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OS SONHADORES DE UTOPIA NO CINEMA DE BERNARDO BERTOLUCCI LIGIA CLARET LORENCINI WILD

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OS SONHADORES DE UTOPIA NO CINEMA DE

BERNARDO BERTOLUCCI

LIGIA CLARET LORENCINI WILD

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UNIVERSIDADE PAULISTA –UNIP

PROGRAMA DE PÓS - GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

OS SONHADORES DE UTOPIA NO CINEMA DE BERNARDO

BERTOLUCCI

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Comunicação da Universidade

Paulista –UNIP, para obtenção do título de

mestre.

Orrientador: Prof.Dr. Juan Guillermo Droguett

LIGIA CLARET LORENCINI WILD

São Paulo, dezembro de 2008

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UNIVERSIDADE PAULISTA –UNIP

PROGRAMA DE PÓS - GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

OS SONHADORES DE UTOPIA NO CINEMA DE BERNARDO

BERTOLUCCI

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Comunicação da Universidade

Paulista –UNIP, para obtenção do título de

mestre.

LIGIA CLARET LORENCINI WILD

São Paulo, dezembro de 2008

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho:

Ao meu marido Estéfano

Aos meus filhos: Gabriela, Beatriz e Marcelo

A minha mãe.

A todos que cultivam a esperança de construir um mundo

melhor.

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AGRADECIMENTOS

Juan Droguett: professor, orientador e amigo.

Professoras Bárbara Heller e Lúcia Bruno, que participaram da banca de

qualificação e defesa.

Meu filho: Marcelo Stefan Wild

Aos amigos que de muitas formas me auxiliaram:

Drª Margareth Brandini Park

Dr. Álvaro Lorencini

Professoressa Nicoletta Palla

Bibliotecária Rosaelena Scarpelini

Sônia Vetori

Marcela Moro

Paulo Ricardo Gilioli

A diretoria do Istituto San Paolo e em especial a Fátima Maciel Bindes.

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RESUMO

“Os sonhadores de utopia no cinema de Bernardo Bertolucci” é o título

desta Dissertação que tem como principal objetivo demonstrar como alguns

motivos recorrentes ,entre eles os sonhos e as utopias, impulsionaram este

cineasta a criar um estilo no qual se fusionam de modo inusitado, em um ato de

expressão e sensibilidade , a política e a poesia . Problematiza sobre o suporte no

qual se inscrevem os sonhos e as utopias: o cinema de Bertolucci, o lugar por

excelência onde as ideologias travam o embate entre a idealização estética da

produção e os efeitos objetivos de sua ação social. Para isso, aplicam-se as

categorias da consciência antecipadora, a transgressão e aquilo que chamamos

de “estética da utopia” à mais recente obra Os Sonhadores (2003), na qual o

autor explora o recurso da metalinguagem para, através do meio, explorar os

valores da tradição cinematográfica ancorados no fato histórico da Primavera de

68, que marcou definitivamente o rumo de uma experiência estética, cujo fim é a

representação do tempo passado, presente e futuro do ser humano em sociedade.

As fontes bibliográficas deste trabalho são baseadas na própria obra de

Bernardo Bertolucci e nos críticos que se curvam sobre sua linguagem, assim

como nas vertentes cinematográficas das quais recebeu influência.Também nas

obras de Karl Mannheim e Ernest Bloch encontram-se novas interpretações para

o conceito de utopia amparadas na “decadência das utopias modernas”. Desta

forma, a Dissertação estrutura-se no eixo das confluências entre utopia e cinema,

nos motivos filmográficos que o cineasta utiliza na sua produção, na análise de

uma tríade de filmes e nos efeitos receptivos que até hoje fazem do cinema de

Bertolucci um exemplo de Revolução Estética em cujo cerne situam-se: a

incerteza do econômico, do político e do social como parte da condição humana.

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Palavras-chave: cinema – utopia – Bernardo Bertolucci.

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RIASSUNTO

“I sognatori di utopia nel cinema di Bernardo Bertolucci” é il titolo di

questa Dissertazione, che ha come obiettivo principale il dimostrare come alcuni

motivi ricorrenti, fra questi i sogni e le utopie, hanno spinto il cineasta a creare uno

stile nel quale si fondono in modo inusitato, in un atto di espressione e sensibilitá,

la politica e la poesia. Problematizza sulla base su cui si iscrivono i sogni e le

utopie: il cinema di Bertolucci, il luogo per eccellenza dove le ideologie bloccano lo

scontro fra l’idealizzazione estetica della produzione e gli effetti oggettivi della sua

azione sociale. Per questo si applicano le categorie della coscienza anticipatrice,

la trasgressione e quello che chiamiamo “l’estetica dell’utopia” alla piú recente

opera I Sognatori (2003), nella quale l’autore sfrutta il mezzo del metalinguaggio

per, attraverso il mezzo, sfruttare i valori della tradizione cinematografica, ancorati

nel fatto storico della Primavera del 68, che marcó definitivamente la meta di

un’esperienza estetica, il cui fine é la rappresentazione del tempo passato,

presente e futuro dell’essere umano nella societá.

Le fonti bibliografiche di questo lavoro sono basate sulla stessa opera di

Bernardo Bertolucci e sui critici che si piegano sul suo linguaggio, come pure le

inclinazioni cinematografiche dalle quali é stato influenzato. Anche nell’opera di

Karl Mannheim e Ernest Bloch si incontrano nuove interpretazioni per il concetto

di utopia sostenute dalla “decadenza delle utopie moderne”. In questo modo, la

Dissertazione si struttura sull’asse delle confluenze fra utopia e cinema, sui motivi

cinematografici che il cineasta utilizza nella sua produzione, sull’analisi di una

triade di film e sugli effetti ricettivi che fino ad oggi fanno del cinema di Bertolucci

un esempio di Rivoluzione Estetica al cui centro si trovano: l’incertezza

economica, politica e sociale come parte della condizione umana.

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Parole chiave: cinema – utopia – Bernardo Bertolucci.

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WILD, Ligia Claret Lorencini Sonhadores de utopia no cinema de Bernardo Bertolucci/ Ligia Claret Lorencini Wild. São Paulo(SP): [s.n.], 2008. 238 p. il. Orientador: Dr Juan Guillermo Droguett. Dissertação (Mestrado) - Universidade Paulista – Instituto de Ciências Humanas da Universidade Paulista 1. Cinema 2. Utopias 3. Bertolucci, Bernardo 4. Droguett, Juan Guillermo

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 02

Capítulo I: O CINEMA COMO LUGAR DAS UTOPIAS 06

1.1.O cinema na modernidade 11

1.2.Utopias e utopia 23

1.3.Os motivos filmográficos de Bernardo Bertolucci 36

Capítulo II: OS SONHADORES DE UTOPIAS NA FILMOGRAFIA DE BERTOLUCCI 61

2.1.“Antes da Revolução” 71

2.2.“Beleza Roubada” 93

2.3.“Os Sonhadores” 108

Capítulo III: VIGÊNCIA DAS UTOPIAS NO CINEMA DE BERNARDO BERTOLUCCI 145 3.1.Primavera de 68: “a imaginação no poder” 150

3.2.Estética da Utopia e o cinema de Bernardo Bertolucci 169

3.3.Os filmes no filme: a metalinguagem em “Os Sonhadores” 183

CONSIDERAÇÕES FINAIS 205

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 211

ANEXO I 217

ANEXO II 228

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INTRODUÇÃO

“Os poderosos tentam nos fazer crer que as ideologias morreram, mas não é

verdade. E se elas morreram precisamos ressuscitá-las. Não há utopia sem ideologia

e se não existe utopia não há esperança. Se não há esperança não há futuro. Como

conviver num mundo sem futuro?”

Bernardo Bertolucci

Sonhadores de utopias no cinema de Bernardo Bertolucci,é o titulo

desta dissertação que tem por principal objetivo demonstrar como o cinema

deste conhecido produtor italiano mantém vigente o conceito de utopia,

relacionando-o com a estética cinematográfica contemporânea.

O objeto de estudo configura-se na estreita relação do cinema com os seus

modos de representar a realidade social, política e econômica no esteio da

evolução ou revolução do pensamento, da subjetividade e do comportamento que

imperam na modernidade.

Questionando sobre a aparente falta de utopias nos tempos modernos

surgiu a hipótese de que o cinema poderia ser o meio de comunicação mais

apropriado para a produção e divulgação dos sonhos e utopias. A frase, em

epígrafe, do diretor Bernardo Bertolucci corroborou nosso pensamento e chamou

a atenção para seu filme Os Sonhadores o qual apresenta um vestígio do passado,

“um excedente utópico”, que traz os ideais dos jovens da Primavera de 68, jovens

portadores das esperanças em relação a um futuro possivelmente melhor e que,

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naquele momento, atuaram como protagonistas nos cenários de mudanças

percebidas pela consciência antecipadora, manifestadas na transgressão e nas

novas formas estéticas requeridas pelas utopias.

Os procedimentos metodológicos adotados partem de um pressuposto

teórico alinhavado na história do pensamento que encontra no cinema o espaço

propício para representar o imaginário, o “ainda-não” e na sua linguagem

simbólica possibilita re-criar as vivências individuais e sociais.

Para atender a esses pressupostos, buscamos nas teorias de Ernst Bloch e

Karl Mannheim, as bases das categorias com as quais pretendemos analisar e

interpretar a representação estética das utopias no cinema de Bernardo

Bertolucci. As categorias inferenciais –consciência antecipadora, transgressão e estética da

utopia -, ancoram-se na idéia de que o filme , como suporte, fornece, do ponto de

vista dedutivo, os elementos suficientes para a construção lógica de uma estética

que parte da montagem de Os Sonhadores, passa para o contexto sócio- cultural e

se abre para horizontes de sentido na função metalingüística, uma vez que o

cinema de Bernardo Bertolucci remete às teorias e a história do cinema,

oferecendo uma gama de possibilidades ao espectador para a identificação e

interpretação seja, no plano do enquadramento , nos diálogos ou imagens em

movimento que facilitam o fluxo da diegese do filme.

Essas categorias se inter-relacionarão com as categorias referentes aos

recursos de produção cinematográfica - voz em off, close-up e metalinguagem-, e com

os traços estilísticos de Bernardo Bertolucci - o realmente acontecido, o socialmente

pensado, o poeticamente imaginado.

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No primeiro capitulo deste trabalho “O cinema como lugar das utopias”,

abordaremos a origem do cinema atrelando-a ao conceito de modernidade e de

utopia, como se prefiguram no cinema de Bernardo Bertolucci.

A imagem, que em movimento é a alma do cinema, não apenas representa

a realidade, mas é um produtor de realidade quando o espectador não só vê a

imagem, algo visível, mas vê também, o que está por trás da imagem. Portanto, a

imaginação, associada à função criadora e ligada aos processos culturais de um

tempo histórico transmitido pelas imagens cinematográficas, podem contribuir

para preservar a ordem vigente ou introduzir novas configurações dos códigos

sociais, configurações essas que ao transgredirem estarão realimentando a

imaginação.

No segundo capítulo, Os Sonhadores de Utopias na filmografia de

Bernardo Bertolucci, analisaremos os filmes Antes da Revolução (1964), Beleza

Roubada (1996) e Os Sonhadores que têm em comum o protagonismo dos jovens

em 1968 .Interpretaremos o filme Os Sonhadores a partir das categorias inferenciais

acima enunciadas com a finalidade de vislumbrara a atualidade da imaginação

utópica no cinema de Bertolucci.

No terceiro capítulo, Vigência das utopias no cinema de Bernardo

Bertolucci, ressaltará o eixo central das narrativas dos filmes analisados - a

primavera de 68 - como o momento crucial da revolução estética na qual a

imaginação ocupa lugar do poder. Trataremos das estéticas de vanguarda que

fortemente influenciaram o cineasta assim como a importante contribuição deste

diretor para o cinema italiano. Enfim, salientaremos a metalinguagem, como um

recurso estilístico usado por este diretor para reivindicar as possibilidades do meio

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a favor de fins humanos e sociais colocam o ser humano em conformidade com o

tempo e o espaço que lhe são “contemporâneos”.

Esta pesquisa está inserida no campo da comunicação pela vertente da

mídia cinematográfica, na área de concentração cultura midiática e na linha de

pesquisas que favorece o protagonismo social do espectador, quando este se

reconhece no passado histórico da tradição, na vivência de um presente incerto e

em um futuro que poderá “vir a ser” e que já é possível na ficção.

Neste sentido, o cinema de Bertolucci apresenta argumentos interessantes

para se constituir em um bom roteiro a ser explorado nesta Dissertação.

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CAPÍTULO I

O cinema como lugar das utopias

“O ter lugar das coisas não tem lugar no mundo.

A utopia é a própria topicidade das coisa”

G. Agamben

O cinema como lugar das utopias situa-se nos tempos modernos. Justifica-

se o uso do plural para nos referirmos a esse período da história - modernidade -

marcado por mudanças profundas e radicais advindas das Revoluções Francesa,

Industrial e Tecnológica, as quais afetaram de maneira e forma desiguais o

mundo. Como fruto e conseqüência do desenvolvimento gerado por essas

revoluções nasce o cinema, que como indústria cultural, como arte, representa e

simboliza o imaginário sócio-cultural desse período1.

Imagem, imaginação e imaginário radicam do latim imago-ginis, significando,

a primeira, a representação de um objeto ou a reprodução mental de uma

sensação na ausência da causa que a produziu. Essa representação mental,

consciente ou não, é formada a partir de vivências, lembranças e percepções

passadas e passíveis de serem modificadas por novas experiências. Imaginário é,

1 Indústria Cultural é aquela cuja tecnologia permite a reprodução em série e a exploração para fins

comerciais dos bens culturais. A indústria cultural não apenas adapta seus produtos ao consumo das massas, mas, em larga escala, determina o próprio consumo. Interessada nos homens apenas enquanto consumidores ou empregados, a indústria cultural reduz a humanidade, em seu conjunto, assim como cada um de seus elementos, às condições que representam seus interesses. A indústria cultural traz em seu bojo todos os elementos característicos do mundo industrial moderno e nele exerce um papel específico, qual seja o de portadora da ideologia dominante, a qual outorga sentido a todo o sistema. Os pensadores, textos escolhidos (1980: vol.XVI).

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portanto, o vocábulo fundamental que corresponde à imaginação como sua

função e produto. Composto de imagens mentais é definido a partir de muitas

óticas diferentes, dentre as quais escolhemos a apresentada por Durand (1997),

para quem o imaginário é o “conjunto das imagens e das relações de imagens

que constitui o capital pensado do homo sapiens”, o grande e fundamental

denominador em que se encaixam todos os procedimentos do pensamento

humano. É uma faculdade intelectual que possibilita a realização e representação

da ordem da realidade-social-psíquica, sempre mediada e transformada

simbolicamente em cristalizações do sentido, pela “veemência ontológica de uma

intenção semântica”.

A imaginação individual cria mundos impossíveis e fantásticos, mundos

oníricos que na modernidade podem ser recriados ou representados no

cinema.No imaginário social as sociedades esboçam suas identidades e

objetivos, plasmam visões de mundo, modelam condutas que se expressam por

utopias ou ideologias. Portanto, imaginar, assim como sonhar, é inerente a

condição humana e se produz na relação entre o sujeito e o meio sócio-cultural e

em uma dinâmica de produzir e ser produto de imagens.

A palavra imagem, como já vimos, significa a representação de um objeto

ou a reprodução mental de uma sensação na ausência da causa que a produziu.

Essa representação mental, consciente ou não, é formada a partir de vivências,

lembranças e percepções e é passível de modificação por novas experiências.

Bem, para melhor compreensão buscamos aporte nos estudos de RECHIA

(2005:3, 22)

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“Partindo da conceituação normativa de que imaginar é a

possibilidade de evocar ou produzir imagens independentemente da

presença do objeto ou do ser a que se refere, por meio das lembranças e

das intuições, submetidas às coordenadas de espaço-tempo, imaginar está

diretamente associado à função criadora, e está intrinsecamente ligado

aos processos culturais e a um tempo histórico determinado.

Ancorei-me nas concepções de Durand (1983, 1989 e1998),

para quem o imaginário é uma rede de imagens que, em relação umas

com as outras, vai dando sentidos ao mundo. Necessário assinalar que

tais imagens não se organizam de qualquer modo, mas com certa lógica,

com determinada estrutura.

Assinalamos que o diretor do filme, ao contar a história, tenta

transmitir por meio de imagens cinematográficas o imaginário, tenta

atingir as aspirações, os medos, as esperanças e a alteridade do

personagem. ...O imaginário social se expressa por ideologias e utopias, e

também por símbolos, alegorias, rituais e mitos. Tais elementos plasmam

visões de mundo e modelam condutas e estilos de vida, em movimentos

contínuos e descontínuos de preservação da ordem vigente ou introdução

de novas configurações dos códigos sociais. A imaginação social, além de

fator regulador e estabilizador, também é a faculdade que permite que os

modos de sociedade existentes não sejam considerados definitivos, os

únicos possíveis, e que possam ser concebidos outros modelos.”2

Na presente dissertação, o capitulo - O cinema como lugar das utopias

- objetiva refletir sobre como o cinema, posicionado como uma das grandes

2 RECHIA, Tânia Maria. O imaginário da violência em minha vida em cor de rosa.Tese de doutorado em Educação. 2005. UNICAMP, Campinas.

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invenções da modernidade, também é um meio eficaz para representação da

realidade a partir dos efeitos de sentido que é capaz de produzir e como, em

seu caráter “prefigurativo”, isto é, de poder representar aquilo que ainda não

existe, mas que poderá existir, pode projetar, manifestar a um outro sujeito, o

receptor, a existência de um” possível” mundo melhor. Para melhor

compreensão de tal pensamento, nos reportaremos ao filme Os Sonhadores, de

Bernardo Bertolucci, destacando-o do conjunto de sua obra que, entretanto,

também nos permitirá, por meio dos temas recorrentes, identificar a

representação do imaginário utópico que tem um seguro recurso estético nas

imagens em movimento.

Inserido nesse capitulo, o item O cinema e a utopia na modernidade

abordará o nascimento do cinema e o contexto da época em que isso ocorre: a

modernidade. O panorama que vê o nascer e o desabrochar desse meio de

comunicação vê também a transformação de um ser humano que passa a

conviver com novas estruturas sociais e econômicas, com novas formas de

produção, com o desenvolvimento tecnológico, com a mudança da detenção de

riqueza do meio rural para o urbano. As transformações propiciadas pelas

revoluções ocorridas implicaram também em mudanças nos costumes e valores

humanos, e nas percepções de um sujeito que, acostumado à tranqüilidade que

marcava a sociedade anterior, se vê submetido a um mundo dominado pela

velocidade e bombardeado pelos incrementos tecnológicos, pelas impressões e

choques que configuram as cidades às quais aflui grande fluxo de pessoas.

E nesse tempo, nessa sociedade de sujeitos padronizados,

“massificados”, alguns preconizam o fim das utopias; mas, discordando dessa

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colocação, no item Utopias e utopia nos reportamos aos pensadores

Mannheim e Bloch, querendo demonstrar que esse princípio - a utopia em

diferentes formas e diversas interpretações - é inerente ao ser humano e sua

presença nas sociedades históricas é uma constante desde os milenares

tempos bíblicos. Por isso, ainda que com alteração de perspectiva, a dimensão

utópica está vigente na contemporaneidade e pode ter no cinema de Bernardo

Bertolucci, com sua capacidade de representação do imaginário social e

individual, o seu tempo e o seu lugar.

Em Os motivos filmográficos de Bernardo Bertolucci tentaremos

resgatar, na trajetória de sua filmografia composta por vinte e dois filmes até

2004, representações de motivos ideológicos - geralmente ligados a um

intelectual engajado e aos conflitos dualísticos entre as concepções políticas de

direita e esquerda - e os motivos utópicos, que diferem dos ideológicos por

provocarem rupturas com a ordem social vigente. A identificação da dimensão

utópica, da busca de um mundo melhor, que ocorre de forma latente ou

manifesta, poderá ser encontrada na representação imagética dos jovens em

suas diversas relações: social, amorosa, subjetiva, assim como nas

transgressões simbolizadas na forma de incesto, de nudez e também na poética

e em alguns tipos de experimentação narrativa ou de linguagem proposta pelo

diretor. Esses motivos podem ser identificados como elos com a realidade

situada em um contexto histórico-espacial e com a representação de uma

realidade possível de vir a ser.

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1. 1. O cinema e a utopia na modernidade.

“A arte nos confirma tacitamente que o nosso modo de percepção

está hoje apto a responder a novas tarefas e como, não obstante, o indivíduo

alimenta a tentação de recusar essas tarefas, a arte se entrega àquelas que são mais

difíceis e importantes, desde que possa mobilizar as massas. É o que ela faz agora,

graças ao cinema” (BENJAMIN, 1983:26)

O cinema, como se sabe, é uma invenção nascida no contexto da

modernidade, entendida esta não apenas como um tempo cronológico, social,

mas também como um tempo subjetivo, como uma atitude do ser humano frente

ao progresso da ciência e da técnica, os quais, aliados, permitiram o

desenvolvimento da tecnologia a favor da existência do ser no mundo.

Lembremos que, a partir da Revolução Francesa, um novo processo

caracterizado por conflitos, por mudanças estruturais profundas no campo

ideológico e filosófico, político e social, jogou por terra os marcos da sociedade

medieval dando início à Idade Moderna. Essa época iniciou-se marcada por

tensões revolucionárias, trazendo como símbolo uma nova forma de produção -

a industrial - que tira o homem do campo, da propriedade agrícola e, de certa

forma, o desterritorializa, o leva para o local onde o trabalho, a produção, passa

a acontecer: a fábrica3. E a produção, em larga escala, forma um mercado que,

em maior ou menor intensidade, atinge todas as partes do mundo.

3 Desterritorializar: consiste, na vertente de Deleuze, na desconstrução da integralidade, na desumanização já que territorializar é da ordem da inscrição do sentido, é a corporificação do conhecimento.

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“Uma geração que ainda usara o bonde puxado por cavalos para ir à

escola encontrou-se sob céu aberto numa paisagem em que nada continuava

como fora antes”. Usamos essa passagem de O Narrador (1980:57), de Walter

Benjamin, por acreditarmos que sintetiza, de forma metafórica, o abrupto

advento da modernidade, o encontro de uma geração no abandono das suas

tradições com um novo tempo, em uma “paisagem” nunca antes vista, a não ser

nos sonhos noturnos ou diurnos. As experiências de cognição e percepção

oriundas desse desenvolvimento que consideramos abrupto, embora distintas e

distanciadas das experiências até então social e culturalmente vivenciadas, não

concorreram decididamente para o fim das utopias, compreendidas em

diferentes maneiras no decorrer da história, antes reforçaram seu estatuto,

manifestando a existência do “possível”.

Feita a alusão aos sonhos no parágrafo anterior, cabe aqui uma pequena

reflexão sobre os mesmos. Como produtos da vida psíquica inconsciente

constituem-se em fenômeno humano e universal. A palavra sonho provém do

noturno e pressupõe que o sonhador dorme. O sonho não só protege o sono,

mas também é uma forma de realização alucinatória de desejos, realização

fictícia de uma fantasia desejante inconsciente, representada na imagem onírica

de forma simbólica e desfigurada. A realização do desejo por meio da decifração

de seus símbolos é percorrida pela interpretação analítica dos sonhos. “O

sonhador não sabe o que sabe”, eis o paradoxo enunciado por Freud e que o

conduziu à sistematização da análise interpretativa. Contudo, o ser humano não

sonha apenas quando dorme, ele sonha também de “olhos abertos”, e esse

sonhar, que não dispõe de qualquer tipo de censura imposta por um ego moral,

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pode propiciar idéias que não pedem interpretação, e sim elaboração, conforme

conclui Bloch (2005) em seus escritos sobre a utopia4.

Chacon (2007:19) considera em seus estudos que “o pensamento

moderno, representado pelos filósofos do século XX, compreendeu que os

fenômenos humanos são peças fundamentais na construção do conhecimento,

a partir do momento em que fazem parte da tão buscada ‘realidade

possível’”.Reforçamos que aqui se fala em “realidade possível”, isto é, uma

realidade formada pelo que “aí está” e pelo que “ainda não está”, mas que

poderá “vir a ser”. As possibilidades futuras podem ser qualificadas como

utópicas porque dependem de um “vir a ser” e como tais serão encontradas nos

filmes do diretor Bernardo Bertolucci que, principalmente em Os Sonhadores,

representam as possibilidades de uma outra realidade.

A mudança da produção demarcada pela Revolução Industrial, um dos

pilares da modernidade, atingiu também o campo da comunicação com a

invenção da imprensa, do rádio, da TV, do cinema e, desde então, o processo

de transmissão da informação passa pela produção, armazenagem e divulgação

dos produtos ou bens culturais.

No princípio do século passado, um mosaico de conotações deu

diferentes nuanças à noção de modernidade, como enuncia Cohen (2001),

4 “O que acontece em relação ao sonho é que quando dormimos há um ligeiro, mas suficiente enfraquecimento das forças de repressão e das resistências do ego e superego, do processo secundário, na aparição de conteúdos de natureza inconsciente rejeitados pela consciência de maneira ‘natural’ durante o estado de vigília. De certa forma, a tensão das forças pulsionais favorecidas pela situação geral de relax de quem dorme e as representações a elas ligadas expressam os desejos inconscientes do sujeito, que encontram no estado de descanso o mais fácil e direto acesso à consciência”.(DROGUET, 2004:68)

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defendendo a tese de que o termo é motivo de debate crítico e não algo

solidamente estabelecido, o que verificaremos a seguir.

“Por modernidade refiro-me menos a um período histórico

demarcado do que a uma mudança na experiência. Essa nova configuração

da experiência foi formada por um grande número de fatores, que dependeram

claramente da mudança na produção demarcada pela Revolução Industrial.

Foi também, contudo, igualmente caracterizado pela transformação na vida

diária criada pelo crescimento do capitalismo e pelos avanços técnicos, o

crescimento do tráfego urbano, a distribuição das mercadorias produzidas em

massa e sucessivas novas tecnologias de meios de transporte e de comunicação.”

(GUNNING, 2001:39)

Habermas (1980) fala sobre o imbricamento entre ciência e técnica,

característico da modernidade, em que a técnica, dependente da ciência, a ela

retroage e determina seus rumos. A esse processo de inter-relação entre ciência

e técnica ele chama de sistema de vasos comunicantes e considera que estes

passam a ser a primeira força construtiva, subordinando todas as demais,

dirigindo e modificando o mundo. Para ele o tecnicismo e o positivismo não

passam das duas faces de uma mesma e ilusória moeda ideológica.

Outros pensadores situam a época contemporânea como pós-

modernidade, embora no panorama mundial perceba-se que a modernidade

ainda não esgotou suas transformações e tem ritmos distintos em diferentes

áreas do globo. Vejamos a seguir:

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“A verdadeira revolução do séc. XIX, da modernidade, é a

destruição radical das aparências, o desencantamento do mundo e o seu

abandono à violência da interpretação e da história. Constato, aceito, assumo,

analiso a segunda revolução, a do séc. XX, a da pós-modernidade, que é o

imenso processo de destruição do sentido, igual à destruição anterior das

aparências. O que pelo sentido mata, pelo sentido morre” (BAUDRILLAR,

1991:197).

Este trabalho é sustentado na modernidade e encontra no filme Os

Sonhadores uma estética da utopia apoiada nos já citados referenciais de

modernidade: por Gunning (2001) - mudança de experiência configurada pelo

grande número de fatores dependentes da mudança de produção gerada pela

Revolução Industrial - por Baudrillard (1991) - desencantamento do mundo e o

seu abandono à violência da interpretação e da história - e Habermas (1980) no

reconhecimento do poder transformador da tecnologia.

Nesses novos cenários, emblemáticos das mudanças perceptivas e

ambientais de um novo domínio sobre os incrementos do tempo, de um

desmoronamento das distâncias, de uma nova experiência do corpo e da

percepção do ser humano, que também definem a experiência da modernidade,

nasce o cinema, ele próprio então visto como uma utopia, como tecnologia e

indústria de entretenimento produzida, direcionada para as massas.

Retornemos ao nascimento do cinema: a partir do desenvolvimento da

reprodução fotográfica, uma série de aparelhos com diferentes denominações,

mas nem sempre com alterações significativas, foram patenteados na Europa e

Estados Unidos com o objetivo de conferir movimento às imagens. Edson já

havia animado a fotografia e Reynaud projetado imagem animada sobre uma

tela; faltava a união dos dois processos, o que ocorreu por uma conjunção

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científica das áreas de química, mecânica, fisiologia, óptica e eletricidade. Surgiu,

assim, o cinematógrafo cuja originalidade se constituiu no relacionamento da

técnica do registro e da projeção das imagens em movimento. Uma base social

permitia o investimento de tempo e dinheiro nesse tipo de experiência voltada

não só para o desenvolvimento científico, mas igualmente pela percepção de que

esse instrumento de exploração da curiosidade pública teria grande retorno

econômico. A junção da ciência, da magia e dos interesses econômicos gerou o

cinema, um signo e um emblema do imaginário da modernidade, o dispositivo

construído para materializar e reproduzir artificialmente o imaginário cultural. E,

desde seu nascimento, o cinema se configura em duas correntes estéticas

paralelas: por um lado os irmãos Lumiére5, produtores de filmes curtos que

retratavam a realidade - documentária, um realismo absoluto – e por outro lado, o

mágico Georges Méliès, que viu no cinema nova fonte de ilusão com

possibilidade de manipulação do material filmado - ficção - o irrealismo absoluto6.

Considerando essas duas correntes estéticas, assumimos que o diretor Bernardo

Bertolucci, embora sem se desvencilhar do realismo documental, apresenta

maior aproximação com Méliès no filme Os Sonhadores. Mas há outras divisões

das correntes estéticas do cinema. Truffaut declara que as considerações

estéticas o preocupam.

“Acredito, por exemplo, que há dois tipos de cinema: a corrente

Lumière e a corrente Delluc. Lumière inventou o cinema para filmar a

natureza das ações, L’Arroseur arrosé. Delluc, que era romancista e

crítico, pensou que se podia usar essa invenção para filmar idéias, ou ações,

com um significado que ultrapassasse as evidências, e que o cinema podia

também flertar de vez em quando com as outras artes. O que veio a seguir?

Foi a história do cinema, com a corrente Lumière sendo ilustrada por

Griffith, Chaplin, Stroheim, Flaherty, Gance, Vigo, Renoir, Rosselini e, 5Louis e Auguste Lumière (1864-1948) inventaram o cinematógrafo na França e registraram o invento em 1895. Produziram mais de 2000 filmes. 6 Georges Mélies (1861-1938), mágico criador do cinema espetáculo. Realizou perto de mil filmes, fazendo uso de uma série de recursos para representação da fantasia e concretização dos sonhos.

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mais próximo de nós, Godard; e a corrente Delluc trazendo Epstein,

L’Herbier, Feyder, Grémillon, Houston, Bardem, Astruc, Antonioni e,

mais próximo de nós, Alain Resnais. Para os primeiros, o cinema é um

espetáculo, para os segundos, uma linguagem.” (GILLAIN.1990:50)7

Acatando a divisão proposta por Truffaut, incluímos Bertolucci entre os

cineastas inclusos na corrente Delluc, que utiliza o cinema para filmar idéias e

ações, embora sem um afastamento radical de Lumière e de Méliès. Uma

estética cinematográfica contemporânea acontece na fusão das correntes que

unem forma e conteúdo na película, objetivando fazer sentido para o espectador.

Bernardo Bertolucci no filme Os Sonhadores distancia-se do neo-realismo italiano e,

por meio de um cinema mais subjetivo, busca fazer sentido para uma geração

desencantada e que desconhece uma época que se tornou mítica por instaurar

uma profunda mudança de costumes. Na década de 60, diversas correntes e

movimentos juvenis de negação contribuíram para a degenerescência das formas

de dominação da época e, carentes de um suporte teórico, foram encontrá-las

nos escritos de alguns teóricos, como verificaremos abaixo:

“Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições

de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos,

entendendo-se como espetáculo a representação de tudo que era vivido

diretamente e a expressão da separação e do afastamento entre o homem e o

homem (DEBORD, 2000:131).

7 François Truffaut (1932-1984) cineasta e crítico francês. Criador da expressão “politique dês auteurs” e participante da Novelle Vague. Suas entrevistas concedidas, a partir de 1959, estão reunidas no livro de GILLAIN, A. O cinema segundo François Truffaut (Nova Fronteira: 2005)

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E, ainda para o mesmo autor:

”Em 1967, eu quis que a Internacional Situacionista tivesse um

livro de teoria. Naquele momento a IS era o grupo extremista que mais

contribuíra para levar a contestação revolucionária à sociedade moderna 8.

Era fácil perceber que esse grupo, que já havia imposto sua vitória no terreno

da crítica teórica e a havia prosseguido com habilidade na agitação prática,

aproximava-se do campo culminante de sua ação histórica” (DEBORD, 1997).

França, Alemanha e Itália foram os principais palcos das mobilizações

estudantis do final dos anos 1960 que culminaram na Primavera de 1968,

movimento que, segundo Ventura (1988:53), “marca o advento da civilização da

imagem e a finalização do aprendizado intelectual e sua percepção estética,

forjados apenas pela leitura”.

Do axioma de Ventura (1988:53), inferimos que as práticas culturais até

então predominantes, sobretudo ,aquelas dependentes do letramento, se tornam

insuficientes para representar as percepções e sensações do homem

pertencente a uma sociedade que apresenta profundas mudanças no tempo, no

espaço e nas técnicas de circulação9. Dessa forma, a palavra escrita, que até o

século XX era o referencial das elites dominantes, ganha, com os meios de

reprodução, novos complementos. Assim como na sociedade letrada, os

conhecimentos teóricos e interpretativos passaram a prevalecer sobre os saberes

8 Société du spectacle deu suporte à Internacional Situacionista, movimento contestador surgido em 1957 com marcante atuação na luta política, ideológica e cultural; esse livro transformou o autor em um dos gurus da Revolução de 1968. 9 Para Gunning (2001: 38-40), as técnicas de circulação definem as transformações convergentes na tecnologia e na indústria do que chamamos de modernidade. O cinema instala-se nessa rede de circulação como tecnologia e indústria, e também como nova forma de experiência.

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narrativos e rituais das sociedades orais, na sociedade moderna, policultural e

massiva, a cultura imagética passa a concorrer com a letrada.

A “civilização da imagem” acontece porque os prolongamentos

perceptivos dos indivíduos da modernidade estão aptos à construção de

significados mediados pela invenção técnica e, em decorrência, o cinema passa

a ser ícone de produto cultural que pode mobilizar as massas.

O cinema de Bernardo Bertolucci em Os Sonhadores simboliza o movimento

oscilatório da estética cinematográfica ao representar, de um lado o

documentário, índice da corrente Lumiére, referindo-se a Maio de 1968, e de

outro lado o irrealismo, o sonho, a ficção da corrente Méliès/Delluc indiciados na

interpretação dos três adolescentes que protagonizam uma revolução sexual

ancorada em um anseio de liberdade, cujo co-relato é a própria revolução

presentificada como documentário e como representação do que foi vivido.

Bertolucci fazia parte da vanguarda da geração de 68 que teve como

mídia preferencial o cinema. Essa vanguarda: “... fazia cinema e o consumia em uma

aventura experimental de linguagem e de ação política” (VENTURA, 1988:53).

A transgressão era tida como um estágio superior da percepção e a

grande obra-prima era A Chinesa (1967), de Godard, que, assim como Os

Sonhadores, tem como protagonistas três jovens encerrados em um apartamento,

vivendo uma utopia.

Assumido como técnica o cinema recebeu seu batismo como arte em

1911, no Manifesto das Sete Artes, lançado na França por Ricciotto Canudo, que em

sua atividade de crítica cinematográfica e em seu trabalho de promoção do

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cinema junto aos intelectuais fundou o” Club dês amis du septième Art”. Ao promover

a entrada do cinema no mundo das artes, Canudo lhe atribuiu a sétima colocação

por considerá-lo a síntese moderna de todas as artes que o precederam:

arquitetura, música, pintura, escultura, poesia e dança.

A história das artes tem no cinema uma abertura muito peculiar: na

mediação da máquina e no modo particular de sua mediação há o maior

diferencial com as outras artes. Em um mundo em que movimento, velocidade e

intensificação dos estímulos são os elementos perceptivos dominantes e, em um

jogo de semelhanças no qual “significar” é “expressar”, a imagem em movimento

responde às necessidades de expressão do homem moderno. Por isso alguns

estetas do cinema, como Delluc, Canudo, Moussinac, acreditavam que a verdade

cinematográfica estava no futuro e a própria lógica que viam no mundo moderno

era uma garantia de que tudo estaria lá.

Reforçamos que com o nascimento dos tempos modernos ocorreram

profundas mudanças na experiência do espaço e do tempo, possibilitando,

segundo HARVEY (1993:256), uma intensa compressão do tempo e do espaço

com interferência na vida social e cultural. Em uma sociedade que se transforma

com tal rapidez, a imensa gama de situações que ocorrem a qualquer intervalo

do tempo acaba por ocasionar profundas mudanças na psicologia humana. O

homem moderno, exposto à variação de velocidade e de tempo, desligado do

tempo cíclico, correspondente ao movimento circular e perfeito dos corpos

celestes, que marcava as sociedades rurais - tempo de plantar, tempo de colher,

ciclos lunares -, torna-se um homem diferente, uma pessoa em crise, como

prefigura Nietzsche (2004), que procura nas artes o alívio para sua angústia.

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Não só o cinema, mas também as utopias, geradas nos sonhos diurnos,

podem ser entendidas na circularidade do tempo, no topo do imaginário e no

alívio da angústia.

Partindo da acepção etimológica - não lugar, sem lugar ou nenhures,

portanto, negação do espaço físico - o conceito de utopia envolve algumas

considerações. Nele está contido um duplo movimento: a crítica à ordem das

coisas existentes - presente - e a construção de uma proposta alternativa que

ofereça um paradigma social em conformidade com uma situação ideal,

harmônica, justa - futura e que, algumas vezes, apresenta-se como o éden

passado. Esses movimentos, de crítica10 e construção de um novo paradigma

vislumbrado no sonho diurno, alavancam as imaginações utópicas, construtoras

da utopia - conceito que até o início da modernidade era carente de um vocábulo

que a nomeasse. O sonhar com uma vida melhor não permite ao homem se

acomodar, se resignar, com o que aí está. É preciso transpor, transgredir, captar

o novo, o almejado, o esperado - o princípio utópico - e trazê-lo à luz, assim como

o faz o cinema, acionando e difundindo sua função e conteúdo. O que é

utopicamente desejado guia todos os movimentos libertários voltados para o

mundo no sentido de ultrapassar o curso natural dos acontecimentos. Desse

entrelaçamento da temática tempo/espaço o cinema faz um de seus pilares. Na

medida em que metamorfoseia11 o tempo, o cinema opera o espaço pondo a

câmera em movimento e dotando-a de ubiqüidade, o que permite a circulação em

um tempo reversível. O tempo do cinema, no seu limite, desemboca na magia, e

10 Crítica, do grego krisis, que significa por em crise, isto é, distinguir, separar e decidir. (VARELLA, 2005:305) 11 Matamorfosear o tempo significa transformá-lo, tanto nas possibilidades do passado quanto do presente e do futuro com o fim de fazer da imagem que perpassa esse tempo uma imagem potencial para o espectador/receptor poder se recriar.

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a tela branca, sem profundidade, em um jogo de luz e sombra, se transforma em

uma realidade possível, no lugar do “estranho”, em que as imagens em

movimento presentificam o imaginário cultural.

No cinema, assim como na subjetividade, seguindo o pensamento de

Freud - que foi criticado por Bloch (2005) sob a alegação de haver negligenciado

o sonho diurno em seus estudos - “o estranho” refere-se a uma relação familiar

do sujeito vivenciada no passado que retorna ao presente na forma “recalcada”,

portanto, o estranho é o originalmente familiar que aparece sob uma nova forma

que causa estranheza12. Não só o “estranho” do mundo subjetivo ganha o espaço

do cinema, mas também a esperança, portadora da utopia, cuja “falta é, segundo

Bloch, tanto em termos temporais como de conteúdo, o mais intolerável, o

absolutamente insuportável para as necessidades humanas”, (BLOCH, 2005:15),

e que encontra nesse meio de comunicação o seu lugar.

12 O estranho refere-se a um efeito estético da experiência perceptiva, também conhecida por “sinistro”, tomando-se por base a etimologia da palavra em alemão.

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1.2. Utopias e utopia

“Toda utopia é, depois de tudo, um projeto de reconstituição do

sentido histórico de uma sociedade. O fato de que estivesse alojado, primeiro

no reino estético, não faz senão assinalar, como sempre, que é no estético que

se prefiguram as transformações possíveis da totalidade histórica”.

Aníbal Quijano

Em 1516, o mundo ocidental ouve pela primeira vez a palavra utopia,

designando uma obra literária de autoria de More (1968). A partir de então, essa

palavra - utopia - passa a nomear movimentos filosóficos, políticos, religiosos,

sociais, estéticos, e também um novo gênero literário, exercício de literatura

fantástica e imaginação poética, gênero esse que, na contemporaneidade,

reaparece no cinema e, em um recorte pelo qual optamos, no cinema de

Bernardo Bertolucci representado no filme Os Sonhadores.

A palavra utopia, cuja partícula “u” indica uma ausência de topos, lugar, e

que, etimologicamente, significa não lugar ou sem lugar, é da ordem do

imaginário. Em uma outra dimensão, a substituição do prefixo “u” por “eu”, leva à

eutopia, palavra designativa de um lugar, de um mundo melhor, mundo esse que

pelo próprio sentido positivo pode ser traduzido como lugar ideal e conduz à

ordem do real, entendido como o que“está aí” presente mais o que “não está aí”,

constituintes da dinâmica da realidade. Já a utopia, segundo Bloch (2005), tem

seu lugar, seu “topos”, na consciência antecipadora e na força ativa dos sonhos

diurnos. Tudo no mundo, para o autor, é movimento e gestação. Por isso, para o

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professor Arno Münster (1993), o mundo é um campo de possibilidades ilimitadas

preexistentes nos sonhos, como potencialidades utópicas.

“Como o ser subjetivo do homem moderno, prisioneiro da reificação

universal da consciência e prisioneiro também de um sistema de consumo e

burocracia pode ser capaz de apoderar-se destas potencialidades utópicas?” (MÜNSTER,1993:21).

Sem dúvida, conclui Münster (1993), que isso se dá por meio da

consciência antecipadora e dos sonhos diurnos, sonhos que, acrescentamos,

Bertolucci representa com profundo sentido em seu filme Os Sonhadores. O

cinema, “a fábrica de sonhos”, apresenta algumas aproximações com o sonho

acordado: o espectador está consciente da sua própria situação, encontra-se em

estado de semi-imobilidade, mergulhado em relativa escuridão que lhe permite

um experimento imaginário; a técnica que permite a deslocabilidade dos

detalhes; tal qual no sonho, reunindo os elementos do real, o filme mostra uma

outra realidade. BLOCH (2005:93) enuncia que um único indivíduo pode ser

precursor de uma utopia gerada no sonho acordado.

