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P ed rin h o , n aq u eles tem p o s; co stu m ava p assar

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Pedrinho, naqueles tempos; costumava passar as férias no Picapau Amarelo. Há muito era perseguido por uma idéia: caçar no Capoeirão dos Tucanos, a mata virgem do sítio, D.Benta arrola mil razões para dissuadi-lo, em vão. Mas quando aventa a possibilidade de ele encontrar um saci, a coisa muda de figura… O que era medo se transforma em curiosidade, e Pedrinho vai à procura desses estranhos seres.

CapítuloI

EMFÉRIASQuando naquela tarde Pedrinho voltou da escola e disse à Dona

Tonica que as férias iam começar dali uma semana, a boa senhoraperguntou:

—Eondequerpassarasfériasdesteano,meufilho?Omeninoriu-se.—Quepergunta,mamãe!Poisondemais,senãonosítiodevovó.Pedrinhonãopodiacompreenderfériaspassadasemoutrolugarque

não fosse no Sítio do Picapau Amarelo, em companhia de Narizinho, doMarquêsdeRabicó, doViscondede Sabugosa e daEmília. E tinhade serassim mesmo, porque Dona Benta era a melhor das vovós; Narizinho, amaisgalantedasprimas;Emília,amaismaluquinhadetodasasbonecas;oMarquêsdeRabicó,omaisrabicódetodososmarqueses;eoViscondedeSabugosa, o mais "cômodo" de todos os viscondes. E havia ainda tiaNastácia, a melhor quituteira deste e de todos os mundos que existem.Quemcomiaumavezosseusbolinhosdepolvilho,nãopodianemsequersentirocheirodebolosfeitosporoutrascozinheiras.

Pedrinho tinha recebido cartade suaprima,dizendo: "Nossogrupovai este ano completar século emeio de idade e é preciso que você nãodeixedevirpelasfériasafimdecomemorarmosograudeacontecimento."

EsseséculoemeiodeidadeeracontadoassimDonaBenta,64anos;tiaNastácia,66;Narizinho;8;Pedrinho,9.Emília,oMarquêseoVisconde,lcadaum.Ora,64mais66mais8mais9mais1mais lmais l, fazem150anos,ouseja,umséculoemeio.

Logoquerecebeuessacarta,Pedrinhofezacontanumpapelparaverseapilhavaemerro:masnãopilhou.

—EumadanadaaquelaNarizinho!—disseele.—Nãohámeiodeerraremcontas.

CapítuloII

OSÍTIODEDONABENTA

OsítiodeDonaBentaficavanumlugarmuitobonito.Acasaeradas

antigas,decômodosespaçososefrescos.HaviaoquartodeDonaBenta,omaior de todos, e junto o de Narizinho, quemorava com sua avó. Haviaaindao"quartodePedrinho",quelápassavaasfériastodososanos;eodatia Nastácia, a cozinheira e o faz-tudo da casa. Emília e o Visconde nãotinhamquartos;moravamnumcantinhodoescritório,ondeficavamastrêsestantesdelivroseamesadeestudodamenina.

Asaladejantarerabemespaçosa,comjanelasdandoparaojardim,depoisvinhaacopaeacozinha.

—Esaladevisitas?Tinha?— Como não? Uma sala de visitas com piano, sofá de cabiúna, de

palhinhatãobemesticadaque"cantava"quandoPedrinhobatia-lhetapas.Duaspoltronasdomesmoestiloe seis cadeiras.Amesadocentroerademármore e pés também de cabiúna. Encostadas às paredes havia duasmeiasmesas tambémdemármore, cheias de enfeites: três casais de içásvestidos, vários caramujos e estrelas-do-mar, duas redomas com velasdentro, tudo colocado sobre os "pertences" de miçangas feitos porNarizinho. Hoje ninguém mais sabe o que é isso. Pertences eram umasrodelasdecrochêquehaviaemtodasascasas,parabotarbibelôsemcima;para o lavatório de Dona Benta; Narizinho fizera pertences de crochê; epara a sala de visitas fizera aqueles demiçanga de várias cores; da bemmiudinha.

Antesdasaladevisitashaviaasaladeespera,comchãodegrandesladrilhosquadrados;"cordechitacor-de-rosadesbotada".Asaladeesperaabriaparaavaranda.Quevarandagostosa!Cercadadumgradildemadeira,muitosingelo,pintadodeazul-claro.Davarandadescia-separao terreiropor uma escadinha de seis degraus. Nas férias do ano anterior Pedrinhohaviaplantadoemcadacantodavarandaumpéde"cortinajaponesa",uma

trepadeiraquedáuns fios avermelhadosda grossuradumbarbante, quedepois ficam amarelos e descem até quase ao chão, formando umaverdadeira cortina viva. Aquela varanda estava se transformando emjardim, tantaseramasorquídeasqueomeninopendurara láosvasosdeavencadamiúdaqueelefoicolocandojuntoàgrade.

Ojardimficavanosfundosdasaladejantar,umverdadeiroamordejardim,sódeplantasantigaseforadamoda.Floresdotempodamocidadede Dona Benta; esporinhas, damas-entre-verdes, suspiros, orelhas-de-macaco, dois pés de jasmim-do-cabo, e outro, muito velho, de jasmim-manga.Plantadonacalçadaeasubirpelaparede,ovelhíssimopédeflor-de-cêra, planta que os modernos já não plantam porque custa muito acrescer.Atécravo-de-defuntohavialá,florcomqueNarizinhoseimplicavapor ter "cheiro de cemitério". Bemno centro do jardimhavia um tanqueredondocomumacegonhadelouça,todaesverdeadadelimo,aesguicharáguapelobico.Masacegonhajáestavasemcabeça,emconseqüênciadaspelotadas do bodoque de Pedrinho. E um velho regador verde moravapertodotanque,porqueeracomaáguadotanquequetiaNastáciaregavaasplantasnotempodaseca.

—Eopomar?—Opomarficavanosfundosdacasa,depoisdo"quintaldacozinha",

ondehaviaumgalinheiro,umtanquedelavarroupaeopuxadodalenha.OpoçovelhoforafechadodepoisqueDonaBentamandouencanaraáguadomorro.

Passadooquintalvinhaopomar—aqueladelíciadepomar!—Porquedelícia?—Porqueasárvoreserammuitovelhas,eárvorequantomaisvelha

melhorparaabelezaeafrescuradasombra.Árvorenovapodesermuitoboa para dar frutas bonitas, baixinhas e fáceis de apanhar. Mas para abelezanãohácomoumaárvorebemvelha,bemcraquenta,comosgalhosrevestidosdemusgos,liquenseparasitas.Certasárvoresdopomartinhamdonos. Havia a célebre pitangueira da Emília, as três jabuticabeiras dePedrinho,amangueirademanga-espadadeNarizinhoeospésdemamãode tiaNastácia. Até oVisconde tinha sua árvore—umpezinho de romãmuitofeioeraquítico.Orestodasárvoresnãoeramdeninguém—eramdetodos.Equantas!Cambucazeiros,duas jaqueiras,ospésdecabeludaegrumixama,ostrêspésdesapotiseaquelede fruta-do-condeque"não iapordiante."

Era tão antigo aquele pomar que os vizinhos até caçoavam. Viviamdizendo:"OpomardeDonaBentaestátãovelhoquequalquerdiasepõea

caducar. As jaqueiras começam a dar manga e as mangueiras a darlaranjas."MasDonaBentanãofaziacaso.Nãoadmitiaquesecortasseumasó árvore— nem o pobre pé de fruta-do-conde encarangado. Dizia quecadaumadelaslembravaqualquercoisadasuameniniceoumocidade.

—Estepédelaranja-baiana—costumavadizer—foioprimeiroquetivemosaqui,edelesaíramosenxertosdosoutros.Naqueletempolaranja-baianaeraumagrandenovidade.Amuda foipresentedodefuntoZédasBichas,umportuguêsmuito trabalhadorquemoravanumachácarapertodavila.

Impossível haver no mundo lugar mais sossegado e fresco, e maischeio de passarinhos, abelhas e borboletas. Como Dona Benta nuncaadmitiu por ali nenhummeninode estilingue, a passarinhada se sentia àvontade e fazia seus ninhos como se estivessem na Ilha da Segurança. OprópriobodoquedePedrinhonãofuncionavanopomar.

—Equepassarinhoshavia?—Oh,tantos!...Notempodas laranjasopomarenchia-sedesabiás

depeitovermelho,amigosdecantaracélebremúsica-de-sabiáqueospaisvão ensinando aos filhotes, sempre igualzinha, sem amenormudança. Ehavia os sanhaços cor de cinza clara. E as saíras azuis. E as graúnaspretíssimas.Emuitocanário-da-terra,muitopapa--capim,tisio,pintassilgo,rolinha,corruíla...

As corruílas eram o encanto da menina, que vivia a observar ojeitinhodelasnoconstanteescarafunchamentodosmuroscarunchadosembusca de pequenas aranhas e outros bichinhos moles. Bichinho durocorruílanãoquer.Esemprecomaspenasdacaudaerguidas,ninguémsabeporquê.Corruílascordetelhaemansíssimas.Hátambémalindacorruíladobrejo,quefazaquelesenormesninhosespinhentos—masessasnuncaapareciamnopomar.Moravamnosbrejos.

Às vezes pousavam lá, de passagem, um ou outro tié-sangue, opassarinhomaislindamentevermelhoqueexiste.Masnãosedemoravam.Eramarisquíssimos.

—Porque,vovó,justamenteospassarinhosmaisbonitossãoosmaisariscos?—perguntoucertavezamenina.

—Justamenteporserembonitos,minhafilha.Oshomensperseguemos passarinhos bonitos porque são bonitos — quem quer saber depassarinhofeio?Ostico-ticos,porexemplo:vivemnamaiorpazemtodosos terreiros justamente porque ninguém os persegue. São feinhos, oscoitados.Mas apareça aqui um tié-sangue, ou uma saíra daquelas lindas:todos se põem atrás deles, querendo apanhá-los vivos oumortos. Para a

felicidadenestenossomundo,minhafilha,nãohácomosertico-tico,istoé,feinhoeinsignificante...

Masoreidopomarerao joão-de-barro.Napaineiragrande,bemláno fundo,moravamdoisnumninho feitodeargila,emformade fornodeassarpão.Eraocasalmaisamigopossível.Nãose largavamnunca.Ondeestavaum,tambémestavaporpertoooutro.Eseporacasoumseafastavaumpoucomais,voltaemeiasoltavaunsgritoscomoquempergunta:"Ondevocê está" — e o outro respondia: "Estou aqui". E de vez em quandocantavam juntos aqueles terrível dueto que mais parece uma série demarteladasestridentesealegres,.

—Quecoisainteressante,vovó!—dissePedrinhoumdia.—Reparequeelessemprecantamougritamjuntos.Umfazumaparteeoutrofazoacompanhamento,comonopiano...

E era assimmesmo. São tão amigos que até para cantar "cantam aduasmãos",comodiziaaboneca.

Certoanoocasalresolveuconstruirumninhonovoemoutrogalhoda paineira, e durante quinze dias o divertimento dos meninos foiacompanhardelongeaqueletrabalho.Osdoispassarinhostraziamdabeiradoribeirãoumpelotedebarronobico,eficavamaliacolocaraquelamassano lugar próprio, e a bicá-la cem vezes para que ficasse bem ligadinha.Enquantoumseocupavanaquilo,ooutrovoavaembuscademaisbarro.Nunca estavam os dois no mesmo serviço; revezavam-se. À tardinhainterrompiamo trabalho, cantavamodueto com todaa forçaedepois seacomodavamnoninhovelho.TiaNastáciaviviadizendoquenosdomingoseles não trabalhavam,mas infelizmente osmeninos não puderam tirar aprovadumacoisatãolinda.

Omaiscuriosofoiquedepoisdeacabadooninhonovo,eles,emvezde se mudarem, resolveram fazer um segundo ninho em cima daquele.QuemprimeironotouissofoioVisconde,quefoi,todoassanhado,contaraDonaBenta.

—Venhamver—disseo sabuguinho.—Eles terminaramontemaconstrução do ninho novo,mas não semudaram do velho; em vez dissoestão a construir um segundo ninho sobre o novo — uma espécie desegundoandar.

DonaBentafoicomosmeninoseviu.—Porqueserá,vovó?—quissaberPedrinho.—Nãosei,meufilho,maselesdevemterláassuasrazões.—Eusei—berrouEmília.—Éparaalugar!...Todosriram-se.

—Eu acho— disse Narizinho— que é para acomodar os filhotesquandochegaremaopontodevoar.

— Isso não — observou Dona Benta. — Porque se os paisconstruíssem casa para os filhos, estes não aprenderiam a arte daconstrução e essa arte se perderia. É fazendo que se aprende, já disse ovelhoCamões.

— Mas então esses passarinhos raciocinam, vovó — têminteligência...

—Estáclaroquetêm,meufilho.Ainteligênciaéumafaculdadequeaparece em todos os seres, não só no homem. Até as plantas revelaminteligência. O que há é que a inteligência varia muito de grau. Épequeniníssimanasgalinhasenosperus,masjábemdesenvolvidanojoão-de-barro—e éumcolossonumhomemcomo IsaacNewton, aquelequedescobriuaLeidaGravitaçãoUniversal.

Noterreirodosítio,emfrenteàvaranda,haviasempreummastrodeSão João, que Pedrinho fincava na véspera do dia desse santo, a 24 dejunho, quando vinha pelas férias. Elemesmo cortava o pau nomato, elemesmo o descascava e pintava inteirinho, com arabescos vermelhos,amareloseazuis.Notopodomastrocolocavaa"bandeiradeSãoJoão",queera um quadrado de sarrafo, espécie de moldura, na qual pregava comtachinhasumretratodeSãoJoãomeninotecomumcordeirinhonobraço.Essasbandeiras,estampadasemmorim,custavam$1,50navendadoEliasTurco,lánaestrada.

Oterreiroeravedadoporumacercadepaus-a-pique—rachõesdeguarantã.Bemnocentroficavaaporteira.Paraládaporteiraeraopasto,ondehaviaumcélebrecupimdemetroemeiodealtura;emaisadiante,umvelho cedro ainda do tempo da mata virgem. Através do pasto seguia o"caminho"—ouaestradaqueiateràvila,a léguaemeiadali.Nofimdopasto, perto da ponte, apareciam a casinha do tio Barnabé e a figueiragrande;ebemláadiante,oCapoeirãodosTucanos,umaverdadeiramatavirgemondeatéonça,macucosejacushavia.

Equemais?Ah,sim,oribeirãoquepassavapelacasadotioBarnabécortava o pasto e vinha fazer as divisas do pomar com as terras deplantação. Impossível haver no mundo um ribeirão mais lindo, de águamais limpa, com tantaspedrinhas roliçasde todasas coresno fundo.Emcertospontosviam-sepequenaspraiasdeareiabranca.Nascurvasaáguaquase que parava, formando os célebres "poços" onde Pedrinho pescavalambaris e bagres. As beiras de água rasa eram a zona dos guarus— opeixinhomenorqueexiste.

Aos domingos tia Nastácia saía amariscar de peneira. Osmeninosdavam pulos de alegria. A boa negrametia-se na água até à cintura e iadescendooribeirão,comelesaacompanhá-ladamargem,aosgritos.

—Aqui,Nastácia,aquinestescapinzinhos...Anegra,muitocautelosamente,mergulhavaapeneiraporbaixodos

capinzinhos boiantes e suspendia-a de repente, de surpresa. A águaescoava-se pelos furos e na peneira aparecia uma porção de vidinhasaquáticas, a saltar e espernejar: guarus barrigudinhos, lambarizinhosnovos, pequeninas traíras e de vez em quando um baratão-d'águamuitocasquentoefeio.Eoutrosbichinhosainda,incompreensíveisesemnome.Certodiaapeneiratrouxeumacobra-d'águaverde,queanegrajogousobocapimdamargem.Foiumagritariaeumacorreriadascrianças.

