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Dona Benta resolve contar ao Pedrinho e à Narizinho, ao seu modo, sobre as invenções: como surgiram os aviões, o telefone, a batedeira de bolo e muitas outras. Ela explica que as invenções são apenas meios de aumentar o poder de nosso corpo.

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Dona Benta costumava receber livros novos, de ciências, de arte, deliteratura. Era o tipo da velhinha novidadeira. Bem dizia o compadreTeodorico:"DonaBentaparecevelhamasnãoé,temoespíritomaismoçoqueodejovensdevinteanos".

Assim foi que naquele bolorento mês de fevereiro, em que eraimpossívelbotaronarizforadecasa,detantoquechovia,resolveucontaraosmeninosumdosúltimoslivroschegados.

—TenhoaquiumlivrodeHendrikvanLoon—disseela—,umsábioamericano, autorde coisasmuito interessantes.Ele saidos caminhosporonde todo mundo anda e fala das ciências dum modo que tudo viraromance, de tão atrativo. Já li para vocês a geografia que ele escreveu eagora vou ler este último livro — História das invenções do homem, ofazedordemilagres.

Era um livro grosso, de capa preta, cheio de desenhos feitos pelopróprioautor.Desenhosnãomuitobons,masqueserviamparaacentuarsuasidéias.

—Equandocomeça?—quissaberNarizinho.—Hojemesmo,noserão.Podemoscomeçarlogodepoisdorádio.Jáhavialánosítioumrádiodeondascurtas,quepegavaasirradiações

denumerosasestaçõesestrangeiras,EstadosUnidos,Inglaterra,Alemanha,Rússia,e"depoisdorádio"queriadizerdepoisdassetehoras,porquedasseisàssetenuncadeixavamdeapanhara irradiaçãodePittsburgh,queéumadasestaçõesestrangeirasdemaiorforça.

Terminada naquele dia a hora de Pittsburgh, todos se reuniram emredordeDonaBenta,aindacomosouvidoscheiosdasmúsicasefalaçõesamericanas.

—Comece,vovó!—dissePedrinho.EDonaBentacomeçou.—Estelivronãoéparacrianças—disseela;—masseeulerdomeu

modo, vocês entenderão tudo. Não tenham receio deme interromperemcom perguntas, sempre que houver qualquer coisa obscura. Aqui está oprefácio...

—Queéprefácio?—perguntouEmília.— São palavras explicativas que certos autores põem no começo do

livropara esclarecer os leitores sobre as suas intenções.Oprefáciopodeserescritopelopróprioautorouporoutrapessoaqualquer.NesteprefáciooSenhorvanLoondizqueantigamentetudoeramuitosimples...

—Tudooquê?—interrompeuPedrinho.

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— A explicação das coisas do mundo. A Terra formava o centro douniverso. O céu era uma abóbada de cristal azul onde à noite os anjosabriamburaquinhosparaespiar.Essesburaquinhosformavamasestrelas.Tudomuitosimples.

Mas depois as coisas se complicaram. Um sábio da Polônia, de nomeNicolauCopérnico,publicouumlivronoqualprovavaqueaTerranãoerafixa,poisgiravaemredordoSol,easestrelasnãoerambrinquedinhosdosanjos, sim sóis imensos, em redor dos quais giravam milhões de terrascomoanossa.

Issoveiocausarumagrandetrapalhadanasidéiasassentes, isto é, nasidéias que estavam na cabeça de todo mundo — e por um triz nãoqueimaramvivoaessehomem.Afinala sua idéiavenceuehojeninguémpensadeoutramaneira.

Aastronomia,queéa ciênciaqueestudaosastros, tomouumgrandedesenvolvimento.Osastrônomos foramdescobrindocoisasemaiscoisas,chegando à perfeição demedir a distância dum astro a outro, e pesar amassadessesastros.Asdistânciasentreosastroseramtãograndesqueasnossas medidas comuns se tornaram insuficientes. Foi preciso criarmedidasnovas—medidasastronômicas.

—Porquê?—perguntouNarizinho.—Comoquilômetroagentepodemedirqualquerdistância.Ésóirbotandozerosemaiszeros.

—Parece,minhafilha.Asdistânciasentreosastrossãotamanhasqueparamedi-lascomquilômetrosserianecessáriousarcarroçadasdezeros,demaneira que não haveria papel que chegasse. E então os astrônomosinventaram o "metro astronômico", ou a "unidade astronômica", que écomoelesdizem.Essaunidade,essemetro,tinha92900000milhas.

—Quecolosso,vovó!Euachoquefizeramummetrograndedemais...—Poisestámuitoenganada,minhafilha.AsdistânciasentreaTerrae

as novas estrelas, que com os modernos telescópios foram sendodescobertas, acabaram deixando essa medida pequena. E então oastrônomoMichelsonpropôsoutramedida:oano-luz.

—Quehistóriaéessa?—Michelsonverificouquealuzcaminhacomavelocidadede299820

quilômetros por segundo. Multiplicou esse número por 60 para obter avelocidadeda luznumminuto,ouumminuto-luz.Depoismultiplicou issopor60paraobteravelocidadedaluznumahora,ouumahora-luz.Depoismultiplicou issopor24paraobterumdia-luz, e finalmentemultiplicouodia-luzpor365paraobterotalano-luz.

—Equeobteve?

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—Obteve9455123520000quilômetros.Querdizerquenumanoumraiodeluzcaminhaadistânciade9trilhões,455bilhões,123milhões,520milquilômetros.

—Puxa!—exclamouPedrinho.—Atédátonturanagente...—Poiséisso.Osastrônomostiveramdecriaressemonstruosometro

paramedir a distância entre os astros; e, por imenso que seja talmetro,mesmo assim eles têm que recorrer aos zeros para amedição de certasdistâncias. Jáseconhecemastrosàdistânciade30000anos-luzdenossaTerra,imaginem!

-—Cáspite!— Pois bem, isto que os astrônomos fizeram para os astros, outros

homens de ciência fizeram para o contrário dos astros, isto é, para asmoléculaseátomos,quesãocoisinhasinfinitamentepequenas.Chegaramamedir átomos que têm o tamanhinho de uma trilionésima parte demilímetro.

—Serápossível?Ummilímetrojáéumaiscaqueagentemalpercebe...— Imagine agora o que é um milímetro dividido em um trilhão de

partes iguais! Isto serve paramostrar até onde vai o homem com a suaciência.MedeadistânciaentreaTerraeumastroqueestáa30000anos-luzdaqui;emedeumapartículadematériaqueteml/l000000000000demilímetro.Ora,nestelivrooSenhorvanLoontratademostrarcomoessebichinho homem, que já foi peludo e andava de quatro, chegou adesenvolver seucérebroapontodemediradistânciaentreosastroseacalcularotamanhodosátomos.

—Comofoiisso?— Inventando coisas. O homem é um grande inventor de coisas, e a

históriadohomemnaTerranãopassadahistóriadassuasinvençõescomtodasasconseqüênciasqueelastrouxeramparaavidahumana.ÉmaisoumenosistooqueVanLoondiznesteprefácio.Vamosagoraverocapítulonúmero1.

—Depoisdapipoca,vovó!—gritouNarizinhofarejandooar.De fato: da cozinha vinha para a sala o cheiro das pipocas que Tia

Nastáciaestavarebentando.Pipocasànoite foicoisaquenunca faltounosítiodeDonaBenta.

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I–OBICHOINVENTOR

Depoisquenapeneiradepipocassóficaramospiruás,istoé,osgrãos

demilhoquenãorebentam,DonaBentacontinuou:—VanLooncomeçaestecapítuloassim:"Umbelodiaumgrãozinhode

pópesandoapenas6000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000de toneladasdestacou-sedo Solparacomeçarsuavidaprópriapeloespaço".

—NossaSenhora!—exclamouamenina.—NemQuindimécapazdeleressenúmero.

— E esse fato — continuou Dona Benta — não causou nenhumaperturbaçãono céu. Era tão pequenininho o tal grãode pódestacadodoSol,quenenhumadasoutrasestrelasdeupelacoisa.Énessemicroscópicogrãodepoeiraquevivemos,meusfilhos.Somosumapoeirinhavivasobreesse grãozinho de poeira astronômica. . . E os outros astros são tambémgrãos de poeira, com certeza habitados por seres absolutamenteincompreensíveis para nós. Pois bem, no nosso grãozinho de poeiraformou-se a vida, surgiram os animais, que são seres com vida, e peloespaço demilhões emilhões deanos os animais se foram revezando no

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domíniodaTerra,oravencendoumaespécie,oravencendooutra,atéqueapareceuohomem,oatualvencedor.

—Atualmentesó,vovó?Nãopoderáficarovencedorsempre?— Impossível responder,minha filha. Assim como no animal homem

surgiuessainteligênciaquelhedeuodomíniodaTerra,podesurgiroutraformade inteligência,maisapurada,emoutroqualquerser,numaplanta,numpeixe,numaformiga,nummicróbio—eohomemterádeentregarocetrodereidosanimais,desaparecendodasuperfíciedaTerracomotantosoutrosreisjádesapareceram.

—MascomoohomemtomoucontadaTerra?—ÉoqueVanLoonprocuraexplicarnessecapítulo.Logoqueacrosta

seresfriouapontodepermitiravida,aTerrasefoipovoandorapidamentedumainfinidadedeplantas,deanimaiscascudosedeseresqueviviamnoseio das águas. Se eu fosse Van Loon contava a coisa de outra maneira,porqueestouconvencidadequeaplantaétudo,equetodososanimaisnãopassamdeparasitas,oupragasdaplanta.

—ÁsenhorajádisseissonaGeografia—lembrouPedrinho.—Poisé.Veioaplanta,numainfinidadedeespéciesvegetaisdetodos

os tamanhos e tipos; e a abundância de vegetais trouxe consigo aabundânciadeanimais,istoé,deparasitasdaplanta.

Desses animais, muitos nunca deixaram as águas e foram osantepassados dos peixes que existem hoje— esses que o homem pesca,salgaeenlata,paraempregá-losnaalimentação.

Outros, os antepassados dos lagartos e das cobras que existem hoje,ocuparam tais extensões da Terra (como sabemos pelos fósseisencontrados) que com certeza foram os reis da criação em seu tempo.Algum lagartãode tamanhodescomunalhaviade rir-sedosoutros seres,comonóshojenosrimosdetodos,ehaviadechamar-seasimesmoreidosanimais.IssoporquedurantemilhõesdeanosoclimadaTerra,aschuvastorrenciais e a excessiva umidade do ar favoreciam o desenvolvimentodessetipodevida.Nóssomosumtipodevida.Aplantaéumtipodevida.Omicróbioéumtipodevida.Nessaépocaaquemeestoureferindooclimafavorecia o tipo de vida representado pelos sâurios, animais que tantoviviamnaterracomonaágua.

—Egrandes,não?—Monstruosos,minhafilha.Atingiamproporçõesquenosenchemde

espanto. Dentro da água deviam dar idéia de embarcações, de iates ousubmarinosemmovimento.Surgeagoraumproblema.Comofoiqueessesmonstros,queeramosdonosdaTerra, desaparecerampor completo? Só

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temos notícias de sua existência pelos esqueletos encontrados nasescavações, ou conservados dentro dos gelos eternos. Como foi quedesapareceram?

Aqui entram em cena as hipóteses. Van Loon opina que as causas dodesaparecimentodeviam ter sido várias, e cita umabastante curiosa.Dizele que esses animais se foramdesenvolvendode talmaneira, crescendotanto,encoscorandotantonoscascõesdedefesa,aumentandodetalformaa força e o tamanho das garras e dos chifres, que acabaram vítimas doexcessodeforça.E faz uma comparação muito curiosa com as modernas potências

militares,ougrandespotências,comosediz.Essespaísesestãosearmandodetalmaneiranaterra,nomarenoar,estãosefortificandocomtamanhonúmero de canhões, tanques,metralhadoras, carabinas, gasesmortíferos,naviosencouraçados,submarinos,aviõesdebombardeio,etc,queacabarãovitimados pelo excesso de armamento, domesmomodo que os grandessáuriosdeoutrora.1

Ficaram tão grandes, esses sáurios, tão pesados em suas armaduras,que acabaram vencidos pelo peso do armamento. A carga tornou-seexcessiva.Perderamamobilidadeeforammorrendodefome,atoladosnoslamaçais quando uma mudança qualquer de clima trouxe escassez devegetação.

— Compreendo — disse Pedrinho. — Se os bois tão lindos que oCoronelTeodoricotemnoPastoGrandeficaremsemaquelefamosocapim-gorduraquecrescelá,levamabreca,anãoserqueocoronelosmudeparaoutropasto.

— Isso mesmo. Se sobrevier uma mudança de clima que mate todoaquele capim, e se os bois estiverem gordos demais a ponto de nãopoderemandar,ouocompadreos tirade láouelesmorremde fome.Ossáuriosdaquele tempoperderamopasto—e comonão tinhamnenhumcompadrequeosacudisse, foramdesaparecendoumporum.Hojevemosos seus esqueletos nosmuseus—e os pobresmuseus ficam tontos paraacomodartamanhascarcaças.Bastaumadelasparaenchertodaumasalaimensa.

Violentas mudanças de clima deviam ser mais freqüentes naquelasépocas do que hoje, porque à medida que a Terra vai envelhecendo vaicriando juízo— hámenosmudanças bruscas,menos terremotos,menoserupçõesvulcânicas.UmdiachegaremosaoestadoemqueestáaLua,umestado parado, caduco, morto, que quase não muda — e será então o

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começodofimdanossaTerra.Pois foi assim que osmilhões de enormes sáurios que dominavam a

Terra desapareceram completamente, isso muito antes que os grandesmamíferoseohomemdessemsinaldesi.

Mas afinal o homem deu sinal de si. Apareceu. Não de súbito, do diaparaanoite,caídodasnuvens.Foiaparecendoaospoucos,gastandonissomilharesdeanos.Apareceujuntamentecomosmacacos,oschimpanzés,osorangotangos, os gorilas. Era um deles. Peludo, andando de quatro,feiíssimo.Dessagrande famíliamacacalumramocomeçouamodificar-senum certo sentido, até virar no que chamamos homem. Outros ramosdesenvolveram-se em sentido diferente e ficaram o que são hoje — ossímios.Outrosdesapareceram.

Andavam de quatro pés. Os do ramo macaco-homem aprenderam aandarsobredoisapenas,eosdoispésquesobravamlentamenteseforamtransformandoemmãos.Foiumenormeprogresso,porqueparacaminharsobreaterraquatropéssãodemais.Doisbastam.Edoisbastando,sobramdois,quevirandomãossetornamdegrandeutilidadeparaoindivíduo.

O primeiro grande passo, o primeiro grande progresso dessa espécieanimalfoiesse—transformardoispésemduasmãos.Tudomaisdecorredaí.Puderammudardehábitos,etantocaminharsobreochãocomosobreas árvores, desse modo adquirindo enormes vantagens sobre os que sóandavam no chão. Viraram acrobatas maravilhosos. Aprenderam a darsaltos dum galho a outro, duma árvore a outra, escapando assim comfacilidadede todos os inimigos quadrúpedes. E naquelaTerra emque ossáurios já tinham sido os dominadores absolutos, os símios entraram adominar.

Masdeu-seoutramudançanasuperfíciedaTerra.Aságuasretraíram-seeasáreasdeterrafirmeaumentaram.Atemperaturatambémdiminuiu,com o ar já menos úmido. As condições, portanto, se tornaram menosfavoráveis para a vida das plantas. Em vez da floresta ser uma coisacontínua, começou a sofrer interrupções (isso em milhares de anos).Interrompia-seaquiparasórecomeçarmuitoláadiante.Surgirammanchasde campo, isto é, de chão revestido de vegetais rasteiros. As florestasficaramcomoilhasdentrodomardevegetaçãorasteira.

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Isso veiomudar a vida dos símios, sobretudo daquele ramo donde ia

sair o homem. Já o futuro homem não podia, como antes, viverexclusivamente sobre as árvores, locomovendo-se por entre as copadas.Quando a floresta parava e começava o campo, ele tinha de refletir, deestudarocaso.

Também as montanhas se ergueram naquele tempo a muito maioraltura por causa do abaixamento das águas, de modo que os nossosantepassados,alémdabarreiradoscampos,tiveramaindaaatrapalhá-losabarreiradasmontanhas.Eentãoaleidasobrevivênciadosmaisaptos,quenuncadeixadeagir,fezvalerasuaforça.

—Queleiéessa,vovó?—Querdizerquenalutapelavida,nalutaentreasespéciesoucontra

ascoisasquenosrodeiam,vencesempreomaisapto,istoé,omaisesperto,o mais jeitoso, o mais preparado para mudar de sistema quando issoconvém.Onossomacaco-homemjáestavacoma inteligênciamaisabertaqueadosoutroseseiaadaptandoàsmudançasverificadasnasuperfíciedaTerra.Venciaasdificuldades.Sobrevivia.Eraomaisapto, comosediz emlinguagem científica, e o mais apto sobrevive sempre, isto é, continua aviverenquantoomenosaptolevaabreca.

Aqueleanimalpeludoquesemostravamaisaptoqueosoutros,quejá

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pensava, que já estudava as situações comparando uma coisa comoutra,que já fazia tudo para sobreviver, que já havia transformado dois pésinúteisemduasmãosutilíssimas,lutouderijocontraosnovosobstáculosque as mudanças na superfície da Terra criaram e adaptou-se a eles.Acabouvencendo.

—Como?— Tornando-se o que precisava ser. Tornando-se INVENTOR. Com os

inventosqueiafazendoaumentavaoseupodersobreanatureza,enãosedeixavavencerpelosobstáculos.ApartirdessaépocaaTerraviuproliferarsobre sua crosta um bicho diferente dos demais. Um animal que criavacoisas.Umanimalqueinventava.Ohomem,enfim.

Quando hoje falamos em invenção imediatamente nos vêm à idéia asúltimas grandes invenções humanas, como o rádio, a televisão, o cinemafalado. Naquele tempo o pobre bicho peludo só inventava coisasextremamentesimples,quedepoisiaaperfeiçoando.Ecomoumainvençãosaideoutra,asgrandesinvençõesdehojenãopassamdodesenvolvimentodasmodestasinvençõezinhasdosnossosantepassadospeludos.

—Maserasóobichohomemqueinventava?—perguntouPedrinho.—Não.Todososanimaispossuemumacertacapacidadeinventiva.As

aves,porexemplo, inventaramosninhos,algunsbastanteengenhosos.Asaranhasinventaramumvariadosistemadeteiasparaapanharinsetos.Asabelhas e as formigas inventaram inúmeras coisas para resolver os seusproblemazinhos de alimentação e morada. Os castores se tornaramverdadeirosarquitetos.Masessesanimais,depoisdeinventaremumacertacoisa boa para eles, paravam. O homem, não. O homem nunca parou deinventar,mais,mais,mais,sempremais,edessemodofoidesenvolvendoasuacapacidadeinventivaatédistanciar-seinfinitamentedetodososoutrosseresquehabitamaTerra.

Osninhos,asteiasdearanha,asconstruçõesdoscastores,porexemplo,são sempre osmesmos. Eramhá doismil anos omesmo que são hoje, edaquiamaisdoismilanosserãoaindaomesmo.Jáohomemestámudandosempre,inventandosempre,aperfeiçoandosempre.Ascasasdehádoismilanos erammuito diversas das de hoje, e as do ano 3000 vão ser muitodiferentesdasdeagora.

Osoutrosanimaissóinventaramparadoisfins:garantiraalimentaçãoe a morada. Conseguindo isso, pararam. Parece que o espírito inventivodelesadormeceu.Ohomem,não.Quantomaisinventa,maisquerinventaremaisinventa.Nuncaparou,nemnuncaparará,Eacoisavaicomtamanhavelocidade,queéimpossívelpreveroqueseremosdaquiaalgunsmilhares

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deanos.—Poisatébonecaspensantes,falanteseasneirentasnósjáinventamos

—murmurouNarizinhocomosolhosnaEmília.DonaBentariu-seeprosseguiu:— A raça humana começou com uma enorme vantagem. A vida dos

homens primitivos sobre as árvores, com a agilidade e alerteza que elesprecisavam ter, deu-lhes uma forte superioridade sobre os seres queviviam no chão. Tinham de usar muito mais o cérebro do que osquadrúpedesdebaixo,quesóusavamaforçabruta.Depois,quandoveioamudançadeque faleieelesseviramdiantedas florestasdiminuídas,dostais campos rasos e das tais barreiras de montanhas, já estavamsuficientemente ágeis para, mesmo fora das florestas, livrar-se dosperseguidores.