“O eu do sonho desperto pode se expandir a ponto de representar os

outros. Quem dorme está sozinho com seus tesouros, mas o ego de quem

devaneia pode se reportar aos demais. Assim, se o eu abandona a introversão

ou o relacionamento - tão só com o entorno mais imediato -, o seu sonho

diurno visa à melhoria pública” (BLOCH, 2005:93).

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Inferimos, então, que assim como o sonho diurno precursor de uma utopia

pode ser gerado por um único indivíduo e expandir-se para um determinado

grupo social, o cinema propicia que o “eu” sonhador, do cineasta, se reporte aos

demais que constituem o universo receptor.

Resumindo, entendemos que a utopia é a força catalisadora de mudanças

e da construção de experiências renovadas individuais e coletivas geradas em

sonhos diurnos e propagadas historicamente, preferencialmente, por pessoas

jovens engajadas em movimentos de busca de um mundo melhor, cujos indícios

esperamos encontrar nas representações fílmicas de Bernardo Bertolucci, um

diretor que se assume como sonhador.

Mas se na atualidade é ao cinema que imputamos a qualidade de

transportar o mundo real para a ficção, e assim representar novas realidades

possíveis, em outros tempos, essa adjetivação era conferida aos livros.

“O século das Luzes compartilhou a utopia – do livro,

da leitura, da escrita, paidéia capaz de tornar os homens melhores.”

(MATOS, 2006:8)

Também os livros, assim como o cinema hoje o faz, compartilhara

distopias, construções imaginárias de um mundo alternativo, lugar da perversão e

da desarmonia, como as sociedades apresentadas nas obras 1984, de Orwell

[l949 (1984)], e Admirável mundo novo, de Huxley [1932 (2000)].

Nos movimentos utópicos, desde os narrados pelo Antigo Testamento até

alguns anunciados na modernidade, a utopia não se concretizou em um aqui

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/agora, porém, continuou viva em uma dimensão tangível pela imaginação,

contribuindo para a permanência da esperança de uma sociedade mais justa e

igualitária. A imaginação utópica, gestante de todos os tipos de utopia, não se

deixa reger pelo tempo dos cronômetros que mede uma espera, mas sim pela

atemporalidade do desejo no aguardo de realizar sua esperança, no criar as

condições para sua realização. No mundo não há somente fatos fixos ou

consumados, ele está repleto de relações dinâmicas que contêm latência de algo,

de processos nos quais se dá a mediação entre o presente, o passado pendente

e o futuro possível13. Podemos então dizer que a utopia é um fenômeno que

estabelece uma relação entre a realidade vivida e a realidade desejada.

O ato de intencionar, presente no pensar e no imaginar, tem seu tom

sempre antecipatório. Também na esperança, um afeto expectante, há uma

intenção pulsional tão forte, e de tão longo alcance, que o caráter antecipatório

de sua intenção, de seu conteúdo, do seu objeto - ainda não acessível e cuja

finalização pode ou não ocorrer - implica em uma associação a um futuro

autêntico, o futuro do ainda não ser, do que objetivamente ainda não existiu

desse modo, do não manifestado. As concepções de idéias das intenções

futuras, impulsionadas por um “ainda não”, assim caracterizadas são utópicas.

Observamos que o modelo utópico abstrato e imaginário de uma

sociedade mais justa presente até o século XIX teve o seu sentido questionado

no século XX. Dois pensadores, Mannheim (1976) e Bloch (2005),

13 Possível, cognitiva ou objetivamente, segundo Bloch (2005:223), é tudo aquilo cuja ocorrência pode ser cientificamente esperada. Apresenta 4 categorias do possível: 1- O possível formal - algo que pode ser pensado; 2 - Possível objetivo factual: é o possível conforme o conhecimento que se tem do objeto. Se expressa pelo juízo hipotético que pressupõe premissas não confirmadas; 3 - Possível objetal: não diz respeito ao nosso conhecimento de algo, mas a esse algo propriamente, que pode vir a ser de um outro modo; 4- Possível objetivo-real: constitui-se em uma determinação portadora de futuro no real mesmo.

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desenvolveram construtos de utopia nos quais buscaremos respaldar a hipótese

deste estudo. Deslocando a tônica conceitual de utopia do campo religioso, social

ou político para o campo estético, intencionamos demonstrar que no cinema de

Bertolucci se constrói uma expressão estética de utopia em que as “ressonâncias

ideológicas” são trabalhadas no sentido de liberdade e de esperança em um

futuro melhor.

Se o século das luzes compartilhou a utopia dos livros, a modernidade

compartilha a utopia das imagens em movimento. Nesse aspecto, reforçando a

força da narrativa cinematográfica na modernidade, Adélia Prado, poeta e

escritora mineira, em entrevista concedida a Antonio Gonçalves Filho, publicada

no jornal O Estado de São Paulo, em 19/08/2006, referindo-se as experiências

místicas obtidas por meio das artes diz: “acho que mais que a literatura, o cinema

é que hoje está falando das coisas”.

Dentre as muitas acepções e interpretações de utopia, Mannheim (1976) a

caracteriza como conjunto de idéias e doutrinas transcendentes, nas quais uma

força subversiva e um efeito de transformação promove um enfrentamento à

ordem histórico-social existente, ao contrário da ideologia que reforça essa

ordem. Observa os diversos tipos de mentalidade utópica, ressalvando que elas

nunca existiram de maneira simples, sendo que cada projeto utópico tendia a

organizar-se conforme um eixo estrutural. Dentre essas mentalidades destacam-

se os diversos movimentos como os quiliasmas14, os marcados pelas idéias

liberais e humanitárias, aqueles que, embora sonhados no futuro, são

14 Quiliasma: de quilias, vocábulo grego, que significa mil, uma referência a um período de mil anos de felicidade na Terra, é uma das mais antigas formas de utopia. Segundo Coelho (1985:52), os movimentos quiliásticos são uma busca de experiência, do místico, do espiritual e, embora pretendam a realização de seus desejos no presente imediato, não se colocam o problema de promover uma revolução social. Um marco desse movimento é o liderado por Thomas Münzer.

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conservadores, e os movimentos baseados nos programas

socialistas/comunistas, utopias oriundas da teoria marxista, embora Karl Marx

recusasse a denominação de utopista e criticasse vivamente as visões utópicas

de sua época, desmascarando-as como ideologias.

Para Mannheim (1976), a desaparição do elemento utópico do

pensamento e da ação humanos resultaria em um homem transformado em

coisa. Seria, então, o maior paradoxo, ou seja, o do homem que, tendo alcançado

o maior grau de domínio racional da existência, se vê deixado sem nenhum ideal,

tornando-se um mero produto de impulsos. Sem as utopias o homem perderia a

capacidade de plasmar e compreender a história. Por isso:

“... quando secam os oásis utópicos estende-se um

deserto de banalidade e perplexidade” (HABERMAS, apud ARANHA,

1993:269).

Trinta anos após a publicação de Ideologia e Utopia (1919), de Mannheim,

Bloch publicou a trilogia O Princípio Esperança ([1959]2005) em que são concluídas

as teses desenvolvidas desde 1918 e publicadas no livro Geist der Utopie - Espírito

da Utopia (1918), não disponível em português. Bloch forja o conceito de utopia

concreta após um estudo sistemático de todos os modelos de utopias - místicos,

religiosos, sociais - apresentados no ocidente. Das propostas antigas de Platão e

More até as doutrinas materialistas do marxismo, sonhos e utopias, tudo aquilo

que é portador de esperança, e as correntes filosóficas e psicanalíticas que

estudam esses fenômenos, são focalizados. Considerado fundador de um

pensamento neomarxista da “utopia concreta”, de uma ontologia do “ainda não

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ser” e de uma fenomenologia da “consciência antecipadora”, Bloch também

revela seu pensamento neste aforismo:

“Eu sou, no entanto eu não me possuo. É por isso que nós

temos que nos fazer nós mesmos. O homem nasceu nu, necessitando de

vestes para aquecer-se. O seu interior torna-se consciente através do

exterior. De outro modo ele permaneceria solitário”,sem o nós” e “sem

ao redor de nós”, constituintes da matéria prima da casa humana.”

(MÜNSTER 1993:81-82)

Desta forma, procura manifestar a intenção primeira de sua filosofia:

revelar e descobrir a dialética que existe entre uma subjetividade criadora, que

ultrapassa seus limites interiores, e um elemento exterior, um “ao redor de nós”

que está se aproximando do Eu sou.

A erudição demonstrada pelo autor ao atravessar o tempo e o espaço

neste estudo não ajuda na elaboração de um conceito preciso e determinado de

utopia. Mas ainda assim faz-se necessário o entendimento de alguns temas

imanentes ao conceito de utopia para melhor aplicá-lo à análise dos filmes.

Na conclusão da introdução do livro O Espírito da utopia, diz Bloch:

“É em nós mesmos que brilha esta luz e começa agora a marcha

imaginária rumo a ela, a marcha para interpretação do sonho acordado,

para utilização do conceito utópico nos seus princípios. É para procurá-

la, para procurar o que é justo, o motivo de viver, de ser organizado, de

dominar o tempo, é por isso que vamos seguindo os caminhos metafísicos

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constitutivos, é por isso que chamamos o que não é, que construímos no

desconhecido e buscamos o verdadeiro, o real ali, onde a simples realidade

factual desaparece - INCIPIT VITA NOVA.” (MÜNSTER,1993:41)

Complementamos no livro Princípio Esperança, um ensaio barroco

expressionista publicado na Alemanha, em 1959, e traduzido para o português

em 2005, a busca de alguns conceitos necessários para compreensão do

pensamento de Bloch.

1. Sonhos diurnos: entendemos que são construções imaginárias, relacionadas

ao cumprimento de um desejo, mas mantendo simultaneamente o eu, que pode

ganhar amplitude humana, pode se expandir a ponto de representar os outros. O

sonho diurno, sempre orientado para o futuro, pode proporcionar idéias que não

pedem interpretação, e sim elaboração. Sonhar com algo implica em criar a

imagem da coisa ausente, o que, em conseqüência, desencadeia o desejo de

obtê-la. As imagens assim “sonhadas” podem possibilitar a mudança de

comportamento do indivíduo, motivando-o a acionar a proposição emanada e

assim encontrar o que lhe falta, sejam idéias políticas, artísticas ou científicas.

2. Ainda não consciente o que ainda não se tornou. Uma instância da vida

psíquica capaz de produzir o sonhar para frente. Todas as épocas de mudança

estão repletas do ainda não consciente e uma classe em ascensão o leva

consigo. O ainda não consciente, como classe de consciência do novo, contém:

juventude, mudança de época, produtividade.

3. Ideologia: soma das representações em que cada sociedade se justificou ou

se transfigurou com o auxílio de uma consciência.

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4. Novum: sinal despertador da consciência.

5. Inspiração: irrupção da luz no ser constituída de tendência e latência e

evocada por sua mais clara consciência.

6. Consciência antecipadora: impulso elementar que tem como origem e

fundamento um estágio de insatisfação que leva à apropriação de um “ainda

não”, em uma tensão cuja finalidade é a superação dessa carência.

7. Futuro autêntico: caracterizado pela presença de um elemento excedente

que permite a transformação da imaginação utópica em uma realidade humana

em forma de amanhã.

8. Esperança: afeto expectante positivo que frustra o medo e afoga a angústia. É

a mais humana de todas as emoções e acessível apenas aos seres humanos.

Ela tem como referência o caráter antecipatório de sua intenção (intenção

pulsional de amplo alcance), que traz em seu conteúdo a utopia.

Münster (1993:27) analisa o significado geral de utopia apresentado por

Bloch em Tübingen, no ano de 1967, quando este proclama que a diferença

fundamental entre sua definição e a dos filósofos da antigüidade é que para ele

utopia não constitui um topos idealizado ou projetado; é um topos da atividade

humana orientada para o futuro, um topos da consciência antecipadora e a força

ativa dos sonhos diurnos. Também explica que o” topos utópico” é possível

porque o mundo não é um sistema fechado ou um processo acabado, porque

possui um horizonte aberto e é cheio de possibilidades “ainda-não” realizadas.

Os homens e as mulheres ainda não são o que poderiam ser, e o mundo ainda

não atingiu sua autenticidade, tudo é movimento e gestação; por isso é um vasto

campo de possibilidades ilimitadas.

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A incidência permanente da categoria de possibilidade permite, neste

contexto, a transformação do mundo, concebida esta transformação como um

processo ininterrupto do próprio devir e do devir autêntico, do sujeito

representado nas formas artísticas e culturais.

Na mesma linha, Teixeira Coelho (1985:11-12) afirma que:

“Imaginação utópica é propositiva: as coisas, que devem

acontecer daquela maneira, poderão acontecer se o homem quiser. Ela

não se esgota com a realização de seu objetivo. Mesmo quando este se

apresenta como algo concreto, como resultado da ação utópica, há um

resto que permanece para ser retomado por outra imaginação utópica do

mesmo homem, do mesmo grupo social. Há sempre um excedente utópico

a funcionar como mola de um novo ciclo imaginativo, há sempre algo de

irrealizado que busca realizar-se em nova projeção” (COELHO, 1985:11-

12).

Esse excedente que parte do real dá origem a novos projetos utópicos. O

aparecimento de um novo desejo, de um novo projeto desiderativo, cuja

realização é possível no futuro, se constitui em uma “trama” de fragmentos do

real que se dirigem a um tempo e a um espaço “ainda não” conhecidos.

Observamos também que toda revolução autêntica não pode dispensar a

imaginação utópica. Os jovens que promoveram o movimento conhecido como

Primavera de 1968 reconheceram no pensamento de Marcuse [1956 (1975)],

sobre uma dimensão estética/erótica indispensável à existência humana que

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caracteriza todo projeto utópico, uma saída para o impasse então ocorrido entre

uma política tradicional e outra dita revolucionária, mas altamente burocratizada15.

O filme de Bertolucci, Os Sonhadores, representa a revolução de 1968 que

questionou as normas da vida social, a moral tradicional, os tabus e as

proibições; uma revolução com implicações mais consistentes nas relações de

produção, no modo de vida, no pensar, nas relações humanas do que no campo

político. A assertiva de Teixeira Coelho (IBIDEM: 94), ao afirmar que “a dimensão

da utopia estética/erótica passa a ser um eixo de presença incontornável, e cada

vez mais acentuada, em qualquer projeto utópico que procure a felicidade

positiva”, aparece sob medida para a revolução de 1968, cuja origem e

mobilização estava presente em uma demanda relacionada à liberdade sexual

como uma forma de se obter a felicidade positiva.

A partir dos pressupostos teóricos enunciados, nos reportaremos a um

pensamento utópico da modernidade cujo traço significativo é o abandono da

referência dos modelos imaginários de utopias sociais (de organização de uma

sociedade idealizada) e das religiosas - quiliásticas. Segundo Bloch, o mundo é

um horizonte aberto e cheio de possibilidades “ainda não” realizadas, e por esse

contexto “o topos utópico” se justifica16.

Dentre os conceitos da filosofia de Bloch, que destacamos anteriormente,

a consciência antecipadora será elevada à categoria de análise juntamente com 15 Herbert Marcuse, em Eros e Civilização, desenvolve uma teoria crítica da sociedade a partir da dialética entre prazer e realidade, cultura e psiquismo, temas amplamente desenvolvidos por Freud e resgatados em uma contextualização sociológica da psicanálise. 16 MUNSTER, A. considera a obra de E. BLOCH como fundadora de uma “filosofia neomarxista do futuro”. Trata-se de um pensamento que indica as possibilidades de transformação imanente ao ser econômico, político e social. Assim, O Princípio Esperança nada mais é que um gigantesco inventário das imagens do desejo, dos sonhos, e das figuras de antecipação utópica tais como emergiram na história da filosofia, da literatura, da arquitetura e da música, nas utopias dos contos de fadas e nas utopias modernas (1993:20).

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a transgressão incorporada por meio da sociologia crítica de Mannheim (1976), e

a utopia estética como um acréscimo específico da produção cinematográfica,

produção essa que também permite a projeção de suas imagens em causas

futuras.

1. Consciência antecipadora: ”O sonho diurno é o lugar privilegiado da

manifestação da pré-aparição da consciência antecipadora, uma instância do

consciente que representa o espaço de adaptação e produção do novo. Leva o

sujeito a conhecer e apoderar-se das possibilidades imanentes na matéria e no

mundo, permitindo a sua transformação no sentido da reativação e da realização

das possibilidades utópicas tendenciais ainda não exteriorizadas, ainda não

realizadas. Esses sonhos são passíveis de direcionamento e podem ser

intermediadas pelo ‘objetiva ou cognitivamente possíveis’”.

2. Transgressão: categoria das idéias que de alguma forma possua um efeito

não só de transcender a realidade, mas de “romper as amarras” da ordem social

existente, ou seja, que ocasionem um efeito transformador sobre a ordem

histórico-social. Para Bloch (2005) as épocas revolucionárias são momentos de

rejuvenescimento da história que abrem objetivamente as portas à chegada de

uma nova sociedade, vida não vivida até agora.

3. Utopia estética: uma nova visão estética, que ultrapassa o quadro conceitual

da visão classicista, destacando a processualidade da relação sujeito/objeto na

função estética e sublinhando as possibilidades de uma antecipação utópica na

obra de arte. Indica as possibilidades de transformação imanente do ser humano.

A categoria do possível permitirá fazer aparecer os conteúdos utópicos

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dissimulados, ou ainda não revelados, do ente e a concretização antecipada das

imagens utópicas em uma nova prática individual ou coletiva de emancipação.

Com essas categorias, buscaremos identificar nos filmes de Bernardo

Bertolucci que tratam da Primavera de 68, especialmente no filme Os Sonhadores,

elementos utópicos em um processo de relação com o cinema como uma

possibilidade de mediação entre as formas do imaginário individual e social, e as

formas estruturais objetivadas na representação fílmica. Antes, porém, nos

reportaremos aos motivos filmográficos recorrentes na obra de Bernardo

Bertolucci, nos quais buscaremos vestígios da imaginação utópica.

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1.3. Os motivos filmográficos de Bernardo Bertolucci

“Todos nós, confusos ou convictos em nossa juventude revolucionária,

queríamos filmes que falassem por nós”.

Prudenzi e Resegotti

Bernardo Bertolucci é um dos grandes nomes do cinema italiano da

geração posterior ao neo-realismo, que se destacou pela busca de novos

modelos narrativos e se empenhou em filtrar a realidade sob um ponto de vista

ético, oferecendo ao espectador a possibilidade de refletir sobre temas

considerados incômodos. Nascido em Parma, em 16/03/1940, filho do poeta,

crítico de cinema e historiador Attílio Bertolucci, desde cedo esteve em contato

com a literatura e cultura em geral, vivendo, e não somente conhecendo, a

poesia cotidianamente. Em 1958, quando cursava o segundo ano da

Universidade de Roma, por proposição de Pasolini, publicou seu primeiro livro de

poesias, In cerca del Mistero, que lhe valeu o prêmio Viareggio daquele ano. Mas

considerando a poesia escrita como a arte de seu pai, buscou outra forma de

expressar seus sentimentos e a encontrou no cinema, no qual pôde escrever

poesia com uma câmera de filmar.

Em 1961, trabalhou como assistente de Píer Paolo Pasolini em Accatone -

Desajuste Social, filme considerado obra-prima. Embora fosse o primeiro filme de

Pasolini, por ele, esse diretor passou a ser conhecido como fundador de um novo

gênero ou estilo, o pasoliniano, um cinema poético com forte preocupação social;

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um cinema que gravita em torno da narração cinematográfica e da câmera

subjetiva17. A extensa filmografia de Bertolucci não está em sua totalidade

disponível no Brasil, por isso a análise contemplará as obras acessíveis com o

intuito de, por meio delas, constituir um corpo teórico. Sua carreira apresenta

sucessos comerciais e de crítica, obras ignoradas, proibidas, censuradas.

Assumida a dificuldade em encontrar a bibliografia específica sobre o diretor e

sua obra, embora sem a pretensão de preencher essa lacuna, procuramos

colaborar apresentando sinopses dos filmes, em ordem cronológica de

realização, no Anexo I.

Segundo Tudor (1985:137-152), em Teorias do Cinema, podemos aprender

mais acerca dos filmes de um autor considerando-os em relação uns com os

outros. O pressuposto é o de que qualquer realizador cria o seu filme com base

em uma estrutura central, e que nos filmes encontram-se variações ou o

desenvolvimento delas. O conjunto de filmes de um autor permite isolar sua

concepção de mundo e até classificá-lo em determinado gênero, considerando

este também como um conjunto de convenções tradicional e culturalmente

aceitas. Assim, por gênero, pode-se conceber o modo de formular a interação

entre a cultura, o cinema, os produtos fílmicos, seus realizadores e o espectador-

receptor. A noção de gênero pode ser usada de forma construtiva para análise da

dinâmica sócio-cultural do cinema como, por exemplo, nos chamados “filmes de

arte”, cujo gênero também se insere Bertolucci.

17 Na teoria cinematográfica a noção de gênero - comédia, drama, musical, desenho - é polêmica. Advinda da teoria literária, a concepção de gênero foi aplicada ao cinema como um esquema fixo de regras, uma tradição cultural dentro da qual o indivíduo luta por expressão (MENDES, RANULFO A.M.P., 2004). Nessa mesma teoria, estilo pode ser considerado uma forma de expressão em que os elementos afetivos manipulam e catalisam os elementos lógicos presentes em toda atividade do espírito (GARCIA, Othon M., 1974: 85).

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A citação de que um autor utiliza um gênero implica que o público

reconheça esse gênero. Mendes (2004) relata que as primeiras impressões

significativas sobre gênero estão nos artigos de Robert Warshow sobre os filmes

de gangster e western - publicados em 1948 e 1954 - e os dois artigos de André

Bazin sobre o western, na década de 50. Warshow observou o gênero como uma

manifestação de um aspecto psicológico da cultura de massa que merecia

atenção teórica justamente porque revelava algo sobre as platéias. Bazin valoriza

a coerência de “estilo” e da autenticidade de certos realizadores. A noção de

autor remete à Política dos Autores, termo criado por Truffaut enquanto crítico nos

Cahiers du Cinema, em 1954, no polêmico artigo “Uma certa tendência do cinema

francês”, no qual criticava enfaticamente a chamada tradição de qualidade do

cinema francês e assumia “que não há bons ou maus filmes, mas simplesmente

bons ou maus diretores” (GILLIAN, 1988:73). O gênero, no sentido defendido

pelos críticos dos Cahiers du Cinema é uma tradição cultural dentro da qual o

indivíduo luta por expressão. Falar de Bertolucci como autor ou enquadrá-lo no

gênero filme de arte merece alguma reflexão. De acordo com Tudor (1985), a

noção de autor teve origem na crítica de cinema e dirige a atenção para grupos

de filmes que têm algo em comum: o realizador e, nessa consideração, se

envolve uma análise textual minuciosa e não um breve comentário crítico.

Gênero advém da crítica literária muito antes do advento do cinema. O

significado e as utilizações do termo variam muito, podendo ser entendido como

um determinado gênero porque se assenta em um conjunto de convenções, se

apóia em um consenso cultural comum, porque preenche certas expectativas do

público.

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Com características estilísticas individuais marcantes, as obras do autor

Bernardo Bertolucci, que classificamos como cinema de arte e também como

cinema político, apresentam vestígios do neo-realismo italiano e da Novelle

Vague francesa18. Ao lado das explorações provocativas do sensual e da

ideologia, o estilo visual altamente cinético e a intensa natureza pessoal são as

marcas de sua filmografia. Nas décadas de 60 e 70, na Itália, desenvolveu-se o

movimento denominado “cinema do empenho social e político” que, segundo

Prudenzi e.Resegotti, em Cinema Político Italiano, anos 60 e 70, são filmes

explícitos, diretos, que dizem a que vêm já no título; não se incomodam com as

regras do mercado, tencionam falar por nós sem nos confundir com dramas

existenciais ou sentimentais. Antes da Revolução (1964), O conformista (1970) e A

estratégia da Aranha (1972) são os filmes de Bertolucci listados no livro por

representarem motivos políticos.

Outro motivo recorrente em seus filmes é o incesto, considerado, uma

das mais marcantes e radicais formas de transgressão. Nos filmes Antes da

Revolução (1964), O conformista (1970), La Luna (1979), Beleza Roubada (1996) e Os

Sonhadores o tabu do incesto é violado, o que nos conduz ao campo

psicanalítico19. Freud aponta que na superação e rejeição das fantasias

18Cinema de arte, nome genérico atribuído a filmes de ficção que possuem ambições estéticas e intelectuais. São filmes que investigam a própria linguagem expressiva do cinema e procuram renová-la ou enriquecê-la. ARAUJO, Olívio Tavares. www.itaucultural.org. br . 19 Incesto: intercurso sexual de pessoas tão intimamente ligadas pelo sangue, que a união entre elas, seria moral e socialmente: ilegítima. O “Tabu do Incesto” passou a ser identificado como um momento da passagem do “sexo natural” ao “sexo cultural”, como padrão de comportamento em todas as culturas. Segundo Levy-Strauss (1966), a proibição do incesto foi a regra de reciprocidade por excelência e a exogamia foi a sua expressão socialmente ampliada, que veio assegurar a circulação total e contínua dos bens por excelência que o grupo possui, ou seja, suas mulheres e suas filhas. Essa lei veio apaziguar a cultura, porque, a partir dela, tudo se fez para impedir que guerras entre as tribos viessem destruir os filhos das filhas dadas em casamento a outros grupos humanos. Assim, as especulações relativas à essência biológica e mítica da família

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incestuosas ocorre um dos mais dolorosos cometimentos psíquicos da

puberdade, a emancipação da autoridade parental por meio da qual se forma

aquela oposição entre a nova e velha geração, que é tão importante para o

progresso cultural.

Para falarmos de incesto precisamos recorrer à mitologia,

especificamente ao conceito de Eros, Thanatos e Édipo, e compreendê-los à luz

dos pensadores modernos. A mitologia têm muito a ver com os estágios da vida,

com as cerimônias de iniciação e passagem da infância para as

responsabilidades do adulto, da condição de solteiro para a de casado. Todos

esses rituais são ritos mitológicos. MARCUSE (1975:81), indagando sobre esse

tabu, conclui que na horda primitiva a imagem da mulher desejada -

esposa/amante do pai - era a imagem de Eros e Thanatos em fusão. Essa imagem

era a finalidade dos instintos sexuais e também era a mãe em que o filho

desfrutara a integral paz pré-natal, isto é, a plenitude de todos os bens. Do ponto

de vista ideológico, o tempo e o espaço do ventre materno é a prefiguração do

paraíso.

Talvez o tabu sobre o incesto tenha sido a primeira grande proteção

contra o instinto da morte sobre o impulso regressivo para a suposta paz

transcendental do útero materno. Nesse interdito, mãe e esposa foram

separadas, e a identidade fundida entre Eros e Thanatos foi, portanto, dissolvida.

Mas a mitologia revela que essa dissolução trouxe dualidades: Eros passou a

corresponder ao desejo de vida, de ordem; é domínio da democracia. Thanatos:

também foram sendo definitivamente destituídas e, com o tabu do incesto, a família passa a expressar a passagem do fato natural da consangüinidade para o fato cultural da afinidade.

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morte, caos, é domínio do autoritarismo. Assim, nas relações incestuosas entre

os irmãos Theo e Isabelle, em Os sonhadores, entre o sobrinho Fabrizio e a tia

Gina, em Antes da Revolução, a manifesta transgressão aos códigos sócio-

culturais, a violação do interdito, expande-se da esfera subjetiva e familiar e

passa a representar, metaforicamente, o desejo de romper com o autoritarismo, o

desejo do gozar a liberdade.

Confrontando essa posição com a corrente revisionista neofreudiana da

psicanálise, que espiritualizou a liberdade e a felicidade, MARCUSE (1975:

228,229) cita a reinterpretação ideológica do complexo de Édipo pelo psicanalista

Eric Fromm, que o transfere da esfera do sexo para o das relações interpessoais,

isto é, considera a essência do desejo de incesto não como um anseio sexual,

mas como o desejo de conservar-se protegido, seguro - uma criança. Isso implica

em despojar a sexualidade de seu caráter transgressor, sublimando-a por

intermédio dos símbolos.

Se o desejo de Édipo, diz Marcuse (1975), nada mais fosse, em sua

essência, um desejo de proteção e segurança – o medo à liberdade – se a

criança desejasse apenas segurança e não um prazer impermissível, então

representaria um problema educacional e não o eterno desejo pelo arquétipo de

liberdade, a liberdade da carência, e a luta contra tudo aquilo que o princípio da

realidade, entendido como o mundo que bloqueia a realização dos desejos,

simboliza: a luta contra o pai, contra a dominação, contra a sublimação, contra a

resignação.

Desta forma, pensar as relações incestuosas dos filmes de Bertolucci sob

o enfoque da teoria revisionista neofreudiana da psicanálise é aceitar a

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aspiração, o desejo do homem em retornar a esse nirvana, ao estado de

inocência e liberdade anterior ao cometimento do pecado original e, portanto,

acatar uma visão tradicionalista, quiliástica de utopia; analisá-lo sob o enfoque de

Marcuse é aceitar o incesto como signo de transgressão, de violação de códigos

de conduta, de luta contra todo tipo de dominação.

Não somente a escolha de temas considerados tabus revela o caráter

transgressor das obras de Bernardo Bertolucci. Tal postura também se revela na

forma como dirige seus filmes e como considera a transgressão um meio de

evolução:

“Não aprendi a dirigir filmes de modo teórico, e a noção de

gramática cinematográfica nada significa para mim. E, no entanto,

dada minha maneira de pensar, tendo a dizer que, se existe gramática, é

preciso transgredi-la. Porque é dessa maneira que a linguagem

cinematográfica evolui. É a câmera que dita minha maneira de dirigir,

porque ela se movimenta o tempo todo - e percebo que nos meus filmes

recentes, ela se move ainda mais - quase como se entrasse em cena, na

forma de um personagem invisível do filme. Sou incapaz de resistira à

tentação de fazer a câmera se mover. Creio que isso surge da necessidade

de forjar uma relação sensual com os personagens, na esperança de que

isso se transforme em uma relação sensual entre os personagens”

(BERTOLUCCI, em entrevista concedida em 24 de dezembro de 2004 , à

Italia Oggi com tradução de Paulo Migliacci para Folha de São Paulo).

Relembremos que Bernardo Bertolucci iniciou sua carreira como cineasta na

mítica década de 60, a qual acumulou, no mundo todo, grandes contradições,

gerando uma série de conflitos envolvendo principalmente intelectuais, estudantes

e filósofos com a pretensão de mudar o mundo. Fernando Solanas, produtor do

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filme La hora de los hornos (1966), que trata dos acontecimentos políticos da

Argentina e da América Latina nesse período, em carta aos espectadores da

Retrospectiva Fernando Solanas, promovida pela Cinemateca Brasileira e

Fundação Memorial da América Latina, de 17 a 23 de julho de 1993, indagou:

“Como fazer para contar aos que nasceram na fabulosa década de 60 o que foram

esses anos épicos e violentos, liberadores e repressivos, plenos de rupturas,

sonhos e utopias?”.

A resposta a esse questionamento poderá ser encontrada com a

mediação do cinema que tem na imagem fílmica seu principal elemento de

transmissão da mensagem e que, no caso de Os Sonhadores, representa as

rupturas, sonhos e utopias dos anos 60 por meio do movimento que se tornou

conhecido como Primavera de 68.

O cineasta cubano, discípulo de Zavattini e pioneiro na realização do

cinema militante, Gutierrez Alea considera que “o exercício do cinema implica

uma responsabilidade social. Seu extraordinário alcance como meio massivo de

difusão lhe confere uma indubitável potencialidade como arma ideológica. Cada

vez que se tratou de absolutizar seu aspecto ideológico, desconhecendo que o

cinema é, em primeiro lugar, um espetáculo e, portanto, um fato estético, uma

fonte de prazer, sua eficácia como arma ideológica se reduz apreciavelmente”

(apud MENDONÇA, 1995:18).

Podemos inferir que a linguagem cinematográfica, principalmente a

linguagem poética que se faz presente na filmografia de Bertolucci, permite em

sua construção, por meio da explicitação discursiva, ler o implícito e difundir o

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imaginário ideológico ou utópico do diretor “engajado”, sem reduzir ou

comprometer a qualidade artística do filme.

Contribuindo com essas reflexões sobre cinema-arte e cinema político, nos

lembramos dos pensadores da escola de Frankfurt quando enunciavam que a

arte não pode mudar a sociedade, mas é capaz de transformar a consciência

daqueles que modificam o mundo. Isso porque indica um princípio da realidade

incompatível com a coerção política e psíquica, adquirindo um tônus

revolucionário especial. Essa consciência, transformada pela arte, pode modificar

o mundo e é aquela que aciona os projetos utópicos nascidos na imaginação e

que permite o “vir a ser”, denunciando quando o princípio de realidade é

compatível com coerção social ou individual.

Desta forma, a arte é o caminho para a substituição de um princípio de

realidade por um princípio estético, como ocorreu em de maio de 1968. Essa

dimensão estética é reapropriada na filmografia de Bertolucci, que a revela na

possível intencionalidade das representações de transgressão e transcendência

de dados culturais e sociais contidos no imaginário de uma época. Os motivos

presentes na filmografia de Bertolucci, desde os anseios juvenis por um mundo

melhor, os matizes sociais de uma determinada realidade, as esperanças

revolucionárias de jovens personagens que espelhavam com fidelidade o

também jovem diretor, fazem do cinema, para Bertolucci, não apenas um veículo

de denúncia, mas um instrumento de transgressão no qual ética e estética

encontram o máximo equilíbrio, permitindo-lhe realizar o sonho professado de

mesclar a arte e a vida, ou seja, “viver películas” e “pensar

cinematograficamente”.

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Em seus filmes encontramos, de forma latente ou manifesta, o conteúdo

de um futuro “ainda não” surgido, demonstrando a validade da reflexão:

“Toda grande obra de arte, abstraindo sua natureza manifesta,

repousa sobre a latência do outro lado, isto é, sobre os conteúdos de um

futuro que na sua época ainda não havia surgido, ou mesmo sobre os

conteúdos de um estágio final desconhecido” (BLOCH, 2005: 127).

Retornemos à carreira do cineasta Bertolucci e sua estréia como diretor

em 1962, aos 21 anos, quando Pasolini o indica para, juntamente com Sérgio

Citti, fazer o roteiro de um filme baseado em um argumento de sua autoria. O

empenho do jovem Bertolucci levou-o a ser convidado pelo produtor Antonio

Cervi para dirigir o filme La Commare Secca - A morte. Esse filme apresenta uma

crítica social à falta de perspectiva e de esperança que assolam os jovens da

geração pós-guerra, um filme em que o passar do tempo não é medido na

atemporalidade do desejo, mas pelo relógio que marca o tempo da não

realização pessoal.

Sua primeira obra considerada “prima” é o filme Prima della Rivoluzione -

Antes da revolução, lançado em 1964 com roteiro de Bertolucci e Gianni Amico e

direção do próprio Bertolucci. Esse filme, que à época de seu lançamento passou

despercebido na Itália, ganhou notoriedade na França entre 67 e 68 por

aparentar ser “a consciência antecipadora” da Primavera de 68 e será motivo de

análise específica no próximo capítulo.

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O ano de 1968, marcante para uma geração, foi também o ano em que

Bertolucci rodou o filme o Partner (1968) e viu a consagração, como já dissemos,

de seu filme Antes da Revolução, que à época de seu lançamento, 1964, passara

despercebido na Itália e, agora, na França ganhava o mercado internacional. Em

entrevista concedida a Luis Carlos Merten o diretor fala que, estando nessa data

na Itália a filmar o Partner, permanecia atento à França e “acompanhava tudo

pelos jornais e TV, que estava descobrindo a instantaneidade e transformava o

mundo em uma aldeia global. Telefonava todo dia para meus amigos na França.

E, na Itália, as coisas também iriam explodir em seguida. Maio de 68 virou um

protesto mundial”. A força das imagens, especialmente da televisiva, assim como

o poder da comunicação de massa, encontra um intérprete em sintonia com o

mundo.

Os filmes acima citados são considerados políticos e refletem a postura

de um intelectual engajado, distanciado do fascismo e aliado aos regimes de

esquerda. Sem duvida, Bertolucci era um intelectual engajado, comprometido,

ligado às esquerdas, e que no início dos anos 60 via “se desfazer, ou pelo menos

se complicar, o projeto de uma ligação imediata e orgânica entre seu trabalho

artístico e um movimento de emancipação popular de perspectiva revolucionária”

(SARAIVA, 2002:1).

A preocupação do cineasta em analisar, refletir e compreender a história

recente da Itália o emparelha a uma corrente de pensadores contemporâneos.

Portanto, alguns de seus filmes também podem ser classificados como históricos,

têm no diretor um agente que procurou a história e se baseou na História, sem

comprometer sua liberdade de criação. Aliando a ação artística à ação política e

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histórica, foi gerada a possibilidade de parte da população, cujo repertório

pessoal permitia fazer sentido, apropriar-se da estética da utopia.

Passando tangencialmente pelos filmes La Commare Secca (1962), Antes da

Revolução (1964), chegamos ao épico 1900 (1976), que conta os principais fatos

históricos desse século, La Luna (1979), Beleza Roubada (1996), Assédio (1998),

filmes que têm em comum o fato de serem rodados na Itália, embora nem

sempre sejam filmes produzidos pelos estúdios italianos ou protagonizados por

atores italianos. Mas são filmes que, de uma forma ou de outra, tratam de algum

aspecto da história italiana sob a ótica de um diretor italiano. São filmes nos quais

as questões políticas, culturais, sociais e ideológicas estão presentes e que

representam esteticamente os movimentos que buscam dar forma a um mundo

melhor. Nesses filmes de Bertolucci encontramos traços característicos do neo-

realismo italiano: a paisagem da Itália, a crônica do dia-a-dia, o valor de

documentário, matizados por uma forma que ultrapassa esse movimento na

apropriação de novos temas e novos modos narrativos.

Uma outra temática, a procura do pai, figura que no imaginário ocidental

corresponde à autoridade, ao poder e ao conhecimento, visto que entre eles há

uma relação de interdependência, é recorrente nos filmes La Luna, Beleza

Roubada e A estratégia da Aranha. Uma outra hipótese de interpretação seria o rito

de passagem; morre o adolescente ao encontrar e “sepultar” o pai herói.

Ressaltando que uma pluralidade de ideologias pode coexistir em um

mesmo contexto histórico, voltamos a Mannheim (1986) ao assumir que os

estados de espírito que rompem com a ordem existente estabelecida pela

autoridade podem ser ideológicos ou utópicos. Entretanto, o pensamento utópico

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se difere do ideológico porque o primeiro, por meio da contra-atividade, poderia

transformar a realidade histórica em outras realidades. Dessa relação entre

utopia e realidade histórica, Mannheim (1986) desprende uma perspectiva

dialética entre ideologia e utopia: ”cada época permite surgir - em grupos sociais

diversamente localizados - as idéias e valores em que se acham contidas, de

forma condensada, em tendências não-realizadas que representam as

necessidades de tal época”.

Seria imprudente afirmar que os filmes de Bertolucci pertencem ao gênero

utópico, tal como fazemos com algumas obras literárias, embora ideologias e

utopias sejam motivos recorrentes. Se o gênero utópico existir no cinema, poderá

estar mais próximo ao da ficção científica do que dos gêneros professados por

Bertolucci.

No conjunto de obras deste cineasta italiano o que encontramos é a

observação e a crítica de determinadas situações historicamente dadas e a

representação dessa busca, com o encontro ou não de uma nova realidade

possível. Partindo da realidade tangível, vivida em um agora, para uma realidade

desejável, futura, mas não intangível, estabelece-se uma ponte, um estado

relacional entre o “ainda não”, estado esse que para Bloch (2005) sempre

impulsiona o homem. Assim, as representações do surgimento das doutrinas

marxistas levam o espectador a experimentar sentimentos, sensações, emoções

que são vivenciados por meio dessas imagens visuais e verbais, mas que, ainda

assim, entram na construção de seu imaginário em que um remanescente

utópico poderá dar à luz a um novo “ainda não”. Desta forma:

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“A ordem existente dá surgimento a utopias que, por

sua vez, rompem com os laços de ordem existente, deixando-a livre para

evoluir em direção à ordem de existência seguinte” (MANNHEIM,

1986:222-223)

Até mesmo nos filmes de Bertolucci que são adaptações de obras

literárias - O Partner, A estratégia da aranha e O conformista - os componentes

ideológicos e utópicos aparecem e as situações da narrativa original são

transportadas para a narrativa cinematográfica no contexto histórico-social da

política italiana, conforme veremos a seguir.

Situemos o filme O Partner, uma adaptação de O sósia, de Dostoievski, e

sua recepção pelos críticos.

“É um filme sobre a crise de identidade, sobre o duplo que é

qualquer um de nós, sobre a contestação e sobre a crise da contestação,

sobre a desmistificação do cinema como espetáculo, um filme teórico e

passional o tempo todo, lúcido e romântico, com meio caminho entre um

ensaio e um romance atual. O dissídio entre pensamento e ação, quando

alguém que apresenta consciência crítica, uma autêntica maturidade

histórica, não se arrisca a resolver sobre esse mesmo plano as diversas

situações das experiências humana e social, política e ideológica. Essa

contradição existencial, que é a base do filme e nele reflete um sutil e

misterioso fascínio, é também a causa do substancial do fracasso

artístico da obra, que não se resolve sobre o plano da forma - aberto a

qualquer experiência estética - se não como proposta, como tendência

teoricamente tão interessante quanto praticamente confusa.”

(CATÁLOGO BOLAFFI,1975:53)

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Esse filme foi ignorado pela crítica e detestado pelo público, um filme que

poderia ser entendido em um futuro ou simplesmente ser esquecido. Ao ser

indagado sobre qual a interpretação válida para esse filme, Bertolucci disse que

existem tantas interpretações de um filme quantos forem os seus espectadores,

reforçando a importância que assume o imaginário da recepção no sentido de um

filme. Produzido originalmente para a televisão, o que obrigou o diretor a uma

depuração da linguagem, esse filme sobre o fascismo e o antifascismo

contemplou uma proposta político-estética, labiríntica e conturbadora. A

sincronização entre áudio e imagens, usado pela primeira vez no cinema italiano,

caracterizou uma nova experimentação, uma forma de transgressão do diretor à

ordem cinematográfica vigente.

O conformista (1970) foi adaptado do romance de Alberto Moravia e é

também um filme sobre a Itália fascista. Foi indicado para o Oscar de melhor

adaptação. Fascismo, maio de 68, morte e homossexualismo fazem parte da

trama que reflete a contradição da época fascista, que é a impossibilidade de

libertação do indivíduo dos condicionamentos sociais, a problemática da busca e

da “morte do Pai” como condição de liberdade existencial.