—Nãotenhammedoquenãoévenenosa!—disseanegrarindo-secom toda a gengivada vermelha de fora. Mas os meninos não quiseramsaberdenada.Ficaramaespiarde longe.Acobraverde foi coleandoporentreoscapinsesesumiudenovonaágua.

Omaisimportantedaquelasmariscagenseramoscamarõezinhosdeágua doce, moles e transparentes, que tia Nastácia apanhava emquantidade A carregadeira do samburá (a cestinha redondinha que osmariscadoresusampararecolheropeixe)erasempreNarizinho.Ameninaiapassandooscamarõesdapeneiraparaosamburá,commuitomedodesermordida. Só os agarrava pelos fios da barba. Pedrinho ria-se: "Boba!Ondesevêemcamarãomorder?"Eela:"Agentenuncasabe..."

No jantar daqueles domingos, quando aparecia na mesa o prato-travessa cheio de camarõezinhos fritos, bem pururucas e vermelhos, ascriançasatésapateavamdegosto.Esecomoscamarõezinhosvinhaalgumapequenatraíraoubagre,adisputaeracerta.

—Atraíraéminha!—berravaum.—Éminha,éminha!—gritavaoutro.Oremédioerasempreumadas

célebressentençasdeSalomãodeDonaBenta.—Comovocêssãodoiseatraíraéumasó,eucomoatraíraevocês

repartemoscamarões.Cessava incontinenti a disputa, e a travessa de camarão ia

diminuindo,diminuindo,aténãoficarnemumfiodebarba.

CapítuloIII

MEDODESACI

Pedrinho, naqueles tempos, costumava passar as férias no sítio de

Dona Benta, onde brincava de tudo, como está nas REINAÇÕES deNarizinhoenaVIAGEMAOCÉU.Sónãoestácontadooquelheaconteceuantesdafamosaviagemaocéu,quandoandavacomacabeçacheiadesacis.

Acoisa foiassim.Estavaelenavarandacomosolhosnohorizonte,postosláondeapareciaoverde-escurodoCapoeirãodosTucanos,amatavirgemdosítio.Derepente,disse:

—Vovó,euandocomidéiasdeircaçarnamatavirgem.DonaBenta,alinasuacadeirinhadepernascotós,entretidanotricô,

ergueuosóculosparaatesta.—Não sabequenaquelamata há onças?—disse comar sério—

Certa vez uma onça pintada veio de lá, invadiu aqui o pasto e pegouumlindonovilhodavacaMocha.

— Mas eu não tenho medo de onça, vovó! — exclamou Pedrinho,fazendoomaisbeloardedesprezo.

DonaBentariu-sedetantacoragem.— Olhem o valentão! Quem foi que naquela tarde entrou aqui

berrandocomumaferroadadevespanapontadonariz?—Sim,vovó,devespaeutenhomedo,nãonego—masdeonça,não!

Seelavierdomeulado,prego-lheumapelotadadomeubodoquenovonoolhoesquerdo;eoutrabemnomeiodofocinhoeoutra...

—Chega!— interrompeuDonaBenta, commedode levar tambémumapelotada.—Masalémdeonçasexistemcobras.Dizemqueatéurutushánaquelemato.

—Cobra?—ePedrinhofezoutracaradepoucocasoaindamaior.—Cobramata-secomumpedaçodepau,vovó.Cobra!...Comoseeulátivessemedodecobra...

DonaBentacomeçouaadmiraracoragemdoneto,masdisseainda:

— E há aranhas caranguejeiras, daquelas peludas, enormes, quedevoramatéfilhotesdepassarinho.

Omeninocuspiudeladocomdesprezoeesfregouopéemcima.— Aranha mata-se assim, vovó — e seu pé parecia mesmo estar

esmagandováriasaranhascaranguejeiras.—Etambémhásacis—rematouDonaBenta.Pedrinhocalou-se.Emboranuncaohouvesseconfessadoaninguém,

percebia-se que tinha medo de saci. Nesse ponto não havia nenhumadiferença entre ele, que era da cidade, e os demais meninos nascidos ecrescidos na roça. Todos tinham medo de saci, tais eram as históriascorrentesarespeitodoendiabradomolequedumapernasó.

DesdeessediaficouPedrinhocomosacinacabeça.Viviafalandoemsaci e tomando informações a respeito. Quando consultou tia Nastácia, arespostadanegrafoi,depoisdefazeropelo-sinaledizer"Credo!".

—Poissaci,Pedrinho,éumacoisaquebrancodacidadenega,dizquenão há— mas há. Não existe negro velho por aí, desses que nascem emorremnomeio domato, que não jure ter visto saci.Nunca vi nenhum,masseiquemviu.

—Quem?— O tio Barnabé. Fale com ele. Negro sabido está ali! Entende de

todas as feitiçarias, e de saci, de mula-sem-cabeça, de lobisomem— detudo.

Pedrinhoficoupensativo.

CapítuloIV

TIOBARNABÉ

TioBarnabé era umnegro demais de oitenta anos quemorava no

rancho coberto de sapé lá junto da ponte. Pedrinho não disse nada aninguéme foivê-lo. Encontrou-osentado,comopédireitonumtocodepau,àportadesuacasinha,aquentandosol.

—Tio Barnabé eu vivo querendo saber duma coisa e ninguém mecontadireito.Sobreosaci.Serámesmoqueexistesaci?

Onegrodeuumarisadagostosae,depoisdeencherdefumopicadoovelhopito,começouafalar:

— Pois, Seu Pedrinho, saci é uma coisa que eu juro que "exéste".Gentedacidadenãoacredita—mas"exéste".Aprimeiravezquevisacieutinha assim a sua idade. Isso foi no tempo da escravidão, na Fazenda doPasso Fundo, que era do defunto Major Teotônio, pai desse CoronelTeodorico,compadredesuaavó,DonaBenta.Foiláquevioprimeirosaci.Depoisdisso,quantosequantos!...

—Conte,então,direitinho,oqueéosaci.BemtiaNastáciamedissequeosenhorsabia—queosenhorsabetudo...

—Comonãoheidesabertudo,menino,se játenhomaisdeoitentaanos?Quemmuito"véve",muitosabe...

—Entãoconte.Queé,afinaldecontas,otalsaci?Eonegrocontoutudodireitinho.—Osaci—começouele—éumdiabinhodeumapernasóqueanda

soltopelomundo,armandoreinaçõesdetodasorteeatropelandoquantacriatura existe. Traz sempre na boca um pito aceso, e na cabeça umacarapuçavermelha.Aforçadeleestánacarapuça,comoaforçadeSançãoestava nos cabelos. Quem consegue tomar e esconder a carapuça de umsacificaportodavidasenhordeumpequenoescravo.

—Masquereinaçõeselefaz?—indagouomenino.

—Quantas pode— respondeu o negro.—Azeda o leite, quebra apontadas agulhas, escondeas tesourinhasdeunha, embaraçaosnovelosdelinha,fazodedaldascostureirascairnosburacos,botamoscasnasopa,queima o feijão que está no fogo, gora os ovos das ninhadas. Quandoencontra um prego, vira ele de ponta pra riba para que espete o pé doprimeiroquepassa.Tudoquenumacasaacontecederuimésempreartedosaci.Nãocontentecomisso, tambématormentaoscachorros,atropelaasgalinhasepersegueoscavalosnopasto,chupandoosanguedeles.Osacinãofazmaldadegrande,masnãohámaldadepequeninaquenãofaça.

—Eagenteconsegueverosaci?—Comonão?Eu,porexemplo, jávimuitos.Aindanomêspassado

andouporaquiumsacimexendocomigo—porsinalquelhedeiumaliçãodemestre...

—Comofoi?Conte...TioBarnabécontou.—Tinhaanoitecidoeeuestavasozinhoemcasa,rezandoasminhas

rezas.Rezei,edepoismedeuvontadedecomerpipoca.Fuialinofumeiroeescolhi uma espiga demilho bem seca. Debulhei omilho numa caçarola,pusacaçarolanofogoevimparaestecantopicarfumopropito.Nistoouvino terreiro um barulhinho que não me engana. "Vai ver que é saci!"—penseicomigo.—Eeramesmo.Daliapoucoumsacipretoquenemcarvão,de carapuça vermelha e pitinho na boca, apareceu na janela. Euimediatamentemeencolhinomeucantoe fingiqueestavadormindo.Eleespiou de um lado e de outro e por fim pulou para dentro. Veio vindo,chegoupertinhodemim,escutouosmeusroncoseconvenceu-sedequeeuestavamesmodormindo.Entãocomeçouareinarnacasa.Remexeutudo,quenemmulhervelha,sempre farejandooarcomoseunarizinhomuitoaceso. Nisto omilho começou a chiar na caçarola e ele dirigiu-se para ofogão. Ficou de cócoras no cabo da caçarola, fazendo micagens. Estava"rezando"omilho,comosediz.Eadeus,pipoca!Cadagrãoqueosacirezanãorebentamais,virapiruá.

Dalisaiuprabulirnumaninhadadeovosqueaminhacarijócalçudaestava chocandonumbalaio velho, naquele canto.Apobre galinhaquasequemorreude susto. Fezcró, cró, cró... e vooudoninho feitouma louca,maisarrepiadaqueumouriço-cacheiro.Resultado:osacirezouosovosetodosgoraram.

Em seguida pôs-se a procurar o meu pito de barro Achou o pitonaquela mesa, pôs uma brasinha dentro e paque, paque, paque... tiroujustamentesetefumaçadas.Osacigostamuitodonúmerosete.

Eu disse cá comigo: "Deixe estar, coisa-ruinzinho, que eu aindaaprontoumaboaparavocê.Vocêhádevoltaroutrodiaeeutecuro."

Eassimaconteceu.Depoisdemuitoviraremexer,osacizinhofoi-seemboraeeufiqueiarmandoomeuplanoparaassimqueelevoltasse.

—Evoltou?—inquiriuPedrinho.— Como não? Na sexta-feira seguinte apareceu aqui outra vez às

mesmashoras.Espioudajanela,ouviuosmeusroncosfingidos,pulouparadentro.Remexeuemtudo,comodaprimeiravez,edepoisfoiatrásdopitoqueeu tinhaguardadonomesmo lugar.Pôsopitonabocae foiao fogãobuscarumabrasinha,quetrouxedançandonasmãos.

—Éverdadequeeletemasmãosfuradas?—É,sim.Temasmãosfuradinhasbemnocentrodapalma;quando

carregabrasa, vembrincando comela, fazendoelapassardeumaparaaoutramão pelo furo. Trouxe a brasa, pôs a brasa no pito e sentou-se depernascruzadasparafumarcomtodooseusossego.

— Como? — exclamou Pedrinho arregalando os olhos. — Comocruzouaspernas,sesacitemumapernasó?

— Ah, menino, mecê não imagina como saci é arteiro!... Tem umapernasó,sim,masquandoquercruzaaspernascomosetivesseduas!Sãocoisas que só ele entende e ninguém pode explicar. Cruzou as pernas ecomeçouatirarbaforadas,umaatrásdaoutra,muitosatisfeitodavida.Masderepente,puff!Aqueleestouroeaquelafumaceira!...Osacideutamanhopinotequefoipararlálonge,esaiuventandopelajanelaafora.

Pedrinhofezcaradequemnãoentende.—Masquepufffoiesse?—perguntou.—Nãoestouentendendo...—Êqueeu tinhasocadopólvorano fundodopito—exclamou tio

Barnabédandoumarisadagostosa.Apólvoraexplodiujustamentequandoele estava tirando a fumaçada número sete, e o saci, com a cara todasapecada,raspou-separanuncamaisvoltar.

—Quepena—exclamouPedrinho.—Tantavontadequeeutinhadeconheceressesaci...

—Masnãohásóumsacinomundo,menino.Esse láse foienuncamais aparece por estas bandas, mas quantos outros não andam por aí?AindanasemanapassadaapareceuumnopastodeSeuQuincasTeixeiraechupouosanguedaquelaéguabaiaquetemumaestrelanatesta.

—Comoéqueelechupaosanguedosanimais?—Muitobem.Fazumestribonacrina,istoé,dáumalaçadanacrina

doanimaldemodoquepossaenfiaropéemanter-seemposiçãodeferraros dentes numadas veias do pescoço e chupar o sangue, como fazemos

morcegos. O pobre animal assusta-se e sai pelos campos na disparada,correndoaténãopodermais.Oúnicomeiodeevitarissoébotarbentinhonopescoçodosanimais.

—Bentinhoébom?—Éumporrete.Dandocomcruzoubentinhopela frente,saci fede

enxofreefogecombotas-de-sete-léguas.

CapítuloV

PEDRINHOPEGAUMSACI

Tão impressionado ficou Pedrinho com esta conversa que dali por

diantesópensavaemsaci,eatécomeçouaenxergarsacisportodaparte.DonaBentacaçoou,dizendo:

—Cuidado!Jávicontarahistóriadeummeninoquedetantopensaremsaciacabouvirandosaci...

Pedrinhonãofezcasodahistória,eumdia,enchendo-sedecoragem,resolveupegarum.FoidenovoemprocuradotioBarnabé.

— Estou resolvido a pegar um saci— disse ele— e quero que osenhormeensineomelhormeio.

TioBarnabériu-sedaquelavalentia.—Gostodeverummeninoassim.Bemmostraqueénetododefunto

sinhôvelho,umhomemquenãotinhamedonemdemula-sem-cabeça.Hámuitos jeitosdepegarsaci,masomelhoréodepeneira.Arranja-seumapeneiradecruzeta...

—Peneiradecruzeta?—interrompeuomenino.—Queéisso?—Nuncareparouquecertaspeneirastêmduastaquarasmaislargas

que se cruzam bem no meio e servem para reforço? Olhe aqui— e tioBarnabé mostrou ao menino uma das tais peneiras que estava ali numcanto.Poisbem,arranja-seumapeneiradestasefica-seesperandoumdiade vento bem forte, em que haja rodamoinho de poeira e folhas secas.Chegadaessaocasião,vai-secomtodoocuidadoparaorodamoinhoezás!— joga-se a peneira em cima. Em todos os rodamoinhos há saci dentro,porque fazer rodamoinhos é justamente a principal ocupação dos sacisnestemundo.

—Edepois?—Depois,seapeneirafoibematiradaeosacificoupreso,ésódar

jeito de botar ele dentro de uma garrafa e arrolhar muito bem. Nãoesquecerderiscarumacruzinhanarolha,porqueoqueprendeosacina

garrafanãoéarolhaesimacruzinhariscadanela.Éprecisoaindatomaracarapucinhadeleeaesconderbemescondida.Saci semcarapuçaécomocachimbosemfumo.Eujátiveumsacinagarrafa,quemeprestavamuitosbonsserviços.MasveioaquiumdiaaquelamulatinhasapecaquemoranacasadocompadreBastiãoetantolidoucomagarrafaqueaquebrou.Bateulogoumcheirinhodeenxofre.Opernetapulouemcimadasuacarapuça,queestavaalinaqueleprego,e“atélogo,tioBarnabé!”

Depoisdetudoouvircomamaioratenção,Pedrinhovoltouparacasadecididoapegarumsaci,custasseoquecustasse.ContouoseuprojetoaNarizinho e longamente discutiu com ela sobre o que faria no caso deescravizarumdaqueles terríveis capetinhas.Depois de arranjar umaboapeneiradecruzeta,ficouàesperadodiadeSãoBartolomeu,queéomaisventosodoano.

Custouachegaressedia,talerasuaimpaciência,masafinalchegou,edesdemuitocedoPedrinhofoipostar-senoterreiro,depeneiraempunho,àesperaderodamoinhos.Nãoesperoumuitotempo.Umforterodamoinhoformou-senopastoeveiocaminhandoparaoterreiro.

— É hora!— disse Narizinho.— Aquele que vem vindo está commuitojeitodetersacidentro.

Pedrinhofoiseaproximandopéantepée,derepente,zás!—jogouapeneiraemcima.

