OTEMU- Dissertacao - Silvio Conceicao

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UMA BOA DISSERTAÇÃO SOBRE CIDADE E EDUCAÇÃO

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    FACULDADE DE EDUCAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    SILVIO JOS CONCEIO

    APRENDIZCIDADE OU AS ESCOLAS INVISVEIS: A CIDADE COMO ESPAO DE APRENDIZAGEM

    Salvador 2006

  • SILVIO JOS CONCEIO

    APRENDIZCIDADE OU AS ESCOLAS INVISVEIS: A CIDADE COMO ESPAO DE APRENDIZAGEM

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao, Faculdade de Educao, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Educao. Orientadora: Prof. Dra. Maria Inez da Silva de

    Souza Carvalho

    Salvador 2006

  • UFBA/ Faculdade de Educao Biblioteca Ansio Teixeira

    C744 Conceio, Silvio Jos. Aprendizcidade ou as escolas invisveis : a cidade como espao de aprendizagem / Silvio Jos Conceio. 2006. 121 f.

    Orientadora: Profa. Dra. Maria Inez da Silva de Souza Carvalho. Dissertao (mestrado) Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educao, Salvador, 2006.

    1. Aprendizagem. 2. Escolas Aspectos sociais. I. Carvalho, Maria Inez da Silva de Souza. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educao. III. Ttulo.

    CDD 370.1523 22. ed.

  • TERMO DE APROVAO

    SILVIO JOS CONCEIO

    APRENDIZCIDADE OU AS ESCOLAS INVISVEIS: A CIDADE COMO ESPAO DE APRENDIZAGEM

    Dissertao aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Educao, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca examinadora:

    Maria Inez da Silva de Souza Carvalho _______________________________________ Doutora em Educao, Universidade Federal da Bahia (UFBA) Universidade Federal da Bahia

    Susana Acosta Olmos ______________________________________________________ Doutora em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia (UFBA) Universidade Federal da Bahia

    Teresinha Fres Burnham __________________________________________________ PhD em Sociologia e Poltica do Currculo, University of London, UL, Inglaterra Universidade Federal da Bahia

    Salvador, 03 de outubro de 2006.

  • Cabea que eu tenha sempre Para sempre lembrar (matutar) Memria que eu nunca perca Para nunca esquecer Que tudo comeou h muito tempo E h tanta coisa ainda por fazer. [...] Gonzaguinha A Olindina dos Santos, minha me.

    A Jos Silvio Conceio Souza, meu pai.

    (in memorian)

    [...] A vida mesmo uma misso

    [...] S sabe quem viveu

    Pois quando o espelho bom Ningum jamais morreu.

    [...] Joo Nogueira &

    Paulo Csar Pinheiro

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo a todos os que colaboraram com minhas discusses, que acreditaram na Cidade, na Escola e nos Espaos de Aprendizagem. Aos meus pais e minha famlia, pela fora, pelos ensinamentos, pela luz. Aos alunos das Escolas visitadas que tanto contriburam com este trabalho. Rede Cooperativa de Pesquisa e Interveno em (In)formao, Currculo e Trabalho, que acolheu o meu trabalho desde o incio, ainda estudante de Arquitetura. A Teresinha Fres, que me permitiu ingressar nos espaos multirreferencias de aprendizagem. A Chango Cordiviola, pelos sbios ensinamentos, pelas viagens arquiteturais. A Susana Olmos, por seu encorajamento, pela oportunidade de aprender ensinando, ... pela cidade de barro e tantas outras... Aos meus alunos e alunas ... dos Atelis de Projeto. Aos meus professores,. Emarc-Uruuca... Aos autores que permitiram o dilogo. E especialmente a Inez Carvalho, minha orientadora de todas as direes: norte-sul-leste-oeste, por acreditar e apostar na Cidade como espao de aprendizagem, pela emoo, pela dedicao, perseverana e pelas discusses.

  • [...] Outros que contem

    Passo por passo. Eu morro ontem

    Naso amanh Ando onde h espao:

    Meu tempo quando. Vinicius de Moraes

    [...] Quem quiser que pense um pouco

    Eu no posso explicar meus encontros Ningum pode explicar a vida

    Num samba curto. Paulinho da Viola

  • RESUMO

    Esta dissertao trata da cidade, da escola e dos espaos de aprendizagem. A cidade, entendida em suas vrias dimenses e referncias enquanto construo da vida contempornea; a escola como o lugar formal para as aprendizagens, lugar esse, inserido na cidade, parte dela, constituinte do todo cidade; aprendizagens, como apreenso humana do seu contexto, de suas realidades, de seus movimentos. A escola discutida e apresentada como lugar plural das aprendizagens, como possibilitadora dessas aprendizagens, que aponta para a cidade que a abriga. , pois, a cidade, a casa do urbano, o lugar de vivncias e passagens, dos encontros e caminhos, nela que a vida urbana se d e nela tambm est a escola. Cidade, que permite a construo do conhecimento, escola que atende pelo vis da trans-formao do cidado. Escola que se pretende cidade, e cidade que se pretende escola. Tentamos, aqui, trabalhar a cidade e a escola atravs de diversas abordagens - a literatura da cidade e na cidade, a vida na escola; as vivncias na cidade, as experincias na escola; as memrias da cidade, as aprendizagens na escola. Escola e cidade como espaos de aprendizagem, numa perspectiva de mltiplos olhares sobre a temtica proposta. Foram realizadas leituras da escola e da cidade a partir de dilogos e entrevistas com alunos da Rede Pblica de Ensino Mdio e com Teresinha Fres; a partir de narrativas e anlises de prticas educativas, que tiveram a cidade como protagonista memrias, dilogos e projeto da escola na cidade; e atravs da leitura de alguns autores que versam sobre a cidade, suas redes e sistemas, da escola e da construo do conhecimento na complexidade, e das abordagens urbanas e pedaggicas na cidade e da cidade. Palavras-chave: Escola; Cidade; Espaos de aprendizagem; Abordagens da Cidade; Literatura e Cidade.

  • ABSTRACT

    This dissertation is about the city, the school and learning spaces. The city understood - in its various dimensions and references - as a construction of contemporary life; the school as the formal place for learning, set in the city - part of it - a constituent of the whole ' city; learning as human apprehension of its context, realities, and movement. The school is discussed and put forward as a plural place for learning, as a facilitator of this learning, aimed at the city that shelters it. Thus, the city - the house of the urban dweller, a place of existences and passageways, of encounters and pathways - spawns both urban life and the school in it. The city that allows the construction of knowledge; the school that assists in transformation of the citizen. The school aspires to be the city, and the city aspires to be the school. We have attempted here to work with the city and the school via various approaches - the literature on and in the city, life in the school; ways of life in the city, experiences in the school; memoirs of the city, learning in the school. School and city as learning spaces viewed from a multiple perspective on the proposed theme. Readings of the school and the city were carried out through dialogues and interviews with students from the State secondary school system and with Teresinha Fres Burnham, via accounts and analyses of educational practice that had the city as the protagonist memoirs, dialogues and the project of the school in the city, through the reading of some authors that have portrayed the city - its networks and systems, of the school and the construction of knowledge in such complexity, and of the urbanising and pedagogic approaches in and of the city. Key words: School; City; Learning spaces; Approaches to the city; Literature and the City.

  • SUMRIO I - A ESCOLA, A CIDADE E SEUS ESPAOS: caminhos e percursos 09

    II - AS CIDADES INVISVEIS: abordagens da cidade - ENSAIOS -

    1. Abordando a cidade 19

    2. Cidade, informao e conhecimento: 26

    por uma abordagem do espao urbano

    3. As cidades da aprendizcidade 39

    4. ComplexCidade 53

    III - AS ESCOLAS VISVEIS - ENSAIOS-CRNICAS -

    5. Dos Alunos: A Escola do aprender com as pessoas 73

    6. Da Memria: A Emarc 85

    7. Do Dilogo: Aproveita-tudo ou a escola de Teresinha Fres 91

    8. Do Projeto: A escola de Plataforma o ateli 101

    IV APRENDIZCIDADE 109

    REFERNCIAS 115

  • 9I - A ESCOLA, A CIDADE E SEUS ESPAOS: caminhos e percursos

    A escola e demais espaos de aprendizagem configuram um eixo

    articulador entre o conhecimento e seu processo de construo, e a cidade e suas

    vivncias e apreenses. na cidade que a vida acontece, atravs dos contatos entre os

    indivduos que circulam, vivem e trabalham. A cidade o lugar em que a vida

    humana atual acontece. Cidade que se apresenta em suas construes, atividades

    produtivas, culturais e comerciais. Cidade que est sempre em formao, espao que

    por mais consolidado no se cristaliza, est em constante transformao. Cidade que

    se faz ao caminhar, como no poema de Antonio Machado, tantas vezes citado por

    Edgar Morin:

    Caminhante, so tuas pegadas O caminho, e nada mais; Caminhante, no h caminho, Faz-se caminho ao andar Ao andar se faz o caminho, E ao se voltar o olhar pra trs V-se a estrada que nunca Se h de tornar a pisar. Caminhante, no h caminho. Apenas trilhas sobre o mar . (MACHADO, 1964, apud MORIN, 2003, p. 21-22)

    A cidade aqui entendida como elemento vivo que traz consigo

    caractersticas do cristal e da chama conforme nos apresenta Italo Calvino em Seis

    propostas para o prximo milnio (1988), livro em que o autor analisa valores que

    poderiam ser preservados na literatura para nosso atual milnio. A cidade

    movimento e fluxo de pessoas e aes, mostra-se materializada na concretude de

    suas construes e edificaes, abriga funes que se diferenciam ao longo do tempo,

    de acordo com o que sua comunidade define como mais apropriado. As imagens do

    cristal trazem consigo a quietude e a perenidade da forma aliadas ao

    micromovimento (reaes qumicas) de suas molculas, e as da chama trazem a

    inconstncia da forma e o rpido movimento de molculas, apresentando ainda

    assim uma certa ordem. Os dois, cristal e chama, so faces, reas, espaos ou

    elementos da mesma cidade: o ir e vir de seus produtos, o desenvolvimento da

    tcnica, lugar de encontro e passagem, lugar de trabalho e culto, espao do saber/

  • 10

    cultura, espao de contemplao e de vida. Sob essas perspectivas, nesta dissertao

    desenvolvemos nossas narrativas, tentando visualizar a cidade em sua complexidade

    conceitual, com especial ateno para as prticas que geram/possiblitam a

    aprendizagem dos indivduos/sociedade no espao escolhido pela humanidade

    como lar no mundo contemporneo a cidade.

