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Os Ultimo Três dias De Fernado Pessoa - Antonio Tabucchi

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ANTONIO TABUCCHI

OS ÚLTIMOS TRÊS DIAS DE FERNANDO PESSOA. UM DELÍRIO 1/19

Novembro de 1935. Fernando Pessoa encontra-se no seu leito de morte no Hospital de S. Luís dos

Franceses. Três dias de agonia, durante os quais, como num delírio, o grande poeta recebe os seus heterónimos, fala com eles, dita as suas últimas vontades, dialoga com os fantasmas que o acompanharam durante toda a vida.

Uma narração romanceada e ao mesmo tempo biográfica (embora se trate de uma biografia imaginária), em que António Tabucchi evoca, com ternura e paixão, a vida e a morte de um dos maiores escritores do século XX.

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Antonio Tabucchi Os Últimos Três Dias de Fernando Pessoa

Um delírio

Tradução de Maria da Piedade Ferreira

Quetzal Editores Lisboal1995

Título da edição original: I tre ultimi giorni di Fernando Pessoa. Un delirio Capa de Rogério Petinga sobre texto de Fernando Pessoa Éditions du Seuil, 1994 Todos os direitos para a publicação em Portugal reservados por: Quetzal Editores Rua da Rosa, 105,2.° Esq. 1200 Lisboa Telefone: 342 61 72 Telefax: 342 61 73 Impresso por: Tipografia Guerra, Viseu Depósito legal nº 85839/95 ISBN 972-564-220-1

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28 de Novembro de 1935 A minha vida foi mais forte do que eu

Primeiro tenho de fazer a barba, disse ele, não quero ir para o hospital com uma barba de três dias, faça-me o favor de chamar o barbeiro, é o senhor Manacés, que mora na esquina.

Mas não temos tempo, senhor Pessoa, replicou a porteira, o táxi já ali está, os seus amigos já chegaram e estão à sua espera na entrada.

Não tem importância, respondeu ele, há sempre tempo. Instalou-se no pequeno sofá onde habitualmente o senhor Manacés lhe fazia a barba e pôs-se

a ler as poesias de Sá-Carneiro.

*

O senhor Manacés entrou e cumprimentou-o. Boa tarde, senhor Pessoa, disse ele, disseram-me que não estava bem, espero que não seja

nada de grave. Pôs-lhe uma toalha à volta do pescoço e começou a ensaboá-Io. Conte-me qualquer coisa, senhor Manacés, o senhor sabe tantas histórias interessantes e fala

com tanta gente no seu estabelecimento, conte-me qualquer coisa. *

Pessoa vestiu um fato escuro que tinha mandado fazer recentemente, fez o nó do lacinho no

pescoço e pôs os óculos. Não fazia frio, mas chovia lá fora. Por isso vestiu a gabardina amarela, pegou numa caneta e num bloco de notas e começou a descer a escada.

A meio da escada encontrou os seus amigos Francisco Gouveia e Armando Teixeira Rebelo. Pareciam preocupados e seguravam na mão os chapéus de chuva que pingavam.

Vamos contigo, disseram eles ao mesmo tempo. Pessoa fez um sorriso distraído. Sentia uma dor aguda do lado direito e isso impedia-o de ser

cordial. Os amigos ofereceram-lhe o braço para o ajudar a descer, mas ele não aceitou e apoiou-se ao corrimão. Na entrada viu o seu patrão, o senhor Moitinho de Almeida, que falava com o motorista de táxi.

Eu também vou, senhor Pessoa, disse o senhor Moitinho de Almeida com solicitude, prefiro ir também, não posso deixá-lo partir assim.

Não se incomode, senhor Moitinho de Almeida, respondeu Pessoa em voz baixa, já tenho dois amigos que me acompanham, não se incomode.

Mas o senhor Moitinho de Almeida parecia decidido, abriu a porta do carro, Pessoa entrou para a frente para o lado do motorista e os seus três companheiros instalaram-se no banco de trás.

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*

O carro passou diante da basílica da Estrela e ele olhou longamente a sua cúpula através do vidro. Era bonita, a basílica, com aquela enorme cúpula barroca e o frontão trabalhado. Era ali em frente, no jardim, que vários anos antes marcava encontro com Ophélia Queiroz, o seu único grande amor. No banco do jardim da Estrela trocavam beijos tímidos e solenes promessas de se amarem para sempre.

Mas a minha vida foi mais forte do que eu e do que o meu amor, murmurou Pessoa, perdoa-me, Ophélia, mas eu tinha de escrever, devia só escrever, não podia fazer mais nada, agora acabou.

O táxi passou em frente da Assembleia e depois seguiu pela Calçada do Combro. Em tempos tinha morado naquela esquina, vários anos antes, num quarto alugado. A proprietária era a Dona Maria das Virtudes, lembrava-se muito bem, era uma senhora de sessenta anos, de peito abundante e cabelos pintados de amarelo que o convidava à noite para beber a sua ginginha e tomar parte em sessões de espiritismo. Entrava em contacto com o seu defunto marido, o marechal Pereira, e tinha longas conversas com ele sobre as guerras de África e o preço dos pimentos. Depois bebiam um cálice de ginginha, comiam uma ginja e Pessoa despedia-se dizendo: Boa noite, Dona Maria das Virtudes, tenha bons sonhos. Retirava-se para o seu quarto. Naquelas noites entrava em contacto com Bernardo Soares e escrevia para ele O Livro do Desassossego. Levantava-se de madrugada para ver as gradações da luz sobre Lisboa e anotava-as num caderninho forrado a pele que a mãe lhe tinha mandado da África do Sul.

Quando chegaram à Rua Luz Soriano, foram mandados parar por um polícia. Não podem passar, disse o polícia, a rua está ocupada por uma manifestação nacionalista, há

uma banda e tudo, hoje a cidade está em festa. O senhor Moitinho de Almeida debruçou-se na janela. Eu sou o Dr. Moitinho de Almeida, disse ele com autoridade, temos de ir para o hospital de S.

Luís dos Franceses, levamos aqui um doente. O polícia tirou o boné e coçou a cabeça. Oiça, senhor, disse ele, vão fazer um pequeno desvio, é um sentido proibido, mas neste caso

podem passar, voltem à direita, depois à esquerda e estão no Bairro Alto. Pessoa sorriu porque o tinha reconhecido. Era Coelho Pacheco, um seu heterónimo raro,

alguém que só tinha feito poesia uma vez e o que escrevera era sombrio e visionário, de estilo neogótico. O que é que Coelho Pacheco faria ali, vestido de polícia? Talvez o Mestre o tivesse enviado para lhe preparar o caminho que devia seguir. Pessoa levantou a mão e fez-lhe um sinal esotérico. Coelho Pereira fez-lhe também um sinal esotérico e o táxi tomou a primeira rua à direita.