“Bertolucci articula em O conformista uma maturidade de

visão e de representação da realidade, na qual consente uma

interpretação crítica, sem renunciar às seduções do espetáculo. O filme é,

também, muito mais que uma possibilidade de leitura psicanalítica de

um personagem que reflete a contradição, a paúra, a desilusão, é a

história de uma geração que, superando o entusiasmo de 68, não arrisca

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ainda a encontrar um equilíbrio justo entre as várias situações de análise

crítica as quais a realidade se submete.” (CATÁLOGO BOLAFFI, 1975:

98)

O texto do escritor argentino Jorge Luis Borges, Tema do traidor e do herói

[1942(1999)], cuja história poderia se passar na Polônia, em Veneza, em um país

sul-americano, é transferido por Bertolucci para a Itália, especificamente para o

Vale do Pó. Nesse conto de Borges a confluência entre ética e estética se realiza

de um modo particular que permite liberar o herói da identidade de traidor, apesar

de serem a mesma pessoa. São valores antagônicos: em um mesmo

personagem coexistem a fidelidade e a traição a um ideal. A transposição do

texto escrito por Borges - Tema do traidor e do herói - para o filme A estratégia da

aranha acarretou mudança no título sem comprometer sua dimensão mítica20.

Duas temáticas são tratadas a rigor no filme: a ética do herói e a estética,

esta simbolizada na alegoria da estratégia da aranha que, ao tecer a teia com o

mais fino fio existente na natureza, desvela o mistério da vida transformada em

uma intrincada teia ou, do ponto de vista narrativo, em uma trama admirável21.

20 A estratégia da aranha, na mitologia grega, é tecer os fios de sua vida desde que a jovem Aracne - nome do qual deriva a palavra aranha - uma mortal, conhecida pela beleza de sua arte de bordar e tecer desafiou a deusa Minerva a comparar suas habilidades com a dela. A audácia de Aracne faz dela uma heroína entre os gregos da Ásia, principalmente porque não é vencida em seu talento para as artes e sim pelo poder divino. 21 Na mitologia o herói designa o protagonista de uma obra narrativa ou dramática. Encontra-se entre os deuses e entre os homens, tem uma dimensão semidivina marcada pela ambigüidade: representa a condição humana na sua total complexidade e transcende a mesma condição na medida em que apresenta, facetas e virtudes superiores as dos homens. O heroísmo caracteriza-se por se um ato moral porque implica a opção do herói pela fidelidade a seus valores. Nessa opção moral se constrói toda estética (CAMPBELL, J. em A saga do Herói. Copyleft LCC Publicações Eletrônicas.)

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“Embora o filme respeite a proposta filosófica do conto de

Borges, ele cria um clima de pintura metafísica. Concordar com a

manutenção do mito, ainda que simpático e populista, equivale a ficar

do lado de fora da história. Repetir sempre a mesma linha de análise é

uma estratégia tão existente quanto a da aranha, condenada a tecer

eternamente a mesma teia, mesmo que as moscas nem existam mais”

(RAMOS, 2006).

O uso da câmera subjetiva, as personagens agonizantes em cenários

decadentes, a quase totalidade de cenas gravadas em ambientes fechados, a luz

difusa, permitem caracterizar o polêmico O último tango em Paris, com traços do

estilo noir. Esse estilo apresenta uma estética fortemente influenciada pelo

expressionismo alemão, apresentando personagens obsessivos, mulheres com

sexualidade aflorada e usada conscientemente para a destruição, personagens

que se deparam com maior perigo psicológico que físico. As cenas de nu

feminino frontal, de sexo anal, são evidentes transgressões nos anos setenta, um

tempo incipiente do processo de luta pela liberdade sexual iniciada na década

precedente22.

Mas esse mesmo filme, seu maior sucesso comercial, foi o que maior

humilhação lhe rendeu. Escandalizou milhares de espectadores que se sentiram

moralmente afrontados com as cenas de sexo anal, principalmente aquela em

que se utilizou manteiga para facilitar a penetração, e pelo nu frontal. O diretor

22 Gênero noir: gênero cinematográfico muito popular no final do século XX e que basicamente significa escuro. Apresenta elementos de perversão/transgressão moral, destino, traição/ilusão, característicos das relações humanas sob risco. É um gênero questionador, suas formas narrativas fazem uso ostensivo da voz over e da câmara subjetiva, pondo em relevo a subjetividade de personagens agonizantes em cenas decadentes (MENDES, Ranulfo A. M. 2004).

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não só viu a destruição física das cópias que foram, como na Inquisição,

queimadas na Itália, como foi condenado a dois meses de prisão condicional e

cerceado em seu direito de voto por cinco anos por atentado violento ao pudor.

De forma explosiva, transgressora, ousou contar, para uma sociedade

ainda não preparada para essa revolução estética, a história de um homem e

uma mulher, de dois corpos que se comunicam com a linguagem do amor;

sujeitos sem identidade em uma fuga sem saída. A história de duas pessoas sem

nome, sem passado, encontrando no sexo a melhor forma de comunicação.

Toda manifestação sensual presente em O último tango em Paris poderá ser

entendida como utópica, se para isso nos afastarmos das antigas concepções

que propunham trabalho em comum, organização de espaço, educação, e

procurarmos nas concepções clássicas uma nova perspectiva, mudando para

isso o enfoque de leitura, diz COELHO (1985:90) ao mostrar que Fourier passa a

ter coisas interessantes a dizer em sua obra O Novo mundo amoroso, na qual

elaborava todo um cálculo do prazer chamado de “felicidade positiva”, cuja base

era o prazer sensual: a liberdade amorosa, uma boa mesa.

Em termos de prazer tudo é permitido na utopia de Fourrier, descrita em

Harmonia; há entrega às paixões e o exacerbamento do prazer pessoal. Nessa

concepção, Fourrier realiza a maior transgressão, reunindo contra si todas as

ideologias, contrapondo-se do Cristianismo ao Marxismo23. E, nesse enfoque, O

23 Charles Fourrier (1722-1837): filósofo e economista desenvolveu um projeto de reforma

econômica social e humana, uma utopia que visava a harmonia universal. Essa harmonia seria atingida coma criação dos falanstérios, pequenas cooperativas nascidas da associação de trabalhadores. Além de adeptos na França, Estados Unidos e Inglaterra, no Brasil, na Colônia Cecília, estabelecida por volta de 1890 no Paraná, é de inspiração fourierista.

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último tango em Paris apresenta uma estética da utopia erótica da busca da

“felicidade positiva”.

O retorno financeiro de O último tango em Paris permitiu a Bertolucci

realizar a filmagem do épico 1900, um filme sobre fatos marcantes do século XX

que abrange a Revolução Industrial, a ascensão do Socialismo, o Fascismo

Italiano, as duas guerras mundiais, o nascimento do Socialismo até o dia da

libertação, em 1945. É um filme que provoca reflexões e dá lugar à

representação das utopias políticas desse século e que foi para o diretor um

sonho de algo com tudo para ser.

Após L’addio a Enrico Berlinguer (1984) acontece a consagração de público

e crítica com O último imperador (1987), ganhador de nove prêmios Oscar.

Bertolucci justifica esse filme, apontado como uma concessão por alguns críticos,

pelo fascínio que essa história da China exercia sobre ele e pelo desejo de se

distanciar de uma Itália corrupta, consumista. A China era o lugar mais longe

para onde poderia ir. Para ele é um filme americano realizado fora dos estúdios

de Hollywood; é a história de uma mutação, de um imperador que se torna

cidadão como todos os outros após a tomada do poder pelos comunistas ou,

metaforicamente, de um homem que viaja da escuridão para a luz com as flores

e jardins. A pergunta latente nesse filme é: um homem pode mudar? Sim, no

mundo do cinema e no topos da imaginação ativa, sim. Os ideais transcendentes,

a morte como tema recorrente, a busca da verdade como uma “utopia” situada

fora deste mundo são temas dessa obra.

Na filmografia de Bertolucci perpassa uma atitude crítica em relação à

sociedade, principalmente aos problemas sociais, econômicos e políticos do povo

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italiano. Com um estilo de narração poética, as cenas, os acontecimentos,

principalmente os ideológicos que marcaram tão profundamente a vida e a

cultura italiana, são retomados e reapresentados de forma criativa, sendo a

criatividade medida pelo critério de abrangência de seus efeitos, esclarecendo ou

propondo a releitura de uma situação.

“A linguagem cinematográfica, diz Bertolucci, não deve apenas

ilustrar o mundo dos personagens, mas sim inventá-los. Quando se fala

de linguagem, de estilo, todos os anos sessenta, pelo menos no modo em

que os vivi, eram a luz de uma revolta contra a linguagem, daquilo que

a Nouvelle vague chamou de cinema di papa. Era uma linguagem

contra as regras gerais. Recordo que, pelo enquadramento de Godard,

esse revolucionário, eu me matava” (Folha on-line Ilustrada. 9/3/07).

Para não só ilustrar, mas inventar o mundo dos personagens, é

necessário imaginar, criar possibilidades, ver além do imediato, antecipar o que

ainda não é. A imaginação, representada no cinema por meio das imagens em

movimento leva à reflexão, à ampliação do campo real dos sentidos percebidos,

preenchendo-o com outros sentidos. A busca do enquadramento ideal, os ruídos

e o silêncio, a música, a qualidade da cor, a qualidade da luz, a movimentação da

câmera, a montagem, são essas informações estéticas que caracterizam os

filmes de Bertolucci, instaurando um universo amplo de sensações que serão

captadas de várias maneiras por diferentes pessoas. Pelas reflexões embasadas

nos motivos dos filmes, percebemos que os eventos políticos ocorridos na Itália,

que deixaram cicatrizes no povo italiano, que se configuraram como distopia,

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foram abordados em muitos filmes de Bertolucci e de outros diretores como Dino

Risi, Francesco Rossi, Marco Bellocchio. A realidade italiana passa a ser história

fílmica. O fascismo predominou na Itália desde 1922 como um estado totalitário,

isto é, uma nova concepção de sociedade onde predominava a máxima: “Tudo no

Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado”.

Em junho de 1940, Mussolini, Duce - aquele que conduz - aliado à

Alemanha, anunciou a declaração de guerra à França. A derrota em várias

frentes, o esquema de repressão usado pelo fascismo, o rompimento de uma

grata tradição da burguesia italiana, a dos voluntários de guerra - os partisans -,

levaram ao rompimento do povo com o governo do Duce. As greves que

começaram a eclodir em 1943, as publicações clandestinas, os bombardeios,

provocaram a destituição de Mussolini e a devolução ao rei de suas prerrogativas

e, simultaneamente, ocorreu o reaparecimento de uma extensa gama de partidos

políticos.

Internamente, a Itália, invadida, encontrava-se dividida: o sul, sob

proteção dos aliados, reconhecia o rei como chefe de Governo, o centro se

encontrava sob dominação alemã e, ao norte, Mussolini ainda estava

estabelecido com o apoio dos nazistas. Em 25 de abril de 1945, data que

segundo Cesare, personagem de Antes da Revolução, o povo italiano esquece com

facilidade, marca o fim do fascismo e da luta pela liberação. A Itália, no dizer de

Fabris (1996), “saía moralmente renovada dos acontecimentos de que fora palco

entre setembro de 1943 e abril de 1945. O país estava em ruínas, mas a tomada

de consciência das massas populares parecia ser uma garantia para o futuro

democrático da nação. Para os homens da cultura impunha-se a necessidade de

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registrar o presente - e por presente entendia-se guerra e luta de libertação -,

fazer reviver o espírito de coletividade que havia animado o povo italiano. Na

cultura de imediato pós-guerra esse papel, de cronistas, seria desempenhado

pelos cineastas”, caracterizando uma revolução estética. Nesse contexto político-

social do pós-guerra desenvolveu-se o neo-realismo, movimento de amplo

espectro que abarca um conjunto de obras de diferentes autores, um

movimento/escola que influenciou gerações de diretores, entre eles Bertolucci,

que fazem cinema à maneira do neo-realismo24.

Para Miccichè (1995), nos filmes produzidos pós-guerra, mais

especificamente na década de 60:

“Estava implícito que o fascismo fosse transformado em história

e que fosse representado com o desencanto psicológico e os distanciamentos

críticos de uma sociedade, nacional e internacional, que se julgava

definitivamente protegida em relação àquela experiência histórica” (MICCICHÉ, 1995).

Os filmes de Bertolucci que tratam especificamente dos momentos

políticos da Itália pós-fascista, do florescimento dos movimentos de esquerda: -

Antes da Revolução, 1900, Partner, O conformista, A tragédia de um homem ridículo, A

estratégia da aranha - apresentam uma dimensão mítica e, no caso de 1900, até

mesmo épica, e fazem uso de metáfora, metalinguagem, recorrência e analogia,

elementos da mensagem poética que transgridem os códigos consagrados e

24 Neo-realismo italiano é um tipo de produção cinematográfica que, entre 1945 e 1952, tentou em maior ou menor medida, e com resultados mais ou menos positivos, levar o homem a refletir sobre as relações entre o homem e a sociedade. (FABRIS, 1982:134)

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habituais. As imagens dos personagens jovens, utópicos, idealistas,

contestadores, alicerçados nos elementos de identidade representados pela

linguagem e pelo território, pelo topo físico e familiar, permitem que sejam

relacionadas a desbravadores que abrem o caminho para a transgressão, para a

violação do interdito e também para a transcendência25.

O forte erotismo que marca o cinema de Bertolucci pode ser entendido

no limiar da transgressão, no prazer de violar as proibições decorrentes da

civilização que para sua existência necessitou do controle da instintividade

humana, instaurando a lei e a interdição. A interdição estabelece as regras do

controle do sexo e da agressividade, em um processo que leva o ser humano a

sonhar com a utopia do paraíso onde tudo seria permitido. O processo de

repressão da sexualidade torna Eros doente e a ele se sobrepõe Thanatos -

morte. Para Sócrates, Eros, descendente de Poros - riqueza e de Penia - Pobreza,

é um anelo de qualquer coisa que não se tem e se deseja ter. Platão,

subordinando Eros a Logos, o conceitua como ânsia de ajudar o eu próprio e

autêntico a realizar-se. A atividade erótica é uma busca psicológica independente

do processo de reprodução, é a possibilidade de comunicação com o outro,

rompendo a descontinuidade dos corpos; é o lugar máximo da manifestação da

individualidade. A primavera de 1968 foi um marco no processo da afirmação do

direito à sexualidade e da alegria por ela proporcionada. A dupla moral e as

25 Jovens. São muitas as discussões sobre o conceito de jovens na contemporaneidade. Reportamo-nos aqui aos estudos do sociólogo português José Machado Pais, que considera: há umas décadas era pacífica a associação entre uma presumível linearidade dos tempos do curso de vida e a correspondente sucessão das gerações; à juventude correspondiam os tempos de educação; aos adultos ativos os tempos de trabalho; à terceira idade os tempos da retirada do mercado de trabalho. Na sociedade contemporânea o que vemos? Uma crescente interpenetração desses tempos. Entre os jovens adultos, concretamente, combinam-se – sem qualquer preponderância de nenhum deles – tempos de educação, de trabalho e de desativação laboral. Machado é autor do livro Ganchos, tachos e biscates: jovens, trabalho e futuro. Porto, Âmbar, 2001.

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formas hipócritas do relacionamento humano sofreram duras críticas, houve a

exigência de uma linguagem mais livre e menos preconceituosa adotada e

divulgada pelas vanguardas artísticas26, principalmente a cinematográfica de

Bertolucci.

Maio de 1968 aparece explicitamente na temática dos filmes Os

Sonhadores e Beleza Roubada e implicitamente em Antes da Revolução como uma

prefiguração desse movimento. Está contido de forma latente em O Conformista e

também na liberdade ou permissividade de O último tango em Paris, cidade na qual

também se desenvolve a narrativa de Os Sonhadores.

Ao fazermos a análise dos motivos que perpassam a filmografia de

Bertolucci, buscando nas narrativas indícios da imaginação utópica, passamos a

entendê-lo como um diretor que atua como um sujeito social que, mesmo restrito

a um contexto sócio-histórico-cultural de produção, afetado pelos seus valores

éticos e estéticos , isto é, pela situação social e cultural mais imediata,

demonstra ousadia ao tratar de forma transgressora os temas polêmicos.

Herdeiro próximo do neo-realismo italiano, movimento que mudou profundamente

a gramática do cinema, o modo de conceber a encenação e também da Nouvelle

Vague, sua necessidade teórico-comunicativa o aproximou das temáticas sociais

e políticas sem descuido das motivações psicológicas dos personagens, com

acurada atenção ao conteúdo e principalmente à forma. Seus filmes apresentam

26 Vanguardas artísticas: grupos de artistas que abrem espaço para experimentos estéticos, opondo-se às estruturas de poder autoritário. Deriva-se do francês avant-garde, um termo militar que designa o grupo de soldados que avança à frente do batalhão. Transferindo-se para a esfera artística e cultural, designa os desbravadores, os que ampliam o espaço da linguagem artística por meio de experimentações, rompendo estilos, propondo novos usos do código. (ARANHA, Martins. 1993: 357)

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não só temas históricos, mas também coetâneos. Com muita habilidade ele

costura os dois lados da história, o político com sua pertinência social e

ideológica, e o pessoal com as dúvidas, conflitos e os sonhos dos personagens,

sonhos que podem representar uma utopia individual ou social que o cinema, por

meio de procedimentos de linguagem e de construção, comunica.

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CAPÍTULO II

Os sonhadores de utopias na Primavera de 68

“Acredito que o melhor veículo para

colocar as pessoas em contato com o meio onde vivem é o cinema, porque,

ao contrário do jornal ou da televisão, ele controla inteiramente a atenção

do espectador”.

Francesco Rosi

Na empreitada de constatar que as utopias não desapareceram no mundo

moderno, optamos por estudar as representações da imaginação utópicas no

cinema, mais precisamente no cinema de Bernardo Bertolucci e, para esse fim,

elegemos os filmes Antes da Revolução, Beleza Roubada e principalmente Os

Sonhadores que revivem na ficção o movimento “utópico” de Maio de 68, que

atingiu muitos países e marcou de forma indelével a geração que como

protagonista ou “espectador” dele participou.

Verificamos, no capitulo anterior, que o ser humano na sua mais primária

condição é um ser desejante, movido por uma força, um imperativo, uma

necessidade, uma esperança de alcançar um mundo e uma vida melhor, uma

utopia a qual de forma latente ou manifesta, é representada nos três filmes

mencionados. Gerada nos sonhos diurnos, a esperança, concebida como um

fenômeno ligado à atividade da “consciência antecipadora”, integrava o mito da

caixa de Pandora e, para melhor compreende-la, enquanto princípio, como

continente do novo, do ainda não consciente, nos valemos desse relato

mitológico.

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A saga sempre notável de Pandora faz a esperança ser trazida aos

homens por uma mulher, assim como nos filmes citados as personagens

femininas - Gina, Lucy e Isabelle -trazem a esperança de uma nova realidade.

Ernst Bloch, em O Principio Esperança, apresenta duas interpretações para

a caixa que Pandora trouxe por parte de Zeus, o qual desejava vingar-se de

Prometeu por haver lhe roubado o fogo e o distribuído entre os mortais. A

primeira versão diz que a caixa continha todos os males e ao ser aberta, -

doença, deformação, fome, - voaram para fora, somente a esperança

permaneceu na caixa trancada por Zeus. A esperança nesse caso aparece

também categorizada como um mal, embora com ela Zeus pretendesse consolar

os homens. Com o passar do tempo os antigos começaram a entender a

esperança como um bem, uma virtude, um princípio. Por isso uma versão

posterior, helenista, apresenta a caixa de Pandora como uma caixa de mistérios

e não de malefícios. De acordo com esta versão, os presentes enviados por Zeus

fugiram da caixa, mas não conseguiram se espalhar entre os homens. A

esperança permaneceu na caixa, tornando-se o único bem que resta aos homens

quando os outros se perdem, pois ela sustenta o ânimo para buscar os bens

faltantes. A sua constância e não-resignação na procura dos bens que não

comparecem testemunham que a esperança não pode desaparecer porque, se

isso ocorrer, o processo em curso no mundo se perde.

A queda do mundo de Berlim em 9 de novembro de1989 marcou,

segundo NAGIB (2006:15), “o fim da utopia socialista e a vitória do neoliberalismo pós-

moderno e antiutópico”. Esse fato levou alguns, como o próprio Herbert Marcuse

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guru do movimento de 68, a proclamarem a morte da utopia ou o possível

desaparecimento da esperança.

Nesse contexto sócio-cultural do final do século passado o cinema, de

uma forma geral, ao representar a realidade também se revelou carente de

gestos utópicos e se apresentou nostálgico ou violento. Mas como a esperança é

o bem que não se perdeu que restou ao ser humano, a utopia nela contida

ressurge: partindo da imaginação individual o elemento utópico vai se compondo

na rede do imaginário social em um “excedente” e encontra no cinema

contemporâneo o local ideal para sua manifestação e representação visual-

estética.

O diretor Bernardo Bertolucci cujo cinema é tido como cinema de arte,

cinema político e de poesia, representa, como tema recorrente em sua

filmografia, a utopia que é tema central em Os Sonhadores, narrativa ficcional

inspirada na Primavera de 1968, ocorrida em Paris, considerada, pelo próprio

diretor e sua geração, uma utopia do século XX, mas também uma mistura de

decadência e revolução.

Assim como a Primavera de 68 outras revoluções -1789 (Revolução

Francesa), 1830(Revolução Liberal), 1848 (Primavera dos Povos), 1871 (Comuna

de Paris) -, fizeram de Paris, a cidade Luz, a sua capital e, assim “iluminadas”

continuam a atrair a atenção de estudiosos, intelectuais, políticos e artistas.

Transcorridos quase 40 anos, a Primavera de 68 se mantém atual e

suscita discussões, estudos, constitui-se em argumento para ficção literária,

cinematográfica, tanto que, apenas três anos após ter aparecido nas telas de

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cinema como tema do filme Os Sonhadores, retornou às telas com filme Amantes

Constantes 27.Os dois filmes pretendem mostrar que em Maio de 68 o mundo sem

sonhos foi substituído por uma utopia considerada em sentido renovado;

enquanto uma revolução acontecia a céu aberto e não tomava o poder, outra,

eclodia dentro de cada um na busca de princípios individuais.

Falando sobre o filme: Amantes Constantes, de Philippe Garrel, Olgária

Matos,no artigo Paris,1968 :polis contemporânea argumenta a respeito da

Primavera de 68 que

“Uma situação revolucionária não se reconhece pela tomada do

poder, mas por sua potência de sonho, por sua excedência, excedência

que é sobrevida. O que dá a conhecer que um momento transformador se

encontra em suspenso na espera” (MATOS, 2006 D 7) “.

Encontramos forte analogia entre esse pensamento e os estudos de Bloch:

potência do sonho, excedência, espera de um momento transformador. Esses

fenômenos encontram no cinema, na sua função comunicativa de modo

geral, o espaço privilegiado do “não - lugar”, das “verdades prematuras” onde os

efeitos estéticos, assim como as utopias, transcendem e transgridem as normas

estabelecidas. Ao dispor de inúmeras técnicas, inclusive as de montagem das

27 O escritor Olivier Rolin, militante de extrema esquerda do movimento de Maio de 68, escreveu o romance Tigre de papel (2006), no qual discute o que sucedeu após esse movimento, quando segmentos da juventude, sentindo-se vencidos nas urnas, formaram organizações clandestinas que praticavam o terrorismo e a violência.

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cenas, o cinema permite, tal como acontece com o sonho diurno, revelar a

imaginação criadora de um novo “mundo possível. 28“.

A estética de um mundo possível aparece no filme Antes da Revolução

quando Fabrício busca, através do engajamento no partido comunista, uma nova

cidade de Parma onde o rio não mais a divida entre ricos e pobres e no filme Os

Sonhadores quando Matthew, um jovem que se recusara a lutar no Vietenã,

também se recusa a praticar atos violentos no movimento de Paris, pois sonha

em mudar o mundo pelo amor e não pela violência. Sem nos prendermos

rigidamente aos princípios da decupagem clássica, aplicaremos as três

categorias de análise destacadas das teorias de Bloch e Mannheim - consciência

antecipadora, transgressão e estética da utopia - na trama ficcional desses

filmes, levando em consideração que a concepção estética se manifesta como

representação simbólica no universo diegético.

Ao considerarmos Maio de 68 uma utopia, o filme Beleza Roubada - seja pela

época em que foi filmado, seja pela própria mensagem em que, simbolicamente,

ocorre a morte dos sonhos da geração de 68 ou pela própria concepção estética

quando as imagens se sobrepõem a mensagem, - é representativo de uma época

pós-utópica e envolve o receptor em uma temática na qual o rito de passagem de

uma jovem para a condição de mulher pode resgatar o excedente utópico que

estava adormecido naquela villa que almejava ser a concretude da utopia.

28 .Bloch distingue imaginação da fantasia: a primeira permite a consciência humana adaptar-se a uma situação especifica ou mobilizar-se contra, a segunda através de um conjunto de imagens procura compensar uma insatisfação vaga ou difusa.

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Nos filmes de Bertolucci a função metalingüística, característica dos filmes

modernos é recorrente e, em Os Sonhadores, a representação estética dessa

função ocorre através dos jogos cinestésicos de seus protagonistas, o que lhe

confere grande originalidade. Nesse filme a estética da “revolução” de Maio de 68

é submetida à estética da revolução subjetiva dos três jovens protagonistas

quando as transgressões vividas pelos personagens se tornam fatores

determinantes dos recursos estilísticos capazes de gerar identificação com o

público receptor.

O cinema nos cenários convulsivos dos anos 60 foi como um correlato de

todos os anseios juvenis por um mundo melhor e mais justo. Muitos diretores ao

produzirem filmes nessa época deixaram nas suas obras as marcas de seu

engajamento político, seu desejo de justiça, suas esperanças e utopias. É nesse

contexto que Bernardo Bertolucci inicia sua carreira e, animado por um espírito

contestador e poeticamente transgressor, faz uma crítica a essa realidade

apresentando no filme Antes da Revolução, o engajamento e a capitulação de um

jovem burguês, fato que quatro anos depois aconteceria na França com os

operários. No filme Antes da Revolução analisa Lino MICCICHÉ (1995:207).

Bertolucci reflete, espelha, vive e em parte prenuncia, até mesmo por sua

contemporaneidade, o fenômeno da contestação que entre 1967 e o primeiro

semestre de 1968 realiza sua própria representação.

Dessa pré-visão do movimento de 68, decorrente da observação dos fatos

que aconteciam e antecediam o movimento, emanaram questões estilísticas e

técnicas que foram mantidas no filme Os Sonhadores, uma pós-visão do

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acontecimento. O inicio dos dois filmes se assemelham: um jovem caminhando

pelas ruas da cidade, utilização da voz em of, close-up. Nos momentos finais os

dois protagonistas caminham em sentido contrário as bandeiras vermelhas.Esta

cena em Antes da Revolução demonstra o rompimento do jovem burguês com o

Partido Comunista Italiano e em Os Sonhadores, quando esse acontecimento

revivido na ficção já havia se tornado um “fato histórico” que culminou com o uso

violência por grupos de jovens sem perspectivas de promover mudanças em uma

nova ordem, que desprezavam o passado e temiam o futuro, esse caminhar

revela o sonho de não sufocar a individualidade às “massas”, de manter viva a

utopia de promover mudanças sem violências. Após a descrição de cenas

escolhidas dos três filmes que elegemos como os mais representativos de uma

“estética da utopia” no cinema de Bernardo Bertolucci passaremos a análise,

mas, antes, precisamos ressaltar que falamos em estética da utopia e não em um

estilo utópico, pois entendemos que se houvesse estilo utópico ele, em sua

representação, estaria mais próximo ao da ficção científica.29

Já vimos que o cinema é uma invenção da modernidade, nascida no âmago

da revolução industrial e que perpassa a revolução técnico-científica caracterizando

- se sempre como um motivo estético que se assemelha com a utopia no seu

caráter pré-figurativo capaz de antecipar os fenômenos sociais, políticos e culturais.

A dimensão propriamente estética apresenta mudanças devido aos

fenômenos inerentes à modernidade, já analisados - reprodução mecânica e

29 A categoria “estética da utopia” foi criada pelo cineasta Aníbal Quijano quando atribui à utopia e ao estético fundamental importância na recuperação do conceito de modernidade latino-americano, ainda não realizado historicamente, mas vivo nas obras literárias do peruano José Maria Arguedas (RAMALHO MENDONÇA,1995). Apropriamo-nos dessa categoria para demonstrar a importância do cinema na representação dos mundos utópicos possíveis.

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massiva, a produção em massa e a difusão ou circulação dos produtos culturais -

que, ao menos em tese, permite a acessibilidade, quase simultânea na sociedade

globalizada e afeta diretamente as produções cinematográficas, pois no seio da

revolução tecnológica emerge também uma revolução de hábitos, costumes e

valores humanos que tangem o juízo de apreciação do sujeito receptor.

O filme se constitui também em uma nova técnica da modernidade, mas

“a sua pertença à arte está decidida pela pertença a pantomina”, diz Bloch para quem:

“A obra de arte, para além de sua essência manifesta, ainda foi

concebida sobre uma latência de aspecto vindouro, vale dizer, sobre os

conteúdos de um futuro que no seu tempo ainda não haviam surgido.

Essa é a única razão porque as grandes obras de cada período têm algo

a dizer, algo novo, que o período anterior não havia percebido”

(BLOCH, 2005:100). Por isso, “toda grande obra de arte,

abstraindo-se sua natureza manifesta, repousa sobre a latência do outro

lado, isto é, sobre os conteúdos de um futuro que na sua época não havia

surgido, ou mesmo sobre os conteúdos de um estágio final desconhecido

(IDEM: 127)”.

Resgatamos a similaridade entre algumas técnicas cinematográficas,

como o acompanhamento de cada lance pelo espectador, a música, a

deslocabilidade do detalhe e até de agrupamentos já fixados, e o sonho

acordado, local privilegiado do nascimento da imaginação utópica, onde o “eu”

está sempre presente - seja como sujeito ou observador - tornando justificável a

relação pretendida entre cinema, como obra de arte, e utopia, pois ambos se

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sustentam na possibilidade de um futuro melhor, tangível pela imaginação e pelo

sentimento que suscita.

Dentre os recursos de que dispõe a produção cinematográfica,

destacamos como categorias de análise a serem aplicadas, - em um processo de

reciprocidade com as categorias de análise emanadas do pensamento de Bloch e

Mannheim,- a voz em off, o close-up e a metalinguagem.

A “voz em off é um recurso da linguagem do cinema moderno em que

narrador e personagem se definem em função do arranjo fílmico. Esse recurso

hiper-realista, que a principio não se distingue do monólogo interior, permite ao

espectador tomar conhecimento do que se passa na subjetividade do

personagem, precedendo a sua exposição na narrativa, o que nos leva a

relacioná-la com a categoria da “consciência antecipadora” de Bloch, ou seja,

partindo de um estágio de insatisfação chega-se a apropriação de um “ainda

não”, numa tensão, cuja finalidade é o superamento definitivo dessa carência.

O “close-up” é um movimento de aproximação da câmera, capaz de

apresentar apenas o rosto ou um detalhe da figura humana, ou de uma cena,

ocupando a quase totalidade da tela. Com esse movimento “rompe-se” a situação

original da cena ocasionando, quase que em uma invasão, uma exposição da

subjetividade pela sua objetividade. Relacionamos essa categoria com a

transgressão, definida por Mannheim como uma ruptura com a ordem

estabelecida.

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O terceiro recurso, a metalinguagem, receberá maior atenção no terceiro

capítulo, mas, para a finalidade ora proposta; podemos dizer que, a metalinguagem

é o cinema falando do cinema , colocando em cena o “mistério” de sua essência

ôntica e será relacionado a estética da utopia pois aí o cinema se auto-reflete e

expõe “a matéria “com a qual foram tecidos os sonhos das sociedades.

Nos três filmes de Bertolucci que descreveremos a seguir, as relações

entre o realmente acontecido, o socialmente pensado - ideologias e utopias - o

poeticamente imaginado, testemunham o estilo vanguardista do diretor sempre

pronto a transgredir o uso do código cinematográfico e a escolher temas voltados

às questões sociais contingentes. Essas categorias, representativas do estilo na

produção cinematográfica de Bertolucci – o realmente acontecido, o socialmente

pensado, e o poeticamente imaginado (sempre na narrativa fílmica) - serão

aplicadas ao filme Os Sonhadores, em um processo de inter-relação com as demais

categorias, como ilustrado na tabela abaixo.

Pensamento existencial Produção cinematográfica Estilística narrativa

Consciência antecipadora

Voz em off

Realmente acontecido

Transgressão

Close up

Socialmente pensado

Estética da Utopia

Metalinguagem

Poeticamente imaginado

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2.1. ANTES DA REVOLUÇÃO

Titulo: “Antes da Revolução” Ano de Produção: 1964 Estúdio: Iride Cinematográfica Diretor: BERNARDO BERTOLUCCI Roteiro: BERNARDO BERTOLUCCI Fotografia: ALDO SCAVARDA Montagem: ROBERTO PERPIGNANI Trilha Sonora: GINO PAULI E ENNIO MORRICONE Elenco Principal: Gina: ADRIANI ASTI Fabrizio: FRANCESCO BARILI Agostino: ALLEN MIDGETTE Cesare: MORANDO MORANDINI Clélia: CRISTINA PARISETE Um Amigo:GIANI AMICO

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Sinopse : Fabrizio, um jovem de 22 anos,extremista, passa por uma fase

de indecisão afetiva e ideológica.Em torno desse personagem, um “rebelde” que

busca no engajamento político o caminho para a autenticidade, o filme articula

suas questões mais ambiciosas.

A frase do camaleônico diplomata francês, Tayllerand,30 “Quem não viveu

os anos antes da revolução não sabe o que é a alegria de viver” foi fonte de inspiração

para o título do filme, Prima della Rivoluzione -Antes da Revolução - , um filme em

preto e branco, construído em dois tempos.Por haver sido filmado quatro anos

antes de Maio de 68 e só ter sido distribuído em Paris entre 1967 e 1968 ele fez

na França o sucesso que não conseguiu na Itália.Naquele momento a juventude

revolucionária reconhecia no discurso de Fabrizio contra a moderação, as suas

próprias palavras. O filme parece ter adiantado, prefigurado o que estava para

acontecer, constituindo-se em um fenômeno de consciência antecipadora.

Filmado em Parma, cidade natal do cineasta, este é um filme emblemático

sobre a juventude revolucionária dos anos 60. O jovem Fabrício interpretado por

Francesco Barilli vive um conflito interno de indecisão política e afetiva. Encontra-

se dividido entre a ideologia burguesa de sua família e as demandas do Partido

Comunista ao qual é filiado e cujas regras transgride por não conseguir viver na

utopia revolucionária do futuro nem no passado heróico. È uma revolução sem

armas e sem trincheiras, uma dicotomia que se faz acompanhar por forte tensão

sexual. Sobre esse filme Bernardo Bertolucci declara “é uma espécie de gesto

ritualístico que eu fazia, jogando com minha semelhança com o protagonista, que 30 Tayllerand foi um diplomata francês, extremamente hábil e em alguns casos inescrupuloso, que se manteve próximo ao poder constituído por décadas: iniciou no movimento da Revolução Francesa, permaneceu durante todo o Império napoleônico e, por fim, na Restauração.

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vinha a ser meu coetâneo, talvez fosse algo um tanto fora de seu tempo no que

concerne à Itália, no sentido de adiantado, encontra seu momento adequado em

Paris, quatro anos mais tarde” (PRUDENZI e RESEGOTTI. 2006:126-127).

Tela preta, uma voz narrando: ”foi preciso que acontecessem muitas coisas... foi

preciso que eu sofresse, que você sofresse muito. Existia porque vocês existiam.Agora estou

quieto, agarrado às minhas raízes, parece-me que não existo mais.” A seguir o enunciado

“num domingo de abril de 1962, pouco antes da Páscoa, em Parma” indica o espaço e o

tempo do jovem Fabrizio que corre pelas ruas a procura da noiva. As imagens

cinzentas de um cenário real são típicas dos filmes do neo-realismo documental.

Enquanto corre uma voz, a do próprio personagem, narra diegeticamente seus

pensamentos, ou mais precisamente, a poesia “La religione del mio tempo” de

Píer Paolo Pasolini.31.

Em close-up, Fabrizio, um jovem burguês em crise que tenta romper com

sua condição de classe, e a cidade de Parma dividida entre ricos e pobres, na

Itália democrata-cristã dos anos 60, representa a segunda categoria analítica: a

transgressão

31A narração diegética está explicita na narrativa através do relato feito pelo personagem e que transcreveremos em itálico para melhor entendimento. O texto poético de PASOLINI é o seguinte: E, entretanto, Igreja, até você eu viera.Pascal e os cantos do povo grego seguravam firmes na mão/Varreu a resistência, com novos sonhos, o sonho das regiões federadas em Cristo e seu doce – ardente rouxinol/Ai de quem não souber que é burguesa essa fé cristã/no signo de todo privilégio, de toda redenção, de toda servidão/que o pecado é só um crime de lesa certeza cotidiana/odiado por medo e aridez/que a Igreja é o desalmado coração do Estado.

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“Como num sonho vislumbro as portas da cidade” A câmera em plano geral

mostra a cidade e o rio que a divide entre ricos e pobres, mostra a praça, as

casas no seu entorno, os casarios burgueses à direita do rio; alterna-se com

primeiros planos do personagem e aponta para o misterioso ato do nascer de um

pensamento. A voz continua: “E de novo a praça. Bem no meio da cidade e tão próxima

aos campos que de noite sentimos o cheiro de feno. A praça que nos dá à sensação de estarmos

numa arena murada”.

A cidade de Parma, uma cidade rural que começa a se modernizar,

também é uma protagonista do filme e não meramente paisagem. A noiva

predestinada, Clélia (Cristina Pariset), deve ser rejeitada assim como a cidade, e

seu modo de vida, conforme diz Fabrizio “ela é a parte da cidade que eu rejeitei. Aquela

alegria de viver que eu me recuso a aceitar. Encontrei-a e quero olhar para ela pela última

vez.” Aparece Clélia saindo da igreja com sua mãe: uma jovem e bela mulher,

elegante, com roupas e penteados convencionais, conservadores; uma burguesa.

Esta narrativa em primeira pessoa indica um “eu” falando sobre algo que viveu e

o transformou. É uma voz interior de quem fala consigo mesmo e demonstra o

conflito interno, as incertezas existenciais do jovem burguês, ao mesmo tempo

em que apresenta uma velada critica ao modo de vida na Itália dos inícios dos

anos 60, época da reestruturação social e econômica. Referências a hegemonia

democrata –cristã e as teorias filosóficas-existencialismo, marxismo - associam-

se a trechos poéticos do poema de Pasolini.

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Há, manifestamente, uma tensão, um estado de insatisfação cuja

finalidade é a superação de uma carência que conduz a apropriação do “ainda

não consciente”, uma instância psíquica capaz de produzir o sonhar para frente.

.

Agostino e a insatisfação com o modo de vida burguês , encarnado pela sua família, são simbolizadas nas quedas que acontecem ao fazer malabarismo com a bicicleta.

Em outra seqüência ocorre o encontro com Agostino - Allen Midgette, que

passeia com sua bicicleta(pode ser uma alusão ao filme Ladrões de Bicicletas,

marco do néo-realismo italiano, enquanto Fabrizio se dirige à casa de Cesare -

Mirando Morandini, seu mentor na ideologia marxista32 e acontece a primeira

referência ao cinema,- recurso metalingüístico freqüente na filmografia de

Bertolucci -, quando Fabrizio diz ao amigo: Qualquer coisa, a política ou até a poesia

pode lhe servir. Tudo o que você faz ou diz tem sentido. Até seus erros tem sentido. Vá ao

cine Pace assistir O rio Vermelho33 . A utilização da função metalingüística ocorre

em relação a um filme americano, cinema considerado “menor” pelos cineastas

tradicionais europeus, mas que contava com o reconhecimento de alguns críticos

dos Cahiers du Cinema. A narrativa do filme o Rio Vermelho apresenta

32 Esse personagem pode ser uma homenagem ao mestre Cesare Zavatini. 33 Rio Vermelho: Filme de Howadr Hawks,de 1948, do gênero faroeste.Montgomery Clift era um jovem defensor da justiça no Oeste Bravio, contrariando as convicções de seu padrasto representado por John Wayne.

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semelhanças com a situação familiar de Agostino, personagem em conflito com o

modo de vida dos pais, que encarnam os valores culturais da burguesia,

Não sabemos se há uma elipse de tempo ou se uma outra versão do

encontro mostra Agostino, bêbado, demonstrando sua insatisfação com o modo

burguês de vida de sua família, enquanto faz malabarismos com a bicicleta e

dedica cada tombo – duplicado pelos cortes em descontinuidade - a uma pessoa

de sua família e o maior a si próprio, metaforicamente falando sobre seus

fracassos e pré anunciando a autodestruição que se confirmará com o suicídio:

Você reclama e foge, tua luta deve ser interna, fala Fabrizio. E Agostino lhe responde: E

você o que faria? O que você acha que está fazendo? A Revolução?

Fabrício segue seu caminho deixando o amigo e candidato a discípulo da

ideologia de esquerda com seus conflitos, pois, como um burguês que renega

suas origens , crê na possibilidade de um mundo melhor, mundo esse que

poderá ser conquistado através de uma ideologia como a do Partido Comunista,

da qual tomou conhecimento através de Cesare. Uma revolução sem armas, mas

de evolução de idéias, de ideais, de valores, de sentimentos, traz a Fabrício a

esperança em dias melhores que se tornarão possíveis graças a sonhada “utopia

comunista” que poderá apaziguar sua angústia existencial.

Gina, uma personagem aflita e neurótica, que refuta as normas, simboliza a transgressão dos “filhos da burguesia”ao viver uma relação incestuosa com o sobrinho e percebe que para seu

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sofrimento só há um remédio:os outros. O sobrinho tenta, na esfera política, leva-la ao engajamento que, sem sucesso, pretendia ter oferecido a Agostino.

De Milão, uma cidade moderna, chega tia Gina - Adriana Asti, irmã da

mãe de Fabrizio, para tratar-se de uma crise nervosa. Jovem, bonita, liberal é

bem recebida pela irmã, pelo cunhado, pela avó, pelos dois sobrinhos e

demonstra grande afeto pelo sobrinho mais velho, do qual se aproxima mais após

a morte de Agostino. No funeral de Agostino, estando Fabrizio em um estado

emocional de grande fragilidade, a tia começa a seduzi-lo.

É o início de uma relação incestuosa mostrada, a princípio, em uma

seqüência de cenas em que, em quartos separados, os dois corpos movimentam-

se com muita sensualidade, um indício de vidas paralelas, destinadas ao

desencontro. No dia da Páscoa, nos fundos do prédio onde a família reside, no

local anteriormente ocupado por uma tipografia, o encontro acontece em um

signo de transgressão as regras socialmente estabelecidas, como demonstram

as fotos acima. Gina, personagem ambígua, alterna momentos de extrema

angustia e transtorno com outros de leveza e infantilidade. A aproximação do

casal acontece em torno dessa ausência/ presença da morte, e talvez num

mecanismo de substituição do amigo ela passe a ser uma referência para as

formas de negação e contestação de Fabrizio no seu “aqui-agora”. A cena de

amor, às vésperas de um domingo de Páscoa, é bastante significativa

principalmente se considerarmos não somente o sentido cristão dessa festa. O

incesto se apresenta como uma das mais contundentes formas de transgressão

as regras sociais, morais e religiosas, portanto um rompimento brutal com as

amarras do mundo burguês.