Os que tiveram de desistir das florestas para morar unicamente emplaníciesdespidasdevegetaçãoaltaaperfeiçoaram-secomrapideznaartede andar de pé, sem a ajuda das mãos (nas florestas caminhavamsegurando-se com as mãos nos troncos do caminho), tiveram de contarunicamente comospés, jáqueasmãosnão tinhamemqueagarrar-se.Eaquelasmãos,queaprincípiosóserviamparaajudaraospés,começaramater outros empregos. Começaram a servir para segurar coisas, paracarregar coisas, para despedaçar coisas. Foi um grande progresso. Osoutrosanimaisnãopodiamfazerisso.Parasegurar,carregaredespedaçarcoisas só usavam os dentes; o bicho homem segurava, carregava edespedaçava com as mãos, conservando os dentes livres para a defesa.Comovocêsestãovendo,avantagemeraenorme.

Foi esse o grande passo que o bicho homem deu, e que lhe permitiudistanciar-se de todos os outros animais. Dali por diante suas invençõesseriam sempre no sentido de aumentar o poder dos pés e das mãos—como também aumentar o poder dos olhos, dos ouvidos e da boca, eaumentararesistênciadapele.Graçasaessesaumentosohomemganhoueficiência,istoé,ganhouumpodertãograndequeofezoreidaTerra.Hojequemmandaéele—eanãoserqueafaculdadedainvençãosedesenvolvatremendamentenumaformigaounummicróbio,ohomemcontinuaráreienquantoaTerraforaTerra.

—EntãoaTerrapodealgumdiadeixardeseraTerra?—perguntouPedrinho.

—Seas condiçõesde climaque temoshojemudaremdemodoqueavidasetorneimpossível,comonaLua,entãoanossaTerradeixarádeserestemaravilhosocanteirodavidaparatornar-seumacoisamortacomoa

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Lua.Énessesentidoquefalei.Setodosdesaparecermos,seistoaquificarumaaridezsemsinaldevida,comoaLua,entãoaTerradeixarádeseraTerra.Terraéonomequedemosaogrãozinhodepó.Sedesaparecermos,desaparecetambémadenominaçãoquelhedemos,eportantodesapareceaTerra...

Osmeninosficarampensativos.DonaBentacontinuou:— Mas isso não foi tudo. Além da diminuição das florestas e do

elevamento das montanhas, o bicho homem teve de lutar contra outroterrívelfenômenodaquelestempos:oenregela-mentodeenormepartedasuperfície da Terra. Os sábios chamam a isso glaciação. Houve váriosperíodosglaciaisemqueosgelostomaramcontadomundo,sópoupandouma faixa lado a lado do equador. A temperatura baixou muito. Ascondiçõesdevidatornaram-seduríssimas.Osanimaiseasplantastiveramde ir recuandoparaa faixadoequador,únicopontoondeavida lheserapossível.

Ora, todosos animais eplantas sãopornaturezapreguiçosos.Reparenaquelegatinhoali.Seestácomabarrigacheia,oquequerédormir,enãofazernada.Todososseressãoassim.Queremepreferemosossego,apaz,aausência de trabalho. Seja leão, camarão ou pulga, se podem estarcochilando não estão trabalhando. E o bicho homem também devia serassim. Mas aquelas sucessivas calamidades, e por último a invasão dosgelos, tornaram terrivelmente alerta o trabalhador. A necessidade põe alebreacaminho,dizoditado—efoianecessidadequebotounocaminhodo progresso os nossos antepassados peludos. Tiveram de correr, depensardepressa,de inventaruma,duas,dezecemcoisasdiferentesparavencer os obstáculos que as mudanças de clima e outras lhes vinhamcriando.

O gelo equivaleu aomais formidável dos chicotes.Horrorizado comaperspectivademorrerde frio,obichohomemdeutratosàbolaeacaboudespertandooimensopoderquejaziaadormecidoemsuasmãos,emseuspés, em seus olhos e em sua boca, a ponto de tornar-se essa força danaturezaquehojeé.Porque,meusfilhos,osatuaisdescendentesdopobrebicho homem são hoje uma força da natureza. O que ele tem feito éprodigioso.Milagressobremilagres.Milagresquedeixamaperderdevistaoqueele,nasuaingenuidadereligiosa,chamamilagres.

Era hora de dormir. Emília rematou a noitada com uma asneirinha aqueninguémdeu atençãoporque todos estavamdeolhosmuito abertos,pensativos. As palavras de Dona Benta haviam enchido a cabeça dascriançascomumpanoramatremendo—enossonhosdaquelanoitehouve

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até pesadelos. Narizinho sonhou que seus pés também se tinhamtransformado emmãos, o que a deixava atrapalhadíssima. "Como andaragora?"EEmília,queestavaperto,asneirou:"SentadaemcimadeRabicó;comosquatropésdoMarquêseasquatromãosnasais,vocêviraumnovo'tipodevida',capazdetomarcontadomundo—viraumRabicauro"."Quehistória é essa, Emília?", perguntou a menina; e o diabrete respondeu:"Assim como a combinação de homem e cavalo produziu o centauro, acombinaçãodevocêcomRabicóproduziráumRabicauro..."

EssaasneiradaEmíliafoiclassificadacomoaasneiranúmero1.

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II–DAPELEAOARRANHA-CÉU

NoserãododiaseguinteDonaBentacontinuou:—Meusfilhos,todasas

invenções humanas têm um objetivo comum: poupar esforço, fazer ascoisas comomínimo trabalho possível. Dessemodo o prazer do homemaumenta,porqueoesforçoésempredesagradável.Seeupossolevaraquelapedradalidaporteiraatéacasadocompadrecomumesforçoigualadez,meu prazer se torna dez vezes maior do que se eu tivesse de levá-lafazendoumesforçoigualacem.Istoéclarocomoaáguadopote.

Daívemdizer-sequealeidomenoresforçoéaleiqueregeoprogressohumano.Nocomeçoohomemtinhadefazertudounicamentecomaforçados seusmúsculos, e o esforço era penosíssimo, era doloroso. Progressoquer dizer isso: fazer as coisas cada vez commenor esforço e, portanto,cada vez com maior prazer. E para libertar-se do esforço o homem foiaumentandoasuaeficiência.

—Como?— Pelo aperfeiçoamento, pelo desenvolvimento das suas faculdades

naturais,istoé,dafaculdadedefalar,deandar,deouvir,deenxergar.Seeudobroaforçadosmeusolhoscomuminventoqualquer(comumvidrode

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aumento, por exemplo), estou aumentando a eficiência, ou o poder, dosmeusolhos.Semultiplicoaminhacapacidadedeandarusandootremouoautomóvel, aumento a eficiência dos meus pés. De modo que todos osprogressoshumanosnãopassamdamultiplicaçãodopoderdosolhos,daboca,dospés,dasmãosedosouvidos—edaresistênciadapele.

—Dapeletambém,vovó?—admirou-seNarizinho.— Pois decerto. Esse aumento da resistência da pele foi dos mais

importantes, porque garantiu a sobrevivência do homem. Se hojeencontramosohomemnomundointeiro,sejanasregiõesfrigidíssimasdocírculoártico,sejanaszonastórridasdoequador,issosedeveaoaumentodaresistênciadesuapele.

—Masnãohátalaumentoderesistência,vovó—dissePedrinho.—SeagentelevarumesquimóparaaÁfrica,elemorre;comomorreumnegrodaÁfricaseopusermosnosgelos.

—Nãomorreránemumnemoutro,seseutilizaremdasinvençõesqueohomemfezparagarantirapele.Ainvençãodaroupamanteráavidadonegrolánaregiãoártica,eainvençãodosrefrescoseventiladoresmanteráavidadoesquimónaÁfrica.

—Massepuseremosdoisnus,onegronogeloeoesquimóno fornoafricano?—lembrouEmília.

—Nesse caso ambosmorrerão;mas esse caso não é o nosso caso. Onosso caso é o do homem aumentado pelas suas invenções. Sem essasinvençõesoesquimóeonegromorreriam;mascomas invençõesambossobreviveriam.

DesdeocomeçodavidadosanimaisnaTerraoestadodenudezficousendoa regra.Nenhum teve a lembrançadedobrar a resistênciadapelebotando em cima do corpo uma pele suplementar. O bicho homem teveessa idéia. Isso lhedeuavitória,permitindo-lhe invadirtodososclimasedessemodotomarcontadoglobo.

Quando vinham os frios duma estação invernosa, todos os outrosanimais só sabiam fazeruma coisa: esconder-senas cavernas, ou lugaresmaisabrigados.Obichohomemfoiadiante.Dobrou suapele,metendo-sedentrodumapele tiradadumanimalpeludo,comoourso.Opêlodapeledosursosedosoutrosanimaiseraadefesaúnicaqueelestinhamcontraofrio — defesa dada pela natureza, não inventada por esses animais. Ohomeminventoubotarsobreocorpoapeledosursos,multiplicandoassimasuacapacidadederesistênciaaofrio.Foiounãofoiinteligente?

—Inteligentíssimo,vovó!Estoujámeentusiasmandocomaespertezadosnossosbrutíssimosantepassados—dissePedrinho.

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—Maseraumacoisatãosimples...—observouamenina.—Paranós,hoje,quejáestamoscomainteligênciamuitodesenvolvida,

parece simples. Lembre-se, porém, de que essa idéia só ocorreu a umaespécieanimaldasmilharesdeespéciesexistentesnomundo.Sóaobichohomem!Eéfácilimaginarqueespantoscausouaosseusirmãosoprimeiroquefezisso—queapareceunacavernaenvoltonumapeledeurso.Talvezespanto maior que o causado pelo primeiro automóvel, isto é, peloprimeiro carro sem cavalos que passou pelas ruas duma cidade. Todosdeviamterabertoaboca,atônitos.

Mas como ele se risse e dissesse que estava quentinho enquanto osdemais tiritavamde frio,oespíritode imitação fezque todos saíssemembusca de peles. E desde então o homem trocou o estado de nudez peloestado de vestido, aumentando enormemente o poder de resistência dapele.

Da pele de urso pela primeira vez usada pelo bicho homem — e,portanto, invenção sua — saíram todos os maravilhosos tecidos queusamoshoje—delinho,deseda,dealgodão,delã,deraiom...

No começo o vestuário era constituído somente de peles nem sequercurtidas; secavam-nasao sol simplesmente—eé fácil imaginarohorrordosguarda-roupasdaépoca.Fedentinamedonha:comaumidade,aspelesapodreciaminfeccionandoascavernas;ecomosolressecavam,tornando-se incômodas e quebradiças. Isso fez que tratassem de descobrir coisamelhorqueapelecrua—edessetratardedescobrirveiotodaamaravilhadostecidosmodernos.

Antesdeapareceremessestecidos,porém,ohomemdescobriuomeiodetransformarapelecruanoquechamamoscourocurtido.Sabeoqueécurtircouros,Pedrinho?

—Sei,vovó,eatéjáestivenumcurtume.Elesmergulhamocourocrunumtanqued'águamisturadacomtanino,edepoisdeváriosdiasdebanhoocouroficadiferente—ficacurtido.Nãoapodrecemaiscomaumidadeetorna-semacio.

—Equetaninoéesse?—quissaberamenina.— O tanino é uma substância que existe em certas plantas. Lá no

curtume em que eu estive eles usavam a casca duma árvore chamadabarbatimão,queémuitoricaemtanino.Eumordiumpedaçodessacasca.Temumgostoácidodebananaverde.

—Équeabananaverdecontémmuitotanino—explicouDonaBenta.— Pois os nossos antepassados fizeram logo essa invenção. Tratando aspeles cruas em banhos de tanino, transformavam-nas em couro curtido,

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queémacioenãoapodrece.Todasaspelesqueusamoshojesãocurtidas.Masapeledosanimaisnãobastavaparavestir tantoshomensque já

havia, além de que emmuitos pontos as peles rareavam. Foi necessáriodescobrirsubstitutos.NoEgito,enaquelaMesopotâmiafamosa,oshomenstantoexperimentaramfazertecidosdestaoudaquelafibradeplanta,que,por fim, descobriram o linho. Chama-se linho a fibra duma plantaclassificadapelosbotânicosdeLinumusitatissimum.Agentedelánãotinhadedefenderocorpocontraofrio,massimcontraocalor,poissãoregiõesquentíssimas. O linho resolveu o problema. Veste o corpo com toda amacieza e afasta o calor. Mas o que estou contando em meia dúzia depalavras,quantosanoslevouparaserrealizado?Quantosmilharesdeanosnãolevouohomemausarpeles,enquantonãoachavasubstitutos?

—Eucalculoem2500anos—sugeriuEmília.—Nãosejaboba—disseNarizinho.—Continue,vovó.—Logoqueum inventodessesera feita,espalhava-sepor todaparte,

de modo que a aplicação do invento se ia generalizando. Os chinesesdescobriram que com o fio do casulo duma lagarta também era possívelfazertecidos—eapareceuasedaeacriaçãodobicho-da-seda.Ohomemficoucomolinhoeaseda.Oalgodãotambémjáeraconhecido...

—Ondesurgiuoalgodão?—Umantiqüíssimohistoriadorgrego,Heródoto,falaqueveiodaíndia,

mas não temos meios de saber com certeza. É antiquíssimo, embora sómodernamentesuaculturatomasseagrandeextensãoquetomou.Hojeabasedovestuáriohumanoéoalgodão.Maisquealã,maisqueaseda,queolinho,quetudo.

Ospovosnaquelestemposeramvitimadosporcalamidadesconstantes.Cada invernorigorosodava lugarahecatombes,sobretudodecrianças.Oproblema do vestuário ainda não estava bem resolvido. Só seria bemresolvido coma lã—ea lã apareceu.Oshomens tiveramaespertezadedomesticar um animalzinho que os romanos chamavam ovis e nóschamamosovelhaoucarneiro—umanimalmuito tímido,demuitobomgênio, que só sabe fazer três coisas: obedecer ao pastor, pastar capim eproduzirlã.Todososanostosavam-lhealãecomelateciamumvestuárioquentinho,omelhordetodosparaasregiõesfrias.

—Eondecomeçouisso?— No centro da Ásia. Foi do Turquestão que a indústria da lã se

espalhouparaaGrécia,paraRomaeparaorestodomundo,chegandoatéàquelas ilhas nevoentas que hoje chamamos ilhas Britânicas. As ilhasBritânicasse tornarammais tardeomaiorcentromundialdos tecidosde

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lã.Aindahojequemvesteomundo,comalãdoscarneirosquesecriamnaAustrália e em outras colônias, é a Inglaterra. Os ingleses construírammáquinas aperfeiçoadíssimas para limpar, alisar e tecer a lã. Ficaram osreisdalã,osmestres.Quandoagentediz"casimirainglesa",todostiramochapéu.— É por isso que entre nós há tantas casimiras inglesas— observou

Pedrinho—,aindaquetenhamocheirinhodoBrás2ondesãofabricadas...—OqueaInglaterrafezcomalã,aChinafezcomaseda.FoinaChina

quesedesenvolveuaculturadobombixmori,umalagartaqueparaenrolaro casulo tira das suas glândulas quasemil metros dum fio finíssimo. Oshomenstomamessescasulosedesenrolamofio, formandoasmeadasdesedacomquetecemosmaislindostecidosqueexistem.

Oschinesesconsideravamasedacomodeorigemdivina,eumarainhadenomeSi-lung,esposadograndeimperadorHuang-ti,quereinoumaisdemilanosantesdeCristo,foiaprimeirapessoaquefezumestudocientíficodomaravilhosobichinho.

—Masentãoobombixeratambémumgrandeinventor— disse Narizinho. — Inventou um casulo feito de fio de seda

enroladinha.—Perfeitamente.Mas fezesse inventoeparou.Se tivessea faculdade

inventiva tão grandequanto adohomem, teria ido além.Parouno fio.Ohomemtomouofioedeletirouasmaioresmaravilhasqueháemtecidos—oscrepes,oscetins,osveludos,ostafetás,asmusselinas,etc.

Oschinesesconservaramessa indústriaemsegredopormaisdevinteséculos.Eraumsegredosagrado.PorfimoJapãoconseguiuimportardeláumaschinesinhasnapossedosegredoetambémsefezgrandeprodutordaseda. Mais tarde uma princesa da China fugiu para as índias levandoescondidosnopenteadosementesdaamoreiraeovosdobombix—enasíndias a indústria da seda também se desenvolveu. A folha da amoreiraconstituioalimentoexclusivodalagarta.

— Quer dizer então que a seda não passa de folhas de amoreirastransformadas em fios pelas glândulas da lagartinha maravilhosa? —perguntouamenina.

—Issomesmo.Masasedafoipormuitotempoumapreciosidadequesóospríncipesouosgrandesmagnataspodiamusar.Eracaríssima.Umdiadois monges persas, de viagem pela China, conseguiram atravessar asfronteirascommudasdaamoreiraeovosdobombix ocultosnumcanudodebambu,evieramorgulhososoferecerorégiopresenteaoimperadorde

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Constantinopla.AnosdepoisestavaConstantinoplatransformadanocentrodassedasdomundoocidental.

Quandooscruzadossaquearamessacidade, levaramdelácanastrasemais canastras de peças de seda, espalhando-as por toda parte comogrande novidade, isso trinta séculos depois da criação da indústria naChina.Asedaficouentãoconhecidíssima,massemprecomocoisapreciosa.UmpríncipedaBorgonhacontavacomorgulhoquenoenxovaldasuafilhafigurava um "par de meias de seda". E mais tarde a Imperatriz JosefinaquasearruinouoseumaridoNapoleão,tantaeraasedaqueencomendavaparaoseuvestuário.

Afúriadasmulhereseuropéiasemusarsedasfoicrescendoapontodejánãohaverbombixquechegasse.Seda!Seda!Seda!—eraogritouniversaldaselegantes.Ogênioinventivodohomem,então,pôs-seemcampopararesolveroproblema.Tinhadeinventarasedaartificial,barata—easedaartificial surgiu. Com a mesma matéria-prima com que se faz o papel,chamada celulose, os químicos criaram o raiom ou seda artificial.Liquefazem a celulose e deixam-na escorrer em fiozinhos, que secam,ficando com o mesmo brilho e a mesma flexibilidade da seda natural.Infelizmente, não possuem a mesma resistência e duração. Por maisespertoquesejaohomem,obombixaindaseridasedaqueohomemfaz.

Masreparemquetudoistonãopassadedesenvolvimentodaprimitivaidéiadobichohomem,decobrirocorpocomumapeledeurso.Odifícilfoiter essa idéia. O resto veio naturalmente, como conseqüência forçada. Eassimcomtodasasinvenções.Odifícilésempreoprimeiropasso.Dadooprimeiropasso,orestovemnaturalmente.

Tia Nastácia entrou nesse instante, muito aflita, dizendo que EmíliaestavabrigandocomoQuindim.

—Jásei—disseDonaBenta.—Comcertezaquerconvencê-loaandarvestido. Que se arrumem por lá. São nove horas e quero dormir. Fica orestoparaamanhã.

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III–DAPELEAOARRANHA-CÉU(CONTINUAÇÃO)

Nooutrodia,quandoDonaBentaabriuolivrodecapapreta,Narizinho

disse:—Comqueentão, vovó, aquelevestidinhomeu,dumagaze tão linda,

que a senhorame fez para o casamento da Joyce Campos, não passa daevoluçãodumapoucocheirosapeledeurso?

