OS SONHADORES

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NOTA EXPLICATIVA

O texto de Os sonhadores compe o volume Sete novelas fantsticas, da escritora dinamarquesa Karen Blixen (1885-1962), publicado pela Civilizao Brasileira em 1979, em traduo do tambm dinamarqus Per Johns, que vive no Brasil. O mesmo livro mereceu em 2007 uma segunda traduo brasileira, desta vez sob o ttulo Sete narrativas gticas (editora Cosac Naify, de So Paulo). H tradues portuguesas, que aqui no chegaram. Aparentemente, o texto da segunda traduo melhor. O tradutor, Cludio Marcondes, que leva sobre o outro a vantagem de usar, na traduo, sua lngua materna, parece s no ter sido inteiramente feliz na escolha do ttulo, dado que novelas e fantsticas so palavras mais apropriadas, a primeira por indicar o termo tcnico correspondente forma intermediria entre conto e romance, a segunda porque a expresso gtico, em ingls, tem uma riqueza de conotaes que seria impossvel recapturar em portugus. Karen Blixen, que escreveu sob o pseudnimo de IZAK DINESEN, teve parte de sua prpria vida romanceada no filme OUT OF AFRICA (titulo brasileiro: ENTRE DOIS AMORES) que, em 1985, foi premiado com sete estatuetas do Oscar (filme, diretor, fotografia, roteiro adaptado, direo de arte, som e msica original). O principal documento para a composio do roteiro do filme foi o livro de memrias OUT OF AFRICA (usado como nome do filme). Esse livro de memrias foi publicado no Brasil tambm em 1979, pela mesma Civilizao Brasileira, sob o ttulo de A fazenda africana. o relato autobiogrfico da experincia de Karen Blixen em sua estada no Qunia, de 1914 a 1931, no qual nos d uma viso precisa e sem preconceitos da vida africana em tempos coloniais e de fatos ocorridos na fazenda de caf que ela e seu marido possuam nos arredores de Nairobi. Cabe finalmente dizer que a escritora preferia escrever em ingls, e no no dinamarqus de seu pas de origem. H tambm as verses em dinamarqus, feitas pela prpria autora, mas as tradues foram feitas a partir dos textos em ingls.

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OS SONHADORESIsak Dinesen (em Sete novelas fantsticas. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1979, pp. 259-332)Numa noite de lua cheia do ano de 1863, um dhow rumava de Lamu para Zanzibar, acompanhando a linha do litoral, distante cerca de uma milha mar adentro. Diante da mono favorvel, as velas enchiam-se plenas. A embarcao carregava uma partida de marfim e de chifres de rinoceronte. Estes ltimos so altamente cotados como afrodisacos e os comerciantes vm sua procura, em Zanzibar, de paragens to longquas como a China. Mas alm dessa carga, o dhow tambm levava uma outra, secreta, que estava em vias de estimular e precipitar grandes foras, e das quais os pases sonolentos, por onde passava a embarcao, sequer suspeitavam. Esta noite imvel era surpreendente em seu profundo silncio e paz, dando a impresso de que algo havia sucedido ao mundo, quase como se a sua alma tivesse, por um passe de mgica, virado de cabea para baixo. A livre mono vinha de lugares longnquos e o mar movia-se ao seu embalo, em sua trajetria infindvel, vigiado pela nevoenta face luminosa da lua. Mas a claridade da lua sobre as guas era de tal ordem, que dava a impresso de que toda a claridade do mundo que estava em realidade irradiando-se do mar para ser refletida no cu. As ondas pareciam slidas, como se algum pudesse seguramente caminhar sobre elas, enquanto que era nas profundezas do cu vertiginoso que se poderia cair e afundar naquelas turbulentas e insondveis profundidades de mundos prateados, mundos de prata brilhante, ou ento de prata fosca e escurecida, prata eternamente refletida em prata, movendo-se e transformando-se, erguendo-se lenta e imponderavelmente. Os dois escravos na proa estavam imveis como esttuas, com os corpos nus da cintura para cima, na noite quente, de colorao cinza-ferro, como o mar onde a lua no brilhava, de sorte que apenas suas claras sombras escuras, correndo ao longo das costas e dos membros, marcavam suas formas de encontro vasta plancie. O gorro vermelho de um deles cintilava soturnamente luz do luar, como uma ameixa. Mas um dos cantos da vela, agarrando a luz, alvejava como a barriga branca de um peixe morto. O ar era de estufa, e to mido que todos os pranches e cordas do barco exsudavam um orvalho salgado. As guas pesadas cantavam e murmuravam ao longo da proa e da popa. No convs da popa havia uma pequena lanterna pendurada, e trs pessoas a seu redor. O primeiro deles era o jovem Said Bem Ahamed, filho de uma irm de Tippo Tip, muito amado por esse homem extraordinrio. Ele estivera, por causa da traio de seus rivais, por dois anos, como prisioneiro no Norte, mas escapara e chegara at Lamu, utilizando muitos meios inslitos. Agora, estava aqui, incgnito, rumando para sua casa a fim de vingar-se de seus inimigos. Em verdade, era a esperana de vingana no corao de Said que, mais poderosamente que a mono, impulsionava o barco para a frente. Essa esperana funcionava tanto como vela quanto lastro. Tivessem sabido que Said esta noite acercava-se de Zanzibar num barco, e muitas pessoas poderosas teriam feito apressadamente suas malas e recolhido seus harns, para poder escapar antes que fosse tarde demais. Da vingana de Said, por fim, outras histrias foram contadas. Estava sentado no convs, imerso em profundos pensamentos, com as pernas cruzadas e inclinado para a frente, de sorte que as mos entrelaadas descansavam nas pranchas do convs. O segundo e mais idoso do grupo era uma pessoa de grande fama, o famoso contador de estrias, Mira Jama, cujas criaes tm sido amadas por centenas de tribos. Como Said, estava sentado com as pernas cruzadas, com as costas voltadas para a lua, mas a noite era suficientemente clara para mostrar que, em algum encontro com o destino, tivera decepadas, de sua cabea escura, as orelhas e o nariz. Estava pobremente vestido, apesar de ainda guardar uma certa preocupao com a aparncia. Ao redor de seu corpo magro enrolava-se um leno cor-de-rosa, grosso e 2

desbotado, que, por vezes, a um movimento seu, flamejava e queimava como fogo, ou puros rubis, luz da pequena lanterna. O terceiro do grupo era um ingls de cabelos de fogo, cujo nome era Lincoln Forsner, chamado, pelos nativos do litoral, de Tembu, que tanto pode significar marfim como lcool, escolha. Lincoln provinha de famlia rica e fora arrastado por muitos ventos para acabar aqui deitado, esta noite, de bruos sobre o convs do dhow, vestido com uma camisa rabe e largas calas indianas, mas de suas e barbeado como um cavalheiro. Estava mastigando as folhas secas, que em swaheli se chamam murungu, e que mantm a pessoa acordada e bem disposta, volta e meia dando cusparadas distncia. Isto o tornava comunicativo. Ele acompanhava a expedio de Ali, no s por seu amor ao jovem, mas tambm por curiosidade, j que vira muitos acontecimentos em vrios pases. Seu corao estava leve. Gostava muito de um barco e lhe agradavam a velocidade, a noite quente e a lua cheia. Como , Mira ele disse possvel que voc no nos possa contar uma estria, nesta noite amena de viagem? Voc costumava ter muitas estrias, dessas que esfriam o sangue e nos fazem temer nosso melhor amigo, estrias adequadas a uma noite quente e para pessoas em vias de grandes empreendimentos. Acabaram? No, no as tenho mais, Tembu respondeu Mira e isto em si j uma estria triste, adequada para pessoas em vias de grandes empreendimentos. Fui um timo contador de estrias e especializei-me em contos que fazem o sangue esfriar. Diabos, veneno, traies, tortura, escurido e loucura: esses eram os bens de Mira. Lembro-me agora de uma de suas estrias disse Lincoln. Voc me apavorou, assim como apavorou duas jovens danarinas de Lamu, que nada deviam temer, impedindo-nos de dormir noite. O sulto desejava uma verdadeira virgem, e depois de grandes buscas, trouxeramlhe uma das montanhas. Mas quando ele... Sim, sim irrompeu Mira, com toda a fisionomia mudando de repente, seus olhos escuros iluminando-se e suas mos readquirindo vida velha maneira dos contadores de estrias, como duas velhas serpentes danarinas chamadas de dentro da cesta pela flauta. O sulto queria uma virgem que nunca sequer ouvira falar de homens. Com grandes dificuldades, foi trazida uma do Reino das Amazonas nas montanhas, onde todas crianas masculinas era mortas pelas mulheres, que se guerreavam entre si. Mas quando o sulto ia-se aproximar dela, ele a viu entre os cortinados da porta olhando l fora para um jovem carregar de gua, que caminhava pelo palcio, e a ouviu dizendo para si mesma: Oh, cheguei a um bom lugar e aquela criatura ali deve ser Deus, ou um anjo forte, aquele que envia o raio. "No me importo agora de morrer, pois vi o que nenhuma outra criatura jamais viu. Nesse instante, o jovem carregador de gua olhou tambm para a janela l em cima, e assim permaneceu, olhando para a virgem. Por causa disso, o sulto ficou muito triste, e ordenou que os dois fosse enterrados vivos numa cmara de mrmore, suficientemente grande para abrigar o leito nupcial e que a pusessem debaixo de uma palmeira de seu jardim. E l ficara, sentado, sombra da mesma rvore, imaginando muitas coisas, sobretudo como os desejos de seu corao jamais haviam sido satisfeitos, enquanto um jovem rapaz tocava flauta. Esta foi a estria que voc um dia ouviu. Sim, mas melhor contada ento disse Lincoln. De fato concordou Mira e o mundo naquele tempo no podia passar sem Mira. As pessoas adoram ser assustadas. Os grandes prncipes, entediados com as douras da vida, desejam que o seu sangue voltasse a ser espicaado. As senhoras honestas, com as quais nada jamais acontecia, ansiavam por tremer em seus leitos por uma vez que fosse. As danarinas adquiriam ainda mas leveza quando estimuladas por estrias de fugas e perseguies. Ah, como o mundo nesses dias me amava! Alm do mais, eu era ento belo e tinha um rosto redondo. Bebia das melhores marcas de vinho, usava roupas entretecidas de ouro e mbar e o incenso queimava em meus aposentos. Mas como foi que aconteceu esta mudana? perguntou Lincoln. Ai de mim! exclamou Mira, reclinando-se de novo e assentando-se outra vez em sua antiga posio tranquila no decorrer dos anos acabei perdendo a capacidade de sentir medo. Quando se sabe como as coisas so na realidade, no consegue mais fazer poemas. Quando se teve contato e conversou com fantasmas e demnios, no fim, acaba-se sentindo mais medo dos credores 3