    A presente dissertao investiga a cidade, a escola e seus espaos de

    aprendizagem, articulados com aqueles que se destinam aos mais variados fins

    espaos para o lazer, para o trabalho e estudo, para as trocas e comrcio e para a

    elaborao dos novos meios de apreenso desse mesmo espao. Apia-se em alguns

    dos instrumentos da Etnopesquisa (Macedo, 2000): histria de vida vivncia e

    narrativa, entrevistas e grupos focais, na tentativa de um dilogo plural com os

    sujeitos da pesquisa: o sujeito-autor-da memria, onde apresentamos os relatos e

    uma anlise sobre minha experincia com alguns dos espaos de aprendizagem; o

    sujeito-autor-aluno, que vivencia a cidade, a escola e seus espaos, buscando

    aprendizagens nesses espaos; e o sujeito-autor-pesquisador, que investiga os

    espaos multirreferenciais de aprendizagem, como objeto de pesquisa, forjando

    conceitos e propondo uma viso igualmente para alm da escola e dos espaos

    formais de aprendizagem igreja, sindicatos, clubes e outras instituies que tm a

    formao e aprendizagem reconhecidas pela sociedade.

    O sujeito-autor-pesquisador foi abordado diretamente atravs da

    realizao de entrevista aberta, com narrativa de vida, com Teresinha

    Fres, pesquisadora que cunhou e forjou o conceito de espaos

    multirreferenciais de aprendizagem;

    O sujeito-autor-aluno, aqui representado pelos alunos da Rede

    Pblica Estadual de Ensino Mdio de Salvador: Instituto Central de

    Educao Isaas Alves e Colgio Davi Mendes Pereira, com a

    realizao de entrevistas, estruturadas na forma de grupos focais, em

    que o tema proposto debatido pelo grupo pesquisado;

  • 11

    O sujeito-autor-da memria compreende as reflexes e lembranas

    pessoais acerca dos espaos formais de aprendizagem - a escola, da

    insero desses na cidade e de sua articulao com outros espaos

    que compem a rede urbana; fazem parte desta reflexo, a narrativa

    de experincia em projeto arquitetnico para os espaos formais de

    aprendizagem, em meio ao Ateli de Projeto no Curso de

    Arquitetura da UFBA.

    A abordagem do sujeito-autor-pesquisador tambm contempla a

    leitura e anlise transversal de alguns tericos da escola, da cidade,

    da produo e construo do conhecimento, dentre outros, que aqui

    denominamos de sujeito-autor-dos escritos, grupo que engloba os

    pensadores, pesquisadores, poetas, literatos e compositores

    tambm referenciais do nosso trabalho.

    Trata-se de uma busca por uma abordagem plural e multifacetada de uma

    possvel cincia urbana, dos caminhos da educao e aprendizagem e da literatura

    de nossas vidas. Aqui encontromos pistas de insertos e incertos caminhos, ora pr-

    elaborados, ora percorridos sem maiores preocupaes, com incertas direes. Agora

    fazemos conexes dos espaos no tempo por onde passamos. No sabia, j naquela

    poca, quais caminhos iria trilhar. Nesta busca tentamos compreender as articulaes

    entre espao e aprendizagem, entre o que e como se aprende e onde isso se d.

    Ansio Teixeira preconizava para a Escola o papel fundante do processo

    de ensino-aprendizagem; percebia na escola e no espao escolar a capacidade de

    articulao dos saberes e a possibilidade para a cidadania. Para ele, a escola, inclusive

    o seu espao fsico, deveria possibilitar a realizao de atividades que fossem alm da

    sala de aula como centro mximo do saber e tambm construir para e com todos os

    envolvidos no processo educandos e educadores - um ambiente que fosse capaz de

    reinventar a educao na escola, que j no deveria restringir-se ao ler, escrever e

    contar. Era preciso desenvolver na criana, atravs da escola, a capacidade de lidar

    com a velocidade das mudanas que ocorriam e ocorrem em nossa sociedade. Para

    esse autor, a escola no poderia continuar sendo, apenas:

  • 12

    [...] uma casa onde as crianas aprendiam o que lhes era ensinado, decorando as lies que os professores marcavam, depois tomavam, e que lhes forneciam elementos de informao e saber, que, s mais tarde eles deveriam utilizar. (TEIXEIRA, 1930)

    Essa abordagem da velha escola, segundo Ansio Teixeira, ancorava-se

    em pressupostos que deveriam ser superados: que o estudo um modo de aprender

    uma lio; que aprender fixar na memria essa lio; e que ensinar doutrinar para

    a apreenso dos fatos e conceitos estabelecidos; e que, para isso, era necessria a

    realizao dos exames que aferissem o quanto fora apreendido dos livros. A velha

    escola abrigava o papel de transmisso do saber catalogado e reunido nos livros,

    enquanto a Nova Escola deveria desenvolver no aluno atitude crtica diante do

    progresso tecnolgico, acompanhando o avano material de nosso tempo.

    No contexto de uma escola que se pretenda nova - aquela que busca

    mudana das prticas correntes no processo de ensino-aprendizagem, com seu papel

    redimensionado e repensado, que podemos reivindicar para o espao escolar,

    atitudes e prticas que faam a vida entrar na escola, como pretendia Ansio

    Teixeira, bem como, a escola entrar na vida. Aqui tratamos tambm da vida urbana

    de nossas cidades, onde o espao, hoje, mais de passagem que de vivncias e de

    encontros. No pretendemos pensar a escola apenas como reflexo da sociedade, mas,

    tambm, como um lugar onde o conhecimento seja produto da construo e

    reconstruo coletivas, dos saberes e prticas, como produto da ao do homem em

    seu tempo-espao, da compreenso da presena do indivduo na coletividade e das

    marcas da coletividade presentes no indivduo.

    neste contexto que as reflexes de Teresinha Fres acerca dos espaos

    de aprendizagem (REDPECT, 1999) abrem possibilidades para a compreenso dos

    fenmenos advindos da construo de saberes, onde espaos que articulam,

    intencionalmente, atividades de trabalho (produo material de bens e servios) e

    processos de aprendizagem (produo imaterial de subjetividades,

    conhecimentos) [] (FAGUNDES; FRES BURNHAM, 2001) se instituem no nosso

    tempo e nos fazem refletir sobre a escola (espao formal) e sobre a cidade como

    espaos de aprendizagem.

  • 13

    A cidade tem sido objeto de variados especialistas dedicados a estudar e

    analisar a sua origem e formao, a sua forma, suas funes e estruturas, seus

    espaos abertos e construdos, seu sistema virio, as atividades desenvolvidas, os

    tipos de habitao, comrcio, servios e indstrias, indo desde os aspectos mais

    gerais aos mais restritos e locais. Aqui, o que pretendemos, atravs dos relatos,

    evidenciar o aspecto relacional dos espaos e dos grupos e indivduos que os

    apreendem e que os tornam vivos.

    Discutindo os espaos multirreferenciais de aprendizagem, passaremos

    pela concepo do espao articulada com o tempo, como aborda Milton Santos

    (1996), pelas reflexes da abordagem multirreferencial (ARDOINO, 1998),

    entendida como uma pluralidade de olhares dirigidos a uma realidade e uma

    pluralidade de linguagens para traduzir esta mesma realidade e os olhares dirigidos

    a ela (FAGUNDES; FRES BURNHAM, 2001); e pela convocao da cidade, da

    paisagem e das aprendizagens. Berger e Luckmann (1985, p.29-30) consideram da

    maior importncia para a sociologia do conhecimento o que os homens conhecem

    como realidade em sua vida cotidiana: Em outras palavras, o conhecimento do

    senso comum, e no das idias, deve ser o foco central da sociologia do

    conhecimento. precisamente este conhecimento que constitui o tecido de

    significados sem o qual nenhuma sociedade poderia existir. Apoiados nessas

    reflexes retomamos alguns caminhos por ns percorridos que possam ajudar na re-

    construo de conceitos, sentidos e ideias atravs das imagens do espao vivido.

    Bachelard (1993, p. 19), em seu clebre livro A potica do Espao diz que o espao

    percebido pela imaginao no pode ser o espao indiferente entregue mensurao

    e reflexo do gemetra. um espao vivido. E vivido no em sua positividade, mas

    com todas as parcialidades da imaginao.

    Neste sentido, retomamos algumas experincias espao-temporais como

    fragmentos de percursos e caminhos, ora fruto de releituras e anlises de alguns

    autores e produtores de cincia e literatura, aqui tratados como Ensaios, ora vividos

    pessoalmente e tratados aqui como Ensaios-crnicas. Assim, esta dissertao uma

    construo livre e aberta, em que conceitos, entrevistas, lembranas e releituras sero

  • 14

    apresentados em fragmentos reflexivos da cidade, da escola e das aprendizagens

    possveis nesses espaos. Uma dissertao, na qual o caminho construdo so os

    fragmentados percursos de uma certa histria ou de certas histrias.

    Optamos por organiz-los em dois blocos. O primeiro analisa e trabalha

    com os estudos e constructos tericos do sujeito-autor-dos escritos, e intitula-se AS

    CIDADES INVISVEIS: ABORDAGENS DA CIDADE ENSAIOS. constitudo

    de quatro ensaios que abordam a temtica da cidade em vrias possibilidades: 1

    Abordando a cidade, um apanhado geral de como pode a cidade ser analisada e

    trabalhada pelos diversos profissionais que a tm como objeto de estudo; 2 Cidade,

    Informao e Conhecimento, esse ensaio prope uma viso em rede do objeto

    cidade a partir de reflexes acerca dos fluxos de informao geridos e gerados no

    espao urbano como possibilidade para a construo do conhecimento, observando

    os vrios percursos da informao e do conhecimento na cidade sob o ponto de vista

    dos seus aspectos fsicos e relacionais como instituidores de redes informacionais; 3-

    As cidades da Aprendizcidade, ensaio que realiza um passeio pela cidade fsico-

    espacial, pela cidade imaginria e pela cidade informacional, como possibilidades

    para a cidade da aprendizagem; 4- CompleXcidade, esse texto uma referncia

    obra de Italo Calvino em suas abordagens da cidade, onde ele faz dialogar as

    vivncias humanas com seus espaos e constructos. A proposta percorrer os

    caminhos das cidades na literatura do referido autor com olhares de um

    pensamento da complexidade. Literatura e cincia num articulado convvio e nos

    ensinando percursos outros de apreenso e anlise da cidade e do espao urbano.

    Apresentamos aqui dialogias da complexidade em Edgar Morin e Italo Calvino,

    permitindo um olhar no amplo sentido da palavra para a cidade, para a cincia e

    para a literatura, todas como construo coletiva que abrigam homem e mulher,

    fazendo-o refletir sua existncia e suas produes, e ainda sonhar na urbanidade da

    cincia e da literatura, na cientificidade literria do espao urbano um espao de

    aprendizagem, e no carter literrio das nossas cidades e cincias atravs de

    pensamentos da complexidade. No ttulo deste bloco, invisveis uma clara

    referncia ao clebre livro de Italo Calvino As Cidades Invisveis, onde as

    experincias da imaginao e do imaginrio so apresentadas atravs de alguns dos

  • 15

    possveis constructos tericos. Cidades Invisveis em contraposio s Escolas

    Visveis do segundo bloco; na verdade, um jogo onde a cidade, como conceito e

    vivncia, sem uma cidade especfica, assume caractersticas de lugares concretos e

    habitados das nossas Cidades Visveis. As Escolas Visveis foram resgatadas da

    memria, dos projetos e das discusses com alguns de seus alunos. Representam

    escolas especficas, que podem ser sentidas, lembradas e refletidas em tantas outras

    das nossas Escolas Invisveis.