*

Na recepção do hospital havia uma enfermeira que dormitava. O senhor Moitinho de Almeida

dirigiu-se-Ihe, perguntou pelo médico de serviço, disse que era um caso urgente. Pessoa sentou-se num sofá e começou a sonhar. Via fragmentos da sua infância e ouvia a voz

da avó Dionísia, que tinha morrido no manicómio. Fernando, dizia-lhe a avó, tu vais ser como eu, porque bom sangue não mente e toda a tua vida me terás por companhia, porque a vida é uma loucura e tu saberás como viver a loucura.

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Venha comigo, disse o médico, e segurou-lhe o braço para o ajudar. Levou-o para um gabinete onde havia uma pequena cama e cheirava muito a desinfectante. Dispa-se, mandou o médico. Pessoa despiu-se. Deite-se, mandou o médico. Pessoa deitou-se. O médico começou a examiná-lo, apalpando-lhe o corpo. Quando chegou à

altura do fígado, Pessoa gemeu. Desde quando se sente mal?, perguntou o médico. Desde esta tarde, respondeu Pessoa. Que sintomas teve?, perguntou o médico. Dores muito fortes, respondeu Pessoa, e um vómito verde. O médico chamou a enfermeira e disse-lhe para instalar o doente no quarto número quatro.

Em seguida pegou no registo e escreveu na ficha médica: "Crise hepática". Pessoa disse adeus aos amigos. O senhor Moitinho de AImeida queria ficar, mas Pessoa

despediu-o amavelmente. Deu um abraço rápido aos outros dois. Deixem-me, caros amigos, disse, possivelmente esta noite e amanhã vou ter visitas, vêmo-nos

depois de amanhã.

*

O quarto era uma pequena divisão modesta, com uma cama de ferro, um armário branco e uma mesinha. Pessoa meteu-se na cama, acendeu a luz na mesinha de cabeceira, pousou a cabeça na almofada e passou a mão pelo lado direito. Felizmente as dores tinham-se atenuado, a enfermeira trouxe-lhe um copo de água e um comprimido e depois disse: Tenha paciência, mas vou dar-lhe uma injecção, foi o médico que mandou.

Pessoa pediu uma poção de láudano, era um sonífero que se tinha habituado a tomar quando, enquanto Bernardo Soares, não conseguia adormecer. A enfermeira trouxe-lha e Pessoa bebeu-a.

Chamo-me Catarina, disse a enfermeira, se precisar de mim, toque que eu venho imediatamente.

A hora dos fantasmas

Que horas são?, perguntou Pessoa. É quase meia-noite, respondeu Álvaro de Campos, a melhor hora para te encontrar, é a hora

dos fantasmas. Porque é que vieste?, perguntou Pessoa. Porque se tu te vais, temos um certo número de coisas a dizer um ao outro, respondeu Álvaro

de Campos, eu não te sobreviverei, partirei contigo, e antes de mergulhar na obscuridade temos um certo número de coisas a dizer um ao outro.

Pessoa ergueu-se na almofada, bebeu um gole de água e perguntou: que mais fizeste tu? Meu caro, respondeu Álvaro de Campos, vejo com prazer que não me chamas engenheiro nem

me tratas por você, que me tratas com familiaridade.

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É evidente, respondeu Pessoa, tu entraste na minha vida, substituíste-te a mim, foste tu que fizeste com que a minha relação com Ophélia acabasse.

Fi-lo para teu bem, replicou Álvaro de Campos, essa miúda emancipada não convinha a um homem da tua idade, teria sido um casamento falhado. E depois, sabes, todas aquelas cartas de amor que lhe escreveste são ridículas, em suma salvei-te do ridículo, espero que me estejas agradecido.

Eu amei-a, murmurou Pessoa. Com um amor ridículo, replicou Álvaro de Campos. Sim, é possível, pode ser que sim, respondeu Pessoa, e tu? Eu?, perguntou Campos. Eu, ora, eu tenho o sentido da ironia, escrevi um soneto que nunca te

mostrei, fala de um amor que te vai embaraçar, porque é dedicado a um jovem, um jovem que amei e que me amou em Inglaterra. Em suma, é depois deste soneto que vai nascer a lenda dos teus amores recalcados, vai fazer a felicidade de certos críticos.

Amaste verdadeiramente alguém?, perguntou Pessoa. Amei verdadeiramente alguém, respondeu Campos em voz baixa. Então, absolvo-te, disse Pessoa, absolvo-te, julgava que na tua vida só tinhas amado a teoria. Não, disse Campos aproximando-se da cama, também amei a vida, e se as minhas odes

futuristas e furibundas foram blague, se nas minhas poesias niilistas destruí tudo, até eu mesmo, fica a saber que também eu amei na minha vida, com uma dor consciente.

Pessoa levantou a mão e fez um gesto esotérico. Disse: absolvo-te, Álvaro, vai com os deuses eternos, se tiveste amores, se tiveste um só amor, estás absolvido, porque és uma pessoa humana, é a tua humanidade que te absolve.

Posso fumar?, perguntou Campos. Pessoa fez um gesto afirmativo com a cabeça. Campos tirou do bolso uma cigarreira de prata e

pegou num cigarro, enfiou-o numa comprida boquilha de marfim e acendeu-o. Sabes, Fernando, tenho saudades de quando era um poeta decadente, da época em que fiz

aquela viagem de paquete nos mares do Oriente, sim, então teria sido capaz de escrever versos à lua, garanto-te, à noite, no convés, quando havia baile a bordo, a lua era tão teatral, era de tal modo minha. Mas nesse tempo eu era estúpido, fazia ironia com a vida, não sabia aproveitar a vida que me era dada, e foi assim que perdi a oportunidade e a vida me escapou.

E depois?, perguntou Pessoa. Depois, comecei a querer decifrar a realidade, como se a realidade fosse decifrável, e veio o

desencorajamento. E com o desencorajamento, o niilismo. Em seguida, já não acreditei em nada, nem mesmo em mim. E hoje aqui estou à tua cabeceira; como um farrapo inútil, fiz as malas para lado nenhum, e o meu coração é um balde despejado.

Campos dirigiu-se para a mesa de cabeceira e apagou o morrão do cigarro num pratinho de loiça.

Bem, meu caro Fernando, acrescentou, precisava de te dizer tudo isto agora que vamos talvez deixar-nos, tenho de ir, sei que os outros também virão ver-te e já não te resta muito tempo, adeus.

Campos pôs o sobretudo pelos ombros, ajustou o monóculo no olho direito, fez um rápido gesto de despedida com a mão, abriu a porta, deteve-se um instante e repetiu: adeus Fernando. Depois disse: as cartas de amor talvez não sejam todas ridículas. E fechou a porta.