do que deles, e quando se tornou corno no tem mais qualquer receio de ser corneado. Tornei-me por demais familiarizado com a vida; ela j no pode mais iludir-me com a ideia de que uma coisa muito pior que outra. O dia e as trevas, um inimigo e um amigo reconheo que so a mesma coisa. Como que voc ir conseguir assustar algum quando voc mesmo j no se lembra mais do que seja medo? Inventei uma vez uma estria realmente trgica, uma excelente estria cheia de agonia, imensamente popular, de um jovem que, no fim, tem seccionadas suas orelhas e o nariz. Agora no consigo mais assustar ningum com ela, nem que me esforasse, pois agora sei que tlas no muito melhor do que deixar de t-las. Eis porque voc me est vendo aqui, osso e pele, e vestido nestes velhos trapos, seguidor de Said na priso e na pobreza, ao invs de me manter nas proximidades do trono dos poderosos, florescente e mimado, tal qual o jovem Mira Jama. Mas ser que voc no poderia, Mira perguntou Lincoln elaborar uma estria terrvel sobre a pobreza e a impopularidade? No respondeu o contador de estrias, orgulhosamente esta no a espcie de estria que Mira Jama conta. Bem, sim, ai de mim falou Lincoln, girando o corpo que a vida, Mira, seno uma mquina das mais excelentes, acuradamente regulada e infinitamente complicada, cuja finalidade transformar gordos e alegres filhotinhos em velhos, secos e cegos cachorros, e orgulhosos corceis de guerra em cavalgaduras magricelas, e rosados meninos jovens, para quem o mundo se mostra potencialmente cheio de delcias e aventuras, em velhos e fracos adultos, cujos olhos escorrem gua e que bebem chifres pulverizados de rinoceronte? Oh, Lincoln Forsner disse o contador de estrias sem nariz que o homem, quando voc medita com ateno, seno uma mquina acuradamente regulada e muito engenhosa, cuja finalidade transformar, com grandes requintes, o vinho tinto em Shiraz em urina? Pode-se at mesmo perguntar qual afinal o maior prazer: se beber ou urinar. E no meio tempo o que foi feito? Uma cano foi composta, um beijo foi surripiado, um intrigante foi assassinado, um profeta foi concebido, um julgamento justo foi articulado, uma piada foi inventada. O mundo bebia o jovem contador de estrias Mira. Ele lhe subiu cabea, correu em suas veias, f-lo cintilar de calor. Agora estou em minha caminhada descendente; o efeito perdeu-se. O mundo muito em breve sentir o m esmo prazer em urinar-me outra vez, e at nem sei se eu no estaria forando um pouco demais a situao. Mas as estrias que inventei estas duraro. Nesse meio tempo, que que voc faz para ser to amvel diante de uma vida que se quer livrar de voc perguntou Lincoln. Eu sonho respondeu Mira. Sonha? espantou-se Lincoln. Sim, com a graa de Deus disse Mira todas as noites, to logo adormeo, sonho. E em meus sonhos ainda sinto medo. As coisas ali so terrveis. Em meus sonhos, por vezes carrego comigo algo infinitamente querido e precioso, como sei perfeitamente que nada na vida o , e ento me parece que devo proteger esta coisa contra algum terrvel perigo, como no existe igual no mundo. Ao mesmo tempo, sinto que serei derrubado e aniquilado se a perder, se bem que saiba que no mundo real ningum derrubado e aniquilado por nenhuma perda. Em meus sonhos, a escurido povoada de horrores indescritveis, mas existem tambm s vezes fugas e conquistas de um prazer celestial. Permaneceu por alguns instantes em silncio, antes de prosseguir: Mas o que especialmente me agrada nos sonhos isto: l o mundo se cria continuamente minha volta sem qualquer esforo de minha parte. Aqui, agora, se eu quiser ir a Gazi, preciso conseguir um barco, comprar e embalar as provises, lutar conta o vento e, at mesmo, escalavrar minhas mos remando. E ento, quando chego a Gazi, que devo fazer l? Tambm nisso preciso pensar. Mas em meus sonhos, vejo-me caminhando sobre uma longa fileira de degraus de pedra que principiam no ancoradouro. Estes degraus nunca antes vi, ainda assim sinto que subir por eles uma grande felicidade e que me conduziro para um desiderato altamente agradvel. Ou ento, vejo-me caando numa paisagem em que h uma longa fileira de outeiros baixos, acompanhado de pessoas com arcos e flechas e que conduzem cachorros. Mas o que devo caar, ou porque me encontro ali, no sei. Numa ocasio, entrei num quarto vindo de um balco, bem cedo de madrugada, e sobre o cho de pedra vi duas pequenas sandlias de mulher, sendo que, incontinenti, pensei: so dela. No 4

mesmo instante, meu corao transbordou de alegria e se pacificou por inteiro. Mas no fiz nenhum esforo e no tive nenhuma despesa para obter aquela mulher. Em outras ocasies, tive conscincia que do lado de fora da porta havia um negro enorme, muito preto, que pretendia matarme; mas, ainda assim, eu nada tinha feito para torn-lo meu inimigo, e devia apenas esperar para que o prprio sonho me informasse o que fazer, pois eu mesmo no sabia o que fazer. O ar de meus sonhos e, em particular, depois que estive na priso com Said, sempre muito alto, e, em geral, vejo-me como uma figura muito pequena numa paisagem imensa, ou ento numa casa grande. Em tudo isso, um jovem, em absoluto, no veria qualquer atrativo; mas, para mim, agora, tem um encanto todo especial como o tem o verter gua depois de bebido o vinho. No posso dizer nada a respeito, Mira observou Lincoln pois eu mesmo dificilmente sonho. Oh, Lincoln, viva eternamente disse o velho Mira. Em verdade, voc sonha mais do que eu. Por acaso, no sei reconhecer os sonhadores quando os vejo? Voc sonha acordado e andando por a. E nada far pessoalmente para escolher seus prprios caminhos: voc deixa que o mundo se forme ao seu redor, abrindo, em seguida, os olhos para ver onde se encontra. Esta jornada noturna de hoje um sonho seu. Voc permite que as ondas do destino o arrastem a bel-prazer, a fim de, amanh de manh, abrir os olhos para descobrir onde est. Para ver a cara bonita do destino disse Lincoln. Voc sabia, Tembu falou Mira, de repente, aps uma pequena pausa que se, ao plantar um p de caf, voc vergar a raiz principal, esta planta comear, depois de um breve intervalo, a mostrar uma multiplicidade de pequenas e delicadas razes, quase aflorando superfcie? Esta planta no ser produtiva, nem carregar frutos, mas florescer mais ricamente que as outras. Estas delicadas razes so os sonhos da rvore. medida que elas se espraiam, a rvore no mais precisa pensar em sua vergada raiz principal. Ela se mantm viva graas a elas um pouco, no por muito tempo. Ou, ento, pode-se tambm dizer que a rvore morre por causa delas, se se preferir. Pois, em verdade, o sonho a maneira de pessoas bem educadas cometerem suicdio. Quando voc noite deitar-se para dormir, Lincoln, no deve pensar, como as pessoas costumam sugerir, numa longa fileira de carneiros ou camelos atravessando um porto, porque caminham numa nica direo e o seu pensamento os seguir. Ao invs, voc dever pensar num poo profundo. No fundo desse poo, no centro deles, surge uma fonte dgua que se espraia em pequenos fios para todas as possveis direes, como os raios de uma estrela. Se voc puder fazer com que seus pensamentos acompanhem a gua, no apenas numa direo, mas igualmente para todos os lados, logo cair no sono. Se voc conseguir que tambm o corao o faa de maneira suficientemente concentrada, como o faz a planta de caf com as pequenas razes superficiais, certo que morrer. Ento voc pensa que este que o meu problema: que eu quero esquecer minha raiz principal? perguntou Lincoln. Sim respondeu Mira deve ser isso. A no ser que, como muitos de seus compatriotas, voc jamais tenha tido uma raiz principal. A no ser que seja isso repetiu Lincoln. Continuaram navegando por algum tempo em silncio. Um escravo pegou uma flauta e tocou algumas notas para test-la. Porque ser que Said no diz nada? Lincoln perguntou a Mira. Said levantou ligeiramente os olhos e sorriu, mas nada disse. Ele est meditando respondeu Mira. Esta nossa conversao lhe parece muito inspida. No que ele pensa? perguntou Lincoln. Mira pausou um pouco. E disse: Bem, existem apenas dois pensamentos possveis para uma pessoa de alguma inteligncia. Um deles : Que farei no instante seguinte: ou hoje noite, ou amanh de manh? E o outro: Que pretendeu Deus ao criar o mundo, o mar, o deserto, o cavalo, os ventos, a mulher, o mbar, os peixes, o vinho? Said est pensando ou numa coisa ou noutra. Talvez esteja sonhando observou Lincoln. No falou Mira, aps uma pausa Said no. Ele ainda no sabe sonhar. O mundo ainda o est bebendo. Ele subir sua cabea e fluir em seu sangue. Ele pretende acelerar as batidas de 5

seu corao. Sonhando no est, mas talvez esteja orando para Deus. Ao tempo em que se termina a orao para Deus esse o tempo em que surgem as razes superficiais e se comea a sonhar. possvel que esta noite Said esteja orando, enviando ao Senhor sua prece com tanto vigor como aquele que ser usado pelo Anjo em sua trombeta, no ltimo dia do mundo, com tanta energia como a do elefante quando copula. Said diz para Deus: Deixe-me ser o mundo inteiro. Ele diz prossegue Mira que no mostrar piedade e que no pede nenhuma para si. Mas a que Said se engana. Ele acabar mostrando piedade antes que termine com ns todos. Voc alguma vez sonha por duas vezes com o mesmo lugar? perguntou Lincoln, depois de uma pausa. Sim, sim respondeu Mira. Este um grande favor que Deus nos presta, uma grande satisfao para a alma do sonhador. Retorno, depois de longo tempo, em meu sonho, ao lugar de um velho sonho, e meu corao se desmancha de prazer. Continuaram navegando por algum tempo mais sem que algum dissesse alguma coisa. Ento, de repente, Lincoln mudou de posio, sentou-se, e se ps confortavelmente. Cuspiu no convs os restos de seu Murungu, procurou algo no bolso e comeou a enrolar um cigarro. Vou contar-lhe esta noite, Mira, um conto j que voc no tem nenhum. Voc me fez recordar coisas h muito passadas. Muitas boas estrias vieram de sua parte do mundo para a nossa, e, quando era criana, e as apreciava muito. Agora vou contar-lhe esta para o prazer de seus ouvidos, Mira, e para o corao de Said para quem ela poder, inclusive, vir a ser til. Tudo o que ser dito para mostrar-lhe como eu era h vinte anos, treinado, como voc diz, Mira, para sonhar, e quem era a mulher que me ensinou a faz-lo. Aconteceu exatamente como vou contarlhe. Mas quanto a nomes e lugares, alm de condies especficas dos pases em que ocorreu, e que talvez voc considere estranhas, no lhe darei quaisquer explicaes. Voc dever tentar compreender o mximo possvel e deixar o resto do lado de fora. Numa estria no mau compreender s a metade. H vinte anos, quando eu era um jovem de vinte e trs anos, estava uma noite de inverno sentado no quarto de um hotel, entre montanhas, com neve, tormentas, grandes nuvens e uma lua louca grassando l fora. Devo dizer que o continente europeu, do qual voc j ouviu falar, consiste de duas partes, uma das quais mais agradvel que a outra, e que so separadas por alta e abrupta cadeia de montanhas. No se pode cruz-la a no ser em alguns pontos onde a formao montanhosa um pouco menos hostil, e onde passagens, foram feitas, com muito esforo para var-la. Havia um ponto destes, nas proximidades do hotel em que eu estava. Era uma passagem usada por pedestres, cavalos e mulas, e at mesmo carruagens, cortada nas rochas, e no seu ponto mais elevado, onde, depois de laboriosa subida, em que se amaldioava o destino, se comeava a descer, para logo sentir uma doce brisa acariciando rosto e pulmes, uma irmandade de homens santos construra uma grande casa, destinada a recompor as foras dos viajantes. Eu vinha do Norte, onde as coisas andavam frias e mortas, rumo ao azul e voluptuoso Sul. O hotel era o ltimo reduto antes da travessia da garganta, que me conduziria para o outro lado, e que eu pretendia varar no dia seguinte. Era ainda um pouco prematuro o incio da temporada de viagens. Da que eram poucas as pessoas que se encontravam na estrada. L no alto das montanhas a neve ainda se acumulava grossa. Para o mundo, eu me assemelhava a um jovem belo, rico e alegre, nessa jornada, que conduzia de um prazer a outro, tratando de obter para si, no trajeto, o melhor de tudo. Mas, em verdade, eu estava era sendo arrastado ao lu por um torvelinho, por culpa de meu corao ferido, pobre idiota numa alucinada caada em busca de uma mulher. Sim em busca de uma mulher, Mira, quer voc acredite ou no. Eu j a andara procurando em muitos lugares. E, de fato, era to desesperanada minha procura que muito provavelmente j teria desistido se encontrasse em mim foras para faz-lo. Acontece que a minha prpria alma, Mira, meu caro, encontrava-se no seio daquela mulher. E nem era uma moa de minha prpria idade. Era muitos anos mais velha que eu. De sua vida eu no sabia nada a no ser o que me parecia particularmente difcil de engolir e, o pior de 6