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A angústia existencial da juventude burguesa ,conforme SARAIVA

(2002:30), leva a alternativas diferenciadas de respostas: Fabrizio busca novos

horizontes através do engajamento político,-o que o leva ao idealismo e a

reificação, Gina no conviver –que conduz a neurose e Agostino no rompimento

individual que o leva ao suicídio.

Nestas cenas da câmera ótica há uma construção de sentido entre espectador e imagem e a enunciação de um sonho -correspondente a primeira categoria - que se rebela contra a ordenação burguesa do tempo e que só o cinema pode realizar: o desejo de parar o tempo.

Pouco antes do intervalo entre o primeiro e segundo tempo, na única cena

colorida do filme, Fabrizio emerge e desaparece na Praça de Parma, local de

encontro de jovens sonhadores, fazendo encenações, ao som de uma trilha de

filme mudo, observado por Gina em uma “câmera ótica”, uma sala de espelhos

que projeta, em um espelho interior, o que se passa lá fora, Quando ele retorna à

câmera ótica, beijam-se. Viu só? Gostou do filme? Pergunta Fabrizio e a tia lhe

responde: É um belo exemplo da realidade Esquece os meses de maio a setembro -

primavera- quem sabe onde estaremos no outono?

A questão da experimentação temporal é explicitada no diálogo entre o

sobrinho e a tia:

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Fabrício: Tu viste? Gostou do filme?Como cinema-verdade não está mal.

Tia: Aos domingos vocês ficavam vendo as garotas irem à missa. Depois, havia a feira,

os saltimbancos, os ursos amestrados.

Fabrizio: Este momento aqui eu não trocaria por nada. E mesmo que esteja

passando, eu não me importo.

Nessa seqüência da câmera ótica há a explicitação verbal e cênica de

questões fundamentais do filme: a metalinguagem, manifestando o que em

outras seqüências era latente, o cinema – aí metaforicamente apresentado como

espetáculo, como cinema-verdade, a questão da temporalidade como uma

possibilidade utópica de “parar o tempo” num eterno presente. ”Perdoa o instante

por passar”, diz Fabrizio.

Nas falas de Gina também é explicita sua angustia em relação à

passagem do tempo e a neurose que a ordenação burguesa provoca ao enunciar

que cada dia vivido é menos um a viver. Para SARAIVA (2002:46) esta seqüência de

cena “conjuga a lucidez sobre o caráter construtivo da obra com a crença do

cinema ser uma ponte para a comunicação autêntica em um mundo alienado, é

ao que a forma do bloco se propõe, fazendo explicita e metalingüisticamente o

que os outros blocos faziam de modo implícito”.

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Na casa do mestre comunista os três confrontam idéias sobre o sentido da História ,concepção de mundo , a relatividade do tempo e, podemos deduzir, da substituição do rádio por meios mais modernos de comunicação de massa.

O segundo tempo se inicia com a ida do casal a casa de Césare. Gina

tenta ouvir o rádio, o meio de comunicação mais popular, que só funciona após

ser esmurrado por Césare. O ativismo político, o idealismo das doutrinas de

esquerda, o repúdio ao fascismo aparecem nos textos dos alunos de Césare, um

professor que sempre insiste com o tema 25 de abril de 1945, embora ciente de

que os italianos não o entendem, ou melhor, entendem, mas o esquecem

depressa, com facilidade. Retirando aleatoriamente livros e cadernos dos alunos

que se encontram na estante Fabrizio lê: Nosso professor nos ensinou que a palavra

liberdade quer dizer justiça e democracia. No dia 25 de abril, terminado o fascismo, começou a

paz. Também a idéia de revolução, de lutar por mudanças e, com base na

doutrina marxista, recorrer à luta armada se preciso for, presente no contexto

ideológico do professor Cesare, é passado aos alunos, pois o professor percebeu

que não é possível ensinar os adultos, somente as crianças.

Gina faz a leitura de um outro texto: “quando tivermos descoberto as leis

científicas que governam a vida veremos que o único que tem mais ilusões que o sonhador é o

homem de ação. Mas os homens são escravos das palavras. Eles investem contra o

materialismo. Lembre-se que nunca houve uma melhora material que não espiritualizasse o

mundo. E que não houve um despertar espiritual que não dispersasse a faculdade do mundo

em estéreis esperanças”.A câmera fecha com meio plano de Gina segurando próximo

ao rosto o livro onde se lê “Oscar Wilde”.

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A partir dessa cena “trava-se” um diálogo sobre história, a modificação do

individuo, do mundo e a passagem do tempo. E para ilustrar Gina , com uma

antiga brincadeira, começa a contar uma história.

Era um velho mestre como o senhor, que tinha um discípulo como ele. E os dois

caminhavam pelo campo. Certo dia o velho mestre disse ao jovem:

- Estou com sede pode ir buscar um copo d água?

O jovem disse sim e caminha pela estrada. Encontra uma fonte e atrás dela uma aldeia encantadora.

E o professor Cesare continua:

Nessa aldeia conheceu uma garota encantadora. Casaram-se tiveram filhos, e viveram juntos 20

anos. Após vinte anos uma terrível epidemia mata todos e ele é o único sobrevivente. Tinha envelhecido e

desesperado saiu a andar. Chegou ao ponto onde havia deixado o velho mestre. E o vê ali sentado: _ Quanto

tempo você levou para buscar um copo de água, fiquei esperando a tarde toda.

Eis porque o tempo não existe, fala Gina.

A relatividade na percepção do tempo, apontada nesse texto, conduz ao

tempo no cinema, um tempo ubíquo, circular, um pantempo - passado, presente

e futuro mesclados. - que não existe no exato sentido de Chronos34.

34 Chronos -que representa o tempo objetivo, cronológico, contado, aparece na mitologia como o deus grego que, incitado pela mãe e ajudado pelos irmãos, os titãs, castrou o pai (Urano, o céu), separando-o de sua mãe (Géia ou Gé, a terra), e tornou-se o primeiro rei dos deuses. Seu reinado era ameaçado pela profecia segundo a qual um dos seus filhos o destronaria. Chrónos então devorava todos os filhos que lhe dava sua mulher, Réia, até que esta o enganou e salvou Zeus. Este, quando cresceu, arrebatou o trono do pai e o expulsou do Olimpo, banindo-o para o lugar do tormento. Segundo a interpretação clássica, Chrónos simbolizava o tempo e por isso Zeus, ao derrotá-lo, conferira, então, a imortalidade aos deuses. (Enciclopédia). Barsa,1999).

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Na casa de Cesare, Fabrizio sente-se protegido da vida burguesa,

parece encontrar junto ao professor seu mundo ideal.Na visita em que se faz

acompanhar por Gina e procede a leitura dos trabalhos esses manifestam o

projeto existencial, político e pedagógico deste professor de crianças, que possui

a capacidade de ordenar os pensamentos dos alunos e de seu preceptado

ideológico, Fabrizio.

A função metalingüística aqui é manifestada através do cartaz referente ao filme de Godard,na imagem da sala de cinema, também vista como um refúgio e na conversa com o amigo que faz da estética cinematográfica um modo de vida.

Em outra seqüência Fabrizio, após um desentendimento com a tia, dirige-

se ao Cine Orfeu onde o cartaz indica o filme La donna é una donna35 .

Encontra-se com um velho amigo, um cinéfilo representado por Gianni Amico, na

mesa do bar anexo ao cinema. Este fala que para ele nada faz lembrar mais o ano de

1946 do que Humprey Bogart e Laureen Bacall no filme de Haws. Há filmes que vi oito

vezes, até 15 vezes. É possível viver sem Hitchcok e Roselini? Criticam Resnais e Godard,

mas filmam melhor que De Santis e Lizzam, até mesmo que Franco Rossi...Uma

panorâmica, por exemplo, é um estilo e estilo é moral. Lembro-me de uma panorâmica circular

de Nicholas Ray que é um dos pontos mais altamente morais. Bem engajado na história do

cinema. 35 La donna é uma donna , filme de Godard lançado em 1964.

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Nesta seqüência mais uma vez há uma alusão explicita ao cinema com o

uso da função metalingüística ao prestar homenagem aos diretores e destacar a

importância dos filmes que passam a ser referenciais na vida do espectador. O

cinema em sua função metalingüística promove uma construção de sentido entre

o espectador e a imagem e os filmes e diretores citados, além de incitar o desejo

de conhecer o desconhecido funciona como uma homenagem aos que fizeram a

história do cinema.

Um pintor, que parece simbolizar o olhar da burguesia, Puck o amigo que recebe Gina e se reconhece como burguês falido, e o dissentimento entre Gina e Fabrizio indicia a capitulação de Fabrizio ao conformismo.

Na fazenda Satgno Lombardo, cujo proprietário é um velho amigo de Gina,

Puck - Crecope Barilli, ocorre a mais poética seqüência de cenas do filme,em

que, através do mergulho subjetivo do burguês Puck , Fabrizio, como em um

espelho, também se reconhece como burguês .

A paisagem, espaço topológico, filmada em diversos planos e ângulos, é

o cenário para a pungente declamação de Puck sobre a situação da burguesia

falida, sem lugar no mundo produtivo do advento da modernidade. O dique, o

pântano, o Padova, um pintor. Os planos se alteram entre esses três

personagens. Lá embaixo, quase escondido o Pó. As terras de Stagno Lombardo

estão hipotecadas e Puck, caminhando, olhando para suas terras, para a beleza

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local, declama: Desde que meu pai morreu há cinco anos tudo degringolou. Pode me

imaginar sem meu ganha pão? Que farei, começar trabalhar? Nunca trabalhei... nunca

estudei. Diziam que a terra me sustentaria. Sou um ignorante, quase uma toupeira e teria

vergonha de roubar um salário.

E Fabrizio questiona: Como tem sido até agora? Detesto a falsa sinceridade. É

muito fácil fazer exame de consciência nessa situação. Por que não o fez antes?

Puck: : não percebe o que significam os costumes, os hábitos.

Um pescador em sua jangada vem se aproximando e Puck lhe diz:

É preciso esquecer o rio. Dizem que precisamos nos esquecer dele. Virão aqui com

suas máquinas. E trarão também suas dragas. Haverá homens de todos os tipos e barulhos

dos motores. Quem cuidará dos álamos para que eles não congelem? Não sobrará nada, não

haverá mais verão, não haverá mais inverno. Para você também será o fim, diz olhando para o

pescador. Vá para trás, afunde esse barco Não mais pescaremos o lúcio juntos. Os pássaros

não passarão mais, não mais ficarão sobre a mira de minha espingarda. E chega também de

galinha, o vôo dos gansos selvagens. É isso meus amigos.

O barco sendo tragado pelo nevoeiro sugere o fim de um tempo, de um

modo de vida que Puck reforça dizendo: “Aqui termina a vida e começa a

sobrevivência”, frase esta que é a literal tradução da antiutopia, da morte dos

sonhos e das utopias a que nos referimos no primeiro capítulo.

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Fabrizio se reconhece, nessa declaração. Percebeu que seria igual a Puck

com o passar do tempo e teve a sensação de que para os filhos da burguesia

não haveria saída. O real, a pura existência imediata e intransitiva, na forma

captada por Fabrizio gera angústia. Para Olgária MATTOS “o real é algo estranho

ao significado. É inteiramente diverso do verdadeiro, pois o real é estranho à

linguagem e à dimensão simbólica, é o que resiste à simbolização”(2006:31)

Estas cenas ligam, talvez de forma mais forte que nas anteriores, a

análise política ao entendimento das motivações psicológicas das personagens,

sob a costura poética do diretor. Através do discurso de Puck , Fabrizio se

reconhece como burguês. As tomadas de cena durante o discurso do fazendeiro

falido e não adaptado ao modernismo, conduzem ao lirismo das atividades

naturais de uma vida bela e agradável como o último canto do cisne, quando

essa vida, atingida também nas relações sociais, se transforma em

sobrevivência. Ao ver a destruição do mundo ao qual está organicamente ligado,

Puck reconhece o seu lugar, a sua identidade e a sua incapacidade de seguir o

fluxo do tempo. Puck não buscou o novo, o “ainda não”, antes se acomodou a

uma situação, não reconheceu o dissonante, o remanescente de um excedente

utópico que funcionaria como mola de um novo ciclo imaginativo. Fabrizio,

através do discurso subjetivo de Puck se identifica e se conforma com sua

condição de burguês por sentir-se incapaz de situar-se no presente em

transformação. Há uma ruptura com sua atitude de engajamento e também um

rompimento com Gina, símbolo da liberdade e do novo.

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O caminhar de Fabrizio acompanhado por Cesare em direção à câmera e em desencontro com as bandeiras no Parque Ducalle revela no filme, de forma estética, a anti-utopia.

Gina retorna a Milão e Fabrizio e Cesare vão ao Parque Ducalle onde está

sendo preparada a Festa Dell Unita, que acontece ao final do ano. Nessa cena

antológica vemos Fabrizio caminhando no sentido contrário ao das bandeiras,

enquadrados entre cartazes e grafismos. Esse caminhar, como alegoria, fala

mais alto que o próprio diálogo de Fabrizio com Cesare. Sinto que está tudo errado. Até

mesmo essa diversidade - apontando pra a diversidade de bandeiras. Não falamos a mesma língua e queremos

as mesmas coisas? E pensar que perdi metade do verão, está tudo indo para o brejo.

O povo acredita em tudo, isso me dá medo, diz Fabrizio ao ser inquirido sobre a

morte de Marilyn Monroe,noticiada em jornais. E Césare responde: Enquanto

acreditarem em nós... E Fabrizio indignado: Sem contestar? E se estivermos errados?

Césare: Há indícios de uma forte consciência popular.

Ao que Fabrizio responde: Não me bastam os acontecimentos de julho de 60, as

revoluções de um dia. Não me bastam as guerras, as agitações sindicais com suas bandeiras

vermelhas. Em 48, talvez... Mas hoje, quem faria greve pela liberdade de Angola? Quem vai

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combater na Argélia? Quem vai a praça protestar pela morte de um negro? Nem os protestos

me bastam mais. Quero um homem novo. Uma humanidade onde os filhos respeitem os pais.

O que o partido fez pelo Agostino?

Césare: A morte dele fez você despertar. Porque exige do partido aquilo que não foi

capaz de fazer?

Fabrizio: Certa vez você me emprestou um livro, havia uma frase sublinhada. “Os

homens fazem sua história num ambiente que os favorece”. Eu sou a exceção dessa frase, é

preciso abrir os olhos. Você tentou me abrir os olhos e era o que eu esperava. Mas sou como

uma pedra, nunca vai mudar. Queria encher Gina de vitalidade, mas só consegui deixá-la

angustiada Não quero modificar o presente, aceito-o como é. Mas meu futuro de burguês está

no meu passado de burguês, portanto, a minha ideologia foi coisa passageira. Achava que vivia

os anos da Revolução, mas estava vivendo os anos anteriores a ela. Pessoas como eu estão

sempre à frente da Revolução.

Nesta seqüência em que se dá o debate entre consciência popular e

ideologia do Partido, os dois são enquadrados contra um fundo tomado por

cartazes de lideres da esquerda; a resignação de Fabrizio reverte-se em uma

atitude absolutamente antiutópica; o personagem que aparenta estar vivendo os

anos antes da revolução, mas estando a sua frente, não encontrou kairós, o

tempo certo, maduro, para o evento.A realidade e a fantasia se mesclam nessas

cenas, numa ousadia do diretor, assim como mesclam a articulação entre História

e realidade.

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Na realidade, a filmagem dessa seqüência, foi peculiar. Todos os anos,

durante o verão, o Partido Comunista Italiano organizava uma grande festa em

diversas cidades italianas com a participação dos filiados e de quem quisesse

pagar o ingresso para assistir aos shows musicais e filmes que eram

apresentados. Esperar uma festa para filmá-la como um documentário ou

reconstituí-la, com toda riqueza de detalhes, foram às alternativas propostas a

Bertolucci. Nem uma nem outra alternativa foi aceita. O diretor acabou optando

por reconstituir a preparação da festa, os momentos organizacionais, para

diminuir os custos. O enquadramento de Cesare e Fabrizio caminhando em

sentido contrário as bandeiras vermelhas, este criticando o povo que acredita em

tudo o que “deu no jornal”, denunciando a aspiração do proletariado ao modo de

vida que até então condenava, demonstram a decepção e a ruptura do jovem

com a ideologia do partido comunista e a força que os meios de comunicação de

massa desfrutam na modernidade. Nessa época também ocorria o

distanciamento entre o jovem Bernardo Bertolucci e o Partido Comunista Italiano.

As cenas finais equacionam esteticamente as questões ideológicas demonstrando que Fabrizio ao não romper com a ordem vigente, ao não superar a ordenação burguesa, deu lugar ao conformismo e a resignação antiutópica.

Nas cenas finais o rompimento definitivo com Gina, ocorre quando esta

volta a Parma para assistir a ópera Macbeth, de Verdi. A tia acompanha o

sobrinho, durante o intervalo, até o camarote onde Clélia o aguarda. Cesare

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encontra-se em outro camarote do qual observa Fabrizio. O reatamento com

Clélia é um emblema do fim de uma vida idealista e a resignação à vida

provinciana de Parma dividida entre o mundo camponês, arcaico e o advento da

modernidade. Numa cena, em montagem paralela, enquanto Fabrizio e Gina se

casam, Césare, cansado de ensinar adultos, usa a parábola de Moby Dick para

demonstrar às crianças que a obsessão do capitão Ahab pela baleia branca o

conduzirá a um desastre, Essa obsessão simboliza um conflito perene entre o

bem e o mal ou uma viagem ao interior de si mesmo.

Este filme, para Pasolini, seria a expressão da subjetividade obsessiva de

seu autor, mascarada sob a psicologia da personagem Gina (SARAIVA.

2002:33).

Para Bertolucci, conforme depoimento abaixo, é um filme revolucionário e

como tal recusou a linguagem e o tipo de histórias impostas pela sociedade em

que se vivia.

“Meu filme não é um tratado de história política, mas uma obra

pessoal que fala de um jovem provinciano, um tanto extremista. O fato

de esse filme estar adiante de seu tempo lembra certa transgressão

pessoal, que era o fato de eu ser politizado por um lado e muito ligado

ao cinem , por outro” (PRUDENZI E RESEGOTTI.2006:127)

Para nós é um filme que registrou o imaginário social de uma geração e o

imaginário individual de um diretor que, com direção ousada, representou a

história coetânea posicionando-se à frente de seu tempo.Neste enfoque, o filme,

representa a categoria da “consciência antecipadora”, de um vir a ser que, de

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forma muito similar, ocorreu em 1968. Um filme político que pensa o passado

histórico da ascensão do proletariado simbolizado na vida dividida, angustiada de

um jovem burguês, em torno do qual são organizados os diálogos político,

filosóficos, os sonhos de um mundo melhor, mas que se rende ao perceber que a

esperança de transformação pela qual a esquerda havia trabalhado desde a

guerra, estava sendo sufocada pelo aburguesamento da classe revoltosa.

Este filme remete também a certa transgressão pessoal do diretor, por

apresentar alguns temas muito precoces para a Itália de então. Numa

similaridade, nos acontecimentos de maio de 1968, também estudantes,

burgueses, intelectuais, artistas, proletários se uniram na luta por mais liberdade,

melhores condições de trabalho, mais justiça social. Entretanto percebendo que

se encontravam num tempo “antes da revolução”, conscientizando-se que, como

Puck, não haviam se preparado para uma nova ordem social, os operários e

burgueses recuaram e positivaram pelo voto o regime então vigente na França.

Se a realidade, no caso de maio de 68 “copiou a ficção” e tal qual o personagem

de Bertolucci esteve adiantado no tempo, ela não se resignou totalmente, antes

transformou-se em uma revolução de costumes e em uma nova ordem estética

conduzida pelos movimentos de vanguardas, e deixou um “ excedente utópico”

que, na concepção de Bloch , como todo sonho utópico, dará origem a um novo

sonho diurno onde, havendo possibilidade, o eu solitário, alienado, se v

transformará em “nós” ,sujeito coletivo de uma humanidade liberada e

emancipada.

Nos anos 60 a Itália vivia uma reestruturação ocasionada por um novo

capitalismo, que sob o conservadorismo da democracia cristã sepultou a

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esperança de transformação empunhada pelas esquerdas, que, divididas, como

representadas e criticadas no filme nas cenas do Parque Ducalle, acabam se

fragilizando. Parece-nos também que, mesmo responsabilizando o Partido pelo

aburguesamento do proletariado, Fabrizio recusa o que vê. Ousamos aqui dizer

que esse comportamento de Fabrizio é ideológico, uma representação do

pensamento de Mannheim sobre ideologia e utopia: embora ambos sejam

incongruentes com o estado de realidade em um dado momento só as utopias

podem romper e transformar a ordem social existente, orientando a conduta para

elementos que a situação ainda na contém.

Nos momentos iniciais do filme já encontramos os indícios do primeiro

nível de categoria com o estatuto do que ouvimos em off - “foi preciso que

acontecessem muitas coisas...foi preciso que eu sofresse ,que você sofresse muito Agora que estou

quieto, agarrado às minhas raízes, parece-me que eu não existo mais”- nos mostra um

jovem em conflito, em uma tensão que poderá levar a apropriação de um “ainda

não!

Essa voz, sobre a tela ainda preta, fala de um “eu” que busca uma

transformação, uma mudança. Esse “eu”, descobrimos a seguir, é um jovem

burguês, Fabrizio, que, na narrativa fílmica, rejeita a ordem social de sua classe

rejeitando também, como conseqüência a religião católica e a noiva Clélia e

busca uma nova realidade que poderá ser propiciada através da ideologia de

esquerda e do Partido Comunista Italiano.

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Ilustrando a categoria da transgressão, um close-up da tia e do sobrinho

dá a significação psicológica e dramática à relação incestuosa, que acontecia na

narrativa fílmica.

Na seqüência, em que após desentender-se com Gina, Fabrizio vai ao

cinema e no destaque aparece o cartaz do filme de Godard, Una donna é una donna,

ao sentar-se na mesa com o amigo, interpretado por Gianni Amico, este em um

discurso extremista, fala numa panorâmica - rotação da câmera em torno de um

eixo fixo - de 360 graus aludindo ao caráter político do cinema e relacionando estilo

com moral.É possível encontrar nessa fala uma metáfora à situação ideológica do

personagem Fabrizio que deseja como em uma panorâmica girar 360 graus na

procura de um mundo melhor. Mas como, na modernidade a utopia política não tem

mais lugar, ele retorna ao ponto de partida.

Esse filme em que se unem uma sólida narrativa, um marcante estilo e uma

perturbadora poética, a representação autobiográfica do diretor-através do

personagem Fabrizio é sublimada pela biografia de uma geração. Nesse período, o

diretor Bernardo Bertolucci, um intelectual engajado, também vivenciou o

afastamento do Partido Comunista Italiano, mas embora se distanciando de uma

utopia política não abdicou dos sonhos, que permaneceram como remanescentes,

excedentes utópicos, como iremos verificar na análise do filme Beleza Roubada.

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2.2 Beleza roubada

Titulo: Beleza Roubada Ano de Produção: 1996 Estúdio: Fox Sersrchsligth Pictures Diretor: BERNARDO BERTOLUCCI Roteiro:SUZAN MINOT E BERNARDO BERTOLUCCI Fotografia: DARIUS KHONDJI Montagem: JEREMY THOMAS Trilha Sonora: RICGARD HARTLEY Elenco Principal: Lucy: LIV TYLER Alex: JEREMY IRONS Diana: SINEAD CUSAK Sra. Guillaume: JEAN MARAIS Ian: DONAL MAcNN Richard: D.W. MOFFETT Roberto: NICOLO DONATI

Com história e direção de Bernardo Bertolucci, Beleza Roubada foi filmado

na região de Toscana, no ano de 1996, formando um diptico com Os Sonhadores,

pois ambos tratam de maio de 68, embora, no primeiro o tema principal seja

o rito de passagem da jovem Lucy Harmon, interpretada por Liv Tyler.Com

diálogos em inglês o filme apresenta uma rica trilha sonora, na qual se destacam

Billie Holliday, Nina Simone e Stevie Wonder.

Sinopse: Após o suicídio de sua mãe, Lucy, uma garota americana viaja

para a Itália onde passará algum tempo com amigos da família. Nessa viagem

ela espera rever um antigo namorado e encontrar seu pai biológico, que ela

ignora quem seja.

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Ao chegar a Itália a jovem americana recebe uma fita de câmera digital de um desconhecido que a filmou enquanto dormia , ouvindo música em fones de ouvido.Já ocorre o uso da função metalingüística referindo-se a uma forma moderna de se fazer cinema.

A jovem Lucy, após uma viagem aérea que tem como ponto de partida os

Estados Unidos, dorme em um trem .

Ao chegar em Siena é acordada por um estranho, do qual se ouve a voz e

se vê apenas o braço com uma pulseira exótica. Descendo do trem, percebe-se

filmada por esse cavalheiro, que lhe entrega a fita e revela que ela lhe é

familiar.Vestindo jeans, tênis, mochila nas costas, ouvindo música em fone de

ouvido, Lucy toma um táxi e chega até a vila em Chianti onde moram amigos de

sua mãe. Há quatro anos ela ali estivera em companhia da mãe, a poeta Sarah

Harmon, uma bela, elegante e contestadora mulher, formada nas lutas e anseios

de 1968.

Nas primeiras seqüências de cenas há uma referência explicita a novas

formas de filmar: a pequena câmera digital usada pelo passageiro do avião que

também se encontra no trem que chega a Siena, alude à importância do cinema

e da tecnologia que parece subordinar o mundo como força construtiva.A própria

viagem pode ter, em um sentido figurado, a conotação de mudança, da busca de

um “novum”.

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A jovem chega a um mundo moldado para ser o”lugar” das utopias geradas nos sonhos dos anos 60 e , sua presença, possibilita a descoberta de que , tal como a história, o “paradigma” utópico também se transforma.

Alojada em um quarto de hóspedes Lucy conhece os outros hóspedes: o

escritor Alex Parish - Jeremy Irons) que está morrendo de câncer, e que também

conhecera e fora amigo, ou até “algo mais”, de Sarah, sua mãe. Os ingleses

Diana, a dona da casa, e seu marido Ian , reconhecido artista plástico que são

os pais da menina Daisy e também hospedam um velho crítico de artes , Guy, já

perdendo a lucidez. Uma consultora sentimental, Noemy, a filha do primeiro

casamento de Diana, Miranda e o namorado também são hóspedes nessa villa e

aguardam a chegada de Cristopher -filho de Diana- que viaja com o amigo e

vizinho Niccolo Donati.

Embora filmado de forma a mostrar as paisagens da Itália, uma tendência

neo-realista, os artistas e personagens principais do filme não são italianos. A

jovem Lucy é americana, portanto, portadora de um imaginário sócio-cultural

diverso do europeu, que se traduz na sua forma de vestir, nas músicas que ouve,

no modo de dançar. Percebemos também nesse filme o contraponto entre dados

culturais que se representam nos hábitos, costumes, nas roupas. O casal de

proprietários da “villa Chianti” é inglês e o escritor, em estado terminal, também

não é italiano. Nesse núcleo apenas a consultora sentimental, Noemi, é italiana e

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se expressa nesse idioma, os outros personagens se comunicam na língua

inglesa. A villa vizinha oferece um contraste por pertencer a uma família italiana

que cultiva as tradições e preza o modo de vida desse povo.

Os limites históricos, culturais e lingüísticos estão presentes na narrativa; a

hospitalidade, na forma como é apresentada, manifesta à resistência desse grupo

em conservar um modo de vida decorrente dos valores da contracultura de 1968.

As aspirações humanas e a tentativa de concretizá-las foram estudadas por

Mannheim que apontou mudanças, ao longo do tempo, na forma de estruturação

do pensamento que se voltaria para lugares ou épocas desiderativamente

construídos, em função de uma insatisfação com a realidade. Seria, neste caso,

um tipo de utopia “conservadora”, como a de Chianti.

A liberdade comportamental e os valores da contracultura, propiciaram um modelo de “sociedade alternativa” onde os tabus, os interditos, que em um determinados momentos da história se tornaram necessários, foram abolidos.

A chegada da jovem que, aparentemente, veio para ter seu retrato

esculpido por Ian, logo após o suicídio da mãe, mexe com o imaginário e as

emoções de todos, principalmente com as do escritor e do casal proprietários da

villa. Durante uma conversa, ao saber que a jovem era virgem aos dezenove

anos, Alex lhe pergunta: Não é uma dessas jovens moralistas, é? Falo de sexo.

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E Lucy explica: Não é que eu nunca quis dormir com alguém. Houve o cara que eu

conheci no verão quando tinha quinze anos. Trocamos beijos e nos correspondemos. Ele disse

que tinha um animal à espreita no coração.

A situação de esperar por um amor determinado, antagônico aos valores

da geração de sua mãe que lutara pela liberação do uso do corpo, da mente e

dos desejos, demonstra uma práxis da liberdade individual, das relações afetivas,

da concepção do corpo como comunicação, do respeito à busca da liberdade.

Esses valores são apregoados como da pós-modernidade, segundo GROPPO

(2005:275) revelou da leitura do texto de Gilles Lipovetsky ” os movimentos de 68

representam o fim do modernismo, a última manifestação da ofensiva lançada

contra os valores puritanos e utilitaristas(...), mas eles são também, o começo de

uma cultura pós-moderna.”

Ian acredita que a vinda da jovem, incentivada pelo pai esconde algo, já

que este não o conhecia e não gostara do retrato que o artista pintara de Sarah.

De qualquer forma a presença de uma jovem virgem em casa altera a rotina: o

artista sente-se inspirado para trabalhar como há tempos não o fazia, Diana

divaga enquanto o marido trabalha sem esconder sua nostalgia e preocupação,

Miranda sente ciúmes, desejaria ter de volta a juventude e, Daisy demonstra

alegria e Alex sente-se renovado.

Se para a geração de 1968 a liberdade sexual era um símbolo de

transgressão, nos anos 90, a transgressão poderia ser a própria virgindade.

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A leitura dos poemas da mãe, uma intelectual engajada, assim como as conversas mantidas com o escritor Alex ,expressam o desencanto da geração de 68 que , no caso da poetisa, culminou no suicídio.

A morte novamente aparece em um filme de Bertolucci: o suicídio de

Sarah, mãe de Lucy, uma jovem intelectual da geração de 68, transgressora,

livre, bem sucedida, mas que não conseguiu resolver seus problemas

existenciais. Uma filha, Lucy, cujos valores se contrapõem aos valores da mãe,

alguém que não precisa transgredir ou transcender para viver plenamente; isso já

foi feito pela geração de seus pais. Sexo não é mais um problema de ordem

moral, virgindade não é mais um tabu, um interdito é agora a liberdade de uma

escolha.

Alex, que representava a geração de Maio de 68 e o espírito libertário do

movimento,está morrendo de câncer e sua morte poderá sedimentar a morte dos

sonhos dessa comunidade onde eram preservados os valores de maio de 1968 :-

valorização da arte, convivência entre pessoas de diferentes idades, consumo de

maconha e liberdade ou permissividade sexual- e que se constituía em um

mundo tão particular que poderia até uma “vitrine da utopia realizada” e que

poderia solicitar passaporte para os que nele quiserem entrar.

Diana procura nas relações, nas conexões entre o passado e o presente,

encontrar a verdadeira razão da atual vinda da jovem.

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Desconhece as razões que a trouxeram, não sabe que sua viagem é uma

busca do amor paterno e do amor romântico, sendo que o romantismo também

pode ser revolucionário.

A percepção do corpo, enquanto posa como modelo ou quando é sensualmente beijada pelo namorado, é um motivo estético e figurativo da descoberta da própria identidade.

Lucy, ao posar para Ian desnuda o seio e transparece o desejo sensual

de um homem mais velho por uma jovem. No seu imaginário pessoal Lucy traz a

esperança de reencontrar o garoto com o qual trocou seu primeiro beijo e cuja

paixão se manteve na troca de correspondência até pouco tempo.Lucy, em seu

sonho diurno, antevê o encontro do amor romântico, mas também procura a

figura paterna , pois na bagagem veio o diário da mãe no qual encontrou o

seguinte enigma:

Onde foram parar as sandálias verdes?

Não fui feita para ser mãe,

Tenho um coração ferido,

Então usei sandálias verdes para me afastar.

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Uma noite um homem surgiu das oliveiras

Bateu na víbora até sangrar

E me pôs no chão

Só houve uma noite

Me deu uma folha de oliveira

E rasgou a alça de meu vestido.

Eu guardei, guardei as sandálias verdes

Mas não sai daquelas montanhas.

Itália, onde você me levou

Naquela noite escura e parada?

Ele tinha uma faca na mão

E uma esposa em qualquer lugar.

Ele segurou meu rosto

Dilacerou meu quadril

E plantou lá algo novo,

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Estranho e próximo do amor.

Pensei que não tivesse mais nada,

Mas depois veio você

Me perdoe, eu não sabia seduzir quando tive, pobre Lucy, você.

Agosto de 1975.

A imaginação é uma forma de libertar-se do presente imediato levando a explorar possibilidades e Lucy a cada encontro com amigos de sua mãe, imagina haver encontrado o pai.

Lucy, em sua procura paterna simboliza o encontro de duas gerações: aquela

dos jovens que haviam vivido nos anos sessenta, que provocaram uma revolução

de costumes, liberalizaram o uso da maconha e da pílula anticoncepcional,

transgrediram nas palavras e despiram de qualquer poesia a perda da virgindade,

viveram sobre o arrebatamento de Eros e o esquecimento do Amor e da sua

geração que não necessitava da transgressão sexual, queria a liberdade de fazer de

sua primeira relação um momento inesquecível de amor.

Arte, amizade, sexo, drogas, “conquistas de maio de 68, de proibido proibir”

são preservados nessa “villa”, local onde é conservada a utopia daquela geração.

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Manter-se jovem, independente da idade biológica, cronológica, da categoria etária,

presentificar o passado vivendo em um grupo etário heterogêneo em que a

identificação não acontece por idade, mas pela afinidade, os valores oriundos de um

movimento que rompeu com os modelos autoritários de relações geracionais,

prevaleciam nesse mundo fechado cujas fronteiras se abriam apenas para

convidados.

Alex torna-se um apaixonado amigo de Lucy, cuja presença tem maior efeito

sobre sua saúde que os medicamentos prescritos: ela o faz lembrar-se de si

mesmo, de sua juventude. Lucy lhe pergunta se sua mãe tinha sandálias verdes e

ele lhe responde: Pode ser ela era uma mulher muito elegante. Escrevia os mais belos poemas

entre as reportagens de moda. Ela então lhe pergunta sobre Carlos Picci, uma pessoa

que sempre escrevia para sua mãe e fica sabendo que é um jornalista o qual logo

será convidado a visitá-los. Ao encontrar o jornalista, pela pulseira, se evidencia que

é o cinegrafista do trem. Ela conta-lhe, então, que sua mãe desenhava uma estrela

no calendário quando recebia sua carta. Pergunta-lhe se já matou uma cobra, uma

das pistas para descobrir quem era seu pai.

Lucy, usando o mesmo vestido que sua mãe usara anos atrás reconstitui um momento passado e aguça a sensualidade dos amigos da mãe.

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Lucy vai à festa anual da família Donati com um vestido que sua mãe

usara em 1975. Na festa tenta se aproximar de Niccolo, o jovem pelo qual se

julgava apaixonada. Encontra-o com outra moça e o descobre como um jovem

muito diferente daquele idealizado, um jovem que não acredita e nem menciona a

palavra amor. A jovem convida o jornalista Carlos Picci para dançar e lhe

pergunta onde estava em agosto de 1975 e ele responde não ser difícil se

lembrar, pois nessa época ele fazia a cobertura da queda de Saigon. Exclui-se a

possibilidade que ele seja seu pai. Lucy volta a casa em companhia de um jovem

inglês embriagado e simula o acontecimento de seu primeiro encontro de amor.

Ao lado, Alex, em estado terminal, é transferido para o hospital e antes

pergunta a Diana, que lhe faz afagos, se Lucy fez boa escolha acrescentando: A

incrível frivolidade dos moribundos, ainda pensando em um rabo de saia.

Representa-se aí, segundo o diretor, a morte da geração de 1968, cujos

sonhos eram representados pelo escritor.

“O maio francês profetizava o fim das ideologias, de esquerda ou

de direita; ao criticar todas as formas de autoritarismo e de

totalitarismo, indicava o que deveria lhes opor resistência: novas utopias,

dissonantes com o pensamento único e com o consenso global no que diz

respeito aos valores ligados ao mercado e ao consumo” (MATOS,

2006:138)

Morreriam, assim, com Alex, as novas utopias, os ideais de

cosmopolitismo e o internacionalismo, que, ao contrário do globalismo, que

proclamavam os laços de solidariedade, fraternidade e da amizade.A perversão

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desses ideais levou à condenação do jovem Cohn-Bendit, judeu alemão, na

realidade de 1968.

Lucy descobre que o escultor é seu pai e, para não romper a ordem da villa estabelecem um pacto de silêncio.

Por exclusões Lucy dirige-se a Ian na tentativa de descobrir se ele é o

seu pai. Alguns dados são levantados: Sarah estivera na vila recém comprada

em 1975, foi quando fora feito o seu retrato. Diana encontrava-se em Londres

cuidando do divórcio. O óbvio apareceu e os dois se abraçam. Você guarda segredo,

não? Pergunta Ian ambiguamente enquanto lhe mostra o retrato que está sendo

esculpido, salientando que nunca mostra a ninguém uma obra antes do término.

Aprendi com o mestre, responde Lucy correspondendo ao duplo sentido da pergunta.

Um abraço afetuoso sela, sem que nada fosse dito ou admitido, o encontro da

jovem com seu pai biológico; a identidade se manifesta silenciosamente e uma

busca se encerra.

” O silêncio na linguagem é a mulher, por isso o feminino está na

origem do sentido e do novo, o encontro entre o sagrado perdido e o presente

profano, pragmático e instrumental. (MATOS. 2006:187)”

A procura do pai acaba se confirmando como um dos motivos da vinda da

jovem americana à Itália, uma busca da identidade que, resolvida, a libera para o

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verdadeiro encontro do amor. Há aí uma utopia estética baseada no desejo de

identidade, na transposição de um conceito que se transfigura da carência para a

presença; a emoção e o desejo se afiguram como instrumentos do admirável, do

êxtase, representados nesse filme pelas obras de arte e na subjetividade dos

personagens de um mundo alternativo, rodeado por montanhas que também

configuram uma obra de arte natural.

Alex, que simbolizava os anos 60, morre.Nessas cenas há uma alegoria da morte dos sonhos e das utopias de uma geração

A morte de Alex e o desabafo de Diana dizendo-se cansada de cuidar de

tudo e de todos, desejando retornar a sua terra, representam, latente e

manifestamente, a morte dos sonhos da geração de 68 os quais, na realidade do

mundo contemporâneo, morreram com a suposta morte das ideologias na

modernidade.

O encontro com o verdadeiro autor das cartas que arrebatou o coração de Lucy acontece. E na união dos dois corpos, na liberação da experiência sexual metaforicamente, quebra-se a amarra da autoridade referendada na busca paterna..

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Lucy encontra-se casualmente com Oswaldo, irmão de Niccolo, que por

diversas vezes tentara aproximar - se sem êxito e acaba descobrindo que ele é o

autor da carta que tanto a fascinara. Sob uma grande e velha oliveira no cume de

uma montanha, uma fogueira é acesa e os dois passam a noite juntos. “A primeira

noite de uma mulher e de um homem” marca não só um rito de passagem, mas a

possibilidade de novos sonhos.

Do ponto de vista mitológico, nesse encontro, ocorreu o processo de

iniciação que legitima o acesso do jovem ao status de adulto. É necessário deixar

as aparências e buscar o significado da metáfora prefigurada. Há um rito, um

retorno às origens, uma práxis do mito que se realiza no imediato de uma

transcendência vivida. A árvore sob a qual se dá essa passagem simboliza aquele

ponto em que se dá a união entre repouso e movimento, o bem e mal, o desejo e o

medo. É a dualidade de Eros e do Amor. Eros, o arrebatamento, Amor um ideal

puramente pessoal que deriva do encontro dos olhares que, num movimento

interno, buscam informações e significados. Eros imperou na geração de Sarah e o

Amor é a busca da geração de Lucy. A fogueira remete aos povos primitivos que ao

seu redor se reuniam para narrar feitos e glórias e simboliza também o início da

mitologia. E á purificação do rito sexual. Remete a Prometeu, um contestador, que

rouba o fogo escondido por Zeus e o distribui entre os homens. Na obra do artista

há a mitologização do mundo. Através do rito o homem reafirma e se incorpora ao

mito, repetindo o que os deuses e heróis fizeram nas origens e oferece símbolos

que fazem progredir o espírito humano.

Beleza Roubada ,como já dissemos, pode ser classificado como um filme

pós-utópico e nesse sentido, as aplicações das categorias de análise escolhidas

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não são as mais pertinentes.O filme não se inicia com uma voz em off - correlato

da consciência antecipadora - mas com uma série rápida de close-up e

afastamento da câmera, intercaladas por flash que acompanham uma música

rápida , ao estilo de um vídeo-clip. São essas imagens que apresentam a jovem

Lucy e seu estilo de vida.

Como o filme é uma representação da morte dos sonhos da geração de

68 essa alteração apresentada já no início do filme faz sentido, pois o que se

busca é a proposta de um excedente utópico que trará a luz uma nova

consciência antecipadora.Podemos dizer que nesse filme estão visualmente

representadas as considerações de Herbert Marcuse no livro O fim das utopias –

os homens sem utopia decretam o fim da história - e de Mannheim ao alertar

que se no estágio da consciência moderna o homem “abandonasse as utopias”,

seria o fim da história.

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3.3. Os Sonhadores

Titulo: “Os Sonhadores” Ano de Produção: 2003 Estúdio: Fox Sersrchsligth Pictures Diretor: BERNARDO BERTOLUCCI Roteiro: GILBERT ADAIR Fotografia: FABIO CIANCHETTI Produtor: JEREMY THOMAS Elenco Principal: Matthew...................MICHAEL PITT Isabelle.....………….EVA GREEN Theo..... ..................LOUIS GARREL Mãe………………....ANNA CHANCELLOR Pai ……..…………...ROBBIN RENUCCI

Apresentado no Festival de Veneza, fora da competição do Leão de Ouro,

em 2003, o filme Os Sonhadores, é baseado no livro de Gilbert Adair, The Holy

Inocent .

Sinopse: Dois jovens franceses, Theo e Isabelle, conhecem o americano

Mattew, na sala de cinema. O amor ao cinema os aproxima e enquanto nas ruas

de Paris, em 1968, universitários e operários se rebelam contra a ordem social e

política estabelecida, os três amigos, em um apartamento, criam jogos sensuais e

eróticos baseados em antigos filmes.