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Só falei do tempo que passa

Que horas eram? Pessoa não sabia. Seria noite? O dia já se teria levantado? A enfermeira veio e

deu-lhe outra injecção. Pessoa já não sentia a dor do lado direito. Estava agora numa paz estranha, como se um nevoeiro tivesse descido sobre ele.

Os outros, pensou, agora viriam os outros. É claro que queria despedir-se de todos antes de partir. Mas havia um encontro que o angustiava, era o encontro com o Mestre Caeiro. Porque Caeiro vinha do Ribatejo e tinha uma saúde tão frágil. Como viria ele a Lisboa, talvez de caleche? É verdade que Caeiro já tinha morrido, mas estava ainda vivo, viveria eternamente naquela casinha branca de cal do Ribatejo de onde olhava com um olhar implacável a passagem das estações, a chuva invernal e a canícula do verão.

Ouviu bater à porta e disse: Entre. Alberto Caeiro trazia um casaco de veludo com uma gola de pêlo. Era um homem do campo,

via--se pela maneira de vestir. Ave, Mestre, disse Pessoa, morituri te salutant. Caeiro aproximou-se dos pés da cama e cruzou os braços. Meu caro Pessoa, disse, vim dizer-

lhe uma coisa, permite-me que lhe faça uma confissão? Faça favor, replicou Pessoa. Pois bem, disse Caeiro, quando durante a noite era acordado por um Mestre desconhecido que

lhe ditava os seus versos, que lhe falava dentro de si, na sua alma, pois bem, saiba que esse Mestre era eu, era eu que entrava em contacto consigo do Além.

Já o supunha, disse Pessoa, meu querido Mestre, supunha que era o senhor. No entanto devo pedir-lhe que me desculpe por lhe ter causado tantas insónias, disse Caeiro,

noites e noites em que não dormiu e ficou a escrever como em transe, sinto remorsos por lhe ter causado tantos aborrecimentos, por ter ocupado a sua alma.

O senhor contribuiu para a minha obra, respondeu Pessoa, e guiou a minha mão, causou-me insónias, é verdade, mas para mim foram noites fecundas, foi na noite que nasceu a minha obra literária, e a minha obra é uma obra nocturna.

Caeiro tirou o casaco e pousou-o aos pés da cama. No entanto não era a única coisa que queria dizer-lhe, disse baixinho, há um segredo que lhe

queria confiar, antes que as distâncias interestelares nos separem, mas não sei como dizer-lho. Diga-mo normalmente, disse Pessoa, como se diz uma coisa qualquer. Pois bem, respondeu Caeiro, sou o seu pai. Fez uma pausa, alisou os raros cabelos loiros e retomou: fiz as vezes do seu pai, do seu

verdadeiro pai, Joaquim de Seabra Pessoa, que morreu tuberculoso quando você era ainda uma criança. Pois bem, tomei o lugar dele.

Pessoa sorriu. Eu sabia, disse, sempre o considerei como meu pai, mesmo nos meus sonhos foi sempre meu

pai, nada tem a censurar-se, Mestre, creia-me, para mim foi um pai, foi quem me deu a vida interior. E contudo vivi uma existência simples, replicou Caeiro, a minha vida foi curta e decorreu numa

casa no campo na companhia de uma tia-avó, só falei do tempo que passa, das estações, dos rebanhos.

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Sim, confirmou Pessoa, mas o senhor foi para mim um olhar e uma voz, um olhar que descreve, uma voz que ensina aos seus discípulos, como Milarepa ou Sócrates.

Sou um homem quase sem instrução, disse Caeiro, tive uma vida muito simples, volto a dizer-lhe, você, pelo contrário, teve uma vida intensa, interpretou as vanguardas europeias, inventou o Sensacionismo e o Interseccionismo, frequentou os cafés literários da capital, enquanto eu passava os serões a fazer paciências à luz de um candeeiro de petróleo, como é possível que me tenha tornado seu pai e seu Mestre?

A vida é indecifrável, respondeu Pessoa, não procure e não creia, tudo é oculto. Sim, retomou Caeiro, mas insisto, como é possível que me tenha tornado seu pai e seu Mestre? Pessoa soergueu-se nas almofadas. Respirava com dificuldade e o quarto ondulava diante dos

seus olhos. Vou dizer-lhe, meu caro Caeiro, respondeu, o facto é que eu precisava de um guia e de um

coagulante, não sei se me faço entender, de outro modo a minha vida teria voado em estilhaços, graças a si encontrei uma coesão, na realidade fui eu que o elegi como pai e Mestre.

E agora trouxe-lhe um presente, disse Caeiro, são alguns versos escritos em prosa, que nunca publicarei, agora que me vai deixar, vou-lhos dizer de viva voz, são o testemunho do meu afecto por si.

Caeiro tirou do bolso uma folhinha de papel, aproximou-a dos olhos porque era míope e leu: no decurso destes longos anos sempre olhei a lua, mas foi com um olhar límpido que segui o meu filho e meu discípulo, para que o meu olhar pudesse ser o seu olhar, para que o outeiro que separa o meu horizonte pudesse ser o seu horizonte modesto e magnífico.

É um poema muito belo, disse Pessoa, agradeço-lhe, Mestre Caeiro, levá-Io-ei comigo para o Além.

Você escreveu tantos poemas em meu lugar, continuou Alberto Caeiro, queria também eu saudá-lo com a homenagem de alguém que sempre o admirou.

Pessoa fechou os olhos um instante. Quando os voltou a abrir, o quarto estava deserto. Tocou para chamar a enfermeira.

Que dia é hoje?, perguntou. É a noite de 28 de Novembro de 1935, respondeu a enfermeira, precisa de alguma coisa? Não, obrigado, respondeu Pessoa, só preciso de descansar.

29 de Novembro de 1935 A alguns quilómetros de Lisboa

Pessoa ouviu bater à porta e disse: Entre. A porta entreabriu-se, mas ninguém entrou. Posso entrar?, perguntou uma voz trémula. Faça favor, disse Pessoa, entre. Um homem surgiu à porta e voltou a fechá-Ia cuidadosamente atrás de si. Pessoa não o

reconheceu e perguntou: desculpe, quem é o senhor? Sou Ricardo Reis, respondeu o homem entrando no quarto, voltei do meu Brasil imaginário.

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Há tantos anos que não nos vemos, disse Pessoa, demasiados anos, perdoe-me, mas você mudou muito, já não o reconhecia.