—Peguei!—gritounoaugedaemoção,debruçando-secomtodoopesodocorposobreapeneiraemborcada.—Pegueiosaci!...

Ameninacorreuaajudá-lo.— Peguei o saci! — repetiu o menino vitoriosamente. — Corra,

Narizinho, e traga-me aquela garrafa escura que deixei na varanda.Depressa!

Ameninafoinumpévoltounoutro.— Enfie a garrafa dentro da peneira — ordenou Pedrinho —

enquantoeucercodoslados.Assim!Isso!...A menina fez como ele mandava e com muito jeito a garrafa foi

introduzidadentrodapeneira.—Agoratiredomeubolsoarolhaquetemumacruzriscadaemcima

—continuouPedrinho.—Essamesma.Dêcá.PelainformaçãodotioBarnabé,logoqueagentepõeagarrafadentro

dapeneiraosaciporsimesmo,entradentrodela,porque,comotodososfilhosdastrevas,tematendênciadeprocurarsempreolugarmaisescuro.DemodoquePedrinho omais que tinha a fazer era arrolhar a garrafa eerguer a peneira. Assim fez, e foi com o ar de vitória de quem houvesse

conquistado um império que levantou no ar a garrafa para examiná-lacontraaluz.

Mas a garrafa estava tão vazia como antes. Nem sombra de sacidentro...

Ameninadeu-lheumavaiaePedrinho,muitodesapontado,foicontarocasoaotioBarnabé.

—E, assimmesmo— explicou o negro velho.— Saci na garrafa éinvisível. A gente só sabe que ele está lá dentro quando a gente cai namodorra.Numdiabemquente,quandoosolhosdagentecomeçamapiscarde sono, o saci pega a tomar forma, até que fica perfeitamente visível. Edessemomentoemdiantequeagentefazdeleoquequer.Guardeagarrafabemfechada,quegarantoqueosaciestádentrodela.

Pedrinhovoltouparacasaorgulhosíssimocomasuafaçanha.—Osaciestáaquidentro,sim—disseeleaNarizinho,—Masestá

invisível, comome explicou tio Barnabé. Para a gente ver o capetinha éprecisocairnamodorra—erepetiuaspalavrasqueonegrolhedissera.

QuemnãogostoudabrincadeirafoiapobretiaNastácia.Comotinhaummedohorríveldetudoquantoeramistério,nuncamaischegounemnaportadoquartodePedrinho.

— Deus me livre de entrar num quarto onde há garrafa com sacidentro! Credo! Nem sei comoDona Benta consente semelhante coisa emsuacasa.Nãopareceatodecristão...

CapítuloVI

AMODORRA

Umdia Pedrinho enganouDonaBenta que ia visitar o tio Barnabé,

mas emvezdisso tomouo rumodamata virgemde seus sonhos.Nemobodoquelevouconsigo."Paraquebodoque,selevoosacinagarrafaeeleéumaarmamelhordoquequantocanhãooumetralhadoraexiste?"

Quebeleza!Pedrinhonuncasupôsqueumaflorestavirgemfossetãoimponente.Aquelas árvores enormes, velhíssimas, barbadasdemusgoseorquídeas; aquelas raízes de fora dando idéia de monstruosas sucuris;aqueles cipós torcidos como se fossem redes; aquela galharada, aquelafolharadaesobretudoaqueleambientedeumidadeesombra,lhecausaramumaimpressãoquenuncamaisseapagou.

Voltaemeiaouviaumrumorestranho,deinambuoujacuaesvoaçarporentreafolhagem,ouentão,dealgumgalhopodrequetombavadoaltoevinhanumestardalhaço—brah,ah,ah...—esborrachar-senochão.

Equantasborboletas,dasazuis,comocaudadepavão;dascinzentas,comocascadepau;dasamarelas,cordegemadeovo!

Epássaros!Oraumenormetucanodebicomaiorqueocorpoelindopapoamarelo.Oraumpica-pau,queinterrompiaoseutrabalhodebicaramadeira de um tronco para atentar no menino com interrogativacuriosidade.

Até um bando demacaquinhos ele viu, pulando de galho em galhocom incrível agilidade e balançando-se, pendurados pela cauda, comopêndulosderelógio.

Pedrinho foi caminhandopelamata adentro até alcançar umpontoonde havia uma água muito límpida, que corria, cheia de barulhinhosmexeriqueiros, por entre velhas pedras verdoengas de limo. Em redorerguiam-se as esbeltas samambaiaçus, esses fetos enormes que parecempalmeiras. E quanta avenca de folhagem mimosa, e quanto musgo pelochão!

Encantado com a beleza daquele sítio, o menino parou paradescansar. Juntou um monte de folhas caídas; fez cama; deitou-se debarriga para o ar e mãos cruzadas na nuca. E ali ficou num enlevo quenuncasentiraantes,pensandoemmilcoisasemquenuncapensaraantes,seguindo o vôo silencioso das grandes borboletas azuis e embalando-secomochiardascigarras.

Derepentenotouqueosacidentrodagarrafafaziagestosdequemquerdizerqualquercoisa.

Pedrinho não se admirou daquilo. Era tão natural que o capetinhaafinalaparecesse...

— Que aconteceu que está assim inquieto, meu caro saci? —perguntou-lheemtombrincalhão.

—Aconteceuqueestelugaréomaisperigosodafloresta;equeseanoitepilharvocêaqui,eraumavezonetodeDonaBenta...

Pedrinhosentiuumarrepiocorrer-lhepelofiodaespinha.—Por quê?— perguntou, olhando ressabiadamente para todos os

lados.—Porqueéjustamenteaquiocoraçãodamata,pontodereuniãode

sacis, lobisomens, bruxas, caiporas e até da mula-sem-cabeça. Sem meusocorrovocêestaráperdido,porquenãohámais tempoparavoltarparacasa, nem você sabe o caminho.Mas omeu auxílio eu só darei sob umacondição...

—Jásei,restituiracarapuça—adiantouPedrinho.—Issomesmo.Restituir-meacarapuçaecomelaaliberdade.Aceita?Pedrinhosentiamuitover-seobrigadoaperderumsaciquetantolhe

custaraaapanhar,mascomonãotinhaoutroremédiosenãoceder, jurouque o libertaria se o saci o livrasse dos perigos da noite e pelamanhã oreconduzisse,sãoesalvo,àcasadeDonaBenta.

—Muitobem—disseosaci.—Masnessecasovocêtemdeabriragarrafaemesoltar.Tereiassimmaisfacilidadedeação.Vocêjurouquemeliberta;eudouminhapalavradesaciquemesmosoltooajudareiemtudo.Depoisoacompanhareiatéosítioparareceberminhacarapuçaedespedir-medetodos.

Pedrinho soltouo saci e duranteo restoda aventura tratou-omaiscomoumvelhocamaradadoquecomoumescravo.Assimqueseviuforadagarrafa,o capetapôs-seadançarea fazer cabriolas com tantoprazerqueomenino ficou arrependidodepor tantosdias terconservadopresaumacriaturinhatãoirrequietaeamigadaliberdade.

—Vourevelaros segredosdamatavirgem—disse-lheo saci—etalvezsejavocêaprimeiracriaturahumanaaconhecertaissegredos.Paracomeçar, temos de ir ao “sacizeiro” onde nasci, onde nasceram meusirmãos e onde todos os sacis se escondemdurante o dia, enquanto o solestá fora.Osoléonossomaior inimigo.Seusraiosespantam-nosparaastocasescuras.Somososeternosnamoradosdalua.Éporissoqueospoetasnoschamamdefilhosdastrevas.Sabeoqueétrevas?

—Sei.Oescuro,aescuridão._Poiséisso.Somosfilhosdastrevas,comoosbeija-flores,ossabiáse

asabelhassãofilhosdoSol.Assim falando, o saci levou o menino para uma cerrada moita de

taquaraçusexistentenumdospontosmaisespessosdafloresta.Pedrinhoassombrou-sediantedasdimensõesdaquelesgomosquase

dasuaalturaegrossosquenemumalaranjadeumbigo.

CapítuloVII

ASACIZADA

—Éaqui,dentrodestesgomos,quesegeramecrescemmeusirmãos

de uma perna só— disse o saci.—Quando chegam em idade de corrermundo,furamosgomosesaltamfora.Reparequantosgomosfurados.Decadaumdelesjásaiuumsaci.

Pedrinhoviuqueeraexatooqueeledizia,mostroudesejosdeabrirumgomoparaespiarumsacizinhonovoaindapresoládentro.

—Vousatisfazerasuacuriosidade,Pedrinho,masnãopossorevelarosegredodefurarosgomos;portanto,vire-sedecostas.

Omeninovirou-sedecostas,assimficandoatéqueosacidissesse—“Pronto!” Só então desvirou-se e com grande admiração viu aberta numgomoumaperfeitajanelinha.

—Possoespiar?—perguntou.—Espie,mascomumolhosó—respondeuosaci.—Seespiarcom

osdois,osacizinhoacordaejoganosseusolhosabrasadopitinho.Omenino assim fez. Espiou comumolho só e viu um sacizinhodo

tamanhodeumcamundongojádepitinhoacesonabocaecarapucinhanacabeça.Estavatodoencolhidonofundodogomo.

—Quegalanteza!—exclamouPedrinho.—Quepenaopovo ládecasanãoestaraquiparaverestamaravilha!

—Essesacizinhoaindaficaaídurantequatroanos.Acontadanossavida dentro dos gomos são de sete anos. Depois saímos para viver nomundo setenta e sete anos justos. Alcançando essa idade viramoscogumelosvenenosos,ouorelhas-de-pau.

Pedrinho regalou-se de contemplar o sacizinho adormecido e alificariahorasseosacinãopuxassepelamanga.

—Chega—disseele.—Vire-sedecostasoutravez,queétempodefecharajanelinha.

Pedrinhoobedeceu,equandodenovoolhounãoconseguiupercebernogomodotaquaruçuomenorsinaldajanelinha.

Justamentenesseinstanteumformidávelmiadodegatoferiuosseusouvidos.

— É o jaguar! — exclamou o saci. — Trepemos depressa numaárvore,porqueelevemvindonestadireção.

Pedrinho, tomado de pânico, fez gesto de subir na primeira árvorequeviuàsuafrente,umvelhojacarandácobertodebarbas-de-pau.

—Nessa,não!—berrouosaci.—Émuitogrossa;o jaguar trepariaatrásdenós.Temosqueescolherumadecascabem lisae troncoesguio.Aquele guarantã ali está ótimo— concluiu, apontando para uma árvorebastantealtaemagrinhadetronco,queseviaàesquerda.

Subiram—enuncaemsuavidaPedrinhosubiutãodepressaemumaárvore!Tinhaa impressãodequeoterríveltigredossertõesestavaatrásdele,jádebocaaberta,paraoengolirvivo.Maserailusãoapenas,filhadomedo, pois a fera miou outra vez e o saci calculou pelo som que aindadeveria estar a cem metros dali. Pedrinho ajeitou-se como pôde numaforquilhadaárvore,láficandoquietinhoaoladodosaci.

Preparou-separaverumaferasobreaqualviviafalandomassemterarespeito idéia justa. Iavera famosaonça-pintada,essegatãoquemuitolembraapanteradasmatasdaÍndia.

CapítuloVIII

AONÇA

Omiadosooudenovo,destavezbemperto,elogodepoissurgiu,por

entreasfolhasacabeçadeumaformidávelonça-pintada.Eraumanimaldeextremabeleza,quasetãograndecomootigredeBengala.Parou;farejouoar.Depoisergueuosolhosparaaárvore.Dandocomomeninoeosaci láem cima, soltou um rugido de satisfação, como quem diz: "Achei o meujantar!"Etentousubiràárvore.Vendoqueissolheeraimpossível,sacudiuotroncotãoviolentamentequeporumtrizPedrinhonãoveioabaixo,comosefossejacamadura.Masnãocaiu,eaonça,desanimada,resolveuesperarque ele descesse. Sentou-se nas patas traseiras e ali ficou quieta, sómovendoacaudaepassandodequandoemquandoalínguapelosbeiços.

—Elaécapazdepermanecernessaposiçãotrêsdiasetrêsnoites—disseosaci.—Temosqueinventarummeiodeafugentá-la.

Olhou em redor, examinando as árvores comoquemestá comumaidéianacabeça.Depoissaltouparaamaispróximaefoidecopaemcopaatéumaqueestavacheiadegrandesvagens.Escolheumeiadúziadasmaissecasevoltouparajuntodomenino.

—Aparenasmãosopóquevoudeixarcairdestasvagens—disseele,abrindocomosdentesumadelas.

Pedrinhoestendeuasmãosemformadecuiaeosacisacudiudentroumpóamarelado.Omesmofoifeitocomasoutrasvagens.

—Bem.Agoraderrameestepóbemaprumo,demodoquevácairsobreacaradaonça.

Pedrinhocolocou-seemlinhaverticalcomáferaederramoudeumjatoopóamarelo.

Foiumabelezaaquilo!Quandoopócaiusobreosolhosdaonça,eladeutamanhopinotequefoipararacincometrosdedistância,sumindo-seemseguidapelomatoadentro,aurrardedoreaesfregarosolhoscomosequisessearrancá-los.

Pedrinhodeuumarisadagostosa.—Quediabodepóéeste,amigosaci?—perguntou.—Vejoquevale

maisqueumaboacarabina...—Issosechamapó-de-mico.Ardenosolhoscomopimentaedána

peleumatalcoceiraqueavítimaatésecoçaracomumraloderalarcoco,seotiveraoalcancedamão.

Pedrinhoescorregoudaárvoreabaixo,aindaarir-sedapobreonça.Mas não se riu por muito tempo. Mal tinha dado alguns passos, recuouespavorido.

CapítuloIX

ASUCURI

— Um monstro! Acuda, saci! Um monstro com corpo de cobra e

cabeça de boi!...— gritou Pedrinho, trepando de novo no guarantã comvelocidadeaindamaiorquedaprimeiravez.

Osacifoiveroqueeraevoltoudizendo:— É uma sucuri que acaba de engolir um boi. Desça que não há

perigo.Elaestádormindoedormiráassimdoisoutrêsmesesatéqueoboiestejadigerido.

Apesardaconfiançaqueosacilhemerecia,omeninofoipulandodeárvoreemárvoreparasódesceracempassosdali.Mascomoatentaçãodevera sucuri fossegrande, foi voltando,voltando, até chegarempontodeondepudesseobservá-laàvontade.

Eradasmaioresquesepoderiamencontrar,devendoterpelomenosunstrintametrosdecomprimentoeagrossuradacabeçadeumhomem.Pedrinho não podia compreender como um boi inteiro pudesse caberdentrodela.

—Muitosimples—explicouosaci.—Asucurienlaçaoboi,quebra-lhetodososossoseamassa-odetalmaneiraqueotornacompridocomochouriço. Depois cobre-lhe o corpo de uma baba muito lubrificante ecomeça a engoli-lo sem pressa. Vai indo, vai indo, até que dá com o boiinteironoestômago; só ficamde foraa cabeçaeos chifres.E levamesesassim,atéqueadigestãosecomplete.Quandoestánesseestado,asucurinão oferece perigo nenhum, porque fica inerte, caída em estado desonolência.

E não foi só essa cobra que Pedrinho conheceu naquele dia. Logodepoispercebeuumruídosecodeguizos.Eraumacascavelquepassava;muitoaflita,comoquefugindodealguminimigo.

—Queseráqueaestáperseguindo?—indagouele.

— Alguma muçurana — respondeu o saci. — As muçuranas sãocobrassemvenenoquesósealimentamdecobrasvenenosas.Lávemuma!

De fato, umamuçurana de cor escura surgiu no rastro da cascavel,quefoialcançadalogoadiante.

Luta terrível! Pedrinho nunca imaginou um tal espetáculo. Amuçurana enleou-se na cascavel e as duas rebolaram no chão comominhocas loucas. Muito tempo estiveram assim. Finalmente a cascavelmorreu sufocada, e a muçurana engoliu-a inteirinha, apesar de seremambasdomesmotamanho.