    O segundo bloco, AS ESCOLAS VISVEIS - ENSAIOS-CRNICAS,

    composto de ensaios que abordam os outros sujeitos-autores de nossa pesquisa. No

    ensaio 5- Dos alunos: A Escola do aprender com as pessoas, apresentamos a

    investigao com o sujeito-autor-aluno, referenciada na experincia de alguns

    alunos da Rede Pblica Estadual de Ensino Mdio, num dilogo vivo da escola com a

    cidade e os desejos dos alunos.

    A experimentao, vivncia e reflexo da escola onde realizamos os

    estudos do Ensino Mdio, eis o tema do texto intitulado, 6- Da memria: A Emarc,

    com algumas selecionadas lembranas pessoais. Nesse ensaio-crnica, narramos as

    experincias espaciais, que permitem a re-construo de imagens vividas num

    tempo-espao escolar mltiplo e variado, onde a indiferente mensurao

    topogrfica era o principal objetivo; e que agora pode ser revisitada, com todas as

    parcialidades da imaginao, atravs da reconstruo do olhar. um convite a um

    passeio por um filtro possvel de nossa memria. Este ensaio aborda o sujeito-autor-

    da memria de nossa investigao.

    No texto seguinte, nossa abordagem diz respeito ao sujeito-autor-

    pesquisador. Apresentamos alguns dos aspectos relacionados aos espaos de

    aprendizagem atravs de anlises e reflexes dos dilogos estabelecidos na entrevista

    com Teresinha Fres, que resgata a escola de sua infncia, 7- Do dilogo: Aproveita-

    tudo ou a Escola de Teresinha Fres.

    No ltimo ensaio-crnica, apresentamos a experincia de projetar uma

    escola, a vivncia na Faculdade de Arquitetura da UFBA, a participao na Rede de

  • 16

    Pesquisa e Interveno em (In)formao, Currculo e Trabalho REDPECT, e a

    aproximao com os espaos de aprendizagem: 8- Do projeto: A escola de

    Plataforma o ateli. Mais uma vez, o sujeito-autor-da memria que norteia nossa

    anlise. Todos os ensaios apresentados fazem um dilogo com os autores em

    questo, sejam os dos livros consultados, os alunos, os professores ou as memrias

    revisitadas.

    Por fim, tentamos empreender uma breve pincelada sobre a construo

    feita, sobre as experincias apresentadas, que devem ser apreendidas, e articuladas

    por cada um dos possveis leitores. APRENDIZCIDADE dado como texto final,

    mas, na verdade, o incio do processo de compreenso da escola e da cidade como

    espaos multirreferenciais de aprendizagem. Uma construo por fazer

    continuamente.

  • II

    AS CIDADES INVISVEIS: abordagens da cidade - ENSAIOS -

  • As coisas esto no mundo, S que eu preciso aprender.

    Paulinho da Viola

  • 19

    1. ABORDANDO A CIDADE

    A cidade tal qual conhecemos, centro de vivncia principal da sociedade

    contempornea, desempenha enorme fascnio como objeto de vrias abordagens,

    leituras e vises dos pesquisadores das cincias humanas, sociais e de todas aquelas

    que se preocupam com o espao cotidiano das populaes.

    Podemos abordar a cidade do ponto de vista de sua conformao fsica e

    topogrfica, do seu sistema virio, das suas edificaes, dos seus centros; sob a tica

    das atividades desenvolvidas, sejam elas comerciais, industriais, de servios ou

    residenciais, no deixando de lado seus espaos de lazer, educao, cultura, religio;

    aspectos tursticos, a relao com suas regies, a organizao espacial de suas

    funes, as perspectivas de trabalho e sobrevivncia das populaes; as organizaes

    sociais, a distribuio/concentrao de renda, a apropriao dos espaos pblicos e

    privados por parte de seus habitantes; os hbitos e costumes do lugar. Abordagens

    essas que podem proporcionar olhares diferenciados sobre a cidade, quando

    estudadas, observadas, pesquisadas e analisadas as questes sociais,

    comportamentais e individuais dos atores sociais, esprito maior do espao-cidade.

    Tentamos, aqui, apresentar possibilidades de olhares sobre a cidade

    espao de vivncia para uma melhor compreenso dos processos de

    apreenso/aprendizagem gerados, vivenciados e construdos no espao-cidade.

    Estamos falando de uma abordagem que esteja apoiada em referncias mltiplas: os

    aspectos arquitetnicos e urbansticos da cidade fsica, as relaes dos habitantes com

    os espaos de moradia, trabalho, lazer, aprendizagem informal e institucionalizada

    da cidade imaginria e, tambm, com os espaos virtuais de comunicao e

    (in)formao da cidade informacional.

    Importante perceber que abordamos a cidade quando da apresentao de

    projetos, programas e pesquisas arquitetnicas e urbansticas; quando envolvemos

    diretamente os atores sociais como objeto de nossa pesquisa, pois esto inseridos

    num contexto histrico-espacial-cultural; quando investigamos aspectos da natureza

    e do ambiente habitado, quer nas suas riquezas, ou mesmo na sua degradao;

  • 20

    quando observamos os indicadores econmico-sociais; e tambm quando nos

    deparamos com os aspectos tecnolgicos e informacionais. As abordagens podem ser

    realizadas sobre variados aspectos da cidade, dependendo da natureza do objeto

    estudado, quase sempre referenciados em fragmentos da cidade.

    Quando falamos de cidade, preciso entend-la para alm dos muros de

    suas construes, das guias de suas ruas e avenidas, das reais-imaginrias linhas de

    seus bairros, ou mesmo dos seus limites geopolticos. Estamos tratando da cidade

    que se faz presente no cotidiano dos indivduos que habitam, constroem/destroem

    esse espao; dos que nela chegam e dela partem, dos que a escolheram como lugar,

    dos que sentem prazer estando ou passando por ela:

    Todos os dias um vai-e-vem A vida se repete na estao Tem gente que chega pra ficar Tem gente que vai pra nunca mais Tem gente que vem e quer voltar Tem gente que vai querer ficar Tem gente que veio s olhar Tem gente a sorrir e a chorar E assim chegar e partir So s dois lados da mesma viagem O trem que chega o mesmo trem da partida A hora do encontro tambm despedida A plataforma dessa estao a vida desse meu lugar a vida desse meu lugar, a vida1.

    Continuamos com a cidade que se faz/refaz/desfaz a cada dia, a cada

    instante; que se constri a todo momento com a dinmica das estaes; as estaes

    locais do trem de ferro e, tambm, as estaes virtuais dos trens de informaes, que

    perpassam e pairam por sobre a cidade. a superposio das cidades fsicas,

    imaginrias/subjetivas e as cidades informacionais.

    Cabe-nos perguntar qua(l)(is) a(s) face(s) da cidade que se apresenta(m)

    para os socilogos, psiclogos, urbanistas, arquitetos, pedagogos, professores,

    economistas, operrios, telogos, bilogos, entre outros Que cidades so essas? Que

    abordagens fazemos? Numa viso restritiva, o objeto principal de cada uma destas

    1 Encontros e Despedidas, msica de Milton Nascimento e Fernando Brant.

  • 21

    atividades exclui o da outra, mas, sob um ponto de vista mais amplo, todas elas se

    relacionam e convidam ao entendimento da cidade como um todo, constitudo de

    partes que polialogam e permitem as complexidades e as contradies da vida

    urbana, da vida na cidade, da vida da cidade.

    Estudando a cidade nos seus constituintes, onde esto as diferenas de

    abordagem deste tema pela cincia? Existem ou so faces da mesma viagem?

    Acreditamos que diferenas existem, mas podem ser tratadas como complementares,

    embora, s vezes, divergentes. importante o trabalho relacional sobre as faces ou

    multirreferncias da cidade, para que sejam possveis a interao de sentidos, razes

    e desejos, quando da escolha desse espao como centro das investigaes de uma

    pesquisa.

    Podemos pensar/sentir a cidade como o lugar que permite, aos filhos, o

    contato com o mundo das drogas, da prostituio, da violncia; mas, podemos ver,

    neste mesmo espao, a socializao, a solidariedade, a aprendizagem, os encontros. A

    cidade plural. preciso nos despir dos dogmas engessadores dos olhares da/na

    cidade. O que dizer dos habitantes das favelas dominadas e protegidas pelo trfico

    de drogas, sem a tentativa de compreenso das relaes estabelecidas nesse lugar?

    Aqui, tentaremos estabelecer contato com as realidades da cidade para que possamos

    compreender as diferenas, as multiplicidades, as complexidades - fios de diversos

    matizes tramados num extenso tecido, onde h espao para identificaes e

    articulaes multirreferenciais.

    Buscamos entender a cidade e abord-la sob diversos olhares: o olhar do

    arquiteto, do socilogo, do educador, do urbanista, do transeunte, do estrangeiro, do

    habitante, do poeta, pois somos constitudos de vises mltiplas, ainda que uma

    determinada condio prevalea sobre os sentidos de cidade num dado momento.

    Ela uma para o poeta, outra para o urbanista e outra para o simples visitante que

    nela passar apenas uma noite. Mas, o que vale ressaltar so as diferentes ticas de

    um objeto que se constri diferentemente para cada um que tenta penetrar nos seus

    labirintos. Podem ser labirintos de informao, labirintos de ruas, estradas, Escolas,

  • 22

    palavras, imagens, referncias, mas, mergulham todos no mago, na essncia da

    cidade: em seu carter urbano, espao do aprender.

    A cidade pulsa dinamicamente de modo a nos presentear, cotidianamente,

    com espetculos inusitados e diversos. preciso, na abordagem da cidade,

    compreender o papel dos seus construtores e as relaes estabelecidas e

    estabelecentes que podem determinar a profundidade do mergulho no labirinto-

    cidade, o uso ou no de vestimentas especficas, do oxignio de reserva, ou ento, o

    mergulho de peito: onde o contato com o meio maior e a profundidade tambm

    possvel, sendo necessrio retornos constantes superfcie para se tomar flego.