O jovem Matthew caminha em direção a cinemateca francesa, local também freqüentado pelos irmãos Theo e Isabelle. Esse templo do cinema é “atacado” pelas autoridades públicas que desejam admitir seu criador e administrador Henri Langlois.

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Uma tomada de cena descendente sobre a Torre Eiffel pontualiza uma

unidade de espaço: Paris. Um rosto jovem, masculino, aparece em close. Em

seguida é focalizado em primeiro plano olhando para o lado: figurino e penteado

dos anos 60, uma revista na mão, o jovem loiro atravessa a ponte sobre o rio

Senna. A câmera se posiciona atrás. Ele caminha enquanto uma voz em off

enuncia: A primeira vez que eu vi um filme na Cinematheque Francais e pensei: só os

franceses para colocar um cinema dentro de um palácio.

A narração em primeira pessoa indica que o personagem é o narrador.

Durante a narração cenas em preto e branco se alternam, são as cenas de um

filme que o narrador esclarece ser Paixões que alucinam, de Sam Fuller36.

As imagens eram poderosas, era como estar sendo hipnotizados diz essa voz em off

enquanto aparecem imagens de cataratas. Em primeiro plano jovens

espectadores assistindo o filme.

A voz continua e pontua a unidade de tempo: Eu tinha 20 anos de idade era o

final da década de 60. A montagem conduz à sala do cinema e o espectador, com

base nas informações sonoras e visuais, percebe que é para a Cinametheque

que o jovem se dirigia. .

Sentando-se nas primeiras filas do cinema, atrás de um jovem casal que

fumava, continua narrando: Porque nos sentamos tão perto?Talvez porque quiséssemos

receber as imagens primeiras, novas, frescas, antes de percorrer as filas atrás de nós, espectador

36 Os filmes citados na narrativa do filme Os Sonhadores serão objetos de análise em Metalinguagem: os filmes no filme, no capítulo III.

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por espectador, até que gastas, do tamanho de um selo, elas voltassem à cabine do

projecionista.Talvez a tela fosse mais que a tela, ela representasse nós. Mas houve uma noite,

na Primavera de 68 em que o mundo finalmente explodiu através da tela.

Nestas cenas o personagem especula se as percepções do espectador

podem ser afetadas pela distância ou proximidade da tela. Também há uma cena

de transgressão de jovens fumando dentro de um palácio, a Cinemathéque, onde

os cinéfilos se reuniam como se fosse sagrado. Esse local era administrado por

Henri Langlois, um intelectual liberal.

As imagens em preto e branco referem-se as cenas documentais dos jovens Kalfon e Léaud lendo um manifesto.Nas cenas coloridas a representação desse episódio na diegese do fim.Nas duas ocasiões passado/presente, a contestação acontecia em frente ao “Museu do Cinema”

Em outra seqüência aparecem imagens em preto e branco, oriundas de

um documentário, na qual intelectuais e jovens protestam contra o fechamento da

cinémathèque. Um discurso, cujo texto foi escrito por Godard em 1968, é lido em

francês para uma aglomeração, alternando-se na leitura Jean Pierre Kalfon e

Jean Pierre Léaud , este famoso como personificação da juventude nos filmes de

Truffaut e Godard. Paralelamente cenas semelhantes são exibidas em cores

demonstrando a filmagem recente. Um movimento em dois tempos, o tempo da

realidade e o tempo da ficção. Para reforçar essa ubiqüidade temporal Bertolucci

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chama os mesmos atores que fizeram essa leitura para representá-la agora no

filme.

É uma maneira de juntar passado/presente na contraposição de imagens

de ontem e hoje, a imagem dos atores jovens contrastando imagens atuais é uma

forma de mostrar visualmente a passagem do tempo, filmar hoje sonhando com

os anos 60. Imagem, realismo, representação: a justaposição de épocas

diferentes, com as mesmas situações e mesmos personagens, é uma estratégia

utilizada no cinema contemporâneo para romper a noção de épocas paralelas e

construir sincronicidade; imagens do ontem e do hoje numa presentificação,

unidas em um aqui-agora.

Na multidão a câmera focaliza um casal de jovens, mais tarde revelados

como os irmãos Theo e Isabelle, seguido de um close do “Museo do Cinema”.O

discurso denuncia a expulsão de Langlois da Cinematheque pelo ministro da

cultura Malraux. Após, há uma tomada registrada em 1968 de Langlois saindo da

Cinematheque.

Um grupo de policiais observa a manifestação preste a agir contra os que

defendem o cinema – “bastião da liberdade” -, segundo o panfleto. Há uma

inserção de imagens documentais de 68 que se destacam em preto e branco e

nas quais reconhecemos os então jovens artistas e cinéfilos: Jean Paul

Belmondo, Michel Piccoli, Alain Resnais e Barbet Schivoeder, contrapondo-se a

uma faixa na qual se lê “. A liberdade não é dada, é conquistada.”

Novamente a voz em off do narrador personagem dizendo: Henri Langlois,

que fundou a cinémathèque, tinha por opção mostrar os filmes e não deixá-los apodrecendo em

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um porão subterrâneo.Mostrava todo e qualquer cine e os cineastas vinham aqui aprender o

seu ofício.Foi aqui que o cinema moderno nasceu, uma Revolução Cultural particular de todos

os cinéfilos da França.

A Revolução Estética do Cinema originou-se com os cineastas que

freqüentavam a cinémathèque: Godard, Truffaut, Bazin, Rivette, Chabrol, Resnais

os quais são mencionados no filme como participantes das manifestações de 68

e como homenageados pelo desempenho na história do cinema. Essa

manifestação é considerada pelo cineasta Truffaut como o marco inicial da

Primavera de 68.

Ao apanhar uma página do discurso que Léaud atira ao ar, o jovem loiro, ergue os olhos e vê a bela moça (que aparece em close na tela), com vestido de veludo azul, boina vermelha, cigarro ao canto da boca, acorrentada a uma grade da cinémathèque em uma pose de “diva” do cinema.

Ela o chama para retirar o cigarro colado ao seu lábio e ao ser

questionada sobre o porquê de estar acorrentada a jovem ergue os braços a

altura do rosto demonstrando que apenas representava seu aprisionamento. Um

cartaz ao fundo anuncia o filme Amere Victoire.

A condição de acorrentada, uma metáfora da forma como os jovens

viviam, é uma representação que leva o outro, o receptor, ao “movimento de

libertação” da personagem.

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Os jovens se identificam: Mathew, um americano que está em Paris para

estudar, Isabelle e seu irmão gêmeo, Théo, franceses por nascimento, filhos de

uma inglesa o que possibilita aos jovens conversarem nos dois idiomas: inglês e

francês. Isabelle reconhece que Matthew é uma pessoa limpa, diferente de outro

manifestante, Jacques um francês, que cheira tão mal a ponto de impregnar

quem conversa com ele.

Nestas cenas apresentam-se os traços mais distintos do imaginário

cultural do jovem americano. A sua percepção das diferenças culturais quando

fala que somente na França o cinema é instalado em um palácio, a identificação

com os outros jovens cinéfilos.

Théo, cercado por amigos, se aproxima do americano e o assunto é

cinema. São mencionados os diretores Truffaut, Godard, Chabrol, Rivette,

Resnais, Jean Rouch, Rhomer, Signoret, Jean Maras e até Marcel Carnè que ali

estão protestando.

Theo se abaixa defronte a Matthew e ao saber que ele era americano fala:

Eu te vi por aí, veio a todos os filmes de Nicholas Ray.37

Matthew diz: Eu gosto muito dos filmes dele.

Théo: Qual? Amarga Esperança?

Matthew: Não, gosto mais de Johnny Guitar e Juventude Transviada.

Théo diz: Sabe o que Godard diz? Nicholas Ray é o cinema. 37 O primeiro filme de Nicholas Ray foi Amarga Esperança.

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O juízo estético, cuja causa reside no sujeito, no sentimento do receptor

justifica que haja divergências mesmo em referência as obras de um mesmo

diretor.38

Em outra cena a multidão aparece premida pelos cassetetes dos policiais.

É noite, os três jovens correm ao lado dos outros cinéfilos e estudantes

distanciando-se dos policiais que portavam escudos e cassetetes. Os

manifestantes correm por uma rua calçada de paralelepípedos e o fazem em

direção à câmera, como se pudessem se ocultar do lado de cá. ”Fascistas,

desgraçados, imbecis”, gritam os três jovens. Matthew diz: Foi assim que conheci

Isabelle e Théo.

Os três personagens se afastam juntos e nesse contexto de revolta

causada pelo fechamento da Cinamateca tem inicio uma amizade. O fundo

musical romântico prenuncia uma forte amizade.

Matthew, ainda em discurso indireto, declara que seu coração pulsa

rapidamente, não sabe se pela movimentação ou por já estar “apaixonado” pelos

novos amigos. Os três são filmados de costas caminhando às margens do Sena

falando sobre política, cinema, sobre a falta de um grupo de rock francês

,enquanto o som de harpas soa em fundo musical, e a voz em off reitera: eu não

queria que a noite terminasse.

Os irmãos dividem seu lanche com o novo amigo que conta que e de San

Diego Isabelle diz que é de Paris - Champs Eliseés -1959 e acrescenta : Minha

38 A discussão sobre o juízo estético acontecerá de forma mais incisiva no terceiro capítulo.

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primeira palavra foi “New York, Herald Tribune” e, enquanto fala são projetadas

cenas do filme Acossado (1959), de Godard. A chuva cai súbita e forte e os três

se separam.

Matthew chega ao interior do apartamento que ocupa em um hotel de

baixa categoria, molhado e cantando. Usa a pia do lavatório como se fosse vaso

sanitário, numa transgressão ao uso habitual. Senta-se e começa a escrever uma

carta à mãe contando sobre os novos amigos.

O encontro entre sujeitos de cultura e experiência distintas remete as

questões de estranhamento e multicultaralismo. Matthew tem em comum com os

irmãos franceses o amor ao cinema, mas a conduta, o imaginário pessoal e

social, as experiências de vida são diferentes.No decorrer da trama aparecem

situações em que os jovens reafirmam essas diferenças e outras em que o

americano revela estar se habituando ao modo de vida dos novos amigos.

Matthew é convidado a jantar na casa dos gêmeos e nesse encontro fica patente a situação de conflito entre Théo e o pai.

Na manhã seguinte o telefone de Matthew toca; é Theo: Não seja

desconfiado, sou eu, tive que ligar cedo porque tenho aula as nove e o convida para um

jantar, após um drinque no Respite, Bulevar Saint German.

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Na noite do jantar Matthew entra no elevador e é surpreendido pelos dois

irmãos que sobem as escadas correndo e falando “somos muito contagiosos”. No

apartamento surpreendem a mãe que prepara o jantar apenas para ela e para o

marido. Théo esquecera-se de avisá-la que jantariam em casa e teriam um

convidado. Os irmãos simulam uma briga acusando-se mutuamente pelo

esquecimento.

Isabelle procura pelo pai, que está na biblioteca tão absorto que não

percebe a aproximação da filha. O pai pergunta sobre a Cinémathèque e a filha

diz que está fechada até segunda ordem.

Á mesa, durante o jantar, o pai, identificado agora como um grande poeta,

fala da inspiração como um bebê que chega a qualquer hora, sem consideração

pelo poeta, mas... Quando vem, quando se digna a vir, daí você sabe. Enquanto isso,

Matthew se abstrai variando a colocação de um isqueiro sobre os quadrados da

toalha.Inquirido sobre o porque do distanciamento da conversa ele se desculpa

dizendo que se distraiu com o isqueiro de Isabelle e ao coloca-lo de volta à mesa

o fez sobre o diagonal de um quadrado da tolha da mesa e ele coube. Colocou-o

em outras posições e coube em todas.

“Quanto mais você olha para tudo, de repente, você percebe que

existe um tipo de harmonia cósmica entre as formas e os tamanhos,

estava imaginando o porquê, não sei por que, só sei que é assim.”

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O poeta responde: “Quando olhamos em volta o que vemos? Caos completo caos,

porém visto de cima, como se fosse por Deus, de repente tudo se encaixa. Meus filhos acham

que as demonstrações, as reuniões, as passeatas, as manifestações tem não apenas a capacidade

de provocar a realidade, mas também de transformá-la”.

Theo responde: ”Por que você fala isso? Langlois demitido, imigrantes deportados,

estudantes espancados e nós não fazemos nada ?”

Pai: O que estou dizendo é que um pouco de lucidez não faz mal a ninguém.

Theo: França? Itália?Alemanha? América? Todos estão errados, menos você.

Pai: Antes de mudar o mundo você tem que perceber que também faz parte dele. Não

pode ficar do lado de fora olhando pra dentro.

Isabelle é a voz que cala e, o seu silêncio, conduz aos limites da

linguagem, ele é a verdadeira fonte do sentido.

Theo: É você que fica sempre do lado de fora, você se recusou a assinar uma petição

contra a guerra do Vietnam.

Pai: Poetas não assinam petições, assinam poemas.

Théo declama uma definição retórica contida no poema mais conhecido de

seu pai:

Uma petição é um poema

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E um poema é uma petição.

Pai: Obrigado, mas não preciso que você relembre meu próprio trabalho.

Théo: Isso mesmo foram as estrofes mais famosas que você já escreveu. E agora olhe

para você. - olhando em direção ao amigo resmunga, numa transgressão retórica:-

Espero nunca ser como ele.

Mãe: George vamos nos despedir, temos um longo dia pela frente amanhã.

Pai: Vamos dormir. Pede desculpas e atendendo ao pedido da mulher

anuncia que irão viajar e que os cheques ficarão sobre a lareira. Théo não se

despede do pai.

Matthew é convidado pela mãe a dormir na casa e aceita.

Esse diálogo conduz a reflexões filosóficas e ideológicas; a fala do pai/

poeta – talvez uma referência ao pai do próprio diretor - sobre a impossibilidade

de transformar a realidade com manifestações de cunho ideológico e se conecta

ao pensamento de Mannheim quando demonstra que as ideologias mesmo que

incongruentes como umas dadas realidades não conseguem transforma-la,

diferenciando-se nesse aspecto das utopias.

Quando o pai chama a atenção do filho pela falta de lucidez, conforme

diálogo transcrito, na sua fala está implícito o sentido pejorativo de utopia como

sonho impossível, falta de lucidez.

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A demissão de Langlois, diretor da cinemateca, ocorrida em 1968 e

representada no filme significava a perda de um espaço cultural que, sob sua

administração, era um espaço de reflexão, diálogo e liberdade e esse fato

provocou protestos dos intelectuais e estudantes, um sentimento de revolta que

favorece uma mentalidade utópica.

No apartamento dos gêmeos, enquanto Isabelle apaga as luzes e acende

velas, ouve-se o som guitarra elétrica de Jimy Hendrix. Ela pergunta a Matthew

porque ele nunca lhes falou sobre suas indagações filosóficas e ele responde

“Eu não sabia que estava sendo filosófico. Vocês têm muita sorte, queria que meus pais fossem

tão legais”.

Isabelle: Os pais dos outros são sempre mais legais que os nossos, mas os nossos avós

são sempre mais bacanas que os outros.

Ao se despedir para dormir, Isabelle beija o irmão na boca, o que causa

estranhamento em Matthew que ainda diz: Todo mundo tem um pai.

Theo, numa evidente transgressão secular, responde: Não é porque Deus

não existe que meu pai pode tomar o lugar dele.

Matthew surpreende-se com o estranho relacionamento dos irmãos e, em breve, acaba envolvido nesse relacionamento.

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Ao ir para o quarto, no amplo apartamento, Matthew passa por corredores

repletos de livros, indícios da intelectualidade dos pais. No quarto de hóspedes,

onde dormirá, em um quadro há a releitura de uma obra sobre a queda de

Bastilha: a moça que empunha a bandeira é a atriz norte - americana Marilyn

Monroe.

Um elemento nesse cartaz, o cinema, simbolizado por uma das mais

populares atrizes empunhando a bandeira emblemática da liberdade, igualdade e

fraternidade. Isto pode ser visto com um fenômeno da consciência antecipadora,

se considerarmos a forma como esse meio de comunicação social pode propagar

esses ideais.

À noite, indo ao banheiro, Matthew espiona no quarto de Theo e vê os

dois irmãos, nus, dormindo abraçados. A transgressão sexual e a imagem do

incesto são chocantes para ele.

Na manhã seguinte Matthew acorda com Isabele retirando, com os

dedos, “o sono dos olhos”, tal como faz diariamente com Théo. Ao retirar a

secreção dos olhos com os dedos umedecidos de saliva e depois passando a

língua, como uma gata, provoca ereção em Matthew. Em seguida distancia-se e

ao aproximar-se da porta, inicia um jogo de representação.

O que você está fazendo? pergunta Matthew. Ela responde com sotaque

alemão: Estou memorizando este quarto. No meu futuro, na minha lembrança, viverei muito

neste quarto. Rainha Cristina, de Rouben Mamoulian, diz Matthew, quando Greta

Garbo dá adeus ao quarto em que ela passou a noite com Gilbert (John Hilbert). Cenas

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em preto e branco do filme original são exibidas e Greta Garbo, graças a magia

do cinema, a sua ubiqüidade temporal, se torna parte do elenco de uma película

filmada após sua morte.Esse tipo ce jogo era bastante freqüente entre os

freqüentadores da cinemateca na década de 60.

Isabelle confirma o acerto e diz: Temos uma ala privativa, o banheiro fica ao

final do corredor. Se você não estiver lá em um minuto a gente vem te buscar.

Nem mesmo no banheiro os irmãos mantêm privacidade, comportado -se de forma infantil.

Matthew vestido com terno bate à porta do banheiro onde os irmãos,

quase despidos, fazem a higiene matinal. Isabelle, sensualmente, contorna com

os dedos os lábios de Matthew dizendo: São carnudos, sensuais, vermelhos.

O espelho reflete a imagem de Théo entrando nu na banheira. Uma

pequena marca vermelha no mesmo local do braço dos dois irmãos confirma o

que Théo havia contado para Mathew que não acreditara: ele e Isabelle eram

gêmeos siameses, ou seja, nós dois somos um.

Os dois irmãos convidam Matthew a morar com eles durante a ausência

dos pais que deverá se estender por um mês. Enquanto ele arruma seus

pertences para a mudança Théo vai até a cinémathèque e encontra uma amiga

que lhe oferece maconha. A mudança é feita com a mobilete de Théo. Matthew

fala sobre seu rompimento com o próprio pai.

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No apartamento dos franceses Théo lê em um livro que a diferença entre

Keaton e Chaplin é a diferença entre: prosa/poesia, aristocrata/vagabundo,

excentricidade /misticismo, homem como máquina/ homem como anjo.

Matthew argumenta: Para mim não há comparação.

Théo Porque, Chaplin é incomparável?

Mathew: Não, porque Keaton é incomparável, 39.

Théo: Com toda certeza você não está falando sério, responde Théo.

Matthew: Claro que estou Keaton é mais engraçado que Chaplin,

Théo: Você acha que o Keaton é mais engraçado que o Chaplin?

Matthew: Sim, Keaton é o mais engraçado, até quando não faz nada. E parece

Godard. Keaton é um cineasta de verdade.Chaplin só liga para sua atuação, para seu ego.

Theo: Olha aqui, ninguém é mais engraçado que Chaplin,. Quando Chaplin queria

fazer uma bela tomada ele o fazia melhor que ninguém.Lembra da última tomada de Luzes

da Cidade?Ele olha para a florista e ela olha para ele (são projetadas as cenas do filme)

e não se esqueça que ela era cega e estava vendo ele pela primeira vez. E é como se somente

através dos olhos dela nós também o víssemos pela primeira vez,. Charles Chaplin, Carlitos, o

homem mais famoso do mundo e é como se nunca o tivéssemos visto antes.

39 Buster Keaton, ator e diretor norte-americano, que em 1924 dirigiu e atuou em Sherlock Jr. com intenção de mostrar o cinema como possibilidade de realização de sonhos. Nesse filme utilizou a função metalingüística para possibilitar a entrada do espectador nesse universo de fantasia.

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Essa fala refere-se a identificação despertada na recepção do filme pela

projeção de uma cena em que o espectador vê com os olhos da protagonista

ao “consentir”, isto é, sentir junto. A escolha desses artistas/ diretores norte-

americanos denota a intencionalidade do diretor em reconhecer a importância do

cinema americano na historicidade do cinema e valorizar as técnicas usadas por

esses diretores que não raras vezes foram desprezados pelos críticos sob a

alegação de que faziam um cinema comercial.

Isabelle, que no mesmo quarto lê um livro, fala: Vocês americanos não

entendem nada da própria cultura. Não entendem a ironia de Jerry Lewis.

Correr no museu Louvre como os protagonistas do filme Bande à Part o fizeram foi a atitude mais transgressora dos três amigos em seus jogos de representação.

Isabelle coloca uma música de Jane Joplins e Théo a segura. Ela joga o

livro que estava lendo, pára o disco e grita para que descubram o nome de um

filme em que o personagem sapateia até o outro enlouquecer. Matthew descobre:

O Picolino com Ginger Roges, e cenas originais desse filme são projetadas

paralelamente no filme Os Sonhadores..

Nesses jogos de representação, nos quais os personagens expõem seu

repertório imagético, o diretor encontrou uma forma lúdica para instigar a

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curiosidade do espectador e prestar homenagem aos diretores e atores de

diferentes tempos e nacionalidades, apresentando filmes conhecidos apenas por

cinéfilos, mas que constituem importantes elos na corrente da história do cinema.

Olhando para Matthew os dois irmãos dizem: Bande à Part. Eles tinham

um sonho de encontrar alguém que os ajudasse a realizar um projeto: bater o

recorde dos três jovens que no filme Bande à Part , de Godard, correram pelo

Museu do Louvre, em 9:45h. São projetadas cenas em preto e branco do filme

original enquanto os irmãos explicam que há tempos sonham em encontrar uma

pessoa para participar desse projeto.

Correr no Louvre é uma ação que além de transgressora envolve uma

situação de conflito entre ficção e realidade. No filme, na narrativa ficcional a

ação transgressora deu certa, na realidade poderá ser uma situação de risco,

pois, se falhar, culminará na deportação do estrangeiro. Para Théo e Isabelle,

que fundem fantasia e realidade, a vida real repete a ficção. Isabelle adverte a

Matthew que muita coisa dependerá de sua resposta.

Convencido de que não haveria falha Mathew aceita participar do jogo.

Théo pega o cronômetro do pai - a autoridade, o dono do tempo - e seguem até o

Louvre onde revivem todas as cenas do filme. Batem o recorde em 17 segundos.

Enquanto correm pelo Louvre, paralelamente são apresentadas as cenas do filme

original em um recurso de sobreposição só possível na estética revolucionária do

cinema, quando “personagens de Godard” se transformam nos “personagens de

Bertolucci”.

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Saem juntos e os irmãos gritam: ”Nós os aceitamos, um de nós”. Aparecem

agora as cenas do filme Freaks.

Os três amigos tomam chuva no caminho do apartamento e ao chegar o

telefone toca. Isabelle, molhada de chuva fala: Estou muito molhada para atender.

Théo, intuindo que seriam os pais, diz que todos os pais deveriam ser presos,

julgados, mandados para autocrítica e reeducação.Quando se decide a atender,

o telefone para de tocar. Os meninos vão ao quarto de Théo e, enquanto este

busca uma coca-cola, Matthew encontra uma foto de Isabelle e a esconde junto

ao seu corpo, sob o calção.

Isabelle aparece vestida com um casaco de peles, segurando um

espanador, dançando e cantando bom bom, bom bom bom ; pergunta: Em que

filme as coristas dançam assim? Théo não acerta e ela diz que é Vênus Loira, com

Marlene Dietriech, Como “prenda” a ser paga por haver errado o filme ela

determina que ele se masturbe na frente de um pôster de Dietriech, observado

por ela e Matthew que discorda da ação dizendo que nunca se masturbou na

frente das irmãs nem foi obrigado a fazer o que não queria.

Novamente em off Matthew diz que sabia que as coisas não poderiam continuar

como antes, mas, pelo menos por enquanto parecia haver uma trégua entre os irmãos.

No jogo cinestésico as apostas continuam altas. Uma noite, durante um

jogo de gamão regado a vinho, Théo simula uma síncope e cai imitando uma

cruz, a qual marcaria o local de um crime. Pergunta qual o filme e este não foi

identificado pelos parceiros. Scarface (1932) anuncia e também propõe uma

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prenda para Matthew e Isabelle: devem fazer amor na sua frente, no quarto vago

da casa, em frente ao quadro de Delacroix.

Matthew reprova e diz que vai ao banheiro. Théo o encontra na cozinha,

tentando alcançar a porta da saída. Isabelle reclama pela falta de gentileza e

pergunta se fazer amor com ela é tão repugnante.

Despe-se ao som de La Mer e começa a despir Matthew. Encontra sua

foto grudada na região pubiana do rapaz que, constrangido, desmaia. Ao acordar

encontra Isabele, nua, deitada, esperando por ele.

Um mundo de total liberdade e licenciosidade acontece dentro do apartamento enquanto nas ruas eclodem as revoltas de estudantes e operários.

Sozinhos no apartamento os três se permitem todo tipo de jogo sensual.

Rompem com o princípio de realidade estabelecido, voltam a um estado de grupo

primevo, sem interditos, sem tabus, em total liberdade. Os jogos estabelecidos

entre os irmãos ganham agora um novo participante, Matthew.

No decorrer na narrativa, nas representações dos filmes o envolvimento

entre os três jovens se solidifica. Isabelle inicia-se na vida sexual - um rito de

passagem da adolescência para a vida adulta - relacionando-se com Matthew na

cozinha da casa, na frente do irmão que indiferentemente frita ovos.

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Ao ouvir barulho nas ruas Théo vai até a janela e, ao retornar, posiciona-

se ao lado dos amantes acariciando o rosto da irmã. Desce as mãos por entre as

pernas da irmã e ao voltar há vestígios de sangue. O sangue que suja também as

mãos de Matthew pode testemunhar a virgindade da jovem, de uma jovem que

numa constante “mimese” do cinema representava um comportamento liberal e

transgressor que subjetivamente não acontecia, pois a relação incestuosa com o

irmão não se concretizava.

No dia seguinte, sem a presença do irmão, Isabelle convida Matthew para

transar no escritório do pai. Compara Matthew com Rodolfo Valentino e sussurra:

Meu primeiro amor, meu grande amor.

Há uma tomada de nu frontal de Isabelle deitada, com a câmera em

movimento ascendente dos pés para a cabeça e Matthew diz: Pensei que você tivesse

muitos amantes. Você era tão sofisticada como uma estrela de cinema.

Eu era, responde Isabelle, só que estava representando. Théo e eu fomos amor a

primeira vista.

A sofisticação, a beleza, o status de astros e estrelas relacionados a

atrizes e atores do cinema reforçam o processo de projeção/ identificação do

espectador que no seu imaginário individual sonha com uma vida de glamour.

Matthew - O Théo já esteve com você?

Isabelle - Ele está sempre comigo.

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Matthew - O que faria se seus pais descobrissem?

Isabelle - Eu me mataria.

A dramaticidade de Isabelle encarna o espírito das tragédias

representadas nos filmes que ela assistia.Isabelle desejava viver a vida como se

fosse um filme.

Em uma janela Théo observa a manifestação na rua.

Matthew vai a cozinha e procura algo para comer.Ao voltar, com um pote

de mel , encontra os dois irmãos abraçados; então fala:

Eu estou agradecido. Lembra o que me contou no café?Vocês têm razão, vocês são

como duas metades de uma pessoa e eu sou parte de vocês.

Théo fala: Vamos esclarecer, a coisa não era para acontecer entre nós três. A Isabelle

e eu somos gêmeos siameses, eu não estava brincando.

A fome não saciada ameaça o mundo criado no apartamento.

Os três chegam a cozinha totalmente tomada por amontoados de louças

sujas e restos de comida. Os últimos ingredientes foram queimados quando

Isabelle os preparava. A fome fez com que a porta da casa se abrisse e Théo,

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vestido apenas com um casaco verde, sai à procura de alimento. Na rua o

acúmulo do lixo invadia o espaço público, conseqüência da greve que assolava a

França. Dentre os restos de lixo amontoados, Théo recolhe algumas coisas, mas

somente uma banana é aproveitável e no apartamento ela foi dividida entre os

três por Matthew.

Sem dinheiro, sem telefone, sem comida as portas da casa precisaram

ser abertas. Esse mundo fechado, essa utopia erótica não mais se auto -

sustentava, a carência de outros elementos tornava-se forte presença. Assim, as

necessidades básicas não satisfeitas ,como a falta de comida e dinheiro,

despertam os jovens do sonho cinematográfico para as premências da realidade.

Théo, como se acordado de um sonho, dirige-se à universidade. Há

grande movimentação e ele é cobrado pela ausência nas manifestações e não

encontra argumentos para se justificar. O seu discurso revolucionário não se

transformou em ação, foi sufocado, não pelas bombas e cassetetes, mas por um

mundo fechado, licencioso, sem qualquer interdito.

A voz do personagem narrador explica que praticamente não saíam do

apartamento enquanto uma cena de beijo homo-erótico acontecia na banheira ao

som da música de Clapton e envolvidos pela fumaça da maconha.

Uma nova discussão envolvendo o juízo estético acontece no banheiro

quando Theo defende Clapton e Matthew Hendrix 40. Théo censura Matthew por

não estar no Vietnam e este se declaram pacifista. Diz que não se pode falar ao

40 Eric Clapton, guitarrista de grande sucesso na década de 60, participou dos grupos de rock

Yardbirds e Cream. Nos muros de Londres, nos anos sessenta, apareceu a pichação Clapton é Deus, frase que também é proferida por Theo no filme Os Sonhadores.

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governo que é contra a violência, contra a guerra, mas a situação de estudante

universitário o desobriga dessa participação.

A guerra do Vietnam, uma das causas da manifestação, é lembrada como

negação da expressão da vontade dos jovens que, ceifados de sua subjetividade,

são obrigados a participar de algo que repudiam. Não é como a manifestação

que ocorre nas ruas Paris, cuja iniciativa, participação e adesão parte dos

próprios jovens.

Li nos Cahier du Cinema, diz Matthew, que os cineastas se comportam como

bisbilhoteiros. Os diretores são comparados ao voyeur e a câmera ao buraco da fechadura do

quarto dos pais. Se os espia sentem - se culpados, mas não conseguem desviar o olhar.Os

filmes, sob esse ângulo, são como crimes e os cineastas criminosos. Théo diz que não tem

chance de ser cineasta porque seus pais dormem com a porta aberta.

Em uma auto-referência ao fazer do cinema, ao modo como os cineastas

operam a câmera, destaca-se a posição dos críticos dos Cahiers que, de certa

forma, impulsionaram e formaram o cinema moderno com as suas teorias.

Nos espelhos do banheiro as imagens fragmentadas são refletidas quando

Isabelle também entra na banheira. Os três adormecem ao som de Hei Joe,

cantada por THE DOORS. Théo acorda primeiro e percebe a água avermelhada

pelo sangue menstrual de Isabelle.

Em outra cena Isabelle, duvidando da existência do amor, pede uma prova

a Matthew. Tal como um tabuleiro de xadrez, as imagens do chão do banheiro

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são refletidas no espelho e o jogo se inicia. Ao perceber que a prova seria

consentir em sua depilação pubiana Matthew dá um xeque-mate:

Vocês são dois loucos! Isso é que chamam de prova de amor?

Um jogo, isso é o que vocês fazem entre vocês? Querem raspar meus

pêlos púbicos, tornar-me um Théo criança para brincar com meu

pipi?Querem que eu seja um pré-adolescente para vocês? Eu queria que

vocês saíssem de si mesmos e vissem. Eu amo vocês. Pensem, pensem:

dormem na mesma cama e fazem esses joguinhos. Eu olho para vocês e

penso que nunca vão crescer. Não enquanto continuarem dependendo

um do outro.

O comportamento dos irmãos, segundo Matthew, os impede de crescer

enquanto indivíduos. O fato de se fecharem em um mundo infantilizado, de mútua

dependência, restrito, onde a relação incestuosa demonstra o desejo de

conservar-se seguro compromete a formação individual que ocorre na relação

com o outro.

A dialética que, segundo Bloch, existe entre uma subjetividade criadora e

um elemento exterior, na qual o interior torna-se consciente através do exterior,

não acontece em sua plenitude num processo relacional de identificação restrita

aos personagens do mundo ficcional do cinema.

Olhando para Isabelle, estando os dois nus, Matthew pergunta: Você já

saiu com algum garoto?Conheceu alguém diferente de seu irmão?

Não, diz Isabelle, não é costume na França o baile de formatura.

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Mathew e Isabelle marcam encontro em um restaurante, é uma tentativa de separar os irmãos siameses.

Em um restaurante Matthew aguarda sentado por Isabelle que entra,

deslumbrante, em um vestido vermelho ao som da música de Françoise Hardy41.

Os dois tomam coca-cola em um mesmo copo e a câmera fecha, uma referência

ao “final feliz do cinema”.

Saindo do bar vão a um cinema e, inusitadamente, sentam-se nas últimas

fileiras pois conforme diz Matthew “ na frente sentam-se apenas os desacompanhados, em

um encontro se sentarmos nos fundos, podemos namorar.” O filme se anuncia: Senhoras e

senhores a película que irão assistir é sobre a história da música. Faço o papel de Tom Miller,

um empresário teatral que havia... Bem, vocês vão verão. Essa película foi filmada com a

grandeza do cinemascope. Alternam -se cenas do filme e do jovem casal.O grupo The

Platters, cantando “You´ll never never know “ embala os beijos trocados no

escurinho do cinema.

Novas reflexões sobre recepção são displicentemente inseridas lembrando

que o escuro do cinema, numa similaridade com o sonho, permite não só ver o

romance na tela, mas viver um romance na platéia.

41 Tous les garçons et les filles de mon age,41 grande sucesso na década de 60 , terá tradução da letra no anexo II.

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Na saída do cinema param sob o toldo de uma loja na qual uma TV

transmite noticias das manifestações que estavam acontecendo: comércio

fechado, a fábrica fechada da Renault em primeiro plano e os policiais contendo

os manifestantes com jatos de água. Retorna a voz subjetiva do personagem

narrador: “Quando olhei a tela lembrei-me da batalha na cinémathèque. Só que desta vez os

manifestantes não eram os amantes do cinema. Nem tampouco estudantes. Foi difícil

compreender o que estava acontecendo. Lojas fecharam as portas, fábricas entraram em greve e

começou a se espalhar por toda Paris”. Isabelle informa: Théo e eu somos puristas, nunca

assistimos TV.

Essa tomada desperta Matthew do seu mundo de sonho para a realidade,

para o aqui/ agora ao qual se encontrava alheio.Nas ruas não mais os amantes

do cinema e nem só os estudantes se manifestavam. Os operários, enquanto

classe social, se uniram aos estudantes e apresentavam novas reivindicações

sociais, políticas e econômicas. Buscavam, pela revolução a utopia de um mundo

mais justo e mais livre. E Mattew se percebe alienado; alheio a realidade na qual

estava inserido.

Quando Isabelle se declara purista, pontua-se a o menosprezo de muitos

cinéfilos pela televisão.

Entre o amontoado de lixo os dois jovens, caminham para casa e lá

chegando encontram Théo com uma garota.Isabelle se descontrola, Matthew

propõe irem até seu quarto e ela diz: Ninguém vai fazer amor na minha cama.

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Matthew, ainda assim se dirige ao quarto da namorada e se surpreende:

parece com o quarto de suas irmãs, não lembra em nada a ousadia e a

inconformidade de Isabelle. Quadros, ursinhos de pelúcia, flores,

surpreendentemente, um quarto como de qualquer adolescente.Descobre um

lado desconhecido de Isabelle que aparece enquadrada na porta, sob um fundo

escuro, com luvas longas pretas, o que lhe dá a aparência da Vênus de Milo. Ela

pergunta: Que escultura?

Ele responde: sempre quis fazer amor com a Vênus de Milo. Novamente a

música “La mer” embala o encontro amoroso de Matthew e Isabelle. Ao ouvir

ruídos, transtornada, ela bate com os punhos cerrados na porta do quarto do

irmão e manda Matthew se retirar. Extenuada deita-se na cama e dorme.

Em outra seqüência, no quarto, Theo lê: “A revolução não é um jantar de

gala, não pode ser criada como um livro, um desenho, uma tapeçaria. Não pode ser desvelada

com tal elegância, tranqüilidade e delicadeza ou doçura, amabilidade ou cortesia, moderação ou

generosidade. A revolução é um motim, um ato violento pelo qual uma classe derruba outra.”

Essa é uma posição ideológica: a revolução, uma das formas de se

alcançar a utopia política que é levada por uma classe que derruba a outra, é

descrita no Livro Vermelho de Mao.

Théo dirige-se a adega do pai escolhe os melhores vinhos enquanto

Matthew deitado no chão faz flexões e Isabelle aparece deitada, fumando.

Reúnem-se, tomam vinho e Theo instiga: Porque não pensou no Mao – ministro chinês-

como um grande diretor? Marchando com seus livros nas mãos, não armas. Por que não vê

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Mao fazendo um filme, como um grande diretor, com um elenco de milhões de soldados da

guarda vermelha,marchando juntos em direção ao futuro com o livro vermelho nas mãos?

Livros, não armas.

Matthew responde: Não é verdade, não são livros, é livro. Um só livro. As guardas

vermelhas nesse grande filme épico são figurantes. Para mim existe uma contradição evidente,

porque se você realmente acreditasse estaria lá fora, nas ruas. Parece que algo importante está

acontecendo, mas você não está lá. Está aqui dentro, bebendo vinhos caros, falando sobre

filmes.

Théo aperta o pescoço de Matthew que, mesmo sufocado, continua

falando: Você prefere quando a palavra “junto” significa não um milhão, mas apenas dois...

ou três.

A crítica ao Partido Chinês e a ideologia de seu líder, admirado por muitos

cineastas, a acusação de que na China se lê apenas um livro, e que este líder, se

fosse visto como diretor teria apenas figurantes em seus filmes revela, que para o

jovem americano, os chineses vivem em um regime político onde não há

liberdade, nem respeito a subjetividade. Fala também do posicionamento de

quem prega, mas não vive as transgressões que podem levar a um novo modo

de vida.

Isabelle interrompe a discussão e os convida para ir à sala. Lá foi armada

uma tenda, com detalhes orientais, uma micro-estrutura social. Bebem mais

vinho e Isabelle diz: Fazíamos isso quando éramos pequenos.

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Luzes de vela iluminam o local. A câmera se fecha em um corte abrupto,

simulando um final.

Entrando silenciosa e inesperadamente os pais se deparam com a cena inaudita: a sujeira do apartamento e os três dormindo nus e abraçados.

Ao retornar das férias os pais são surpreendidos pelo cenário da sala: os

três jovens, abraçados e nus, dormem sob uma tenda como faziam os irmãos em

sua infância.A formação liberal, que os levara a falar com os filhos de romances

escritos em tons fortes, no limite da obscenidade, não permite um

comportamento conformista, uma ação repressora. Por coerência com sua

conduta liberal a mãe propõe e o casal opta pela omissão; o pai deixa os

cheques sobre a mesa e silenciosamente, da mesma forma que entraram, se

retiram. Ao acordar e ver os cheques Isabelle se desestrutura.Retira a mangueira

de gás do fogão e a coloca na tenda. A câmera subjetiva projeta o que se passa

em sua imaginação: aparecem as cenas do filme Mouchette, onde a

personagem desce rolando em uma colina até se afogar no lago.

Uma pedrada quebra o vidro da janela e os rapazes despertam. Essa

pedra quebra também os sonhos dos três adolescentes e os acorda para a

realidade, é como se a rua tivesse invadido o quarto e os três Despertassem

abruptamente. Questionam sobre o cheiro de gás e Isabelle diz que é o gás

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lacrimogêneo das bombas que eclodem nas ruas onde jovens estudantes e

operários lutavam pela utopia de um mundo mais livre e socialmente mais justo,

necessitando para isso conforme romper com laços da ordem existente,

conforme explica Mannheim.

Cada época permite surgir (em grupos sociais diversamente

localizados) as idéias e valores em que se acham contidas, de forma

condensada, em tendências não-realizadas e que representam as

necessidades de tal época. A ordem existente dá surgimento a utopias que,

por sua vez, rompem com os laços de ordem existente, deixando-a livre

para evoluir em direção à ordem de existência seguinte (MANNHEIM, 1986:

222-223).

A violência se faz presente nas rebeliões da Primavera de 68 ferindo os ideais do jovem pacifista Matthew.

Os três saem e se incorporam ao grupo de manifestantes que têm como

armas paralelepípedos e coquetel molotove. Théo deseja lançar um coquetel e é

censurado por Matthew: Isso é fascismos dentro de uma garrafa, é violência.

Dizendo isso vira a costa ao amigo e, tal como Fabrizio em Antes da

Revolução, caminha em sentido contrário aos manifestantes. Porém, esse jovem

leva consigo um excedente de imaginação utópica, o sonho de uma revolução

sem violência.

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Ao som de uma música cantada por Edith Piaf aparece Isabelle em

conflito, dividida. Por fim, vira-se e segue o irmão que, a exemplo de outros

manifestantes, cobre o rosto com um lenço e atira a bomba que explode

afastando os policiais. De mãos dadas Isabelle e Théo, dois personagens na

multidão, correm em direção a câmera, emblema do cinema e do imaginário, que

dá vida e lugar as utopias.

Ao longo das narrativas fílmicas, mesmo que ancorada na realidade de um

fato como acontece com Os Sonhadores, cria-se outro mundo, feito de imagens e

palavras capazes de construir diferentes percepções, um mundo onírico que tem

alcance muito mais amplo que a reprodução precisa da realidade.

Isso ocorreu com o filme Os Sonhadores, baseado no livro de Gilbert Adair,

The Holy Inocent, que também se responsabilizou pelo roteiro, e foi

apresentado,como já foi dito, no Festival de Veneza, fora da competição do Leão

de Ouro, em 2003. Em sua trama ficcional a forma prevaleceu sobre a

mensagem, o que prejudicou a expectativa daqueles que aguardavam um filme

documentário, uma reprodução e não uma “construção da realidade” onde o

passado é interpretado e o futuro imaginado e, talvez por isso, as polêmicas

suscitadas garantiram as manchetes dos jornais.

Em conseqüência a Fox Searchhlight Pictures, distribuidora do filme,

propôs cortes nas cenas de nudez frontal e relações sexuais entre os jovens

estudantes, mas acabou cedendo e mantendo o filme na íntegra, mas censurado,

nos Estados Unidos para 17 anos e no Brasil para 18 anos.

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O crítico de cinema Luis Carlos Merten, no Blog do Estadão, por ocasião

do lançamento do filme, escreveu:

....” De Bertolucci o filme de que mais gosto não é O

Conformista nem O Último Tango, mas Beleza Roubada e Os

Sonhadores. A volta à utopia. Beleza Roubada é o Nós Que

Amávamos a Revolução do Bertolucci. A morte do Jeremy Irons, a

destruição do sonho de Maio de 68, me dói mais do que... Deixa pra lá.

Vou terminar”.