—Que horror!— exclamou Pedrinho.—A vida nesta floresta nãotem sossego. Só agora compreendo porque os animais selvagens são tãoassustados. A vida deles corre um risco permanente, de modo que sóescapamosqueestãocomtodosossentidossemprealertas.

—Éoqueossábioschamama lutapelavida.Umacriaturavivedaoutra.Umacomeaoutra.Masparaqueumacriaturapossacomeraoutra,éprecisoquesejamaisforte—docontráriovaicomeresaicomida.

—Maisfortesó?— Mais forte ou mais esperta. Aqui na mata todos procuram ser

fortes.Osquenãoconseguemserfortes,tratamdeserespertos.Namaiorpartedoscasosaespertezavalemaisdoqueaforça.Ossacis,porexemplo,nãosãofortes—masninguémosvenceemesperteza.

CapítuloX

AFLORESTA

—Poisassimé—continuouosaci.—Aleidaflorestaéaleidequem

pode mais— ou por ter mais força, por ser mais ágil, ou por ser maisastuto. A astúcia, principalmente, é uma grande coisa na floresta. Estávendoaliaquelegalhinhoseco?

—Sim.Umgalhinhocomooutroqualquer—respondeuomenino.— Pois está muito enganado — replicou o saci. — Não é galho

nenhum, sim um bichinho que finge de galho seco para não ser atacadopelosinimigos.

Pedrinhonãoquisacreditar,mascutucandoogalhinhoviuqueelesemexia.Ficouassombradodaesperteza.

—Bemdizvovóqueamataéperigosa!Umquenãosabehádelevarcadalogroaqui...

—Eaquilo?—perguntouosaciapontandoparaumafolha.—Quepareceavocêqueaquiloé?

Pedrinhoolhou;viubemqueeraumafolhadeárvore;mascomojáestavaficandosabidonastraiçõesdafloresta,piscouparaosaciedisse:

—Destaveznãocaionaesparrela.Parecequeéumafolha,mascomcertezaéoutrobichinhoquesedisfarçaemfolha.

Ecutucou-aparaversemexia.Afolha,porém,nãosemexeu.— É folha mesmo, bobinho! — disse o saci dando uma risada. —

Aindaémuitocedoparavocê"ler"amata.Istoélivroquesónós,queaquinascemosevivemostodavida,somoscapazesde interpretar.Ummeninoda cidade, como você, entende tanto da natureza como eu entendo degrego.

—Realmente, saci! Estou vendo que aqui namata sou umperfeitobobinho.Masdeixeestarqueaindaficareitãosabidocomovocê.

— Sim, com o tempo emuita observação. Quem observa e estuda,acaba sabendo. Aqui, porém, nós não precisamos estudar. Nascemossabendo.Temosoinstintodetudo.Qualquerdessesbichinhosquevocêvê,mal sai dos casulos e já se mostra espertíssimo, não precisando dosconselhosdospais.Bemconsideradasascoisas,Pedrinho,parecequenãoháanimalmaisestúpidoelerdoparaaprenderdoqueohomem,nãoacha?

O orgulho do menino ofendeu-se com aquela observação. Ummiserávelsaciafazerpoucocasodoreidosanimais!Erasóoquefaltava...

—Oquevocêestádizendo—replicouPedrinho—étolicepurasemmistura.Ohomeméoreidosanimais.Sóohomemteminteligência.Sóelesabeconstruircasasdetodojeito,emáquinas,pontes,eaeroplanos,etudoquantohá.Ah,ohomem!Vocênãosabeoqueohomemé,saci!Eraprecisoquetivesselidooslivrosqueeuliemcasadavovó...

CapítuloXI

DISCUSSÃO

Osacideuumagargalhada.—Quegabolice!—exclamou.—Casas?Qual éobichinhoquenão

constróisuacasanaperfeição?Vejaadasabelhas,oudasformigas,ouoscasulos. Poderão existir habitações mais perfeitas? Todos aqui na matamoram. Cada um inventa o seu jeito de morar. Todos moram. Todos,portanto,têmsuascasinhas,ondeficammuitomaisbemabrigadosdoqueoshomenslánascasasdeles.Ocaramujo,esseentãoatéinventouosistemadecarregara casaàs costas.Éomaisesperto.Vai andando.Assimqueoperigoseaproxima,arreiaacasaemete-sedentro.

—Casa,válá—dissePedrinhomeioconvencido.—Masaeroplano?Quebichinhodaqui seria capazde construir aviões comonóshomensosconstruímos?

Outrarisadadosaci.— , Pedrinho, você está-me saindo tão bobo que atéme causa dó.

Aviões! Pois não vê que o avião é amais atrasadamáquina de voar queexiste? Aqui os bichinhos de asas estão de tal modo adiantados quenenhumprecisademostrengoscomootalavião.Todospossuemnocorpoumaparelhodevoaraperfeiçoadíssimo.Nãovêquevoam,bobo?Outrodiaassistiaumacenamuitointeressante.Euestavapertodumalagoacheiadepatos, quando um avião passou voando por cima das nossas cabeças. Ospatosentreolharam-seeriram-se.Vocêsabe,Pedrinho,quebichoestúpidoéopato.Poismesmoassimumdelesdissecommuitasabedoria:"Pareceincrível que os homens se gabemde ter inventado uma coisa que nós jáusamoshátantosmilharesdeanos..."

—Sim—continuouPedrinho—masnós sabemos ler e vocêsnãosabem.

—Ler!Eparaqueserveler?Seohomeméamaisbobadetodasascriaturas,dequeadiantasaberler?Queéler?Leréumjeitodesaberoque

osoutrospensaram.Masqueadiantaaumbobosaberoqueoutrobobopensou?

Erademaisaquilo.Pedrinhoencheu-sedecólera.—Nãocontinue,saci!Vocêestámeofendendo.Ohomemnãoénada

doquevocêdiz.Ohomeméaglóriadanatureza.—Glóriadanatureza!—exclamouocapetinhacomironia.—Ouestá

repetindo como papagaio o que ouviu alguém falar ou então você nãoraciocina. Inda ontem ouvi Dona Benta ler num jornal os horrores daguerranaEuropa.Bastaqueentreoshomenshaja issoqueeles chamamguerra,paraquesejamclassificadoscomoascriaturasmaisestúpidasqueexistem.Paraqueguerra?

—Evocêsaquinãousamguerrastambém?Nãovivemaperseguirecomerunsaosoutros?

—Sim;umcomerooutroéaleidavida.Cadacriaturatemodireitode viver e para isso está autorizada a matar e comer o mais fraco. Masvocêshomensfazemguerrasemsermovidospelafome.Matamoinimigoenãoocomem.Estáerrado.Aleidavidamandaquesósemateparacomer.Matar pormatar é crime. E só entre os homens existe issodematar pormatar—poresporte,porglória,comoelesdizem.Qual,Pedrinho,nãosemetaadefenderobichohomem,quevocêseestrepa.EtratedefazercomoPeterPan.queembirroudenãocrescerparaficarsempremenino,porquenãohánadamaissemgraçadequegentegrande.Setodososmeninosdomundofizessemgreve,comoPeterPan,enenhumcrescesse,ahumanidadeendireitaria. A vida lá entre os homens só vale enquanto vocês seconservam meninos. Depois que crescem, os homens viram umacalamidade,nãoacha?Sóoshomensgrandesfazemguerra.Bastaisso.Osmeninosapenasbrincamdeguerra.

Pedrinhonadarespondeu.Estavaumtantoabaladopelasestranhasidéias do saci. Quando voltasse para casa iria consultarDonaBenta parasaberseeraassimmesmoounão.

CapítuloXII

OJANTAR

Osoljáestavadescambandoeomeninosentiufome.Haviaesquecidodetrazermatalotagem.—Amigosaci,estousentindoumacoisachamadafome.Mostre-mea

suahabilidadeemsair-sedetodososapuros,arranjandoumjantar.—Nadamaisfácil—respondeuocapetinha.Gostadepalmito?—Gosto,sim.Mascomopoderemosderrubarumapalmeiratãoalta

paracolheropalmito?Semmachadoéimpossível.Osacideuumarisada.—Nãoháimpossíveisparamim,querver?—emetendodoisdedos

nabocatirouumagudoassobio.Imediatamenteumenormebesourão,chamadoserra-pau,surgiudo

seiodafloresta.Osacifez-lheunssinaiseobesourão,voandoparaoaltodumapalmeiradetroncofino,masmuitoalta,abarcouabasedopalmitoentre os seus ferrões dentados como um serrote e começou a girar comgrandevelocidade,zunindocomoumaeroplano—zunnn...

Emmenosdecincominutosotroncodapalmeiraestavaserrado,eopalmito,acompanhadodacopa,veiocomgrandeestardalhaçoaochão.

—Bravos!—exclamouomenino.—Nuncaimagineiquenestamatahouvesseserradortãohábil.Queroagoravercomovocêpreparaopetisco.

—Muitofácil—disseosaci.—Fogonãofalta.Tenhosemprefogonomeupitinho.Panelastambémnãofaltam.Esóprocurarporaíalgumacascadetatu.Águatemosdentrodosgomosdetaquara;bastaracharumoudois.Eparagordura,ésóquebrarumaporçãodecoquinhoseespremerentreduaspedrasoóleodasamêndoas.

—Esal?—Eomaisdifícil;mascomohámel,vocêcomerápalmitopreparado

sobformadedoce,queéaindamaisgostoso.

E assim foi feito. Em menos de vinte minutos estava diante dePedrinho uma casca de tatu cheia de um doce de palmito muito bempreparado. O menino comeu a fartar e ainda teve uma sobremesa deamorasdomato,queosacicolheualimesmo.

—Hámuito tempo que não como com tanto apetite!— comentouPedrinhodepoisqueencheuopapo.—VocêéumcozinheiroaindamelhorquetiaNastácia,queéaprimeiracozinheiradomundo.

E, dando tapinhas na barriga, pôs-se a palitar os dentes com umcompridoespinhodebrejaúva.

Atarde iamorrendo.NãotardouquePedrinhovissebrilharnocéu,porentreumanesgaabertanacopadasárvores,aprimeiraestrelinha,

Quecoisaimpressionanteeraanoite!AtéaquelemomentoPedrinhoaindanãohaviaprestadoatençãonisso.Noiteemcasanãoénoite.Acende-seolampião,fecha-seaportadarua—equeédanoite?

Mas ali, oh, ali a noite o era de verdade -— das imensas, dascompletamente escuras, apenas com aqueles vaga-lumes parados no céuqueoshomenschamamestrelas...

CapítuloXIII

NOVASDISCUSSÕES

Tinham de esperar a meia-noite, porque só a essa hora, é que os

duendes da floresta saem de suas tocas. Para matar o tempo, o sacicomeçouaexplicaraPedrinhooqueeraavidananatureza.

—Vocênuncapoderá fazer idéiadavidaencantadaque temosporaqui—disseele.

—Ora,ora!—exclamouomenino.—Nãoháoqueoshomensnãosaibam.VovótemláumaHistóriaNaturalquecontatudo.

Osaciriu-seetirouumabaforadadopitinho.—Tudo?Ah,ah,ah!...Livroscomoessesnãocontamnemiscadoque

é, e estão cheiosde invençõesouerros.Bastadizerquepara cada insetoseriaprecisoumlivrointeirosóparacontaralgumacoisadavidinhadeles.Equantosinsetosexistem?Milhões...

—Em todo caso—volveu Pedrinho—nós, homens, pomos o quesabemos nos livros e vocês sacis não escrevem coisa nenhuma. Nuncahouvelivrosentrevocês,equemnãoescreveobrasnãopodeensinaraosfilhosoquesabe.

— Não temos livros— disse o saci — porque não precisamos delivros. Nosso sistema de saber as coisas é diferente. Nós adivinhamos ascoisas.Herdamosasabedoriadenossospais,comovocês,homensherdampropriedades ou dinheiro. Nascer sabendo! Isso é que é o bom. Umpernilongo,porexemplo.Sabecomoéavidinhadele?Nascenaágua,saídodeumovinho.Logoquesaidoovinhoaindanãoépernilongo—éoquevocês chamam "larva"— uma espécie de peixinho que nada emergulhamuitobem.Umdiaessalarvacriaasas,pernascompridasevoa.Equefazquandovoa?

—Vaicantaramúsicadofiunepicaraspessoasqueestãodormindoemsuascamas.Eissooqueessesmalvadinhosfazem.

—Muitobem!—tornouosaci.—Equemensinaopernilongoafazerisso?Ospais?Não, porquedepoisde soltar os ovosna águaospaisdospernilonguinhosmorrem.Os livros?Não,porqueelesnãotêmlivros.Poisapesardissosabemtudoquantoprecisamsaber.Sabemquenocorpodasgenteshásangue,equeosangueéoalimentodeles.Sabemqueasgentesmoramemcasas.Sabemqueamelhorhoradesugarosanguedasgenteséde noite, porque estão dormindo. E sem que os pais lhes ensinem coisanenhuma, ou que as aprendam nos livros, os pernilonguinhos logo quesaemdaáguavãoembuscadascasas,entram,escondem-senos escuros,esperamquetodosdurmamesossegadamentepicamaspessoaseenchemde sangueas suasbarriguinhas.Depois escapampelas janelas e voltamàmata ou outros sítios, em procura de agüinhas paradas onde porem osovos.Eassimeternamente.Sabemtudodireitinho—eninguémosensina.Logo, eles têm a ciência de tudo dentro de si mesmos, como vocês têmtripaseestômagoepacuera.

Pedrinhotevedeconcordarqueeraassimmesmo.Osacicontinuou:— E como fazem os pernilongos, assim também fazem todas as

outrasvidinhasaquidafloresta.Cadaqualnascesabendofazerocerto—enãoerram.Osgrilosnascemsabendoabrirburacos.Háuminsetochamadobombardeiro. Se outro maior o ataca, vira-se de costas e lança-lhe nofocinho um líquido que se evapora imediatamente e tonteia o inimigo.Quandoestevoltaasi,obombardeirojáestálonge.Quemoensinaafazerisso?Ninguém.Nascesabendo.Certosbesouros,quandoquerempôrovos,fazem o seguinte: pegam uma pequena quantidade de esterco e a vãorolandopelo chão comaspatasdetrás. Paraquê?Para formarumabola.Quandooestercoestáumabolabemredondinha,elesafuramebotamládentro os ovos. Quem ensina esses besouros a fazer essas bolas tãoredondinhas?Ospais?Não!Algumlivro?Não!Elesnascemsabendo.

— Sim — disse Pedrinho. — Nascem sabendo e nós temos deaprendercomosnossospaisounoslivros.Issosóprovaonossovalor.Queméritoháemnascersabendo?Nenhum.Mashámuitoméritoemnãosabereaprenderpeloestudo.

— Perfeitamente — concordou o saci. — Não nego o mérito doesforçodoshomens.Oquedigoéqueelessãoseresatrasadíssimos—tãoatrasadosqueaindaprecisamaprenderporsimesmos.Enóssomosseresaperfeiçoadíssimosporquejánãoprecisamosaprendercoisanenhuma. Jánascemos sabidos. Que é que você preferia: ter nascido já com toda aciênciadavidaládentroouterdeiraprendendotudocomomaioresforçoeàcustademuitoserros?

Omeninofoiobrigadoaconcordarqueomaiscômodoserianascersabendo.

— Sim, nesse ponto você tem razão, saci.Mas que é que faz todasessas vidinhas viverem? Está aí uma coisa que minha cabeça nãocompreende.

—Ah,issoéosegredodossegredos!—respondeuosaci.—Nemnóssabemos. Mas o que acontece é o seguinte: dentro de cada criatura,bichinhoouplantinha,háumaforçaqueaempurraparaafrente.EssaforçaéaVida.Empurraediznoouvidodascriaturinhasoqueelasdevemfazer.Avidaéumafada invisível.Eelaquefazopernilongoirpicaraspessoasnas casas de noite; e que manda o grilo abrir buraco; e que ensina obombardeiroabombardearseusatacantes.