— Isso mesmo. Nem aquele vestido, nem o sobretudo novo dePedrinho, que ele com tanto orgulho chama overcoat, nem os vestidosmagníficosdaGloriaSwansonemsuasfitas,nemosvestidosdasprincesasdeverdadequesecasamcompríncipesdesanguereal,nemomacacãoazulcomqueosmecânicostrabalham,nemovestuárioelétricodosaviadores,nada disso é mais que uma pele de urso evoluída. Veja você o que é omundo!

—Quevestuárioelétricoéesse?Nuncaouvifalar...—Osaviadoresquevoamagrandesalturassofremdoterrívelfrioque

reinapor lá, enãohavia roupade lã,pormaisacolchoadaque fosse,quelhesprestasse.Tiveramentãoaidéiadefazeromacacãoelétrico,istoé,umvestuário aquecido pela corrente elétrica à temperatura desejada. Desse

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modo,usandoumaroupamuitomaislevequeosgrossíssimoscapotõesdelãqueusavam,osaviadoresriem-sedostremendosfriosdasalturas.

—Queengraçado!—Eaindahámais,minhafilha.Jásecogitadefazerroupaassimpara

todagente.O freguêsqueasvestir levanobolsoumacumuladorelétricopequenininho mas de grande força — e a eletricidade contida nesseacumuladoraqueceráaroupanatemperaturadesejada.Esenumpasseioou viagem o acumulador se descarregar, basta que entre numa casaqualquereocarreguedenovo,ligandoofioàtomadadoferroelétricooudorádio.

TiaNastácia,quevinhaentrando,deuumarisadagostosa.—Issoéimpossível,sinhá!—exclamouelaconvencidamente.—Tambémeraimpossívelouvirmosnestesertãooquefalamecantam

lá em Pittsburgh, e no entanto todas as noites o rádio nos resolve oproblema.

—Easenhorapensaqueeuacredito?—disseapretapiscandooolho.—Nãovounessa,não!Pormaisquedigamocontrário,estouconvencidadequeháqualquercoisadentrodessacaixa,quefala,cantaetocamúsica.Delátãolongeéquenãopodevir.

TodosseriramdacoitadaeDonaBentacontinuou:— Bem. Já vimos um dos inventos do homem para proteger a pele

contrao frioexcessivooucontraodemasiadocalor—aroupa.Masessainvenção em benefício da pele não foi a única. Temos outraimportantíssima,emboradegênerodiverso:acasa.Apenascomaroupaohomem não se defenderia domau tempo— nem defenderia as criançasnovas, que têm de ficar por vários anos ao abrigo do mau tempo. Edefender os filhotes é para todos os animais coisa muito importante,porquedissodependeoqueossábioschamamaperpetuaçãodaespécie.Seos adultos só pensassem em si, deixando que as crianças morressem, aespéciehumanaextinguir-se-iarapidamente.

Acasaserve,sobretudo,paranosdefenderdaschuvas,queàsvezesseprolongamdurantemesesinteiros.Comoapareceuacasa?Primeiramente,obichohomemfezoquefaziamtodososanimais:abrigou-senosocosdasgrandes árvores e nas cavernas das pedreiras. Semelhantemorada tinhaterríveis inconvenientes; os ocos eram muito acanhados; e as cavernas,alémdaescuridãoperpétuadeládentro,viviamcheiasdeoutrosanimaisque também as procuravam para refúgio, grandes morcegos, aranhas,cobras, isso sem falar nos terríveis tigres-de-dentes-de-sabre, tãoabundantesnaquelestempos.Eleões,equantaferaexiste.Oshomensque

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tomavam conta dumacaverna tinham de dar pulos para afastar dali tãoperigosos inquilinos. O número de batalhas tremendas que foramobrigados a travar contra as feras invasoras não tem conta— e quantasvezesnãoforamvencidosedevorados?

— E a sujeira, vovó!— lembrou Narízinho fazendo cara de nojo. —Suponhoqueessascavernasdeviamserumhorrorsemconta.

—E eram. Nas que os sábios têm descoberto, a quantidade de ossosreunidos lá dentro espanta. Ossos dos animais com que os nossosantepassados se alimentavam. Quando frescos, e ainda com muxibas erestos de carne grudados, imaginem omau cheiro que não punham nascavernas! Hoje nem para casa de porcos serviriam — e no entanto, láviveramosantepassadosdosmaioresgêniosdanossaespécie—osavósdeShakespeare,deMiguelÂngelo,deEdison,deSantosDumont...

O horror das cavernas naturais, aquela escuridão eterna, fez que ohomemtratassedeconstruiroutrosabrigossemaquelesinconvenientes—eacasacomeçou.

—Comoeramasprimeiras?— De muitos jeitos, minha filha. De todos os jeitos, podemos dizer.

Havia as escavadas em blocos de gelo, nas regiões geladas. Havia asconstruídas sobre árvores, com paredes de paus e teto de ramos secos.Depoisvieramasfeitasdebarro,comoaindahojeo joão-de-barrotemassuas.Evieramascasaslacustres,ouconstruídasdentrodaáguadoslagos.

—Dentro?—Emcima,sobreestacasbemfincadas.Amaiorpreocupaçãodobicho

homemeraconstruirumabrigoqueo livrassedomautempoedasferas.Ascasasconstruídassobreaáguatinhamdiversasvantagens;nãosomenteos punham a salvo do ataque dos tigres e leões, como também lhesforneciamumbanheirofácil.Eaindaalimentaçãofácil—peixes.

—Quecoisagostosa,vovó!—exclamouPedrinho.—Imagineagentepescandodajanela!...Porqueasenhoranãoarranjaumacasalacustre?

— Se eu fosse arranjar todas as maluquices que vocês imaginam,acabarianohospício...Masofatodeosmoradoresdacasalacustreteremo banho à mão é muito importante; porque uma das características dohomem é lavar-se e lavar coisas. Hoje temos pias e banheiroscomodíssimos, com água corrente, quente ou fria à vontade. Isso,entretanto, é coisa moderna. Grandes metrópoles antigas, que hojeveneramos em suas ruínas, eram porquíssimas. Em Atenas os suínosandavampelasruas,encarregadosdalimpezapública.EmMarselha,aindaemnossostempos,certoshotéisanunciameaucourante—águacorrente,

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dandoidéiadequeáguacorrentesejanovidadedignadeanúncio.Mas,comoeuiadizendo,ascasaspassaram-seaconstruirsobreaágua,

ou perto da água. Hoje mesmo, quando um caboclo aqui da roça vaiescolher lugar para sua casinha de sapé, a preocupação maior é aproximidade duma aguada, não só para beber e cozinhar, como para alimpeza doméstica. Daí a importância das margens dos rios. Na minhaGeografiaacentueiisso.Porquê?Vamosverquemsabe.Porqueoshomensprocuravamasmargensdosriosparaerguersuascidades?

— Por tudo, vovó — respondeu Pedrinho. — Para terem água emabundânciaparabanhoselimpezadacasa,lavagemdaroupa,daspanelas,etc.Para terempeixe fácil.Para teremummeiode transportecômodo, jáque os rios são estradas que caminhampor simesmas. Para teremboasterrasdecultura,vistoqueasdasmargenssãosemprefrescasealémdissofertilizadaspelohúmusduranteasenchentesanuais.

—Issomesmo.Acasa,portanto,serviaparalivraroshomensdasferas,dos raios do sol, das chuvas e das ventanias, das geadas e da neve— eserviatambémparadaràsfamíliasesse"à-vontade"quetantonosagrada.Quemestá em sua casa está comoquer; quemestá forade casa temqueestarcomoosoutrosquerem.Omaiorencantodacasaé justamenteessaintimidade — esse estar longe das vistas ferozes e mexeriqueiras dosvizinhos. Imaginem uma cidade em que as casas fossem de vidro bemtransparente.Quehorrornãoseriaavidaládentro...

— Eu pintava logo as paredes com piche, para não dar o gosto àgentaradadefora—disseEmília.

—Querdizerquevocêrestabeleciacomopicheaintimidadequedeveterumacasa—edessaveznãofazianenhumaasneirinha.. .Poisfoiessaintimidade da casa que tornou possível a vida de família, algumas bemfelizes—comoanossa, comTiaNastácia fazendoquitutes lánacozinha,comQuindimfilosofandonoquintalenquantomascacapim,comoSenhorMarquês de Rabicó sempre farejando gulodices, com a Emília a abrir efecharasuacélebretorneirinha,comigoaquiacontarhistóriashistóricasegeográficas—ecomvocêsdoisaaprenderemmilcoisasbrincando.

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—AsenhoraesqueceuoVisconde,vovó!—lembrouamenina.— Sim, e com o Visconde fazendo. . . o que mesmo? Que anda ele

fazendoagora?Narizinho cochichou ao ouvido de Dona Benta o grande segredo: "O

ViscondeestáescrevendoasmemóriasdaMarquesadeRabicó.Emíliaditaeeleescreve,naquelaletrinhatodacheiadesabuguices".

Dona Benta arregalou os olhos, pois aquilo era novidade grande. Emseguidavoltouaoassunto.

— Depois da casa singular, isto é, duma casa para cada família,apareceramemRomaascasascoletivas.Eranelasqueviviamosescravos.Aquitambémtivemosascélebressenzalas,ehojetemoscasasdepensão,hotéis, quartéis, conventos, internatos, isto é, grandes casas ondemoramnumerosaspessoas.Masaspessoasquemoramdesse jeito estão semprepensandoemmorarnasuacasinhaisolada.Sevivemassiméporeconomiaououtraqualquerrazão—nãoporquerer.

—Ascasasdosoperáriosnasgrandescidadestambémnãotêmgrandeintimidade, vovó— lembrou Pedrinho, que havia visto em Nova York eLondresoschamadostenements,oucasasdeapartamentodospobres.

—Sim.Entreosmalesqueaexcessivaaglomeraçãodegenteemcertos

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bairrostrouxe,veiotambémesse.Masestánofim.Atendênciamodernaépara acabar comas tristes habitações coletivas emque os pobres vivem.Emcertospaíses o operário já possui casasdeumconforto e intimidadequeatéaquieramprivilégioexclusivodosricos.Umdianomundointeiroseráassim.Esperemos.

Foi essa vida horrível nas sórdidas gaiolas das grandes cidades quecriouaemigração,ouafugadoshomenspobresparaoutrasterrasmenospovoadas,ondelhesfossepossívelterasuacasinhaprópria.Quememigra,quem sai para trabalhar emoutras terras, é porquenão encontra na suacondiçõesdevidaagradáveis.FoigraçasàmávidadopobrenaEuropaqueaAméricasepovoou—quetambémsevãopovoandoaAustráliaetantasoutrasterraschamadascoloniais.

Masainvençãodacasanãoresolviatodososproblemas.Nospaísesemquenoinvernoanevecobretudocomoseumantodegelo,mesmodentrodecasaohomemarcavacomoshorroresdo frio.Oremédioeraacenderfogo.Ofogoaqueceoar,oqueéagradável;esseprazerfezquesefossemaperfeiçoando osmeios de aquecer o ar dentro das casas. Inventou-se ofogão para substituir as fogueiras primitivas que enfumaçavam tudo. Nofogão a fumaça é levada para fora por meio dum tubo vertical quechamamos chaminé. Foi um passo gigantesco, e até hoje tal sistema éusadíssimo. Depois vieram os aperfeiçoamentos do fogão — vieram osradiadores.

—Queéisso?— Um meio de fazer o calor penetrar nas casas sem nenhum fogão

visível.Constroem-senosporõesumasfornalhasqueevaporamaágua,eovapor vai por encanamentos escondidos dentro das paredes até umasserpentinasdeferro.Essasserpentinassãoosradiadores.Ocaloraqueceoferrodaserpentinaeirradia-sepelassalasequartos.

—Masissoémuitomoderno,não,vovó?—Menosdoqueparece,meu filho.NoPaláciodeCnossos,na ilhade

Creta, jáhaviaradiadoresmilanosantesdeCristo.Eascasasconstruídaspelos romanos (as casas dos ricos, está claro) já usavam um sistema deaquecimentopormeiodearquente.Masveioaquelainvasãodosbárbarosquedestruiua civilizaçãodosgregose romanos,dandocomeçoà tristeefria Idade Média, em que era moda desprezar o corpo, como se nãofôssemos corpo. A arte do aquecimento desapareceu, isto é, voltou paratrás.Resumiu-seàfogueiradentrodecasa.Ospobresmedievais,coitados,viviamentanguidos.Emesmodepois,jáquasenostemposmodernos,ofriomuitomartirizouahumanidade.

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Aquele célebre rei de França, que os basbaques chamaram Rei Sol,morava num palácio enorme, impossível de aquecer-se com as simpleslareiras ou fogões então usados. Muitas vezes a comida se congelou namesareal.Vinhadaíoseuhábitodenãotomarbanho.Comotomarbanho,sobretudonoinverno,tempoemqueaáguasecongelavanastorneiras?

O fogão, ou lareira com chaminé, se generalizou. Parece tão simplesumachaminé,nãoacham?Poisdemorouavir.Nocomeçohaviaapenasumburaconotetoparadarsaídaàfumaça.Aidéiadeconstruirumtuboquelevasseafumaçadofogãoaotelhadocustouaaparecer.

Unicamentenofimdoséculopassadooshomensretomaramaartedoaquecimento do ar, inventada pelos gregos e romanos. Voltaram osradiadores,aquecidosaáguaquenteouvapor.Nasgrandescidadesemquehá invernos fortes o aquecimento é hoje obrigatório.Quem faz uma casatem que construir a aparelhagem de aquecer o ar. Nas grandes casas deapartamentos, assim que chega a data oficial do começo do inverno asfornalhasseacendemnosporõesparaumfogoquesóseapagaránadataoficialdofimdoinverno.

—Eosaquecedoreselétricos?— Esses são o ideal. O aquecimento a vapor ou ar quente exige

dispendiosas instalações de fornalhas nos porões, e canalização, e umatrabalheiraparamanterofogosempreaceso.Comoaquecimentoelétrico,nadadisso.Bastaumaparelhinhoradiadoremcadacômodo.Liga-seofioàtomadaelétricaepronto.Aquilo fica incandescente, inundandoocômododumagradabilíssimocalor.

Infelizmenteaeletricidadeaindaécara.Nodiaemqueativermosporpreço razoável, então o aquecimento elétrico eliminará todos os outrossistemas,domesmomodoqueailuminaçãoelétricadeucabodetodososlampiõesdequeroseneouazeite.Havemosdeláchegar.

—Eofogo,vovó?Nãofoitambémumagrandeinvenção?—Dasmaiores,meufilho.Paramimfoia invençãoquepermitiutudo

ao homem. A civilização que temos hoje, com suas locomotivaspoderosíssimas,seusautomóveis,seusnaviosgigantescos,suasfábricasdetudoquantoexiste,éumafilhadofogo.Massobreistojáconversamos.Jáconteiqueoprimeirofogofoiobtidopelafricçãodedoispaus,umduroeoutromole.Depoisohomemaprendeua fazer fogoaproveitandoa faíscaquesaíadecertaspedrasquandobatidascomumpedaçodeferro.

—Éoisqueirodarock,queoscaboclossempreusaram...—Isso.Edepoisveioainvençãodofósforo,querevolucionouomundo.

Toda gente passou a trazer fogo no bolso, em caixinhas. Só riscar um

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pauzinho e pronto. Parecia que isso fosse o final e não foi. Apareceuultimamente o acendedor automático. Maquinazinha muito simples eengenhosa.Agenteapertaamolaeoacendedordispara,arrancandoumafaíscaquevaiacenderamechaembebidadegasolina.Oreinadodofósforoestá hoje se dividindo em dois pedaços, como aconteceu com o ImpérioRomano. O fósforo fica, mas tem de repartir os seus domínios com oacendedorautomático.

—Ecomonasceuofósforo?— No começo era fósforo mesmo. Os homens observaram que essa

matéria fosforescente, isto é, luminosa, chamada fósforo, tinha apropriedade de dar fogoquando batida com uma pedra, e esse fogo eracomunicadoaumaiscaemqueentravaoenxofre.Ummeiocomplicadoede mau cheiro. Mais tarde, em 1827, um inglês de nome John Walkerinventou o fósforo de esfregar. Em vez de bater, bastava esfregar umpedaço de fósforo num esfregador preparado para esse fim. Vinte anosmaistardeosuecoLundstrom,naturaldacidadedeJonkoping,inventouofósforo que usamos hoje, pequenino e cômodo, sem mau cheiro e nãovenenosocomoofósforofeitodefósforo.

—Entãoofósforodehojenãoéfeitodefósforo?—Não,eporissonãoéfosforescente.Contémvárioscorposquímicos

misturados demodoquepela fricçãona lixa da caixinhaproduzam fogo,semenvenenarospulmõesdequemosacende.Ocuriosoéquequandooscômodos fósforos de Jonkoping apareceram a resistência do público foigrande. O homem acostuma-se ao que tem e refuga as novidades queapresentam progresso. Tolice, porque as novidades acabam semprevitoriosas—eaidomundosenãofosseassim!...

Hoje temos por aqui muitas fábricas de fósforos, marca Olho, marcaPinheiro,etc.Temposhouve,porém,emquesóusávamoso fósforovindoda Suécia, por sinal que excelente. Lembro-me perfeitamente deles. Umletreiro amarelo em língua sueca e a palavra Jonkoping embaixo.O povodiziaqueeramfósforosdoJoãodosCopinhos...

TiaNastácia entrounessemomentopara arrumaro lampiãobelgadasala,queestavareinando.Tirouovidro,aparouopaviocomumatesouraegraduoualuzconvenientemente.

—Poiséisso,meusfilhos.Nóscánosítioaindaestamosatrasadosemmatériadeluz.Aindausamosoquerosene.Masdeixeestar.Nodiaemqueocafésubir,eucomproumdínamoparaaproveitamentodaqueda-d'águada cachoeirinhadopasto.Ehavemosde ter luz elétrica excelente e forçaelétrica para o nosso rádio, em vez dessas baterias incômodas, e para

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moverminhamáquinadecostura,eparaumbatedordeovosnacozinha,eparaumventilador,eparaumferroelétrico,eparaumageladeira,eparaumaspiradordepó,eparaumaenceradeira.Quantacoisa!Tudoissoláseestáperdendonaquelacachoeirinhadopasto...

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IV–AMÃO

—Poisé isso—começouDonaBentanodiaseguinte.—Dapeleque

um peludo bicho homem usou pela primeira vez saíram todos osmaravilhosostecidoscomquenosvestimoshoje,edoprimeiroabrigodepau tosco e ramos saíram todas as casas modernas, inclusive aquelearranha-céuquevocêstantoadmiraramemNovaYork.

— O Empire State Building! — exclamou Pedrinho com os olhosbrilhantes. — Que colosso, vovó! Trezentos e oitenta metros de altura!Quandopareidiantedeleeviaquelaimensidadequesubiaparaocéu,sentiumarrepionapele.Umorgulho!Oorgulhodeserhomem,depertenceràmesmaespéciedosquehaviamconstruídoocolosso...

—PoisoEmpirecomeçoudamaneiramaismodesta.Semaqueleprimeiropassoque foiamiserável cabanadepau toscoe

palha, imaginada pelos peludos para substituir a caverna demau cheiro,

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não teríamos esse assombro do arranha-céu, que de fato, como dizPedrinho, nos causa arrepios de orgulho.Mas chega de pele.Hoje vamostratardamão.Quemsabeoqueémão?

—É isto!— respondeu Emília espichando amunheca— e os outrospuseram-se a olhar para as suas como se as estivessem vendo pelaprimeiravez.Sónotaramumacoisa:queestavambemsujinhas...

—Amão—explicouDonaBenta—éaevoluçãodumapatadianteira.Todos os quadrúpedes possuem patas dianteiras que empregam paraandar e também para fazer muito desajeitadamente o papel de mãos.Repare o gatinho. Quando pega qualquer coisa, pega com os dentes,procurandoauxiliar-secomaspatasdianteiras.Infelizmenteparaeleessaspatas dianteiras não possuem os dedos que temos em nossasmãos; e oauxílio que prestam ao gatinho é bem pequeno. A grande coisa queaconteceu com a mão do homem foi o encompridamento dos dedos e acolocação do polegar em oposição aos outros quatro. Ficou assimtransformada num maravilhoso instrumento de agarrar. A torquês ou oalicate é uma mãozinha de ferro com dois dedos apenas, um oposto aooutro;seessesdedosestivessemumaoladodooutro,denadavaleriam.Oimportanteéestarememposiçãooposta,poisqueissopermiteagarrar.