tudo, no tinha nenhuma razo especial para acreditar que ela sequer se mostrasse satisfeita se eu, por acaso, tivesse sucesso em encontr-la. A coisa toda comeou da seguinte maneira: Meu pai era um homem muito rico na Inglaterra, proprietrio de grandes fbricas e de uma considervel herdade no campo, dotado de famlia numerosa e de uma enorme capacidade de trabalho. Lia muito a Bblia nosso Livro Sagrado e se considerava o prprio substituto de Deus aqui na Terra. Na verdade, no sei se era capaz de distinguir entre o que seria medo de Deus e sua prpria auto-estima. Acreditava que era seu dever transformar esse mundo catico num universo de ordem e certificar-se que todas as coisas se tornassem teis o que, no conceito dele, significava o mesmo que torn-las teis para ele. Em sua natureza pessoa, sei apenas de duas coisas que no podia controlar: nutria, contra seus prprios princpios, um forte amor msica, particularmente pera italiana; e, por vezes, no conseguia dormir noite. Mais tarde minha tia, sua irm, que no gostava dele nem um pouco, contou-me que ele havia, como jovem, nas ndias Ocidentais, impelido ao suicdio, ou mesmo assassinado, um homem. possvel que fosse esta a razo de sua insnia. Eu e minha irm gmea ramos muito mais jovens que nossos demais irmos e irms. Que mosca o mordera, fazendo com que concebesse duas mais crianas quando j havia ultrapassado a maior parte dos problemas com as outras, um mistrio para mim. No dia do Juzo Final haverei de lhe solicitar uma explicao. Tenho s vezes pensado que deve ter sido o fantasma do cavalheiro das ndias Ocidentais que o perseguia. Nunca consegui satisfazer meu pai. Sofria comigo muitas tristezas e preocupaes, e acredito mesmo que se eu no tivesse sido sangue de seu sangue, ele teria visto com prazer meus descaminho. Naquela poca, eu sentia, na qualidade de Meu Filho Lincoln, que era sempre projetado, moldado e encaixado em todas as espcies de matrizes, a fim de me tornar til, geralmente entre uma e trs horas das madrugadas. Nessas mesmas horas, eu costumava passar instantes acalorados e barulhentos, pois me tornara oficial num regimento ladino do exrcito, e l, para manter meu prestgio junto aos filhos das mais tradicionais famlias do pas, gastava boa parte do dinheiro, do tempo e dos talentos que meu pai considerava, em verdade, e de direito, dele. Por essa poca, morreu um vizinho nosso, deixando uma jovem viva. Ela era bonita e rica, e havia tido um casamento infeliz, tendo em suas provaes se consolado atravs de uma amizade sentimental com minha irm gmea, que era to parecida comigo que seu eu vestisse uma de suas roupas ningum seria capaz de distinguir-nos. Por essa razo, meu pai imaginou que possivelmente esta senhora consentiria em casar-se comigo, tirando de seus ombros o meu peso e transferindo-o para os dela. Essa perspectiva me agradava tanto ou mais do que qualquer outra que me pudesse ter sido apresentada na ocasio. A nica coisa que pedi a meu pai que me desse licena para viajar ao continente europeu durante o ano de luto da senhora. Nesses dias, eu tinha fortes inclinaes por vinho, jogo e briga de galo, alm de apreciar a companhia de ciganos e ter uma paixo toda especial por discusses teolgicas, que eu havia herdado de meu prprio pai todas facetas que este achava que seria bom descartar antes que me casasse com a viva, ou, pelo menos, que no a deixasse contempl-las de muito perto enquanto ainda tinha a chance de desistir do casrio. Como meu pai soubesse o quanto eu era ardente e rpido em assuntos amorosos, creio que tambm temeu que eu pudesse seduzir minha noiva a um relacionamento prematuramente ntimo, aproveitandome de nossa vizinhana no campo e, talvez, de minha semelhana com minha irm. Por todas essas razes, o velho concordou que eu viajasse pelo prazo de nove meses, na companhia de um seu velho companheiro de escola, que vivia de sua caridade e a quem ele podia dessa maneira converter em elemento til, o que lhe causava especial satisfao. Este homem, entretanto, logo foi descartado por mim, pois quando chegamos a Roma ele se entregou ao estudo dos mistrios do antigo culto pripico de Lmpsaco, deixando-me vontade com minhas diverses. Mas no quarto ms de meu ano de graa, aconteceu que me apaixonei por uma mulher num bordel romano. Eu havia ido l em companhia de um grupo de telogos. No era, entretanto, nem um lugar luxuoso onde as pessoas muito ricas vo para divertir-se, nem tampouco um lugar barato, desses que abrigam artistas e ladres. Era uma casa de mdia respeitabilidade. Lembro-me da rua estreita onde ficava e dos muitos odores que havia ali. Se jamais eu voltasse a senti-los, haveria de sentir que chegara em casa. A esta mulher devo a bno de compreender e de ainda lembrar-me 7

do significado de palavras como lgrima, corao, saudade e estrela que vocs, poetas, usam tanto. Sim, no que se refere a estrelas, em particular, Mira, havia nela muito que se assemelhava a uma estrela. Entre ela e as outras mulheres notara-se a mesma diferena que h entre um cu coberto e um cu estrelado. Talvez voc tambm tenha encontrado nas andanas de sua vida mulheres assim, auto-iluminadas, e que brilham no escuro, fosforescentes como madeira incandescente. Quando, no dia seguinte, acordei em meu quarto de hotel, lembro-me de ter sentido um grande temor. Pensei: Ontem, noite, eu estava bbado; minha cabea enganou-me. No existe semelhante mulher. Incontinenti, senti calor e frio ao mesmo tempo, mas consegui controlar-me, para concluir: Eu no poderia, por conta prpria, ter inventado uma mulher como essa. Somente nosso mais alto poeta poderia t-lo feito. De nenhuma maneira, teria imaginado uma mulher com tanta vida e com tamanha fora. Levantei-me, de imediato, e me dirigi diretamente at sua casa, onde, efetivamente, a encontrei de novo, exatamente com o mesmo aspecto que tinha em minha lembrana. Mais tarde, constatei que a grande impresso de fora que ela dava era, de alguma maneira, e no fim das contas, falsa: ela no tinha toda aquela fora que aparentava. Vou contar-lhe o que ocorria: Se, durante toda a sua vida, voc se habituou a se dirigir contra os ventos e as correntes e, subitamente, num lance inesperado, colocado a bordo de um barco que navega, como ns o fazemos, esta ficar impressionado com o poderio do barco. No obstante, estar enganado e, num certo sentido, tambm estar certo, pois no inadequado dizer-se que o poder das guas e dos ventos de algum modo pertencem ao barco, desde que ele foi capaz, dentre todos os barcos, de aliar-se aos elementos. Assim, em toda minha vida sob a gide de meu pai eu fora ensinado a lutar contra os ventos e as correntes da vida. Nos braos dessa mulher, ao contrrio, senti-me de acordo com eles, erguido e carregado para diante pelas foras da prpria vida. Na ocasio, pois, acreditei que o fato se devia a sua extraordinria fora, apesar de ignorar at que ponto ela se havia aliado com todos os ventos e correntes da vida. Depois desta primeira noite, passamos a nos encontrar sempre. Nunca fui capaz de apreciar os ortodoxos casos de amor de meu pas, que comeam na sala de estar com banalidades, lisonjas e risadinhas, passando pelo estgio de toques de mos e ps, para terminar no que geralmente considerado o clmax, na cama. Este caso de amor que me aconteceu em Roma, que comeou na cama, ajudado pelo vinho e muita msica barulhenta, e que evoluiu para uma espcie de corte e amizade, desconhecidas para mim, at ento, foi o nico que jamais apreciei. Depois de um certo tempo, frequentemente eu a levava a passeios que duravam o dia todo, ou um dia inteiro e uma noite. Comprei uma pequena carruagem e um cavalo, com a qual circulvamos em Roma e na campagna, indo at Frascati e Nemi. Cevamos nas pequenas estalagens e de manh cedo frequentemente parvamos na estrada e deixvamos o cavalo pastar beira do caminho, enquanto ns ficvamos sentados no cho, bebendo uma garrafa de vinho tinto verde, comendo passas e amndoas, e olhando l no alto as aves de rapina circulando sobre a grande plancie, e cujas sombras, na pradaria rala, corriam ao longo de nossa carruagem. Uma ocasio, numa pequena cidade, presenciamos um festival, com lmpadas chinesas penduradas ao redor da fonte, na clara noite outonal. Vimos o festival de um balco. Em muitas ocasies, tambm, fomos at a orla martima. Tudo isso passou-se no ms de setembro, um ms excelente em Roma. O mundo comea a ficar pardo, mas o ar continua claro como gua de montanha, e estranho que os ares estejam coalhados de cotovias e que elas cantem durante esta poca do ano. Olalla gostava muito de tudo isso. Ela sentia um grande amor pela Itlia e tinha excelentes conhecimentos a respeito da boa comida e vinhos. Por vezes, ela inventava de vestir-se a rigor com cashmeres e plumas, apresentando-se alegre como um arco-ris, como se fosse a amante de um prncipe, e certo que nunca houve na Inglaterra uma dama que a superasse ento; mas, em outras ocasies, ela punha a touca de linho das mulheres italianas e danava nas pequenas cidades maneira do pas. Difcil era ento encontrar uma mais forte e graciosa danarina, embora ela at gostasse mais de ficar sentada comigo, observando as danas alheias. Tinha uma extraordinria sensibilidade para todas as impresses. Onde quer que fssemos ela sempre observava muito mais coisas que eu, embora eu tenha sido um bom observador em minha vida. Mas, ao mesmo tempo, 8