—Maséinvisívelatéparavocêssacis,queenxergammaiscoisasdoquenóshomens?—perguntouPedrinho.

—Sim.EuqueenxergotudonuncapudeverafadaVida.Sóvejoosefeitosdela.Quandoumpassarinhovoa,euvejoovôodopassarinho,masnãovejoafadadentrodeleaempurrá-lo.

—Entãoeladevesercomoagasolinadosautomóveis.Semgasolinaoscarrosnãoandam.

—Perfeitamente—concordouosaci—mascomumadiferença:nosautomóveis a gente vê e cheira a gasolina,mas a Gasolina-Vida ninguémaindaconseguiuvernemcheirar.

—Emorrer?Queémorrer?AVidaentãoacaba,comoagasolinadoautomóvel?

—AVidamuda-sedeumserparaoutro.Quandooserjáestámuitovelho e escangalhado, a Vida acha que não vale mais a pena continuarlidando com ele e abandona-o. Vai movimentar um novo ser. A fadainvisíveldiverte-secomisso.

Pedrinho ficou muito impressionado. A fada invisível tambémmoravadentrodele,eoempurravaparaafrente.Eraquemofaziaterfomeecomer, tersedeebeber, tersonoedormir,querercoisaseprocurá-las.Masumdiaessaboafadaseenjoariadele.Porquê?Porqueelejáestariadecabelosbrancosesemosdentesnaturais,ecomreumatismonasjuntas,ecatacego e com a pele toda enrugada, e com o coração tão fraco que atépara subir a escadinha da varanda seria uma proeza. E então a fadatorceria o nariz e se enjoaria dele:— "Sabe quemais, Senhor Pedrinho,Vocêestáumcacovelhoeeunãogostodisso.Vouprocuraroutroente"—eoabandonariaeeleentãomorreria.

Essa idéia entristeceu Pedrinho, porque a idéia que não entristeceninguémébemoutra:éaidéiadenãomorrernunca,nunca...

Conversouarespeitocomosaci.—Ora,ora!—disseeste.—Oquemorreéocorposó,apartequeem

nóstemmenosimportância.Agrandecoisaqueháemnós,enosdiferenciadaspedras e dospauspodres, que é?AVida. E essanão acabanunca—muda-se dum ser para outro. Tal qual a eletricidade. Quando a pequenabateria daquela lâmpada elétrica que você tem se descarrega, a bateriamorre—masmorreuaeletricidade?Não.Apenasmudou-se.Saiudaquelabateriaefoiparaoutra,oufoiparaasnuvens,oufoiparaondequis.Assimcomoa eletricidadenãomorre, aVida tambémnãomorre.AVidaéumaespéciedeeletricidade.

— Mas eu não queria que fosse assim — lamentou Pedrinho. —Tenho dó domeu corpo. Estas mãos, por exemplo, disse ele abrindo-as.Estou tão acostumado com elas... Desde pequenininhos que estas mãosfazem tudooqueeuquero, e fico tristede lembrarqueumdiavão ficarparadas,mortas...

—Piordoqueperderasmãoséperderosolhos—disseosaci.—Járeparou como é triste não ter olhos, ou tê-los e não ver nada? Feche osolhosbemfechados.

Pedrinhofechou-osbemfechados.Osacidisse;— Pois quando a fada invisível abandonar o seu corpo, Pedrinho,

seusolhosvãoficarassim,cegos—comosenãoexistissem,enuncamaisserãoolhos,quehojevêemtantacoisa,verãocoisanenhuma.Nuncamais,nuncamais...

Pedrinhosentiuumatristezatãograndequequasechorou—masosacideuumagranderisada.

—Bobo!Oquenessesseusolhosenxerga,nãosãoosolhos:éafadainvisívelquehádentrodevocê.Afadaécomooastrônomonotelescópio;eosolhossãocomootelescópiodoastrônomo.Qualéomaisimportante:otelescópioouoastrônomo?

—Eoastrônomo—dissePedrinho.— Pois então alegre-se, porque o astrônomo não morre nunca. O

telescópioéquesedesarranjaequebra...

CapítuloXIV

OMEDO

Longamentefilosofaramosdois,ládebaixodagrandeperobaqueos

abrigava do sereno da noite. A vida noturna tão intensa quanto a vidadiurna. Entre os homens tudo pára durante certa parte da noite,mas naflorestaavidacontinua,porqueunsseresdormemdediaevivemdenoiteeoutrosdormemdenoiteevivemdedia.Assimqueossabiás,sanhaçosetico-ticosserecolhemaosseuspousosouninhos,começamasairdastocasascorujasemorcegos.Easborboletasemariposasnoturnasvêmsubstituirasborboletasemariposasdiurnas,queadormecemlogoquechegaanoite.Eascaçasmedrosas,tãoperseguidaspeloshomens,saemdenoiteapastarebeberáguanosrios.Eosvaga-lumesquededianãodeixamos lugaresescuros,começamapiscarportodapartecomassuaslanterninhas.

— Esses eu sei — disse o menino. — A vida desses animais euconheçomaisoumenos.Oquemeinteressaagoraéavidadostais"entesdas trevas", comodiz tiaNastácia—osmisteriosos—osqueunsdizemqueexistemeoutrosjuramquenãoexistem.

— Compreendo — disse o saci. — Você refere-se aos chamados"duendes","monstros","capetas","gnomos"etc...

—Issomesmo,amigosaci.Andodesconfiandoquetudonãopassadesonho. Eu não via nada na garrafa, antes de ter caído naquelamodorra.Assimqueamodorrachegou,vocêapareceunagarrafaecomeçouafalar.Desconfio que estou sonhando... Desconfio que isto é um pesadelo... Nospesadeloséqueaparecemmonstroshorríveis.Porquê?Porqueéquehácoisashorríveis?

—Porcausadomedo,Pedrinho.Sabeoqueémedo?O menino gabava-se de não ter medo de nada exceto de vespa e

outrosbichinhosvenenosos.Masnãotermedoéumacoisaesaberqueomedo existe é outra. Pedrinho sabia que omedo existe porque diversasvezesoseucoraçãopularademedo.Erespondeu:

—Sei,sim.Omedovemdaincerteza.—Issomesmo—disseosaci.—Amãedomedoéaincertezaeopai

domedoéoescuro. Enquanto houver escuro nomundo, haverámedo. Eenquantohouvermedo,haverámonstroscomooquevocêvaiver.

—Masseagentevêessesmonstros,entãoelesexistem.—Perfeitamente.Existemparaquemosvêenãoexistemparaquem

nãoosvê.Porissodigoqueosmonstrosexistemenãoexistem.—Nãoentendo—declarouPedrinho.—Seexistem,existem.Senão

existem,nãoexistem.Umacoisanãopodeaomesmo tempoexistirenãoexistir.

_ Bobinho!— declarou o saci.— Uma coisa existe quando a genteacreditanela;ecomounsacreditamemmonstroseoutrosnãoacreditam,osmonstrosexistemenãoexistem.

Aquela filosofiadosaci jáestavadandodordecabeçanomenino,oqualsuspirouedisse:

— Basta, amigo saci. Não quero mais saber de filosofias, queroconhecerossegredosdanoitenafloresta.Mostre-meosfilhosdomedoquevocê conhece. Desde que há tanta gentemedrosa nomundo, deve havermuitosfilhosdomedo.

— Se há! — exclamou o saci. — Os medrosos são os maiorescriadores das coisas que existem. Não tem conta o que lhes sai daimaginação.Asmitologiasdaquelesvelhospovosestãocheiasdeterríveiscriaçõesdomedo.AquinestasAméricas,temostambémmuitascriaçõesdomedo, não só dos índios chamados aborígenes, como dos negros quevieramdaÁfrica.

Pedrinholembrou-sedotioBarnabé,queeraafricano.—TioBarnabé,porexemplo—disseele—éumdanadoparasaber

essascoisas.Conhecetodososfilhosdomedo.Foielequemmeexplicouocasodossacis.Conte-menoqueéqueosíndiosacreditavam.

— Os índios — começou o saci — não usavam durante a noiteaquelas luzes que Dona Benta usa lá no sítio — aqueles lampiões dequerosene. Nem usavam a luz elétrica que há nas cidades. Só usavamfogueirinhas de pouca luz e, por isso omedo entre os índios era grande.Quanto maior é o escuro, maior o medo; e quanto maior o medo, maiscoisasaimaginaçãovaicriando.JáouviufalarnoJurupari?

—Não...—Poiséodiabodosíndios,oespíritomauqueaparecenossonhose

transforma os sonhos em pesadelos horríveis. Insônia, mal-estar,inquietação,tudoqueédesagradável,vemdesseJurupari.

—Mascomoéele?— Um espírito sem forma, tipo o espírito mau que se diverte em

agarrar os que estão dormindo e causar-lhes todos os horrores dospesadelos. E parece que segura as vítimas pela garganta, porque elasesperneiamesedebatem,masnãopodemgritar.

—Oh,eu játiveumpesadeloassim!—disseomenino.—Lembro-memuito bem. Eu ia caindo num buracão enorme. Quis gritar por vovó,masfoiinútil.Avoznãosaía...

— Pois era o Jurupari que estava apertando a sua garganta. Odivertimento dele é esse. Anda de casa em casa provocando pesadeloshorríveisnosqueencontradormindo.

Nesse momento um ruído entre as folhas chamou a atenção deambos.

—Psit!...—fezosaci.—Atenção...Qualquercoisavemvindo...Ficaramosdoisimóveis.OcoraçãodePedrinhobatiaapressado.— O Curupira!— sussurrou o saci, quando um vulto apareceu.—

Veja...Temcabelosepésviradosparatrás.—Pareceummeninopeludo—murmurouPedrinho.—Eéissomesmo.Éummeninopeludoquetomacontadacaçanas

florestas. Sóadmitequeos caçadores cacempara comer.Aosquematampormatar,demalvadeza,eaosquematamfêmeascomfilhotesqueaindanãopodemviverporsimesmos,oCurupiraperseguesemdó.

—Bemfeito!Mascomoospersegue?—Demilmaneiras. Uma dasmaneiras é disfarçar-se em caça e ir

iludindoo caçador até que ele se percanomato emorrade fome.Outramaneiraétransformaremcaçaosamigos,osfilhosouamulherdocaçador,demodoquesejammortosporelemesmo.

Pedrinho achou que não podia haver nada mais justo. O saciprosseguiu:

—Esseque vai passando está apé,mas em regraoCurupira andamontadonumveadoetraznamãoumavaradejapecanga.

—Queéjapecanga?— Uma planta que é remédio para doença do sangue. Também é

conhecidacomosalsaparrilha.—Eporqueandacomessavaradejapecanga?Queidéia!—Nãosei.Eleéque sabe.EoCurupira temumcachorrodenome

Papamel que não o larga. Assim que avista um caminhante na estrada,começalogoacantar:

Currupaco,papacoCurrupaco,papaco...

—Isso é cantiga de papagaio!— lembrouPedrinho.—Na casadoCoronelTeodoricoháumquesódizisso.

— Pois foi com o Curupira que os papagaios aprenderam ocurrupaco.Papagaionãoinventapalavras,apenasrepeteasqueouve.

MasoCurupira,comosseuspésvoltadosparatrás,nãosedemoroumuitoporali.Descobriuumrastodepacaelásefoi,comcertezaparavercomoelaiapassandoemsuatoca.

—Quehorasserão?—perguntouomenino.Osacirespondeuquefaltavapoucoparameia-noite.—Comosabe?—Por aquela flor— respondeuo saci indicandouma flor quenão

estavade todoaberta.—Éomeurelógioaqui.Sóabrecompletamenteàmeia-noite...

CapítuloXV

OBOITATÁ

—EuouçofalarnaIaraenoBoitatá.Seráquepodereiverumdeles

hoje?—perguntouPedrinho.—AIarapode—respondeuosaci—porqueháumaquemorapor

aquiemcertopontodorio;masBoitatá,não.SóexistelápeloSul.—Comoé?—PoisoBoitatáéummonstromuitointeressante.Quasequesótem

olhos—unsolhosenormes,defogo.Denoitevêtudo.Dedianãoenxerganada—talqualas corujas.DizemquecertavezhouveumgrandedilúvioemqueaságuascobriramtodososcamposdoSul,eoBoitatá,então,subiuao ponto mais alto de todos. Lá fez um grande buraco e se escondeudurante todoo tempododilúvio.E tantos anospassounoburacoescuroqueseucorpofoidiminuindoeosolhoscrescendo—eficoucomoéhoje,quaseque sóolhos.Afinal aságuasdodilúviobaixarameoBoitatápôdesairdoburaco,edesdeessetemponãofazoutracoisasenãopassearpeloscampos onde há carniça de animaismortos. Dizem que às vezes toma aformadecobra,comaquelesgrandesolhosemlugardecabeça.Umacobradefogoquepersegueosgaúchosqueandamacavalodenoite.

—Euseidessahistória.Éofogo-fátuo.Vovójánosexplicouqueessesfogossãofosforescênciasemitidaspelaspodridões.NoSultambémexisteacélebrehistóriadoNegrinhodoPastoreio.Conhece?NãoseráumaespéciedesacidosPampas?

—Não.Trata-sede coisamuitodiferente.Essenegrinho foi apenasum mártir. Sofreu Os maiores horrores dum senhor de escravos muitocruel;morreuevirousantinho.

—Conteahistóriadele.Eosacicontou.

CapítuloXVI

ONEGRINHO

—Haviaumfazendeiro,ouestancieiro,comosedizlánoSul,queera

muitomauparaosescravos—issofoinotempoemquehaviaescravidãoneste País. Uma vez comprou uma ponta de novilhos para engordar emseuspastos.Erainverno,umdospioresinvernosqueporláhouve,detantofrioquefazia.

— “Negrinho”—disse o estancieiro para ummolecote da fazenda,que andava por ali.— "Estes novilhos precisam acostumar-se nosmeuspastos,porissovocêvaitomarcontadeles.Todasastardestemdetocaraponta inteira para o curral, onde dormirão fechados, depois de contadospormim.Tomemuito tento, hein? Se faltarna contagemumsóque seja,vocêmepaga."

Opobremolecotesótinhaquatorzeanosdeidade;mesmoassimnãoteveremédiosenãoirparaocampotomarcontadogado.Eragadoarisco,aindanãoquerenciadonaquelafazenda,demodoque,paracomeçar, logonoprimeirodiaumdosnovilhosfaltounacontagem.

Oestancieironãoquissaberdeexplicações.Vendoqueonúmeronãoestavacerto,botouocavaloemqueestavamontadoparacimadonegrinhoedeu-lheumatremendasovadechicote.Depoisdisse:

— “E agora é ir procurar o novilho que falta. Se nãome der contadele,eudoucontadevocê,seugrandíssimopatife!”

Eleft!—outralambadapordespedida.O moleque, com as costas lanhadas e em sangue, montou no seu

cavalinhoesaiupeloscamposatrásdonovilho.Depoisdemuitoprocurar,encontrouporfimofujão,escondidonumamoita.

—“Eagora?”—pensouconsigo.—“Tenhodelaçarestenovilho,masmeulaçoestáquenãovalenada,detãovelho,eeuestoutãoescangalhadopela sovaqueaindavalhomenosqueo laço.Masnãohá remédio.Tenhoqueiratéofim...”

E,aproximando-secommuitojeito,laçouonovilho.Se fosse só laçar, estaria tudo muito bem. Mas tinha de trazer o

boizinho por diante, até o curral. Teria ele forças para isso? O laçoagüentaria?

Nãoagüentou.Commeiadúziadesacõesonovilhodesembaraçou-sedolaço,arrebentando-o,elásefoipeloscamposafora,navolada.

E agora? Voltar para casa sem novilho e sem laço? O furor doestancieiroiriaexplodircomobomba.