Ricardo Reis pegou numa cadeira e aproximou-se da cama. Desculpe se me sento, disse, mas vim no cacilheiro, enjoei, e não me sinto muito bem. Mas onde estava você escondido?, perguntou Pessoa, em que canto do BrasiI, para que eu

nunca tenha conseguido entrar em contacto consigo? Ricardo Reis assoou-se. Tenho de lhe confessar uma coisa, meu caro Pessoa, disse, nunca fui ao Brasil, fiz toda a gente

acreditar nisso, até você, na realidade estava aqui em Portugal, escondido numa pequena aldeia. Pessoa tentou levantar-se nas almofadas e perguntou: e onde estava você? Ricardo Reis baixou a voz como se mais alguém pudesse ouvi-lo. Em Azeitão, murmurou, estava em Azeitão. Azeitão... Azeitão... respondeu Pessoa, esse nome diz-me qualquer coisa, lembra-me um queijo. Claro, disse Ricardo Reis com orgulho, o queijo de Azeitão, Vila Nogueira de Azeitão, é uma

pequena aldeia a poucos quilómetros de Lisboa, na outra banda, onde começa o Alentejo. Ricardo Reis voltou a assoar-se e tossiu. Escondi-me lá, numa pequena propriedade de uns amigos, passei todos estes anos numa casa

de campo, diante da casa há uma amoreira centenária e debaixo dessa amoreira escrevi todas as minhas odes pindáricas e as minhas poesias horacianas.

E como é que conseguiu sobreviver?, perguntou Pessoa, onde trabalhava? Oh, respondeu Ricardo Reis, para um médico é fácil sobreviver, basta exercer, e eu era o

médico da aldeia, tinha doentes em toda a serra da Arrábida. E usava o seu nome verdadeiro?, perguntou Pessoa. Evidentemente, confirmou Ricardo Reis, tinha uma placa onde estava escrito Ricardo Reis,

médico, e toda a aldeia sabia o meu nome. E no entanto você era monárquico, disse Pessoa, era contra a República, foi essa a razão que

invocou quando disse que ia para o exílio no Brasil. Ricardo Reis sorriu com um sorriso tímido e embaraçado. Sabe, respondeu, era uma blague, dava-me jeito que um poeta sensista e neoclássico não

gostasse da República nem da vulgaridade dos republicanos, eu sempre desejei um César, um grande imperador como Marco Aurélio, capaz de apreciar os meus versos; entre os republicanos não havia gente competente, eram homens cheios de presunção que só tinham lido Auguste Comte, como poderiam apreciar Horácio e Píndaro?

Compreendo-o, disse Pessoa, suspirando. Fez-se um longo silêncio. Ouviram-se passos no corredor e alguém passou diante do quarto,

mas ninguém veio perturbá-los. E então?, perguntou Pessoa. Então, bem, respondeu Ricardo Reis, queria dizer-lhe isto, queria revelar-lhe o meu segredo,

sabe, vivi uma vida de estóico, mesmo estando em Azeitão. Pode-se viver uma vida de estóico seja onde for, ripostou Pessoa. Entrelaço coroas de flores, disse Ricardo Reis. O que é que isso quer dizer?, perguntou Pessoa.

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Quer dizer, respondeu Ricardo Reis, que em todas as minhas poesias entrelacei coroas de flores para Neera e para Lydia e agora entrelaço coroas de flores para a sua viagem, para o momento em que nos voltarmos a ver depois de passado o gélido Estige.

Aceito a sua coroa de flores ideal, meu caro Ricardo Reis, replicou Pessoa, peço-lhe, continue a viver na sua aldeia e a escrever as suas odes pindáricas mesmo sem mim, fico contente por me ter posto a par do seu segredo, mas creia-me, sempre o soube.

De verdade?, perguntou estupefacto Ricardo Reis. Sim, de verdade, respondeu Pessoa, nunca o fui ver a Azeitão porque por princípio nunca

deixei Lisboa, porque por princípio nunca quis viajar, mas sempre soube que vivia ali a dois passos, e isso foi-me confirmado por um amigo que escreve coisas afectuosas sobre a minha poesia.

Ricardo Reis levantou-se. Então posso despedir-me, disse. Eu também lhe digo adeus, respondeu Pessoa, digo-lhe adeus e convido-o a escrever as suas

poesias mesmo quando eu já cá não estiver. Mas serão poesias apócrifas, replicou Ricardo Reis. Não tem importância, disse Pessoa, os apócrifos não prejudicam a poesia, e a minha obra é tão

vasta que suporta até os apócrifos. Adeus, meu caro Ricardo Reis, havemos de nos ver para lá do rio negro que rodeia o Averno.

Pessoa deitou a cabeça na almofada e adormeceu. Um instante ou algumas horas, não saberia dizê-lo.

A receita da lagosta suada

Pessoa acordou, acendeu a luz do pequeno candeeiro e procurou o relógio na mesa de cabeceira. O relógio marcava três horas, mas estava parado. Pessoa deu-se conta que tinha perdida a noção da tempo. Pensou tocar a campainha mas desistiu porque no mesmo instante ouviu bater à porta.

Posso entrar, senhor Pessoa?, perguntou uma voz. Pessoa mandou entrar e um homem entrou. Trazia nas mãos uma bandeja e deteve-se um

momento à entrada da parta, mas Pessoa, sem os óculos e na penumbra do quarto, não o reconheceu. Quem é?, perguntou Pessoa. Sou o seu amigo Bernardo Soares, respondeu ele, soube que estava no hospital e tomei a

liberdade de lhe fazer uma visita. Bernardo Soares aproximou-se da cama e pousou a bandeja na mesa de cabeceira. Trouxe-lhe o jantar, disse, trouxe-o do restaurante onde nos encontrávamos sempre, pensei

que talvez tivesse vontade de jantar como nos bons tempos, tomei a liberdade de escolher eu mesmo a ementa.

Para dizer a verdade, não tenho muita fome, respondeu Pessoa, mas para lhe dar prazer vou comer qualquer coisa, o que é que me trouxe?

Endireite-se, vou pôr a bandeja à sua frente, respondeu Bernardo Soares, são pratos tradicionais da nossa cozinha, pratos simples e saborosos.

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Pessoa endireitou-se, colocou ao pescoço o guardanapo imaculado que Bernardo Soares lhe estendia e levantou as tampas de metal que cobriam os pratos.

Aqui tem um caldo verde, disse Bernardo Soares, a sua sopa preferida, tenho a certeza de que vai gostar, e depois dobrada à moda do Porto, trouxe-lha porque uma vez lha serviram fria, e o senhor escreveu isso numa das suas poesias, mas queria que a provasse enquanto está quente, olhe, ainda está a fumegar, acabou de sair do lume.

Pessoa sorriu. Tenho uma crise hepática, disse, e talvez a dobrada não seja o prato que me convém, mas vou

provar um pouco para lhe dar prazer, lembro-me ainda que ma serviram fria, mas sabe, meu caro Bernardo Soares, nesse momento não era eu, era Álvaro de Campos que tinha tomado o meu lugar.