    Abordagens de um objeto que contm outros tantos e que para encontrar-

    se, pode fragmentar-se e perder-se. um eterno movimento de dinmicas complexas

    e descontnuas que se estabelecem na escolha dos olhares e sentidos, na impregnao

    urbana ou na pureza espacial, no turbilho de vidas e vivncias ou na concepo da

    cidade apenas como entidade fsica construda, sem os seus construtores. Mas,

    acredito ser possvel abord-la atravs de anlises dos seus atores sociais, sem perder

    de vista os fatores fsico-ambientais, arquitetnico-urbansticos, histrico- scio-

    culturais, onto-antropolgicos. Ainda que um desses caminhos esteja mais presente

    que outros no percurso cientfico-metodolgico, importante que as ligaes entre

    eles no sejam eliminadas, escondidas, veladas; preciso distinguir sem excluir,

    como nos lembra Morin (2002a, p.89):

    preciso substituir um pensamento que isola e separa por um

    pensamento que distingue e une. preciso substituir um pensamento

    disjuntivo e redutor por um pensamento do complexo, no sentido originrio

    do termo complexus: o que tecido junto.

    O pensamento sobre a cidade deve apreend-la como construo/

    desconstruo humana. Podemos realizar pesquisas sobre stios urbanos

    deteriorados, do ponto de vista de suas edificaes, sem excluir os reflexos dessa

    destruio sobre a vida de sua populao antiga ou atual, nos aspectos econmicos,

    polticos, ou mesmo climtico-ambientais. Vrios podem ser os motivos que levam

  • 23

    destruio do ambiente construdo, at mesmo fatores naturais, que s vezes

    escondem a falta de polticas de justia social. Encontraremos, como razo dos

    processos degradativos, tanto os desabamentos por conta das chuvas, comuns em

    nossa cidade, assim como, o abandono do centro tradicional das cidades com

    consequncias cruis para a histria e a vida das mesmas, para citarmos dois

    exemplos. Tais fatores no podem ser entendidos como obra do acaso, devem ser

    investigadas e encontradas as lgicas e razes por trs da simples constatao.

    Nesses casos, podemos supor as aes da especulao imobiliria, por

    exemplo, dentre outros motivos, como co-responsveis pelo desabamento e

    abandono: faces da degradao, que tm origens, lgicas, implicaes e resultados

    distintos, mas que convergem para a morte ou subvida do espao dito urbano,

    conduzindo para perda da qualidade de vida das suas populaes, em ambos os

    casos. preciso distinguir os fatos, investigar e ouvir suas partes, construir os

    cenrios da compreenso, para que a pesquisa sobre o espao-cidade no fique nas

    nuvens, mas perceba a ao das chuvas que elas ocasionam, tanto sob o ponto de

    vista fsico como scio-econmico-cultural. Queremos com isso a possibilidade de

    uma abordagem no-cega da realidade estudada. Pleiteamos a diversidade dos

    discursos e a coerncia das prticas sobre a pesquisa-cidade, para no perdermos a

    sua riqueza, enquanto emaranhado humano.

    A cidade-objeto so vrias cidades na cidade, ou na interao entre-

    cidades; cidade que aprende, que canta, que dana, que trabalha, que se diverte, que

    vai escola, vai ao mar, que sobe e desce suas ladeiras, que vai ao teatro, aos bares,

    que passeia e dorme nas suas caladas e ruas, que impe normas e leis em nome do

    ordenamento e uso do solo, que tenta programar-se para o futuro, que acredita no

    sonho do carnaval, que j no acaba na quarta-feira, que se veste de baiana, que

    reverencia seus santos e orixs, que sobe a colina do Senhor do Bonfim, que vai ao

    Rio Vermelho no Dois de Fevereiro, mas que tambm frequenta a Catedral da F; que

    tem seus barracos, suas favelas, seus lixes, mas, tambm, seus edifcios e casares de

    alto luxo. Cidade de vrias cidades.

  • 24

    Cidades plurais que devem e podem ser tratadas em sua diversidade, nas

    suas diferenas, nos seus contrastes; revelando, entendendo e compreendendo suas

    faces, superfcies e formas, articuladas com seus habitantes e seus modos de vida

    urbana. Abordar a cidade permitir-se os mergulhos de peito.

    Compreenderemos a cidade atravs da vivncia, da observao, das

    caminhadas, passeios, conversas, entrevistas, fotografias, imagens, dinmicas,

    transcries, leitura, livros, msica, e tantas outras possibilidades, sendo

    importantssimo, o impregnar-se de cidade; entend-la nas totalidades, nos

    fragmentos, independente dos caminhos escolhidos e traados. preciso deixar-se

    levar... deixar-se conduzir pela onda dinmica que marca sua existncia; quer nas

    suas materialidades, nas virtualidades ou nas suas emergncias.

    As abordagens sobre a cidade so caminhos, por vezes, intencionalmente

    escolhidos e percorridos pelos atores-pesquisadores-observadores-pescadores sociais

    do teatro urbano, e devem permitir possibilidades mltiplas de entendimento,

    compreenso e aprendizagem no espao-cidade. Atuar, pesquisar, observar e pescar

    requerem o incessante navegar [...] em um oceano de incertezas, entre arquiplagos

    de certezas[...](MORIN, 2002b, p.86)2.

    2 Em seu livro, Edgar Morin refere-se s incertezas do conhecimento.

  • Embrenhei-me num deserto de areia: avanava afundando entre dunas de certa forma sempre diversas umas das outras e no entanto quase iguais. Conforme o ponto do qual fossem olhadas, as cristas das dunas pareciam relevos de corpos estendidos. Aqui parecia modelar-se um brao inclinado sobre um terno seio, com a palma estirando-se sobre uma face reclinada; alm parecia surgir de um jovem p de airosos artelhos. Parado a observar aquelas possveis analogias, deixei transcorrer um bom minuto antes de me dar conta de que sob meus olhos no tinha um crinal de areia, mas o objeto de minha perseguio.

    Italo Calvino, 1992.

  • 26

    2. CIDADE, INFORMAO E CONHECIMENTO: por uma abordagem do espao urbano

    As abordagens sobre o espao urbano so realizadas, em grande parte,

    com enfoque nos fatores fsicos, arquitetnicos ou formais da cidade, ou nos fatores

    econmicos, sociais e culturais individualmente, havendo quase sempre a mutilao

    de alguns fatores importantes para a compreenso urbana, como por exemplo, os

    aspectos relacionais entre os elementos/fragmentos urbanos. O que pretendo com

    este ensaio a construo de percursos que articulem as redes urbanas e suas

    questes (CASTELLS, 1983), os espaos de fluxos de Milton Santos (1998, 2002a,

    2002b) e a emergncia em sistemas auto-organizados de Steven Johnson (2003).

    Pleiteamos para os estudos urbanos, em conjunto com as teorias da

    complexidade, a compreenso dos fenmenos do espao-cidade a partir (tambm)

    das relaes estabelecidas e estabelecentes da produo do conhecimento e da

    informao. Entendemos (tambm) a cidade como espao de fluxos, e no apenas em

    sua configurao fsico-espacial, ela produto e produtora de complexidades que se

    apresentam nos indivduos/ grupos e nas articulaes/ produes das atividades

    humanas, onde configuram e constroem o espao. A cidade aqui entendida na

    diversidade de sua constituio, nos movimentos e dinmicas dos seus elementos/

    artefatos formadores, com ateno especial para as relaes criadas e estabelecidas

    entre eles. Milton Santos afirma:

    O espao deve ser considerado como um conjunto de relaes realizadas atravs de funes e de formas que se apresentam como testemunho de uma histria escrita por processos do passado e do presente. Isto , o espao se define como um conjunto de formas representativas de relaes sociais do passado e do presente e por uma estrutura representada por relaes sociais que esto acontecendo diante dos nossos olhos e que se manifestam atravs de processos e funes. O espao , ento, um verdadeiro campo de foras cuja acelerao desigual. Da porque a evoluo espacial no se faz de forma idntica em todos os lugares.

    Mais uma vez aqui a noo de relatividade produzida por Einstein aparece como fundamental porque substitui o conceito de matria pelo conceito de campo, o que supe a existncia de relaes entre a matria e a energia. Numa comparao talvez grosseira, as formas seriam comparveis matria e a energia dinmica social. (SANTOS, 2002a, p.153).

  • 27

    Cidades e redes

    Tratar a cidade num sistema em rede uma forma de potencializar seus

    espaos e aqueles gerados a partir de suas articulaes. E para isso importante o

    entendimento das lgicas de funcionamento que conectam vrias

    atividades/aes/objetos em seus fluxos. Redes de dados, redes de informaes,

    redes de trfego, redes de produo de conhecimento, redes de comunicao. So

    vrias, e no basta list-las. Mais importante tentar conhecer seus princpios. Steven

    Johnson fala de sistemas auto-organizados em comunidades de formigas, em redes

    de softwares, no crebro, e tambm em cidades. Neste ltimo caso, ele retoma

    algumas consideraes de Jane Jacobs (1961) que, em seu livro Morte e vida de

    grandes cidades, fala dos olhos das ruas, e da apropriao do espao pelos nova-

    iorquinos. Os estudos sobre as comunidades de formigas destruram o mito da

    supremacia da formiga-rainha. No existe a formiga-lder, mesmo assim, o sistema

    funciona. Johnson ainda cita algumas propostas de softwares que tentam abrigar em

    sua arquitetura, estruturas auto-organizadas, ao que ele chama de softwares

    inteligentes, e que, a partir do uso e dos conceitos construdos pelos usurios de

    forma no-hierrquica, o sistema vai ajustando-se a cada grupo de usurios, que, por

    sua vez, interagem em rede.

    O mesmo acontece com o espao urbano que, revelia de planos diretores

    de ocupao do solo, criam espaos especializados em alguns tipos de

    servio/atividade ou grupo social. So bairros ou regies da cidade que concentram

    empresas de comrcio de autopeas, de papelarias, roupas masculinas, roupas

    infantis, material esportivo, e assim por diante. Ou seja, existe uma organizao que

    pulsa fora dos sistemas hierrquicos, e isso uma lio da cidade para as abordagens

    urbanas.

    No nosso caso, o termo abordagem pode ser entendido no sentido dado

    pela cincia: tratar de, versar sobre algum tema, como tambm em sentido

    originrio, que vem de borda, estar na borda de algo, ou ainda no sentido de

    aproximao de uma embarcao para tom-la de assalto. Estamos tentando uma

  • 28

    aproximao com as embarcaes da informao e do conhecimento para, nesses

    cenrios e territrios, tratarmos das questes urbanas, que muito tm dos fluxos de

    informao e conhecimento.

    Conhecimento e informao construdos a partir da apreenso do espao e

    de suas dinmicas, dos modos de produo, da circulao de pessoas e objetos e dos

    demais fluxos nos espaos urbanos. importante atentarmos para o espao urbano

    tambm nos seus aspectos fsicos, para reconstrues dos sentidos de espao. So

    necessrias algumas aberturas nos conceitos de espao-urbano para que esse seja

    entendido nos aspectos fsicos, nas prticas e produes cotidianas e, tambm, nas

    dinmicas das prticas nos espaos e dos espaos de prticas.