Voltou.— "Que é do novilho?"— indagou o patrão assim que o negrinho

apareceunoterreiro.— "Escapou, patrão. Lacei ele, mas o laço estava podre e não

agüentou,comosinhôpodeverporestepedaço."Seoestancieironão fosseummonstrodemaldade, convencer-se-ia

logo, vendo pela ponta do laço que o negrinho andara direito. Quando olaçoarrebenta,aculpadapresaescaparnãoédolaçador,simdolaço.Nãopodehavernadamaisclaronomundo.Masoestancieiro,quetinhacomidocobranaquele dia, emvez de dar-se por convencido,mais colérico aindaficou.

—"Cachorro!"—exclamouespumandoderaiva.—"Vocêvai terocastigoquemerece."

Odito,ofeito.Agarrouonegrinho,amarrou-opelospéscomapontado laçoedepoisdebaternele como cabodo relhoaté cansar, teveumaidéia diabólica: botá-lo num formigueiro para ser devorado vivo pelasformigas.

Assim fez. Arrastou-o para um sítio onde existia um enormeformigueiro de formigas carnívoras, arrancou as roupas do coitadinho edeixou-oamarradolá.

Nodiaseguinte foiveravítima,coma idéiadecontinuarocastigo,caso o grande criminosonão estivessemorto e bemmorto. Chegando aoformigueiro, levouumgrandesusto.Emvezdonegrinho,viuumanuvemqueseerguiadaterraelogosesumiunosares.

A notícia desse acontecimento correumundo. Os homens daquelasbandascomeçaramaconsideraronegrinhocomoummártirquetinhaidodiretoparaocéu.

Comotempovirouumverdadeirosanto.Quemquerqualquercoisa,nacampanhadoRioGrande,antesdepedi-laaSantoAntónioouaoutrosantoqualquer,pedelogoaoNegrinhodoPastoreio.

—Eelefaz?

—Estáclaroque faz—semprequepode.Comosofreumuito,sabeavaliarosapertosdosoutroseajuda-osnopossível.

CapítuloXVII

MEIA-NOITE

Nessepontodaprosaaflorqueserviaderelógioabriu-setoda.— É hora!— exclamou o saci.— Estamos justamente nomeio da

noite.Apesar de valente, Pedrinhonãodeixoude sentir um certo arrepio

pelo corpo. Primeira vez na vida em que ia passar uma noite inteira namata—enãoseriaumanoitecomum,peloquediziaosaci.

—Não se arreceie de coisa nenhuma.Deixe tudo porminha conta,que nada demal há de acontecer— disse o saci, correndo os olhos emredor como em procura de alguma coisa. — Venha comigo. Há ali umaperobaminhaconhecida,ondeencontraremosomelhordosrefúgios.

Defato.Natalperobahaviaumocoadozepésacimadochão,muitopróprioparaesconderijo.Dentrodeleosdoisacomodaram-seàvontadeedemodoatudopoderemversemperigodeseremvistos.

—Muitobem—disseomenino—massóquerosabercomopodereienxergarqualquercoisadenoite,dentrodestaflorestaquedediajáétãoescura.

—Paratudoháremédio—foiarespostadosaci.—Espalhareipelasárvores vizinhas centenares de lanternas vivas, de modo que vocêenxergará como se fosse dia. Mas antes é preciso que coma estas setefrutinhas vermelhas—concluiu apresentando aomeninoumpunhadodefrutinhasdotamanhodeamorasbravas.

Pedrinho desconhecia aquelas frutas e foi com uma careta quemordeuaprimeira,tãoamargaera.Mascomeuassete,elogoemseguidasentiuumadeliciosatonteirainvadirlheocorpo,deixando-onumesquisitoestado de consciência jamais sentido. Era como se estivesse dormindoacordado,

Enquanto isso, o saci repetiu em tom diferente o assobio com quechamaraoserra-pau;masdessaveznãoveioserra-paunenhum,simuma

enormequantidadedevaga-lumes,dosgrandesedospequenos.Vierameforampousandonas folhasegalhosdasárvoresvizinhas, comosealguminvisível guia lhes estivesse a indicar os lugares. O coração da florestaclareounumcírculodecemmetrosdediâmetro,comosefossebatidopeloluardaluacheia.

Pedrinho estava a gozar o espetáculo da floresta iluminada pelaslanterninhasvivas,quandosurgiunaclaridadeoprimeirosaci.Elogooutroeoutro,etodoumbandodemaisdecem.Começaramapular,adançareaconversarnumalinguagemqueomeninomuitosentiunãoentender.

—Estão combinando as travessuras que vão fazer durante a noite.Daqui a pouco todos partem, só ficando os pequeninos que ainda nãopodemcorrermundo—explicouosacicochichando-lheaoouvido.

Pedrinhoenxergouumdecarachamuscada—comcertezaoqueforavítima da explosão do pito do tio Barnabé. Mas os sacis foram sedispersando,demodoqueaocabodealgunsminutossóseviamporaliospequeninoscomocamundongos.

—Paraondeforam?—perguntouPedrinho.—Oh, eles espalharam-sepor todaparte.Ainda estáporhaverum

lugarzinhoondesacinãoentre.—Aténasgarrafas...—disseomenino,sorrindo.

CapítuloXVIII

SAÍDADOSSACIS

NememsonhosPedrinho jamaisesperouquepudesseobservarum

quadro mais curioso. Aqueles minúsculos capetinhas eram as maistravessaseirrequietascriaturasquesepossamimaginar.Nãoparavamumsó instante. Cabriolavam nos musgos do chão, pulavam como pulgas,dançavam, inventavam mil travessuras. E tudo faziam sem por um sóinstantetiraremopitinhodaboca.

Deram-secenasmuitoengraçadas.Trêsdelesficarammuitoatentos,denarizinhoparaoar,observandoummorcegoquedespreocupadamentecomia frutinhasdeumaenorme figueira.Depoisdecochicharementresi,treparam à figueira, com todas as cautelas para não assustar omorcego.Foram por trás dele e, de repente— zás!... pularam-lhe ao lombo, comoperfeitos cow-boys! O morcego levou um grande susto e começou acorcovearnoar,emvôostontos,enquantoostrêscavaleiros,firmesnaselacomocarrapatos,davamassobiosagudíssimosnumgrandecontentamento.

Outrohavia trepadoaumarbustoedescobertoumninhodebeija-florcomtrêsovinhos. Imediatamentedeubradodealarma, chamandooscompanheiros.Reuniu-seumbandoemredordoninho,cujosovos foramretiradoselevadosparaochão.Láacenderamumaminúsculafogueirinhaeassaramosovoseoscomeramcomgrandealegriaegulodice.

E quantas outras travessuras não observou Pedrinho! Os queagarraram um pobre caramujo pelos chifrinhos e fizeram prodígios paraarrancá-lodacasca.Osquesedivertiamemcaçarvaga-lumes,matá-loseesfregarpelocorpoasubstânciafosforescentequeostornaluminosos.Osquecavavamaterra,descobriamminhocas,emendavamtrêsequatroparafazerumacordadepular...

Pedrinho estava completamente absorvido naquele curiosoespetáculo; e assim passaria a noite, se em certomomento o saci não opuxasseparaofundodooco.

— Cuidado!— disse ele.— Estou sentindo catinga de lobisomem.Meufaronuncaseengana...

CapítuloXIX

LOBISOMEM

Nem bem acabara o saci de pronunciar estas palavras e Pedrinhonotou grande rebuliço entre os sacizinhos. Parece que tambémpressentiram qualquer coisa, pois largaram das brincadeiras edesapareceramnafloresta,comoporencanto.

Era tempo.Omatocomeçouaestalar, comosealgumanimalãoporeleviesserompendo,eporfimsurgiunaclareiraacarantonhasinistradeum lobisomem. Parou, farejou o ar como se estivesse sentindo cheiro decarne humana. O saci, porém, tivera a precaução de emitir um certocheirinho a enxofre, e isso iludiu o lobisomem, que continuou o seucaminhoepassou.Ocheiroaenxofredisfarçaodacarnehumana,explicoumaistardeosaci.

Apesar do medo que sentira, Pedrinho pôde notar que o monstrotinhaapelevirada, istoé,opeloparadentroea carnepara fora—umacoisahorrível!Nomais,eraumperfeitolobo,emboradedimensõesmuitomaisavantajadas.

Assimqueolobisomemdeixouaclareira,omeninorespirouumah!dealívio,epediuosaciquelhecontassealgumacoisadessesmonstros.

—Dizem—respondeuosaci—quequandoumamulhertemsetefilhosmachos,osétimoviralobisomemnanoitedassextas-feiras.Saientãopeloscampos, invadeosgalinheiros(ondecomeumprodutodasgalinhasque não é o ovo) e também assalta e devora os cães e as crianças queencontrapelocaminho.Sealguématacaumlobisomemecorta-lheumadaspatas,elevira imediatamentenohomemqueé—eessehomemficaportodaavidaaleijadodomembrocorrespondenteàpatacortada.

Pedrinho não resistiu à tentação de ver de perto as pegadas domonstroeapesardasadvertênciasdosacisaiudoocoparaexaminá-lasàluz de vaga-lume.Masnão teve tempo.Assimque saiu do oco, ouviuumestranho rumor ao longe, seguidodo agudo assobio do saci chamando-o.Voltouprecipitadamente.

—Quehá?—indagou.

Osaci,quetambémpareciaamedrontado,puxou-obemparaofundodoesconderijo,murmurando:

—Amula-sem-cabeça!

CapítuloXX

AMULA-SEM-CABEÇA

Amula-sem-cabeça!Pedrinho estremeceu. Nenhum duende das florestas o apavorava

maisqueesseestranhoeincompreensívelmonstro,amula-sem-cabeçaquevomita fogopelasventas.Muitashistóriasaseurespeito tinhaouvidoaoscaboclos do sertão e aos negros velhos, embora Dona Benta vivessedizendo,quetudonãopassavadecrendice.

Agalopadaaproximava-se;jáseouviaoestalardosarbustosqueemseu desenfreado galopar a mula-sem-cabeça vinha quebrando. Súbito,parou.

—Vaimudarderumo!—murmurouosacicomcaramaisalegre.E de fato foi assim. A mula retomou a galopada, mas em outra

direção,eemborapassasseporpertonãochegouaoalcancedosolhosdomenino.

— Que pena! — exclamou ele. — Tanta vontade que eu tinha deconheceressemonstro...

—Quepena?—repetiuosaci.—Quefelicidade,devevocêdizer!Amula-sem-cabeçaéomaissinistroduendequehánomundo;temodomdetranstornararazãodetodosqueavêem.Porissoéque,tivemedo—nãopormim,masporvocê...

—Masqualéaorigemdessamula?—Umahistóriamuito velha.Dizemque antigamentehouveum rei

cuja esposa tinha o misterioso hábito de passear certas noites pelocemitério, não consentindo que ninguém a acompanhasse. O reiincomodou-se com isso e certa noite resolveu segui-la sem que ela opercebesse. No cemitério deu com uma coisa horrenda: a rainha estavacomendoo cadáverdeuma criança enterradana véspera equepor suaspróprias mãos, cheias de anéis, havia desenterrado! O rei deu um grito.Vendo-sepilhada,arainhadeuoutrogritoaindamaior—eimediatamente

virou nessa mula-sem-cabeça, que desde aquele momento nunca maisparoudegaloparpelomundo,semprevomitandofogopelasventas.

E foi assimquePedrinhoperdeu aúnica oportunidadeque tevedeficarconhecendopessoalmenteoestranhomonstroquetantoimpressionaaimaginaçãodosnossossertanejos.

Ela corre sem cessar, espalhando a loucura por onde passa. Nãoexistecriatura,sejabichodomatoougente,quenãoprefiraverodiaboempessoaaveratalmula-sem-cabeça.Éhorrenda!

—Mascomoseráquevomitafogopelasventas,seasventasestãonacabeçaeelanãotemcabeça?

—Tambémnãoentendo;maséassim—disseosaci.

CapítuloXXI

MÁSNOTÍCIAS

Parece que a mula-sem-cabeça tem a propriedade de afugentar os

outros duendes da floresta, porque depois da sua passagem tudo por alificoudesertodeseres.Sóumahoramaistardeéqueossacizinhosforamreaparecendo, um por um e ainda ressabiados.Mas reapareceram todos,afinal,erecomeçaramastravessuras,apenasinterrompidaspelapassagemdaPorcadosSeteLeitõesedoCaipora.

APorcadosSeteLeitõeséumamisteriosaporcaalvacomopaina,quepasseia acompanhada dos seus sete leitõezinhos, fossando o chão emprocuradeumanelenterrado.Sóquandoacharesseanelpoderáquebraroencantoevirarnabaronesaquejáfoi.Porsuasmaldadesnotempoemquehavia escravos, um feiticeiro negro transformou-a emporca e virou seussetefilhosemleitões.

O Caipora é um duende peludo, meio homem, meio mono, quecostumacavalgarosporcos-do-matoedeterosviajantesparaexigirfumo.

Aquelequeporalipassouvinhamontadonumsoberboqueixadadeenormespresas salientes, tão corpulento e forte quepara passar nem sedesviavadaspequenasárvores—iaderrubando-as.

Nisto um pio de coruja fez-se ouvir de perto. O saci apurou osouvidos,comcaradequemnãoestavagostandonadadaquilo.

— Aquela coruja está me chamando. Está dando sinal de queaconteceuqualquercoisalánosítiodeDonaBenta.Tenhodeirveroqueé.

Evaideixar-mesozinhoaqui?—murmurouomeninodedentrodoseuesconderijo,procurandodominaromedo.

Comoamigopernetaaoladosentia-seseguro;masficar,porminutosque fosse,entreguea sipróprio,naquelamatacheiademistérioseaindamais naquela hora sinistra da meia--noite, era duro de roer. Pedrinho,entretanto,dominou-seedisse,fazendodastripasocoração:

—Poisvá,masnãosedemoremuitoporque...porquegostomuitodasuaprosa,ouviu?

Dandoumarisadinhadequemcompreendiaperfeitamenteoquesepassavadentrodoseucompanheiro,osacifoifalarcomacoruja.

Minutos depois regressou, visivelmente inquieto. Percebendo amudança,Pedrinhoindagouansioso:

—Quehá?— Coisamuito grave. Quando saí do sítio de Dona Benta, deixei lá

uma coruja, que é minha escrava, com ordem de avisar-me de qualquercoisaforadocomumqueacontecesse.Poisbem:acorujaacabadechegarcomumanotícianadaagradável.

—Queé?Contelogo...—ACucaapareceunosítioefurtouNarizinho...—Não diga!— exclamou omenino, comos cabelos arrepiados.—

Temosque salvá-la, saci!Darei tudoquantovocêquiser, semeensinaromeiodearrancarNarizinhodasunhasdessehorrendomonstro...

A Cuca! Pedrinho ainda tinha bem fresca namemória a lembrançadessabruxadashistóriasqueaamalhecontaranosprimeirosanosdesuavidinha.Lembrava-seatédunsversosqueelacantavaparaadormecê-lo:

"Durma,nené,queaCucajálávem,Papaiestánaroça;mamãezinha,NoBelém."Lembrava-sequeouvindoessacantigasentiaumapontademedoe

fechavaosolhoselogodormia.Depoisquecresceu,nuncamaisouviufalarnaCuca,anãoserminutosantes,quandoosacilhecontouqueaCucaeraaRainhadasCoisasFeias.Seriaverdade?Verdadeounão,tinhadevoltaraosítioincontinentiedequalquermaneira.

—Vamos embora, saci! Precisamos chegar ao sítio o quanto antes,para saber comcertezaoquehá.Pode serquea coruja estejamentindo,mastambémpodeserverdade.

—Mentira não é— disse o saci.—Minha coruja nãomente. Maspode ser que a menina tenha sido raptada por outro duende que não aCuca.Eopontoquetemosdeverificar.

—EseforaCucamesmo?Quehavemosdefazer?—Nãosei.Tenhodepensarnisso.ACucaébastantepoderosa,emá

como ela só. Mas havemos de dar um jeito. Tenho cá uma idéia. Venhacomigo.