Com a disposição oposta do polegar, a mão do homem tornou-seprodigiosamentehábilparafazermilcoisasimpossíveisaosanimais,cujaspatasdianteirastêmosdedossemelhantesaosdospés.Odedopolegar!Omata-piolho! Eis o grande progresso. Se reduzirmos nossas mãos a doisdedosapenas,sendoumopolegar,aindapodemosfazermilcoisas;massecortarmosopolegardeixandoosoutrosquatro,babau!Nãopodemosfazerquasenadacomeles.

Osanimaisutilizam-sedaspatasdianteirasparacavarburacoseajudarosdentesnoagarramentodascoisas—excetoossímios,que,comoestãomais próximos de nós, já têmmãos que são verdadeirasmãos. Demodoqueamãodohomemsignificaomaisimportanteinstrumentonaturalqueeleadquiriu—eaoqualsedevemtodasasmaravilhasquevemoshojenomundo.

Mas a mão sozinha, embora valesse muito, servindo para agarrar,despedaçaracaça,colherfrutas,etc,nãorealizougrandecoisaatéodiaemqueoprimeiropeludoteveaidéiadeaumentaropoderdelapormeiodumpedaçodepauoupedra.

—Masissoétãosimples,vovó!Essalembrança,seeufossepeludo,meacudiriaimediatamente—observouPedrinho.

—Acredito.Comainteligênciaquevocêtem,nadamaisnaturalquea

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idéiaacudisseimediatamente.Masquantosmilharesdeanosnãolevariaopeludoparadescobriroqueavocêparecetãosimples?Descobriu-oafinal.Um deles começou. Em vez de agarrar a caça com asmãos, como faziamtodos,teveaidéiadesegurarnumpauounumapedrae.batercomeleoucomelanacaça.Etodoummundonovoabriu-se-lhediantedosolhos.Essegenial peludo verificou que o seu poder aumentava grandemente. Outrogêniodomesmotipodescobriuquesegurandoumapedraearremessando-aconseguiriaatingirumobjetoqueestivesselongedesi.Outroprogressoimenso,doqualiamsairatéoscanhõesdehoje.

—Como,vovó?— Espere. Sem que eu explique você irá compreendendo. Antes de

aprender a arremessar a pedra, o homem tinha o poder dos músculoslimitadoao comprimentodosbraços.Querdizerque sópodia no raio deummetromaisoumenos.

—Nãoestouentendendomuitobemesseraioaí...—Raioéametadedodiâmetrodumcírculo.Issovocêsabe.Poisbem:

antesdeaprenderaarremessarapedra,opeludoeracomoseestivessenocentrodumcírculodedoismetrosdediâmetro,seusbraçosformavamosraiosdessecírculo,demodoqueelesópodiaatingiroqueestivessedentrodumraiodocomprimentodoseubraço,istoé,ummetro.

—Bom,agoraentendi.— E quando aprendeu a arremessar a pedra, esse homem passou a

podermuitomais.Oraiodocírculoemredordele(docírculoqueelepodiaatingircomapedra)passouasermuitíssimomaiordoqueoraioqueelepodiaatingirapenascomasmãos.Se,porexemplo,jogavaapedraavintemetrosdedistância,seupoderaumentavavintevezesmais.Comasmãosele sópodia dentrodo raiodeummetro. Jogando apedra, ele passava apoder dentro do raio de vinte metros, suponhamos. Antes ele só podiaatingir um veado que estivesse a um metro de distância; com a pedraatingiaoveadoqueestivesseavintemetros.Compreendeu?

—Não há o que a gente não compreenda quando a senhora explica,vovó—observouNarizinho.

—Muito bem. Temos aqui o peludoaumentando de um para vinte oalcancedoseupoder.Depoisvieramasoutrasinvenções,queaumentaramaindamais o poder das suas mãos. Veio o arco, que lança uma flecha aduzentosmetrosdedistância—eopoderdohomempassouaterumraiodeduzentosmetros.Depoisveioacarabina,quelançaumabalaadoismilmetros—eoraiodopoderdohomempassouaterdoismilmetros.Depoisveioocanhão,quealcançoucemmilmetros—eoraiodopoderdohomem

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passouatercemmilmetros.Como vocês vêem, o progresso foi imenso. O peludo, que ainda não

sabiajogarpedras,sóalcançavaoqueestivesseaummetrodedistânciadocentro do seu corpo, isto é, só alcançava o que estivesse ao alcance dobraço. No entanto, com o canhão Berta os alemães, na Guerra de 1914,alcançaramParisdumadistânciadecemmilmetros.Querdizerqueessesalemãespodiamcemmilvezesmaisqueopeludoprimitivo.

—Interessanteisso,vovó!—murmurouPedrinhopensativamente.—Hojevemosnosmuseusosmartelosdepedraqueospeludosfaziam

para aumentar opoderdasmãos. Parecemcoisasmuito simples.Mas, serefletirmosumpouco, temosdenos curvar com todaa reverênciadiantedessainvenção,comonoscurvamosdiantedumavelhinhaqueémãedumgrandehomem. Inumeráveismáquinasqueaumentamprodigiosamenteaeficiênciadohomemmodernoprocedemdessemartelo.Sãofilhasdele.

E quanto tempo levouopeludopara ter a idéia de botar um cabonapedra? Quantos milhares de anos não passou batendo com pedras semcabo?Umdia,umdosgêniosquesempresurgementreoshomensteveaidéia do cabo— e com espanto viu que a pedra encabada possuía forçamuitíssimomaiorqueapedrasemcabo.Estavainventadoomartelo,essepreciosíssimoinstrumentoqueédetodosoquemaisusotem.Pelomenosaquiemcasa...

Aquilo era alusão a Pedrinho, cujo martelo já estava desbeiçado detantoprega-prega.AtéaEmíliatinhaoseumartelinho.

— Domartelo de pedra saiu o machado. Com certeza foi descobertafeitasemquerer.Aomalharcomomartelo,apedralascoudebomjeito,porsimesma,virandolâminademachado,ecomespantoopeludoviuqueemvezdaquelemarteloamassarouesmigalhar,comofazemtodoosmartelos,cortava. . . Ora, cortar era coisa utilíssimapara quem já fazia cabanasdemadeira.Podiaeleagoracortarospausdomesmotamanho.Eomachadocomeçouaaperfeiçoar-se.Opeludoescolheupedraspróprias,quedessembom corte. Encontrou o sílex e outras. E veio vindo, veio vindo deaperfeiçoamento em aperfeiçoamento, até chegar às modernas lâminasGillette que hoje se usam para cortar os fios de cabelos do rosto, vulgobarba.

Éfácilimaginaralentidãocomquesurgiramtaisaperfeiçoamentos,eaalegriadoprimeiropeludoque,esfregandoapedradoseumachadocontraoutra,conseguiuavivarnovamenteocorte.Eraaartedeamolarquenascia.Antes dela tinham de aproveitar o machado enquanto durasse o cortenaturaldapedralascada;logoqueocorteficavarombudo,punhamforao

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machadoefaziamoutro.Imaginematrabalheira!Edessapedralascadaqueviroumachadosaiuafaca,aserra,alança,a

tesoura, a espada, a picareta, a enxada, o canivete— todos os inúmerosinstrumentosquetêmcaboecortam.Porisso,quandovocês,nummuseu,derem com aqueles toscosmachados de pedra dos nossos antepassadospeludos,tiremrespeitosamenteochapéu.

—Eeuquefaço,vovó,euquenãousochapéu?—perguntouamenina.—Vocêtiraosapato—asneirouEmília.NinguémachougraçaeDona

Bentacontinuou:—Atesoura,porexemplo,queéacombinaçãodeduaslâminasopostas,

custou muito a aparecer. Dizem os sábios que os egípcios, gente decivilizaçãotãoadiantada,desconheciamatesoura.ComeçamaapareceremRoma, onde as usavam para cortar a grama dos jardins e tosar a lã doscarneiros.Antesdisso,sabeoquefaziam?Arrancavamalãdoscoitadinhos.

—Quehorror!Querdizerqueseoscarneirosfossemmaisagradecidosdeviamajoelhar-sediantedecadatesouraencontrada...

— Sim, porque a tesoura veio libertá-los duma terrível tortura.Infelizmente, seesseparde facasopostas, chamado tesoura,veio libertaros carneiros dum suplício, não aconteceu o mesmo para os próprioshomens com a invenção dos instrumentos cortantes. Em vez de usá-losapenasparaoque lheserabom, transformaram-nosem instrumentosdeguerra — e foi na própria carne humana que tais invenções maistrabalharam. Surgiram as espadas, as lanças, os cutelos, as adagas, osiatagãs,ascimitarras,asbaionetaseoutroscruéisinstrumentosdecortaracarne dos homens nas lutas. Veio a guilhotina, cuja função era cortar acabeçadosquenãopensavamdeacordocomosdominantesdomomento.

—Eusempretivehorroràsfacas—disseNarizinho—,istoé,àsfacasde ponta, porque as facas de mesa são até bem boazinhas. Para passarmanteiga numa fatia de pão, nadamelhor. Verdade é que quandomuitoamoladaselastambémcortamodedodagente...

—Aculpanãocabeàfaca,minhafilha,masaousoquefazemosdela—eomesmosedácomtodasasinvençõeshumanas.Prestambenefíciossemnome,quandobemempregadas;etambémcausamhorroressemnome,semal empregadas. A dinamite, por exemplo. Que serviço não presta nademoliçãodumapedreira?Equehorrornão é quando jogadadumaviãosobreumacidade?

Infelizmenteaestupidezoumaldadedoshomens tematéaquiestadodecimasobreainteligênciaeabondade.Agrandeartequeaindahojeoshomenscultivamcommaiorcarinhoéaartedematarcientificamente.Se

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vocêscompararemoqueospovosmodernosgastamnoaperfeiçoamentodaartedematarcomoquegastamnaeducaçãodopovoeoutrascoisasdebenefício geral, hão de horrorizar-se. Os homens não fizeram progressonenhum emmatéria de bondade e compreensão. Chegaram ao ponto decrucificar Jesus só porque Jesus queria implantar na Terra o reino dabondade.AmaldadeaindaéasoberanaabsolutanestegrãodepoeiraquegiraemredordoSol...

Masdeixemosisto.Vamosveragoraoqueaconteceucomoutragrandeinvençãodospeludos—aenxada.

—Achaasenhoraquetambémaenxadasejaumagrandeinvenção?—Semdúvida,minhafilha.Ecomcertezafoiinvençãofeminina,porque

naqueles temposasmulheres tinhamsobresios trabalhosmaispesados.Eram as bestas de carga dos homens. Incumbia-lhes cuidar da casa, dacomida, das plantações, de tudo que era penoso; e com certeza foi uma"gênia"que,cansadadecavaraterracomasunhas,tevealuminosaidéiade botar cabo numa pedra cortante. Reparem que a diferença entre omachado e a enxada está apenas na posição da lâmina. No machado alâminatemofionamesmadireçãodocabo;naenxadatemofiocolocadoverticalmente.

Só isso. Mas foi preciso que surgisse uma "gênia" para fazer essa

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modificação!—Seagentepudessesaberonomedela...—murmurouNarizinho.—Haviadechamar-seEnxadia—lembrouEmília.—EnxadiadaSilva.NinguémachougraçaeDonaBentacontinuou:— Pois essa mulher fez uma grande coisa. A enxada primitiva

representou imenso progresso para a agricultura, e até hoje, emmuitospaíses, entre eles o nosso, abase da agricultura está na enxada. Se dummomento para outro todas as enxadas do Brasil se evaporassemmisteriosamente,mesesdepoisestaríamosmorrendodefome.

Masaprimeiraenxadadepedra,tãotoscaerude,foi-secivilizandonosfilhos que teve. E que maravilhosos netos apresenta hoje! Os arados dediscos,asgrades,asceifeiras...

—Essasnão,vovó.Essassãofilhasdafaca.—Podeser.Masaspás,asgrandespásmecânicasmovidasamotores

elétricos, ou melhor, as escavadeiras que vocês já viram nas cidades,abrindo alicerces para os grandes prédios, são filhas da enxada. E asdragas?Sabemoquesão?

—Dragas!eusei!—disseEmília.—Sãoasirmãsdasdrogas!— As dragas são as filhas da enxada que trabalham dentro d'água.

Usadíssimas em muitos portos para mantê-los com a profundidadenecessária ao calado dos navios. No porto de Santos podem ser vistas.Vivemperpetuamentedragandoolodoqueseacumulanofundodocanal— e o navio dragador, depois que enche seus reservatórios com a lamatirada do fundo, vai despejá-la longe nomar. Se a dragagem dos portosfosseinterrompida,quegrandecalamidadeparaomundo!

—Porquê?— Porque os vapores não poderiam entrar ou sair dos portos, e as

nações que têm necessidade de coisas produzidas fora ver-se-iamgrandementeatrapalhadas.SeosvaporesnãopudessementraremSantos,porexemplo, SãoPaulo ficaria sempodervender forao seu café, as suaslaranjas,oseualgodão—eigualmentenãopoderiareceberasmáquinasemaiscoisas, indispensáveisànossavida,quenosvêmdoexterior.Agora,umacoisainteressante.Aenxadateveumfilhoquevocêsnãosãocapazesdeimaginar.

—?—Oescafandro,esseaparelhodentrodoqualohomemdescedentro

d'água.—Como,vovó?Issomeestácheirandoaabsurdo...—Poisnãoé.As invençõessaemumasdedentrodasoutras,àsvezes

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diretamente,àsvezesindiretamente.AEnxadateveaquelafilhaDraga,dequemjáfalei,eDonaDragateveofilhoEscafandro.Logo,oEscafandroéonetodaEnxada.

—Como?—Nostrabalhosdedragagemdosportosencontravam-semuitasvezes

nofundodaáguarochasqueimpediamotrabalhodasdragas.Atrapalhadocomaquilo,ohomemtevedeinventarummeiodedescerlápararebentá-las.Dessanecessidadenasceuo escafandro.Éumvestuário impermeávelquepermiteaohomemdesceraofundod'águasemmolhar-se,nemmorrerafogado;arespiraçãosefazporumtuboqueligaovestuárioàsuperfície,permitindoqueoaralcanceonarizdoescafandrista,istoé,dohomemquedescedentrodotalvestuárioimpermeável.

No começo esse tubo era de cobre, imaginem! Depois fizeram-no decouro; hoje é feito de borracha. Dentro do escafandro o homem podedesceratécertaprofundidadeetrabalharnofundocompicaretas,ouoqueseja,destruindoosrochedosqueatrapalhamasdragas.

—Mascomofazadragapararecolherolododosfundos?— A draga é um maquinismo que move uma corrente armada de

grandescanecos.Nasmáquinasdebeneficiarcafévocêsvêemisso:aquelascorreias com canecos de distância em distância, que mergulham nasmoegasondeestáocaféemcôcoesobemcheias;quandochegamemcima,giramsobreumarodaedespejamocafédoscanecosnumabicainclinadaque o leva ao descascador. A draga está baseada nesse princípio. Oscanecõesdescemaofundo, fazemumavoltanolodo,enchem-seesobem;quandodãoasegundavolta,emcima,despejamolodonosreservatórios.

—Compreendo—dissePedrinho,quegostavamuitodevertrabalharamáquinadebeneficiarcafédoCoronelTeodorico.—Éumacorreiasemfimarmadadecanecosgrandes—sóisso.

—Masnãosãoosescafandrostambémusadosparapescarostras?—perguntouamenina.

—Sim.Usam-nospara todosos trabalhosno fundodomar.Asostrasportadoras de pérolas ainda são em muitos lugares apanhadas pormergulhadores. Mas um mergulhador, coitado, não pode ficar debaixod'água senão muito pouco tempo. Um minuto, um minuto e meio nomáximo. Dentro do escafandro, porém, um homem poderá ficar horasdentrod'água.

— Está aí uma coisa que eu queria ter — disse Pedrinho. — Umescafandro! Deve ser interessantíssimo andar num fundo d'água. Quantacoisaesquisita!Enofundodomar,então?Quemaravilha!...

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—Infelizmenteapressãodaáguavaicrescendocomasprofundidades,demodoqueosescafandristas,mesmonosaparelhosmaisaperfeiçoados,aindanãoconseguiramdesceramaisdeduzentosmetrosdefundo.Mesmoassimjádáparaverefazermuitacoisa.

Mas estou fugindo ao meu assunto de hoje. O assunto é a mão, e amultiplicação do poder das mãos por meio das invenções. Entre essasinvençõesaumentadorasdopoderdasmãos.houveumatremenda,talvezamaiorqueohomemfez—aalavanca.

—Como, vovó?— exclamou Pedrinho admirado.—A alavanca, umacoisatãosimples...

— Por simples que seja, suas conseqüências foram tremendas. Aalavanca permitiu a construção de todas as máquinas, porque o quechamamosmáquinanãopassadumaaplicaçãodaalavanca.

Meus filhos, todas asmodificações que o homem fez na superfície daTerra, os canais, as pirâmides, osmonumentos de toda espécie, as casasenormes de pedra ou cimento armado, as estradas de ferro, os naviosgigantescos, nadadisso seria possível semousoda alavanca.Que é umaalavanca? Em princípio não passa duma barra, rígida, de certa extensão.Uma barra de borracha não é alavanca, porque não é rígida— verga. Aalavanca não verga. Numa das extremidades o homem aplica a força dobraço;aoutraextremidadeelecolocadebaixodopesoquequer levantar;hádepoisumpontodeapoioondeeleencostaabarra.Essepontodeapoio,quantomaislongeestádaextremidadequeobraçosegura,melhor.

—Porquê?—Porquequantomais longeestiverdobraço,maismultiplicaa força

dobraço.Experimente.Pedrinhofoibuscarumsarrafodeperobaeveiofazeraexperiênciana

sala.Colocouapontadosarrafodebaixodoarmárioecomumapedrafezopontodeapoio.Enotouquecommuitopoucapressãonaoutrapontadosarrafoeleerguiaaquelearmáriopesadíssimo.Notoutambémquequantomais perto do armário estivesse a pedra,menos pressão precisava fazerparaerguê-lo.

—Émesmo!—gritou.—Estearmário,quenaquelediaforamprecisosdois camaradaspeitudosparamovê-lo, eu agora comuma forcinha à-toaerguidequasemeiopalmo.

—Eporumtrizquenãomedespencaapilhadospratos—disseDonaBenta mandando parar com a experiência. — Pois está aí a grandeinvenção.Comaalavancaohomemaprendeuamultiplicartremendamentea força do braço— e foi essa multiplicação que lhe permitiu erguer as

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pedrasenormescomquelevantouaspirâmidesdoEgito,eescavaroCanaldo Panamá, e construir tudo quanto há de grande nomundo. Não existemáquinanenhumaquenãosejabaseadanoprincípiodaalavanca—eéporissoqueasmáquinastêmtantaforça.

—Então, quandomeperguntaremo que émáquina posso responderqueé...queé...

—Respondaqueéumaaplicaçãodaalavanca—eoperguntanteficaráentupido.

Outrainvençãotambémdegrandevalorfoiacordadelevantarpesos,dondesaíramosmodernosguindastes. Sevocêamarraumacordaaumagrande pedra e faz a corda passar por uma roldana atada a uma certaaltura, puxando a ponta da corda pode fazer a pedra subir até junto daroldana. Essa invenção permitiumil coisas, como é fácil de imaginar. Osnaviossãocarregadosedescarregadosassim,comacordaquegirasobrearoldana,oucomosguindastespoderosíssimosquenasceramdessacordacomroldana.Naíndiaosinglesesmetemelefantesabordodosnaviospormeiodosguindastes.Passam-lhessoboventreumasbarrigueirasdecorda.O guindaste segura-as e lá ergue os imensos elefantes, depondo-os noconvés dos navios. Para desembarcá-los, amesma coisa. Até locomotivassãopostasoutiradasdosnaviosassim.