    Informao, conhecimento e redes

    Os caminhos da informao e do conhecimento, como tambm os

    caminhos na cidade podem parecer aleatrios, produzidos por ningum, ou

    definidos segundo o acaso, ou o seu inverso imposto pelos detentores/operadores

    do poder da informao e do conhecimento. Mas cremos que eles so, em grande

    parte, fruto dos desejos e aspiraes de grupos/indivduos, que mesmo quando no

    possuidores do status de produtores originais dos modos urbanos, conseguem

    modificar, construir e significar o sistema urbano, medida que se apropriam dos

    espaos, lugares e lgicas. preciso invocar e compreender os sistemas auto-

    organizados estudados por Prigogine (1996), tom-los de assalto (por que no?) para

    que possamos estabelecer conexes entre os sistemas de fluxos de informao,

    conhecimento e pessoas na rede urbana.

    Evocamos a informao, o conhecimento e a cidade com o intuito de

    articular o espao urbano em suas vrias dimenses e referncias. Os espaos de

    fluxos, a circulao da informao, a construo do conhecimento e a capacidade de

    mltiplas dinmicas do espao urbano e da cidade so possibilidades de ligao

    entre esses campos para a compreenso daquilo que entendemos como matria,

  • 29

    imaginao e informao. A velocidade da comunicao, a grande capacidade de

    disseminao da informao pelos meios eletrnicos e de alta tecnologia podem

    levar, aos usurios, a sensao de no-identidade das fontes da informao.

    Enquanto em outros meios poderamos identificar os autores e produtores da

    informao, o que observamos, hoje, a difuso de pginas na rede mundial que

    propagam informaes aparentemente despersonalizadas. No que haja algum

    problema com a disseminao impessoal, apenas no acreditamos que seja verdica

    essa possibilidade, pois produzimos, disseminamos e consumimos a informao e, ao

    darmos qualquer um desses passos, a transformamos.

    A questo fundamental aqui o funcionamento dos sistemas em rede -

    redes de informao/ pensamento, atravs do imaginrio instituinte da sociedade

    como aponta Castoriadis (1982, 1999), ou da auto-organizao dos sistemas

    emergentes de Steven Johnson (2003).

    Eis que torna importante a compreenso dos sentidos que articulam

    questes aparentemente to distantes. Esse j um exerccio em rede. A propagao

    ou disseminao da informao na internet, como tambm nas cidades, acontecem

    pelas redes relacionais de informao. Redes essas formadas pelos indivduos e

    instituies na produo e espraiamento do objeto-informao. Por outro lado, temos

    a cidade e sua organizao espacial que est ligada s questes econmicas, sociais,

    culturais e histricas, mas que funcionam como se houvesse algum maestro regendo

    a orquestra, mesmo que em determinados momentos ela desafine, perca o tom ou o

    compasso. Esse maestro no existe. A fora da organizao a convivncia negociada

    e, ao mesmo tempo, tensional, dos atores sociais, na definio dos espaos de

    convivncia. Podemos pensar numa espcie de conscincia social, que surge das

    vivncias individuais e da aproximao com o outro para a criao de novos

    modos de vida e apreenso social. Novo, no sentido das modificaes/ construes e

    transformaes durante o processo de aprendizagem do espao.

    Na organizao da cidade, Johnson (2003) fala de emergncia, no

    caminhar da sociedade, Castoriadis (1982, 1999) trata do imaginrio instituinte, e

    Castells (1983), sobre o espao urbano, trata da sociedade em rede. Observamos nos

  • 30

    sistemas adotados e pesquisados por estes autores alguma coisa em comum, que a

    produo de informao na cidade-sociedade e tambm de criao/produo de

    conhecimento na/da sociedade sobre/com o espao urbano. Informao e

    conhecimento como articulao dos sistemas emergentes de auto-organizao.

    H objetivos explcitos para uma cidade razes de ser que normalmente seus cidados conhecem, decorrentes da proteo proporcionada pela cidade murada ou do comrcio livre nos mercados. No entanto, as cidades tambm tm um objetivo latente: funcionar como mecanismos de armazenamento e recuperao de informaes. As cidades criaram interfaces amigveis milhares de anos antes que algum sonhasse com computadores digitais. As cidades juntam mentes semelhantes e as colocam em escaninhos conexos. Sapateiros junto de outros sapateiros e fabricantes de botes perto de outros fabricantes de botes. Idias e mercadorias fluem rapidamente nesses conjuntos, levando produtiva polinizao cruzada, garantindo que boas idias no morram em reas rurais isoladas. (JOHNSON, 2003, p.79)

    Steven Johnson, atravs da emergncia, faz conexes da dinmica de

    rede no funcionamento do crebro, na organizao das formigas, nos sistemas

    urbanos e nos softwares. Essa construo-contribuio permite vislumbrar algumas

    viagens da informao por esses sistemas, e ainda a possibilidade de um

    conhecimento construinte e coletivo. Pode-se observar que os sistemas funcionam

    de modo articulado, e no estanque. Percebe-se um componente coletivo, ou

    imaginrio instituinte na cidade, como tambm no prprio indivduo-crebro. So

    redes e grupos que trabalham articulando-se com outras redes e grupos.

    Sob todos os aspectos, estamos no meio de outra revoluo tecnolgica a idade da informao, uma poca de conexes quase infinitas. Se o armazenamento e a recuperao de informao eram objetivo latente na exploso urbana da Idade Mdia, eles so os propsitos evidentes da revoluo digital. Isso nos leva seguinte questo: a Web tambm est aprendendo? Se fato que as cidades podem gerar inteligncia emergente um macrocomportamento provocado por milhes de micromotivos -, que forma de nvel mais alto est sendo gerada entre os roteadores e os cabos de fibra tica da Internet? (JOHNSON, p.83)

    Trata-se de auto-organizao. As possibilidades do empreendimento da

    circulao de informao e construo de conhecimento tm seu potencial ampliado

    pelas redes informacionais de comunicao. Steven Johnson sugere, para um melhor

    entendimento dos sistemas, a substituio das formigas por neurnios e do

    feromnio (deixado e seguido pelas formigas) por neurotransmissores, como

    analogia da aprendizagem em formigas, no crebro e, quem sabe, na Web, atravs da

  • 31

    conexo dos vrios crebros em rede, o que permitiria ao sistema virtual, um

    comportamento de vizinhana, embora existam deslocamentos e distanciamentos

    espaciais.

    O que parece interessante a capacidade em nossas mentes do

    reconhecimento da mente do outro; as formigas, pelo rastro de feromnio, acumulam

    alimentos, ou limpam os detritos; as cidades aprendem as funes pela histria de

    suas populaes. Achamos que isso poderia ser a grande conscincia que abrange

    os micromotivos e macrocomportamentos ou a instituio imaginria da sociedade,

    na qual Castoriadis trata da imaginao, relacionando esse termo com a imagem, em

    seu sentido mais geral e tambm com a ideia de criao:

    [...] No cria imagens no sentido habitual (ainda que as crie, tambm: marcos totmicos, bandeiras, brases, etc.), porm formas, que podem ser imagens no sentido geral (assim, falamos de imagem acstica de uma palavra), mas que so, de modo central, significaes e instituies, as duas sempre solidrias. O termo imaginrio aqui um substantivo, e se refere diretamente a uma substncia: no um adjetivo denotando uma qualidade. (CASTORIADIS, 1999, p.242)

    Assim, trata-se de uma forma de conexo entre a imaginao e a matria

    em sua substncia. A imaginao na sociedade, como possibilidade de organizao

    das aes e pensamentos conjuntos, tem implicaes materiais e informacionais. A

    matria, a imaginao e a informao andam juntas, e diria mais: no podemos

    facilmente separ-las. Conceber a informao sem o carter de criao que a

    imaginao pode dar, ou da materialidade da substncia fluida, difcil: seria

    mutilao de sentidos e propsitos. Queremos, com isso, tratar das articulaes entre

    essas grandezas, se assim podemos cham-las, para que o pensamento sobre as

    prticas cotidianas no espao urbano (assim, como o da circulao da informao

    pelas vrias mdias) no seja a interpretao individualizada ou puramente

    hierrquica. Existe um componente coletivo e social que d mltiplos sentidos, quer

    sobre o territrio, quer nas vias de transporte da informao. A informao toma o

    carter de objeto e imaginao, produtora de diversidades, presente na organizao

    socioespacial.

  • 32

    Espao de fluxos

    Milton Santos afirma que o espao no esttico ou estanque, fluido,

    ambiente de fluxos e velocidades:

    Hoje, vivemos um mundo da rapidez e da fluidez. Trata-se de uma fluidez virtual, possvel pela presena dos novos sistemas tcnicos, sobretudo os sistemas da informao, e de uma fluidez efetiva, realizada quando essa fluidez potencial utilizada no exerccio da ao, pelas empresas e instituies hegemnicas. A fluidez potencial aparece no imaginrio e na ideologia como se fosse um bem comum, uma fluidez para todos, quando, na verdade, apenas alguns agentes tm a possibilidade de utiliz-la, tornando-se, desse modo, os detentores efetivos da velocidade. O exerccio desta , pois, o resultado das disponibilidades materiais e tcnicas existentes e das possibilidades de ao.(SANTOS, 2002b, p.83)

    O espao, atravs da fluidez e rapidez adquire sentidos outros que o

    diferem do carter determinista de outrora; o espao dos fluxos e os fluxos do espao

    esto mais prximos da vida contempornea, onde a informao e o conhecimento

    transformam-se em valores expressivos da sociedade de consumo e de massas. No

    devemos esquecer a advertncia de Milton Santos: a quem serve esta velocidade?

    Quem tem o domnio sobre ela? Existe aqui contradio que desejamos explorar, sem

    no entanto, pensar ser possvel esgotar a discusso. Existem movimentos e dinmicas

    da informao e do conhecimento, existem os sistemas financeiros e econmicos

    hegemnicos que detm o poder, e portanto a informao e o conhecimento, e ainda

    podemos identificar, na sociedade, os indivduos/grupos que imprimem suas

    marcas no tempo-espao de suas vivncias, construindo conhecimentos e saberes

    atravs das informaes conquistadas/processadas/construdas. Como podemos

    falar de sistemas auto-organizados emergentes na cidade e na sociedade, se ainda os

    dilemas urbanos so mediados pelo capital e pelo poder financeiro e econmico? Se

    descolarmos a apreenso do espao, quem sabe no poderemos entender os

    fenmenos de emergncia e subordinao? Mas isso no seria uma mutilao do

    estudo e da abordagem? No disso que estamos fugindo quando evocamos a auto-

    organizao e emergncia em sistemas complexos? No podemos cair na armadilha

    da simplificao, como forma nica da compreenso desses sistemas-complexus.