Também o jornalista Tony Pugliese, em 30/04/2004, escreve:

...” contando ainda com uma boa trilha sonora e com a

competente direção de arte por parte da equipe de Bernardo Bertolucci,

Os Sonhadores é um colírio para os olhos, um filme que pega um

conflitante cenário político da década de sessenta e ensaia uma ardente

história de amor vivida por esses três amigos. O filme acaba por

provocar o público ao invés de passar uma sensação de tranqüilidade

após tanta beleza exibida. O resultado é uma obra envolvente e

completamente surpreendente” .

O fato de o filme contemplar muito mais as cenas de transgressão sexual

dentro do apartamento do que as cenas referentes à revolução, assim como

contraposição de imagens documentais como as de Kalfon e Léaud lendo em

1968 um panfleto de autoria de Godard e a representação que esses atores

fazem de si mesmo na trama ficcional, são imagens que denotam a passagem do

tempo e demonstram que o significado realista foi submetido ao processo

criativo, comprometendo a evocação do tema por parte do público receptor.

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Nesse sentido Vittorio Taviani argumenta que:

“ há muitas vezes confusão entre trama e o sentido de um

filme.Não é na trama e em sua ambientação – uma série de

acontecimentos que movem uma série de personagens - que encontramos a

verdade do filme: a verdade está no sentido, nos sentimentos, nas reações

que aqueles acontecimentos provocam no espectador; enfim, está

justamente naquela lasca de sentido que um autor procura extrair da

vida que experimenta na convivência com os demais” (PRUDENZI e

RESEGOTTI , 2006:112).

Isso nos leva a relacionar o filme com o próprio acontecimento, Primavera

de 68, que até hoje continua sendo motivo de especulações e interpretações

diferentes e conflitantes.

“A montagem tem um significado realista quando os fragmentos

isolados produzem, em justaposição, o quadro geral, a síntese do tema.

Isto é, a imagem que incorpora o tema. Passando desta definição para o

processo criativo, veremos que este ocorre do seguinte modo. Diante da

visão interna, diante da percepção do autor, paira uma determinada

imagem, que personifica emocionalmente o tema do autor. A tarefa com

a qual ele se defronta é transformar essa imagem em algumas

representações parciais básicas que, em sua combinação e justaposição do

espectador, leitor ou ouvinte forma a mesma imagem geral inicial que

originalmente pairou diante do artista criador” (EISENSTEIN, 1990: 26 -

27).

As imagens, no presente caso, parecem não ter conseguido despertar no

espectador, a imagem geral inicial. O diretor, segundo declarou, temia a morte do

espírito de Maio de 68.

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”É o momento de lembrar quão maravilhosa foi aquela

experiência que vivemos há menos de 40 anos. Em termos de história da

humanidade, o prazo é mínimo, mas o espírito de maio começava a se

desvanecer e isso, para mim, era uma traição a tudo aquilo pelo que

lutamos, ou no que acreditávamos.Não tento recuperar o tempo perdido,

mas mostrar aos jovens atuais, que parecem nada saber sobre Maio de

68, o que foi aquela época e porque se tornou mítica.....Esse filme já

nasceu na minha cabeça como Os Sonhadores.Era o que

éramos.Queria justamente reviver aquele sonho” ”(2004:D3).

Por se prender mais a descoberta da sexualidade dos três jovens que

acontecia dentro do apartamento, com menor enfoque para a revolução externa,

acreditamos que o sentido de Maio de 68, nesse filme, ficou restrito e tornou

esmaecida a representação do movimento contestatório. Para finalizarmos

aplicaremos a este filme as categorias de análises já enunciadas.

Pensamento existencial Produção cinematográfica Estilística narrativa

Consciência antecipadora

Voz em off

Realmente acontecido

Futuro das Teorias do Cinema

Abertura do Filme

Fechamento da

Cinemateca e Primavera de 68

Transgressão

Close up

Socialmente pensado

Rompimento com a ordem

comportamental

Três jovens no interior da casa

Revoltas estudantis

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Estética da Utopia

Metalinguagem

Poeticamente imaginado

Representações da historia do

cinema

Os filmes representados através de

jogos

O próprio filme

Os Sonhadores

A primeira categoria, consciência antecipadora, situa-se no paradigma do

pensamento existencial moderno como uma possibilidade psíquica capaz de dar

conta das determinantes do tempo e do espaço da realidade, atrelados a uma

discussão política sobre o futuro das teorias do cinema que se debatem sobre a

decupagem clássica e as vanguardas artísticas prevalecentes naquele momento

histórico singular.

Entendida como a seqüência dos fatos, a realidade na produção

cinematográfica do filme Os Sonhadores, abre com uma voz em off, do jovem

personagem Matthew, para informar sobre a nova ordem estabelecida - o

fechamento da cinemateca e o efervescer do movimento da Primavera de 68- e

se projeta na estilística narrativa pela linguagem do narrador onisciente e nas

qualidades do sentir “do realmente acontecido”, como uma espécie de

documentário perpassado nas imagens poeticamente ordenadas para atingir

esse fim.

A segunda categoria, da transgressão, acontece no rompimento com a

ordem comportamental dos protagonistas impulsionados pelos ideais que

sustentam seus pensamentos.Os sonhadores são, de acordo com o filme, três

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jovens que se encontram na cinemateca e participam de um movimento em

defesa da liberdade de expressão que ela representa.

O recurso do close-up permite que o espectador se localize em espaços

socialmente pensado seja na esfera pública ou privada, focalizando a ação

destes três protagonistas.Assim, por exemplo, no espaço público a aproximação

da câmera em torno de Isabelle, supostamente acorrentada às grades da

cinemateca, marca o momento em que o jovem americano, atraído pela

interpretação glamourosa da “diva”, aproxima-se instigado pelo mistério na

tentativa de decifra-lo, isto representa o desejo de liberdade dos jovens ante a

repressão ideológica do Estado.

Já no espaço privado esse mesmo recurso pode ser visto com freqüência

no enquadramento de cada jovem, mas destacamos o momento em que Theo

aparece, de costa para um espelho, recusando-se a atender ao chamado

telefônico de seus pais em um ato de rebeldia em relação à “velha” geração.

Estilisticamente, a narrativa, desenha a alegoria do jovem que sente,

pensa e vive de acordo com seus ideais e suas contradições. Um jovem

americano que defende o cinema europeu, um jovem europeu que defende o

cinema americano e uma mulher que representa o puramente sensual através da

arte e sua imagem em movimento.

A terceira categoria, estética da utopia, aparece claramente representada

nas cenas de rua quando a policia armada com cassetetes e bidules investe

contra os estudantes revoltados, a principio com o fechamento da cinemateca,

depois com o movimento estudantil que se estendeu a outros segmentos da

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sociedade. Não dispondo os manifestantes de armas, fazem barricadas de carros

incendiados e atiram coquetel molotove contra a policia ao som da música de

Charles Aznavour, cantada por Edith Piaf, Rien de Rien. Nessas cenas, para

aparentar um grande número de participantes o diretor utiliza-se de recursos

digitais para duplicar inúmeras vezes as imagens.

Tal como já havia acontecido em Antes da Revolução, quando Matthew

sem conseguir convencer Theo a não praticar atos de violência, vira-se e

caminha em sentido contrário à manifestação também aparece a estética da

utopia.

A metalinguagem desabrocha nos jogos propostos pelo casal de irmãos na

representação dos filmes preferidos de cada um.Por exemplo: A Vênus Loira no

qual Isabelle encarna a interpretação de uma corista, nem mais nem menos que

Marlene Dietrich, Théo dramaticamente representando a encruzilhada de Scarface,

deixando a adivinhação para Matthew que, junto com os irmãos, revive cenas do

filme Bande a Part, no museu de Louvre.

A estilística narrativa, o poeticamente imaginado por Bernardo Bertolucci

em Os Sonhadores é a vivência de um cineasta contemporâneo aos movimentos de

vanguarda artísticas no cinema, principalmente em A Primavera de 68 que os

recria neste filme, procurando resgatar os motivos ideológicos que pautam a ação

deliberada de jovens sonhadores.

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CAPÍTULO III

Vigência das utopias no cinema de Bernardo Bertolucci

"A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se

afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos.

Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia?

Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar."

Eduardo Galeano

O tema utopia e seus correlatos aparece, como já vimos, em muitos filmes

de Bernardo Bertolucci. Dentre eles, elegemos para análise os três filmes que o

próprio diretor aponta como os mais representativos da utopia de Maio de 68.

No início de nosso trabalho, alertamos que a Primavera de 68, embora

tenha sido um dos movimentos juvenis mais estudados, analisados,

interpretados, ainda permanece polêmico, e de certa forma misterioso, não

havendo mesmo consenso nem mesmo para categorizá-lo. Político, social,

mítico, utópico? Não vamos nos esquecer que nessa primavera foi reafirmado,

por comportamentos, o que preconizava os slogans: que “todo e qualquer gesto é

político”, que ”é sempre preciso ser realista e exigir o impossível”, que “embaixo

do asfalto se encontra a praia”. Portanto, muito além da conjugação de questões

políticas, ideológicas, institucionais, os jovens - ao exigirem o impossível -,

queriam mudar o mundo, o que permite caracterizá-los como sonhadores, como

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utópicos. E são esses jovens representados que possibilitam “A vigência da

estética da utopia no cinema de Bertolucci”, título deste terceiro e último capítulo.

No desenrolar de “Primavera de 68: a imaginação no poder”, faremos um

relato sobre esse movimento trazendo a visão, não só de historiadores, mas

também de cineastas, com destaque para François Truffaut. Buscamos, ao

identificar os jovens como protagonistas da história do século XX, contextualizar

esses movimentos e reconhecer que a modernidade, nesse momento, é

percebida não apenas na vida econômica, na produção industrial, na política, isto

é, na esfera pública, mas se volta para a esfera das relações privadas, íntimas,

sexuais, etárias e daí se depreende um novo princípio de realidade que, ao

contrário do industrial positivista, não impõe formas determinadas de pensar e

agir, mas pratica a espontaneidade criadora.

A seguir, em “A estética da utopia e o cinema italiano de Bertolucci”,

especularemos sobre a influência das vanguardas, principalmente o neo-realismo

italiano e a Novelle Vague francesa na estética cinematográfica do diretor.

O cinema, ao permitir que a forma prevaleça sobre a mensagem, torna

viável a possibilidade do sonhar, torna “real” a matéria do sonho e coloca o

espectador em contato com uma outra realidade possível. Em outras palavras, há

similaridade entre a psique ao projetar, liberar nos sonhos as emoções, tensões,

sentimentos que fermentam na escuridão do inconsciente, com a projeção

cinematográfica ao projetar, por meio das imagens em movimento, uma

representação onírica do imaginário, sobre a tela branca na sala também escura.

Essa função projetiva se completa no processo da identificação: o espectador,

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identificando-se com as personagens que, no entanto, lhe são estranhas, se

sente vivenciando experiências que, contudo, não pratica, e dessa forma libera,

por empatia, tensões e emoções e assim, tal como no sonho, são simbolicamente

liberados os desejos reprimidos42.

MORIN (1977:80) diz que as projeções/identificações se relacionam a toda

esfera do interesse humano - prática, mágico-religiosa, estética - mas essa

última, a estética, se destaca principalmente no imaginário. Considera imaginária

a estrutura antagonista e complementar daquilo que chamamos de real e sem a

qual não haveria realidade humana. O imaginário é também um sistema projetivo

que se constituiu em um universo espectral e que permite a projeção e

identificação mágica, religiosa ou estética. Todo esse processo de

identificação/projeção é responsável pela magia do cinema e por sua semelhança

com a faculdade humana do sonhar.

”Se o cinema é parente consangüíneo do sonho e o

sonho é a malha em que o inconsciente se tece, então, cinema e

inconsciente se irmanam” (SANTAELLA, 2004:16).

Ao assistirmos a um filme nos identificamos com as personagens e as

técnicas de filmagem - planos, corte, posicionamento da câmera, fusão,

iluminação, trilha sonora, a sala escura - colaboram para estimular o processo de

42 Projeção é o nome de uma tendência para supor que os outros experimentam as mesmas idéias e sentimentos que alimentamos. Identificação é um mecanismo psicológico pelo qual o indivíduo assume, permanentemente ou não: as características de personalidade investidas na imagem de outra pessoa. CABRAL e NICK. IN: Dicionário Técnico de Psicologia. São Paulo: Cultrix, 1989.

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identificação/projeção entre espectador e diegese do filme. A imaginação

individual cria mundos impossíveis e fantásticos, mundos oníricos que também

são recriados no cinema. No imaginário social as sociedades esboçam suas

identidades e objetivos, plasmam visões de mundo, modelam condutas que se

expressam por utopias ou ideologias. Sabendo que imaginar, assim como sonhar

é inerente à condição humana e se produz na relação entre o sujeito e o meio

sócio-cultural, buscamos aporte nos estudos de Rechia (2005) para fundamentar

essa premissa do parentesco enunciado do sonho e cinema.

“Partindo da conceituação normativa de que imaginar é a

possibilidade de evocar ou produzir imagens independentemente da

presença do objeto ou do ser a que se refere, por meio das lembranças e

das intuições, submetidas às coordenadas de espaço-tempo, imaginar

está diretamente associado à função criadora, e está intrinsecamente

ligado aos processos culturais e a um tempo histórico determinado.

Assinalamos que o diretor do filme, ao contar a história, tenta

transmitir, por meio de imagens cinematográficas, o imaginário, tenta

atingir as aspirações, os medos, as esperanças e a alteridade do

personagem. ....O imaginário social se expressa por ideologias e utopias,

e também por símbolos, alegorias, rituais e mitos. Tais elementos

plasmam visões de mundo e modelam condutas e estilos de vida, em

movimentos contínuos e descontínuos de preservação da ordem vigente

ou introdução de novas configurações dos códigos sociais. A imaginação

social, além de fator regulador e estabilizador, também é a faculdade

que permite que os modos de sociedade existentes não sejam

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considerados definitivos, os únicos possíveis, e que possam ser concebidos

outros modelos 43.”

A imaginação que Rechia (2005) chama de social, tendo Bloch (2005) por

alicerce, chamamos de utópica; acreditamos que é essa imaginação que permite

conceber outros modelos de realidade, os quais muitas vezes foram representados

ou até prefigurados nas imagens do cinema e que, nos filmes de Bertolucci,

aparecem na função metalingüística. Uma pesquisa sobre os filmes que, em

metalinguagem, são representados nos jogos criados pelos protagonistas de Os

Sonhadores, dos quais conseguimos identificar doze, deu forma ao último item, “A

metalinguagem: os filmes no filme”, em que o cinema, por si, fala de si ou, como

propõe Luiz Nazário, ”a metalinguagem coloca em cena o mistério profundo do

cinema na sua essência ôntica” (IN: Andrade, 1999).

43 RECHIA, Tânia Maria. O imaginário da violência em minha vida em cor de rosa. Tese de doutorado em Educação. UNICAMP. Campinas, 2005.

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1.1. Primavera de 68: a imaginação no poder.

‘Somente a juventude une os diversos movimentos que abalaram

as convicções e as certezas na década de 60’.

L.A.Groppo

A filósofa Olgária Matos (2006), uma estudiosa do

movimento de 1968, argumenta no ensaio Tardes de Maio

que “o maio de 1968 advertia o mundo unidimensional na

uniformidade dos sonhos e dos desejos - ao que respondia com o lema ‘tome

seus desejos por realidade e creia na realidade de seus desejos’”. Acreditar na

realidade dos desejos e nos sonhos, levar a imaginação ao poder, fazer amor e

não a guerra, foram algumas das bandeiras levantadas pelos jovens que estavam

insatisfeitos com a ordem social e política vigente no final da década de 60.

Mas o que foi na realidade o mítico “maio de 68”, tema central do filme Os

Sonhadores, filmado em 2003 por Bernardo Bertolucci? Denominamos mítico por

que, acontecido há quase 40 anos, é ainda lembrado, discutido, estudado,

rememorado como uma utopia e paradigma para outros movimentos sociais ou

políticos de contestações comportamentais. Quem foram esses sonhadores? O

que desejavam? O que repudiavam?

Ano matricial presente em todos os movimentos que recusam a

submissão ao status quo, ainda hoje se hesita na denominação de 1968: levante,

revolta, revolução? Talvez possamos dizer que foi uma improvisação, uma

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simulação da revolução, imitação sincera de revolução, conforme MATOS

(2006:135). Ainda não há uma explicação consensual, sociológica ou política

sobre esse fato que não se desenvolveu na tomada do poder, no número de

mortos, na lógica do vencedor e do vencido. “Acontecimento”, segundo o filósofo

Alain Fienkielkraut, participante das manifestações, é o termo mais adequado

para esse episódio, que acelerou um processo ligado ao “individualismo”.

Aconteceu no tempo das cerejeiras em flor, o tempo do amar e do

renascer contido em cada primavera. Primavera, estação das flores, da origem

dos novos frutos, ciclo de tempo que o senso comum associa à alegria, à

juventude, à marcação cronológica anual. E foi em Paris, capital não só do

Capital, mas dos grandes tratados de paz e dos êxtases revolucionários, que o

mundo assistiu àquela que talvez possa ser considerada a última utopia do

século XX, uma utopia não caracterizada pela busca de um lugar ideal no campo

político ou religioso, mas uma utopia gerada pela consciência antecipatória, pelos

sonhos diurnos de uma vida com mais liberdade.

Lembremos que a década de sessenta foi marcada pela “guerra fria”, pelos

desdobramentos da divisão do mundo entre capitalismo e comunismo, cujo

símbolo maior foi o muro de Berlim. Na América do Sul, inclusive no Brasil,

vingavam regimes políticos totalitários e, contra alguns, se insurgiam os

guerrilheiros de Che Guevara, líder que tombou morto em 1967 e que ganhou a

aura de “mito”.

Na América do Norte, sob o governo de Lyndon Johnson, ocorreu o

bombardeio ao Vietnã do Norte e o desembarque de tropas americanas no Vietnã

do Sul. Para os jovens essa era a invasão de um grande país capitalista

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querendo impor-se a um pequeno país asiático. A não conformação com esses

fatos levou a juventude americana à transgressão e pequenos grupos se

organizaram em movimentos que passaram a ser conhecidos como

contracultura. No centro das contraculturas ocorriam diferentes experiências

comportamentais, surgiam novas correntes artísticas, culturais, filosóficas e

místicas; estados alterados de consciência obtidos por métodos de meditação de

origem oriental ou pelo uso drogas, principalmente a maconha e as alucinógenas,

como o LSD, na busca da chamada “experiência psicodélica”, isto é, exploração

da consciência e busca de novos compartimentos de espírito. Essa busca de

estados alterados de consciência, constituída por alguns grupos apenas pelo

consumo de drogas, resultou em um mercado dominado apenas por interesses

comerciais, em uma aproximação com a criminalidade e na dependência de

substâncias químicas. Dentre esses grupos de contracultura destacou-se o

movimento “hippie”, que tinha por ídolo literário Herman Hesse, por mestre

pensante o estudioso da sexualidade Wilhelm Reich (1897-1956) - que associava

a repressão sexual como forma de o sistema absorver as energias vitais do

indivíduo, e argumentava que a quebra dessa repressão romperia as amarras da

autoridade, solapando a legitimidade do poder e da tradição -, tendo por lema a

frase “faça amor, não faça guerra”.

“Apesar de seu caráter muito amplo e heterogêneo, as

contraculturas foram a grande fonte de influências para os jovens dos

anos 60, ao lado do terceiro-mundismos e das novas esquerdas. Quase

todos os movimentos tinham em comum a aspiração à liberdade de

comportamentos” (GROPPO, 2005:243).

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Em muitas partes do mundo os movimentos juvenis conquistaram espaço.

Na China, a Grande Revolução Cultural Proletária de Mao Tse Tung, que

pregava a revolução nas relações sociais, levou a juventude a ocupar as praças e

ruas, manifestando-se também contra os chineses simpatizantes do capitalismo.

Esse movimento tinha traços em comum com as revoltas ocidentais: idade e

condição dos protagonistas, insatisfação com o cotidiano escolar, renovação das

letras e das artes, intervenção nas esferas dos costumes e da cultura, e a

aplicação da idéia maoísta de que os estudantes deveriam agitar as classes

trabalhadoras.

Em Praga, a Primavera que trouxe o sonho da transição entre um regime

comunista ortodoxo para uma condição de social democracia ocidentalizada foi

sepultada em vinte de agosto de 1968 pelas tropas do Pacto de Varsóvia, sob

liderança dos tanques russos.

Na Itália, no primeiro semestre de 68, ocorreram quase 60 manifestações

e dois grandes eventos no Vaticano. No final de 67, os alunos ocuparam a

Universidade de Turim com propostas radicais de autocontrole e profundas

críticas à Instituição. Em dezembro, houve a ocupação da Universidade de

Gênova e, no mês seguinte, ocorreu a ocupação da Universidade de Veneza. Em

seguida, o centro de protestos migrou para Roma, o que ocasionou o fechamento

da universidade e centenas de presos, entre fevereiro e maio. Nesse mês, a

rebelião espalhou-se para Florença, Milão, Nápoles, Pádua, Palermo, Bolonha,

Bari, enfim, a crise estudantil afetou todo país, o que colaborou para a queda do

primeiro ministro Aldo Moro. Em novembro ocorreram diversas greves de

trabalhadores em apoio aos estudantes. Podemos perceber que esses

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movimentos de contestação, ainda que pudessem parecer isolados, atingiram

quase que o mundo todo.

Em 1969, espelhando-se na Primavera de 68 da França, os ativistas

italianos colocaram em greve dois milhões de operários que tentaram, sem êxito,

desestabilizar os sindicatos. A decepção ocorrida com o novo governo que se

deixou corromper e destruiu os sonhos e esperanças de uma nação que trazia as

cicatrizes da guerra e de um regime totalitário - o fascismo -, levou os estudantes

a romperem com o Partido Comunista Italiano sob acusação de que se conciliava

com a burguesia e, posteriormente, parte dessa nova esquerda aderiu à violência

revolucionária, integrando as Brigate Rosse - Brigadas Vermelhas.

Esses fatos remetem à trama do filme Antes da Revolução, e o jovem

Fabrizio, que busca no engajamento político o caminho para autenticidade e que

denuncia o aburguesamento dos proletários, em uma crítica ao Partido

Comunista que proporcionou essa postura. A temática de Antes da Revolução é

antecipadora de um futuro que irá “acontecer” quatro anos depois.

“Apesar da distância entre Antes da Revolução e os filmes

de narrativa clássica que se organizam em função do desenvolvimento do

enredo, há nele um fio narrativo, acompanhando o que acontece com

Fabrizio, desde sua proposição a romper com sua classe até sua

capitulação.” (SARAIVA, 2002:47)

Voltemos a Paris, na primavera de 68. A capital do país, presidida tornou-

se símbolo da possibilidade histórica de transpor a fronteira entre o possível e o

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impossível, entre a realidade e a utopia, sendo esta considerada como

representação/expressão do almejar uma nova ordem social emergida dos fatos

que se seguem.

Em 10 de maio de 68, na cidade de Paris as luzes de néon foram

sufocadas pelas chamas das labaredas. Seriam apenas carros queimando

naquelas barricadas ou os sonhos latentes dos jovens que lutavam por expressar

sua realidade mais contingente também estavam sendo queimados? Vamos

verificar, sob o ponto de vista de um cineasta, o que então ocorria44.

“Só à luz de outros eventos percebi que o caso da Cinémathèque,

ocorrido em 19 de março de 68, foi uma espécie de prólogo aos

acontecimentos de Maio. Os intelectuais contestando a decisão

governamental de demitir Henri Langlois, fundador e alma da

Cinémathèque, desceram à rua e foram agredidos com cassetetes. Foi feito

com essa instituição o mesmo que com o resto da França: subvencionaram

e depois tentaram minar o trabalho que vinha sendo realizado, declara

Francois Truffaut” (GILLIAN, 1990:207).

Também em março, na periferia de Paris, mais precisamente na

Universidade de Nanterre - uma instituição com 12 mil alunos formada para

receber aqueles que não conseguiram ingressar nas escolas mais tradicionais –

iniciou-se uma rebelião quando a reitoria baixou norma disciplinar proibindo aos

rapazes visitas às moças em seus dormitórios. Já havia um precedente para o

44 Sonho latente, formado pelos desejos reprimidos que só indiretamente se expressam no conteúdo manifesto convertidos em símbolos (Dicionário Técnico de Psicologia. Cultrix.). No contexto acima consideramos como latente aquele que está no inconsciente e ainda não se manifestou.

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que os estudantes consideravam arbitrariedades da instituição: o veto das

autoridades à vinda de Wilhelm Reich, que havia sido convidado pelos

estudantes para proferir palestra.

Um jovem de descendência alemã e cabelo ruivo, bolsista daquele

governo, “esquerdista independente”, Daniel Cohn-Bendit, conhecido como

Daniel Lê Rouge, reuniu um grupo de cem colegas e invadiu a secretaria em

protesto contra a norma que regulamentava a conduta dos estudantes e que,

como conseqüência, reprimia o comportamento sexual. Os estudantes gritavam e

“grafitavam” que era “Proibido Proibir”, lei de 10 de maio de 1968, ironizando uma

lei de 10 de julho de 1881, que proibia colar cartazes em muros.

Assustado com a represália, o então reitor, Pierre Grappin, suspendeu as

aulas e chamou a polícia. Foi esse o estopim que levou à manifestação de uma

crise que se encontrava latente na sociedade marcada por tensões, tédio e

insatisfações. Levou os jovens à busca de mudanças na forma e no próprio

conceito de fazer política, exercitando uma nova estética de expressão livre e

juvenil das artes, em particular da Sétima Arte, que também havia alavancado o

movimento.

Após marcar o campo em Nanterre, os estudantes partiram, em três de

maio, para a Universidade de Sorbonne. A liderança continuava com Daniel le

Rouge e, a pedido da União Nacional dos Estudantes Franceses (UNEF), que

desejava registrar45 as manifestações, o fotógrafo de moda Willian Klein empunhou

uma filmadora e durante dez dias e dez noites registrou os acontecimentos. Esse

45 Registro, produção e divulgação, conforme são os três pressupostos de comunicação que interferem no processo social.

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registro gerou o documentário. A luta continua que, fiel e sem retoques, apresenta

os principais fatos da época.

“Na manifestação seguinte, na rua Courcelles, os

cassetetes de borracha haviam sido substituídos por ‘bidules’, cassetetes

infernais. Foi nessa ocasião que vi Daniel Cohn-Bendit pela primeira

vez. Estava trepado em um poste de iluminação e nos chamando de

camaradas. Um rapaz foi preso e ao final da manifestação, quando nos

preparávamos para ir embora, Le Rouge discursou: ‘Não partiremos

enquanto o nosso camarada não for libertado. Na Bretanha os

camponeses esperaram seis horas até que libertassem um de seus

companheiros. Quanto tempo aguardarão os parisienses’? Decidiu-se que

a forma de luta seria lá permanecer até a libertação do rapaz e um

grupo de cineastas foi negociar a libertação do estudante com os policiais” (GILLIAN,1990:207).

O reitor da Sorbonne, Jean Roche, ao se deparar com a desordem

organizada na instituição, solicitou ao Comissariado da Polícia do Quartier Latin

medidas para conter os jovens. No dia seguinte, a UNEF e o Sindicato Nacional

de Ensino Superior declararam greve por tempo indeterminado.

Em seis de maio a violência se tornou maior em Paris. Uma multidão subiu

a Rua St. Jacques e foi detida por uma tropa de choque. As primeiras barricadas

apareceram no Quartier Latin, antigo centro universitário parisiense, e a batalha

começava: de um lado moças e rapazes fazendo dos paralelepípedos, sob os

quais estava a “imaginária praia”, as suas armas; do outro lado, o grupo de

policiais usava bombas de gás.

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“O governo retrocedeu no caso Langlois, uma

demonstração de que é preciso exigir nas ruas o que não se consegue nos

gabinetes, diz Tuffaut. Em 17 de maio acontecia o Festival de Cannes e

até esse dia mantive-me informado sobre as manifestações pelo rádio. No

aeroporto de Orly, os aviões estavam parados. Aluguei um carro e

atravessei a França ouvindo o boletim informativo noticiando a ocupação

de mais uma fábrica. Foi nesse dia que tudo paralisou o país, para

terminar na paralisia total do domingo, 19. Jacques Rivette me procurou

e disse: - Pois é, decidimos parar o Festival de Cannes. A sala estava

cheia de jornalistas e cineastas. Li um texto de cinco linhas explicando

que a assembléia havia decidido pedir a suspensão do festival. Na sala

havia muita gente da região e alguns produtores insistiam em exibir os

filmes. As autoridades chegaram às 15 horas, iriam iniciar o filme de

Saura6 quando alguém gritou: ‘Todo mundo para a cortina’. Era uma

tentativa de impedir que a cortina elétrica se abrisse. Saura lutando

para que seu filme não fosse exibido46. Alguém desconectou os fios do

alto-falante e as imagens eram exibidas sem som. Houve uma grande

balburdia gritos, socos e pontapés. Retornei a Paris. Nunca me engajei

politicamente, mas cheguei a desfilar no dia primeiro de junho. Num

primeiro momento o que me emocionou nos estudantes é que respondiam

aos golpes da polícia. Então acompanhei toda a sua ação. Tenho uma

profunda admiração pelos jovens que ousaram desfilar cantando ‘somos

todos judeus-alemães.’”. .(GILLIAN,1990:208-211)

Os “enra-gés” - os enraivecidos - como os estudantes se intitulavam,

tentavam cooptar os operários e, em 22 de maio, 10 milhões de pessoas

46 Carlos Saura, cineasta espanhol, nascido em Huexas, Aregon em 04/ 01/1932, dirigiu mais de 40 filmes entre eles Bodas de sangue, Carmem, Amor Bruxo. O filme produzido em 1967 foi Peppermint Frappé.

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paralisaram o país, participando da greve geral. Os operários, mesmo não

simpatizando com os estudantes “burgueses”, também saíram às ruas:

reivindicavam um acordo em que estivesse previsto aumento de salários,

redução de horas de trabalho e participação na gestão das empresas.

Os estudantes que a princípio lutaram pela reabertura de Nanterre

ampliaram suas reivindicações: lutavam também pela mudança de costumes, por

uma reforma mais democrática de ensino, contra a guerra do Vietnã e contra o

governo conservador de De Gaulle, influenciados pela contracultura47 e novas

esquerdas. Para Hobsbawn (1995), os valores de maio de 68, na França,

estiveram mais próximos do anarquismo do que de outras correntes marxistas

evocadas conscientemente. Tratava-se de uma recusa a todo tipo de autoridade,

traço característico do anarquismo.

Na noite de 24 de maio, logo após De Gaulle propor um referendo para

decidir se permaneceria ou não no governo, aconteceu a segunda noite das

barricadas. Em conseqüência, Le Rouge foi proibido de permanecer na França e

a Assembléia Nacional propôs uma Moção de Censura a Georges Pompidou, o

primeiro ministro.

Mediante o silêncio e a ausência de De Gaulle, que se encontrava na

Alemanha, seu adversário mais constante, François Miterrand, em 28 de maio,

propôs a formação de um governo provisório dirigido pelas esquerdas coligadas.

Desafiando o sistema, Le Rouge, agora com os cabelos pintados de preto,

convocou a imprensa para mostrar o óbvio: que, apesar da proibição, estava

47 Contracultura é aqui entendida como uma série d experiências comportamentais de indivíduos e grupos, correntes artísticas e culturais de vanguarda, novas modalidades filosóficas, religiosas e místicas, experimentações com drogas e estados alterados de consciência, discussões e contestações cotidianas a respeito de valores, normas, tradições.

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instalado na Sorbonne. Em discussões posteriores sobre Maio de 1968, muitos

intelectuais falam da espetacularização do movimento e Morin reclama da

vedetização feita pela mídia de determinados personagens - Le Rouge, Geismar,

Pompidou - e de certos locais como Sorbonne e Nanterre; de duas classes

sociais - universitários e operários, deixando na obscuridade os estudantes

secundaristas, os recém-graduados e outras classes trabalhadoras.

O medo de que uma subversão totalitária viesse a governar o país, fez

com que os operários começassem a explicitar que seus objetivos não eram os

mesmos dos estudantes. Interessante notar a força dos meios de comunicação

de massa nesse contexto: a princípio foram censurados, prejudicando a devida

divulgação dos fatos. Em contrapartida, os estudantes organizados utilizaram e

reconheceram as possibilidades da moderna câmera de filmar portátil e o poder

dos meios de comunicação, pois a primeira frase do documentário é ”Lênin não

tinha o rádio nem a reportagem ao vivo. A França de 68 não é a Petrogrado de

17”, diz um estudante.

O General De Gaulle, da cidade de Baden, na Alemanha, pediu o apoio

incondicional do Exército e foi atendido. Surpreso com o movimento, que

suscitava entre a burguesia o medo da instalação de um regime anárquico

vermelho, o presidente dirigiu-se a uma rede de televisão e anunciou a

dissolução da Assembléia, convocando novas eleições gerais para 23 e 30 de

junho. A realização dessas eleições tinha por objetivo apaziguar a rebelião e

consultar o povo sobre o destino político da França.

Os anos 60, e seus movimentos juvenis refletiram também os processos

de institucionalização dos jovens, a massificação das universidades, o

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crescimento da indústria cultural e, para alguns pensadores como Baudrillard,

“marcaram o início da pós-modernidade, uma práxis da liberdade individual, um

incentivo para viver o presente” (GROPPO, 2005:275).

Destacamos que é no decorrer dos tempos modernos que surge a

cronologização do curso da vida individual, determinando os estágios da vida

humana, delimitando faixas etárias. Entre o estágio de vida da criança e do adulto

ganha espaço a juventude, fase do sonho, de aventuras bem sucedidas, de

beleza a descobrir, da busca do protagonismo. Segundo Groppo (2005), a

discussão de juventude ganha novos enfoques na pós-modernidade e,

desvinculando-se de faixas etárias, passa a ser entendida como “estado de

espírito”, estilo de vida, forma de ser 48.

Ainda sobre a condição dos jovens, encontramos em Mannheim (1976) a

explicação de que ela permite que indivíduos e grupos vivenciem uma relação

experimental, no sentido de proporcionar um primeiro contato do indivíduo como

protagonista, com valores e estruturas sociais. Essa experimentação pode ser

compreendida como a dessacralização dos saberes acumulados e pela busca do

novo.

Conceitos como o de juventude na pós-modernidade sustentam os

anseios libertários da geração que fez a revolução cultural nos 60 e, hoje, mesmo

com alguns representantes ocupando importantes cargos no poder, reconhecem

que só podem reivindicar realizações modestas. Na Alemanha, onde o principal

líder estudantil de 1968, Daniel Le Rouge, foi prefeito de Frankfurt e ocupa

atualmente uma cadeira de deputado, só foi possível a reforma econômica, a 48 GROPPO, L.A. “Dialética das juventudes e educação”. IN: MORAIS, R.; NORONHA, O.M.; GROPPO, L. A. Sociedade e Educação: Estudos sociológicos e interdisciplinares. Campinas: Átomo e Alínea, no prelo, cap.9.

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desativação gradual da energia nuclear, a implantação de sistema de tributação

favorável aos produtos ecológicos, a reformulação das leis de cidadania que

concedem esse direito a residentes não-alemães.

Na França de 68, tendo as urnas reabilitado o presidente De Gaulle com a

ajuda dos partidos Comunista Francês e Socialista, a vanguarda estudantil se

organizou em facções clandestinas, como a esquerda proletária, que chegou a

ter mais de 200 militantes presos na década de 70. A primavera de 68 não logrou

grandes modificações no campo político, até porque não houve nem partido, nem

líderes que anunciassem um projeto político. Mas a força desse acontecimento

transparece e transgride até hoje, como podemos inferir pela frase proferida em

campanha política pelo recém-eleito presidente francês, Nicolas Sarkozy: ”Vamos

bater o último prego no caixão da Primavera de 68”.

Maio de 68, ao propor a ruptura com os modelos autoritários de relações

geracionais, abriu espaços para as discussões de idéias e práticas educacionais,

propondo uma universidade não reservada apenas à formação dos jovens, mas

aberta a todos, estudantes e trabalhadores, na defesa da necessidade de uma

educação constante e permanente.

Os slogans em faixas e grafites que tomaram as ruas informavam as

reivindicações dos estudantes:

“É proibido proibir”

“Não troque de emprego, troque o emprego de sua vida.”

“A imaginação ao poder”

“Façam amor, não façam a guerra”

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As maiorias silenciosas, constituintes do “Partido do Medo”, sepultaram a

Rebelião de Maio. As eleições de 23 e 30 de junho deram vitória esmagadora aos

gaullistas, diz o jornalista Flávio Alcaraz Gomes, que estava em Paris na época

como correspondente do Jornal “Correio do Povo”, e escreveu o livro A Rebelião

dos Jovens (1968).

Matos (2006), no ensaio Tardes de Maio, diz que 1968 questionou as

burocracias totalitárias do leste europeu por um lado, e a sociedade do

espetáculo por outro49. Questionou o que significa viver para pessoas exauridas

pelo dia cronometrado sob o ponteiro do relógio. Criticaram-se todas as formas

de alienação, não só material como também a estética e a moral. Ampliou-se o

espaço público, ocupando as ruas e transformando os teatros em Assembléias:

”quando a Assembléia Nacional se torna um teatro burguês, todos os teatros

burgueses tornam-se Assembléias Nacionais”. Contra a ideologia da ação eficaz

e do realismo político que proscrevem os pensamentos, os jovens proclamavam

“chega de atos, queremos palavras”. Constituiu-se um princípio da realidade

diferente do industrial produtivista, cujo poder impõe formas determinadas de

pensar e agir. Um princípio estético substituiu o princípio de realidade. Houve a

liberação psíquica para a arte de amar - o que transformaria toda a vida social.

“O indivíduo que surge deste mês de maio constitui o

contrapeso político do nascimento do Eu na filosofia de Descartes.

49 Tardes de Maio. IN: Discretas Esperanças. MATOS, Olgária. Nova Alexandria, São Paulo, 2006.

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Emancipado de qualquer atavismo escolástico ou teológico, o indivíduo

formulado em maio de 68 definiu-se menos por sua relação com o

trabalho, a família, a pátria, a sociedade e o Leviatã e mais na relação

estabelecida consigo mesmo. A autonomia, em sentido etimológico, isto é,

a capacidade de ser para si mesmo seu próprio fim, causa e razão,

desponta como a busca essencial de tudo em cada um que se sente

concernido pelos acontecimentos dessa época” ([ONFRAY,1997], IN

MATOS, 2006:138).

Para o historiador e filósofo francês Alexandre Roche (Rabisco, maio de

68), esses movimentos nasceram do abandono dos ideais de liberalismo e

comunismo - uma característica que permeia toda sociedade que já não dá conta

daquilo que poderia ser um conceito ideal de convivência, uma utopia - da

revolução sexual, buscando a igualdade entre os sexos, da luta pela liberdade de

expressão e de uma abordagem existencial da vida.

Os métodos de Foucault, Lacan, Barthes, Levi-Strauss, Marcuse e Sartre

exerciam grande influência nas universidades e serviram, enquanto suporte

teórico, para que os estudantes criticassem o comodismo e a mistificação sobre o

modelo de sociedade que estava sendo constituído. Roche entende que o

movimento se dividiu em três partes: abril - fase otimista, maio - fase política,

junho - fase de contestação.

Relacionamos essas fases com as categorias utópicas propostas.

Abril: fase inicial do movimento, quando os estudantes lutam pela livre

expressão, pela mudança de comportamento, pelo repúdio à hipocrisia. Iniciado

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na pequena universidade de Nanterre, a consciência antecipadora de um mundo

mais livre ganha outros espaços.

Maio: fase da transgressão. O movimento ganha as ruas e os operários se juntam

aos estudantes. Acontece uma greve geral na França, contando com o apoio de

vários partidos políticos e de intelectuais e leva à subversão da ordem social e

política. A política se desestabiliza e o erotismo, antes aprisionado entre paredes,

ganha as ruas onde os jovens se beijam com licenciosidade, confirmando a teoria

de Marcuse (1975) para quem Eros pertence à democracia. Há transgressão em

relação aos costumes e à ordem moral.

Junho: fase da contestação sistemática e da utopia do advento de um mundo

melhor. Os contestadores pressionam de tal forma o governo conservador de De

Gaulle, que este anuncia e realiza eleições parlamentares e reorganiza o

secretariado. Chega ao final a primavera, mas as possibilidades concretas de

transformação da realidade se anunciam, permitindo o aparecimento dos

conteúdos utópicos ainda não revelados.

Como pudemos verificar, são muitas as interpretações possíveis para maio

de 68. Le Rouge, enquanto deputado europeu, avaliando o movimento 30 anos

depois, reconheceu que foi pego de surpresa pelos acontecimentos de então e

acredita que a rebelião de 1968 abriu uma brecha para um movimento social

heterogêneo que procurava manifestar-se e que, ao final, os mesmo operários

que participaram das greves acabaram reelegendo o general De Gaulle.

Outros participantes, nessa mesma época, avaliaram que se perdeu a

batalha no campo político, mas ganhou-se no social com a liberalização do

comportamento - quando a vanguarda assumiu o uso da pílula anticoncepcional e

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a liberação sexual, o consumo de drogas, a destruição de tabus e, no campo das

artes, com o prenúncio, como diz Ventura (1988), do advento da civilização da

imagem. A conformação de uma nova sociedade pós-industrial, em que saberes,

informação e conhecimentos tornam-se produtivos em razão da abundância na

produção material e necessidade de desenvolvimento do setor de serviços, é

dessa forma que o sociólogo Touraine (1970) também interpreta o movimento.

Mais uma vez, em 2006, as ruas de Paris se transformaram na Ágora da

modernidade. Jovens de ascendência árabe e africana, excluídos potenciais do

mundo de trabalho e atingidos pela lei do primeiro emprego, que nega a

estabilidade nos dois primeiros anos de trabalho, tomaram as ruas de Paris,

fazendo-se ouvir em suas reivindicações. Apesar das barricadas e da

participação da juventude, os objetivos destes jovens não são os mesmos de

1968. O que move a atual população dos subúrbios franceses são as frustrações

do dia-a-dia, a carência diária da justiça social, problemas que, apesar da

Primavera de 68, assolam o mundo contemporâneo.

Sobre os movimentos de 68, Groppo (2005:279) aponta que essa onda de

rebeliões revelou uma diversidade nacional, étnica e política, com alguns temas

comuns como: forte crítica ao imperialismo americano, vivência radical da

democracia na sociedade e na universidade, propostas de reestruturação e

transformação da vida cotidiana e da cultural conjuntamente e não após as

transformações políticas. Relata a posição de G. Lipovetsky, para quem os

movimentos de 68 representam o fim do modernismo e o começo de uma cultura

pós-moderna, na qual há uma práxis de liberdade individual, um incentivo para

viver o presente. A marca dessas mobilizações poderia ser a busca do

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autoconhecimento, um olhar para o subjetivo, a concepção de corpo como

comunicação e a busca da felicidade.

Os filmes de Bertolucci (2004: D3) demonstram a importância que esse

movimento de 68 teve para a geração dos anos 60, visto e vivido como uma

possibilidade de mudar o mundo, “maio de 68 pode não ter selado a aliança dos

estudantes com os operários, que acreditávamos fundamental para mudar o

mundo, mas muita coisa mudou depois daquele ano, daquele mês e, por isso, ele

se tornou mítico”.