no parecia haver para ela muita diferena entre alegria e dor, ou entre coisas tristes e agradveis. Eram todas igualmente bem-vindas, como se em seu corao soubesse que eram a mesma coisa. Numa tarde em que retornvamos a Roma, por volta do crepsculo, Olalla, sem chapu, estava dirigindo a carruagem e incentivando o cavalo para que engrenasse um galope. A brisa, ento, afastava seus longos cabelos negros da face, e de novo mostrou-me uma longa cicatriz de queimadura, que, semelhana de pequena cobra branca, estendia-se de sua orelha esquerda at a clavcula. Perguntei-a, como j havia feito anteriormente, de que modo foi possvel que ela se queimasse tanto assim. Ela no quis responder, comeando, ao invs, a falar de todos os grandes prelados e comerciantes de Roma que estavam apaixonados por ela, at que eu disse, rindo, que ela no tinha corao. Diante desta resposta, ficou silenciosa por alguns instantes, sempre conduzindo a carruagem velocidade mxima, o forte sol incidindo diretamente em nossos rostos. Oh, sim disse por fim tenho um corao. Mas ele est enterrado no jardim de uma pequena casa branca perto de Milo. Para sempre perguntei. Sim, para sempre respondeu pois o lugar mais lindo que existe. O que existe perguntei-lhe, com o corao oprimido de cimes numa pequena casa branca de Milo, capaz de manter seu corao l para sempre? No sei disse. Alis, no h de ter muita coisa, agora, pois ningum mais cuida do jardim ou afina o piano. possvel que l hoje morem estranhos. Mas l h luar, quando a lua se ergue, e almas de pessoas mortas. Ela falava, frequentemente, dessa maneira extravagante, mas era sempre to graciosa, gentil e de certo modo humilde na forma como o fazia que nunca deixava de me encantar. Gostava muito de agradar e se esforava ao mximo para consegui-lo, embora no o fizesse como um criado que se torna rgido em seu receio de desagradar, mas como algum muito rico, que esparrama benesses sobre as pessoas de uma cornucpia da plenitude. Como uma leoa, forte de dentes e de garras, que se torna insinuante para obter os seus favores. s vezes, ela me parecia uma criana e, depois, outra vez, velha, como aqueles aquedutos, construdos h mil anos, que se estendem sobre a campagna e lanam suas longas sombras sobre o cho, e cujos muros majestosos, antigos e rachados, brilham como mbar ao sol. Nessas ocasies, eu me sentia, ao lado dela, como uma coisa nova e vazia, um tolo garotinho. E havia sempre aquela alguma coisa que me fazia senti-la como muito mais forte que eu. Tivesse eu tido certeza que ela era capaz de voar, e que, consequentemente, poderia erguer-se para longe de mim e da terra sempre que o desejasse, ter-me-ia dado a mesma sensao, acredito. No foi antes do fim de setembro que eu comecei a pensar no futuro. Percebi ento que no poderia de maneira nenhuma viver sem Olalla. Se eu tentasse afastar-me dela, pensei, meu corao voltaria como gua que corre para baixo num declive. Assim, conclui que tinha de me casar com ela e faz-la vir morar comigo na Inglaterra. Se, quando eu lhe tivesse perguntado, ela houvesse feito a menor objeo, eu no teria ficado to aborrecido com o seu comportamento posterior. Mas ela disse imediatamente que viria. E ficou mais carinhosa, mais cheia de dengues comigo a partir daquele instante do que jamais o fora antes, e falvamos de nossa futura vida na Inglaterra e de todas as coisas de l, dando boas gargalhadas juntos. Falei-lhe de meu pai e de como ele sempre fora um entusiasta da pera italiana, o que foi a melhor coisa que pude dizer a seu respeito. Eu sabia, ao falar-lhe dessas coisas, que jamais haveria de me aborrecer outra vez na Inglaterra. Foi nessa ocasio que, pela primeira vez, me surpreendi com o aparecimento da figura de um homem, sempre que me acercava de Olalla, que eu nunca havia visto antes. As primeiras vezes no pensei no assunto, mas aps nosso sexto ou stimo encontro ele comeou a ocupar meus pensamentos e a tornar-me curiosamente mal-disposto e pouco vontade. Era um judeu de seus cinquenta ou sessenta anos, magro e de pequena estatura, faustosamente vestido, com diamantes nas mos e com maneiras de um educado senhor do mundo. Ostentava uma extrema palidez, acentuada pelos olhos muito escuros. Eu nunca o vi com ela, ou em sua casa, mas esbarrava nele quando ia l, ou quando saa, de sorte que pareceu-me que ele a circundava como a Lua em torno da Terra. Algo de extraordinrio deve ter sobressado nele desde o primeiro dia, do contrrio no teria tido a ideia que agora me enchia a cabea de que ele tinha algum poder sobre Olalla e era um 9

esprito malfico. No fim, interessei-me tanto por ele que fiz com que meu criado italiano fizesse perguntas a seu respeito no hotel em que morava, tendo assim aprendido que se tratava de um judeu holands, fabulosamente rico, que se chamava Marcus Cocoza. Passei a me preocupar tanto com o que poderia significar a presena de um homem desses na rua em que morava Olalla e tambm com o porqu de ele aparecer e desaparecer to misteriosamente que no fim, meio contra a vontade pois temia o que ela me pudesse dizer perguntei-lhe se ela o conhecia. Olalla ps dois dedos sob o meu queixo e suspendeu-o, dizendo: Voc no notou ainda, Carissime, que no tenho sombra? H tempos atrs vendi minha sombra ao diabo, em troca de um pouco de alvio para o corao, e tambm para divertir-me. Aquele homem que voc tem visto rondando l fora com a sua habitual acuidade, voc adivinhar, sem dificuldades, que se trata de nenhuma outra seno desta sombra minha, com a qual no tenho mais qualquer relao. Por vezes, o diabo a deixa caminhar por a. Nessas ocasies, natural que tente voltar para deitar-se a meus ps, como costumava fazer. Mas, em nenhuma hiptese eu o permitirei, pois o diabo poder denunciar toda a barganha, se eu consentir! No se preocupe com ele, meu pequeno astro. Percebi que ela estava obviamente, a seu modo, dizendo a verdade, afinal. medida que falava, comprovei: ela no tinha sombra. Em suas proximidades, nada havia de preto ou triste e as negras sombras da preocupao, arrependimento, ambio ou medo, que parecem inseparveis de qualquer ser humano at de mim mesmo, apesar de eu, nesses dias, comportar-me como um rapaz meio irresponsvel haviam sido extirpadas de sua presena. S me restava beij-la, dizendo que haveramos de baixar a cortina e deixar sua sombra l na rua. Foi por esses dias, tambm, que comecei a sentir uma estranha sensao, que mais tarde voltei a experimentar, e que ento, inocentemente, confundi com felicidade. Onde quer que eu fosse, parecia-me que o mundo perdia substncia e comeava lentamente a erguer-se do solo, tornando-se um mundo de luz apenas, inteiramente isento de solidez. Nada mais parecia macio. O Castelo de Santo ngelo era um castelo inteiramente suspenso no ar e eu senti que poderia at mesmo suspender entre os dedos a Baslica de So Pedro. Tampouco, tinha medo de ser atropelado por uma carruagem nas ruas, to consciente estava de que a carruagem e os cavalos no teriam mais substncia do que se tivessem sido feitos de papelo. Sentia-me extremamente feliz, embora ligeiramente areo, cheio de f, e considerava tudo isso que me estava acontecendo como a premonio de uma felicidade ainda maior que estava por vir, ou uma espcie de apoteose. Eu imaginava que o universo, juntamente comigo, estava sobre asas em seu caminho rumo ao stimo paraso. Depois, aprendi com clareza o que significa: o princpio de um adeus final, o canto do galo. Desde ento, em minhas viagens, tenho, por vezes, sentido um pas ou um grupo de pessoas tomar este mesmo aspecto insubstancial. E, num certo sentido, eu tinha razo O mundo que me circundava, estava de fato sobre asas, rumo ao alto. Apenas eu mesmo, sendo muito pesado para o voo, ficava para trs, perdido na mais completa desolao. Ocupava-me a mente o pensamento de que eu deveria escrever uma carta ao meu pai, informando-o de que eu no mais poderia casar com a viva, quando fui informado que um de meus irmos, que era oficial da Marinha, encontrava-se em Npoles com sua guarnio. Ponderei que talvez fosse melhor entregar-lhe a carta em mos e informei a Olalla que iria a Npoles, ausentando-me por alguns dias. Perguntei-lhe se ela achava que veria o velho judeu durante minha ausncia, mas ela me assegurou que nem o veria, nem falaria com ele. Eu no me dava l muito bem com meu irmo. Quando falei com ele, percebi pela primeira vez como meus planos para o futuro haveriam de configurar-se diante dos outros, fazendo com que me sentisse muito mal vontade. Apesar de sempre considerar essa opinio idiota e desumana, ainda assim, pela primeira vez desde que conheci Olalla, no pude deixar de influenciar-me com a lembrana daquela atmosfera pegajosa e irrespirvel de meu antigo habitat. No obstante, dei a carta a meu irmo e lhe pedi que defendesse minha causa junto a meu pai da melhor maneira possvel, apressando-me a retornar para Roma. Ao l chegar, constatei eu Olalla havia partido. Como primeira informao, na casa em que havia morado, disseram-me que morrera subitamente de uma febre maligna. Esta informao mortificou-me e quase me enlouqueceu nos trs dias subsequentes. Mas logo percebi que o ocorrido no era exatamente assim, no era possvel que o fosse, da que me dirigi a cada um dos 10

habitantes da casa, solicitando, com splicas e ameaas, a verdade. Compreendi ento que deveria ter tirado Olalla daquele lugar antes de minha viagem a Npoles embora, por outro lado, de que teria adiantado, se ela mesma quisesse deixar-me? Uma estranha superstio fazia-me conectar sua desapario com o judeu, e numa ltima entrevista com a madama da casa, agarrei-a pelo gasganete, dizendo-lhe que sabia de tudo, alm de amea-la com o estrangulamento se no me contasse toda a verdade. Aterrorizada, a velha mulher confessou: Sim, fora ele. Olalla um dia sara e no mais retornara. No dia seguinte, um velho e plido cavalheiro judeu de olhos muitos pretos aparecera na casa e saldara os dbitos de Olalla, alm de pagar uma soma adicional para a madama a fim de ela no criar caso. Entretanto, no vira os dois juntos. Doente por no ter podido desabafar meu desespero, matando a velha criatura amarela, gritei: E para onde eles foram? Isto ela no pde responder, mas, pensando um pouco, acreditava ter ouvido o judeu mencionar para seu criado o nome de uma cidade chamada Basel. Dirigi-me, pois, para Basel, mas o fato que ningum que ainda no tenha experimentado a mesma dificuldade, poder imaginar os obstculos que se apresentam quando se tenta encontrar, numa cidade estranha, uma pessoa cujo nome se desconhece. Minha procura foi ainda dificultada pelo fato de eu desconhecer em que segmento social havia de procurar Olalla. Se tivesse de fato fugido com o judeu poderia a essa altura ter-se tornado uma grande dama, a ser encontrada em sua prpria carruagem. Mas por que razo teria o judeu deixado que ela morasse naquela casa em que a encontrei em Roma? possvel que agora ele voltasse a fazer a mesma coisa por alguma razo que eu desconhecesse. Por esse motivo, encetei uma circunstanciada busca em todas as casas de m fama de Basel, das quais existe uma quantidade bem maior do que se poderia imaginar, pois Basel a cidade da Europa que defende com mais severidade a santidade do casamento. Mas no encontrei nenhum trao nela. Pensei ento na cidade de Amsterdam, onde, pelo menos, teria chances de encontrar o nome Cocoza. E, realmente, encontrei em Amsterdam a bela casa antiga do judeu, alm de ter obtido a informao de que se tratava do homem mais rico do lugar, oriundo de uma famlia que comerciara com diamantes durante trezentos anos. Mas ele mesmo, segundo informaram, estava sempre viajando. Acreditava-se que no momento estivesse em Jerusalm. De Amsterdam, persegui vrias pistas falsas que me conduziram a muitos pases. Esta louca jornada minha durou cinco meses. No fim, decidi-me a ir a Jerusalm, e estava a caminho da Itlia, para embarcar em Gnova, com todos esses pensamentos galopando furiosamente em minha cabea, no instante mesmo em que me encontrava, como j lhe falei, no hotel de Andermatt, aguardando o momento de atravessar, no dia seguinte, a garganta. Na vspera, recebera uma carta de meu pai. Esta carta, durante alguns meses, me estivera seguindo, sendo enviada ao meu encalo de um lugar para outro. Meu pai escreveu-me o seguinte: J sou capaz de encarar sua conduta com clama e compreenso. Isto se deve leitura de uma coleo de documentos familiares, aos quais tenho dedicado nestes ltimos meses uma boa parte de meu tempo e ateno. Da anlise desses documentos, cheguei concluso que um destino altamente peculiar vive, como tem vivido nos ltimos duzentos anos, no seio de nossa famlia. Nos somos, como famlia, to melhor que outras nica e exclusivamente porque sempre tivemos entre ns um indivduo que carregou as fraquezas e vcios de sua gerao. As faltas, que normalmente teriam sido distribudas entre um nmero grande de pessoas, sempre se ajuntaram em torno da cabea de uma nica, permitindo, assim, que as outras tenham se tornado o que foram, e so. Relendo os papis, no posso mais ter qualquer dvida a respeito do fato. Tive oportunidade de detectar atravs de sete geraes o delinquente particular de cada uma delas, comeando por nossa antepassada Elizabeth, cujo comportamento no quero aqui detalhar. Quero apenas mencionar os exemplos de meus tios Herny e Ambrose, que, em seus dias, sem sombra de dvida... Seguiram-se vrios nomes e acontecimentos que reforavam a teoria de meu pai. Em seguida, prosseguiu: No sei se no seria a rigor mais um golpe fatal do que uma bno para nosso nome e famlia se essa estranha condio algum dia cessasse de existir. possvel que eliminasse muitas 11