  • 33

    Diante das dvidas e at mesmo para permanecer com elas, interessante

    que a abordagem possa abrigar a diferena e a opacidade, o complexus e as

    contradies. A multirreferencialidade nos ajuda a caminhar por esse emaranhado

    de informaes, conceitos, conhecimentos, espaos, fluxos e cidade. Se pudermos

    dizer que a multirreferencialidade tem princpios, diramos que so o da opacidade

    do objeto e dos mltiplos olhares, no como negao e mutilao de um ante o outro,

    mas como forma de distinguir e explorar vises outras, o que um olhar hierrquico

    no pode admitir. A nitidez dos contornos e arestas no se apresenta, pois, a cada

    olhar, uma nova relao se estabelece.

    Com tais observaes vamos tentar encontrar caminhos para o drama

    anteriormente exposto. Acreditamos que as instituies hegemnicas exercem seu

    poder de presso sobre a sociedade como um todo, mas essa sociedade no absorve

    os princpios ingenuamente, existe uma retroalimentao do sistema que modifica a

    estrutura de poder por meio das microapreenses de cada uma das atividades ou a

    cada (re)construo do conhecimento. Essa dinmica est presente tanto nos softwares

    inteligentes, nas cidades ou mesmo no crebro, a diferena de escala. Mas a

    proximidade entre os constituintes do sistema permite a criao de uma conscincia

    social mais geral.

    Os fluxos nas redes geram outros fluxos a partir de suas prprias

    dinmicas. O sistema no se resolve, ele ter sempre a dissipao de energia, o que

    fundamental para a sua constante instabilidade e mudana.

    Acerca das estruturas dissipativas, podemos falar de auto-organizao. Mesmo que conheamos o estado inicial do sistema, o processo de que ele sede e as condies nos limites, no podemos prever qual dos regimes de atividade esse sistema vai escolher. O alcance desta observao impressionou-me. No podem as bifurcaes ajudar-nos a entender a inovao e a diversificao em reas outras que a fsica ou a qumica? Como resistir tentao de aplicar essas noes a problemas da esfera da biologia, da sociologia ou da economia?[...] (PRIGOGINE, 1996, p.74)

    A aplicao de princpios nascidos em outros ramos da cincia , de fato,

    irresistvel, o que leva para as possveis conexes com a natureza. Uma cincia d

    suas contribuies, que so apreendidas e ressignificadas por outras, e a partir da,

    elas comeam a ganhar vida e podem voltar ao seu nascedouro, j modificadas e

  • 34

    transformadas, como num processo de contaminao e combate. Dissipao, auto-

    organizao e emergncia, princpios para a compreenso do espao urbano, e nesse

    sentido, a multirreferencialidade muito tem para contribuir:

    A multirreferencialidade [...] parte da idia de que o objeto efetivamente suscetvel de tratamentos mltiplos, em funo no s de suas caractersticas, mas tambm dos modos de interrogao dos atores (sobre esse objeto) e que esta multiplicidade radical. Cada abordagem, cada referente como se fosse o limite do outro... isso, pois que faz a especificidade da multirreferencialidade, e no a complementaridade, a atividade, a pretenso de uma transparncia pressuposta, e de um domnio possvel (deste objeto), mas a afirmao de uma vazio necessrio, da impossibilidade de (se alcanar) um ponto de vista superior a todos (os demais) pontos de vista e a afirmao da limitao recproca dos diversos campos disciplinares. H (pois) diversos campos de referncia possveis, nenhum esgota o objeto, nenhum pode, sobretudo, ser reduzido a outro, ou nenhum pode ser explicativo do outro campo. (BERGER, apud FRES BURNHAM, 1998, p.46)

    A multirreferencialidade pode ser aqui uma base para as abordagens

    urbanas, e mais uma vez tomamos de assalto um conceito a nosso favor. O que se

    pretende com isso a criao de possibilidades para os estudos dos espaos urbanos

    atravs de uma cincia que evite a mutilao do objeto. Ao chamar a ateno dos

    aspectos materiais, informacionais e imaginrios dos processos urbanos e sociais,

    queremos apenas indicar que o objeto modifica-se e transforma-se em funo de

    nossa aproximao ou de nosso distanciamento. como nas imagens evocadas por

    Italo Calvino (no incio do texto) para descrever as dunas e as outras conexes

    estabelecidas a partir de sua forma. Assim, o olhar no v apenas a areia que

    substancialmente conforma as dunas, mas faz dela matria-prima para sua criao, e

    portanto, com o uso da imaginao, reconstri e cria espaos e conceitos dspares em

    relao matria original.

    Abordagem urbana

    Pensamos que alguns caminhos foram traados em busca de

    possibilidades outras das abordagens urbanas. No basta que cada ramo da cincia

    preocupe-se com a fatia do mundo que lhe cabe. preciso fazer com que as cincias

    interajam em suas pesquisas, s assim poderemos caminhar para uma maior

    apropriao do espao de nossas vidas. As ligaes e articulaes entre os objetos

  • 35

    existem, preciso no cort-las. As cincias podem articular seus saberes e entender

    a sociedade como construo contnua e coletiva. uma questo de processo, mais

    que qualquer outra coisa. Processo contnuo, sem uniformidade, com discrepncias e

    contradies, onde as mltiplas dinmicas procuram, cada uma, os seus espaos e

    territrios que lhes so prprios.

    E onde est o conhecimento, a informao e a cidade? O que tem isso com

    aquilo? Onde est o espao urbano? E as redes informacionais? E a auto-organizao?

    Para essas perguntas que insistimos em fazer, no obtemos respostas. Talvez porque

    elas no sejam bem formuladas, pois dizem que uma questo bem formulada,

    certamente obter xito em sua busca. E no caso de termos respostas, para elas,

    outras perguntas tambm sero encontradas. No estamos certos, nem convencidos

    de tudo isso. Mas uma coisa parece certa: para uma abordagem consistente do espao

    urbano, no basta um estudo minucioso de suas partes. So necessrios dilogos

    com a questo urbana, e para isso, as pessoas, as ruas, o capital, os lugares e as

    atividades precisam falar, precisam de expresso e de espao para a comunicao

    nas abordagens e pesquisas. Aqui, o conhecimento, a informao e a imaginao tm

    papel fundamental nas dialogias das dinmicas urbanas e, neste estudo,

    principalmente o urbano, como espao de aprendizagem.

    Essa questo pode em princpio, parecer simples, pode at j ser uma

    prtica corriqueira em alguns centros de estudos e pesquisas, mas, de fato,

    acreditamos na potencialidade da informao, da imaginao e do conhecimento, na

    produo e criao de mundos. O espao de fluxos articula essas funes e

    grandezas; naqueles, essas se produzem e constituem o lugar fluido das correntes de

    bits de informao. Da seguem para a construo de sentidos e, portanto, de

    conhecimento que, por sua vez articula, concentra e dispersa ao mesmo tempo,

    indivduos na formao/ gerao da prpria sociedade. Organismo fluido, com

    multissentidos, repleto de intenes e tenses no seu interior, onde o conhecimento

    gerado e ao mesmo tempo gerido, por meio dos sistemas auto-organizados, base da

    sociedade e de sua mobilidade.

  • 36

    Aprender com os fluxos: o movimento das formigas, das abelhas e das

    aves, que sem lderes podem polialogar atravs da aproximao, e no pelo

    domnio supostamente exercido por um lder qualquer. Os movimentos emergentes

    podem ser observados, tambm, na apreenso da cidade em vrias escalas de

    aproximao. Faz-se necessrio pensar em rede, ter conscincia dessa condio, que

    a mesma do funcionamento de nosso crebro. De alguma forma, as redes de

    informao no corpo humano funcionam e muito podem ajudar para o entendimento

    de outros sistemas. a tentao de que trata Prigogine, mas preciso cuidado e

    rigor. As analogias contribuem para a aproximao e para conectar os objetos-aes,

    mas preciso tentar a prpria tentao. O pensamento em rede afasta a lgica do

    menor percurso entre dois pontos a reta. No temos dois pontos apenas a conectar.

    A vida se faz de multipontos e, nesse caso, Oscar Niemeyer tem muito a nos dizer:

    No o ngulo reto que me atrai nem a linha reta, dura, inflexvel, criada pelo homem. O que me atrai a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu pas, no curso sinuoso dos seus rios, nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida. De curvas feito todo o universo o universo curvo de Einstein. (2000, p.17)

    Atrair-se pela linha curva: esse o desafio. Os mtodos elaborados, os

    caminhos rgidos e previamente definidos nas pesquisas, os passos a seguir, a

    previsibilidade, a monotonia, tudo isso se esvai quando da compreenso dos

    caminhos mltiplos, da leveza, da materialidade e imaginao do objeto. O inusitado

    e o inesperado esto nas curvas, onde a trajetria cambivel, onde no existem

    impedimentos nem amarras para o percurso. Mais uma vez: informao,

    conhecimento, cidades e redes articulaes para os espaos urbanos no so

    coisas dadas, so construdas, forjadas e concebidas, e no o so por heris ou por

    mentes brilhantes. A produo do conhecimento algo coletivo, no est totalmente

    dentro do indivduo, preciso provocar, tensionar para que a instabilidade interno-

    externo faa reagir a capacidade de criar e conectar.

  • 37

    O conhecimento como produto das relaes humanas com o mundo-

    ambiente fundamental nas articulaes dos fluxos no espao e dos espaos de fluxo.

    A coisa-informao e a coisa-conhecimento como coisa-sendo.

    Construo, incertezas e inacabamento... Deixem-nos ficar nas curvas da

    nossa abordagem.

  • [...] Tentar uma paralela, mas eu emboco no tnel, alcano outro bairro, respiro novos ares. Empacar no trnsito e eu subo as encostas, as prateleiras da floresta, as ladeiras invisveis com manses invisveis de onde se avista a cidade inteira [...]

    [...] Ando no meio do povo em linha reta, mas parece que cruzo sempre com as mesmas pessoas. E essas pessoas tambm parecem se admirar, me vendo passar to repetido [...]

    [...] Sinto que, ao cruzar a cancela, no estarei entrando em algum lugar, mas saindo de todos os outros [...]

    Chico Buarque, 1991.

  • 39

    3. AS CIDADES DA APRENDIZCIDADE

    Aprendizcidade, termo utilizado aqui para designar a rede de aes,

    pensamentos, gestos, informaes e objetos que se descortinam na aprendizagem e

    na formao do indivduo como ator da rede urbana e constituinte das cidades. o

    meio pelo qual o homem busca o caminho para prosseguir o curso da histria das

    civilizaes, no processo de urbanizao do espao habitado e apreenso/construo

    do conhecimento (JOS, 2000).