Pessoa acabou de comer a sopa e provou um pedacinho de tripa. Está uma delícia, disse ele, mas peço-lhe, Bernardo Soares, coma-a o senhor, tenho a certeza

de que não almoçou hoje. Realmente não almocei, respondeu Bernardo Soares, não podia dar-me ao luxo de pagar duas

refeições, só paguei a sua, por isso como de boa vontade. Bernardo Soares pôs o prato à sua frente e comeu a dobrada com apetite. Isto faz-me saudades das noites em que jantávamos juntos no restaurante Pessoa, disse ele.

Tenho a certeza que o senhor tinha escolhido aquele restaurante por ter o seu nome, na verdade é um restaurante bastante modesto, onde pessoas como o senhor nunca iriam.

Não é verdade, replicou Pessoa, eu gosto dos restaurantes modestos, sempre vivi uma vida modesta, mas diga-me antes, ainda pensa em Samarcanda?

Aprendi um pouco de usebeque, disse Bernardo Soares, assim, para me distrair, mesmo que nunca possa ir a Samarcanda, mas o facto de conhecer a língua dessa região faz-me sentir mais próximo da cidade com que sonhei toda a minha vida.

E o seu patrão, o senhor Vasques?, perguntou Pessoa. Oh, respondeu Bernardo Soares, é um bom homem, é um homem sem metafísica, como o

senhor diria, mas é uma pessoa simpática, até me emprestou uma casa onde passei uma semana de férias.

Onde foi isso?, perguntou Pessoa. Em Cascais, respondeu Bernardo Soares, na estrada para o Guincho. Cascais, disse Pessoa, Cascais, que belo sítio, eu também lá passei alguns dias, não mais de

duas semanas, é a primeira vez que falo disto a alguém e de boa vontade lhe confesso a si que é meu amigo, meu caro Soares, fui a uma consulta na clínica psiquiátrica de Cascais; foi lá que conheci António Mora, o filósofo panteísta, e devo dizer que passei nessa pequena vila os dias mais serenos da minha vida, porque uma onda negra tinha-se abatido sobre mim e tinha-me arrastado e eu só tinha vontade de morrer, mas conheci António Mora, que me deu confiança na Natureza.

António Mora?, perguntou Bernardo Soares. Nunca me tinha falado nele, gostaria de saber alguma coisa a seu respeito.

Bem, disse Pessoa, António Mora é louco, pelo menos oficialmente é louco. Mas é um louco lúcido, que reflectiu muito sobre o paganismo e o cristianismo. Posso dizer-lhe que se veste com uma túnica como os antigos romanos, uma túnica branca que lhe desce até aos pés, calça sandálias à maneira antiga e raramente fala, mas comigo falou.

E o que é que ele lhe disse?, perguntou Bernardo Soares.

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Disse-me muitas coisas, respondeu Pessoa. Disse-me primeiro que os deuses voltarão, porque essa história de uma alma única e de um único deus é uma coisa passageira que está a acabar no final de um curto ciclo de história. E quando os deuses voltarem perderemos essa unicidade da alma, e a nossa alma poderá de novo ser plural, como a Natureza quer.

Sabe, meu caro Pessoa, disse Bernardo Soares mudando de assunto, neste último ano sofri muito de insónias e todas as manhãs, ao alvorecer, ficava à janela e observava as gradações de luz sobre a cidade, descrevi várias vezes o alvorecer sobre Lisboa e tenho orgulho nisso, é difícil descrever as tonalidades da luz mas julgo ter conseguido, fiz pinturas com as palavras.

Como Hopkins?, perguntou Pessoa. Sim, respondeu Bernardo Soares, mas a ideia veio-me do diário de Keats, e depois há também

toda a teoria do Word-painting de Ruskin, não é por acaso que ele foi o paladino de Turner; em suma, usei as palavras como se fossem pincéis que pintam uma tela, e a minha paleta eram o alvorecer e o poente sobre Lisboa.

Os poentes de Cascais também são bonitos, disse Pessoa. Era justamente disso que queria falar-lhe, continuou Bernardo Soares, fiz uma experiência

estética em Cascais e descrevi-a no meu Livro do Desassossego. Conte-me lá, disse Pessoa. Pois bem, o facto é que o meu patrão, o senhor Vasques, tinha à sua disposição uma casa ao

pé do mar que a empresa lhe emprestava, a Vasques & Módica, e foi assim que teve a bondade de me deixar passar alguns dias nessa casa, até mandou o motorista dele levar-me; vivi sozinho durante uma semana numa casa de trinta divisões, oh!, foi magnífico.

Conte-me tudo de uma ponta à outra, insistiu Pessoa. Partimos numa clara manhã de sol, disse Bernardo Soares, fazia frio, mas o dia estava muito

bonito. Tinha levado comigo o Sebastião, o papagaio do carvoeiro da esquina, o senhor conhece-o, é um papagaio que sabe dizer algumas palavras e até frases inteiras e eu pensava por isso que ele me poderia fazer companhia. A casa tem um terraço magnífico com vista para o oceano, puz lá o poleiro do Sebastião, mas soltei-o, deixei-o em liberdade. Durante o dia ia empoleirar-se nas árvores do parque e ao pôr-do-sol voltava para o poleiro, era justamente a hora em que eu estava no terraço a fazer as minhas pinturas com palavras, e então, enquanto escrevia, falava com o Sebastião e ensinei-lhe alguns dos seus versos, os primeiros versos da Tabacaria: “Não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada.” Ele aprendeu-os logo, era assim que conversávamos, eu descrevia o poente sobre os rochedos e sobre o oceano e dizia: Sebastião, vá lá. E ele repetia os versos da Tabacaria, enquanto eu descrevia a leve luz rosada, as nuvens violáceas no horizonte, na hora que apela ao desejo.

É curioso, disse Pessoa, escrevi para os homens no mundo e só um papagaio sabe repetir os meus versos.

Não diga isso, replicou Bernardo Soares, há-de chegar o dia em que todos os homens com uma alma grande saberão os seus versos de cor, em todas as línguas, e depois, sabe, o Sebastião tem uma alma humana, não é um papagaio, é um oráculo, tenho a certeza que o espírito de uma pitonisa revive nele, sinto que adivinha o futuro.

E depois?, perguntou Pessoa. Depois, devo dizer que foram dias belíssimos. Na casa não foi fácil, porque não era aquecida e

ainda por cima só tinha candeeiros de petróleo, e à noite, sobretudo à noite, sentia muita melancolia.