preocupaes e a angstias, mas tambm poderia fazer com que nossa famlia deixasse de ser melhor que outras. Quanto a voc, tem sido to perseverante sua atitude no sentido de declinar de minhas instrues ou conselhos que sinto ter boas razes para consider-lo a vtima escolhida de sua gerao. Voc se recusou a fazer, por exemplo, com que a virtude se tornasse atraente e o prmio dela pela boa conduta fosse bvio. De minha parte, atingi em relao a voc um tipo de relacionamento suficiente filosfico a ponto de me permitir dar-lhe o que seria minha bno na realizao de uma carreira que tenha a vantagem de tornar repugnante e invivel para a sua gerao de nossa famlia a desobedincia filial, a fraqueza e o vcio. Jamais tornei a ver meu pai. Mas ouvi notcias a seu respeito de meu antigo professor que, muitos anos depois, tive oportunidade de encontrar em Smyrna, em circunstncias melanclicas. Meu pai se havia reconciliado a tal ponto com a situao que acabou ele mesmo se casando com a minha jovem viva. Tiveram um filho que foi batizado com o nome de Lincoln, Mas se ele lhe deu este nome porque afinal gostava mais de mim do que eu jamais supusera, ou se o fez apenas para remover as sensaes desagradveis que o pudessem assaltar nas madrugadas, entre uma e trs horas, em relao a seu filho, no sei. Eu havia lido a carta por duas vez e a estava tirando de meu bolso para l-la outra vez como passatempo, quando, desviando o olhar, percebi dois jovens que estavam entrando na sala de jantar do hotel, vindos da fria noite l fora. Como eu conhecesse um deles, imaginei que se ele me visse viria logo sentar-se comigo, o que de fato aconteceu, de sorte que ns trs acabamos passando a noite juntos. O primeiro desses dois jovens cavalheiros, bem vestidos e de maneira impecveis, era um rapaz originrio de uma famlia de nobres de Coburg, que, h um ano, eu conhecera na Inglaterra, onde fora estudar procedimentos parlamentares, pois pretendia entrar para a carreira diplomtica, alm de enfronhar-se nas tcnicas de criao de cavalos, tradicional meio de vida de sua famlia. Seu nome era Friedrich Holenemser, mas em seu aspecto e maneira era to parecido com um cachorro que fora meu, de nome Piloto, que eu passei a cham-lo assim. Era alto e bemapessoado, um rapaz realmente belo. H de agrad-lo, Mira, que eu aqui faa de sua prpria parbola engenhosa, dizendo que se tratava de uma pessoa que a vida em nenhuma hiptese concordava em engolir. Ele mesmo tinha um desejo veemente de ser engolido pela vida e sempre que surgia a ocasio no perdia a oportunidade de insinuar-se por sua goela abaixo, mas ela, teimosamente, o recusava. Por vezes, de tempos em tempos, s para imbu-lo de um pouquinho de iluso, ela o sorvia ligeiramente, embora nunca se permitisse uma golada decisiva; e mesmo nessas ocasies ela o regurgitava outra vez. O que era exatamente que havia nele que fazia com que o estmago da vida sentisse tanta repugnncia, no sei dizer. S posso dizer o seguinte: todas as pessoas que dele se aproximavam tinham de alguma maneira, a mesma sensao, e embora ele fosse uma pessoa contra a qual nada sentiam, era tambm uma pessoa pela qual nada podiam fazer. Da se explica que, mentalmente, ele estivesse ainda no estgio de um embrio muito jovem. Estabelecer-se como um embrio, provavelmente, demanda de um homem uma certa cota de habilidade ou sorte. Meu amigo Piloto nunca passara desses limites. Acredito que ele mesmo sentisse frequentemente que a sua situao era muito alarmante; e era realmente. s vezes, tornava-se possvel ver em seus olhos azuis um doloroso reflexo da luta desesperada pela vida que se travava em seu interior. Quando por acaso acontecia de ele se assenhorear de alguma faceta prpria, explorava-a ao mximo. Assim, era capaz de falar durante horas a respeito de sua preferncia por certos vinhos, como se entendesse imprimir fundo no seu ouvinte essa descoberta preciosa. Um filsofo que conhecia nos bancos escolares e do qual voc haveria de gostar, Mira, dizia: Penso, logo existo. Do mesmo modo, meu amigo Piloto repetia para si mesmo e para o mundo: Prefiro vinho Moselle ao do Reno, logo existo. Ou ento, se ele apreciasse um espetculo ou jogo, continuava a noite inteira a comentar: Este tipo de coisa me diverte. Mas ele no tinha nenhuma imaginao e era, ademais, muito honesto. Era-lhe impossvel ele mesmo inventar algo, tendo, portanto, que limitar-se descrio das impresses que se gravavam a fundo nele. Muito possivelmente era pura e simplesmente sua falta de imaginao que o impedia de 12

viver. Pois se algum quiser criar algo, como voc bem sabe, Mira, preciso primeiro imaginar, mas como ele era incapaz de imaginar o que Friedrich Hohenemser deveria ser, era-lhe impossvel criar qualquer Friedrich Hohenmser que fosse. Como eu disse, eu lhe havia dado o apelido de um cachorro meu, que possua em to grande grau a mesma disposio no tendo nunca a menor ideia do que quisesse fazer ou devesse fazer que acabei por liquid-lo, dando-lhe um tiro. O Deus de Friedrich Hohenemser foi no fim das contas mais condescendente com ele. Apesar disso, Piloto no se saa mal na sociedade europeia de ento, que, suponho, demanda apenas um mnimo de existncia de seus membros. Ademais, era um jovem rico, cor-de-rosa e branco, com um par de pernas vigorosas o que no deixava de envaidec-lo e chegava mesmo ao ponto de ser considerado por senhoras idosas como um modelo de jovem. Ele gostava de mim e sentia-se feliz por ter causado em mim impresso to definitiva que o fizesse merecer um apelido. Algum deu-me um apelido, pensava. Logo existo. medida que ele agora se aproximava de mim, notei que tinha havido mudana nele, como se tivesse adquirido vida; havia nele um brilho inusitado. Assim tambm brilhava o co Piloto e agitava a cauda nas raras ocasies em que esperava ter provado que realmente existia. No rapaz, possvel que fosse influncia de sua recente amizade com o cavalheiro que o acompanhava. De qualquer modo, eu tinha certeza que ele haveria de jogar na mesa os seus ases no decorrer da noite. Suspirei. Teria dado muito, naquela noite, pela companhia de um co realmente bom. Pensei com pesar em meus velhos cos ingleses. Ele me apresentou seu amigo como sendo o Baro Guildenstern, da Sucia. Eu no tinha tido ainda o prazer de sua companhia por mais de dez minutos antes de ser informado por ambos que o Baro em sua prpria terra carregava a reputao de ser um grande sedutor de mulheres. Isto me fez pensar embora a conversa de minha parte apenas se passasse num nvel superficial no tipo de mulher que existe na Sucia. As mulheres que me deram a honra de deixar-me seduzi-las, todas elas sempre insistiram em elas mesmas decidirem qual deveria ser o ponto central do quadro. Eu as apreciei por causa disso justamente, pois a residia a possibilidade de variedade numa performance que de outro modo seria montona. Mas no caso do Baro tornava-se claro que o ponto de gravidade estivera sempre inteiramente centrado nele. Supor-se-ia que ele seria de uma natureza destituda de entusiasmo, quando se referia s beldades que havia seduzido, mas no lhe parecia faltar entusiasmo, entretanto, quando desviava os olhos do ouvinte para aquilo que segundo ele era admirvel. De sua conversa, depreendia-se que todas as suas mulheres haviam sido exatamente da mesma espcie, de uma espcie que no conheo. Sendo ele o heri absoluto de cada conquista singular, admirei-me do porque haveria ele de se dar a tanto trabalho e estava obviamente preparado para despender qualquer espcie de esforo nesses assuntos para obter, a cada vez, uma repetio exata do mesmo truque. Para comear, sendo eu ainda jovem, estava altamente impressionado com tamanha superabundncia de apetite. Ainda assim, depois de algum tempo, extra de sua conversao, que era muito animada, e cada vez mais assim aos eflvios de algumas garrafas de vinho, a chave para a existncia do jovem sueco e que se concentrava em torno da palavra competio. A vida para ele era uma competio onde se fazia mister brilhar mais que os outros participantes. Eu mesmo, como menino, havia me sentido bastante inclinado competio, mas ainda antes de abandonar a escola j havia perdido o seu apelo, e por essa poca, a no ser que uma coisa fosse realmente de meu gosto, achava tolo esforar-me para obt-la simplesmente porque era do gosto de outras pessoas. Assim no acontecia com o Baro sueco. Nada no mundo inteiro era em si bom ou mau para ele. Estava sempre espreita de uma pista ou odor de outras pessoas que pudesse seguir, ansioso de saber o que estas consideravam precioso, a fim de super-las em sua obteno, ou ento para despoj-las. Quando deixado s, sentia-se perdido. Nesse estado, ele se tornava mais dependente de outros que o prprio Piloto e, provavelmente evitava a solido como quem evita o diabo. Encarava sua vida passada conforme depreendi de sua conversa como uma fileira de triunfos sobre uma fileira de rivais, e realmente como nada mais, embora fosse um pouco mais velho que eu. Ele no tinha nenhum interesse nem em seus rivais nem em suas vtimas. Nele no se encontrava nem admirao nem piedade, nenhum sentimento que no fosse de inveja ou desprezo. Entretanto, ele no era nenhum idiota. Ao contrrio, diria que era uma pessoa muito esperta. Adotara na vida a postura de uma criatura aberta, franca e direta, que um pouquinho 13