    Consideramos vrios aspectos que se relacionam com a aprendizagem dos

    indivduos nos seus grupos e na sociedade como um todo. Inclumos as relaes

    entre os indivduos, bem como aquelas com seus espaos de trabalho, lazer, repouso,

    em seus movimentos e dinmicas. Percebemos tambm o estabelecimento da

    sociedade atual prioritariamente nos centros urbanos e metropolitanos. Com estes

    pontos: a vida urbana das sociedades, as relaes entre os indivduos, e aquelas

    estabelecidas com o espao habitado, como motes de um pensamento da cidade e na

    cidade como possibilidade de aprendizagem. Aprendizagem, entendida como as

    relaes do indivduo no seu grupo em prticas que estimulam o pensar, o

    apreender, o analisar e conceber vises distintas e negociadas de interao com o

    outro, constituindo o aprender. Possvel com o outro, sendo esse outro o indivduo, a

    famlia, o grupo, a sociedade, ou mesmo suas prprias conexes onricas, num

    caminhar incerto e descobridor de novas ou de antigas realidades.

    Com apoio nessas ideias, tentaremos aqui, tratar a cidade como a casa do urbano, o

    lugar em que o mundo se move mais (JOS, 2000) e, portanto, lugar das relaes.

    Resta-nos perguntar que cidades so estas? As respostas podem ser o nome de

    algumas metrpoles, de algumas cidades, ou ento, o espao fsico, o territrio

    geopoltico, as cidades da memria, dentre tantas outras. Imaginemos assim: uma a

    cidade fsico-espacial, outra a cidade imaginria e outra ainda, a cidade

    informacional, todas, constituintes da aprendi(z)cidade e interrelacionadas.

  • 40

    A cidade fsico-espacial o lugar onde os milhes e milhares de pessoas

    exercem suas funes no dia-a-dia, mas que tambm carregam e mostram as cidades

    imaginrias: cidades dos sonhos, das representaes e criaes literrias, cidade-

    projeto dos planos e normas de regulamentao de seu uso, e ainda estabelecem

    ligaes informticas numa ampla rede de informaes e atividades virtuais, num

    plano que aqui chamamos de cidade informacional. Pretendemos analisar e abordar

    a cidade sob diversos aspectos, e mesmo, diversos conceitos do que seja cidade, pois:

    A cidade de quem passa sem entrar uma: outra para quem aprisionado e no sai mais dali; uma a cidade qual se chega pela primeira vez, outra a que se abandona para nunca mais retornar; cada uma merece um nome diferente; talvez eu j tenha falado de Irene sob outros nomes; talvez eu s tenha falado de Irene. (CALVINO, 1972. p. 115)

    Queremos falar das vrias Irenes, dentro ou mesmo fora da prpria Irene.

    Queremos entender que cidades so essas, que lugares e espaos podem estabelecer e

    potencializar os processos de aprendizagem: a cidade para alm dos seus limites,

    para alm de suas ruas, de suas fachadas, de suas praas, para alm de suas

    atividades produtivas. Trata-se de um convite s cidades invisveis de Italo Calvino,

    cidade de Fernando Pessoa3, mas, tambm, cidade daquele vai para o seu

    trabalho e depois se desloca para a sua casa ou apartamento, para seu barraco ou

    para seu palcio. Falaremos ainda da cidade enquanto espao na sua potica, e

    mesmo na cidade das intervenes urbanas e arquitetnicas propostas por ns,

    arquitetos.

    como uma possibilidade de entendimento da cidade como cidades da aprendizagem.

    Abordaremos, inicialmente, a cidade no seu carter fsico-espacial, para

    ento entrarmos na cidade imaginria dos poetas, dos legisladores, dos sonhadores;

    da ideia de cidade possivelmente presente na imaginao de todos ns; em seguida,

    tentaremos compreender as relaes da cidade informacional e concluiremos assim,

    com a aprendizcidade ou as cidades da aprendizagem ou, de forma ainda mais

    enftica: as cidades da aprendizcidade. importante ressaltar que essas cidades

    interconectam-se e esto imbricadas umas nas outras. Mas, escolhemos esse caminho

    3 Referimos-nos aos poemas de Fernando Pessoa, que tratam da cidade, dos costumes, das vivncias e angstias.

  • 41

    A cidade fsico-es

    fundao e/ou nascimento da cidade, e tendo por ator e platia os indivduos e suas implicaes que

    ambientes, cidades e espaos. (JOS, 2000)

    s articulaes entre seus

    lugares, e mesmo na interlocuo com os seus portos. Sejam os portos martimos,

    terrestres o

    podemos seguir numa infinidade de adjetivaes

    tendo em vista as atividades predominantemente exercidas no interior de seus

    limites pol

    ado urbano e na continuidade existencial de suas ocupaes de solo. Ao

    emaranhado urbano, juntam-se as dinmicas potencialmente desenvolvidas nesse

    espao.

    pacial

    [...] a cidade no apenas como delimitao geopoltica, mas, como um sistema de entrelaamento de funes, espaos, objetos, aes, reaes, relaes, numa rede transformada continuamente e amparada nas mudanas e contradies desse complexo sistema[...] A cidade, portanto, palco, ator e platia do teatro que se desenvolve no espao urbano, entendendo-se por teatro, a dinmica da expresso do lugar e das relaes, que este mantm com seus elementos formadores, desde a

    constituem o lugar ou permitem o relacionar-se com outros lugares,

    Pensar na cidade fsica imagin-la tocvel aos sentidos humanos. A

    cidade fsica existe enquanto construo humana, tambm para alm dos tijolos de

    suas edificaes e das pavimentaes de suas ruas e avenidas. O carter fsico-

    espacial da cidade est presente na sua forma geral, na

    u areos. Portos, no sentido do acesso ao lugar.

    Podemos apontar tanto para o sistema virio, para as tipologias de suas

    construes, para os seus espaos pblicos, as reas verdes ou a ausncia das

    mesmas, para os seus marcos histricos, seus cones arquitetnicos, para sua

    paisagem, ou mesmo para o oferecimento dos servios pblicos, necessrios vida

    urbana e ao pleno exerccio da cidadania. Observamos esses critrios e s vezes

    dizemos que essa ou aquela cidade industrial, comercial, prestadora de servios,

    cidade porturia, cidade dormitrio, cidade turstica, de grande ou pequeno porte,

    metrpole, megalpole e por a

    tico-administrativos.

    No caso das metrpoles, mais do que cidade, podemos antever ou discutir

    as regies metropolitanas, onde os limites poltico-administrativos esto difusos no

    emaranh

  • 42

    Do ponto de vista fsico-espacial, a cidade considerada objeto dos

    arquitetos, dos urbanistas, dos gegrafos, dos engenheiros e dos demais profissionais

    que se debruam sobre o territrio terrestre em suas vrias dimenses e

    aproximaes. Acreditamos que, mesmo esse carter fsico, no pode ser

    desconsiderado nas cidades dos socilogos e dos estudiosos das relaes sociais

    estabelecidas no mundo urbano. Importante apontar para o carter relacional das

    vrias cidades dentro da cidade contempornea.

    As cidades imaginrias podem ser to reais quanto as fisicamente

    constitudas, principalmente quando se consideram os aspectos inerentes vida

    urbana. O que dizer das runas de uma cidade destruda ou abandonada por seus

    habitantes? O que pensar das cidades estabelecidas pela rede mundial de

    informao? Como conceber a cidade sem a complexidade da histria urbana de suas

    sociedades e civilizaes? Talvez seja intil metaforizar a cidade, mas, admitindo tal

    possibilidade, podemos apreend-la como a casa, a residncia do urbano.

    Contra tudo, a casa nos ajuda a dizer: serei um habitante do mundo, apesar do mundo. O problema no somente um problema do ser, tambm um problema de energia e conseqentemente de contra-energia. Nessa comunho dinmica do homem e da casa, nessa rivalidade da casa e do universo, estamos longe de qualquer referncia s simples formas geomtricas. A casa vivida no uma caixa inerte. O espao habitado transcende o espao geomtrico. (BACHELARD, 1957, p.227)

    A casa que abriga a famlia, com seus pertences, seus hbitos, costumes e

    sua cultura, e a cidade como casa da sociedade, constituda de vrias outras casas, de

    vrios outros cmodos; com os quartos para o repouso e estudo, os lugares para a

    reflexo e meditao sobre a vida, os lugares destinados ao lazer, comunho,

    alimentao, s prticas de higiene, aos depsitos e despensas; e ainda temos os

    espaos que articulam os demais espaos, permitindo a comunicao entre os ns

    da casa. A constituio da casa requer materiais, tecnologias e usos especficos de

    seus espaos. Tal qual a casa, a cidade dispe de lugares para a permanncia e

    lugares para o deslocamento, que articula e tece a trama urbana de relaes.

    O lugar de implantao das cidades quase sempre se origina ou do

    desenvolvimento de atividades produtivas, ou de posicionamentos estratgicos de

  • 43

    defesa do territrio, de expanso urbana ou existncia de recursos naturais

    importantes vida coletiva. Temos as cidades que nasceram nas rotas comerciais, nas

    proximidades do mar ou de rios navegveis e ainda cidades que se lanaram como

    protetoras do territrio. Os motivos fundantes, apesar de sempre presentes, no

    cerceiam e no retiram da cidade, as possibilidades de redirecionamento de suas

    atividades e dinmicas ao longo de sua histria. Vrios rumos podem ser tomados

    pelas cidades, mas, sero sempre constructo de sua sociedade.

    Ainda tratando da cidade como construo fsica da histria das

    sociedades, podemos observar o carter das leis que tentam ordenar sua ocupao,

    destinando reas especficas para a realizao de determinadas atividades. Temos, no

    caso, a cidade legal, a cidade da lei. Mas, quase sempre margem da lei, a cidade

    cresce e se organiza devido a dinmicas prprias dos grupos que a utilizam e a

    constroem, sem sequer um planejamento de suas reas. So as cidades

    institucionalizadas pelos planos diretores e leis do uso do solo urbano convivendo

    com as cidades marginais.

    Podemos observar que, mesmo abordando apenas a dimenso fsica,

    teramos vrias cidades dentro da mesma cidade, so vrias casas, na mesma casa,

    articulando-se com casas outras. a casa do urbano interagindo dentro do seu

    prprio espao, com diversas urbanidades.

    A Cidade Imaginria

    Ao abordarmos a cidade fsica, foi possvel compreender algumas das

    conexes que essa traz com a cidade imaginria. Aqui entendemos por imaginria a

    cidade enquanto projeto e plano urbano desenvolvido e proposto pelos sonhadores

    de cidades. Consideramos tambm imaginria a cidade literria, presente nas

    descries e tramas das pginas dos escritos dos poetas, literatos e legisladores e a

    cidade subjetiva, aquela que est presente no imaginrio coletivo, nos sonhos dos

    indivduos que coabitam o mesmo lugar, que sempre revisitam o seu passado e

  • 44

    descrevem a cidade presente na imagem-sonho de suas lembranas, alucinaes e

    desejos.