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OS ÚLTIMOS TRÊS DIAS DE FERNANDO PESSOA. UM DELÍRIO 13/19

Mas travei amizade com uma pessoa encantadora, o senhor D. Pedro de Cascais, é um senhor celibatário que é director de um banco, é uma pessoa que sabe conversar sobre os mais variados assuntos, gosta sobretudo das touradas à portuguesa e levou-me com ele a ver uma. Eu, a princípio, tinha recusado, receando um espectáculo sangrento, mas mudei de opinião porque o espectáculo não é de maneira nenhuma sangrento, não matam o touro, sabe, meu caro Pessoa, o toureiro faz um gesto simbólico como braço, depois de ter embriagado o animal com a sua dança e nessa altura entra na arena uma manada de vacas e o toiro junta-se a elas e sai. Mas devia ver a elegância dos cavaleiros vestidos com fatos do século dezoito, os arreios dos cavalos e as suas reviravoltas à volta do toiro, em suma, foi um espectáculo inesquecível. Mas não queria aborrecê-lo.

Conte-me mais coisas, pediu Pessoa. Bom, disse Bernardo Soares, uma noite o senhor D. Pedro convidou-me para jantar. Veio

buscar--me de carro. Tem um Chevrolet preto cheio de cromados, como aquele com que Álvaro de Campos ia pela estrada de Sintra, estava uma noite de vento e os ramos do parque estalavam, eu tinha vestido o meu fato dos domingos, o senhor D. Pedro vestia um casaco de estilo inglês: vou levá-lo ao melhor restaurante de Cascais, disse-me ele, do terraço domina-se toda a vila, assim poderá descrever a baía com todas as luzes e os barcos dos pescadores. Creia-me, meu caro Pessoa, o restaurante era magnífico, nunca tinha visto nada assim na minha vida, quando chegámos, o maitre d’ hotel veio receber-nos e ofereceu-nos verdadeiro champanhe francês e ostras, sabe, meu caro Pessoa, nunca na minha vida tinha comido ostras, o senhor sim, conhece, deve tê-las comido no Tavares ou na Brasileira do Chiado, são deliciosas, dir-se-ia que saboreamos o mar, pensei até em escrever um pequeno texto sobre o gosto e o olfacto, eu que só escrevo textos sobre o olhar, depois o senhor D. Pedro disse ao maitre d’hotel: traga-nos lagosta suada, mas disse em francês, bomard sué, à moda de Peniche, e sabe, nunca na minha vida tinha provado crustáceos, mas o senhor D. Pedro deu-me a receita e quero contar-lha, assim, quando melhorar, pode pedir à sua irmã que lha prepare. Leva manteiga, três cebolas, tomates, um pouco de alho, azeite, vinho branco, um pouco de aguardente velha, aquela de que tanto gosta, dois cálices de Porto seco, um pouco de malagueta, noz-moscada e pimenta. Primeiro é preciso cozer a lagosta, mas pouco, ao vapor. Depois acrescentam-se os ingredientes de que lhe falei e vai ao forno. Por que razão se chama suada, não sei, talvez porque deita um caldo muito saboroso. Os nossos pescadores de Peniche, que sabem do assunto, preparam-na assim e eu nunca tinha provado semelhante petisco. Em seguida, D. Pedro ofereceu-me um Porto delicioso e fomos bebê-lo no terraço, por baixo de nós havia as luzes da baía de Cascais, ah!, meu caro Pessoa, era muito bonito, D. Pedro falava das suas viagens a Sevilha, eu falei-lhe da viagem que sempre sonhei fazer a Samarcanda e propus-lhe emprestar-lhe o meu manual de usebeque. Ele sorriu amavelmente e disse: Samarcanda, que boa ideia, senhor Bernardo Soares, mas eu nunca sairei da Península Ibérica, o pouco espanhol que sei e um pouco de inglês quando vêm os meus amigos de Londres e os levo a jogar bilhar à Casa do Alentejo, em Lisboa, chegam-me. Depois as luzes do passeio junto ao mar apagaram-se como por encanto, na baía já só se viam uns clarões fracos, eram as luzes dos barcos de pesca, e D. Pedro disse-me: senhor Bernardo Soares, vou levá-lo a casa. Durante o trajecto falei do alvorecer e do poente, sentia-me eufórico e pensei: vou escrever um capítulo eufórico para o meu diário disfórico. Mas D. Pedro manteve-se muito discreto e não interrompeu a minha tagarelice. Desci diante das árvores do parque agitadas pelo vento e disse-lhe: obrigado, senhor D. Pedro, passei uma das mais belas noites da minha vida. E ele respondeu-me: sou eu que lhe agradeço, meu caro Bernardo Soares, seria uma grande honra para mim ser um dos primeiros leitores do seu diário, e não

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OS ÚLTIMOS TRÊS DIAS DE FERNANDO PESSOA. UM DELÍRIO 14/19

se esqueça que sou um grande admirador do Fernando Pessoa, diga-lho, ele nunca aparece e é-me impossível dizer-lho. E então digo-lho, meu caro Fernando Pessoa, trago-lhe as saudações e a admiração do senhor D. Pedro.

Obrigado, disse Fernando Pessoa com um sorriso fatigado. Bernardo Soares ajeitou-lhe o lençol no peito. Senhor Pessoa, disse, receio tê-lo fatigado com esta tagarelice toda, perdoe-me, se calhar

macei-o. De maneira nenhuma, respondeu debilmente Pessoa, foi um prazer falar consigo, mas creio

que vou receber outra visita, uma pessoa que abandonei um pouco nestes últimos tempos, obrigado, meu caro Soares, desejo-lhe o maior êxito para o seu Livro do Desassossego.

30 de Novembro de 1935 Também eu esqueci a morte

O homem que entrou era um velho de aspecto nobre, com uma enorme barba branca e uma túnica romana que lhe caía até aos pés, também ela branca.

Ave, companheiro, disse o velho, tomo a liberdade de entrar nos teus sonhos. Pessoa acendeu a luz da mesa de cabeceira. Olhou para o velho e reconheceu António Mora.

Fez-lhe sinal para avançar. Mora levantou uma mão e disse: Flebas o fenício, morto há quinze dias, esqueceu o grito das

gaivotas e as vagas profundas do mar para me anunciar a tua sorte, ó grande Fernando. Sei que as águas do Aqueronte te esperam e depois os turbilhões furiosos dos átomos nos quais tudo se perde e tudo se recria, e tu voltarás talvez aos jardins de Lisboa sob a forma de uma flor que desabrocha em Abril ou talvez como chuva sobre os lagos e as lagoas de Portugal, e eu, ao passear, ouvirei a tua voz percorrida pelo vento.

Pessoa ergueu-se nos cotovelos. A dor no lado direito tinha passado, agora só sentia um grande cansaço.