rude, mas facilmente desculpvel em razo de sua mente simples e espontnea. Com essa atitude, o seu olhar tornava-se atento e perquiridor e espionava as pessoas, a fim de, quando menos esperassem, arrancar-lhes uma avaliao das coisas, e assim extra-la em proveito prprio. Como ele fosse destitudo dos nervos que fazem as pessoas comuns sucumbir tenso, era dotado sem dvida de uma fora e de um vigor extraordinrio, e era considerado por ele mesmo e pelos outros como um gigante em comparao com aqueles que possuem imaginao ou compaixo. Meus dois conhecidos se davam muito bem, pois o Piloto sentia pulsar nele com as insinuantes maneiras do Baro uma nova vida e como pensava, tenho um amigo que um terrvel sedutor de mulheres, logo existo. De seu lado, o Baro ficava satisfeito de ter superado em brilho todos os anteriores amigos do rico e jovem alemo e de ser admirado por ele. No fundo, eles preferiam prescindir de minha presena, mas eram magneticamente arrastados em minha direo. O Piloto para mostra-me o amigo e o Baro pela nsia de rastrear alguma coisa que eu quisesse ou valorizasse, e que ele pudesse conquistar ou roubar-me. Depois de uns instantes, fiquei to entediado com a conversa do Baro que voltei minha ateno para o Piloto o que era raramente feito por qualquer pessoa e este, to logo obteve a chance, comeou a relatar-me os grandes acontecimentos de sua vida. possvel que voc no quisesse ser visto em minha companhia, Lincoln disse se soubesse de tudo. No estarei fora de perigo enquanto no deixar a Sua. As paredes tm ouvidos num pas de tanta inquietao poltica. Esperou um pouco para ver o efeito de suas palavras, e prosseguiu: Venho de Lucerne. Naquele instante, lembrei-me de que tinha havido uma luta na referida cidade, mas nunca me poderia ter ocorrido que o Piloto estivesse envolvido. As coisas andaram quentes por l ele disse. Pobre Piloto! A prpria verdade parecia em sua pequena boca modesta como uma inveno mal contada. Tenho certeza que o baro teria feito toda uma cadeia de mentiras aflorar com tanto aplomb que a audincia no teria em nenhum momento duvidado de sua veracidade. Mas Piloto prosseguiu: Matei um homem nas lutas das barricadas no dia trs de maro. Eu sabia que tinha havido nas ruas uma luta entre, de um lado os partidos no poder e os partidrios dos padres, e do outro, o povo comum que se rebelava. Tomado de um profundo arranco de inveja, por ele ter participado numa luta, perguntei: Voc matou um rebelde? Piloto sempre fora para mim uma figura de alta respeitabilidade e pequeno intelecto. Considerava, pois, bvio, que ele se posicionasse ao lado dos prelados, no que, pelo menos, eu no o invejava. Piloto acudiu orgulhosa e misteriosamente a cabea. Aps alguns instantes, disse: Matei o capelo do bispo de Saint-Gall. Os jornais noticiaram amplamente este assassinato e o assassino fora procurado em toda parte. Fique naturalmente curioso para saber como a grande faanha tinha cabido a Piloto e o fiz contar-me sua histria desde o incio. O Baro, a quem entediava ouvir o relato das faanhas de outrem, ficou sentado sem ouvir, bebendo e observando as pessoas que entravam e saam. Quando sa de Coburg disse Piloto tinha a inteno de ficar em Lucerne durante trs semanas com meu tio de Watterville. Antes de partir, entretanto, todas as senhoras elegantes do lugar, uma atrs da outra, solicitaram-me que lhes trouxesse de Lucerne um chapu da famosa chapeleira que chamavam de Madame Lola. Esta mulher, asseguraram-me, era conhecida de um extremo a outro da Europa. Senhoras das grandes cortes e capitais vinham a ela para a aquisio de seus chapus, pois nunca na histria da chapelaria havia-se conhecido semelhante gnio. No me opus, naturalmente a prestar s senhoras de minha cidade natal este servio, de modo que parti com os bolsos cheios de matrizes, e, at mesmo, pasme, pequenas mechas de cabelo para que combinassem com os chapus de Madame Lola. Ainda assim, em Lucerne, onde o ar estava impregnado de discusses polticas, esqueci-me completamente de Madame Lola, at que uma noite, quando eu estava jantando com um grupo de altos funcionrios e polticos, subitamente, arranquei de meu bolso com o leno um pedao de seda cor-de-rosa, e tive de explicar-me a respeito. Para minha surpresa, ato contnuo, a conversao bandeou para a chapeleira. Os homens casados, pelo menos, e todos os clrigos a conheciam muito bem. Era verdade, informou o bispo de Saint Gall, que se encontrava presente, a mulher era um gnio. O menor toque de sua mo, como uma palavra mgica, criava milagres de arte e elegncia, e as grandes damas de So 14

Peterburgo e Madri, e mesmo de Roma, peregrinavam at a loja da chapeleira. Mas ela no era apenas isso. Suspeitava-se que fosse uma conspiradora de primeira gua, que usava seu atelier como ponto de encontro aberto aos mais perigosos dos revolucionrios. E nesse particular tambm ela era um gnio, uma Circe movendo e organizando as coisas com os dedos mindinhos, de sorte que os mais duros de seus partidrios teriam morrido por ela. Todos me advertiram to fortemente para que me precavesse contra suas artimanhas que naturalmente a primeira coisa que fiz no dia seguinte foi uma visita a sua casa, na rua que me haviam indicado. Nessa ocasio, achei-a apenas uma mulher altamente inteligente e simptica. Ela anotou todos os meus pedidos e conversou comigo a respeito da viagem e at mesmo de meu carter e carreira. Um jovem de cabelos vermelhos entrou na loja enquanto eu estava l, e saiu de novo. Tinha aspecto de revolucionrio, mas ela lhe deu pouca ateno. Enquanto ela preparava todas as minhas encomendas, a atmosfera de Lucerne ficava mais e mais carregada de nuvens escuras; uma tormenta ameaava a cidade. Meu tio, que ocupava uma alta posio no conselho da cidade, previa algo de desastroso. Enviou minha tia e suas filhas para seu castelo, aconselhando-me a que fosse com elas. Mas eu sentia que no podia me afastar antes de ter avistado ainda uma vez Madame Lola para recolher as encomendas. No dia em que afinal me dispus a ir v-la, os distrbios nas ruas eram to grandes que tive de me aproximar de sua morada atravs de uma intrincada rede de pequenas ruas laterais, e mesmo isso era extremamente difcil. Mas quando entrei em casa, encontrei, do poro ao sto, um tumulto de gente armada entrando e saindo, dando, em verdade, a impresso da caldeira de uma bruxa. No havia tempo para se falar de chapus. Ela mesma, de p junto ao balco, animando e dando instrues ao pessoal, ao ver-me, pulou diretamente em meus braos. E gritou: Ah, finalmente, seu corao trouxe-o para o lugar certo! E toda a multido, ela junto, nesse momento avanou para fora da casa e pela rua abaixo. Fui arrastado pela turba, ou ento foi o prprio entusiasmo da mulher que se transmitiu a mim com tamanha fora que segui voluntariamente. Dessa maneira, em poucos instantes, fui enredado numa luta de barricadas e erguido ao topo de uma barricada, sempre ao lado de Madame Lola. Ela carregava as armas e as estendia aos combatentes e usava em seu terrvel trabalho toda a verve e habilidade que punha na confeco dos chapus. Agora, todas as pessoas a sua volta, embora bravas, sentiam medo, e tinham boas razes para senti-lo; mas ela mesma no denotava o menor trao de temor. medida que estendia os rifles para os homens na barricada, ela lhes estendia juntamente um pouco de sua prpria coragem. Podia-se ler isso em seus rostos. E eu mesmo estava na ocasio estranhamente convencido de que nada poderia lhe acontecer, ou poderia acontecer-me a mim enquanto estivesse com ela. Lembrei-me de nosso velho cozinheiro de Coburg contando-me que um gato tem nove vidas. Madame Lola, pensei, deve ter nela nove vidas de gato. Naquele instante, realmente, eu a via como algo mais do que humano, embora ela no fosse, como penso que j disse, nenhuma mulher de origem nobre, mas apenas uma chapeleira, no muito jovem, de Lucerne. Foi ento que eu mesmo, inflamado pela fria que me circundava, agarrei um rifle e disparei contra a multido de soldados e de milicianos que lentamente avanava pela rua cima ao nosso encontro. Meu prprio tio De Watterville poderia estar liderando-os, mas nem me lembrei dele. Nesse mesmo instante, fui empurrado para baixo, nem sei como, e fiquei estendido como morto. Quando acordei estava numa cama, num pequeno quarto, e Madame Lola se encontrava ali comigo. Ao tentar mover-me, constatei que meu joelho direito estava imobilizado com gesso. Ela deu uma grande exclamao de alegria ao ver-me acordar, mas em seguida encostou seu dedo nos lbios. No aposento escurecido ela me contou como a luta havia terminado e como eu havia morto o capelo. Pediu-me para ficar muito quieto, primeiro por causa de minha perna quebrada por um tiro, e depois, porque os nimos continuavam acirrados em Lucerne. Eu corria grande perigo e precisava ser mantido incgnito em sua casa. Fiquei ali no sto de sua casa durante trs semanas, cuidado por ela. A luta continuava e eu ouvia tiros. Mas eu pouco pensava na luta, em minha ferida, no que havia feito e no que haveriam os meus de pensar a respeito, e muito menos no perigo que corria. Parecia-me que de alguma maneira eu me havia erguido muito alto acima do mundo em que costumava viver, e que 15

agora me encontrava ali inteiramente sozinho com ela. Um mdico vinha ver-me de tempos em tempos. Ningum mais aparecia, mas Lola eventualmente punha sua echarpe e me deixava por algum tempo, pedindo-me que me mantivesse muito quieto at que ela voltasse. Essas horas, quando ela estava fora, eram-me infinitamente longas. Mas, enquanto estvamos juntos falvamos muito. Quando hoje relembro aqueles instantes, constato que ela no dizia muita coisa, mas que eu falava com uma fluncia fora do comum de coisas que sempre quis expressar. De um modo geral, eu compreendia a vida e o mundo, alm de mim mesmo, e inclusive Deus, naqueles dias que passei no sto. Especificamente, falvamos das grandes coisas que eu haveria de fazer em minha vida. Como fcil de compreender, eu j havia feito o suficiente para ser conhecido entre as pessoas, mas ambos acreditvamos que isso era apenas o comeo. Tomei conscincia de que muitos dos amigos dela haviam deixado Lucerne e que ela estava se expondo a perigos por minha causa. Por essa razo, implorei-lhe que fosse embora. No, ela respondeu, no me deixaria por nada neste mundo. Em primeiro lugar, depois do que eu havia feito, os revolucionrios de Lucerne passaram a admirar-me e a encarar-me como irmo, estando todos prontos a imolar-se por minha causa. Mas mais do que isso, ela explicou enrubescendo profundamente, se fssemos localizados pelos tiranos da cidade ou sua milcia, deveramos ambos insistir em que no havamos tomado parte nos combates, mas que estvamos juntos por causa de um caso de amor. Ela teria de se apresentar como minha amante, enquanto o ferimento seria justificado como sendo o golpe de um rival ciumento. Essas palavras dela, apesar de que a coisa toda no passava de uma farsa, novamente fizeram com que eu me sentisse extraordinariamente feliz, enchendo-me de sonhos quanto ao que eu haveria de fazer quando de novo ficasse bom. E, de fato, no sei se um verdadeiro caso de amor pudesse ter-me feito to feliz. Por fim, uma noite ela me informou que o doutor me havia dado alta, declarando-me fora de perigo, e que, portanto, precisvamos partir. Ela mesma deixaria Lucerne naquela noite. Eu deveria partir, secretamente, s primeiras horas da manh. Um amigo, ela disse, colocaria sua carruagem minha disposio e ele mesmo me escoltaria para fora da cidade. Fui, com as suas palavras, invadido por uma espcie de terror. Mas fui lento demais. No sabia o que havia comigo antes que fosse tarde demais. Madame Lola continuou falando afavelmente comigo. Disse que eu precisava ganhar alguma coisa que compensasse o meu esforo e que me daria todos os chapus que estavam em sua loja. Pois ela mesma no voltaria mais a Lucerne. Ato contnuo, com o auxlio de sua pequena criada, fez a jornada para cima e para baixo nas escadarias por doze vezes, sempre com uma carga de caixas de chapus, que colocava a meu redor. Comecei a rir e no fim no conseguia mais parar, pois me vi virtualmente afogado em chapus de todas as cores do arco-ris, enfeitados de flores e plumas. Cho, cama, cadeira e mesa estavam cobertos deles, provavelmente os chapus mais bonitos do mundo. Quando terminou de encher o quarto com eles, disse: Aqui tem voc os passaportes para conquistar os coraes das mulheres. Ela mesma colocou um chapu simples e uma echarpe, e pegando minha mo disse: Nunca jamais pense mal de mim. Tentei fazer o melhor por voc. Enlaou-me o pescoo com os braos, beijou-me, e num instante desapareceu. Ainda gritei Lola! mas foi em vo, voltei a cair na cadeira num ligeiro desmaio. A noite que passei depois de recuperar-me foi terrvel. No havia uma nica coisa agradvel em que pensar. A imagem do capelo do Bispo tambm comeou a preocupar-me, parecendo-me que no havia ningum a quem eu pudesse apelar no mundo inteiro. Lola era to boa quanto a sua palavra. Na manh seguinte, um idoso cavalheiro judeu, de grande elegncia, apresentou-se em meu sto, e aos ps da escadaria encontrei sua bela carruagem esperando por mim. Ele me levou atravs da cidade onde aqui e ali ainda se viam traos da luta, conversando afavelmente. Quando nos estvamos aproximando dos subrbios da cidade, ele me disse: A carruagem do Baro de Watterville dever encontrar-nos no parque determinado. Mas como os sentimentos do Senhor seu Tio foram feridos pelo seu comportamento, ele me pediu para avis-lo que preferia que o senhor prosseguisse viagem sem parada, a fim de que s se encontrassem mais tarde. Mas meu tio sabe exclamei com grande surpresa do que aconteceu comigo?

