vez que cada forma de organizao poltica e social seria regida e

    corresponderia a uma organizao produtiva determinada, a poltica, assim como

    os demais fatores sociais, no exerceria uma influncia significativa sobre os

    rumos da produo material, sobre a situao econmica: As alteraes polticas influrem fundamente na situao econmica, porm,

    nunca se conseguiu porque representa uma inverso. As instituies polticas

    como os mitos de ordem social so funes dos meios e processos de produo,

    dos padres econmicos, em suma. Funo pressupe precedncia, o contrrio

    que se no pode dar, no pode acontecer. E constitui iluso tremenda julgar,

    desse ponto de vista, as coisas (Sodr, 1998, p. 247).

    Embora no chegassem a influenciar fundamente a ordem econmica, a

    poltica e os demais fatores sociais poderiam criar obstculos para o seu

    desenvolvimento, dificultar a evoluo dos padres de produo material da

    sociedade: De um modo geral, a parte externa das instituies no tem

    importncia alguma. O que importa fundamentalmente a essncia delas. Se

    entravam ou no o surto econmico (Sodr, 1998, p. 96).

    Ainda que pudesse entravar o surto econmico, a ao poltica no se

    constituiria num instrumento capaz de afetar positivamente a economia: Na imaginao brasileira, /.../ as coisas esto montadas s avessas. H a iluso

    de que reformas de ordem puramente poltica, e at funcional, tenham o alcance

    de produzir bem-estar econmico e sanar deficincias ou desequilbrios da

    produo (Sodr, 1998, p. 246).

    O determinismo econmico inscrito na compreenso da histria de Sodr

    implica o reconhecimento apenas dos fatores econmicos como os definidores

    dos rumos sociais: os processos de produo, estes sim, positivamente

    19

  • influenciadores de todos os rumos sociais, de todas as caractersticas de um

    povo (Sodr, 1943, pp. 9-10).

    A regncia do fator econmico no seria, porm, a nica determinante do

    processo de constituio da fisionomia social: A fisionomia das sociedades no dada unicamente pelas caractersticas da

    produo, como querem os comentadores unilaterais do processo econmico,

    mas essa fisionomia depende de padres econmicos vigentes no agrupamento

    social (apud Andr Gaio, 2000, p. 12).

    Por isso, o intrprete da histria deveria atentar para a regncia econmica

    sobre os demais fatores sociais a mutao social /.../ acompanha e varia

    segundo os processos de produo (Sodr, 1938, p. 168) e, ao mesmo tempo,

    permanecer sensvel s especificidades das diversas manifestaes sociais,

    originadas de uma mesma processualidade histrica. Assim procedendo, tornar-

    se-ia capaz de retratar os mltiplos aspectos que compem a fisionomia da

    sociedade e de situar, no processo evolutivo do conjunto social, algumas de suas

    caractersticas, em especial as culturais: Divorciar, pois, o desenvolvimento mental das caractersticas sociais que o

    conduziram como apresentar aspectos parcelados e estticos daquilo que

    contm, na sua prpria essncia, um poderoso dinamismo, e que, assim

    apresentado, semelha as criaes artificiais e estticas com que se ornamentam

    os descaracterizados, /.../ mas no explicam, nem guardam significao alguma

    da terra e da gente, de que formam atividade pondervel. /.../ a artificialidade de

    tal processo se acentua, de maneira positivamente alarmante, quando pretende

    colocar a atividade cultural, no de um homem, mas de um povo, margem do

    desenvolvimento da sociedade que, justamente ao contrrio do que, em geral, se

    pensa, atravs dessa manifestao afirmou as suas peculiaridades e denunciou

    as suas prprias caractersticas (Sodr, 1943, pp. 6-8).

    Para Sodr, portanto, a evoluo histrica seria determinada pelas

    revolues ocorridas no campo da produo material. Em seu sentido positivo, o

    processo evolutivo culminaria por atingir a etapa industrial. A marcha evolutiva da

    humanidade confirma a gradao em que os historiadores fixaram o

    desdobramento das civilizaes (Sodr, 1990, p. 23), ou seja, acompanharia a

    sucesso de etapas expostas na filosofia da histria comtiana Antigidade,

    20

  • Idade Mdia e Estado moderno. Porm, ao contrrio do preconizado por Comte,

    essas etapas no seriam geradas pela evoluo do esprito humano, e sim pelas

    transformaes econmicas, que se fariam acompanhar das formas

    correspondentes de pensamento, respectivamente as filosofias teolgica,

    metafsica e a positivista ou cientfica.