E O Regresso dos Deuses?, perguntou. O livro está quase acabado, respondeu António Mora, mas não sei se poderei publicá-lo,

porque ninguém ousa publicar o livro de um louco. Diga-me, retomou Pessoa, conte-me como vão as coisas na clínica psiquiátrica de Cascais onde

nos vimos tão pouco tempo. Bem sabe, respondeu António Mora, que o diagnóstico que me fizeram foi de paranóia com

psiconevrose intercorrente, mas felizmente há o Dr. Gama que gosta de me ouvir, é uma pessoa muito disponível, também acredita no regresso dos deuses, e afirma que a loucura é uma condição inventada pelos homens para isolar os que incomodam a sociedade. E eu incomodo a sociedade católica, a Igreja, porque prego o regresso dos deuses, só você poderia ajudar-me, ó grande Pessoa, mas agora você também vai atravessar o Aqueronte e eu ficarei só, num asilo de alienados, sem ninguém que possa publicar os meus escritos.

Pessoa sorriu, ajeitou a cabeça na almofada e fez um gesto tranquilizador.

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OS ÚLTIMOS TRÊS DIAS DE FERNANDO PESSOA. UM DELÍRIO 15/19

Meu caro António Mora, todos os escritos que me confiou no dia em que nos vimos na clínica psiquiátrica de Cascais, guardei-os num baú. Agora é um baú cheio de gente, as personagens já quase lá não cabem, mas o seu Regresso dos Deuses não ficará perdido, será descoberto um dia pela posteridade, posso mesmo dizer-lhe, pois hoje possuo qualidades divinatórias, que um grande crítico os descobrirá, um homem cheio de sensibilidade e de cultura que se chama Coelho.

Como o Coelho Pacheco?, perguntou António Mora. Diferente, respondeu Pessoa, muito diferente. Um homem que não escreve poesias mas faz

pesquisas, um homem teimoso que saberá decifrar a sua letra e a minha, um homem de grande valor que nos tornará conhecidos no mundo.

No mundo onde?, perguntou António Mora. No mundo, respondeu Pessoa. António Mora deu um passo em frente e inclinou-se. E de si, meu caro Pessoa, o que me conta de si? Como é que correu a sua estadia na clínica

psiquiátrica de Cascais? Fiquei surpreendido por nunca mais o ter visto, meteram-no no isolamento? Pessoa suspirou. Não fui hospitalizado, disse, devo confessar que não quis. Preferi passar algumas semanas

numa casa que dá para a baía, na Rua da Saudade, em casa de uma senhora que cuidou de mim, essa senhora é viúva, vive com as duas filhas, duas meninas encantadoras, e ela preparava-me almocinhos e jantarinhos que nem lhe conto, meu caro António Mora; imagine só que ao almoço tinha sempre peixe assado no forno ou grelhado acompanhado por um vinho branco de Colares, e à noite, bem, à noite o jantar era um verdadeiro banquete, havia sempre uma sopa alentejana ou um caldo verde, e depois, imagine só, bacalhau no forno, pescadinhas de rabo na boca e outros petiscos deliciosos, e depois tinham-me destinado um quarto que dava para a baía, uma antiga sala com uma lareira, transformado de propósito em quarto de dormir; à noite ficava lá, no terraço, a olhar a baía de Cascais e do Estoril e a ouvir na rádio música de dança ou velhos fados de Coimbra, e senti-me feliz.

E como se chama essa senhora?, perguntou António Mora. O nome não tem importância, respondeu Pessoa. Invejo-o, disse António Mora, invejo-o de verdade, teve momentos de felicidade, e diga-me,

conseguiu tratar-se? Bem, disse Pessoa, naquela altura uma onda negra tinha-se abatido sobre a minha cabeça,

olhe, já não sabia o que fazer, se considerar-me louco ou deitar-me ao Tejo, precisava de uma família, de alguém que se ocupasse de mim, que me tratasse com afecto e carinho, e naquela família encontrei um lar, e depois, quando ficava só, porque às vezes ficava só em casa, havia um cão, um lindo cão preto que se chamava Jó, um rafeiro muito inteligente a quem lia as minhas poesias esotéricas, esse cão, tenho a certeza, era a reencarnação de uma divindade do antigo Egipto, raspava com a pata no chão e ditava-me a medida do verso, e com aquela escansão animal e divina eu escandia a métrica das minhas poesias, transformando-as em música. Depois ia sentar-me no terraço e olhava para a baía, olhava os barcos dos pescadores que voltavam ao cair da noite, ouvia as vozes dos marinheiros que se chamavam alegremente entre si, respirava o cheiro do pez e das redes de pesca, e tudo era belo e antigo, e assim me curei, esqueci a morte e recomecei a viver.

Também eu esqueci a morte, disse António Mora, porque li o nosso pai Lucrécio que ensina o retorno da vida na Ordem da Natureza, e compreendi que todos os átomos que nos compõem, essas partículas infinitesimais que são o nosso corpo de agora, voltarão depois ao ciclo eterno e serão água,

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OS ÚLTIMOS TRÊS DIAS DE FERNANDO PESSOA. UM DELÍRIO 16/19

terra, flores férteis, plantas, a luz que dá a vista, a chuva que nos molha, o vento que nos sacode, a neve branca que nos envolve com o seu manto no inverno. Voltaremos todos aqui à terra, ó grande Pessoa, nas inumeráveis formas que a Natureza quer, e seremos talvez um cão chamado Jó, uma haste de erva ou os tornozelos de uma jovem inglesa que olha espantada uma praça de Lisboa. Mas peço-lhe, é cedo para partir, fique ainda um pouco entre nós, enquanto Fernando Pessoa.

Fernando Pessoa pousou a face na almofada e fez um sorriso cansado. Meu caro António Mora, disse, Prosérpina quer-me no seu reino, é tempo de partir, é tempo de

deixar este teatro de imagens a que chamamos a nossa vida, se soubesse as coisas que vi com os óculos da alma, vi os contrafortes de Oríon, lá em cima no espaço infinito, caminhei com estes pés terrenos sobre o Cruzeiro do Sul, atravessei noites infinitas como um cometa cintilante, os espaços interestelares da imaginação, a volúpia e o medo, e fui homem, mulher, velho, rapariguinha, fui a multidão dos grandes boulevards das capitais do Ocidente, fui o plácido Buda do Oriente ao qual invejamos a calma e a sabedoria, fui eu próprio e os outros, todos os outros que podia ser, conheci honras e desonras, entusiasmos e desânimos, atravessei rios e inacessíveis montanhas, guardei plácidos rebanhos e recebi na cabeça o sol e a chuva, fui fêmea em calor, fui o gato que brinca na rua, fui sol e lua, e tudo porque a vida não basta. Mas agora basta, meu caro António Mora, viver a minha vida foi viver mil vidas, estou cansado, a minha vela gastou-se, faça-me um favor, dê-me os meus óculos.