Eu falei na roldana;mas que é a roldana senão uma roda? Foi outragrande invenção, a roda, sobre a qual temos que conversar. Não hoje. Orelógio jábateunovehoraseNarizinhoestá"pescando".Olhemojeitinhodela...

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V–MAISMÃO

— Ontem vimos — continuou Dona Benta — várias invenções que

aumentamopoderdamãodohomem.Falamosdadraga,engenhosomeiodelevaramãodohomemaofundodaságuas.Falamosdoguindaste,meiodedaràmãoforçacapazdeergueratélocomotivas.Vimosasarmas,meiosdefazerasmãosalcançaremoinimigoouacaçaaolonge.Hojevamosveroutras maravilhas que saíram do precioso membro desenvolvido naextremidadedobraçodohomem.

— Realmente, vovó — disse Pedrinho. — Esta noite perdi o sono eestive pensando em váriasmãozices. Quando a gente quer apanhar umalaranjaládoalto,pegadumavaraeaumentaoalcancedamão.Paratomarbanho, para cocar as costas, para arrancar espinhos, para fazer umdesenho.

—Paratirarourodonariz—acrescentouEmília.—...paratudo,tudo,tudo,éamão.Realmenteamãoéamaravilhadas

maravilhas—concluiuomenino,lançandoumolharterrívelàboneca.

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—Eaindahámaiscoisasquesaíramdasmãos—disseDonaBenta.—Pensemnisto:quandovocêsquerembeberáguadumafonte,quefazem?

—Apanhamosaáguanacovadamão.—Esequeremjuntarareiaoutirarumbocadodearrozdosaco?—Amesmacoisa.Juntamosasduasmãosemcuiaepronto—podemos

tirarumamãozadaquevalemeiolitro.— Perfeitamente. A idéia da vasilha de guardar coisas sólidas ou

líquidas veio desse emprego das mãos em forma de cuia, ou dessasmãozadas, como diz Pedrinho. O homem começou tirando coisas com amãoe guardando-asnamão.Mas esse guardar era temporário, porque amãonãopodiaficarparadatodaavidacomascoisasdentro.Veioentãoaidéia de fazer mãos artificiais em forma de cuia— e surgiram todas asvasilhasdeguardarcoisas—pratos,bacias,peneiras,gamelas,panelas;edepois, caixas, gavetas, malas, canastras, armários, etc. Estamos de talmodo acostumados às vasilhasquenão lhesprestamos amenor atenção,emborasemelasfosseimpossívelvivermosnestemundo.Hánecessidadedeguardarcoisasparaodiadeamanhã,eondeguardarsenãoemvasilhas?Imaginemumacasasemvasilhas.Nãopoderíamos tiraro leitedasvacas,pornãotermosondepô-lo.Nãopodíamosteráguadebeberoudelavagem,pelamesmarazão.Nãopodíamosnada.Sóovasilhame,cujavariedadenãotemfim,équetornapossívelanossavida.Nãohápovoselvagem,pormaisprimitivo que seja, que não use vasilhas. Ora, a vasilha não passa daevoluçãodamãoemformadecuia...

—Estáaíumacoisaqueeununcaseriacapazdeimaginar—observouNarizinho,olhandoparaassuasmãospostasemformadecuia.

—Nemécapazde imaginarqual foiaprimeiravasilhaqueohomemusou...

__?—Foiocrâniodosmortos.— Que horror, vovó— exclamou amenina fazendo cara de nojo.—

Comoisso?— Muito simplesmente. Durante milhares de anos os mortos eram

deixadossobreasuperfíciedaterra,comosucedecomosanimais.Sendoohábito de enterrar os mortos relativamente recente, a abundância deesqueletos espalhados pela superfície da terra foi se tornando cada vezmaior. Ora, cada crânio era uma vasilha natural de primeira ordem, jáprontinhaefeitadumasubstânciadegrandeduração.Aidéiadeaproveitá-losveiologo—enascavernasecabanasdostemposprimitivospassaramaabundar crânios, como hoje em nossas casas abundam xícaras, copos e

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latas. Tornou-se comum esse hábito a ponto de entrar nas religiões donortedaEuropa;osdeusesnórdicosusavamoscrâniosdosinimigoscomotaçasparavinho.Mataruminimigoparafazerdoseucrânioumataçavirouaambiçãodetodososjovensguerreiros.

—Queporcaria!—exclamouamenina.—Essesentimentoderepugnânciaquevocêdemonstra,minhafilha,é

moderno.Paranossosantepassados,nadamaisnatural.Quantameninadonarizarrebitadodaquelaépocanãotomouseuleiteemcrânios,semfazeramenorcareta?

—Edepoisdoscrânios?— A suposição dos sábios é que depois do crânio os homens

começaram a usar cestos, isto é, vasilhas feitas com as varas flexíveis decertasplantas.Comoovimefosseabundantenasmargensdosrioselagos,houveumgêniopeludoqueumdia,pelaprimeiravez,teceucomeleumadesajeitadíssima cesta. E nasceu a arte do cesteiro, porque quem faz umcestofazumcento,dizoditado.Oprogressofoigrande.Usandoovime,ohomempodiatervasilhasmuitomaioresqueoscrânios,edoformatoquequisesse.

Depoisocestocomeçouaevoluir.Outrogênioteveaidéiadeforrá-lodecouro—enasceu,entreoutrascoisas,obotedecouro.Fazendoaarmaçãodevimeerevestindo-a,tornavamosbotesimpermeáveis.Tambémtiveramaidéiadetecercomvimeescudosqueosdefendessemdaspedraseflechasdosinimigos.Umescudodevimebemforradodecouroeradefesademuitovalor—etanto,quepersistiuatéàdescobertadapólvora.Sódesapareceudepoisqueasarmasdefogovieramtorná-lointeiramenteinútil.

Outramodificação importantíssima introduzidanos cestos foi revesti-los por dentro com uma camada de barro. Ficavam próprios paramuitomaisempregosqueoscestossimples,cheiosdevãos.Masnãoserviamparaguardar líquidos — o líquido derretia o barro. O acaso veio resolver oproblema.Oacasotemsidoopaidetantasinvençõesqueseeufossedonadomundomandavaerguer-lheummonumento.

Certodiaincendiou-seumacabanaondehaviavárioscestosrevestidosde barro. Quando tudo ficou reduzido a cinzas, o dono veio examinar osescombros; viu que só tinham escapado à destruição os tais cestos. Mascom espanto notou que as chamas haviam devorado o vime exterior,deixando intacto o barro interno. E notou também que esse barro haviamudado.Estavadurocomopedra,nãosederretendocomaágua.

Foimaravilhosaadescoberta.Ohomemaprendeuqueobarrocozidoaofogomudadepropriedades.Torna-seduríssimoeimpermeável.Eassim

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nasceuacerâmica.—Semprepenseiquecerâmicafosseaartedacera—dissePedrinho.—Não. Em grego, a argila ou barro temo nomedekeramos; é desta

palavraquevemapalavracerâmica.Comoaparecimentodacerâmicaoscestos perderam metade da importância. Ficaram apenas para guardarcoisas secas; para guardar coisas líquidas entrou em cena a vasilha debarrocozido.

—Ecomosefazemasvasilhasdebarro?—No começo o homem amassava a argila e ajeitava-a com asmãos.

Depoisveioaidéiadecolocarabolotadeargilaamassadasobreumdiscohorizontal. Dando-semovimento giratório ao disco, a bola de barro virasobre si mesma e torna-se então facílimo fazer uma vasilha bemredondinha e do formato que se deseja. Os nossos utensílios de barro,moringas,potes,panelas,pichorras,alguidareseomaissãoatéhojefeitosassim.Nocomeçoohomemgiravacomamãoesquerdaodisco,enquantocomadireitaiaconformandoaargila.Depoisintroduziuumanovidadequeaindaperdura:virararodacomopé,nummovimentodebalança,comoodopedal dasmáquinasde costura; dessemodo ficava comasduasmãoslivresparaotrabalhodamodelagem.

Depois de modeladas, as vasilhas são postas a cozer num fogo bemforte. Ficam endurecidas e impermeáveis. Mas não bem impermeáveis.Muitolentamenteaáguavaiatravessandoosporosdobarro.Umainvençãosurgiu para suprimir esse inconveniente: o vidramento. Reparem que asnossaspanelassãovidradaspordentro.

Eusuponhoqueoprimeiropoteiro,otaldescobridorcasualdaartedecozer a argila, quando tratou de reproduzir novamente o fenômeno fezoutracabana,encheu-adevasilhasdevimeebarro,edeitou fogoa tudo.Haviadeimaginarqueparaconseguiraqueleefeitoeranecessáriorepetirascoisasexatinhocomodaprimeiravez...

—Queasno!—exclamouamenina.— Não, minha filha. Esse termo não se aplica a um dos maiores

inventoresqueexistiram,emborasuainvençãofosseobradoacaso,comotantas.Océrebrodaquelesnossosavósnãotinhaasqualidadesdonosso,enada mais lógico que desejando reproduzir um mesmo fenômenorepetissem fielmente todas as condições anteriores. Talvez fosse umsegundo gênio quem descobriu não ser necessário queimar uma cabanapara cozer as cestasdebarro.Tudo se fazpasso apasso, no caminhodoprogresso.

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Mas a arte da cerâmica desenvolveu-se grandemente em vista dos

serviços que as vasilhas de barro prestavam. Os chineses ergueram-na aumestupendograudeperfeição.Descobriramnovosbarrosdegrãmuitofina,comoocaulim,ecriaramaartemaravilhosadasporcelanas.Emvezdevasossimples,ornavam-noscomdesenhos,tornando-seinexcedíveisnisso.Todos os grandes museus do mundo possuem uma sala destinadaunicamenteàsporcelanaschinesas—eosvisitantessãoobrigadosanelase demorarem mais que em muitas outras, tais as maravilhas que têmdiantedosolhos.

Os fenícios, aquele povo de mercadores que viveu nas costas doMediterrâneo, foram os exploradores dos produtos cerâmicos. Não sededicavamàartedefazervasilhas,masmobilizavamasvasilhasqueoutrospovosmodelavam.Compravam-nasdosoleirospararevendê-laspor todaparte,demodoqueembrevenãohouvecasa,dequalquerpaís,emqueovasilhamenãofossedeargila.

Veiodepoisovidro,outragrandeinvenção,oumelhor,umadescobertafeitaigualmenteporacaso.DizemoscronistasgregoseromanosqueoseuautorfoiummercadorfenícioqueatravessavaodesertodaSíria.Havendo

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acampadoemcertoponto,fezfogoparaprepararojantar.Masfezfogonaareia, em cimadunsblocosdepedra, ouduma substância esbranquiçadaqueele julgou serpedraenãopassavadeblocosdepotassaou soda.Aolevantar acampamento na manhã seguinte, com assombro verificou queentre as cinzas brilhava uma substância desconhecida, dura, quebradiça,transparente.Eraovidro!

—Entãovidroépotassaderretida?— O vidro é uma substância amorfa, isto é, sem forma definida, que

resulta do derretimento da areia misturada com potassa ou soda e umpouco de cal. Tem a propriedade, enquanto está muito quente, de sermoldável,istoé,detomaraformaqueagentelhequerdar.Demodoquecomovidroaindaemestadopastosopodemosfazerobjetosevasilhasdemil formatosdiferentes.Esoprandoporumcanudinhodentrodumaboladessamassa, a bola estufa, ficando oca por dentro. Assim fabricamos asgarrafasegarrafões.

—Queengraçado!—Poisovidrofoiumsucessotremendo.Otalmercadorlevouconsigoa

maravilhosa substância achada nas cinzas e vendeu-a aos pedacinhos,como pedras preciosas. Nasceu daí a indústria das contas de vidro, queduraatéhoje.Nãohánaroçacaboclafaceiraquenãotenhaaopescoçoumcolardecontas,oumiçangas,comosediz.

AFeníciaeravizinhadoEgito,demodoqueaartedovidrologoinvadiuo Egito, onde muito se aperfeiçoou. Os fabricantes não tinham mãos amedir no fabrico de colares, pulseiras e berloques de todos os tipos. EmRomaovidrofezfuror.Oluxodaépocapassouaserousodovasilhamedevidroemvezdebarro.Ovasilhamedebarroficouparaospobres.Oricosóusavaovidro.Vieramaperfeiçoamentos.Foiintroduzidaacor.Artistasdetalento inventaram formas harmoniosas— e com isso a vida humana seembelezou. Mais tarde, na República de Veneza, a arte do vidro atingiugrandeperfeição.Nãohámuseuquenãomostrecomorgulhoos famososvidrosdeVeneza.

E tudo vinha damão! Arte de tecer vimes, arte de cerâmica, arte dovidro—tudoaperfeiçoamentosdamãoemformadecuia!Masamãonãoserveapenasparaguardar.Servetambémparatirarcoisasdumlugarepôrnoutro—etambémsurgiramaperfeiçoamentosmaravilhososdamãoquetiradaquiepõeali.

Vieram as "cegonhas", ou máquinas de tirar água dos poços para oserviço da casa ou da irrigação das terras. Inúmeros campos imprópriospara a agricultura, pormuito secos, foram aproveitados. Irrigando-os, os

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homenstornavam-nosótimos—eparairrigá-loshaviaascegonhas.Queécegonha?Éodesenvolvimentodamãoquecolheáguanumafonte.

Depois vieram as bicas e aquedutos, por meio dos quais os homenspassaram a conduzir água dum ponto para outro. Isso foi de grandevantagem para as cidades, pois lhes permitia ter água pura para beber,trazidadasmontanhas.Antesdelesoshomenstinhamdetrazeraáguaemvasilhas. Entre nós, na roça, e mesmo nos bairros pobres das cidadespequenas,aindaháousodecarregaráguaempotesoulatasdequerosene.Porissotodasasvelhascidadespossuemchafarizespúblicos.

Outroaperfeiçoamentodamão,ououtrasinvençõesparasubstituí-las,sabemquais foram?As tarameias,as fechaduras,as trancasdeportaeostrincos.

—Comoisso,vovó?Nãoestouentendendo...—Penseumpouco.Depoisqueohomemaprendeuatercabana,surgiu

um problema. Na cabana ele guardava suas coisas — coisas semprecobiçadas pelos vizinhos. Era preciso fechar a porta de modo que osvizinhos não entrassem quando ele estivesse fora. Para fechar a portautilizava-sedamão,eparamantê-lafechadatinhadeficarcomamãoali,encostando-a.Masseassimprocedesseteriadepermanecer feitoestátua,presodentrodecasa.Quefazer?Anecessidadepõeocérebroacaminho.Ohomempensou,pensoueinventouosfechosdeporta.Primeiro,osfechosinternos — taramelas, trancas e trincos. Depois, o fecho externo — afechaduradechave.Deuumjeitode,doladodefora,moverastrancasdedentro—eláseiacomachavenobolso.

Hoje as fechaduras, apesar de aperfeiçoadíssimas, seguem o mesmoprincípio. É uma trancazinha de ferro que a gente fazmover de fora pormeiodachave.Antigamenteaschaveseramenormes.Pareciammartelos.Hoje sãominúsculas e chatinhas.Umhomempode sair levandonobolsotodasaschavesdacasa.Umquequisessefazerissoantigamenteprecisavaalugarumcarrinho. . .Emcasadomeuavô, lembro-medeumaque teriapalmoemeiodecomprimentoepesariaumquilo...Queéumachave?

— Eu sei, vovó! — gritou Pedrinho, tapando a boca da menina quetambémqueriafalar.—Éumdedomecânicoqueentraporumburacoevaimoverumferrolholádentro.

—Estácerto.Comoodedonaturaldohomemnãopodiafazerisso,eleinventouesseprolongamento,oudesenvolvimentododedo,graçasaoqualmantémsuacasalivredavisitadosamigosdoalheio.Quemquiserentraremcasafechadatemdearrombaraporta,oqueédifícileperigoso.

Emil coisasmais saíramdasmãos. Coisas boas emás, porque amão

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nãotemcoração.Éumaescravazinhaqueobedece.Fazoquemandam.Daías coisas inventadas para pô-la a serviço domal. Os ladrões inventaramgazuas e pés-de-cabra. Os guerreiros matadores de gente inventaramarmas,istoé,meiosdedarumterrívelpoderofensivoàssuasmãos—asfacas de ponta, os punhais, as lanças, as baionetas, as espadas. Pormeiodessas invenções a mão do homem tem suprimido milhões de vidashumanasnasguerras.Enapazosassassinostêmsuprimidomilhares.

E há as invenções para apanhar animais destinados à alimentação.Anzóisdepescarpeixes,fisgas,arpõesdeespetarbaleias.Redesdepesca,armadilhas,ratoeiras...

—Redesdepesca,vovó?—Sim.Queéumaredesenãoamãodohomemsobformademalhaque

coa a água para apanhar os peixes? Se numa água rasinha e empoçadaqueremos apanhar os guarus ali presos, a primeira idéia que nos vem écorreramãopelapoça,comosdedoslevementeentreabertosdemodoqueaáguaseescoeeospeixinhos fiquem.Poisarededepescanãopassadodesenvolvimentodesseartifício.

A ratoeira,queé senãoamãoque ficaengatilhadaatéqueobobodoratinhoseponhaaoalcancedela,atraídopelaisca?Derepente,nhocamãofecha-se e o ratinho está preso. Reproduza esse artifício numamaquinazinhafeitadearameeeisaratoeira—etodasasmaisarmadilhas.

O laçode laçarcavaloseboisbravos,queésenãoamãoprojetadaaolongepormeiodumacorda?Umadasfaculdadesdamãoéagarrar.Olaçoagarra. E amão agarra para dois fins: para simplesmente pegar ou paraestrangular. A mão que agarra uma galinha pelo pescoço, um coelho ouqualquer outro animal e o estrangula, também teve larga aplicação paraestrangularcriaturashumanas.Aforcanãopassadisso.Aforcaéamãodecordaqueagarraumpobre-diabopelopescoçoeodependuranoespaçoatéqueavidaoabandone.

— Que horror a forca, vovó! — exclamou a menina, que nem podiaouviressapalavra.

—Realmente. E no entanto até hoje, em países dosmais adiantados,essecruelmeiodedarmorteàscriaturasaindasubsiste.NaAntigüidadeosromanosusavam-nomuito.Osgregos,não.Eramartistasaténesseponto.Sequeriamcondenaralguémàmorte,usavamoveneno,comofizeramcomSócrates.Muitomaisdecente.Jáosromanosusaramgrandementedaforca;e depois dos romanos, quando a Europa caiu naquele tétrico período daIdadeMédia,oshomensinventarammeiosdematarcemvezesmaiscruéis.InventaramossuplíciosdaInquisiçãoedaJustiçaPública,coisaqueainda

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arrepiaagente.Acrueldadechegouatalpontoqueaforcafoireabilitada.Só eram enforcadas as pessoas importantes, dignas de consideração. Osoutros...

—Pare,vovó—gritouamenina.—Nãotoquenissoquemefazmal...DonaBentamudoudeassunto.Passouafalardasarmasdearremesso.

Contou das máquinas que projetavam grandes pedras contra o inimigo.Faloudoarco.

—Está aqui uma invençãonotável—disse ela.—No arco o homemaproveita a força que vem da elasticidade de certas madeiras. Se vocêencurvaumavara,elatendeavoltaràposiçãoprimitivalogoquedeixadeser contrariada.Oaproveitamentodessaelasticidadepermitiuaohomemarrojar projéteis a grande distância. O arco devia ter começado comobodoque, istoé, como lançadordepedras.Depoisohomemverificouquelançando pedras a pontaria não era segura, e inventou a flecha, que lhepermitemelhor pontaria. Certas tribos selvagens ficaram amestradas nolançamento de flechas a ponto de os seus atiradores rivalizarem com osnossosmodernosmestresdacarabina.