    Nosso autor identificava a Histria como uma continuidade assinalada pelo

    movimento evolutivo, causado pelas transformaes ocorridas no mbito da

    produo material e cujo sentido, em sua progresso positiva, desenvolver-se-ia

    inevitavelmente em direo sociedade industrial. Essa compreenso de Histria

    constitui, para Sodr, o mtodo histrico.

    Cabe indagar, ento: o que seria, em seu entendimento, interpretar a

    Histria?

    Para nosso autor, qualquer inteno interpretativa /.../ situar o problema

    no quadro geral da evoluo histrica (Sodr, 1945, p. 46), evoluo cujos traos

    ele julgava, nos anos 1930/40, terem sido indicados pela filosofia da Histria

    comtiana, sintetizada na lei dos trs estados.

    Em sua opinio, somente a adeso aos princpios evolucionais e

    transformistas possibilitaria ao intelectual guardar, sempre, total receptividade

    aos pensamentos novos, aos estados de transformao da sociedade, aos

    cnones que se transmudam, a abandonar velhos preceitos se os novos esto

    mais de acordo com a verdade e o avano cientfico, e a se tornar inimigo do

    dogma e adepto da transformao e da objetividade, em vez de se admirar com

    o definitivo, o estvel, o permanente (Sodr, 1938, p. 213).

    Para Sodr, uma obra histrica no bom sentido, isto , o da continuidade,

    precisaria indicar as fontes, mostrar motivos, esmerilhar origens, sem nunca

    extrair os quadros apenas duma criao meramente esttica (Sodr, 1938, p.

    227).

    Sinnimo da orientao filosfica que direciona a interpretao do

    processo histrico, o mtodo adquiriu papel central em toda a vasta obra de

    Sodr, inscrita em dois campos aparentemente antagnicos terica e

    politicamente o do pensamento conservador brasileiro e o do marxismo.

    21

  • Dcadas aps haver criticado a ausncia de mtodo histrico na obra de

    Capistrano de Abreu, nosso autor, j filiado ao PCB e identificado como um dos

    principais intelectuais marxistas brasileiros, afirmava: o documento uma coisa

    e a realidade outra coisa (Sodr, 1985, p. 79). E reiterava: em histria, vale

    mais o mtodo do que as fontes, evidentemente (Sodr, 1960, p. 202).

    Em sua compreenso de Histria, o mtodo se constitui no maravilhoso

    instrumento de interpretao histrica. Somente utilizando-o o pesquisador

    abandonaria a anlise dos acontecimentos superficiais, o desvendamento dos

    fatos e sua continuidade, habilitando-se a interpretar o processo histrico.

    3. A incorporao da problemtica dos modos de produo obra de Werneck Sodr

    Com a filiao de Nelson Werneck Sodr ao PCB, consumada em 1946,

    sua obra s incorporou uma alterao na compreenso de Histria, expressa pela

    primeira vez apenas em 1959: as etapas que assinalariam a evoluo histrica da

    humanidade no seriam as trs fases sintetizadas na filosofia da Histria de

    Comte teolgica, metafsica e positivista , mas cinco, obtidas a partir de uma

    interpretao positivista de textos de Marx: escravismo, feudalismo, capitalismo,

    socialismo e comunismo.

    Foi essa mudana em sua compreenso de Histria, subordinada

    orientao terico-poltica adotada pelo PCB em 1958, que permitiu ao nosso

    autor apresentar uma terceira interpretao da formao social brasileira.

    preciso lembrar que a Declarao de maro de 1958 alterou

    profundamente a orientao poltica do PCB. Desde 1949, o partido sustentava o

    desenvolvimento autnomo do capitalismo brasileiro e considerava o proletariado

    a classe que deveria conduzir a revoluo democrtico-burguesa:

    essa revoluo agrria e antiimperialista, revoluo democrtica em sua forma e

    burguesa pelo seu contedo econmico e social, a realizar-se em plena poca

    22

  • da revoluo proletria e da construo do socialismo numa boa parte do mundo,

    s pode ser realizada sob a direo do proletariado (apud Carone, 1982, p. 99).

    A partir de 1950, o Partido defendia a revoluo no curto prazo e a luta

    armada para a tomada do poder, motivadas pela subordinao crescente da

    burguesia ao imperialismo:

    J passou a poca das velhas revolues burguesas dirigidas pela burguesia e

    visando instaurao de uma sociedade capitalista sob a ditadura de classe da

    burguesia. A correlao de foras sociais no pas, onde cresce o proletariado,

    sem que a burguesia se reforce nem econmica nem politicamente, j que as

    posies fundamentais da economia nacional esto cada vez mais em poder o

    imperialismo e devem, com a revoluo, passar diretamente para as mos do

    novo Estado, criam, evidentemente, a possibilidade de um desenvolvimento no

    capitalista que leve diretamente ao socialismo (apud Carone, 1982, p. 100).