Saíram do oco da peroba e tomaram o caminho do sítio de DonaBenta. A escuridão da noite não embaraçava emnada ao saci, que, comofilho das trevas, enxergava no escuro aindamelhor do que ao sol.Mas opobre Pedrinho padeceu um bocado. Só podia guiar-se pela brasa docachimbo do saci, de modo que tropeçou em muito cipó e toco de paupobre,afundandoospésemformigueiroseburacosdetatu,espinhando-senacaraenosbraços.Maseratalasuaânsiadechegar,quenemsequeradordasarranhadurassentiu.

—Nestaandadurachegaremostarde—dissederepenteosaci.—Sevocêébomcavaleiro,poderemosirmontadosnumporco-do-mato.

—Sou. Jámontei até numgarrote bem taludo, quedeu osmaiorescorcovosdomundosemconseguirderrubar-me.

—Poisentão,tudoestáresolvido.Olhe!Lávememnossorumoumavaradeporcos.Subaaestaárvore;assimqueeudersinal,atire-sedepernaabertaparacimadolombodoquevemnafrente.Euireinagarupa.

Assimfizeram.Subiramosdoisaumaárvorebaixa;logoqueoporcochefe passou por debaixo da árvore, Pedrinho e o saci atiraram-se sobreele, agarrando-se aos compridospelosdo cangote.Assustado comaquelamanobra,opobreporcodisparounumagalopadaloucapelamataafora,nadireçãodesejadapelo saci. Estehabilíssimoduendezinho tinha jeito paratudo, inclusive dirigir porcos-do-mato como se os trouxesse seguros porum bom par de rédeas. Pedrinho não percebeu de que modo o saciconseguia isso, nem teve tempo de o perguntar. Todas as suas energiaseram poucas para manter-se firme no lombo da cavalgadura de novaespécie. Aquela corrida com o saci dentro da noite iria constituir amaisarrojadaaventuradasuavida.Pormaisanosquesepassassem,elejamaispoderiaesquecer-sedela.

CapítuloXXII

CHEGAMAOSÍTIO

DepoisdecompridaCaminhada,omeninopercebeuquejáestavaem

terrasdosítio.ViuoranchodotioBarnabépertodaponte.Emseguidaospastos.Finalmenteacasadesuaqueridavovó.

No terreiro saltaram do porco-do-mato, o qual, aliviado da carga,prosseguiunacorreriacommaiorvelocidadeainda.

Foram entrando. A casa estava silenciosa, de luzes acesas— coisamuitoesquisitaàquelahoradamadrugada.

— Temos novidade — murmurou o menino. — Luz acesa a estashorasémausinal...

Na salade jantar encontrouDonaBenta sentadana sua cadeirinha,comacabeçaapoiadanasmãos.Aoladodela,tiaNastáciaescarrapachadano chão. De tal modo absorvidas estavam as duas velhas que nenhumapercebeuachegadadosvalentessalvadores.

—Quehá,vovó?—foigritandoPedrinho.DonaBentaergueuacabeçaearregalouosolhos,comoseaaparição

dePedrinhofosseumsonho.TiaNastáciafezomesmo,maisassustadadoqueadmiradadeveromeninooutravez.

—Pedrinho!—exclamouapobreavócomexpressãodeesperançanos olhos vermelhos de tanto chorar. — Até que enfim você apareceu!Estava eu aqui desesperada, porque perder um neto já era demais, masperderdoisseriacoisaacimadasminhasforças...

—Perderdois?QuerdizerqueNarizinhosumiu?—Sim,meufilho!Logoquevocêdesapareceudestacasadamaneira

maismisteriosa,nadadizendoaninguém,Narizinhosaiuadarumavoltapelos pastos para ver se o encontrava. Andou por lá gritando "Pedrinho!Pedrinho!" uma porção de tempo, até que de repente se calou. Julgamosque tivesse achado o fujão e ficamos muito contentes. Mas o tempo foi

passandoenadadeNarizinhovoltar. TiaNastácia e eudemosumavoltapelopasto,chegamosatéàcasadotioBarnabéenada.Isso,àstrêshorasdatarde. Já sãoduasdamadrugadaenão tivemosaindaomenor indíciodeondepossaestaracoitadinhadaminhaqueridaneta...

DizendoistoDonaBentarompeudenovoemchoro,acompanhadadetiaNastácia.

Pedrinhocontouondeestiverae,depoisde consultaremsegredoosaci, consolouDonaBenta e apreta, dizendoque sabiamondeNarizinhoestavaeiambuscá-la.

—Éverdadeissoouvocêestáfantasiandoparameconsolar?Pedrinho,quenuncamentia, sentiu tantodódaspobresvelhasque

pela primeira vez na vida resolveu enganá-las comumamentira de bomtamanho.Deuumarisadaedisse:

— Não se assuste, vovó! Narizinho e eu resolvemos pregar umagrandepeçanasenhora,masessapeçaéumsegredoquenãopossocontar.Sóamanhã,aoclareardodia—edeuumagranderisada.

DonaBentasossegouumpoucoeralhouseveramentecomomenino,fazendoverotranstornoqueaquelaestranha"surpresa"lhecausara.Disseque sofria do coração e que se coisas assim se repetissem o certo era irparaacovaantesdotempo.

Pedrinhosossegou-acomopôdeesaiuparaoterreiro,gritandoqueseacalmasseporquedentrodeumaouduashorasestariadevoltacomamenina.

Lánoterreiro,sócomosacioutravez,voltou-separaeleedisse:—Eagora,amigosaci,queiremosfazer?—Estouarmandoomeuplano—respondeuodiabrete.—Jáfizuma

inspeçãopelacasatodaepeloterreiro.Estounapistadoraptor.—Raptor?—repetiuomeninosemnadacompreender.—Sim.NarizinhofoiraptadapelaCuca.Descobriorastodahorrenda

bruxapertodaporteira.Temosde iràcavernaondemoraaCucaeveroquehá.

—MasseaCucaépoderosacomovocêdiz,quepoderemosfazer?—Não sei. Lá veremos. O que é preciso é não desanimar. Se ela é

poderosa, eu sou astucioso.A astúcia inúmeras vezes vence a força. Façadas tripas coraçãoeacompanhe-me.Omau foi termosdeixadoescaparoporcoquenostrouxe,Precisamosdescobrirnovamontaria.

— Isso é fácil. O meu cavalinho pangaré está no pasto de dentro.Mansocomoé,podemospegá-loecavalgá-loempelo.

—Poisvamospegaropangaré—concordouosaci.Não foi difícil. Logo que o cavalinho reconheceu o dono, veio na

direçãodelenotrote.Pedrinhomontou,comosacinagarupa,elápartiunagalopada.

Pedrinho logo percebeu que qualquer animal montado pelo sacimudavademodos,ficandonãosómaisligeirodoquenuncaefogoso,comoaindacomumsensodedireçãoquepareciasobrenatural.Inúmerasvezestinhacavalgadoopangaréegalopadonele;nunca,porém,oviraassimtãoardenteeveloz.Eracomoseosaci lhecomunicassealgumaforçamágica,que não é própria dos cavalos, Tal foi a velocidade desenvolvida quePedrinhonãopôdedeixardedizer:

—MaispareceofamosoPégasodoquemeuvelhoe lerdopangaré!Estouestranhandoisto...

—Não estranhe coisa nenhuma— aconselhou o saci.— Tudo sãomistérios que só eu sei e que não vale a pena explicar agora. Não falecomigo,nãomeatrapalhe.Estoufazendoumgrandeesforçodecabeçaparaaperfeiçoar o meu plano de não só lograr a Cuca malvada como aindacastigá-lacomomerece.

— Conte ao menos um pedacinho dessa grande idéia, para meconsolar.

—ÉumaidéiaqueaprendicomDonaBenta—respondeuosaci.—Comvovó?—inquiriuomeninoadmirado.—Comoisso,sevovó

jamaistevecoragemdefalarcomvocê?—Sim,nuncafaloucomigo,masmuitacoisadoqueeladisse,euouvi

de dentro da garrafa. Meus ouvidos são apuradíssimos. Lembro-me dahistóriadumpingod’águaqueelacontoucertanoite...

— História dum pingo d’água? — repetiu o menino, cada vezentendendomenos.—Nãopossoperceberaondevocêquerchegar.

— Quero chegar à caverna da Cuca! — respondeu o sacibrincalhonamente.

Vendo que ele se recusava a contar o plano que tinha na cabeça, omenino calou-se. Esporeado pelo saci, o pangaré aumentou aindamais avelocidadedogalope,demodoqueantesdemeiahorajáseachavamnumaregiãointeiramentenovaparaomenino.

—Ondeestareieu?—iaelepensando,semcoragemdeinterrogarosaci,detalmodooviaconcentradonascombinaçõesdoseucélebreplano.

CapítuloXXVIII

ACUCA

Súbitoosaciexclamou:—Élá!—Éláoquê?—perguntouPedrinho.—A caverna da Cuca, naquelamontanha de pedras nuas. Conheço

bemestessítios.Pedrinho olhou na direção apontada e só viu grandes massas de

sombras.Apesardesernoitede lua,havianévoasnocéu,demodoqueaclaridadenãodavaparapercebermaisqueovultodamontanhaestendidaàsuafrente.Quearegiãoerapedregosa,issoPedrinhologopercebeu,taisfaíscastiravadochãooseucavalinhopangaré.Entretanto,nãotropeçava,oque seria naturalíssimo num animal acostumado a só trotar por bonscaminhosoucamposlivresdepedras.

— Estou estranhando este cavalo! — Não pôde deixar de dizer omenino.—Positivamentenãoéomesmo.Nemsequertropeça...

—Equelhedeiacomersetefolhasdeumaplantaquesóeuseiparaqueserve.

—Logovi.Seriaótimoquemeensinasseosegredodessaplanta.ComelaagentepoderiaatétransformarumburromortoemBucéfalo...

O saci, apesar das suas habilidades e espertezas de demoninho,ignorava a história dos cavalos célebres, e pois ficou na mesma com acitaçãodotalBucéfalo.

—Quebichoéesse?—perguntou.—Oh, era o cavalo de Alexandre, o Grande, um cavalo bravíssimo,

que nenhum homem, fora Alexandre, jamais conseguiu domar. Um dia,quando estivermos sossegados, hei de contar a história dos grandescavalos.

—Sim—interrompeuosaci—masagorafecheobico.EstamosnosdomíniosdaCuca,ondequalquer imprudêncianospodecustarcaro.Essa

horrendabruxatemouvidosaindamaisapuradosqueosmeus.Pedrinhocalou-se.Nistoaluasaiudetrásdasnuvenseelepôdevermelhorosítioonde

se achava. Bem à frente erguia-se amuralha dumamontanha de pedrasnegras, comarvoredoretorcidobrotandodasbrechas.Eraumapaisagemdiabólica,quepunhanosnervosdascriaturasosmaisesquisitosarrepios.LugarbommesmoparamoradademonstroscomoaCuca...

—Éali!—murmuroubaixinhoosaci,apontandoparaumaaberturanegra.—Éaliaentradadacavernadagrandemalvada.

—Comosabe?—perguntouPedrinhotolamente.—Quepergunta!—respondeuosacicomironia.—Seiporquesei.

Tinha graça queum saci não soubesse ondemora a Cuca...Mas, silêncio!Temosqueentrarcommilcautelas,dearrasto,comose fôssemoscobras.Não!Não!Omelhorénosdisfarçarmosemfolhagem.

—Comoisso?—Nadadeperguntas.Façaoqueeufizer,semdiscutir—ordenouo

diabrete,afastando-sedaliparaarrancarbraçadasdefolhasdaárvoremaispróxima.

Pedrinho fez omesmo. Em seguida o saci lascou damesma árvoreumasembiras,comasquaisamarrouafolhagememredordoseucorpinho.Omeninofezomesmo.

Ficaramtalqualdoisarbustosmóveise,assimdisfarçados,dirigiram-separaacavernadohorrendomonstro,péantepé,tãodevagarzinhoquelevaramvinteminutosparacaminharunspoucosmetros.

Súbito,aodobraremumacurva,viramlánumcantoarainha.Estavasentada diante duma fogueira, de modo que a claridade das chamaspermitiaqueas"folhagens"lhevissemacarantonhaemtodaasuahorrívelfeiúra.Quebicha!Tinhacaradejacaréegarrasnosdedoscomoosgaviões,Quantoàidade,deviaandarparamaisdetrêsmilanos.EravelhacomooTempo.

—Estamosdesorte—disseosaciaoouvidodomenino.—ACucasódorme uma noite cada sete anos e chegamos justamente numa dessasnoites.

— Como sabe? — indagou Pedrinho, cuja curiosidade não tinhalimites.

O saci danou e ameaçou-o, se continuasse com tais perguntas, dedeixá-loalisozinhoparaserdevoradopelomonstro.Emseguidaqueimouna brasa do pito umamisteriosa folha, que havia apanhado pouco antessemqueomeninoopercebesse.

—Esta fumaçavai fazerqueo sonoda rainha sejamaispesadodoque todas as pedras desta gruta. Depois de estar completamenteadormecida,temosdeamarrá-lamuitíssimobemamarrada,.

Logo que a fumaça alcançou o focinho da Cuca, esta, que já estavadandomostrasdesono,pendeuacabeçadeladoeroncou.

—Jácaiunosono—disseosaci.—Podemosagoratirarnossaroupade folhasesairembuscadecipós.Conheçoumcipóquevaleporquantacordaexiste—atéparececipóprópriodeamarrarcucas...

Despiram-sedasfolhasesaíramdacavernamuitosatisfeitos,porqueascoisasestavamcorrendoàsmilmaravilhas.

CapítuloXXIV

ONOVELODECIPÓS

Cortado o cipó, trouxeram-no em dois grandes rolos, e sem receio

nenhum,poisosroncosdaCucamostravamqueelaestavaadormircomoquemnãodormiaháseteanoscomeçaramaamarrá-ladospésàcabeça.

MaisumaveztevePedrinhodereconhecercomoerahábilearteirooseuamigosaci.Amarrarparececoisafácil,masnãoé.SePedrinhohouvesseamarrado a Cuca, o mais certo era que com dois safanões a bruxa selivrassedacipoadanumminuto.Mascomosacideu-secoisadiferente.Odiabinho parecia nunca ter feito outra coisa na vida. Amarrou-a com amesmaciênciacomqueasaranhasamarramasmoscasnassuasteias,semdeixarumpontofraco.Osegredo,explicouele,eraestudaraamarraçãodemodo que ao despertar a Cuca não pudesse fazer o menor movimento.Porque se a criatura amarrada puder fazer um pequenomovimento, pormenor que seja, afrouxará um ponto no amarrilho; e depois afrouxaráoutroponto—eassimiráatélibertar-sedumavez.

Terminada a obra, em vez de Cuca viu-se no chão um verdadeirocarreteldecipó.

—Sim,senhor!—exclamouPedrinho.—Aprendimaishojedoqueem toda aminhavida. Estadiabapode ter a forçade cemelefantes,masduvidoqueescapeda"nossa"amarração.

Osaci sorriudaquele "nossa",mascalou-se.Limitou-seaenxugarosuordatesta.

—Temosagoradeacordá-la—dissedepois.—Deixeessepontocomigo—pediuomenino.—Comumbompau

deguatambu,euacordo-abemacordada.—Nadadepaus!VocênãoconheceaCuca.Ummonstrodetrêsmil

anos, como ela, havia de rir-se das pauladas dummenino como você. Àforça, é impossível lutar com ela. Temos de usar da astúcia. A arma aempregarvaiseropingod’água.

—Lávemopingod’águaoutravez!—exclamouomenino.—Atéparece caçoada, querer com um pobre pingo d’água dominar uma bruxadestas...

—Poisfiquesabendoqueéoúnicomeio.Pedrinhonãoentendeu,ficandodebocaabertaaverasmanobrasdo

saci. A engenhosa criaturinha trepou que nem macaco pelas estalactitesgotejantesdagrutaatéalcançaraqueficavabemaprumosobreacabeçadaCuca.Elá,então,encaminhouumfiozinhod’águademodoquegotejasselentamentebemnomeiodatestadaCuca.