O homem sempre viveu em guerra, de modo que as invenções paramelhorara"mãoquemata"foraminúmeras.Massemprequeapareciaumainvençãonovasurgiatambémumnovomeiodedefesa.Vocêlançaflechas,nãoé?Poisvouarmar-medeumescudo.Écomohojealutaentreocanhãoeacouraçadosnavios.Quantomaiscresceopoderofensivodoscanhões,maiscresceopoderdefensivodascouraças.

Por muitos milhares de anos o único meio que o homem tinha dearremessar coisas contra o inimigo foi amultiplicação da força dos seusmúsculos.Comoarcoelesomavaaforçadosmúsculoscomaelasticidadeda madeira e lançava uma flecha a duzentos metros de distância, coisaimpossívelcomosmúsculosapenas.Maserapouco.Tornava-senecessárioinventaruma forçamaiorquea elasticidadedamadeira, e essa invençãoveioerevolucionouomundo:apólvora.

OschinesesedepoisumfradealemãodenomeSchwartz,ouquemquerqueseja,observouqueamisturadoenxofre,docarvãomoídoedosalitretinha a propriedade de explodir com grande violência. Quer dizer quequando se punha fogo a essamistura ocorria uma reação química que atransformavasubitamenteemgás.

—Como?—Sim.Desubstânciasólidaqueé,amisturapassasubitamenteàforma

de gás. A rapidez dessa passagem dum estado para outro lança o gásviolentamenteemtodasasdireções.Ora,seagentefecharaexplosãonum

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canudodemodoqueogássópossasairporumadasextremidades,aforçadele se canalizará numa certa direção e com enorme violência. E sepusermosum corpo sólido tapando a extremidadedo canudo, a força dogásfaráqueessecorposejaexpulsodalicomgrandevelocidade,para lheabrircaminho.Essecorposólidoéabala.Demodoquenasarmasdefogooquelançaabalanãomaiséaelasticidadedamadeira,comonoarco,esimafúriadogásquequerfugirdedentrodocanudo.

Pronto!O homemhavia inventado a armademaior poder destruidorpossível. Surgiu a espingarda, a carabina, o morteiro, o canhão, ametralhadora. O canhão é uma carabina de canomuito grosso, que atirabalas enormes. Apenas um aumento da carabina. A metralhadora é amesma carabina com maior velocidade de tiros. Em vez de a mão dohomem carregá-la com pólvora e bala para cada tiro, os tiros já vêmarrumadinhosdentrodoscartuchos,eoscartuchosvêmenfileiradosnumafita,àscentenas.Afitaencartuchadacorrepordentrodummecanismo,queoutra coisa não faz senão ir explodindo aqueles cartuchos com a maiorrapidez,umatrásdooutro.

Depoisvieramasarmasmodernasdoaredomar.Veiootorpedo,emque o explosivo está acondicionado dentro dum charuto de ferro quecaminhanaáguamovidoporummaquinismo.Apontam-noesoltam-noemdireçãodonavioinimigoeelelávaicaminhandoporsimesmoatébaternoalvo.Explode,então,abrindoenormerombonocascodopobrenavio.

E vieram as bombas dos aviões, que são torpedos verticais, semmecanismos propulsores. A força que os leva contra o alvo é o própriopeso,ouaforçadagravidade.

Mas chega de armas de guerra. Amanhã continuaremos a passar emrevistaasoutrasinvençõescomqueohomemaumentouopoderdasmãos—masinvençõesbenéficas,construtivas,enãohorrendamentedestruidorascomoasarmasdeguerra.

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VI–AINDAAMÃO

—Tiveumsonhohorrível—dissenodiaseguinteNarizinho,logoque

todossereuniramemredordeDonaBenta.—Sonheicomumainfinidadedeforcascomcadáverespendurados,queoventobalançava...

—Eeu sonhei comTamerlão, aquele terrível conquistador tártaro—ajuntouPedrinho.

DonaBentariu-se.—Você,minhafilha,sonhoucomajustiçahumana,ePedrinhosonhou

comoheróina formaemque ahumanidademais o venera e admira.Oscadáveres pendurados das forcas eram de pobres degenerados que peloimpulso irresistível da sua degenerescência furtaram ou mataram. Setivessemsaqueadoumpaísinteiro,ematadomilhõesdecriaturas,emvezde estarem nas forcas estariam na glória, babosamente admirados pelomundo.

Masdeixemosdeladoasfilosofiastristes.Continuemosaveroquetemsaído damãodo homem. Já observei que umadas primeiras artes que a

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mão aprendeu foi esmagar coisas com o auxílio de pedras. Pois distovieramgrandesdesenvolvimentos.

Avidadobichohomemnaqueles temposeramuito incerta.O fatodeviverdacaçapunha-onadependênciadosanimaisexistentesnumacertazona. Se os animais escasseavam, sobrevinha a fome e muitos homensmorriam.Daíohábitodonomadismo,istoé,deandaremsempremudandodezonas.Mudavamdezonaarrastadospelanecessidadedeencontrarcaçafácil.Masaquelemuda-mudatinhagravesinconvenientes;ospeludosnãosóesbarravammuitasvezescominimigosnovos,comoaindanãopodiampossuirnada,cabanas,utensílios,comodidades.Nasmudançassólevavamoestritamente indispensável,abandonandomuitacoisa jáproduzidapelotrabalho.Ah!seencontrassemummeiodealimentaçãoquesubstituísseacaça!...

Entre as plantas eles já haviam descoberto várias que produziamsementesalimentícias.Isso,porém,nãobastava.Assementesvinhamumavezporanoesónos lugaresondetaisplantascresciamà leidanatureza.Um peludo — talvez uma mulher — teve a lembrança de enterrar umpunhadodessesgrãos—eaagriculturasurgiu.Agriculturaéisso:plantarnum certo ponto certas plantas. O novo sistema veio melhorargrandemente as condições de vida dos peludos. Colhiam grãos emabundânciaeguardavam-nos.Quandoacaçasetornavarara, jánãoeramobrigadosamorrerdefomeouemigrar.

Mas os grãos vegetais colhidos eramduros. Se o quebrassempodiamcomê-locommaiorfacilidade—ecomeçouamodadequebrarosgrãosempedacinhos. Para isso colocavam os grãos sobre uma pedra e batiam emcimacomoutra.

—Deviaespirrargrãosdetodososlados!—observouomenino.—Sim,esemelhante inconveniente levouohomemaescolherpedras

côncavas;eparabaterogrãoescolheupedrasconvexas.Nasceudaíopilão—essagrandecoisa,poisfoiinventoquecontribuiumuitoparamelhoraras condições de vida dos peludos. Só tinha dois defeitos: exigir enormeesforçofísicoeserdefracorendimento.Imagineatrabalheiraparapilarosgrãos necessários aos estômagos de toda uma tribo!As pobresmulheres(porquetodotrabalhobrutoerafeitoporelas)deviamnessetempolevarodiainteiropilando,pilando,pilando.

Anecessidadepõealebreacaminho.Umadasmulhereslembrou-sedeesmagar os grãos entre duas pedras chatas, girando uma sobre outra. Oesforçoexigidoeramenoreorendimentomaior.Dessaidéiagenialnasceuomoinhoqueaindahojeusamos.

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—Masosmoinhosdehojesãomovidosaágua—advertiuomenino.—Perfeitamente.Podemsermovidospormeiodaágua,daeletricidade,

doventooudosanimais.Oprincípio,entretanto,éomesmo.Sempreduaspedras planas entre as quais os grãos se trituram. No começo erammovidasexclusivamenteàforçadebraços.Aindanotempodosromanosamodaconsistiaemescravizarhomensnaguerraparapô-losodia inteiromovendo as pedras dos moinhos. Por fim, mesmo lá entre os romanos,nasceuaidéiadeaproveitaraforçadaáguaparasubstituiromúsculodosescravos.

Esse imenso progresso permitiu que omoinho de água se espalhassepelo mundo inteiro. Possuía um defeito: só ser possível nas terrasmontanhosas, onde as águas têm sempre queda.Nas planícies não podiaserusado.Comofazer?Surgiuaidéiadeaproveitaroutraforçadanatureza—ovento.Eomoinhodeventoapareceu.

—AquelequeDomQuixotetomouporumgigante?— Esse mesmo. Armado de grandes asas, como as ventoinhas,

trabalhavade graça, silenciosamente, semprequehavia vento, prestandoserviçosinestimáveis.Omoinhodeágua,entretanto,éopreferido,porquenão falhanunca,nãopára.Odeventoestá sujeitoaparadas,porocasiãodascalmarias.

—Masaáguatambémpára—observouPedrinho.—NoCearáaáguaacabaduranteassecas.

—Em alguns pontos domundo isso acontece.Mas no geral as águascorrem sempre, sempre, sempre. Commaior volumena estação chuvosa,commenorvolumeduranteoinverno—mascorremsempre.

HojeéaHolandaopaísquemaisaproveitaaforçadovento.Aquilolánão passa duma planura chata como mesa de bilhar, sem florestas queproduzam lenha, semquedas-d'água que produzam força, sem carvão oupetróleo. A única fonte de energia natural é o vento— e os holandesessouberamaproveitá-lamaravilhosamente.NãohávistadaHolandaemquenão apareçamos seus famososmoinhos de grandes asas. Empregam-nospara tudo—para serrarmadeira, paramoer trigo,paradescascar arroz,paraproduzireletricidade,para irrigaras terrasdecultura,paraesvaziardiques.

Por muito tempo as duas fontes de energia mecânica que o homemencontrou,capazesdesubstituiraenergiadosmúsculos,foramaáguaeovento.Ovento,comodefeitodairregularidade—oramaisforte,oramaisfraco, ora nenhum. A água, com o defeito de estar localizada num certoponto. Eu, por exemplo, tenho aqui ótimas águas para mover quantas

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máquinas queira; já o compadre Teodorico vive se queixando de faltad'água. Era preciso aparecer uma nova fonte de energia sem essesinconvenientes—eapareceuocarvão-de-pedra.

—Porquedizemcarvão-de-pedra?Édepedramesmo?—Não. Apenasmadeira fóssil, isto é, que ficou soterrada pormuitos

milhões de anos. Dizemos de pedra porque tem a aparência da pedra, etambém para distingui-lo do carvão de madeira. Em muitos pontos dogloboessecarvãomostrava-seemveiosàflordaterra.Osromanosderam-lheonomedecarbo,dondevieramaspalavrascarbonoecarvão.Osgregoschamavam-lheanthrax, donde veio a palavra antracite, que designa umaqualidadedecarvão.OsantigospovosdocentrodaEuropachamavam-lhekol,dondesurgiuapalavrainglesacoal,queécomoláchamamaocarvão.

—Masporqueocarvãoproduzenergia?—Espere.HouvetempoemqueemmuitaszonasdaTerraaquantidade

de árvores era imensa, por causa da muita umidade do clima. Isso hámilhões de anos. Depois, nos grandes terremotos que houve, imensasflorestasforamsoterradaseamadeirasetransformounotalcarvãofóssil.Para queimar, os gregos e romanos aproveitaram o carvão encontrado àflordaterra.Erapouco.Foiacabando.Começou-seentãoaescavarochãopara extrair o que estava mais profundo. Sobretudo na Inglaterra, cujosubsoloera todoeleum imensoblocodecarvão.Masquandoosburacoschegavamacertaprofundidade...

—Jásei—dissePedrinho.—Apareciaágua.Aquinosítio,umburacodecincometrosjádáágua.

—Issomesmo.Oaparecimentodeáguanasprimitivasminasdecarvãoveio atrapalhar o homem. Ele teve de inventar a bomba. A bomba é uminstrumento para elevar até a superfície a água que se acumula nosburacos.Masabombaprecisasermovida,eondeaforçaparamovertantasbombas,dia enoite?Primeirousarama forçadosmúsculosdohomemedosanimais.Ficavamuitocaro.Tãocaroqueatiradadocarvãocomeçouanãocompensar.Tornou-seprecisodescobrirforçamaisbarataparamoverasbombas.Etocaohomemaescarafuncharocérebro.

— Essa é que é a verdadeira mina, vovó — observou Narizinho. —Semprequeohomemficaatrapalhado,cavocaocérebroetiraumaidéia.

—Foioqueaconteceunocasodocarvão.Atrapalhadoscomaáguadasminas,osinglesescomeçaramaestudar.Leramnahistóriaqueosantigosda cidade de Alexandria tinham inventado uma máquina de fogo quetrabalhava melhor que os escravos. Mas com a destruição do ImpérioRomano essamáquina se perdeu. Ninguém sabia como era, nem em que

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princípiosebaseava.Sósabiamquefora inventada.Privadosdequalquerinformação,tornou-senecessárioinventá-ladenovo.

Aqui entram em cena duas forças contrárias. Dum lado, a inércia da

grande maioria dos homens, que são como as árvores, os peixes, osanimaizinhoscaseiros.Nãoqueremmudanças,têmmedodasnovidadesecombatem-nas, chamando loucos aos que pensam demodo contrário. Sesemprevencesse a idéiadessagente inerte, omundo jamaismudaria emcoisa nenhuma. Do outro lado estão os pioneiros, isto é, os homens deidéias,amigosdasnovidades,osqueinventam,osquecriamcoisasnovas.Opioneiroésemprecombatidopelacarneiradainerte,difamado,insultado,perseguido.Masquandovenceerealizaasuainvenção,acarneiradainteiracorreaaproveitar-sedela.Ospioneirosingleses,queprocuravaminventaramáquina

quesubstituísseomúsculo,aqueda-d'águaeovento,nãodescansavam.Diaenoite,pensavamnaquilo,estudando,experimentando,consumindoa

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vidanuma luta sem tréguas.Oproblema era aproveitar a forçado vapord'água.Queimandoocarvão,obtinha-secalor.Ocalorevaporavaaágua.Ovapor d'água era uma força. Como, porém, escravizar essa força? Comofazê-lamoverasrodasdumamáquina?

Entre os numerosos pioneiros empenhados nisso houve um quevenceu: James Watt. Inventou um sistema de pistões que iam e vinhammovidos pelo vapor, e nesse ir e vir movimentavam uma roda. Pronto!Estavacriadaamáquinaavaporqueiriarevolucionaromundo,libertandoo pobre músculo do homem e dos animais de certos trabalhospesadíssimos.Jáasbombasdeesgotaraáguadasminaspodiamtrabalhardia e noite a um custo baratíssimo; o calor necessário para produzir ovapor dessas bombas era produzido pelo próprio carvão das minas. Oproblemaficoumaravilhosamentebemsolucionado.

Surgiu então a grande Inglaterra, o país da máquina a vapor. Comopossuísse ferro e carvão em abundância, construiu máquinas inúmeras,para tudo— navios, locomotivas, locomóveis, tecedeiras, teares— e empoucosanostornou-searainhadosmaresedasterras.Oimensoimpériobritânico, que tem hoje mais de quinhentos milhões de habitantes, foiformado à custa do ferro e do carvão transformados em máquinas eenergia.

Mas o carvão começou logo amostrar os seus inconvenientes. Muitosujo.Borravadepretoapaisagem.Encardiaoshomens.Negrejavaascasas.Nãohánadamaistristequeumaregiãomineira,istoé,umaregiãoondeoprincipal trabalho dos homens consiste em extrair carvão do fundo daterra. Além disso, como o carvão fosse ficando cada vez mais fundo, osoperários das minas iam se degradando. Já não eram homens — eramminhocasdepernas.Suavidatornava-seumanoitepermanente.Subiamàsuperfícieànoitinhaenamanhãseguintedesciamantesderomperosol.Nãoviammaisosol.Nãotomavamsol.Começaramavirartoupeiras—eaosmilhares.

Além desses ainda havia outros inconvenientes. O carvão requeriamuito transporte e, como estivesse ficando cada vez mais fundo, ialogicamente encarecendo. E vinham greves dos mineiros, e lutas edesesperos. Era necessário inventar coisa melhor. Começaram então aapareceropetróleoeaeletricidade.

O petróleo é como um carvão líquido. O fato de ser líquido temvantagensimensas.Sobeládofundodaterraporsimesmooupormeiodasucção das bombas. Não tem que ser carregado. Depois de chegar àsuperfície, segue por dentro de canos para as refinarias, como se fosse

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água.Etemmuitomaiorvalorqueocarvão,porqueproduzmaiscalor.Eémuito mais limpo. E pode ser levado em latas para todos os pontos doglobo.Umalatadegasolina,porexemplo,queé?Éumacertaquantidadedeforçaenlatada.Remetidaparaqualquerpontodaterra,ohomemsolta-anoponto em que precisa produzir força — e ela então se transforma emenergiamecânicaparamoverosautomóveis,os tratores, asmáquinasdequalquerespécie.

—Masgasolinaépetróleo?— Não. Petróleo é o óleo bruto como sai da terra. Nas refinarias é

refinado, isto é, transformado em vários produtos demais valor, como abenzina, a gasolina, o querosene, o óleo combustível usado nosmotoresdiesel,oóleolubrificantequeserveparaengraxaroseixosdasmáquinas;em flit, que serve paramatarmosquitos; em pichee asfalto, que servempara o calçamento das ruas; e em mais trezentos produtos de menorimportância.

—Trezentos,vovó?Quecolosso!Masentãoopetróleoérealmenteumasubstânciamaravilhosa...

—- E por isso a luta entre os povosmodernos gira sempre em tornodele. Guerras tremendas já foram causadas pela disputa dos terrenospetrolíferos. A Guerra do Chaco, por exemplo, na qualmorreram setentamilhomens,nãoteveoutraorigem.

Masaoladodopetróleovaicrescendoaformaidealdeproduzirenergia—aeletricidade.Issoéqueéamaravilhadasmaravilhas.

—Comoseproduzaeletricidade?Ou,melhor,queéeletricidade?—Nãosabemos,meufilho.Éumaforçaqueandanoarequeohomem

conseguiu tornar sua escrava. Desde os tempos mais antigos já eraconhecida.AqueleTalesdeMileto,dequefalamosnaGeografia, observouque, esfregando com uma lã um pedaço de âmbar, esse âmbar ficavacarregado duma força que atraía pequenos corpos. Era a eletricidade. Oesfregamentodecertoscorpos,ouafricção,concentraessaforçanumcertoponto, tornando-a aproveitável. Era preciso inventar a máquinaesfregadora—eosábioinglêsFaradayinventouodínamo.

—Queé?—Umarodaquegirademodoaproduzirmuitafricçãoequeportanto

produzmuitaeletricidade.Paramoverodínamotemosdeusarumaforçamecânicaqualquer,aforçadovaporouaforçadaágua.Odínamooquefazétransformaressaforçamecânicaemforçaelétrica.

—Qualavantagem?—Grande.Aforçaelétricanãoéaplicadaunicamentenopontoondeé

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produzida, como a força do vapor. Pode ser enviada paramuito longe, acentenas de quilômetros. Vai por um fio de cobre, invisível, quietinha,limpinha,semsujarcoisanenhuma,semcheiro,semsabor,semnada.

—Semnada,não.Temfaíscas.Seagentemexenelademaujeito,NossaSenhora!Ficadanadinhaeespirrafogo.

—Sim,elaquerandarsempreemordem,dentrodosseusfios.Nãotemculpadequeosdesastradosairritem.Respeitando-lheasleis,fazemosdelaamaishumildeeprestimosadasescravas,tantoparamoveraslocomotivasenormescomoasnossasmáquinasde costuraebatedeirasdeovos.Mas,desrespeitando suas leis, ah, ela reage da maneira mais violenta,fulminandoascriaturas,incendiandoascasas..

NessepontoDonaBentafoiinterrompidapelaentradadeTiaNastácia.—Que é isso hoje?— resmungou a negra.—Nove emeia já e tudo

aindaacordado,aconversarbobagens...DonaBentaolhouparaorelógio.Eramdefatonoveemeia.—Vocêtemrazão.Paraacama,todos!Amanhãacabaremoscomamão

dohomem...