    Uma vez que a revoluo democrtico-burguesa nos pases coloniais e

    atrasados estaria inserida na revoluo do proletariado, a burguesia estaria

    impedida de assumir a sua direo:

    a revoluo democrtico-burguesa dos dias de hoje nos pases coloniais e

    atrasados parte integrante da revoluo do proletariado e, justamente por isso,

    violentamente combatida pelo imperialismo e jamais poder ser realizada sob

    a direo da burguesia, cada vez mais dependente dos grandes trustes e

    monoplios internacionais (apud Carone, 1982, p. 99).

    No incio dos anos 1950, o PCB tambm considerava impossvel

    burguesia brasileira conduzir uma revoluo de cunho democrtico-burgus em

    nosso Pas, devido sua semelhana com a burguesia alem,

    como a pintara Marx em 1848 /.../. No caso brasileiro, j bem clara a posio

    contra-revolucionria da grande burguesia, mesmo da burguesia industrial, mais

    diretamente interessada na liquidao dos restos feudais e na revoluo agrria,

    que determinariam a rpida expanso do mercado interno. /.../ que a burguesia

    industrial brasileira surgiu como classe j nas vsperas da Grande Revoluo de

    Outubro, quando se iniciava a crise geral do capitalismo, numa poca em que o

    proletariado j se levantava no mundo inteiro como fora revolucionria e classe

    23

  • formada e independente. A burguesia brasileira, devido sua prpria origem, e

    ao processo de sua formao, jamais lutou contra o feudalismo, trata de adapt-

    lo aos seus interesses, conservando-o e a ele se aliando para a luta contra as

    massas trabalhadoras. por isso mesmo uma burguesia retrgrada, covarde e

    pusilnime, que, no por acaso, muito se assemelha burguesia alem dos

    meados do sculo XIX, igualmente formada sobra dos restos feudais e da

    conservao do Jnker prussiano (apud Carone, 1982, pp. 111-2).

    No IV Congresso (realizado entre dezembro de 1954 e fevereiro de 1955),

    e devido aliana com o PTB (outubro de 1954), o PCB distinguia a burguesia

    nacional das foras do campo feudal-imperialista e propunha ao proletariado,

    Sem amainar a luta pelos seus interesses de classe, contra a explorao

    burguesa, /.../ lutar e marchar junto com a burguesia nacional contra os

    imperialistas norte-americanos e contra o regime de latifundirios e grandes

    capitalistas (apud Carone, 1982, p. 133).

    Com a Declarao de maro de 1958, o PCB passou a admitir o caminho

    pacfico para a revoluo brasileira, atravs da defesa da legalidade democrtica,

    da combinao da ao parlamentar com a extraparlamentar, e da ampliao e

    fortalecimento do movimento nacionalista: A revoluo no Brasil /.../ no ainda

    socialista, mas antiimperialista e antifeudal, nacional e democrtica (apud

    Carone, 1982, p. 184).

    Essa mudana na orientao poltica do Partido resultou de uma avaliao

    que considerava terem surgido no Brasil as condies que permitiam um

    desenvolvimento revolucionrio pacfico: o avano industrial ampliara o nmero

    de trabalhadores fabris e teria possibilitado o surgimento e o fortalecimento

    crescente de uma burguesia interessada no desenvolvimento independente e

    progressista da economia do Pas (apud Carone, 1982, p. 177).

    O desenvolvimento autnomo do capitalismo tornava-se possvel quer

    devido ao surgimento dessa burguesia nacional, quer devido principalmente

    atuao econmica empreendida pelo prprio Estado, atravs das formas

    24

  • nacionais e progressistas de capitalismo de Estado, a exemplo da Petrobrs e de

    Volta Redonda (apud Carone, 1982, p. 180).

    Embora algumas vezes esse capitalismo de Estado realizasse uma

    poltica favorvel ao imperialismo, ele era, basicamente, um elemento

    progressista e antiimperialista na poltica econmica do governo (apud Carone,

    1982, p. 180).

    Ao mesmo tempo, o quadro social brasileiro seria assinalado pelas

    sobrevivncias feudais, que obstaculizavam o desenvolvimento da agricultura, e

    pela dependncia econmica do Pas, que aguava o antagonismo com o

    imperialismo norte-americano.