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Sim respondeu o velho judeu , desde o incio sabia de tudo. O Baro tem muito prestgio junto ao clero de Lucerne, da que duvidoso o que pudssemos ter feito sem sua ajuda. Ele, em seguida, silenciou, e seguimos calados; eu estava imerso numa grande agitao de esprito. Realmente a carruagem do meu tio me estava esperando nas proximidades de um parque, como o judeu havia informado. Quando paramos, um homem saltou da carruagem e lentamente se encaminhou em nossa direo. Reconheci o homem de cabelos vermelhos que havia encontrado em minha primeiro visita casa de Lola e, mais tarde, agora lembrava-me, na barricada. Parecia desgastado. Mancava ao caminhar e o seu rosto mostrava-se muito plido e contrado ao cumprimentar meu companheiro. Ainda assim, sorriu, de repente, ao voltar-se e ver-me. E eu o ouvi dizer: Ento esse o pequeno peixinho dourado de Madame Lola? Sim respondeu, sorrindo, o velho judeu esse o seu golem. Na ocasio, eu no sabia o que mais tarde vim a descobrir, que a palavra golem, em hebraico significa uma grande figura de barro, na qual se sopra magicamente a vida, em geral com a finalidade de se cometer algum crime que o prprio mgico no tem coragem de perpetrar. Esses golens so gigantescos em tamanho e fora. Os dois me ajudaram a embarcar na carruagem de meu tio e despedimo-nos. Continuei, com muitos pensamentos me atormentando, e no sabia como reencontrar-me. O cheiro de plvora das barricadas, nossas conversas sobre Deus e o beijo que Lola me deu no sto, juntamente com todos esses chapus que eu ganhara, tudo corria diante de meus olhos como aqueles pontos coloridos que se v nos olhos quando se olha longamente para o sol. Desde ento, no tenho tido oportunidade de pensar muito nessas grandiosas faanhas que eu deveria executar. Nem sequer me lembro quais eram. No obstante, indiscutvel que matei o capelo do Bispo e que devo cuidarme at sair deste pas. Fui tratado por um mdico que afirma que minha perna foi to cuidadosamente consertada que como se nunca se tivesse quebrado. De modo que voc agora atalhei est tentando encontrar esta mulher, procurando-a em todos os lugares, sem pode dormir noite? Como adivinhou? perguntou Piloto. Sim, estou procurando-a. Esvaziei-me de sentimentos e pensamentos at que possa v-la de novo. Ainda assim, ela no era jovem, como voc sabe, e tambm no era nobre, apenas uma chapeleira de Lucerne. Eu ouvira a histria de Piloto. E enquanto estivera ouvindo, sentira-me por mais de uma vez um tanto receoso. Muitos aspectos dessa histria eram para mim alarmantes. E essa fora a primeira vez em que eu me embebedara desde a perda de Olalla. bvio que agora quando bebo, mesmo quando no ultrapasso as duas garrafas deste vinho suo, minha cabea me atraioa, como decorrncia de eu, durante tanto tempo, ter pensado num nico assunto apenas. Esta narrativa de meu amigo assemelha-se demais a um dos meus prprios sonhos. Existem muitas facetas desta mulher das barricadas que me recordam as maneiras de minha corteso romana, e, ento, quando no meio da histria, aparece um velho judeu como o gnio da lmpada, torna-se bastante claro que h qualquer coisa de errado com minha cabea. A que distncia poderei estar da loucura pura e simples? Para esclarecer esta dvida continuei bebendo. No decurso da narrativa de Piloto, o Baro Guildenstern havia de tempos em tempos olhado para mim com um sorriso e algumas vezes havia sacudido a cabea num aceno. Mas medida que a histria avanara, havia perdido o interesse e pedira mais uma garrafa de vinho. Abriu-a, pois, e reencheu os copos. Meu bom Fritz disse rindo sei que senhoras adoram chapus. Para elas, um marido algum que lhes comprar chapus de todas as formas e cores possveis, Deus que o proteja. Mas uma pea desinteressante de se desvestir. Tenho deixado que elas mantenham o chapu quando tudo o mais j foi tirado; e quanto a levar com ele na cara, prefiro, francamente, a combinao... Quer dizer que voc nunca fez a corte a uma mulher sem levar com a combinao na cara? perguntou Piloto, um pouco nervosamente, olhando direto sua frente como se vislumbrasse algo longnquo. O Baro o olhou atentamente, como se estivesse a ponto de descobrir que o fracasso e um desejo insatisfeito poderiam ter valor para certo tipo de pessoa. E disse: Meu caro amigo, vou contar-lhe uma aventura que vivi em troca de sua histria: 17

H sete anos atrs fui enviado pelo coronel de meu regimento em Estocolmo, Prncipe Oscar, escola de montaria de Saumur. No cheguei a terminar meu perodo ali, j que m e envolvi com alguns problemas em Saumur, mas enquanto ali estive passei horas bastante agradveis em companhia de dois jovens amigos ricos, um dos quais era Waldemar Nat-og-Dag, que viera da Sucia comigo. O outro era o belga Baro Clootz, que pertencia nova nobreza, dono de larga fortuna. Atravs de cartas introdutrias de velhas tias nossas, meu amigo sueco e eu permanecemos durante um certo tempo numa curiosa comunidade de velhos legitimistas arruinados da mais alta aristocracia, que haviam perdido tudo que tinham na Revoluo Francesa e que viviam numa pequena cidade perto de Saumur. Todos os membros da comunidade eram muito idosos, pois quando jovens s senhoras faltaram dotes para casar e aos cavalheiros o dinheiro suficiente para manter a famlia no estilo de seus nomes tradicionais, de sorte que nenhuma gerao nova fora produzida. Podiam, assim, vislumbrar o prximo fim de seu mundo, e para eles ser jovem significa pertencer a uma casta inferior. As senhoras sacudiam as cabeas ao lerem as cartas de minhas tias, espantadas com as estranhas condies vigentes na Sucia, onde a nobreza ainda tinha coragem de procriar. Tudo isso entediava-me mortalmente. Era o mesmo que ser posto numa prateleira com uma srie de garrafas de vinho velho e picles, seladas e recobertas de pergaminho. Nesses crculos, falava-se muito numa jovem mulher que h um ano alugara uma bela casa na periferia da cidade. Eu a havia visto em minhas cavalgadas matinai, no interior dos jardins cercados. No incio, ela me interessou muito pouco. Eu a considerava apenas mais uma crente. No obstante, eu me espantava com o fato de a qualidade juvenil e a riqueza prspera no serem nela consideradas falhas, antes, pelo contrrio, pareciam valoriz-la ainda mais aos olhos ressequidos dos velhos. Os prprios velhos trataram de explicar-me que esta senhora havia consagrado sua vida memria do General Zumala Carregui, que se transformara, acredito, num heri e mrtir da causa do legtimo Rei da Espanha, morto nas mos dos rebeldes. Em sua homenagem, ela se vestia sempre de branco, vivendo numa dieta espartana, e realizando anualmente uma viagem de peregrinao ao seu tmulo na Espanha. Era muito caridosa com os pobres da cidade e sustentava uma escola para as crianas do lugar, alm de um hospital. Volta e meia, ela tambm tinha vises e ouvia vozes, provavelmente a voz doce e marcial do General Zumala. Por tudo isso, era muito conceituada. Que ela tivesse, antes da morte do mrtir, vivido com ele numa relao mais terrena de nenhum modo prejudicava sua reputao. O grupo de velhas pessoas solteiras, de ambos os sexos, estava, pelo contrrio, muito intrigado com a possibilidade de uma pessoa to santa ter feito experincias terrenas, como o estariam, provavelmente, as onze mil virgens martirizadas de Colnia, quando foram, no paraso, apresentadas santa muito cotada, Maria Madalena. Mas o corao de meu amigo Waldemar, quando a conheceu, derreteu-se to rapidamente como um torro de acar numa xcara de caf muito quente. Arvid ele me disse , nunca encontrei semelhante mulher. Sei que foi o destino que a mandou, pois como voc sabe, meu nome Noite-e-Dia e o meu escudo de armas est bipartido em preto e branco. Por isso ela foi destinada a mim ou eu a ela. Sinto que essa Madame Rosalba tem nela mais vida que qualquer outra pessoa que jamais conheci. uma santa de primeira magnitude e usa em seu mister tanto vigor quanto um comandante ao assaltar uma cidadela. uma flor fresca e plena em meio a essas velhas e secas sementes. um cisne eterno no lago da vida. a parte branca de meu escudo. E, ao mesmo tempo, a morte a circunda de alguma maneira e essa a rea negra do escudo de armas dos Nat-og-Dag. Mas isto s posso explicar recorrendo a uma metfora que se me apresentou quando a olhava. Desde que aqui chegamos aprendemos bastante a respeito do cultivo de vinhas e, sobretudo, ficamos sabendo tambm como se obtm a perfeio na fabricao do especialssimo vinho branco do distrito; eles deixam as uvas nas parreiras mais tempo do que no caso dos outros vinhos. Assim, as uvas ultrapassam ligeiramente o ponto de madurez, tornando-se muito doces e um pouco secas. Ademais, atingem a uma condio muito peculiar que chamada em francs pourriture noble, e, em alemo, Edelfaule, e que o que d o sabor ao vinho. Na atmosfera de Rosalba, Arvid, h um sabor que no existe em nenhuma outra mulher. possvel que seja o 18