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VII–ÚLTIMASMÃOZADAS

NodiaseguinteDonaBentacontinuou:— Ontem, quando falei da invenção da máquina a vapor por aquele

James Watt, deixei de mencionar alguns pioneiros que já vinhamtrabalhando nela com grande ardor. Um deles foi o francês Papin, quemuito se impressionara com uma chaleira de água a ferver. A tampa dachaleiradançavaao impulsodovaporedessemodorevelavaaexistênciadeumaforçaaproveitável.OutrosforamositalianosDeliaPortaeGiovanniBranca,oMarquêsdeWorcester,eumdenomeFisk,nosEstadosUnidos.Estechegouasuicidar-sequandoviuquenãoresolviaoproblema.

As primeiras locomotivas a vapor aparecidas diante dos olhos dopúblico provocaram indignação. O povo, que ia ser tremendamentebeneficiado com aquilo, só pensou numa coisa: destruir tais "artes dodiabo",aqueleshorroresquecaminhavamporsimesmos,semaajudadosmúsculoshumanosoudaforçadosanimais.

—Interessante,vovó,comoainteligênciadoshomensédesigual.Nuns,tão grande que inventam coisas; noutros, tão pequena que se revoltam

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contraasinvenções...—Realmente,minhafilha.AdistânciaentreainteligênciadumNewton

e a dum homem comum do povo é talvezmaior que a distância entre ainteligênciadessehomemdopovoeadeumboidecarro.Daíosofrimentodoshomensdealta inteligência.Emregranãosãocompreendidos.Aindahojevemos issoacada instante.Nos jornaisaparecemartigosdepessoasque se julgam inteligentes pelo fato de serem bem-falantes e bem-escreventes, as quais culpamasmáquinasde todososmalesdos temposmodernos. Como cada máquina nova vem diminuindo o número dosoperários comuns, essas pessoas querem acabar com a máquina.Esquecem-se que se a máquina nova diminuiu um certo número deoperárioscomuns, issoapenassignificaque libertouumcertonúmerodehomensdotrabalhoqueatéentãofaziamequedeagoraemdiantepassaaserfeitopelamáquina.

Cadamáquinaqueaparecelibertadotrabalhopenosoumpunhadodeescravos. No dia em que tivermosmáquinas para tudo, e em tremendasproporções, nesse dia a humanidade inteira estará redimida do trabalho.Em vez de estafar-se no doloroso esforçomuscular, o homem passará adirigirasmáquinas,comoantigamenteos feitoresdirigiamosescravos.Eteremosentãoo13deMaiodahumanidade.

Oserviçomaispenosoqueháéodecavaraterra.Aquinosítiotenhouma turmade cincohomensquenão fazemoutra coisa;passamavidaaabrirvalos,consertarcaminhos, fazerburacosparamoirõesdecerca,etc.Trabalhoduro,estúpido,queosdeixanofimdodiaexaustosecomdordecostas.Quandoapareceramáquinaquefaçatodosessesserviços,eudeixoumdelesdirigindoamáquinaedispensoosoutros.

Os inimigos da máquina não percebem que a minha máquina veiolibertarosmeusatuaiscincoescravos,cavadoresdeterra.Umdelespassoudeescravoa feitor, ficandoadirigir, semnenhumesforço, amáquina.Osoutrosforamdespedidos.Oinimigodamáquinasóolhaparaasituaçãodemomentâneodesarranjo de vida dos quatro despedidos.Não olha para ahumanidade. Não percebe que a humanidade ficou beneficiada com aredenção demais quatro escravos cavadores e com a supressão demaisquatrocansaçosdiáriosedequatrodoresdecostasvitalícias.Nãovênadadisso.Sóenxergaomomentâneodesarranjodaquelasquatrovidas.

Quandoestavamconstruindoaprimeiralinhadetubosparaaconduçãodo petróleo, os inimigos damáquina enfureceram-se, destruíram a obra,alegandoqueaquilovinhadeixarsemempregomilharesdecarregadoresdepetróleo.Nãopercebiamqueaquilovinhaapenas libertarmilharesde

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criaturas do trabalho penoso de carregar o petróleo com a força dosmúsculos. O fato de momentaneamente serem dispensados do serviçocentenas de carregadores não tem a mínima importância para ahumanidade; tem importância unicamente para os carregadores e só nomomento,porquelogosearrumamemoutrosserviços.

O berreiro de hoje contra a máquina chega a ser grotesco; porque amáquinaéaformaconcretadoquechamamosprogresso,eprogressoquerdizercaminharparaa frente.Ora, comonadapáranomundo,comotudomarcha—emarcharécaminharparaafrenteenãoparatrás—havemosde ter cada vez mais máquinas. E os primeiros a se beneficiarem sãojustamente os quemais as condenam. Todos os artigos e livros contra amáquinasãoescritosemmáquinasdeescrever;compostosemlinotipos,oumáquinas de compor; impressos em prelos, ou máquinas de imprimir;distribuídosporautomóveis,oumáquinasdeandar.Oinimigodamáquinaesquecequeseeletemolazernecessárioparaescrevercontraamáquinaéunicamenteporquejáexistemmilharesdemáquinasaserviçodohomem—cadaumadasquaisfoialibertadoradumgrandenúmerodeinimigosdamáquina.

Inteligência, meus filhos, é compreensão, coisa mais rara do que sesupõe.Inúmeroshomensparecemdotadosdeinteligência;parecemapenas,como uma borboleta de papel parece borboleta, como a barulhada decertasbandasdemúsicadaroçaparecemúsica.Masficamnoparece...

—Comoeupareçogente—disseEmília.DonaBentariu-se.—Vocênãoparecegente,Emília.Vocêjáénaverdadeumagentinha—

edasboas.Achoinjustiçaviveremachamarvocêdeasneirenta.Vocênãodiz asneiras, não.Asneiras sãoessas acusações contra amáquina.Vocêoqueé, émuito independentede idéias,muito corajosa.Diz sempreoquepensa,semescolherocasiãooupalavras.Secertaspessoascondenamessemododefalarsempapasnalíngua,achando-o"impróprio",éporqueelasnãopassamde"bichosensinados".Comolhesensinaramqueistoouaquilonãosedevedizer,aceitamomandamentocomocoisainfalívelepassamavida a respeitar o que lhes ensinaram, sem nunca examinarem por simesmasseotalensinotemounãotemrazão.Comvocêdá-seocontrário.Você é rebelde a tais imposições. Com essa cabecinha sua você vaipensando comuma liberdadequeespanta a gente.Por isso andam todoscuriososporlerastaisMemóriasdaEmília,quenãosaemnunca.Comovãoelas?

Emília,todaganjentacomoelogio,respondeu,rebolando-se:— Vão indo bem, muito obrigada. Mas devagar. Meu secretário (o

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Visconde)brigamuitocomigoefazgreves.Euordeno:"Escrevaisto".Ele,queéum"sabugoensinado",escandaliza-se."Oh,issonão!Éimpróprio."Evemo"fecha"eolivrovaiseatrasando...

—Equedizvocênesselivro?— Digo o que me vem à cabeça. Vou dizendo o que quero, sem dar

satisfaçãoaninguém,porquenãosou"bonecaensinada"...DonaBentariu-sedenovoecontinuou:— Pois é isso, meus filhos. Estamos vivendo num período muito

interessantedomundo.Amãodohomemadiantou-sedemaisnestenossoséculo,desenvolveu-sedemais,multiplicoudetalmodoasuaeficiênciaqueo cérebro ficou na bagagem, lá longe. Há miolo já muito adiantado nosgrandes homens, isto é, nos inventores, nos pioneiros e nos quecompreendem; mas a massa geral do cérebro humano está hoje séculosatrásdamão.VanLoondizquemecanicamentevivemosnesteanode1935,masespiritualmente,aindamuitopertodospeludos.Équeamãopioneiraveiocorrendocomavelocidade,suponhamos,decemquilômetrosporhoraeocérebrodasmassascaminhacomvelocidadededezapenas.Noventaecincoporcentodoshomensdehojesãopeludosqueandamdeautomóveleouvemmúsicaspelorádio.SóissoexplicahorrorescomoaGrandeGuerra.Nessa guerra, que é que o homem revelou? O mesmo peludo que nostemposantigosandavademachadodepedraempunhoapartiro crâniodossemelhantes.Oatofoiomesmo.Sóvariaramosmeiosderealizá-lo.

Em vez de tacapes, machados, flechas e lanças com que o peludoaumentava o poder agressivo das suas mãos, o homem moderno seestraçalhou durante quatro anos por meio de canhões, metralhadoras,gasesvenenosos,torpedos,bombasaéreas,namaiormatançadahistória.

Epormuitosséculosascoisasaindacontinuarãoassim.Amãonãocessadeaperfeiçoar-secomvelocidadesempremaior,maso

progresso moral tem a lentidão das lesmas. Havemos de ter outrasmatançasaindamaisterríveis.Afuturaguerramundialvaipôrnumchineloade1914,porquede1914paracáamãotemfeitoprogressostremendos—eoprogressomoralatéparecequediminuiuavelocidadedasuamarchadelesma.

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—Masissoéumhorror,vovó!—Equetemquesejahorror?Éoqueé.Éoquepodeser.Éoquetem

deser.Equantomaishorrorosofor,melhor.Omeiodedarvelocidadeaocérebro das massas é cutucá-lo vivamente com o espeto de um grandehorror. Lembre-se daqueles horríveis derrames de gelo dos períodosglaciais.Foiomelhorchicoteparaocérebrodopeludo.Aprendeuapensarmais depressa. Progrediu. Os horrores da guerra moderna e das criseseconômicas causadas pela estupidez da mentalidade reinante sãoverdadeirosperíodosglaciaisquehãodeproduzirosmesmosefeitos.

Masosperíodosglaciaiseramcatástrofesresultantesdanatureza.Hojea natureza está completamente dominada pelamão do homem. Contra ofrio temosasmil coisasqueamãocriouparanosabrigar.Contraa fometemosostransportesrápidosquelevamosalimentosdumpaísparaoutro,pormais afastadosque sejam.AArgentinapodealimentar comseu trigouma cidade dos antípodas onde haja escassez de alimento. Em dias umvapordespejaránessa cidadeo trigoargentino.Contraaspestes temosahigiene. Contra todas as calamidades naturais temos as defesas criadaspelasinvenções.

Entretanto, contra as calamidades que o cérebro ainda atrasado

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desencadeiaamãonadapode fazer,porqueo cérebro, comosenhordelaqueé,põeessapobreescravaaserviçodasuaestupidezemaldade.

—Qualojeito,então?—O jeitoé tornarem-seessascalamidadestãograndesqueocérebro

humanoabraosolhoseveja—ecompreendaafinal!...Mesmoassimavidadohomemdehojenãosecomparacomavidado

homem de outrora. Os benefícios das invenções já se estendem a quasetodososhabitantesdoplaneta.Omaishumildeoperáriomodernogozadecomodidadesqueseriamsonhosparaosantigosreis.Aescuridão,queeraumdospavoresdopeludo,estáseacabando.Todasascasasiluminam-seànoite. Temos as ruas clareadas pelas lâmpadas elétricas— e nos paísesmaisadiantadosatéasestradasderodagemsãoiluminadasànoite.Orádioestáaoalcancedetodos...

—Como,aoalcancedetodos,sesóquemtemdinheiropodecomprarumrádio?

—Mas não é preciso ter dinheiro para ouvi-lo. Sempre que o nossoapanha asmúsicas dePittsburgh, as famílias do ZéPichorra, doTotó, doQuizumba—todasquemorametrabalhamaquinosítio—vêmsentar-seaqui no terreiro e ouvem-no tão bemquantonós. Se o ImperadorCarlosMagno quisesse ouvir um concerto executado em outro continente,poderia?

—Éverdade,vovó.Eoscamaradasaquinosítioaindatomamsorvetesnas tardes de calor, e recebem cartas pelo correio, e vão ao cinema aosdomingos.OpobreCarlosMagnonuncaviusorvete,nemfita...

—Sim.Nascasasmaishumildesencontramossemprealgunsdos taisprodutos da invenção humana que tanto facilitam a vida. Aqui, porexemplo,nanossa,queéumasimplescasadesítio.Quantacomodidadeasinvençõesnostrouxeram!Temos,alémdessemaravilhosorádio,olampiãobelga,abatedeiradeovosdeTiaNastácia,asferramentasdePedrinho—as verrumas, a maquinazinha de furar ferro, o rebolo em que ele"desamola"asminhastesouras;temosastesouras;oferrodeabrirlatas;amáquinadecostura;apena,a tintaeopapelpormeiodosquais fixamosnossopensamentoeEmíliaescreveassuasmemórias,ofacãodacozinha...

—Temososlivros!—Sim,oslivrosondeoshomensdeimaginaçãoeculturafixaramsuas

idéias. Temos a Enciclopédia Britânica, onde toda a ciência humana estáconcentrada. Temos os quadros das paredes—a arte. Temos amáquinafotográficadePedrinho,quemeobrigavoltaemeiaaposar comcaraderiso. Temos os jornais que o correio nos entrega todos os dias com as

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novidadesdomundointeiro.—Temosovaralderoupa...—Sim,temosessefiodeferrochamadoarame,recobertodumacamada

deestanhoparanãoenferrujar.TemosospregosquePedrinhoprega...—TemosoVisconde,queéumsabugocientífico...—EtemosfinalmenteaEmília—concluiuDonaBenta.—Opoderoso

monarca que foi o pobre CarlosMagno, se ressuscitasse e entrasse aqui,haviadeassombrar-sedanossariqueza, ficandobobodiantedorádio,doferrodeabrirlatas,dojornal,daEmília,detudo...

Isso mostra que graças às invenções a vida humana vai sempreganhando em comodidades e facilidades. Somos riquíssimos, se noscompararmos ao mais rico dos romanos. O que há é que ainda nãoacertamosummeiodevidaquefaçaasinvençõesbeneficiarematodasascriaturasigualmente.

E amaior das invenções humanas vai ser essa: um sistema social emquetodostenhamdetudo.

Bem.Atéaqui falamosdas invençõesquevieramaumentaropoder,ojeito, a astúcia da mão humana. Vamos agora passar em revista as queaumentaramopoderdopé.

—Opétambém,vovó?— Como não? O pé do homem igualmente se desenvolveu com

tremendavelocidade,graçasàsinvençõesquelheaumentaramaeficiência.—Dequejeito?—Ora,ora!Reflitaumpouco.Parairdaquiàcidade,quefaziaopeludo?—Iacaminhandoapé.—Equefazemosnós?—Vamosdeautomóvel.— Pois aí está a resposta. O automóvel foi uma das invenções que

aumentaramaeficiênciadopédohomem.Permitequeessepévádaquiàcidade—vintequilômetros—emquinzeminutos e semse cansar.Parafazer omesmo trajeto o peludo tinha de dar quarentamil passos, isto é,tinhademoverosmúsculosdapernaedopéquarentamilvezes.Logo,oautomóvelfoiumainvençãoqueaumentoutremendamenteaeficiênciadopéhumano.

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VIII–OPÉHUMANO

—Entretodososmembrosdocorpoopobrepésemprefoioburrode

carga,omártir.Sempreemcontatocomochão,sofriaosmaioreshorrores—topadasempedras,espinhos,estrepes.Ealémdapartedocorpomaisjudiada,eraamaissobrecarregadadetrabalho.

— Bem verdade isso, vovó! —- exclamou a menina. — Só ter desustentaropesodocorpoavidainteira...

—Sustentarocorpoecarregá-lo, fazendo-omover-sedumlugarparaoutro. Se o pé humano escrevesse suas memórias, como está fazendo aEmília, nãohaveria leitor quenão chorasse. Enós sabemosdissomelhorque os outros, porque moramos numa terra em que o pé ainda padecemuito. O Brasil é um país onde ainda há milhões de pés descalços,exatamenteno estadodenudezdopédopeludo.Não tem conta aquinosítioonúmerodecortadurasdepés,queeucurei;deestrepes,queeutirei;detopadasdearrancarunha,queeutratei.Pobrespés!Feios,sujos,desolagrossíssima,todarachada,dedoscheiosdecicatrizes...Comoétristeopé

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dobrasileirodaroça,quenunasce,nuviveenumorre!...— E vítimas do bicho, vovó— acrescentou Pedrinho.— Na casa do

Quizumba, por causa daquele chiqueirinho de porcos que eles têm noquintal,ospésdascriançasdãodó.Ébichoquenãoacabamais—ecada"morango"...

—Enotemqueopédohomempadeceumaisqueodosoutrosviventes.No começo eram quatro patas, mas como duas se libertaram,transformando-se em mãos, as duas restantes tiveram de duplicar detrabalho...

Aprimeirafunçãodopéésustentaropesodocorpo;asegundaéandar,oulevarocorpodaquiparaali.Estaéapior,porque,andando,otrabalhosetornaduplo.Temaomesmotempodesustentarocorpoedecarregá-lo.

Carregar o corpo, no tempo dos peludos, era horrível, porque comohavianumerosasferasperseguidorasopétinhaconstantementedecorrer,isto é, de carregar o corpo depressa, sem olhar para o chão. Haviaespinhos? Pedras pontudas? Estrepes? Pior para ele. O corpo não queriasaberdenada.Sóqueriaqueospésolevassemdepressa,correndocomamaiorvelocidadepossível.Equandoocorpoalcançavaumrefúgioseguro,ai!ospobrespésestavamemmiserávelestado.

Viagens, emigraçõespara terras afastadas, correriasdedefesa . . . Foitanto o trabalho dos pés que o cérebro do peludo teve de vir em seusocorro — e começaram as invenções que poupam o trabalho do pé,aumentando-lheaeficiência.Umadasprimeirasidéiasfoi"desapertarparaa esquerda", como diz Pedrinho; foi aproveitar-se dos pés de outrosanimaisdemenos cérebro—eopeludo aprendeu amontar em cavalos.Atédescobrirqueocavaloeracavalgável,haviadelevarbomtempo.Comcerteza experimentou a animalada inteira. Este não se deixava montar.Aquelemordia.Aqueleoutropinoteavademais.Porfimdeucomocavalo,cuja docilidade é espantosa. E o peludo domesticou o cavalo, isto é,começouacriá-loparadesdepequenofazerdeleumcarregador.

Issoacresceuenormementeopoderdopeludo.Sendoanimaldemuitaforça,ocavaloolevavanolomboportodaparte,devagarourapidamente,poupandodessemodoospésdocavaleiro.

No começo o homem só se utilizava do cavalo para locomover-se.Depoisque começoua juntar coisas emcasa, a cultivar a terra e guardarcereais,pôsocavaloacarregaressascoisas—esurgiuoanimaldecarga.Aindahojeohomemnãodispensaoseuvelhoescravodequatropés.Aquinosítiotemosasbestasdatropa,quenostrazemocafédocafezalparaoterreiroedepoisoconduzemparaaestradadeferro.

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Mais tarde veio a idéiade fazer o cavalopuxarumaarmaçãodeossosobre o gelo, lembrança que deve ter ocorrido num daqueles períodosglaciaisqueenregelaramaTerra.Ogelo,comovocêssabem,élisíssimo,demodoqueumcorpoduroescorregasobreelecomamaiorfacilidade.Sobretal armação os homens punham a carga a transportar. Nasceu assim otrenó,queaindahojeéveículousadonospaísesfriosemquetudosecobredeneve.

—Porquedeossoenãodepau?—Asuposiçãodossábioséqueosprimeirostrenósforamdeossopor

causa da abundância de ossos que havia sobre o chão. Ainda hoje osesquimósfazemseustrenóscomossosdebaleia.

Masoprimeiro trenócorreumuitobemenquantohavia sobrea terraumacamadadegelo.Quandoaofimdoinvernoogelosederreteu,otrenóengasgou.Pormaisqueopeludobatessenocavalo,oveículonãosaíadolugar,porcausadairregularidadeeasperezadochão.Quefazer?

Eu imaginocomonãodevia ter trabalhadoa cabeçadessepeludo!Noprimeiromomentoirritou-seedeunocavalocomumpau.Bateunocoitadoaté cansar o braço, convencido de que o animal não caminhava de birra.Nadaadiantouaviolência.Eleentãoprocurouajudarocavalo,empurrandootrenó—everificouqueacoisapareciamesmotercriadoraízes."Ahn!",haviadeexclamar,coçandoagaforinhaemaranhada,aoverqueaculpanãoeradoanimal.Comoresolverocaso?Pensaquepensa, forçadaqui, forçadali, commuito custo conseguequeoveículo semovaumbocadoparaafrente. Súbito, o trenó desliza rápido por uns metros, para emperrarnovamente."Ué!queaconteceu?"