    Para o necessrio desenvolvimento independente e progressista da

    economia nacional, mediante a industrializao brasileira e a resoluo do atraso

    da agricultura, impunha-se a exigncia objetiva da aliana entre todas as foras

    interessadas na luta contra a poltica de submisso ao imperialismo norte-

    americano (apud Carone, 1982, p. 185).

    Essa aliana, essa frente nica que aglutinaria as foras antiimperialistas e

    democrticas, inspirava-se na distenso das relaes Leste/Oeste que

    caracterizou a poltica exterior sovitica no perodo Kruschev, e em algumas

    passagens da vida poltica brasileira, em especial na Campanha do Petrleo e na

    experincia da Frente Parlamentar Nacionalista. Dela participariam a classe

    operria, os camponeses, as camadas mdias urbanas e a burguesia ligada aos

    interesses nacionais. Essa poltica de alianas orientada pela perspectiva do

    desenvolvimento autnomo da economia nacional, poltica de alianas da qual a

    militncia pecebista participou desde o final dos anos 40, durante a Campanha do

    Petrleo, que se estruturou com setores do PTB em disputas eleitorais em

    algumas regies do pas desde o incio da dcada de 1950 no obstante a

    orientao poltica contrria do PCB e que foi incorporada linha poltica do

    Partido desde o final de 1954, constitui o nacionalismo de esquerda.

    25

  • A mudana na orientao poltica do PCB a partir da Declarao de maro

    de 1958 levou Sodr a efetuar alteraes profundas em sua maneira de

    interpretar a nossa formao social, adequando-a linha poltica do Partido,

    como ele prprio reconhece no Prefcio da Formao histrica do Brasil: no

    este /.../ um livro de mera especulao: deriva de uma posio poltica (Sodr,

    1962, p. IX).

    Para facilitar esta exposio, comparemos trechos de um ttulo de Sodr

    que reuniu algumas conferncias por ele pronunciadas no Iseb entre 1954 e 1956,

    muitas das quais publicadas como artigos nesse perodo, e que veio a pblico em

    novembro de 1958, Introduo revoluo brasileira, com as alteraes feitas

    por nosso autor nos mesmos artigos para a segunda edio dessa mesma obra,

    lanada em 1963, alteraes que foram mantidas nas edies seguintes[2].

    Desde o seu primeiro livro, publicado em 1938, Sodr afirmava que a

    colonizao brasileira foi um empreendimento capitalista. Dos anos 1930 at o

    final da dcada de 1950, nosso autor, enquadrando nossa trajetria histrica nas

    etapas evolutivas apresentadas por Comte, negava enfaticamente a existncia de

    feudalismo no Brasil: Est claro que no poderiam ter vigorado aquelas formas feudais no conjunto de

    uma economia de traos evidentemente capitalistas [no perodo colonial]. Na

    fase a que nos referimos agora [Imprio], nenhuma dvida poderia mais subsistir

    (Sodr, 1955, p. 132; 1958, p. 79. Os colchetes so nossos).

    Ao incorporar sua compreenso de histria a existncia de cinco etapas

    no processo evolutivo humano, Sodr enquadrou o perodo colonial brasileiro na

    fase escravista. Assim, o trecho anteriormente citado passou a ter a seguinte

    redao a partir da segunda edio de Introduo revoluo brasileira:

    Est claro que no poderiam ter vigorado aquelas formas feudais no conjunto de

    uma economia de traos evidentemente mercantis, estabelecidos sobre uma

    produo escravista [no perodo colonial]. As relaes feudais surgiriam mais

    adiante e caracterizariam a estagnao de grandes reas territoriais do Brasil.

    26

    http://www.verinotio.org/revista5_modosproducao.htm#_ftn3#_ftn3

  • Na fase a que nos referimos agora [Imprio] nenhuma dvida poderia mais

    subsistir (Sodr, 1978, p. 84. Os colchetes so nossos).

    O trecho em que Sodr afirmava a existncia de um capitalismo colonial

    o que surge em terras distantes no passa de uma forma singular de

    capitalismo, o capitalismo colonial, estreitamente vinculado ao surto comercial em

    desenvolvimento (Sodr, 1957, p. 163; 1958, p. 118) teve essa expresso

    substituda por escravismo colonial: o que surge em terras distantes no passa

    de uma forma singular de escravismo, o escravismo colonial, estreitamente

    vinculado ao surto comercial em desenvolvimento (Sodr, 1978, p. 120).

    A expresso capitalismo colonial Nessa estrutura, o que se esboa,

    desde os primeiros dias /.../ , na verdade, uma forma particular de capitalismo

    o capitalismo colonial (Sodr, 1955, p. 59; 1958, p. 64) tambm foi substituda

    pela designao mercantilismo colonial: Nessa estrutura, o que se esboa

    desde os primeiros dias /.../ , na verdade, uma forma particular de mercantilismo

    o colonial (Sodr, 1978, p. 70).