António Mora ajustou a túnica. Prometeu urgia-lhe. Ó céu divino, exclamou, velozes ventos alados, nascentes dos rios, sorriso inumerável das

ondas marinhas, terra, mãe universal, a vós invoco, e ao globo do sol que tudo vê, vede a que estou sujeito.

Pessoa suspirou. António Mora tirou os óculos de cima da mesa de cabeceira e pô-los na cara de Pessoa. Pessoa arregalou os olhos e as suas mãos pararam sobre o lençol. Eram exactamente vinte horas e trinta.

As personagens que aparecem neste livro

O Senhor Manacés

Tinha uma barbearia na esquina da Rua Coelho da Rocha, onde Pessoa viveu de 1920 a 1935. Fez a barba a Pessoa durante quinze anos. Carlos Eugénio Moitinho de Almeida

(Lisboa 1885-1961) era proprietário de uma das firmas de import-export para as quais Pessoa escrevia e traduzia cartas comerciais. Bom amigo do poeta, ajudou-o nos momentos mais difíceis da sua vida.

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OS ÚLTIMOS TRÊS DIAS DE FERNANDO PESSOA. UM DELÍRIO 17/19

Coelho Pacheco

Nada sabemos da vida de Coelho Pacheco. Dele conhecemos apenas um longo poema, Para lá de um outro oceano, dedicado a Alberto Caeiro. É um poema obscuro e visionário, que lembra um fluxo de consciência e que precede a experiência do automatismo psíquico.

Fernando Pessoa

Fernando Amónio Nogueira Pessoa nasceu a 13 de Junho de 1888 em Lisboa. Era filho de Magdalena Pinheiro Nogueira e de Joaquim de Seabra Pessoa, crítico musical de um jornal da cidade. Aos cinco anos morreu-lhe o pai, tuberculoso. A avó materna, Dionísia, sofria de uma grave forma de loucura e morreu no manicómio. Em 1895 foi viver para a África do Sul, em Durban, porque a mãe voltara a casar com o cônsul de Portugal na África do Sul. Fez todos os seus estudos em língua inglesa. Voltou a Portugal para se matricular na Universidade, mas não continuou os estudos. Viveu sempre em Lisboa. A 8 de Março de 1914 surge o seu primeiro heterónimo, Alberto Caeiro, ao qual se sucederam Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Os heterónimos eram “outros que ele”, vozes que falavam nele e que tiveram uma vida autónoma e uma biografia. Inventou todas as vanguardas portuguesas. Viveu sempre em pensões modestas ou em quartos alugados. Conheceu um único amor na sua vida, Ophélia Queiroz, dactilógrafa na firma de import-export em que ele trabalhava. Foi um amor intenso e breve. Durante a sua vida só publicou em revistas. O único volume publicado antes de morrer é uma plaquette intitulada Mensagem, uma história esotérica de Portugal. Morreu a 30 de Novembro de 1935 no hospital de S. Luís dos Franceses em Lisboa, de uma crise hepática provavelmente provocada pelo abuso do álcool. Álvaro de Campos

Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no Algarve, a 15 de Outubro de 1890. Licenciou-se em engenharia naval em Glasgow. Viveu em Lisboa sem exercer a profissão. Fez uma viagem ao Oriente, num transatlântico, à qual dedicou o poema Opiário. Foi decadente, futurista, vanguardista, niilista. Em 1928 escreveu o mais belo poema do século, Tabacaria. Conheceu um amor homossexual e entrou na vida de Pessoa a ponto de estragar o seu noivado com Ophélia. Alto, de cabelo preto com risca ao lado, impecável e um tanto snob, de monóculo, Campos foi a figura típica de um certo vanguardista da época, burguês e antiburguês, refinado e provocador, impulsivo, neurótico e angustiado. Morreu em Lisboa a 30 de Novembro de 1935, dia e ano da morte de Pessoa. Alberto Caeiro

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OS ÚLTIMOS TRÊS DIAS DE FERNANDO PESSOA. UM DELÍRIO 18/19

Alberto Caeiro da Silva, mestre de Fernando Pessoa e de todos os heterónimos, nasceu em Lisboa em 1889 e morreu na província em 1915, tuberculoso como o pai de Pessoa. Passou a sua curta vida numa aldeia do Ribatejo, em casa de uma velha tia-avó para onde se retirara devido à sua frágil saúde. Não há muito a dizer sobre a biografia deste homem solitário e contemplativo que levou uma existência afastada de toda a agitação. Pessoa descreve-o como um homem loiro, de olhos azuis, estatura mediana. Escreveu poesias aparentemente elegíacas e ingénuas. Na realidade, Caeiro é um olhar que olha, um predecessor da fenomenologia que surgiria na Europa algumas décadas mais tarde.

Ricardo Reis

Ricardo Reis nasceu no Porto a19de Setembro de 1887 e foi educado num colégio de jesuítas. Era médico, mas não sabemos se se serviu da sua profissão como modo de vida. Depois da instauração da República, exilou-se para o Brasil devido às suas ideias monárquicas. Foi um poeta sensista, materialista e neoclássico. Sofreu a influência de Walter Pater e do cIacissismo abstracto e distante que fascinou certos naturalistas e homens de ciência anglo-saxónicos do fim do século. Bernardo Soares

Não conhecemos a data do seu nascimento nem a da sua morte. Levou uma vida muito modesta. Era ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, numa firma de import-export de tecidos. Sonhou sempre com Samarcanda. É autor de um diário lírico e metafísico que intitulou O Livro do Desassossego. Pessoa conheceu-o num pequeno restaurante que se chamava “Pessoa” e a cujas mesas, ao jantar, Bernardo Soares lhe contou o seu projecto literário e os seus sonhos. António Mora

O filósofo António Mora, autor desse Regresso dos Deuses que iria constituir o grande livro do neopaganismo português, acabou os seus dias na clínica psiquiátrica de Cascais. Foi justamente nessa clínica psiquiátrica que Pessoa conheceu António Mora.

Alto, imponente, o olhar vivo e a barba branca, António Mora recitou a Pessoa o começo do lamento de Prometeu da tragédia de Ésquilo. E foi nessa circunstância que o velho filósofo confiou a Pessoa os seus manuscritos.

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OS ÚLTIMOS TRÊS DIAS DE FERNANDO PESSOA. UM DELÍRIO 19/19

Índice

o A minha vida foi mais forte do que eu

o A hora dos fantasmas o Só falei do tempo que passa

o A alguns quilómetros de Lisboa o A receita da lagosta suada

o Também eu esqueci a morte o As personagens que aparecem neste livro