verdadeiro odor da santidade, ou ento, a nobre putrefao das uvas de um vinho nobre e raro. Ou, ento, Arvid, meu amigo, so as duas coisas ao mesmo tempo, numa alma bipartida em preto e branco, uma alma Nat-og-Dag. No domingo subsequente corria o ms de maio consegui ser apresentado a Madame Rosalba, aps a missa, no jantar em casa de um velho amigo meu. Estes velhos aristocratas, em meio a sua runa, mantinham uma mesa bastante razovel e no desprezavam em absoluto um bom vinho. Mas a jovem senhora comia lentilhas e po seco, com um copo de gua, mas fazia-o com tanta doura e aberta franqueza que a dieta chegava a parecer muito nobre, e no passaria pela cabea de ningum oferecer-lhe outra coisa. Depois do jantar, no agradvel luscofusco do salo, ela se ps a entreter o grupo, com a mesma franqueza e modstia, relatando uma viso que tivera recentemente. Ela se vira disse numa vasta campina florida, com um grande grupo de jovens crianas, cada uma das quais tinha uma pequena aura em torno da cabea, to clara quanto a chama de uma minscula vela. O prprio So Jos se apresentara a ela para inform-la que aquilo era o paraso e que ela estava ali para cuidar das crianas. Estas no eram outras seno as crianas-mrtires, os bebs de Belm assassinados por Herodes. Ele enfatizou a doura de sua funo, tanto mais que, assim como o Senhor sofrera e morrera em aras da humanidade, assim sofreram e morreram essas crianas em aras do Senhor. Uma grande felicidade se abatera sobre ela ao som dessas palavras disse e suspirando com enternecimento declarara que jamais desejaria outra coisa por toda eternidade que no tomar conta e brincar com as crianas martirizadas. No sou um grande crente em matria de vises ou de paraso, mas ao ouvir esta mulher contar a sua histria no tive qualquer dvida quanto ao fato de que ela tinha realmente visto o que descrevia, ou ento de que ela fora escolhida para o paraso. Tinha tanta vida que no se podia deixar de imaginar como a escolha fora bem feita; os pequenos mrtires haveriam de se deleitar. Uma vez, enquanto falava, ergueu os olhos. Meu Deus, que par de olhos tinha! Eram, de fato, da maior fora; quando lanava um olhar era de se derreter. Mas naquele instante, enquanto escutava modestamente o que dizia e olhava minha volta para o feliz crculo de seus velhos admiradores, convenci-me de que em algum lugar nessa histria havia uma audaciosa mistificao. Rosalba bem que podia ser uma santa de primeira gua. Assim como podia ser que estivesse espargindo bnos de uma cornucpia da plenitude sobre ricos e pobres indiscriminadamente. E ainda podia ser que tivesse amado realmente o General Zumala Carregui, caso em que o general seria de se invejar. Mas ela no havia amado apenas a ele neste mundo e no vivia no presente apenas por causa de sua memria. A monogamia e realmente ela existe, e eu mesmo j fui amado por mulheres de disposio mongama mostra-se na fisionomia. possvel que se faa confuso entre uma freira e uma prostitua, mas aquelas mulheres que na ndia segundo me contaram imolam-se nas chamas funerrias das piras de seus maridos so inconfundveis. De duas uma, pensei, ou este cisne branco, Rosalba, capaz de contar os nomes de seus amantes com as contas do rosrio, ou alguma virgem perversa e envelhecida pois como virgem no era jovem, tendo j ultrapassado seu trigsimo ano que, num ato de desespero, pretexta para os meus legitimistas que fora a amante de um general. Rosalba no havia olhado para mim mais de uma vez, mas tinha conscincia de minha presena. Eu e ela, por mais que estivssemos separados, estvamos em to ntimo contato como se estivssemos danando um pas-de-deux no centro de um palco, com o velho corps du ballet agrupado nossa volta. Quando se dirigiu janela para ver se a carruagem havia chegado, as pregas do vestido branco e as tranas do cabelo negro movimentaram-se e flutuaram exclusivamente para mim. Pensei: nunca em minha vida tive um rival morto. Vejamos agora do que capaz o General Zumala. Durante a Pscoa fui obrigado a ouvir a um sermo sobre Maria Madalena. Teria esta santa sido mais difcil de seduzir que outras, ou mais fcil? Diz-se que o velho corcel dos combates sempre ergue a cabea quando o clarim retirado da gaveta. Logo me tornei um visitante frequente no castelo de Madame Rosalba. No sei se a velha comunidade aristocrtica tinha alguma ideia a respeito dos perigos que a sua santa corria. Fui aceito como seu acompanhante nas visitas aos pobres e doentes da cidade. No incio, eu a consultava bastante a respeito de minha alma e relatei-lhe muitos de meus pecados, nenhum dos 19

quais pareceu impression-la especialmente. bem possvel que lhe fossem familiares. Creio que seus conselhos eram bons, da que se eu tivesse realmente tido a inteno de reformar-me teria feito bem em segui-los. Ela se comportava sempre com a mesma seriedade e doura e parecia gostar de mim, mas em nosso amoroso ps-de-deux seus movimentos eram lentos. Eu, de meu lado, mostrava-me paciente. Era obrigado a manter meu amigo Waldemar vista e sabia que tinha uma agradvel surpresa para ela ao fim da dana. Algo havia naquela casa que me parecia estranho. Fui criado na crena luterana e levado igreja no dia de Natal por minha boa av. Ouvi muitos sermes em minha vida e conheo a diferena entre a santidade e o pecado, tanto quanto o prprio Pastor Methodius, apesar de nem sempre concordarmos quanto a certos pormenores. Mas, com a minha palavra de honra, nela era difcil fazer a distino. Falava de teologia com tanta voluptuosidade como se a mesa do Senhor fosse o feudo exclusivo de um goumert e quando se referia ao amor dava a impresso de se tratar de assunto prprio para um jardim de infncia. Isto no me agradava. Tive uma governanta que acreditava em bruxas e, por vezes, em companhia de Rosalba, recordava-me das sombrias histrias da velha Maja-Lisa. Mesmo assim, nunca antes me acontecera de cruzar com uma bruxa to santa e uma santa to frvola. No fim, entretanto, obtive de Rosalba a promessa de um rendez-vous em sua casa ao cair da noite de uma sexta-feira. Nesse dia, as pessoas iam ao enterro da viva de um marechal que atingira os cem anos. O ms de junho chegava ao fim. Estava ficando cansado de sua morosidade e me decidi: ter que ser na sexta-feira, do contrrio nunca mais voltarei a fazer amor com uma mulher. Tudo isso poderia ter terminado de uma maneira inteiramente diferente, se outras coisas no tivessem ocorrido em Saumur. Na ocasio, aconteceu que um velho cavalheiro judeu, muito rico no estilo daquele judeu de sua narrativa, Fritz fez uma parada de uma semana em Saumur, em seu regresso da Espanha. Tudo que ele tinha era do melhor. Tanto carruagem, como criados e diamantes eram muito comentados. Mas o que, sobretudo, impressionou a fundo nossa escola de equitao foi o par de cavalos andaluzes que trazia consigo. Eram, em particular um deles, os mais belos que jamais haviam sido vistos na Frana. At mesmo em meu regimento da Sucia dificilmente se encontraria coisa melhor. Alm do mais, haviam sido treinados na mange real de Madri, e era uma pena que estivessem nas mos de um judeu e civil. Por causa dos cavalos e os comentrios fervilhavam acabei negligenciando Madame Rosalba durante alguns dias. Poucos entre ns teriam sido ricos o suficiente para compr-los, e ainda assim achvamos que era um ponto de honra ret-los em Saumur. Por fim, o Baro Clootz, que era milionrio e um jovem da nobreza dotado de muito esprito, uma noite, aps o jantar, fez uma proposta para cinco de ns que havamos por muito tempo sido seus amigos mais ntimos. Prometeu que compraria o cavalo do judeu e o ofereceria como prmio numa competio em que teramos que mostrar do que ramos capazes. A regra dessa competio era a seguinte: num mesmo dia, cavalgar trs milhas francesas, beber trs garrafas de vinho do distrito e fazer amor com trs mulheres no percurso. A ordem dos fatores ficaria a critrio de cada um, mas o cavalo do judeu haveria de pertencer quele que primeiro chegasse casa do Baro Clootz aps o preenchimento das condies. A sua proposta foi um sucesso enorme, e eu j estava em minha mente cuidando da ordem consecutiva dos itens, revendo o meu crculo de conhecidas entre as beldades do distrito, quando descobri que o dia escolhido para a competio era o mesmo do meu rendez-vous com Madame Rosalba. O dia fora escolhido para os dois eventos pelo mesmo motivo: porque a elite da cidade estaria ocupada, sem condies de enfiar os narizes em nossos assuntos. Eu tinha, entretanto, confiana em mim mesmo e medida que caminhava de braos dados com o jovem Waldemar imaginei que seria uma boa pilhria. Este continuava adorando Rosalba e colocando-a num pedestal, no sendo nada improvvel que um dia chegasse a mudar de religio por sua causa, e, at mesmo, a tornar-se monge. Frequentemente, eu tinha de ouvir seus panegricos. Ainda assim, depois de exaustiva argumentao, conseguimos convenc-lo a participar da competio. Acredito que ele desejasse mostrar-se a Rosalba no cavalo espanhol, pois era um cavalo razovel. 20

Sem querer ser vaidoso, devo dizer que cheguei pontualmente ao branco castelo de Rosalba naquela sexta-feira tarde. Pela sua prpria criada nica outra alma que havia ficado no castelo, tendo as demais ido ao enterro fui levado ao seu boudoir na torre, que ficava na extremidade de longa escadaria de pedra. As venezianas estavam fechadas e o ambiente mergulhado num luscofusco e, para quem vinha de fora, a temperatura tinha o frescor de uma igreja. Viam-se no aposento muitos lrios brancos, de sorte que o ar estava carregado de sua fragrncia. Sobre uma mesa haviam sido postos corpos e uma garrafa do melhor vinho que j provei, Chateau Yquem, seco. Esta completava minha terceira garrafa do dia. Rosalba tambm estava l. Como sempre, elegantemente vestida, mas de modo muito simples. Num toque, havia se transformado numa beleza extraordinria. Se o que aconteceu comigo naquela torre parecer um tanto selvagem e fantstico, mais na linha de um conto de fadas ou de uma histria de fantasmas do que de um romance, a culpa no minha. verdade que o dia estava quente e foi seguido de uma trovoada noite, e quando entrei naquele aposento vindo da estrada branca, pesado em minhas botas de montaria, minha cabea estava um tanto zonza. Devo tambm ter estado mais apaixonado do que eu mesmo suspeitava, pois tudo centrava-se nela. Parecia-me que o vinho que havia bebido e as loucas corridas a cavalo nada mais eram que cerimnias iniciatrias para este grande momento de amor. No obstante, lembro-me muito bem de tudo que aconteceu. No m e restava muito tempo. De cabea leve como eu estava, com o aposento girando diante de meus olhos, as palavras me afloravam com facilidade, e no demorou ela estava em meus braos com as brancas vestes em desordem. Era como um lrio na tormenta, branca e trmula, com o rosto mido. Mas ela me conteve com os braos estendidos, e disse: Espera um momento. Aqui estamos ns sozinhos. No h ningum na casa, a no ser ns e a criada que o trouxe at aqui, aquela bonita moa. Voc no est com medo? Arvid exclamou voc j ouviu falar na histria de Don Giovanni? Ela me olhou to intensamente que tive de responder-lhe que at j assistira pera sobre ele. Rosalba perguntou: Voc se lembra, ento, da cena em que a esttua do Comandante vem busc-lo? Existe uma esttua assim no tmulo do General Zumala na Espanha. Em resposta, exclamei: Oh, deixe-a mant-lo l! Espera disse Rosalba. Rosalba pertencia ao General Zumala Carregui. O dia em que tra-lo, a pobre Rosalba desaparecer. Por outro lado, uma pera precisa chegar ao seu quinto ato, mais cedo ou mais tarde. E voc, minha estrela do norte, h de ser o seu heri. A sua honra est envolvida no assunto como se voc fosse uma mulher. provvel que voc no mostrasse nenhuma piedade sequer com Maria Madalena. Rosalba era uma bolha muito brilhante, e quando voc romp-la, tudo o que sobrar