Acreditamos que os movimentos de 1968 apresentaram ações de

contestações mundiais tão heterogêneas que torna difícil sua análise em um

processo único, mesmo quando apresentam um denominador comum: a juventude,

categoria social estruturante gerada pela modernidade, presumida ou assumida

pelos integrantes, e os sonhos de um mundo melhor. Dentro deste trabalho, o

interesse maior voltou-se para a rebelião ocorrida na França, por ser tema de Os

Sonhadores e, palidamente, traçamos um esboço do movimento na Itália, terra do

diretor do filme50. Para sistematizar, vamos levantar algumas configurações que

permearam essas manifestações:

• A condição juvenil ou estudantil;

• Os socialismos heterodoxos e as novas esquerdas;

• Os movimentos de contracultura;

• A liberação sexual e experiências com drogas (culminando em desvios

sociais);

50 Sugerimos a leitura de GROPPO, L.A., Uma onda mundial de revoltas: Movimentos estudantis de 1968, Piracicaba. SP Editora UNIMEP: 2005.

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• A nova classe média pós-guerra;

• A influência da mídia e da indústria cultural.

“Na verdade, deve-se ver aquela onda (de revoltas) como um

exemplo de que alternativas aos caminhos tomados pela civilização

global são plausíveis e, a meu ver, desejáveis e necessárias. Ademais, a

rebeldia juvenil dos anos 1960 aponta a possibilidade de essas novas

proposições engajarem-se em uma futura corrente mundial de contestação

criativa“ (GROPPO, 2005:284)

Entendemos que com essas palavras reforça-se a teoria de Bloch (2005)

da imaginação utópica, da consciência que antecipa uma nova realidade ou

novas realidades possíveis. Na capacidade que tem o cinema de reproduzir a

realidade por meio dos efeitos de sentido, que neste trabalho tem por suporte as

obras do diretor Bernardo Bertolucci, indagaremos sobre como da utopia “o vir a

ser” pode ser traduzido na linguagem fílmica.

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3.2. A estética da utopia e o cinema italiano de Bertolucci

“O cinema não tem fronteiras nem limites. É um fluxo constante de

sonho”.

Orson Welles

Para entendermos a estética da utopia no cinema italiano de Bernardo

Bertolucci precisamos falar de estética antes de enquadrá-lo em seu contexto

histórico, político e cultural e, a partir daí, sondar as ascendências históricas das

principais correntes e escolas cinematográficas que influenciaram a sua

formação.

O termo “estética” foi empregado originalmente por Alexander Gottlieb

Baumgarten (1714-1762) para dar título à sua obra Aesthetica, de 1750, obra

inacabada que tinha por objeto a análise e a formação do gosto; trata-se de um

neologismo que provém do grego aisthesis, cujo significado é sensação, sentimento51.

A própria história da estética obriga-nos a fazer uma pausa. Além da

existência de várias teorias, parece não estarmos hoje mais perto da sua

conceituação do que estávamos no tempo de Platão. Cada época, cada

movimento artístico, cada filosofia da arte, tentou vezes sem conta estabelecer o

seu ideal para depois ser sucedida por uma teoria nova ou revista, a qual se

baseou, pelo menos em parte, na rejeição das teorias precedentes. Mesmo hoje,

não por unanimidade, estética é entendida como um ramo da filosofia que estuda

51 Sentimento: espaço individual de onde aflora a afetividade. Posterior a emoção e sensação e se associa diretamente ao caráter relacional do ser humano (Bloch, 2005).

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racionalmente o belo e o sentimento que este suscita nos homens ou como

encontramos no dicionário: estética é “o estudo dos julgamentos de apreciação

quanto ao belo e ao feio. Teoria do belo, sua natureza e condições. Divide-se em

teórica ou geral (estudo da nossa percepção do belo), e prática ou particular

(estudo das diversas formas de arte)” .

Da escola platônica ao romantismo, os filósofos tentaram fundamentar a

objetividade da arte e da beleza. Na modernidade um movimento de ordem

filosófica e ideológica, que se iniciou no séc. XVIII e se estendeu até meados do

séc. XX, conhecido como a revolução estética, se caracterizou pela

independência da obra de arte em relação à intenção do autor e aos valores e

propósitos não necessariamente estéticos. Traduziu-se em novas atitudes

estéticas. A nova atitude estética confrontou as teorias como classicismo,

naturalismo52, e romantismo53, com o princípio do juízo estético de Kant. O

filósofo Kant tomou a palavra noutro sentido na obra Crítica da Razão Pura, pois

designou a estética como sendo o estudo das “Formas a priori de sensibilidade”,

mas na Crítica do Juízo considerou estética como “sendo o juízo de apreciação

relativo ao belo”, uso que permaneceu constante.

Então, para Kant o belo é aquilo que agrada universalmente, ainda que

não se possa justificá-lo intelectualmente. O grande diferencial do juízo estético

em relação às outras concepções foi a mudança de foco: o objeto belo visto

como uma ocasião de prazer desinteressado, cuja causa reside no sujeito; o juízo 52Naturalismo: concepção que tinha por objetivo colocar diante do observador uma semelhança convincente das aparências reais e das coisas. Apresenta duas variações: o realismo que mostra o mundo como ele é e o idealismo que retrata o mundo nas suas condições mais favoráveis (ARANHA e RTINS. 1993:362). 53Romantismo: estética desenvolvida no séc. XVIII e meados do séc. XIX e que concebe a arte como expressão das emoções pessoais de uma artista cuja personalidade genial se torna o centro do interesse (idem: 6).

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estético é o sentimento do sujeito e não o conceito do objeto. Entretanto, embora

subjetivo, há a possibilidade de universalização desse juízo porque as condições

subjetivas de julgar são as mesmas para todos os homens. Sendo assim não há

uma idéia de belo nem regras para produzi-lo. Belo é uma qualidade que

atribuímos aos objetos para exprimir certo estado de nossa subjetividade. Muda-

se o foco da imitação da natureza, da genialidade do autor, para o sujeito

receptor.

Ressaltamos que, apesar dessa ruptura que condicionou grande parte da

produção artística, as discussões sobre estética ainda não se esgotaram e as

posturas do classicismo, naturalismo e romantismo ainda são econtradas

principalmente nas produções mediatizadas da televisão e cinema. Surge uma

questão: de qual forma a produção cinematográfica depende das transformações

ou da re-evolução estética?

Como vimos no primeiro item, o cinema é uma invenção da modernidade

nascido no âmago da revolução industrial e que perpassa a revolução técnico-

científica, caracterizando-se sempre como um motivo estético que se relaciona

com a utopia no seu caráter pré-figurativo capaz de antecipar os fenômenos

sociais, políticos e culturais.

A dimensão propriamente estética apresentou mudanças devido aos já

analisados fenômenos inerentes à modernidade - reprodução mecânica e

massiva, a produção em massa e a difusão ou circulação dos produtos culturais -

que, ao menos em tese, permite a acessibilidade quase simultânea na sociedade

globalizada, e afeta diretamente as produções cinematográficas, pois no seio da

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revolução tecnológica emerge também uma revolução de hábitos, costumes e

valores humanos que tangem o juízo de apreciação do sujeito receptor.

Convencionou-se fixar o dia 28 de dezembro de 1895 como a data do

nascimento do cinematógrafo, simplesmente porque naquele dia, em Paris, no

legendário Salon Indien del Grand Café, foi realizada a primeira projeção de um

programa de dez filmes breves para um público pagante de não mais que trinta e

seis espectadores54. Nascia, assim, na Europa, o espetáculo cinematográfico. E

a Itália, desde os primeiros passos, esteve presente nessa caminhada.

Em 1904, Filoteo Alberini realizou um filme curto de duzentos e cinqüenta

metros - La presa di Roma ovvero.La breccia di Porta Pia - e o projetou,

simbolicamente, em 20 de setembro de 1905 na praça de Porta Pia para uma

aglomeração de curiosos. Esse curta-metragem deu início a uma produção que

obteve notável sucesso comercial, especialmente no campo dito “histórico”, isto

é, baseado em personagens, episódios e eventos históricos como Messalina e

Spartaco, Giulio Cesare e Cleópatra etc.

Por volta de 1910, as companhias italianas Ambrosio e Cines lançaram

com sucesso comercial alguns filmes como A queda de Tróia (1911), Os últimos dias

de Pompéia (1913, Mario Caserini) e os melodramas protagonizados pelas

famosas divas do cinema Lyda Borelli e Francesca Bertini, de grande importância

para o mercado interno. Gabriele D’Annunzio registrava inovações na produção

dos filmes: luz artificial, a panorâmica, o primeiro plano. Cabiria (1914, Giovanne

54 Esse breve resumo sobre a história do cinema italiano é baseado no livro Storia del cinema italiano (1995), de Mario Verdoni.

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Pastroni) apresentou uma das primeiras músicas para filme com a Sinfonia do

fogo de Ildebrando Pizetti. Cabiria foi estudada e imitada na América, que já se

aventurava na produção de western. A eclosão da primeira guerra bloqueou a

produção cinematográfica italiana que já tinha conquistado o mercado mundial, e

cujos atores e diretores já tinham reconhecimento.

O final da primeira guerra encontrou o cinema italiano despreparado

tecnicamente, enquanto crescia a concorrência da produção norte-americana. No

início do cinema sonoro, o cinema italiano esboçava seu recomeçar. Era época

do fascismo e o regime aplicou recursos para proteger o filme nacional, criando a

Cinecittá (29/01/1936) e a Escola para atores, diretores e técnicos do centro

experimental de cinematografia, investindo na realização das obras de gênero

heróico, histórico, melodramático, longe da verdadeira realidade social e humana

do país55. A arte, para o regime fascista, deveria ser um meio para a divulgação

de seu ideário e, para tanto, precisaria atingir não uma elite privilegiada, mas ser

acessível ao povo como uma ferramenta que ajudaria na formação de uma nova

sociedade. O cinema, com seu poder de ”persuasão“ e penetração, era a arma

de propaganda do regime fascista.

Nesse período, o mito de Hollywood, codificado como indústria e

espetáculo, começa a se expandir e a conquistar novos mercados.

“O que fascinava na cinematografia americana era a

capacidade que esta tinha de reduzir ao denominador comum de 55 Protagonizado por Al Jolson, The Jazz Singer (1927) foi o primeiro longa-metragem com seqüências em que o som tanto de seus números musicais como de seus diálogos estão sincronizadas com a imagem.

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epopéia” tanto o presente quanto o passado - ao inventar o papel de

crônicas da atualidade, de um, e de reconstrução do outro -,

transformando qualquer acontecimento individual num fato emblemático

de toda sociedade americana.” (FABRIS, 1982:41)

Dessa forma, a Itália perdia sensivelmente o mercado internacional que

havia conquistado ao apresentar filmes desenhados pela estética fascista.

Quando o cinema dos anos 30, identificado com o fascismo, estava em

declínio um novo cinema, inspirado na luta pela libertação surgia. Nessa

realidade que se desenhava após a queda do fascismo, na qual o cinema italiano

não mais se conciliava com a profunda virada determinada pelo pós-guerra, se

manifestará o fenômeno cinematográfico hoje conhecido por neo-realismo que,

sem sombra de dúvida, se constituiu na maior contribuição italiana pra estória e

desenvolvimento do cinema.

A palavra neo-realismo se antecipa ao movimento por esse nome

conhecido. Em 1943, o crítico Mario Serandrei, referindo-se ao filme Ossessione, de

Luchino Visconti, usa o epíteto neo-realístico56. No mesmo ano, em cinco de

junho, o crítico Umberto Bárbaro reutiliza esse termo ao resenhar o filme Quai dês

Brumes (1943) do francês Marcel Carnè. Surgia assim o nome de um movimento

estético que se convencionou ter por marco inicial o filme Roma Cidade Aberta

(1944-1945) e que se estendeu até 1952, havendo divergências entre os críticos

56 Ossessione, para Fabris (1982:46) era a realidade italiana que explodia nas telas de forma inusitada.

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sobre essas datas. Entretanto, alguns filmes - de 1935 a 1944 - prenunciam

características estilísticas atribuídas ao neo-realismo, tais como:

1. Paisagem italiana focalizada como algo vivo e determinante à ação (Darò un

milione - Mario Camerini: 1935);

2. Uso dos dialetos (a partir de 1938);

3. Valor documentário de filme (Acciaio: 1933);

4. Uso de atores não profissionais (Camicia Nera:1933);

5. Gosto pela crônica do dia-a-dia (diversos filmes).

6. Ênfase no archai-arcaíco, isto é, no primordial, original.

Em setembro de 1945, foi exibido o filme Roma Cidade Aberta, de Roberto

Rosselini e roteiro de Frederico Fellini. Um filme que despojou tudo o que era

secundário na sua concepção. Em razão dos estúdios da Cinecittá estarem

sendo utilizados para abrigar os refugiados e também impelidos pela busca de

novas soluções estéticas, os cineastas saíram para as ruas para contar histórias

sobre a resistência e a vida cotidiana do pós-guerra. O filme tornou-se

emblemático para o neo-realismo. Na busca de uma linguagem cinematográfica

capaz de reinventar seus códigos a cada obra, Rosselini, opondo um

procedimento expressivo a um procedimento moral ou ideológico, parte do

imaginário para o real e se pauta mais em “como olhar” do que “em que olhar”.

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Entre 1944 e 1946, a luta antifascista, da resistência, foi tema constante de filmes

italianos, quase em uma forma de expurgar esse fato da história.

Pouco tempo depois, a equipe de diretor-roteirista, formada por Vittorio de

Sica e Cesare Zavattini, realizou o famosíssimo Ladrões de bicicletas (1948),

considerado um dos melhores filmes da história do cinema. Mais do que datar -

1945 a 1952 para alguns, 1945 a1948 para outros - ou estabelecer juízos

categóricos, a reflexão sobre o contexto político-cultural em que nasceu e se

desenvolveu esse movimento é mais pertinente. Retomamos que seu surgimento

ocorre em concomitância com a queda do fascismo e com o pós-guerra,

agrupando sob uma mesma bandeira diferentes diretores e temas.

“As bases teóricas do cinema renovado em sua

técnica e conteúdo cultural do neo-realismo tem como característica mais

importante e a novidade mais importante [...] a de termos percebido que

a necessidade da “estória” nada mais era que uma forma inconsciente de

mascarar uma nossa derrota humana, e que a imaginação, da maneira

como era exercitada, nada mais fazia que sobrepor esquemas mortos a

fatos sociais vivos.” (FABRIS.1982:64)

Verdone (1995) entende por neo-realismo “um realismo à italiana, de

origem documentarista e de forte consciência social. É um realismo humano, ou

mais que humano, um realismo de valores humanos, tal que se pode defini-lo

melhor, como cinema do homem”.

Para Micciché (1994) o neo-realismo foi,sobretudo o nome de uma

batalha na qual se promoveu o confronto entre a “ética da estética” e de uma

“estética aparentemente sem ética”, isto é, uma prática artística que se fingia

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autônoma em relação às coisas do mundo, mas que na realidade estava a

serviço de sua preservação. Essa “ética da estética” não se transformou em

“estética”, e por isso ocasionou a posterior dispersão do conjunto de obras, que

apesar das diferenças estilísticas que caracterizaram seus realizadores, quase

sempre engajados política e socialmente, se reuniu sob o nome de neo-realismo.

A verdade e naturalidade do cinema neo-realista, opondo-se à banalidade

e ao artificialismo de produções americanas, ofereceram um modelo estético ao

derramar sobre a realidade local, o mundo popular, o cidadão do povo como

protagonista, um novo olhar deflagrador de uma busca incessante de identidade

nacional, encurtando a distância entre a arte e a vida. Entretanto, fatores como a

distribuição deficiente, a hostilidade frontal de um governo preocupado com a

imagem que esses filmes transmitiam da Itália, as dificuldades financeiras para

realização e a restrita receptividade do público contribuíram para a decadência do

neo-realismo.

Se na Itália, ainda na década de 1950, começou a realização das

comédias populares, filmes de gênero, projetos mais ambiciosos, financiados por

meio de acordos de co-produção com outros países europeus, na França, em

1954, um artigo de François Truffaut provocava novas reflexões sobre o cinema.

“Uma certa tendência do cinema francês” foi o artigo publicado em Cahier

du Cinema pelo jovem crítico Truffaut, no qual apresenta uma posição estética em

defesa da necessidade de uma visão ou estilo pessoal nos filmes de um diretor.

Truffaut diz que esse era menos um artigo sobre La Politique des auteurs. É muito

mais um texto destrutivo sobre o cinema francês chamado de tradição de

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qualidade, que reunia um grupo de pessoas famosas desempenhando diferentes

funções: um músico famoso para compor a trilha musical, alguém famoso para os

cenários, um romance famoso inspirando a obra em detrimento de filmes feitos

por pessoas mais exigentes. Para isso defendia a idéia de que não há bons e

maus filmes, mas bons e maus diretores. Com esse artigo tem início o “cinema

de autor”, um cinema voltado para o estilo visual e para o modo de recepção do

espectador. Formou-se um movimento de contestação ao modelo de cinema

dominante, que evoluiu para a Nouvelle Vague francesa. A partir de 1958, os

novos e jovens cineastas passaram a contestar o poder político, social e cultural

do cinema norte-americano e a combater o conformismo do cinema europeu pós

neo-realismo. Godard, que admirava o cinema de Rossellini, foi um dos principais

protagonistas dessa “nova onda”, segundo GILLAIN (1990:71).

A terminologia Nouvelle Vague designava uma pesquisa oficial da França

publicada na revista L’Express e referindo-se aos futuros advogados,

engenheiros, médicos. Como os festivais do cinema do início dos nos 60

reuniram mostras de filmes de jovens autores, os jornalistas passaram a usar

esse termo para designar um grupo de cineastas que trabalhavam com total

liberdade de criação como, por exemplo, Jacques Rivette em Le coup du berger.

Podemos considerar como principais características da Nouvelle Vague:

1. Sua base crítica e sua estética fundamentada na política dos autores.

2. Priorizar filmes pessoais concebidos pelos diretores.

3. Apresentar baixo custo de produção.

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4. Ter como suporte a obra O que é cinema, do teórico e crítico André Bazin.

5. Estar comprometida com o público sem fazer concessões.

Para Truffaut, esse cinema que tinha como principais qualidades a graça,

leveza, elegância e rapidez também apresentava defeitos como a futilidade, falta

de consistência e ingenuidade.

No início dos anos 60, o mercado italiano, tendo como aporte o capital

americano, se volta para o mercado internacional com obras como A doce vida

(1960), A Aventura (1960), O eclipse (1962) e O Leopardo (1963), e também com o

western spaghetti. Também é nesse período que uma nova geração de autores-

diretores, com figuras do porte de Pier Paolo Pasolini, Bernardo Bertolucci, Ettore

Scola e Marco Bellocchio, despontam.

Tendo como paradigma Godard e como grande influência Pasolini,

Bertolucci substitui a pena de escrever pela máquina de filmar, e se expressa em

um cinema acima de tudo poético. Um olhar crítico sobre o conjunto de sua obra

revela os traços autorais de um diretor capaz de provocar reflexões a respeito da

subjetividade, do erotismo, dos problemas sociais, culturais e políticos. Remete

ao próprio cinema e a sua história ao utilizar a metalinguagem. Apresenta a

estética da utopia às vezes como expressão plena, outras vezes como pálidas

nuanças. No cinema de Bertolucci a herança do neo-realismo e da Nouvelle Vague

permanece viva e operante, mas sem ofuscar um certo inconformismo, uma

busca incessante por novas formas de expressão.

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A primeira reação que se tem à palavra utopia no final do século XX é

negativa, uma expressão para desacreditar propostas. Uma rápida passagem

pelos estágios da história humana revela, contudo, que jamais a humanidade

dispensou a constituição de utopias que funcionam como forças motrizes do

desenvolvimento.

Voltando, mais uma vez, ao conceito de utopia veremos que ele nasce em

uma época de mudanças estruturais, da busca de um novo tempo, o

Renascimento, tempo que transgride as normas e o status quo da Idade Média.

Para tornar possível o surgimento desse tempo novo é preciso voltar o

pensamento para a Antigüidade, cujo conhecimento é cuidadosamente guardado

e acessível apenas a poucos. Empunharam também a bandeira da esperança de

um novo tempo, de um novo homem: Giordano Bruno, Galileu, Newton, Francis

Bacon, Maquiavel, chegando a Thomas Morus (1480 -1535), que escreveu em

1515 um romance UTOPIA, criando a palavra a partir do grego ou topos, o país

que não existe em lugar nenhum. A esperança de favorecer a criação de uma

comunidade de bem que pudesse reger a sociedade, a igualdade, a melhor

distribuição do que já se tem, propiciando a satisfação de todos, tomaria o lugar

da ambição de conseguir sempre novas conquistas, tornando as guerras

absolutamente dispensáveis. Nesse sentido, Morus encarnou não somente o

Humanismo, mas também o Idealismo.

Em nosso século, Mannheim (1976) e Bloch (2005) vão resgatar os

estudos sobre utopia. O primeiro, dentro da Sociologia do Conhecimento,

estabelece um estudo em que aponta as similaridades e diferenças entre

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ideologia e utopia e constata que só a última rompe com a estrutura vigente. O

segundo, em seu vasto inventário sobre o tema, conclui que as utopias se

formam nos sonhos diurnos, com projetos acionados pela intenção de criar uma

vida ou um mundo melhor. Esses sonhos têm como princípio básico a esperança,

um pensamento antecipador, voltado para o futuro. O que move, o que traz o

novo, o que não se conforma, o que enfrenta a resistência da acomodação é a

utopia. A esperança como princípio, que contém a utopia, reúne forças para

iniciar um processo de busca de uma vida melhor para antecipar um estado

melhor de coisas em uma época em que ele ainda não existe. Sem utopia não se

iniciaria nenhum processo para se viver melhor.

Uma consciência antecipadora, por meio do sonho diurno, acionou as

grandes revoluções, e mesmo quando não realizadas de forma concreta ou

realizadas de forma transitória ou efêmera, não foram em vão, trouxeram nova

necessidade de propiciar novas utopias e acionararam excedentes utópicos que

as geraram.

“As próprias épocas de mudança são os períodos de juventude

na história, isto é, estão objetivamente diante dos portões de uma nova

sociedade em mudança” (BLOCH, 2005:119)

Entretanto, alguns mecanismos psicológicos, chamados por Freud de

resistência, atuam como “defesas” contra a esperança. O medo, o pessimismo, o

desânimo precisam ser anulados pelos afetos expectantes positivos e o

“otimismo militante” precisa ser acionado. Vivemos movidos por utopias porque

somos seres desgarrados do paraíso, em função do “pecado original”, isto é, da

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inconformação com o estabelecido, com a natureza, com o instinto, com o

imposto, e para protestar criamos utopias que são endereços dos nossos

desejos. Trabalhar impulsos proibidos e perigosos significa reconhecer-lhes as

origens na história emocional do sujeito e da humanidade para poder gerenciá-

los por meio da simbolização. Simbolizar é justamente criar um horizonte que não

existe em lugar nenhum, mas que revela o feixe de desejos do ser humano. As

utopias não se objetivam no plano concreto, mas revelam o nosso universo

desejante.

No filme Os Sonhadores há a aproximação de dois tipos de sonhos: os

produzidos nas ruas e os produzidos no cinema. Na filmografia de Bertolucci a

estética da utopia se revela no seu estilo, na forma como representa, com os

recursos da produção, a realidade poeticamente imaginada.

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3.3. Os filmes no filme: a função metalingüística

“Fazer um filme significa melhorar a vida, sistematizá-la a

seu modo, significa prolongar os jogos da infância”

François Truffaut

O termo metalinguagem agrupa a palavra linguagem com o prefixo meta,

que significa transformação, transposição, transcendência, posteridade e

sucessão. Portanto, metalinguagem é um fenômeno da linguagem porque a

linguagem tem função metalingüística quando transpõe, transcende, sucede,

discorre sobre o seu próprio conteúdo. Durante séculos, aponta BARTHES

(1997:28), “a literatura não tecia reflexão sobre si mesma, não se dividia em

objeto ao mesmo tempo olhante e olhado; em suma, ela atuava como reflexão

sobre o universo, mas não se refletia”. Transferindo esse pensamento para a

linguagem cinematográfica concluímos que a função metalingüística ou a

metalinguagem também ocorre no cinema e a auto-reflexão, a auto-referência, se

manifesta quando o cinema fala sobre o cinema, quando o filme é utilizado como

um meio de fragmentar ou recriar a realidade por meio de uma consciência

criadora que esboça sua visão e participação no mundo.

A função metalingüística no cinema, segundo ANDRADE (1999:16, 63,

21), assume dois aspectos distintos: o filme sobre cinema e o filme dentro do

filme. No primeiro a metalinguagem se dá como elemento narrativo temático em

que a auto-referência implica reconhecimento ou identificação por parte do

público. Já o filme dentro do filme depende de sua complexa estrutura para se

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articular a metalinguagem. Mais do que um elemento narrativo é parte essencial

para que a trama se desenvolva.

Bertolucci faz da função metalingüística um recurso freqüente em seus

filmes. Por meio dessa função, os dois mundos - o ficcional e a realidade -,

interseccionam-se, interpenetram-se e, paradoxalmente, é criado um

distanciamento, uma descontinuidade que evita que o espectador os confunda,

que misture realidade e ficção, o que lhe permite perceber seu sentido simbólico.

A polêmica que marcou a estréia do filme Os Sonhadores no Festival de

Veneza acompanhou sua apresentação para o grande público. Um filme como

este, com amplo uso da metalinguagem, permite diversos tipos de “leitura”,

variando conforme o imaginário do espectador diante da magia do cinema e de

seu repertório imagético, isto é, de quantos filmes ele assistiu e como os assistiu.

Para verificarmos como foi a recepção do filme Os Sonhadores no Brasil,

além dos artigos publicados em jornais, utilizamos “blogs” e “sites” voltados para

cinéfilos com inserção da “crítica do espectador.” No site Adorocinema

encontramos 77 participantes, os quais deveriam atribuir notas de zero a dez aos

filmes e também escrever uma pequena crítica. Três participantes atribuíram nota

zero. Há também uma nota três, uma nota cinco, uma nota seis, três notas sete,

nove notas oito, catorze notas nove e 45 notas dez. Entre as críticas, recortamos

uma mais extremista que atribui zero e duas que se concentram na média com as

notas sete e nove.

O cinéfilo MARCELO MOREIRA QUINTARELLI, atribuiu nota zero:

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”Simplesmente a história é totalmente sem sentido! O pano de

fundo envolvendo cinema é totalmente desnecessário, podiam trocar

cinema por revistas, por tipos de carne, por palitos de fósforo... Se o que

o diretor queria era mostrar sexo com um pano de fundo "cult", deve ter

conseguido. Mas não pra mim. Fora que o filme tem seqüências podres e

TOTALMENTE desnecessárias, envolvendo menstruação, cuspes na

mão, masturbação na parede... E o final é patético, tentando dar um ar

"sério" pro fiasco que foi o filme todo... lixo! Bernardo Bertolucci já fez

um punhado de filmes BEM melhores que esse, não perca o seu tempo."

O espectador, ao considerar desnecessário o cinema como pano de fundo

demonstra que, em razão do seu repertório individual, para ele, a metalinguagem

não produziu sentido.

SÉRGIO LUIZ DOS SANTOS PRIOR, que atribui a

nota sete:

"A revolução de 68 em Paris é revisitada pelo mestre italiano de uma

maneira tangencial. Através do trio formado pelo norte-americano

Matthew (Michael Pitt) e os irmãos gêmeos Theo (Louis Garrel) e

Isabelle (Eva Green) vivem no epicentro da revolução mais charmosa

na história do século XX. Isso não quer dizer que eles sejam

revolucionários propriamente ditos. A paixão pelo cinema fez com que

o americano recém-chegado a Paris e os gêmeos viessem a se conhecer. O

radicalismo do trio não está nas passeatas e nos confrontos com os

policiais franceses, mas sim na relação que eles estabelecem entre si

dentro do apartamento dos gêmeos franceses. Eles discutem cinema

(Matthew prefere Buster Keaton a Charles Chaplin enquanto Theo

aprecia este último), política (Theo é maoísta enquanto Matthew é

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contrário a um regime que permite que todos leiam apenas o livro

vermelho), música (Matthew idolatra Jimi Hendrix, já Theo venera

Eric Clapton). É em direção de Isabelle que a paixão de ambos

converge. Esse triângulo tem inevitavelmente um tempo de duração

limitado. Trata-se de uma homenagem explícita a François Truffaut,

mais especificamente a seu filme "JULES E JIM". Por sinal,

inúmeros filmes e diretores recebem deferência do diretor de "O

ÚLTIMO TANGO EM PARIS" (com o qual "OS

SONHADORES" guarda várias semelhanças). As transgressões do

trio dentro do apartamento são muito maiores do que aquelas dos

estudantes e trabalhadores franceses que transformaram as ruas de

Paris num palco de ebulição política. Esta é uma característica do

cinema de Bertolucci; a sensualidade como uma das formas de

expressão mais poderosas do ser humano. A atuação do trio central é

excelente, particularmente a belíssima Eva Green e o cover do

Leonardo DiCaprio, Michael Pitt. É com ele que nos tendemos a

simpatizar, por ser inteligente, articulado, diria, sensato. Já Theo com

sua aparência blasé e suas atitudes típicas de radicais-chique, não

ganha o nosso afeto. Enfim, estamos diante de um raio-X da

adolescência européia no final dos anos 60. E ao som de The Doors,

Jimi Hendrix e Janis Joplin nos tornamos admiradores e cúmplices

destes sonhadores inocentes.”

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A crítica, abrangendo a narrativa, a função metalingüística, a relação com o

filme Julies e Jim, de Truffaut e a atenção voltada à trilha sonora corroboram à

hipótese de que o filme, pelo seu estilo, pode ter o sentido comprometido conforme

o repertório do espectador. Quantos filmes o espectador assistiu e como os

assistiu parece ser fundamental na recepção desse tipo de filme, considerado

também como “cinema de arte”.

RICARDO PEREIRA atribuiu ao filme a nota nove. Apresentamos excertos

da crítica.

"Bernardo Bertolucci fez o filme que, para

além de polêmicas e equívocos, se consolidou na história do cinema como

uma espécie de crônica terminal sobre as ilusões seculares do amor e a

insondável ambigüidade dos corpos e dos sexos: "O Último Tango em

Paris" (1972). Com "Os Sonhadores", ele regressa a Paris para

ajustar contas com as raízes de tudo isso. Maio de 68? Sim, sem

dúvida. Está tudo lá: os estudantes, as greves, as barricadas, a violência

da polícia. Mas está também algo que confere um outro sentido a tudo

isso: o amor ao cinema. Isto porque o diretor italiano, um dos primeiros

a assumir a herança da Nouvelle Vague francesa (lembremos o

emblemático ‘Antes da Revolução’, rodado em 1964), consegue essa

coisa rara e preciosa que é filmar a cinefilia como uma verdadeira

filosofia de vida.

Daí o fascinante paradoxo formal de ‘Os Sonhadores’. Por um lado,

este é um filme fabricado a partir das componentes mais vulneráveis da

memória; por outro lado, há nele uma vontade de realismo que reage,

implicitamente, contra as ilusões ‘naturalistas’ dos nossos tempos

televisivos. Bertolucci conseguiu a proeza de filmar a matéria dos sonhos,

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não como uma hipótese ‘lírica’ de redenção, antes como permanente

convulsão do amor, do desejo e da carne.

Bertolucci cria uma ousada e enérgica experiência cinematográfica que

não teme explorar os limites e tensões das personagens, ilustrando a

complexa teia de relações que se desenvolve entre os três adolescentes. O

filme tem gerado polêmica e reações contraditórias um pouco por todo o

lado, e essa ausência de unanimidade deve-se, em parte, às

descomplexadas e cruas cenas que focam as relações carnais entre o trio

de personagens centrais (um pouco como aconteceu há trinta anos com ‘O

Último Tango em Paris’). De fato, durante a fase inicial do filme,

parece estarmos perante um eventual descendente de ‘Ken Park’, o

controverso filme de Larry Clark que ofereceu um retrato brutal e

vertiginoso do sexo na adolescência. Contudo, ‘Os Sonhadores’ não

aposta em um conjunto de cenas de voyeurismo gratuito, antes utiliza

momentos íntimos e de considerável erotismo para reforçar o ambivalente

e instável elo que se adensa progressivamente entre os três jovens. ‘Os

Sonhadores’ é uma obra maior de Bertolucci, um filme que se transcende

a cada novo plano e que combina subliminarmente as imagens, os sons e

a matéria. E faz do espectador um cúmplice de uma fascinante viagem

de evocarão na consciência e nos sentimentos, prazeres obscuros, de

celebração de uma memória cinéfila ilimitada e de descoberta de tudo e

de nada. O tempo e o espaço são únicos e irrepetíveis e vibram

permanentemente nas imagens deste sonho de cinema. Se para uns essa

viagem corresponde a uma revisitação nostálgica de um tempo vivido,

para outros - das gerações mais novas - esse rewind temporal personifica

a nostalgia impossível do que não foi, de um espaço e de um tempo

consumido antes que pudesse ser provado. Mas, para uns e para outros,

essa nostalgia latente é irresistível e indeclinável: as próprias personagens

já a carregam antes de a viverem. É como se elas próprias, ao viverem o

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presente de uma época extraordinária, estivessem já intimamente a viver

o princípio de um passado. Urgia viver, experimentar, amar, sonhar...

Sonhar: o título que o filme tão bem ostenta é a tradução perfeita para

duas horas de cinema de hoje com vibrações de um cinema de outros

tempos.

Com ‘Os Sonhadores’, Bertolucci quis mostrar aos jovens de hoje um

tempo em que o futuro ainda era algo de positivo. Talvez por causa

dessa nostalgia em relação a um tempo em que ainda se acreditava na

revolução dos ideais, este filme tenha sido tão atacado por saudosismo

esquerdista ou por epítetos mais desconexos ainda.”

Esse “espectador crítico” transita com facilidade pela trama ficcional,

estabelecendo paralelos, relações, enfim, demonstrando possuir conhecimento

teórico que contribui para uma maior produção de sentido.

Como verificamos, a divisão presente entre os críticos também se fez

sentir na recepção com ênfase no fato do filme contemplar muito mais as cenas

de transgressão sexual dentro do apartamento do que as referentes à revolução

que acontecia nas ruas de Paris. E também pela produção de sentido que oscila

conforme o repertório cultural imagético.

A montagem tem um significado realista quando os fragmentos isolados

produzem, em justaposição, o quadro geral, a síntese do tema. Nesse caso, ao

submeter o tema ao processo criativo, como visto em Os Sonhadores, Bertolucci

comprometeu a síntese, exigindo maior esforço do espectador para estabelecer

uma relação de sentido.

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Ao fazer uso, de forma original, da metalinguagem com jogos

desenvolvidos pelos protagonistas em uma trama sensual e ousada, perpassa o

universo dos três protagonistas e representa como fundo a História do Cinema e

seu envolvimento com as questões sociais.

Dessa forma, o próprio cinema é uma das personagens do plano fílmico; é

ao mesmo tempo um fim e um meio. Pela metalinguagem é proposto um jogo de

construção e reflexão sobre o tema do filme, sobre o cinema e sua história,

aprimorando o repertório do público, o que leva ao reconhecimento do próprio

discurso cinematográfico.57 No filme Os Sonhadores a metalinguagem, além de

funcionar como um código de auto-referencialidade e de auto-reflexão, é também

um meio de homenagear aqueles que participaram da história do cinema,

aperfeiçoando suas técnicas e linguagens por intermédio da transgressão contida

nos movimentos de vanguarda e no processo criativo.

Apresentaremos, como uma contribuição, os filmes que conseguimos

identificar na função metalingüística do filme Os Sonhadores, com a consciência de

que outros filmes, apresentados de forma sutil, não foram percebidos.58

Embora sem explicitar, mas em uma auto-

homenagem, o filme Os Sonhadores é iniciado de forma muito

semelhante ao filme Antes da Revolução. É inevitável a

comparação. Um rapaz louro, jovem, vestido com calças

57 O tipo de jogo proposto nesse filme era usual entre os cinéfilos na década de 60. 58 Há referências também ao filme The Cameran -O homem das novidades,1929 de Buster Keaton e The Girl Cant Help it,1956, Frank Fashlin.

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justas, paletó, gravata, cabelos levemente compridos, caminha pela ponte do Rio

Sena em direção ao Palácio de Chaillot. No porão funciona a cinémathèque

francaise. Uma voz, a do próprio personagem, narra: “A primeira vez que eu vi um

filme na cinémathèque pensei: só os franceses, só os franceses para colocar um cinema dentro de

um palácio. Eu tinha 20 anos e na década de 60 estava passando um ano em Paris para

aprender francês. Mas foi aqui que eu recebi minha verdadeira educação. Eu me tornei um

membro de uma espécie de maçonaria do cinema. Mas teve uma noite, na Primavera de 68, em

que o mundo explodiu através da tela”.

A narrativa aponta um personagem-narrador: Mattew, assim como o filme

Antes da Revolução apontava Fabrizio. Aqui há uma unidade de espaço: Paris e

uma unidade de tempo, a primavera de 68. No outro filme pontua-se a unidade

de espaço: Parma e a unidade de tempo, abril de 1962. Em ambos os filmes há

jovens burgueses descobrindo a sexualidade e a ideologia de esquerda. O

burguês de Parma filia-se ao Partido Comunista Italiano, o burguês de Paris

acredita na Revolução Cultural.

Neste filme a manifestação acontece no Parque de Chaillot; em Parma, os

preparativos para a festa Della Unitá acontecem no Parque Ducalle. Os dois

filmes, além da função metalingüística tratando de filmes europeus e americanos,

remetem à Marilyn Monroe. Na Itália fala-se sobre sua morte, em Paris ela

empunha a bandeira da liberdade em um quadro representando a Tomada de

Bastilha. Nos dois filmes há um triângulo amoroso, relação incestuosa e uma

personagem feminina forte e transgressora: Gina, naquele filme e Isabelle neste.

A utopia de um mundo melhor, sustentada na ideologia de esquerda, faz parte da

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trama ficcional dos dois filmes, os quais trazem imagens e idéias direcionadas

para a mudança de mundo e municiam com informação esse desejo.

As cenas do filme Paixões que alucinam (Shock Corridor no original -1963),

do diretor americano Samuel Fuller, são apresentadas como imagens poderosas

e hipnotizadoras conforme diz Matthew.

O filme conta a história de um jornalista que tem por objetivo

ganhar o prêmio Pulitzer. Para tal pretende solucionar um

assassinato cometido em um hospício e presenciado por três

internos, dos quais a polícia não conseguiu tirar nenhuma

informação. Com o apoio de um psiquiatra amigo ele se faz

passar por insano e é internado no hospício com o intuito de desvendar o

mistério. No elenco assistimos Peter Breck como o jornalista Johnny Barret,

Constance Towers (Cathy), Gene Evans (Boden) e James Best (Stuart), entre

outros.

Por que a escolha desse filme, uma parábola sobre jornalismo, psicanálise

e loucura, em uma alegoria agressiva à sociedade norte-americana, perdida, nos

anos 60, entre a Guerra Fria e onda de racismo? Além da explícita homenagem

prestada ao diretor, alguns quesitos podem ter influenciado na escolha: a

transgressão do diretor ao tratar de assunto polêmico, o tema anos sessenta, a

complexa subjetividade - os sentimentos, emoções, percepções - dos doentes

mentais, os “tênues” limites da “normalidade”, a exposição do lado sombrio da

alma humana, a crítica social, o uso de recursos cinematográficos criativos e de

valor estético fino. Assim como ocorreu com O último tango em Paris, com La Luna

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e com o próprio Os Sonhadores, o conteúdo do filme também foi considerado

“imoral” para sua época. Alguns recursos e técnicas utilizados por Samuel Fuller

também estão presentes em Os Sonhadores, como a inserção de cenas em preto e

branco, montagem fragmentada, não desconsiderando que o comportamento

licencioso dos jovens protagonistas também esbarra nos limites do que se

considera “normalidade” na sociedade contemporânea. Paixões que alucinam, como

os filmes de Bertolucci aqui citados, é um filme transgressor e portador do sonho

de um possível futuro mais justo. A reapresentação das cenas poderosas do filme

Paixões que alucinam deu visibilidade a esse diretor que sempre procurou inovar na

a linguagem cinematográfica, incluindo seu nome no rol dos que consolidaram a

revolução estética do cinema nos anos 60.

Na parede da cinémathèque, atrás das grades onde

Isabelle simula estar, aparece o cartaz do filme Amère

Victoire (1957) traduzido como Amargo Triunfo, do

diretor Nicholas Ray. Esse diretor permeou a discussão entre os dois jovens

adolescentes protagonistas do filme Os Sonhadores, que somente divergiam em

relação ao filme do diretor que mais gostavam, mas reconheciam, assim como

Godard, sua importância na história e no desenvolvimento da estética do cinema.

Com roteiro de Paul Galico, o filme foi baseado no romance de René Hardye e

conta no elenco com: Richard Burton, Curd Jurgens, Ruth Roman. As marcas

distintivas do diretor são fortes: heróis frágeis, palpáveis, que tentam sobreviver

em um mundo cuja chave de decifração eles não detêm. Os jovens críticos da

revista Cahiers du Cinéma o classificaram como o mais importante cineasta do pós-

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guerra e, considerando-se a importância que esses críticos tiveram na formação

do jovem diretor Bertolucci, percebe-se, por meio das citações intertextuais, que

essa idéia é corroborada por ele. Dentre seus filmes, Juventude Transviada, com

James Dean (1955), é um dos mais populares.

Godard, uma das mais fortes influências na formação dos cineastas da

atualidade, tanto por sua atuação como crítico e como teórico, pontua diversas

falas das personagens de Os Sonhadores. A referência, segundo o diretor,

acontece na fala de identificação de Isabelle ao dizer que nasceu falando: “New

York, Herald Tribune”, uma frase dita pela personagem de Acossado.

Acossado (À bout de souffle no original) foi realizado no

outono de 1959 nas ruas de Paris, a partir de um

argumento de Truffaut. Godard o realizou no

esquema de produção de um estúdio independente,

ou seja, nas ruas, com equipamento leve e luz natural. Esse filme de matriz “noir”

foi um grande sucesso de bilheteria e funcionou como catalisador da Nouvelle

Vague porque levou à prática a estética proclamada nos escritos dos Cahiers du

Cinemá.

O filme conta a história de Michel Poiccard, um jovem “cafajeste”, como se

auto-denomina, que rouba o automóvel de um casal de militares norte-

americanos com a cumplicidade de uma jovem que lhe dá a dica. É a jovem

americana que anuncia pelas ruas o jornal “New York, Herald Tribune”.

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Com a jovem, cujo nome é Patrícia, Michel deseja fugir para

a Itália, país que assume no filme o papel da última fronteira

do universo dos valores morais, sociais e culturais, dos quais

ele quer se desgarrar, ou seja, valores de vaga utopia.