    De acordo com a nova viso das etapas histricas adotadas por nosso

    autor, o escravismo colonial poderia dar origem a uma nova fase histrica, a do

    feudalismo. Essa tese, aprofundada na Formao histrica do Brasil, mereceu

    dele uma anlise original. Coerente com a perspectiva de que o movimento da

    Histria tanto pode ser evolutivo quanto involutivo, Sodr afirmou que no Brasil o

    escravismo teria evoludo tanto para o trabalho livre o que representaria uma

    evoluo histrica positiva quanto para a servido, para o feudalismo. A

    evoluo para o feudalismo seria mais freqente devido longa vigncia do

    trabalho escravo, entre ns, mas com uma particularidade que distinguiria o caso

    brasileiro do modelo europeu: na Europa, o feudalismo representou um avano

    em relao ao que existia anteriormente; no Brasil, a evoluo do escravismo

    para o feudalismo teria carter regressivo, constituiria o que ele chamou de

    regresso feudal. Em sua opinio, essa seria a sua principal contribuio para a

    historiografia brasileira.

    27

  • O objetivo de Nelson Werneck Sodr com a elaborao dessa terceira

    interpretao da formao social brasileira foi o de fornecer lastro histrico para a

    anlise das classes sociais existentes no Pas e sua dinmica, evidenciando

    que o surgimento de uma frao da classe burguesa, a chamada burguesia

    nacional, permitia ao Pas reatar o fio de sua Histria, avanando em direo

    industrializao autnoma e, ao mesmo tempo, permanecer no campo

    democrtico, dispensando a outrora necessria interveno de um Estado forte e

    coeso para a conduo dos rumos nacionais. Por isso, suas posteriores anlises

    conjunturais enfatizam a continuidade do processo da revoluo brasileira, que

    em sua opinio teria se iniciado em 1930: o Pas vivia um processo de

    desenvolvimento capitalista, de alastramento das relaes capitalistas, que tinha

    condies de se realizar de maneira autnoma e sob um regime democrtico.

    O processo da revoluo brasileira seria assinalado pela significativa

    atuao do Estado na economia e pelas contradies entre os interesses do

    capital nacional e os do estrangeiro. Para Sodr, distinguir o capital nacional do

    estrangeiro representava um grande avano poltico. Por isso, e para que se

    criassem as condies que nos levariam ao socialismo, fazia-se necessrio o

    desenvolvimento autnomo do capitalismo no Brasil, apoiar a burguesia nacional

    no comprometida com o capital estrangeiro e, ao mesmo tempo, combater esse

    capital estrangeiro e seus aliados de classe naturais no Pas, identificados com

    aquela parcela do setor agroexportador com origem e caractersticas feudais.

    4. Consideraes Finais

    Embora a tese sobre o feudalismo tenha sido aquela que mais despertou

    polmica em torno de sua obra, em especial a partir da publicao da Formao

    histrica do Brasil, essa no , do ponto de vista de Sodr, a questo mais

    importante por ele abordada nesse livro e nos que se lhe seguiram.

    Para Sodr, a questo mais importante abordada em sua obra e que

    ficou obscurecida com a polmica acerca dos modos de produo no Brasil , a

    28

  • fundamentao do nacionalismo. Toda a sua vasta obra, inscrita tanto no campo

    do pensamento conservador brasileiro quanto no do marxista, que comporta trs

    interpretaes distintas da formao social brasileira e diversas propostas

    polticas para o encaminhamento dos rumos nacionais, teve esse objetivo: o de

    fornecer lastro histrico para a resoluo da incompletude do capital e do

    capitalismo no Brasil.

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    31

  • 32

    * Professora do Departamento de Cincias Sociais da Universidade Estadual de

    Maring.

    [1] Embora no seja objeto desta discusso, h que indicar que esse raciocnio o

    levou, a partir dos anos 1960, a sustentar a existncia de uma dialtica da

    natureza.

    [2] Como esses textos no foram modificados nas edies seguintes, utilizamos

    na referenciao a quarta e ltima edio desse ttulo, publicada em 1978.

    http://www.verinotio.org/revista5_modosproducao.htm#_ftnref1#_ftnref1http://www.verinotio.org/revista5_modosproducao.htm#_ftnref2#_ftnref2http://www.verinotio.org/revista5_modosproducao.htm#_ftnref3#_ftnref3

    ResumoReferncias Bibliogrficas