—Basta isso—disse ele.—No começoelanemsente;mas comacontinuaçãoadorvaificandotamanhaquehádedar-seporvencida.

—Sim,senhor!—murmurouomenino.—Estáaíumainvençãoquenunca imaginei,masagorame lembroquevovónos contouumahistóriaassim...

—Poisé—disseosaci.—Ambosouvimosessahistória;massóeuprestei atenção e já estou tirando partido do que aprendi. Sou dez vezesmaisespertoquevocê,Pedrinho.Nãoacha?

Omeninonãoteveremédiosenãoacharqueeramesmo.Ospingoscomeçaramacair.Oscemprimeirosnenhuma impressão

fizeramna bruxa, cujo sono parecia dosmais gostosos.Daí por diante jáessesononãopareceumais tãocalmo.Começoua fazercaretas, comoseestivessesonhandoalgumsonhohorrível.Porfimabriuumolhoedepoisooutro.

Porváriosminutospermaneceuapatetadavendodiantedesiaquelasduas criaturas de mão na cintura, a olharem para ela sem dizer coisanenhuma.Depoisasuainteligênciafoiacordandonotouopingoalhecairna testa. Quis mudar de posição. Não pôde. Só nesse momento viu queestavaamarradinhacomosefosseumcarretelcondenadaàmaisabsolutaimobilidade.

CapítuloXXV

OPINGOD’ÁGUA

AcóleradaCucafoimedonha.Deuumurrodeouvir-seadezléguas

dali, tamanho e tão horrendo que por um triz Pedrinho não disparou nacorrida.Eoutrourro,eoutro,emaisdecem.

—Berre,demônio!—gritouosaci.—Berreatérebentar.Pingod’águanãotemouvidos,nemtempressa.Essequeboteipingandonessahorrendacaraçavaidivertir-seempingarnomesmolugarzinhoporcemanos,seforpreciso.SeiqueCucaébichoduro,masqueroversepodecomumpingod’águaquenãotempressanenhuma,nemtemoutracoisaafazernavidasenãopingar,pingar,pingar...

Adorqueaquedadeumpingoatrásdooutrojáestavacausandonosmiolosdabruxacomeçavaacrescerpontoporponto.Cadanovopingoeraumpontomaisdedor.Naqueleandarelanãosuportariaosuplícionemummês,quantomaisoscemanoscomqueaameaçaraosaci.

—Paremcomessepingod’água!—berrouabruxa.Osacideuumarisadadeescárnio.— Parar? Tinha graça! Se estamos apenas começando, como quer

vocêqueparemos?Jáarrumeitudo,demodoqueopingopinguedurantecemanos,esenãoforsuficiente,arranjareiascoisasdemodoquedepoisdesses cem anos pingue outros cem. Duzentos anos de pingo na testaparece-meumaboaconta,nãoacha?

ACucaaindaurroucomocemmilonçasferidas,eespumoudecólera,eameaçoucéuseterras.Porfimviuqueestavafazendopapeldeboba,poishaviaencontradoafinalumadversáriomaisinteligentedoqueela;edisse:

— Parem com este pingo que já estáme pondo louca! Tenham dódumapobrevelha...

— Pobre velha! A coitadinha... Quem não a conhece que a compre,bruxadumafiga!SópararemoscomaáguasevocênoscontaroquefezdeNarizinho.

— Hum!— exclamou a bruxa, percebendo afinal a causa de tudoaquilo.—Jásei...

—Poissesabe,desembuche.Docontrário,asuasinaestáescrita;hádemorrer nomaior suplício que existe. E nada de tentar enganar-nos. Émelhorirdizendoondeestáamenina,omaisdepressapossível.

—Fareioquequiserem,masprimeirohãodedesviardeminhatestaestemalditopingoquemeestádeixandolouca.

—Assimseráfeito—disseosacitrepandodenovoàsestalactitesedesviandoofiozinhod’águaparaumlado.

A Cuca deu um suspiro de alívio. Tomou fôlego, descansou umbocado;depoisdisse:

—Encanteiessameninaquevocêsprocuram,massópodereirompero encanto se vocês me trouxerem um fio de cabelo da Iara. Sem isso éimpossível.

—Nãosejaessaadúvida—respondeuosaci.Iremosbuscarofiodecabeloda Iara.As, seaovoltarmos,vocênãoquebraroencanto, juroquedeixareiopingopingarnessatestahorrenda,nãocemanos,mascemmilanos,estáouvindo?

E, dizendo isto, tomou Pedrinho pela mão e retirou-se com ele dacaverna.

CapítuloXXVI

AIARA

—VamosàcachoeiraondemoraaIara—disse.—Essarainhadas

águascostumaaparecersobreaspedrasnasnoitesdelua.Emuitopossívelquepossamossurpreendê-laapentearosseuslindoscabelosverdescomopentedeouroqueusa.

—Dizemqueécriaturamuitoperigosa—murmurouPedrinho.— Perigosíssima— declarou o saci.— Todo o cuidado é pouco. A

belezadaIaradóitantonavistadoshomensqueoscegaeospuxaparaofundo d’água. A Iara tem amesmabeleza venenosa das sereias. Você vaifazertudodireitinhocomoeumandar.Docontrário,eraumavezonetodeDonaBenta!...

Pedrinhoprometeuobedecer-lhecegamente.Andaram, andaram, andaram. Por fim chegaram a uma grande

cachoeiracujoruídojávinhamouvindodelonge.—É ali—disse o perneta apontando.—É ali que ela costumavir

pentear-seao luar.Masvocênãopodevê-la.Temde ficarbemquietinho,escondidoaquiatrásdestapedraesemlicençadepôrosolhosnaIara.Senão fizer assim, há de arrepender-se amargamente.Omenos que poderáaconteceréficarcego.

Pedrinhoprometeu,edemedodenãocumpriroprometidofoilogotapandoosolhoscomasmãos.

Osacipartiu,saltandodepedraempedra,paralogodesaparecerporentreasmoitasdesamambaiasebegôniassilvestres.

Vendo-sesó,Pedrinhoarrependeu-sedehaverprometidoconservar-sedeolhosfechados.JátinhavistooLobisomem,oCaipora,oCurupira,aCuca.PorquenãohaviadeveraIaratambém?Oquediziamdopoderfataldos seus encantos certamente que era exagero. Alémdisso, poderia usarum recurso: espiar com um olho só. O gosto de contar a toda gente quetinhavistoafamosaIaravaliabemumolho.

Assimpensando,enãopodendopormais temporesistirà tentação,fez como o saci: foi pulando de pedra em pedra, seguindo o mesmocaminhoporeleseguido.

Súbito,estacou,comofulminadopeloraio.Aogalgarumapedramaisaltadoque as outras, viu, a cinqüentametrosdedistância, umaninfadedeslumbrante beleza, em repouso numa pedra verde de limo, a pentearcomumpentedeourooslongoscabelosverdescordomar.Mirava-senoespelho das águas, que naquele ponto formava uma bacia de superfícieparada.Em tornodela centenasdevaga-lumesdescreviamcírculosnoareramacoroavivada rainhadaságuas. Jóiabelaassim,pensouPedrinho,nenhuma rainha da terra jamais possuiu. A tonteira que a vista de Iaracausanosmortais tomoucontadele.Esqueceuatédo seuplanodeolharcom um olhe só. Olhava com os dois, arregaladíssimos, e cem olhos quetivesse,comtodososcemolharia.

Enquanto isso, ia o saci se aproximando da mãe-d'água,cautelosamente, com infinitos de astúcia para que ela nada percebesse.Quando chegou a poucos metros de distância, deu um pulo de gato enhoque!furtou-lheumfiodecabelo.

O susto da Iara foi grande. Desferiu um grito e precipitou-se naságuas,desaparecendo.

Osacinãoesperoupormais.Comespantosaagilidadedemacaco,aospinotes, saltando as pedras de duas em duas, de três em três, nummomentoseachounopontoondePedrinho,aindanodeslumbramentodabeleza,jaziadeolhosarregalados,imóvel,feitoumaestátua.

—Louco!—exclamouo saci lançando-seaele esfregando-lhenosolhosumpunhadodefolhacolhidasnomomento.—Nãofosseoacasoterpostoaquiaomeualcanceestaplantamaravilhosaevocêestariaperdidopara sempre. Louco, dez vezes louco, louquíssimo, que você é, Pedrinho!Porquemedesobedeceu?

— Não pude resistir — respondeu o menino logo que a fala lhevoltou. — Era tão linda, tão linda, tão linda, que me considerei feliz deperder até os dois olhos em troca do encantamento de contemplá-la porunssegundos.

— Pois saiba que cometeu uma grande falta. Não devia pensarunicamenteemsi,mastambémnapobreDonaBenta,queétãoboa,enasua mãe e em Narizinho. Eu, apesar de um simples saci, tenho melhorcabeçadoquevocê,peloqueestouvendo...

Aquelaspalavrascalaramnomenino,quenadateveadizer,achandoquerealmenteosacitinhatodarazão.

—Bem—continuouoduendezinho—agoraqueoperigojápassou,trataremosdevoltaràcavernadaCuca.Edepressa,antesqueamanheça.Lembre-se que prometemos a Dona Benta estar no sítio com a meninasumidalogoaoromperdamanhã.

CapítuloXXVII

NACAVERNADACUCA

Voltando os dois na maior pressa para os domínios da Cuca,

encontraram-na com um estranho ar de riso na horrenda boca, a falarsozinha, comoseestivessemuito satisfeitadavida.Assim,porém,queosviu de novo por lá, a bruxa estremeceu e o seu sorriso transformou-senumacaretadecóleraedesespero.

— Conseguiram voltar? — exclamou traindo os seus mauspensamentos.

—Estáclaroquesim!—respondeuosaci.—EtrouxeramofiodecabelodaIara?— Está claro que sim! — repetiu o saci. — Ei-lo aqui, disse,

apresentandoàhorrendamegeraoverdefiodecabelodamãe-d'água.A Cuca estorceu-se toda dentro do novelo de cipós num supremo

arranco para libertar-se daquela prisão. Nada conseguindo, pôs-se avociferareasoltarpelahorrívelbocaumaespumavenenosa.

Aquela história da Iara e do fio de cabelo tinha sido apenas umembustedequelançaramãoparaperderosaciemenino,nacertezadequenenhum deles resistiria aos encantos da Iara. Mas vendo que se tinhaenganado, debatia-se nomaior acesso de cólera e desespero, sentindo-secompletamentevencida.Eporquem!Porummeninodenoveanosemaisumsacizinho...

Entretanto,pérfidacomoera,tentouaindausardaastúcia.Acalmou-seedisse,numtommuitoamável:

—Muitobem.MasessefiodecabelodaIaranãobastapararomperoencantodamenina.PrecisoaindadeumfiodebarbadoCaipora.

— Perfeitamente, Senhora Cuca. Ali em cima daquelas estalactitesestá o fio de barba do Caipora de que você precisa — disse o saci,apontandoparaopingod’água.—Voujábuscá-lo...

Vendopelafirmezadaspalavrasdosaciqueerainútiltentarenganá-losegundavez,aCucadeuumprofundoaieconfessou-sevencida.

—Meusparabéns.VocêsdescobriramaúnicaarmanomundocapazdevencerumaCuca—essemiserávelpingod’água...Fareicomoquerem.Desencantarei amenina. Voltem ao sítio, procurem perto do pote d’águaumaflorazulqueládeixei,arranquem-lheaspétalaselancem-nasaoventologoao romperdamanhã.Narizinho,quedeixei transformadaempedra,reapareceráimediatamente.

— E se isso for um embuste como da primeira vez?— perguntouPedrinho.

—Nãoé,reconheçoquefuivencidaemteimar.Voltemaosítio,façamo que eu disse e depois venham desamarrar-me. Juro que jamaisperseguireiqualquerpessoaládosítio.

CapítuloXXVIII

DESENCANTAMENTO

A madrugada já vinha rompendo quando os dois aventureiros

chegaram de novo ao sítio. Dona Benta e tia Nastácia, estavam aindaacordadas,porémmaiscalmasdoquedaprimeiravez.Assimqueosviramentrar,exclamaramambasaomesmotempo:

—TrouxeramNarizinho?—Sim,vovó—respondeuPedrinhosemteracertezadequeelase

desencantariaounão.—Esperemaisumminutoquevaiverdenovosuaneta,forteecoradacomosempre.

Falouecorreuaverseatrásdopoteexistiaalgumaflorazul.Láestavaela,atalflorazul—esquisitíssimaediferentedetodasas

flores conhecidas. Omenino tomou-a, desfolhou-a e lançou as pétalas aovento,comoaCucamandara.

Malacaboudefazerisso,umfatomaravilhososedeu.Umapedradoterreiro, que ninguém se lembrava de ter visto ali, principiou a inchar, acrescer e a tomar forma de gente. Segundos depois essa forma de gentecomeçouaapresentarostraçosdeNarizinho,que,porfim,reapareceutalqualera,forteecoradacomoPedrinhooprometeraaDonaBenta.

Foi uma alegria. As duas velhas atiraram-se à menina e choraramquantaslágrimasaindatinhamdentrodesi—masdestavezdomaispurocontentamento.

— Então, minha filha, que foi que aconteceu? —perguntou DonaBenta.

Narizinho, ainda tonta, de pouco se recordava. Minutos após,entretanto,suasidéiasprincipiaramaaclarar-seepôdecontaroquehaviasucedido.

— Estoume lembrando,— disse levando amão pela testa.— Foiassim.Eu estava comaEmíliadebaixoda jabuticabeira.De repente, uma

velha,muitovelhaecoroca,aproximou-sedemimcomumsorrisomuitofeionacara.

—"Queéqueasenhoradeseja?"—perguntei-lhenaturalmente.—"Desejo apenasoferecer àmeninaesta linda flor"— respondeu

ela, apresentando-me uma flor azul muito esquisita.—"Cheire; veja quemaravilhosoperfumetem."

— Eu, sem desconfiar de coisa nenhuma, cheirei a tal flor — eimediatamentemeucorpoprincipiouaendurecer.Perdiafala;vireipedra.Denadamaismelembrosenãoque,derepente,fuirevivendooutravezeaquiestou...

Só entãoDonaBenta compreendeu quePedrinho a tinha enganadoparaevitarqueelamorressededor—eperdoou-lheaquelaboamentira.Depois fez-lhe grandes elogios, quando soubedomuito que ele tivera delutarparaqueahorrendaCucarevivesseamenina.

—Vejo,Pedrinho,quevocêéumverdadeiroherói.Essaproezaqueacaba de realizar até merece aparecer num livro como uma das maisnotáveisqueummeninodasuaidadeaindapraticou.

— Espere, vovó— disse Pedrinho commodéstia.— Se a senhoraemprega essas palavras para mim, que palavras empregará para o meuamigo saci? Na verdade foi ele quem fez tudo. Sem a sua astúcia econhecimento da vida misteriosa da floresta e dos hábitos da Cuca, eusozinhonadateriaconseguido.Absolutamentenada.Agradeçaaosaci,quenãofazsenãodaroseuaoseudono,comodiztiaNastácia.

Todossevoltaramparaosaci.Mas...—Queédosaci?—exclamaramaumtempo.Procuraram-no por toda parte, inutilmente. O heróico duendezinho

dumapernasóhaviadesaparecido.— Ingrato! — exclamou Narizinho com tristeza. — Foi-se embora

semnemaomenosdespedir-sedemim...De noite, porém, ao deitar-se, verificou que havia sido injusta. Em

cimadotravesseiroencontrouumraminhodemiosótisquenãopodiatersidoposto lá senãopelo saci.Miosótis em inglês é forguet-me-not—quesignifica“não-te-esqueças-de-mim”.

—Quealmapoéticaeletem!—murmurouamenina,comovida.

FIM