Michel, impensadamente, mata um policial. Desconsiderando

as convenções formais da arte de fazer um filme, nesse seu primeiro longa-

metragem, Godard apresenta uma narrativa fragmentada e, valendo-se da

mobilidade fácil das câmeras, bem como da possibilidade de trabalhar com pouca

luz, conseguiu uma grande espontaneidade no trabalho de câmera e dos próprios

atores, com destaque para seus famosos “plano-seqüência”. As cenas entre

Michel (Jean Paul Belmondo) e Patrícia (Jean Seberg) fluem com uma delicadeza

e verdade bastante interessantes, especialmente quando se contrapõem com as

coisas mais absurdas que suas personagens dizem. Nesse filme Godard também

faz uso da metalinguagem, referindo-se ao cinema com algumas participações

especiais, como a do conhecido diretor Jean-Pierre Melville, que interpreta uma

celebridade; Daniel Boulanger aparece como um inspetor de polícia; o próprio

Godard como um informante e, ainda, Truffaut e Chabrol em pequenos papéis.

Há também evocações a respeito do filme The Lady from Shangai (1948) de Orson

Welles. Godard e Truffaut são emblemáticos no impulso e na imaginação utópica

de toda geração da Nouvelle Vague 59.

Rainha Cristina (1933) também foi reapresentada em Os Sonhadores. É um

filme do diretor Rouben Maumolian com a atriz Greta Garbo, que aparece no

filme de Bertolucci como participante do elenco. É considerado um dos melhores

59 Truffaut, François, crítico e diretor de cinema, também é homenageado no filme com o tema musical de Quatre cent coups (Os incompreendidos).

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filmes da atriz, que interpreta a célebre rainha sueca. No século XVII, Cristina é

ainda uma criança quando é coroada rainha, depois da morte de seu pai. O

reinado é tranqüilo e tão liberal quanto o comportamento da moça que, como

manda o cargo, deve se casar. E para descobrir as reais intenções de um

pretendente, o embaixador espanhol Antonio, ela se disfarça de homem e vai ao

encontro dele na Espanha e os dois acabam vivendo uma paixão intensa. Com

a escolha desse filme presta-se dupla homenagem: ao diretor e a atriz, que faz

par com John Gilbert. Para o público, de um modo geral, foi uma ótima

oportunidade de conferir uma minúscula parte do trabalho dessa atriz que se

tornou um mito. É um filme em que a marca da transgressão está presente no

ousado comportamento da futura rainha.

Motivo de longas discussões entre Matthew e Théo, em que

é comparado a Keaton, Charles Chaplin é recordado com as

imagens de Luzes da Cidade (City Lights no original). Uma

comédia com 87 minutos de duração lançada em 1931 pelo

Estúdio Charles Chaplin Productions com direção, roteiro,

produção e edição de Charles Chaplin. A música é de Chaplin e José Padilha.

Chaplin protagoniza o vagabundo e Virginia Cherril a florista cega. Uma das

grandes obras-primas da sétima arte, Luzes da Cidade é também uma das mais

belas histórias de amor do cinema, e foi o primeiro filme de Chaplin após o

advento do cinema sonoro. Mesmo assim, ele fez o filme mudo como protesto.

No filme, Carlitos (Chaplin) se apaixona por uma florista cega, que pensa que ele

é rico. E ele vai tentar de todas as maneiras ajudar sua amada a se curar da

cegueira. Para isso, fica amigo de um milionário alcoólatra, entra numa luta de

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boxe, é preso, enfim, se mete em várias trapalhadas. A magia desta história

fascina até hoje, e Chaplin se doa completamente ao seu personagem,

mostrando todo seu talento e genialidade com um roteiro maravilhoso, que cria

cenas inesquecíveis como a cena final, quando Carlitos reencontra sua amada e

ela consegue enxergá-lo. Essa cena é comentada por Théo ao argumentar que

vemos Chaplin como se o víssemos pela primeira vez, por meio dos olhos da

florista.

Em relação a esse filme, é latente a questão da recepção, o uso de

técnicas cinematográficas e a própria história do cinema. O público cinéfilo sabe

que Chaplin filmou 342 vezes essa cena para atingir um estado que possibilitasse

ao espectador a percepção de “ver o vagabundo” da mesma forma que a atriz,

que o via pela primeira vez. Esse filme também marca o tempo do advento do

cinema sonoro. A respeito da resistência de Chaplin em aceitar a sonoridade do

cinema Antonio COSTA escreve: ”O aparecimento do cinema sonoro implicou

uma verdadeira revolução não só na estética do filme, mas principalmente nas

técnicas de produção e nos níveis econômicos da indústria cinematográfica. É

compreensível que os cineastas que tinham feito da ausência da palavra e do

som o princípio estrutural da expressão fílmica, tenham resistido a tais inovações:

foi o caso de Chaplin”.

Nos jogos cinestésicos, Matthew deveria associar uma

representação dos irmãos a um filme, e este elucidou

rapidamente O Picolino (1935). O musical, baseado em peça de

Alexander Faragó e Aladar Laszlo, cujo título original é Top Hat,

recebeu quatro indicações para o Oscar. A história se passa em

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Londres. O dançarino americano Jerry Travers (Fred Astaire), está ensaiando um

número de sapateado em seu quarto de hotel e, com o barulho do sapateado,

acaba incomodando a hóspede do quarto de baixo, Dale Tremont (Ginger

Rogers), que aparece para reclamar. Jerry fica apaixonado e, aos poucos,

começa a conquistá-la. Referência do sapateado no cinema, Fred Astaire e

Ginger Rogers realizaram mais de dez filmes juntos e este é considerado um dos

melhores. Normalmente os filmes musicais abordavam os bastidores da

montagem de um espetáculo. Neste também ocorre a situação do ensaio do

espetáculo. Assim, o musical é uma obra didática que dá ao público as regras da

sua produção. As cenas musicais de Ginger e Fred são perfeitamente

sincronizadas e precisas, um verdadeiro deleite para aqueles que apreciam os

bons musicais, um gênero que conta com uma platéia mais restrita e apaixonada,

e que só funciona integralmente quando o público se entrega ao “estado do

cinema”.60 O gênero musical, que já foi muito popular, hoje agrada a um público

restrito, mas ao ser apresentado em metalinguagem provoca uma interatividade

imaginária no receptor.

A realidade copiando a ficção: correr no Museu Louvre

como fizeram os protagonistas, Odile, Franz e Arthur, de

Bande à Part, foi a proposta feita por Théo e Isabelle a

Matthew. No filme de Godard, mais do que qualquer outro,

as personagens vivem correndo. Adaptado do romance

policial americano Fool’s Gold, Bande à Part acompanha as peripécias de uma

60 Estado de cinema: terminologia utilizada pelo psicólogo alemão Hugo Mauerhoff para referir-se a condição de uma pessoa em uma sala escura, vendo imagens surgirem sem uma cronologia real, em estado muito parecido com o sonho.É um estado entre a vigília e a inconsciência em que se observa ávida alheia com a segurança do anonimato.

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moça e dois rapazes que, enquanto flertam entre si, preparam um grande golpe

cujas conseqüências pouco a pouco se anunciam como trágicas. Os Sonhadores

reúne algumas das seqüências mais famosas da filmografia de Godard, como a

corrida pelas salas do Museu do Louvre, em Paris (França). Transgressão e

sonho estão simbolizados nessa corrida pelo Louvre.

A saída do Louvre, após bater o recorde de Bande à Part, os

dois irmãos abraçam Matthew e cantam: “nós os aceitamos,

um de nós”. Enquanto caminham são apresentadas as

cenas em que as personagens de Freaks (1932) entoam

esse mesmo refrão. Sob a direção de Tod Browning, Freaks

é um clássico cult que abalou a sociedade da época, e somente após 30 anos, na

década de 60, é posto à mostra no mundo todo em exibições de festivais

amadores. O motivo de tanta polêmica e rejeição está na essência da trama, nas

críticas e nos personagens atípicos. Em Freaks, o diretor cria um elenco de

pessoas realmente deficientes físicas, as indelicadamente chamadas de

“aberrações”. Há no máximo cinco atores que não possuem deficiência. O resto

do elenco é composto por anões, um homem sem braços nem pernas e tudo

mais que se consiga imaginar. A crítica do filme é gritante, bem explícita. Tod

Browning mostra com clareza o que existia e que ainda hoje existe. Exibe a

relação entre os chamados “normais” e os chamados “anormais”. Uma relação de

preconceito, gozações, ofensas, exclusão social e medo. Entretanto, o filme

mostra que as “figuras grotescas” são portadoras de amor, alegria, prazer,

bondade, enquanto os ditos “normais” exibem, por dentro da tal “perfeição física”,

sentimentos primitivos, ganância, ódio, maldade, preconceito.

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Filmado em 1932 pelo diretor Josef von Sternberg, e com o

título original Blonde Vênus, a Vênus Loira também é

reapresentada em Os sonhadores quando Isabelle canta e

dança, imitando coristas. Théo, mesmo sendo um cinéfilo,

não reconhece a cena do filme que conta com elenco de

primeira grandeza: Cary Grant e Marlene Dietrich nos papéis principais, seguidos

de Herbert Marshall, Dickie Moore, Gene Morgan, Rita La Roy. Uma linda mulher

é obrigada a voltar a cantar em um cabaré para conseguir pagar o tratamento do

marido doente. Um milionário apaixona-se por ela e lhe dá a quantia necessária

para cuidar da saúde do esposo. Curioso folhetim que mistura melodrama e

sensualidade e explora o tema adultério de uma forma muito inteligente. Esta

produção apresenta cenas muito ousadas para a época como, por exemplo, a

seqüência em que Marlene canta Hot Voodoo fantasiada de gorila. É ela, aliás, a

grande razão de ser do filme, já que o roteiro, os diálogos, a iluminação e todos

os cuidados estão voltados para ela, que é vista e lembrada como a grande diva.

Enquanto jogavam gamão, Theo simula um ataque e cai ao

chão gritando: “advinhem o filme em que uma cruz marca o

lugar do crime”. Falava sobre Scarface, título original do filme

de Brian de Palma, com roteiro de Oliver Stone e produção

de Martin Bregman, lançado em 1983 pela Universal

Pictures. Os atores principais são Al Paccino (Tony Montana) e Michelle Pfeiffer

(Elvira Hancock). Trabalham também: Steven Bauer, Mary Elizabeth

Mastrantonio, Robert Loggia, Miriam Colon, entre outros. Conta a história de um

criminoso cubano exilado (Al Pacino) que vai para Miami e em pouco tempo está

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trabalhando para um chefão das drogas. Sua ascensão na quadrilha é meteórica,

mas quando ele começa a sentir interesse pela amante do chefe (Michelle

Pfeiffer) este manda matá-lo. No entanto, escapa do atentado, mata o mandante

do crime, fica com a amante - mas simultaneamente sente desejos incestuosos

por sua irmã (Mary Elizabeth Mastrantonio) - e assume o controle da quadrilha.

Em pouco tempo ganha mais dinheiro do que jamais sonhou. Mas está na mira

dos agentes federais, que o pegam "trocando" dinheiro. Seu problema pode ser

resolvido se fizer um "serviço" em Nova York para um grande traficante e

pessoas influentes, que podem manipular o poder para ajudá-lo. O filme trata de

temas recorrentes na filmografia de Bertolucci como a questão ideológica (exilado

cubano) e o incesto que, como já vimos, é uma forma emblemática de

transgressão.

Ao perceber-se “descoberta” pelos pais no jogo erótico com o irmão e o

amigo, Isabelle, se inspira no filme Mouchette, a virgem possuída (1967), e liga a

mangueira de gás com o objetivo de causar a morte dos três. Mouchette é um filme

em preto e branco dirigido por Robert Bresson e tem como atores: J.C. Guilbert,

Maria Cardinal, Nadine Nortier, Paul Hebert.

O filme conta a história de uma menina solitária que é

violentada por um caçador. É uma menina sem perspectiva,

em uma realidade de extrema violência. Por um lado, há a

ausência de qualquer sentimento materno em todas as

mulheres que surgem ao longo da narrativa. Por outro lado, a

onipresença masculina, que se verifica no rigor da aplicação da Lei, se omite em

proporcionar carinho. Indiferença, crueldade e injustiça são magistralmente

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retratadas no filme. Arsène, um jovem, estupra ou parece estuprar Mouchette,

adolescente despertando para a sexualidade, que confessa ter se interessado

pelo rapaz no parque de diversões. Uma série de enigmas e suspeitas compõem

a trama.Não há perspectiva para Mouchette. Seu mundo é a própria distopia,

lugar da perversão.Fugindo das vicissitudes da vida, ela brinca como uma

criança, rolando pelo gramado em declive. Nesse constante descer e subir,

carregando não as pedras, mas o peso de sua falta de esperança, tal como o

mito de Sissifo, Mouchette cai na água ao encontro da morte. O filme, feito com o

uso de poucos recursos técnicos, utilização do discurso indireto livre,

fragmentação do espaço, com trilha sonora composta mais de ruídos do que de

música, marca o estilo bressoniano.

Por ser extremamente referencial ao próprio cinema, Os Sonhadores pode

ser considerado, como se dizia na década passada, pós-moderno. Um cinema

repleto de citações de outros filmes e cineastas, com reprodução de cenas,

personagens similares, reutilização de trilhas sonoras, imbricamento visual de

histórias paralelas, que permite análises contraditórias. De um lado, amplia o

repertório do espectador atual e o instiga a respeito de uma filmografia anterior

que ele não conheceu, permitindo-lhe acompanhar a história do cinema que lhe

era desconhecida. Por outro lado, restringe o sentido para esses mesmos

espectadores porque algumas cenas remetem a filmes conhecidos apenas em

círculos muitos restritos61.

O espectador mais crítico, capaz de reconhecer o código, consegue maior

interatividade com a narrativa, cria maior empatia no o processo de projeção- 61 Reconhecemos 12 filmes apresentados por meio da metalinguagem, mas certamente não esgotamos todo o elenco de filmes ao qual Bertolucci remete implícita ou explicitamente.

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identificação, o que lhe permite apreciar “a construção” do jogo narrativo.

Voltamos aqui à fala de Matthew referindo-se ao fato de Langlois exibir todo tipo

de filme, o que contribuiu para a formação dos cineastas contemporâneos e de

uma geração de cinéfilos. Esse ecletismo e paixão atingiram não só os franceses,

mas se expandiu pela Europa e pelas Américas, e fez da década de 60 aquela

que propiciou o advento da civilização da imagem e da revolução estética do

cinema. Uma outra leitura possível para um filme como Os Sonhadores, que utiliza

demasiadamente a metalinguagem, é apontada por alguns cinéfilos como um

filme com extensos vácuos de criatividade” que são dessa forma preenchidos.

O filme Os Sonhadores, emblemático do cinema de Bernardo Bertolucci, traz

na sua temática motivos importantes para entendimento da realidade social de

um período no qual nasceu a revolução estética promovida pelo cinema. Sendo

uma produção relativamente recente, ela sintetiza as preocupações com as

teorias do cinema e do reflexo que este exerce sobre as novas gerações de

receptores, aos quais é possibilitado ver a representação do passado feita por

quem não somente viveu naquele tempo, como também a experiência de fazer

cinema na época.

Com a função metalingüística por meio da qual o cinema refere-se a si

mesmo e reflete sobre si e, no uso de tal recurso promove uma interatividade

imaginária entre o cinema e espectador, quando chama a atenção mais para a

forma como a trama é narrada, tornando o modo de narração tão interessante

quanto a própria trama, Os Sonhadores é motivo de destaque pela originalidade e

ousadia de sua produção. Na função metalingüística o cinema revisita seu próprio

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código e referenda o passado, prestando homenagem àqueles que sonharam

com a “utopia” do cinema.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um dia, em 2004, ao ler em um jornal uma entrevista com o diretor

Bernardo Bertolucci no qual falava sobre o seu filme Os Sonhadores, uma frase,

que hoje resulta no epígrafe da introdução deste trabalho, em que ele falava que

sem utopia não há esperança e sem esperança não há futuro, atraiu nossa

atenção.

Após o lançamento do filme, que aconteceu alguns meses depois,

começamos a busca por críticas e resenhas, pois o tema nos parecia

fascinante.Surgiu assim o interesse pela pesquisa que no projeto apresentado

para seleção de alunos recebeu o título de Cinema: o berço das utopias. No decorrer

dos estudos o tema revelou-se muito amplo e de difícil sustentação sendo

substituído por Cinema: berço das utopias estético-eróticas e, posteriormente sentimos a

necessidade de estabelecer limites mais precisos, o que resultou em especificar

a escolha do cinema de Bernardo Bertolucci.

Para apresentação no processo de qualificação, a pesquisa foi

apresentada como Jovens sonhadores de utopias no cinema de Bernardo

Bertolucci.Algumas considerações da banca levaram-nos a excluir a categoria

“jovem” do título que, a partir de então, passou a ser Sonhadores de Utopias no

cinema de Bernardo Bertolucci e com esse título pretendemos sintetizar o conteúdo

desta dissertação ao colocar os sonhadores como protagonistas de uma narrativa

cinematográfica engajada nas questões sociais ressaltadas no cinema de

Bertolucci.

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Para isso consideramos “sonhadores” aqueles que permitem o surgimento

das potencialidades utópicas do ser, que abrem as portas à chegada de uma

nova sociedade que, segundo Bloch, assim como a juventude se encontra no

limiar de uma vida não vivida até agora. .

A repercussão do filme na mídia não foi consensual por isso ver e rever o

filme, ler as críticas na mídia impressa, visitar sites e blogs, assistir outros filmes

desse diretor buscando um melhor entendimento do desejo desse cineasta,

acontecia concomitantemente as pesquisas sobre a evolução do conceito de

utopia.

Muitas foram as concepções e as interpretações encontradas para esse

conceito. No começo do século XVI, o advento da modernidade implicou em novas

leituras de mundo, da sociedade e do homem.Foi nesse contexto que Thomas

More escreveu o livro Utopia, dando nome a um desejo, uma esperança de algo,

de um mundo melhor que sempre esteve presente no imaginário das sociedades,

desde as relatadas no Antigo Testamento.

Em seu livro, More refere-se a um topos fora do tempo e do espaço, mas

que, paradoxalmente, está em constante diálogo com o espaço e o tempo da

realidade, postulando-se criticamente em relação a situação social da Inglaterra de

então quando, devido ao cerceamento das terras comunais, muitos camponeses

fugiram para as cidades na esperança de aplacar a fome e à procura de trabalho.

. O livro Utopia resulta simultaneamente numa crítica à situação da

Inglaterra, um modelo de sociedade da época e na descrição de uma sociedade

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idealmente construída, livre de todos os problemas vividos pelos ingleses os quais

são identificados no inicio do livro.

A história da civilização, em seu processo contínuo, sofreu constantes e

abruptas transformações as quais são lembradas por uma seleção de idéias e

imagens que se instituem como marcos sociais da memória coletiva.Em todas

essas mudanças os paradigmas utópicos também sofreram transformações

apresentando-se como uma alternativa a ordem vigente ou a uma ideologia.

A imaginação utópica conduziu a construções racionais de mundos

perfeitos, políticos, religiosos - quiliásticos, milenares - alcançando no início do

século passado a mentalidade socialista-comunista. Chegamos, então, a junção do

pensamento sociológico de Karl Mannheim e de Ernst Bloch, um referencial nos

estudos sobre utopia que em uma perspectiva uma filosofia neomarxista do futuro

desenvolve a fenomenologia da consciência antecipadora que utilizamos como a

primeira categoria de análise do filme Os Sonhadores.

Com Bloch, entendemos que o ser humano sempre foi impulsionado por um

“ainda não” fenômeno que tem por característica estabelecer uma ponte entre “o

que é” e “o que ainda não é”.

Do pensamento de Mannheiem extraímos a categoria transgressão, que

juntamente com a categoria que inferimos, - a estética da utopia-, foram aplicadas

ao filme Os Sonhadores, selando a relação da modernidade com o surgimento dos

meios de comunicação social.

Encontramos um singular diferencial entre utopia e ideologia: embora sejam

incongruentes a uma dada realidade somente as utopias são capazes de romper

com essa ordem social estabelecida.Essa ruptura pode ter ocorrido quando os

“sonhadores” que protagonizaram a Primavera de 68 proclamaram mudanças na

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ordem comportamental e abalaram a ordem política dando inicio, a um novo

tempo: a pós-modernidade.

Assim entendemos que as manifestações do pensamento utópico ao longo

da História repercutiram em uma progressiva complexidade desse fenômeno e, na

década de 60, conjunturas especificas, despertaram sonhos que reconhecemos

como utópicos e que Bernardo Bertolucci os representa em seus filmes. Dentre os

muitos filmes desse diretor escolhemos, para análise/decupagem, três que tratam

da Primavera de 68: Antes da Revolução, Beleza Roubada e Os Sonhadores, sendo o

primeiro uma prefiguração desse movimento, o segundo a representação do tempo

posterior ao fato e o terceiro uma representação poética da revolução.

A estrutura resultante apresentada neste trabalho contemplou a utopia e o

cinema na modernidade, - esta entendida mais como um conjunto de experiências

do que por um tempo demarcado -, a descrição e analise de três filmes, a vigência

da utopia no cinema de Bertolucci e a sua insistência em resgatar o passado

histórico do cinema como uma revolução estética.

Essa revolução estética foi representada no filme Os Sonhadores em debates

sobre a tradição e o moderno, sobre o cinema europeu e o cinema americano que

permearam os diálogos estabelecidos pelos três jovens personagens.Também as

correntes estéticas do cinema, foram contempladas neste trabalho em que foi

apresentada uma pretensa dualidade entre Lumiére, representando a objetividade

da invenção cinematográfica e Méliès/Delluc representando os feitos que o invento

é capaz de produzir, de forma latente aparece em Os Sonhadores na metalinguagem.

Essa dualidade parece-nos, encontrou nos filmes de Bertolucci o seu ponto de

fusão.

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Os movimentos de vanguarda, em especial o neo-realismo italiano e a

nouvelle vague francesa, tiveram forte influência na formação do cineasta Bernardo

Bertolucci e, seus vestígios, podem ser rastreados em toda sua obra assim como

alguns temas recorrentes: política, ideologia, incesto, questões de identidade,

muitas vezes ligadas alegoricamente à história da Itália e ao próprio cinema.

Também no cinema, visto como um aparelho reprodutor do imaginário com

capacidade de representar a apropriação do tempo em favor dos sonhos, a

dialética entre pulsão e censura, que tem na teoria freudiana a sua principal

possibilidade de interpretação, se faz presente.

Reflexões sobre o imaginário foram pertinentes para compreensão do que

foi, do que é a história e do sentido do agir humano a partir das imagens

provenientes da interação filme - espectador.

Nesse sentido, consideramos os temas recorrentes no conjunto da obra de

um diretor como fundamentais para a sua classificação em um ou mais gêneros,

como ocorreu com Bertolucci, e ousamos enquadrar seu cinema não só como de

arte, mas também como um cinema político e transgressor. Por esses fatores,

acreditamos que uma análise estética e social precisa compreender o filme, com

suas qualidades e seus defeitos, como uma reunião de evidências de um

momento, as quais puderam ser verificadas nos filmes representados nos jogos

inseridos na narrativa e na função metalingüísticas.

Ao analisarmos os filmes de Bertolucci, as potencialidades do olhar

registradas nos filmes, a predileção por determinados temas e por determinados

recursos, a intenção vista através das imagens, e não nas imagens, deixa como

resultante a persistência de um passado recente submetido a outra temporalidade

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que, através de um complexo jogo de recursos plásticos, -entendidos como luz,

forma, cor,enquadramento,velocidade – conduz à representação poética.

Reconhecemos que nenhuma interpretação esgota-se, pois sempre é

possível criar novos sentidos, mas ao concluir esta dissertação podemos assumir

que o cinema de Bernardo Bertolucci, com seu caráter prefigurativo e pela sua

força como meio de comunicação social na contemporaneidade, exerce sua função

utópica na construção do imaginário cultural, especialmente nas poeticamente

relacionadas ao movimento da Primavera de 68. Por isso, acreditamos que se as

utopias políticas estão em decadência, as utopias nascidas nos sonhos diurnos, na

consciência antecipadora continuam vigentes numa estética utópica em vigor no

cinema, conforme tentamos demonstrar com este trabalho.

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ANEXO I

Sinopses dos filmes de Bernardo Bertolucci em ordem cronológica.

Relembramos que, em decorrência da escassez de material disponível, alguns

filmes não formam encontrados e, por isso, serão apenas citados.

• LA TELEFONICA (1959)

Primeiro curta-metragem, geralmente não aparece em sua filmografia.

• LA MORTE DEL PORCO (1960)

Curta-metragem.

• LA COMMARE SECA - A morte (1961)

Roteiro: Pier Paolo Pasolini.

Elenco:Giancarlo De Rosa, Vincenzo Ciccora, Gabriella Giogelli, Wanda Rocci,

Alan Midgette.

O filme, seu primeiro longa-metragem, trata de uma prostituta (Wanda

Rocci) não muito jovem encontrada morta à margem do Rio Tevere, em um

parque romano. A polícia começa a interrogar todas as pessoas que estiveram

perto do local do crime. Os suspeitos são cinco: um cafetão, dois garotos prontos

a extorquir dinheiro de um homossexual, um pequeno ladrão que surpreende as

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vítimas em pleno ato sexual e um soldado sulista, flanando62 pela cidade. São

indiciados e todos aparentam ter algo a esconder. A narrativa do filme é

apresentada no relato forjado dos suspeitos aos quais se contrapõem em

flashback o verdadeiro itinerário dos investigados. É um filme sobre a natureza

da verdade e o processo de memória. O diretor fala, em making off, que é um

filme sobre a simples passagem do tempo e, embora tivesse filmado com a

câmera em constante movimento para se distanciar do modelo Pasolini, o filme é

considerado como pertencente a esse estilo.

• THE GRIM REAPER (1962)

• .LA VIE DEL PETROLIO (1965)

Filme para a TV.

• IL CANALE (1966)

Documentário para a Shell.

• PRIMA DELLA RIVOLUZIONE - Antes da Revolução (1964)

62 Flanando: refere-se ao caminhar do flâneur, figura cantada por Baudelaire no século XIX e reapropriada por Walter Benjamin. É aquele que perambula pelas ruas da cidade como se fizesse a sua leitura, encantando-se com a floresta de símbolos urbanos. Em seus estudos sobre Baudelaire e a modernidade, Walter Benjamin mostrou como a cidade criou, como tipo, o flâneur. Ele é o detetive da cidade, “detentor de todas as significações urbanas, do saber integral da cidade, do seu perto e do seu longe, do seu presente e do seu passado”. A cidade que o flâneur percorre é a das transformações urbanas que ocorrem no século XIX. (ABREU, J.L.N.in Revista Virtual de Humanidades, n.10, v.5,abr/jun de 2004).

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Esse filme, o segundo longa-metragem, foi analisado no segundo

capítulo.

• O PARTNER (1968)

Elenco principal: Pierre Clementi, Stefania Sandrelli, Tina Aumont, Sergio

Tofano, Giuliocesare Castello.

Terceira direção em longa-metragem, e teve como cenário o mercado de

Trajano, local onde foi encenada a revolução. Foi o primeiro filme italiano com

gravação sincronizada de voz, pois até então a filmagem de cenas ocorria sem o

áudio. É a história de um intelectual italiano, Giacobbe (Pierre Clementi) que,

apesar das idéias, é impotente para liderar uma revolução, fato que se altera ao

encontrar um partner, um sósia, um duplo, que realiza seus objetivos. O Partner

permite o ingresso no mundo simbólico; é o conteúdo latente que se faz

manifesto. Um filme aparentemente abstrato, sobre a contestação fundamentada

nos slogans da Primavera de 68: “é proibido proibir”, “poder à imaginação”. Em

sua narrativa não linear e no estilo visual homenageia a novel vague.

• LOVE AND ANGER - AMORE E RABBIA (1969)

Uma autêntica experiência avant-garde de inspiração libertária de maio de

68. Um filme de Carlo Lizzani que reúne Jean-Luc Godard, Marco Bellocchio,

Bernardo Bertolucci, Pier Paolo Pasolini. Com Nino Castelnuovo, Ninetto Davoli,

Julian Beck, Tom Baker, Marco Bellocchio, Catherine Jourdan. Uma interessante

experimentação lingüística que conta cinco episódios dos Evangelhos narrados

como parábola: A indiferença; Agonia; Flores de papel; O amor; Discutimos,

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discutimos. Curiosamente o filme foi apresentado no XIX Festival di Berlim

(1969) como "Vangelo 70", apenas com o episódio de Valerio Zurlini chamado

Sentado a sua direita.

• O CONFORMISTA (1970)

Elenco principal: Jean-Louis Trintignant e Stefania Sandrelli.

No final dos anos 30, em um quarto de hotel de Paris, Clerici aguarda um

telefonema. Ao atravessar a fronteira entre Itália e França, ele recebe uma arma

para assassinar um velho professor que fugiu da Itália quando os fascistas

subiram ao poder. A partir daí, o filme, em flashbacks, mostra de forma linear a

vida de Marcello Clerici - vivido por Jean-Louis Trintignant. Uma relação

homossexual ocorrida na infância, um assassinato na juventude e a filiação ao

partido de Mussolini conduzem a desintegração psíquica dessa personagem. O

estilo da película, no movimento e no projeto, é simbólico da ascensão e queda

do fascismo. Filmado na Itália e na França, se assemelha à estrutura essencial

de Antes da Revolução e o protagonista é dividido entre o marxismo e o fascismo

conservador.

• A ESTRATÉGIA DA ARANHA (1970)

Elenco principal: Giulio Biogi e Allida Valli.

Athos Magnani retorna a sua cidade natal, Tara, dominada pelos fascistas

de Mussolini, e encontra depredado o monumento que homenageia seu pai. Isso

o leva a se envolver na busca da verdade sobre sua vida e suas idéias. Descobre

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seu pai como um antigo líder da resistência. O mundo que Athos explora é

saturado de mistérios, premonições, ambigüidades e sinais de incipiente loucura.

Descobrir a verdade pode ser a sua utopia. Esse filme, produzido pela RAI -

Radiotelevisione Italiana - joga com uma mistura de passado e presente, com

uma estética enigmática de toques surrealistas, estimulados pela fotografia de

Vittorio Storaro. Incorpora a música de Verdi e a pintura de Magritte.

• LA SALUTE É MALATA - Os pobres morrem primeiro (1971)

O filme, um documentário média-metragem, é uma crítica à atual

sociedade consumista, na qual a desigualdade social nos faz pensar que não só

a capacidade de sonhar, de plasmar o futuro, pode estar comprometida, mas até

saúde, mental e física, é afetada na quebra de vínculos tradicionais e na

consagração de aliança com valores antagônicos.

• 12 DICEMBRE (1971)

Documentário idealizado por Pasolini que entrevista pessoas sobre o dia

12 de dezembro de 1969, quando ocorreu um ato terrorista na Piazza di Fontana.

• O ÚLTIMO TANGO EM PARIS (1972)

Elenco principal: Marlon Brando e Maria Schneider.

O filme tem início com representações das pinturas de Francis Bacon, pois

Bertolucci justifica que levou Brando até uma exposição do pintor e lhe pediu que

fixasse o olhar no quadro por um bom tempo; a tela perdia o naturalismo e se

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tornava a expressão do que se passa nas tripas - ou no inconsciente - do autor.

Deu ao ator a única, ou pelo menos, a principal orientação: que ele criasse

aquela massa de dor63. Paul - um americano que havia lutado boxe, trabalhado

como ator, participado da revolução na América do Sul, atuado como jornalista no

Japão há cinco anos, vivia em Paris, onde se casara com uma jovem proprietária

de hotel que, além dos “hóspedes”, locava quartos para encontros fortuitos de

casais. Ele a encontrou morta em uma banheira com os pulsos cortados por

navalha. Encaminhado o corpo para autópsia, Paul sai caminhando pelas ruas de

Paris. Sua expressão é, sem dúvida, a massa de dor que lhe fora solicitada. Uma

jovem, de aproximadamente 20 anos, passa por ele e se impressiona, mas

continua seu caminho à procura de um apartamento onde pretende morar com

seu noivo. Em um apartamento deteriorado e sujo, disponível para locação, os

dois - Paul e a jovem Jeanne - se encontram e se entregam a um jogo sexual, no

qual extravasam seus temores e angústias. É a estética de um mundo ressentido,

de vidas destroçadas por traições e falsidades, desilusões e crimes.

• LA LUNA ( 1979)

Elenco principal: Jill Clayburgh, Matthew Barry, Alida Valli.

Esta é uma das obras mais polêmicas de Bertolucci. A cantora lírica nova-

iorquina Caterina Silveri, após a morte do marido, viaja com seu filho adolescente

para a Itália e descobre que ele está viciado em heroína. Joe sofre em conflito

com a ausência do pai morto. Nesse filme também se desenvolve o interesse 63 Francis Bacon (1909-1992 ) - pintor irlandês que em suas pinturas, buscava o real, aquele do corpo humano em sua inteireza e mistério. Explorava a realidade interna, regiões desconhecidas do homem. Em sua obra há o desejo de intensificar e quase consumir a presença viva do corpo, quer o dele mesmo, quer o do outro. Para ele a imagem importava mais que a beleza da pintura, por isso infligia ao seu trabalho ofensa e distorção. (in Fundação Bienal htpp://www1.uol.com.br/bienal/)

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recorrente do diretor em quebrar tabus, neste caso, mais uma vez, de uma

relação incestuosa em que a sexualidade é mostrada sem preconceito. A

ambigüidade da relação, a elaboração da estrutura psicológica e emocional das

personagens, torna a história original e distante de qualquer estereótipo. A beleza

da paisagem italiana se insere de modo a ocasionar certo distanciamento do

espectador em relação à identificação com os dramas vividos pelas personagens.

As cenas iniciais são premonitórias do conflito que irá se desenvolver: a mãe e

pai dançando twist, a avó tocando piano e o bebê chorando, sendo o seu choro

abafado pela música. La Luna é uma tragédia dos nossos dias, um filme

polêmico sobre o presente e pensado para incomodar e provocar reflexões.

• A TRAGÉDIA DE UM HOMEM RIDÍCULO (1981)

Elenco Principal: Ugo Tognazzi, Anouk Aimée, Laura Morante, Victor

Cavallo.

É a história de um cidadão que, ao chegar à cidade grande, fica fascinado

com a transformação do líquido em sólido, do leite em queijo. Esse fascínio o

transforma em um grande industrial responsável pela manutenção da economia

do país. Seu filho foi raptado por um grupo de terroristas, e esse é o ponto de

partida para uma narrativa que inverte a busca do filho pelo pai, presente em

alguns dos filmes de Bertolucci. Na tentativa de salvar sua empresa da falência,

após o pedido de dinheiro para pagamento do resgate do filho, o empresário

arma um plano para usar o dinheiro deste resgate e investir na própria fábrica.

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• O ÚLTIMO IMPERADOR (1987)

Elenco Principal: John Lone, Peter O’Toole, Joan Chen.

Nesse épico vemos a trajetória de PuYi, o menino imperador da China,

que aos 3 anos subiu ao trono, ficando trancafiado na Cidade Proibida e

prisioneiro de todo luxo, fausto, obrigações e responsabilidades de um império

em constante ameaça e decadência. Na Cidade Proibida continuou como

prisioneiro dos invasores japoneses, sendo julgado traidor pelos próprios

chineses após a tomada do poder pelos comunistas. O rompimento com a

tradição abre os portões da Cidade Proibida para uma utopia extramuros. E aí,

fora dos muros em que como imperador e como “traidor” fora prisioneiro, PuYi

encontrou forças para reconstruir sua vida, uma vida nova para um homem

comum que se ocupa com flores. Uma obra que foca uma vez mais a questão da

identidade política, com a ironia de que foi imposta a um garoto aos três anos. O

filme foi rodado durante quatro anos na Cidade Proibida em Beijing e foi o

primeiro filme a obter autorização para tal. Transformou-se em uma das obras

mais amadas de Bertolucci. Foi vencedor de nove Oscars e quatro prêmios Globo

de Ouro.

• O CÉU QUE NOS PROTEGE (1990)

Elenco Principal: Debra Winger, John Malkovich.

Baseado no romance de Paul Bowles, para rodar esse filme foi necessário

recriar o norte da África, mais especificamente o deserto de Sahara, em

condições similares a 1947, para se tornar o cenário da história de amor de um

casal de artistas milionários apaixonados. O casal viaja pela África logo após o

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término da segunda guerra mundial, a qual desencadeia a crise do homem na

modernidade. Ambos procuram na viagem a feliz sensação que já sentiram no

casamento, mas que não conseguem identificar e cuja ausência está destruindo

a relação. Um amigo que os acompanha pode ser o terceiro personagem de um

triângulo amoroso. Na viagem, quanto mais adentram no deserto, quanto mais se

buscam, mais se distanciam.

• O PEQUENO BUDA (1993)

Elenco Principal: Keanu Reeves e Brigite Fonda.

Rodado no Nepal e no Himalaia, em 1992, a linguagem do filme o

aproxima das fábulas. Construído como um entrelaçamento entre duas histórias

que terminam por convergir, por um lado, monges saem do Nepal à procura de

três garotos que poderiam ser a reencarnação do lendário e místico Lama Doye.

Por outro lado, em Seattle, o pequeno americano Jesse (Alex Wiesendanger),

filho do arquiteto Dean Conrad e de sua esposa Lisa, é procurado para

confirmação ou não dessa reencarnação. Para tanto, o menino deve ir para o

Butão, o que, a princípio, é negado pelos pais. Entretanto, a morte do sócio do

arquiteto faz com que mudem de idéia e o pai acompanha o filho na viagem. A

narrativa, que traça um paralelo entre a cultura oriental e a ocidental, discutindo o

ceticismo presente no cotidiano moderno, é intercalada com a história do príncipe

Sidarta, que se transforma em Buda.

• ASSÉDIO (1998)

Elenco principal: Thandie Newton e David Thewlis.

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O filme deixa perceber a interpretação afinada do ator e a montagem

ritmada do diretor. Na África, um professor, marido da enfermeira Shandurai, é

preso acusado de propagar idéias subversivas a seus alunos. Receosa das

conseqüências, a enfermeira foge da África, local onde impera o caos político, e

vai morar na Itália. Lá trabalha como empregada do Mr. Kinsky, um excêntrico

compositor e pianista inglês, para custear seus estudos na faculdade de

medicina. O músico, apaixonado pela empregada, silenciosamente passa a

assediá-la com músicas e presentes, ignorando que ela era casada. Quando cria

coragem para declarar seu amor, ela lhe fala sobre seu casamento, a prisão do

marido e lhe suplica que a ajude a libertá-lo. Discretamente, ele estabelece

contato com pessoas da África e, pouco a pouco, vai se desfazendo de seu

mobiliário, dos objetos de arte, até que, por último, se desfaz do piano para

custear um processo de julgamento legal do professor. Ao perceber o que estava

acontecendo, Shandurai fica dividida e a notícia de que seu marido foi solto e

está a caminho da Itália a faz repensar seus sentimentos. É a mesma estrutura

temática de O último tango em Paris: um homem, uma mulher, uma casa. A

diferença está nas nuances. Nesse filme há uma delicada sensualidade, um

erotismo menos óbvio, diferente da sexualidade explosiva e violenta do filme de

1972. Bernardo Bertolucci faz a polarização entre mundos complementares: o do

“conquistado” e o do “conquistador”, e no interstício desses mundos é instalada a

utopia.

• BELEZA ROUBADA ( 1996)

Este filme foi objeto de análise do segundo capítulo.

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• 12 REGISTI PER 12 CITTÀ (1998)

Documentário com participação de Michelangelo Antonioni, Bernardo

Bertolucci, Franco Zeffirelli, Francesco Rosar, apresentando, entre outras, as

cidades de Roma, Bologna, Palermo, Gênova, Cagliari, Verona e Firenzi.

• PARADISO E INFERNO (1999)

• TEN MINUTS OLDER THE CELLO (2002)

Um curta-metragem de episódios, todos eles com dez minutos e o tema

comum da passagem do tempo, filmado em 2002.

• THE DREAMERS - Os Sonhadores (2003)

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ANEXO II

TOUS LES GARÇONS ET LES FILLES

Interprete: Françoise Hardy.

Musique: Françoise Hardy, Roger Samyn [1962]

Tous les garçons et les filles de mon âge

se promènent dans la rue deux par deux

tous les garçons et les filles de mon âge

savent bien ce que c’est d’être heureux

et les yeux dans les yeux et la main dans la main

ils s’en vont amoureux sans peur du lendemain

oui mais moi, je vais seule par les rues, l’âme en peine

oui mais moi, je vais seule, car personne ne m’aime

Mes jours comme mes nuits sont en tous points pareils

sans joies et pleins d’ennuis personne ne murmure “je t’aime”

à mon oreille

Tous les garçons et les filles de mon âge

font ensemble des projets d’avenir

tous les garçons et les filles de mon âge

savent très bien ce qu’aimer veut dire

et les yeux dans les yeux et la main dans la main

ils s’en vont amoureux sans peur du lendemain

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oui mais moi, je vais seule par les rues, l’âme en peine

oui mais moi, je vais seule, car personne ne m’aime

Mes jours comme mes nuits sont en tous points pareils

sans joies et pleins d’ennuis oh! quand donc pour moi brillera le soleil?

Comme les garçons et les filles de mon âge connaîtrais-je

bientôt ce qu’est l’amour?

comme les garçons et les filles de mon âge je me

demande quand viendra le jour

où les yeux dans ses yeux et la main dans sa main

j’aurai le cœur heureux sans peur du lendemain

le jour où je n’aurai plus du tout l’âme en peine

le jour où moi aussi j’aurai quelqu’un qui m’aime

TODOS OS RAPAZES E MOÇAS

Tradução: Alvaro Lorencini

Todos os rapazes e moças da minha idade

Passeiam na rua aos pares

Todos os rapazes e moças da minha idade

Sabem bem o que hão de ser feliz

E olhos nos olhos e de mãos dadas

Eles caminham amorosos sem medo do amanhã

Sim, mas eu, eu caminho sozinha pelas ruas, de alma dolorida

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Sim, mas eu, eu vou sozinha, porque ninguém me ama

Meus dias como minhas noites são em todos os pontos semelhantes

Sem alegrias e plenos de tédio porque ninguém murmura ah eu te amo

Ao meu ouvido

Todos os rapazes e moças da minha idade

Fazem juntos projetos para o futuro

Todos os rapazes e moças da minha idade

Sabem muito bem o que quer dizer amar

E olhos nos olhos e de mãos dadas

Eles caminham amorosos sem medo do amanhã

Sim, mas eu, eu caminho sozinha pelas ruas, de alma dolorida

Sim, mas eu, eu caminho sozinha porque ninguém me ama

Meus dias e noites são iguais em todos os pontos

Sem alegrias e cheios de tédio, oh! Quando o sol brilhará para mim?

Como os rapazes e moças da minha idade, logo conhecerei o que é o amor?

Como os rapazes e moças da minha idade eu me pergunto

Quando chegará o dia em que olhos nos olhos e de mãos dadas

Eu terei o coração feliz sem medo do amanhã

O dia em que não terei mais a alma dolorida

O dia em que também terei alguém que me ama.

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