    Importante ressaltar as conexes e os tnues limites entre a cidade, fruto

    do imaginrio coletivo e aquela resultante da construo diria e cotidiana por seus

    atores. A cidade do sonho tambm a cidade das ruas e avenidas, dos bairros, das

    comunidades, dos espaos de encontro e permanncia. Permanncia e encontro com

    o imaginrio, na constituio de territrios existenciais, como possibilidade de

    articular o desejo e a imagem da cidade, num ideal de cidade. a apropriao do

    espao-cidade, para transformao desse no lugar e territrio de vivncias - no

    espao fsico-espacial e imaginrio. Imagem, forma e memria constituem modos de

    apreenso do espao habitado.

    As marcas registradas nas mentes e na memria dos habitantes de um

    lugar tendem a constituir imagens criativas e criadoras na vida dos que partilharam

    um dado momento histrico, mas, tambm na vida dos que no viveram, mas que

    ouviram e ouvem dos antigos as lembranas e a contextura de imagens da cidade

    atravs da descrio oral. Esse olhar sobre o passado tanto oral, como imagtico,

    ora um, ora outro, ora os dois ao mesmo tempo - a construo da imagem se d

    atravs de um processo criativo da descrio oral, ou mesmo a partir da visualizao-

    interpretao dos instantes cristalizados pela fotografia, e ainda pelo movimento das

    pelculas cinematogrficas.

    Pensar a cidade imaginria transpor os limites literrios, imagticos e

    subjetivos, ultrapassar os conceitos de cidade, atingindo a cidade viva4, a cidade

    relacionada com os aspectos determinantes da vida em sociedades. Estamos falando

    da cidade que est alm do que visto pelos olhos e prximo do que atingido pelos

    outros sentidos: a cidade-imagem, a cidade-som, a cidade-odor, a cidade-objeto, a

    cidade-espetculo, e tambm a cidade-fragmento. Fundamental perceber a cidade

    nas suas paisagens, nos sons que emanam de suas dinmicas e movimentos, nos

    cheiros de suas ruas, seus bairros, no substrato onde nos deslocamos, sua topografia,

    4 O termo foi utilizado no ano 2000 no texto intitulado Cidade Viva: dinmica dos Espaos de (In)formao e Aprendizagem, para caracterizar a vida na cidade como principal constituinte da mesma. JOS, Silvio (2000)

  • 45

    e na apresentao de suas faces e superfcies. A cidade todo um complexo de

    sentidos e referncias que deve ser abordado, percebido e analisado quando da

    pronncia do termo cidade.

    Afinal, a cidade no apenas um amontoado de casas e construes,

    constructo, mas tambm fruto de articulaes dos indivduos que nela passam, das

    suas interaes com o espao, e tambm da significao estabelecida com os lugares

    nas suas diversas referncias. Utilizando mais uma metfora, poderamos pensar na

    cidade imaginria como o esprito que habita e movimenta-se potencialmente no

    corpo-cidade fsico-espacial. Neste caso, importante ressaltarmos que esse corpo

    no est dissociado desse tal esprito, portanto, interdependem um do outro com

    suas tenses e contradies no seu interior. Para ajudar na compreenso das

    referncias cidade imaginria, pensemos no enredamento das partes, na

    constituio de totalidades. No estamos falando da apreenso de um todo, mas, da

    construo de totalidades e de sua relao com as partes, inseparveis e

    indissociveis do todo.

    O pensamento das totalidades nos d dimenses e faces, superfcies e

    referncias mltiplas de um constructo histrico-humano, no qual vrias vidas

    formam/foram envolvidas nos processos de identificao dos sujeitos, dos gestos e

    das lembranas nos signos coletivos e na imagem da cidade. Mesmo que admitamos

    o carter espacial da cidade, no podemos negar a produo de sentidos desses

    espaos de maneira diferenciada entre grupos e dentro dos prprios grupos. Sentidos

    diversos extrados de objetos que aparentemente so os mesmos, mas so como a

    Irene ou as Irenes de Calvino; pode ser uma e/ou vrias ao mesmo tempo.

    As Irenes pressupem a construo de articulaes da imaginao, da

    criatividade de percepo, da (in)formao diferenciada dos sujeitos e indivduos

    que, ao socializarem-se, so potencializados nas suas identidades e individualidades,

    e tambm na distino da coisa, como processo individual-coletivo nico para quem

    a toca, dela se aproxima ou simplesmente, olha-a de longe.

  • 46

    Olhar: vrias vezes nos reportamos ao olhar. Ao olhar estrangeiro, ao

    olhar interior, ao olhar com o outro, mas, queremos falar da construo de sentidos e

    de referenciais para a reflexo sobre o espao-cidade. Tomamos o termo olhar no

    sentido de ponto de vista, que tem, na acepo do termo teoria, o mesmo significado.

    Olhar como ponto de vista, como teoria, vislumbrando a concepo de teorias a

    partir do sentimento de cidade presente nos indivduos que a compem.

    Acreditamos ser necessrio pensar a cidade como composio dos

    indivduos, grupos e organismos que a conformam. Composio s vezes harmnica,

    outras vezes em sintonia com fatores externos e ainda numa polifonia de

    instrumentos que se comunicam (ou no), mas que formam um todo complexo e

    ilimitado do ponto de vista da compreenso do espao. Isto o que mais importa

    aqui, compreenso de espao, compreenso de cidade, cidade como espao, e espao

    como lugar fsico, relacional, sentimental e como exaltante da vida, da vida urbana.

    Como nos referirmos antes, que as formas da cidade se articulam e

    interagem umas com as outras, ao tocarmos no aspecto relacional da cidade

    imaginria, apontamos caminhos que podem nos levar s pontes de ligao com a

    cidade informacional, que discutiremos a seguir.

    A Cidade Informacional

    Na nossa abordagem da cidade imaginria, como aquela surgida e sentida

    na literatura, nas artes em geral, e no imaginrio coletivo, focalizamos um ponto

    importante de compreenso do espao-cidade, que a questo das relaes

    estabelecidas, criadas e originadas a partir dos constituintes da cidade. Juntando-se a

    isso as modificaes dos meios e modos de produo e comunicao

    contemporneos, podemos fazer outras conexes entre o espao habitado e as

    prticas cotidianas do relacionar-se; desde o surgimento dos mtodos de

    comunicao em massa, das empresas multi-trans-nacionais, da produo

    interplanetria, da desterritorializao e do aspecto instantneo da informao.

  • 47

    Essas modificaes impulsionam para um olhar diferenciado das dialogias

    do espao fsico. A instituio de percursos, que no os fsicos, para a comunicao

    entre indivduos separados pelas distncias, nos permite conexes virtuais que se

    do, inclusive a partir de substratos fsicos. Imaginemos a informao, e a

    instantaneidade com que ela consegue ser espraiada, para um grande nmero de

    receptores-significadores dessa produo. So produtos de um avano tecnolgico e

    cientfico, de materiais e tcnicas virtuais de comunicao, que passam a dominar a

    disseminao e produo do objeto-informao, como valor de troca.

    So transmisses virtuais que partem de aes-produes humanas,

    localizadas num certo lugar, com intenes e desejos variados, decodificadas e re-

    apreendidas num lugar outro, com desejos e propsitos que tambm podem ser

    outros, mas que so (re)significados a partir de uma certa unidade espao-temporal,

    cada vez mais diluda e tnue devido prpria velocidade, e que a nos parecem

    vindas de lugar algum, produzidas por ningum, e sem qualquer intencionalidade

    presente em sua (di)fuso. Por mais impessoal que possa parecer, no podemos

    esquecer que ela produto de indivduos ou de grupos sociais, que esto inseridos

    num espao-lugar, com intenes e desejos. A velocidade nos faz pensar sobre a

    compreenso do tempo-espao, e mesmo do territrio, embora cada vez mais

    evoquemos os territrios dos primrdios de nossa passagem civilizatria.

    O ser humano contemporneo fundamentalmente desterritorializado. Com isso quero dizer que seus territrios etolgicos originrios corpo, cl, aldeia, culto, corporao... no esto mais dispostos em um ponto preciso da terra, mas se incrustam, no essencial, em universos incorporais. (GUATARRI, 1992)

    provvel que, a cada instante, estabeleamos mais e mais relaes na

    distncia e nos infiltremos mais ainda no lugar de nossas vidas, pois que

    continuamos os deslocamentos fsicos e relacionais em nossa prtica vivente. E, no

    desenvolvimento das atividades informacionais de gerao de produtos cristalizados

    na matria e na imagem, podemos perceber ou especular sobre a similitude desse

    processo com a existncia e vivncia das prprias cidades, que existem enquanto

    organismos fsicos e imaginrios, vividos e apreendidos atravs de sensaes

    mensurveis, ou no, que exigem o deslocamento fsico, para o atendimento das

  • 48

    necessidades, que por sua vez no so supridas apenas atravs de uma produo ou

    articulao domiciliar. So vrios sistemas que interagem e se articulam, permeando

    a vida urbana de contatos, aproximaes, distanciamentos e conexes para o

    suprimento das vicissitudes humanas.

    Temos vrias faces, vrias arestas, formas, dimenses e referncias para o

    objeto-informao e sua articulao com o espao, que tanto poderemos ter a

    potencializao do urbano em determinados lugares, como a desmobilizao em

    outros. O importante, para ns, o estabelecimento de um outro tipo de relao,

    propiciada pela informao. A cidade que fsica, mas tambm habita o imaginrio,

    vive agora a possibilidade de informaticidade, ou seja, tambm ser cidade-

    informacional. A informatizao dos processos produtivos, quer queiramos ou no,

    est se dando no lugar escolhido, ou simplesmente construdo por nossas sociedades

    como lugar de vivncia e passagem, que a cidade. Com isso temos modificaes e

    diversidade de movimentos, mas continuamos sem inventar o espelho que poderia

    estar refletindo, aqui, uma possvel realidade longnqua, separada no tempo e

    espao. At agora, o lugar de vivncia da nossa sociedade prioritariamente a

    cidade, e mesmo que estivssemos num dos lados desse tal espelho, estaramos

    numa cidade, ainda que refletida. Estando ou no em Valdrada, cidade de Italo

    Calvino, a cidade espelhada, temos nossa vivncia e nossa histria ligada cidade.

    Nada existe e nada acontece na primeira Valdrada sem que se repita na segunda, porque a cidade foi construda de tal modo que cada um de seus pontos fosse refletido por seu espelho [...]

    [...] As duas cidades gmeas no so iguais, porque nada do que acontece em Valdrada simtrico: para cada face ou gesto, h uma face ou gesto correspondente invertido ponto por ponto no espelho. As duas Valdradas vivem uma para a outra, olhando-se nos olhos continuamente, mas sem se amar. (CALVINO, 1972, p.53-54).

    A informao, a matria e a imaginao podem constituir seus prprios

    agrupamentos de vivncia e cotidianidade, mas esto interconectados em diferentes

    aspectos, em diferentes redes e emergncias. E como diz Calvino, outro smbolo,

    ainda mais complexo, que me permitiu maiores possibilida