Opeludopára, limpacomascostasdamãoosuordatesta,examinaochão e afinal descobre que o veículo tinha caminhado mais facilmenteporque montara sobre um pedaço de pau roliço, casualmente por ali.Examinaorolete.Temuma idéia.Colocaoutravezoroletesobo trenóetocaocavalo,eempurra—ecomumapeludíssimarisadanorostobestialverifica que a giga joga de novo, e caminha com facilidade um ou doismetros.Masorolete,queelepuseranafrente,estáatrás.Opeludoreflete.Seus olhos brilham de súbito. Muda o rolete para a frente. Repete amanobra— e outra vez o trenó avança com facilidademais um ou doismetros.

Pronto!Estava inventadoomeiode fazerum trenó caminhar sobreochãosemgelo...

Mascaminhavamuitovagarosamente,exigindoacadapassinhoqueoroletefossemudadoparaafrente.Sehouvesseummeiodedeterorolete

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semprenomesmoponto...Opeludopensa,pensa.Cocaagaforinha.Sorri.Eseeleosegurassedecadaladocomumganchodepau?...Experimenta.Dácerto.Osganchosseguramoroletesemprenomesmoponto.Umgrandeproblemaforaresolvido.

Mesmoassimatarefadearrastarumtrenósobreochãoeramuitíssimomaispenosadoquesobreogelo.Muitoatritodoroletenosganchosenaterra. O peludo pensou, pensou e ficou na mesma. Um dia, porém, umpedaçodesebogrudou-seporacasonumdosganchos,equandootrenófoiposto aCaminhoopeludoviu logoquedaquele ladoo rolete girava commaior facilidade. Imaginandoqueosebo fossealgumasubstânciamágica,botou sebo também no outro gancho — e a lubrificação foi inventada.Aqueles rudes ganchos são os antepassados dos aperfeiçoadíssimosmancaisdasnossasmáquinasdehoje.

Os trenós ficaram desse modo um veículo que tanto andava no gelocomo no chão de terra. Quando o gelo vinha, era só tirar fora o rolete earrancarosganchos;terminadooinverno,botadenovooroletenotrenó!

Um dia sobreveio um desastre de extraordinárias conseqüênciasfuturas.Umrolete,queduranteoinvernoforapostodelado,pertodofogo,queimou-se no centro tomando a formade um carretel tosco. Acabado oinverno,quandochegouotempodeadaptarnovamenteoroleteaotrenó,opeludoficoufuriosíssimodevê-loqueimadoedeformadodaquelamaneira.Com certeza deu uma tremenda surra namulher, culpada de que aquiloacontecesse.E comodeprontonãoachasseumpau roliço comque fazernovo rolete, botou no trenó aquele mesmo — e saiu bufando. Poucoadiante, porém, sua raiva desfez-se em risada gostosa. Pois não era quecom o raio do rolete queimado o trenó estava não somentemaismacio,comomuitomaisrápido?Aformadecarretelqueofogocasualmentederaaoroletediminuíaenormementeoatritocontraochão.

Desdeaí opeludopassoua sóusar roletesqueimadosno centro—eissoatéodiaemqueumdeles,maisaudacioso,emvezdequeimaroroletedeu-lhea formadecarretelcomomachado.Nãoeraamagiadofogoquemelhoravaosroletes,eraaformacomqueficavam.

Eacoisafoiindo,ocarretelfoiseaperfeiçoando,atéquearodasurgiu.Aroda!Quemaravilha!

— Uf! — exclamou Narizinho. — Que roda comprida, vovó! Quantorodeioparachegaraumacoisatãosimples...

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IX–OPÉQUERODA:ARODA

— Minha filha — respondeu Dona Benta —, o rodeio que dei para

chegar à roda foi bemmenor que o caminho seguido pelo homem parainventaressacoisaqueparecetãosimples.Euresumiocaso,fazendoqueomesmopeludoquedescobriuoroletefosseodescobridordasvantagensdoroletequeimadoemformadecarretel.Maséprovávelquemuitosséculossepassassemparachegardoroleteaocarretel.Equantosmais,paracortarocarretelaomeio fazendodeleduasrodas?Oupara tera idéiadeenfiarnessasrodasumeixo?

Mas a roda afinal surgiu, sem que os peludos pudessem sonhar asconseqüências infinitas de tal invenção. Se possuímos hoje milhares demáquinasparatudo,devemo-loàalavancaeàroda.Entrenumafábricadetecidos.Quevêvocêládentro?

Rodasemais rodas,de todosos tamanhos,de todosos tipos, lisasoucomdentes,inteiriçasouderaios.Sãoessasrodasquedistribuemaforça,istoé,quemovemtodasas incontáveismáquinasdequesecompõeumafábrica.

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— Já vi uma fábrica de tecidos, vovó — disse Pedrinho.— A gentetonteialádentro.Tudomove,tudogira.Umatrapalhada...

—Parecetrapalhada,meufilho,masaordeméperfeita.Dumladoestáa casa da força, onde fica a máquina geradora do vapor, composta dafornalha, onde se faz fogo, e da caldeira, onde fica a água que o fogoevapora. O vapor d'água possui o que se chama força de expansão; querdizerqueaoserproduzidoalarga-se,procurandoocuparumespaçomuitomaior que o ocupado pela água. Essa tendência constitui a força que ohomemaproveita.

Saindodacaldeiraovaporpenetranumcanoondeestáopistão.Sabemoqueépistão?

—Éumapistagrande—respondeuEmília.—Éumtampão,umaespéciederolhadeaçocolocadadentrodocano;

nãoestápregadonele—está apenasbemajustadoebemengraxado,demodoquepodeirevir.Quandoumjatodevaporentrapelocano,opistãoétocado para a frente até o ponto em que uma abertura deixa escapar ovapor;nessepontoopistãopára.Amanobrarepete-sedooutrolado.Entranovo jato de vapor, e empurra para trás o pistão que parou e tambémescapapelaabertura.Eassimficaopistãoa irevirdumladoparaoutro,oraempurradopelojatodevapordecá,oraempurradopelojatodevapordelá.

—Verdadeirojogodoempurra—dissePedrinho.— Bem. Temos aqui o principal. Temos a força do vapor fazendo o

pistãoirevirsemparar.FoiessaagrandecoisaqueJamesWattinventou.A força expansiva do vapor transforma-se num movimento de vaivém.Restaagoratransmitiressemovimentoaumaroda,oqueseconseguepormeiodumahastequeligaopistãoaumpontodarodaafastadodocentro.Tudomuitobemcalculado,demodoque,quandoopistãovaiparadiante,aroda também vai para a frente impelida pela haste, dando meia-volta;quandoopistãovemparatrás,arodaépuxadapelahasteedáoutrameia-volta.Meia-voltacommaismeia-voltaformaumavoltainteira—eaíestáarodaarodar.Eenquantoovaivémdopistãonãopara,arodatambémnãopáradegirar.

Acasadaforçaéisso.Éaproduçãodovaporparaomovimentodumarodaprincipal.Essarodaprincipalmove,pormeiodecorreia,outrarodacolocada fora da casa da força, já no grande salão onde se acham asmáquinas de lidar com os fios a tecer. Em geral há nesse salão, dumextremoaoutro,umgrandeeixopertodoforro.Numadasextremidadesdoeixoficaumarodaligadapelacorreiaàroda-mestradacasadaforça.Epelo

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eixoafora ficamnumerosasoutras rodas,maioresoumenores, cadaumadelascomumacorreiaquedesceevaivirararoda-mestradamáquinaqueestáembaixo.Ovapormoveopistão;opistãomovearodagrande;arodagrandemovearoda-mestradosalão;estaroda-mestra fazoeixovirar;oeixo virando, também viram todas as demais rodas a ele ligadas; estasrodas virando, também viram todas as rodinhas de todas as máquinasdistribuídas pelo salão. E pronto: aquele maquinário complicadíssimo,cheiodealavancaseferrosengenhososquesemexemdetodososjeitos,detodos os lados, com todas as velocidades, entra amover-se com amaiorharmonia,executandootrabalhoqueohomemquer.Umadesembaraçaasfibrasdoalgodãobruto.Outratorceessealgodãoemfios;outraenrolaosfios em carretéis. Outra tece os morins, os algodõezinhos, as toalhasfelpudas.Outradáumbanhodegomanomorim.Outracortao tecidodetantosemtantosmetrosparaformaraspeças.Outrapassa-oaferroparaquefiquebemlisinho.Outradobra-oempeças.Outragrudaasetiquetas.

Ohomemapenasdirigeaquelainfinidadedeescravasdeferro,quenãosecansam,nãodormemesósealimentamdeóleolubrificante.Ah,issoelasnão dispensam. Se dummomento para outro todo o óleo lubrificante domundodesaparecesse,imediatamentetodasasfábricas,trens,automóveis,aviões, navios — tudo que é máquina parava. Nesse ponto sãoexigentíssimas.

— Pois olhe, vovó— disse Pedrinho—, quando visitei a tal fábricafiqueitontoenãoentendinada.Agora,tudomeestáclarocomoodia.Heidevoltarládenovo.

— É que quando a visitou ainda não sabia ler o que estava escritonaquelas rodas e eixos e correias. Agora você já conhece o alfabeto dalínguamecânica.Assimtambémcomoslivros.

ParaTiaNastáciaumlivronãopassadumaporçãodefolhasdepapel.Masparaquemsabeler,umlivroéummundodeidéias.Quandovoltaràfábrica de tecidos você vai ler nela como lê num livro — e há demaravilhar-se.

Antesdehavergrandesfábricasosistemaeraoutro.Osoperáriosnãotrabalhavam reunidos. Os patrões lhes forneciam o material e lhesalugavam a ferramenta — e eles que trabalhassem em suas casas. Osinconvenientes do sistema fizeram que surgissem as fábricas, isto é,grandescasarõesondeosoperáriossejuntamparaotrabalhoemcomum.Com o aparecimento da máquina a vapor e da eletricidade, todos osserviçospesadospassaramparaolombodasmáquinas.Ooperárioapenasasdirige,fazendo-asandarouparar,lubrificandoosmancais,consertando

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oquesedesarranja,etc.Tudoisso,porém,graçasaovaporqueproduzaforça,egraçasàrodae

àalavancaquedistribuemessaforçademilmodosdiferentes,conformeasnecessidades do trabalho. Lá vemos uma força enorme que ergue pesos,que corta ferro, que serramadeira; aqui vemos forcinhas delicadíssimasque lidammimosamente comomais fino fiode seda.Não existe serviço,pordelicadoqueseja,queamáquinanãofaça—eofazsempredomesmojeito,sempreigualzinho.Nãoerra.

Numafábricaderelógios,porexemplo.Éadmirávelaprecisãocomqueamáquina fabrica todas as rodinhas e engrenagens quasemicroscópicasdumminúsculo relógiodepulseira— todas absolutamente iguais. Comamãoseriaimpossível.

—Masamáquinanãoémão?— É a mão do homem mecanizada, aperfeiçoada. Na máquina de

costurar, por exemplo.A lançadeira combina-se coma agulhaque sobeedesce de modo que os pontos saiam absolutamente iguais. Que mão decarneseriacapazdefazerisso—ecomaquelavelocidade?

A natureza deu ao homem a mão, que é uma perfeita maravilha. Océrebrodeuàmãoaeficiênciamecânica,queémilvezesmaismaravilhosaainda.

Mas estoume afastando do assunto de hoje. O assunto é o pé, não amunheca.Estávamosnaroda,nãoéassim?

— Estávamos no carretel tostado ao fogo, que virou duas rodas —advertiuamenina.

—Issomesmo.Arodacomeçouassim, tosca,brutíssima,pesadona—ummonstrengo.Mascomeçou,eissoétudo.Oquecomeçanãopáramais.Segueaperfeiçoando-seatéoinfinito.

Arodacomeçoupermitindoamultiplicaçãodaforçadopé.SemaqueleroletequeofogoqueimounãoteríamososFordseosaviões.

—Quetemoaviãocomaroda?—Quetemoaviãocomaroda?—Temtudo.Émovidopormeiodumahélice,quenãopassadumaroda

compásdumcertojeito.Entreasváriasfilhasdarodaestáahélice.Mas a roda não se generalizou nos tempos antigos como está

generalizadahoje.Houvepovosqueaignoraram.Aspopulaçõesprimitivasda América, por exemplo, desconheceram-na completamente. Quando osprimeiroscolonizadores introduziramaquiosveículosderoda,oespantodosíndiosfoigrande.

A roda, ouantes, o veículode rodas exigeuma superfície lisa emque

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possarodar;istoé,exigeboaestrada.Ora,issodeestradaboaécoisaquesóexisteemcertospaíses,demaneiraqueaindahojeemmuitospontosdomundohámenosveículosderodadoqueveículosdequatropés:oburroquelevacargaaolombo.

Osdoisgrandesveículosdospaísessemboasestradassãoa"tropa"eo

"carrodeboi".O carro de boi tem a propriedade de dispensar estradas. Não há por

ondenãopasse.Sobemorros,atravessalameiroshorríveis,ondeatolaatéaos eixos. Duma lentidão extrema e duma capacidade de transportemínima;noentanto,seguríssimo.Chegasempreaoseudestino.

Asrodasdocarrodeboisãorodíziosmaciços,formaaindaconservadaporcausadosatoleiros.Seemvezdemaciçasfossemderaios,comoasdecarroça,ficariampresasnalama.Emcadacarroencangam-seàsvezesatévintejuntasdeboi—elávaipelaestradaaforaaquelaanimaladaimensa,aquelaprocissãodeboispuxandoumcarrinhoquenãotransportamaisdeseiscentos, setecentos quilos.Um caminhão automóvel carrega toneladas.Emmatériaderapidezocarrodeboimalganhadaslesmas.Caminhadadeduas léguaspordia já é boa.Umcaminhãovenceduas léguas emquinzeminutos,ecomcargacincovezesmaior.

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Os egípcios, os romanos, os gregos, os babilônios, todos os povos daAntigüidadecivilizadatinhamcarrosaosquaisdavamgrandeimportância.Quandoqueriamrepresentara imagemdumdeuspunham-nodepénumcarrodeduasrodas.Eracoisanobre,distinta.Edeviamserrelativamenteraros, porque em matéria de estradas só os romanos se mostraraminteligentes. Foram os criadores das estradas bem-feitas, pavimentadas,comótimaspontesdepedras.

— A senhora falou em ponte. É invenção da mão ou do pé? —perguntouPedrinho.

—Dopé,estáclaro.Queéumaponte?—Ponte?Ponteé...éumcaminhoaéreo...— Issomesmo.Quandoumaestradavaidaraumrio, temqueparar;

mascomoumaestradaquepáranãoéestradaesimumbecosemsaída,ohomemtevedeinventarummeiodeprojetaraestradaporcimadorio.Aprimeira idéia lhe foi sugerida pela natureza, porque não existe florestacortada por um ribeirão em que não haja paus caídos duma margem aoutra,formandopinguelas.

O homem copiou a natureza. Cortou o rio com um grande tronco deárvore,bemreto;ecomoostroncossãoroliços,desbastou-oamachadonaparte superior para que sobre ele seus pés pudessem caminhar comfirmeza.

O tronco de pau, entretanto, só resolve o problema da passagem dosriosestreitos.Eos largos?Aíohomemtevede fazeroutracoisa.Tevedefincar dentro d'água fortes esteios que suportassem uma armação demadeira, ou troncos articulados. Os romanos foram além. Construírampontesdepedra,maravilhosasderesistência,poisqueduramatéhoje.

Aponte,portanto,épé.Éomeioquepermiteaopéatravessarosriossemsemolhar.

—Ecomoveioopédeferroquecorre—otrem?—Ah, isso foi interessante.Depois de descoberta amáquina a vapor,

váriosinglesestiveramaidéiadefazeressamáquinapuxarcarrospesadosnas estradas comuns. Montavam num ponto da estrada uma máquina avaporfixa,para,pormeiodoenrolamentodeumacorda,puxarcarros.Eracomplicadíssimoedepoucoresultadonasdistânciasgrandes.AboaidéiaocorreuentãoaStephenson:eseemvezdeamáquinapuxaroscarroselase puxasse a si mesma? Estuda que estuda, Stephenson resolveu oproblema. Inventou a locomotiva, amáquina que se puxava a si própria.Mas que luta! Foi enorme a resistência do povo. Ninguém queria saberdaquilo.OcavalodeferroinspiravahorrorcomosefosseartedoDiabo.O

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governo inglês botou os obstáculos que pôde, alegando os perigos dessecavalo de ferro solto pelas estradas. Chegou a passar uma lei tornandoobrigatóriovirna frentedas locomotivasumhomemacavaloparaavisarostranseuntes.

—Como?Nãoestouentendendo...—dissePedrinho.— Sim. A lei inglesamandava que à frente das locomotivas seguisse

pela linha um homem a cavalo com uma bandeirinha, "para evitardesastres"... Semelhante medida, está claro, impediu do modo maiscompleto o desenvolvimento da estrada de ferro. Além disso os sábiosoficiaisdotempodeStephensonprovavamcomcálculosseguríssimosqueaquiloerabobagem,nãopassavadumaexploraçãodopúblico...

Mas Stephenson insistiu. Lutou anos, e em 1825 venceu, afinal.Conseguiurealizarsuaidéia,istoé,montarsobrerodasamáquinaavapor.

Issonãoeratudo.Paraquetalmáquinapudessecaminharcomrapidez,tornavam-se necessários caminhos ótimos, bem-calçados, bem-nivelados,sem lama no tempo de chuva. E não havia tal coisa. Como resolver oproblema? Stephenson imaginou os trilhos, isto é, duas estradinhasparalelas feitas de ferro, da largura que bastasse para as rodas da sualocomotiva—ehojeomundointeiroestácortadodenorteasuledelesteaoestepormaravilhosasestradasdeferro,filhasdaestradinhadograndeinventoringlês.

—Oqueeuadmiro,vovó,éacoragem,atenacidadedosinventores—observou Pedrinho.— Por maiores que sejam os obstáculos, eles nãodesanimamnunca.

— Tem razão de admirar-se, Pedrinho. Os inventores são criaturasexcepcionais, diferentes em tudodas outras.Depois que encasquetamnacabeçaumaidéia,nãopensamemmaisnada.Parecequeanaturezaoscriaespecialmente para aquele fim, como cria o pintor para pintar, omúsicoparacompormúsicas,ohomemrotineiroparaembaraçaroprogressodomundo. Os inventores, os pintores, os músicos suportam as maioresmisérias,privam-sedetudo,contantoquepossamrealizarasuainvenção,oseuquadro,asuamúsica.Eacabamvencendo.

A porcentagemdos inventores, pintores,músicos e artistas de outrostiposémínima.Emcadacemcriaturashaveráumadessegênero,demodoqueeles têmsemprecontrasiosnoventaenoverestantes.Omenosqueessesnoventaenovedizemdoumpor centoquenãopensa comoeleséquesãoloucos.

Esãomesmoaloucados.Ofatodesacrificaravidaparabenefíciofuturodosnoventaenoveporcentodeingratosécoisamesmodelouco.Mas,que

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hãodefazer?Seudestinoéproduzirinvençõeseobrasdearte,assimcomoo destino duma roseira é produzir rosas. A saúva tosa a roseira; ojardineiro poda-a sem dó; osmeninosmalvados batem-na com varas; ascabras que entram no jardim pastam-lhe as folhas. Por mais judiada eperseguidaqueseja,porém,quandochegaotempopróprioaroseiradáassuaslindasrosas.Inventores,artistaseroseirasjudiadaspagamomalcomobem.

—Masasroseirassedefendemcomosespinhos—observouamenina.—Estáclaroquesedefendem,ascoitadinhas.Eosartistas,inventorese

sábios se defendem com a misantropia, isto é, afastando-se dos homenscomuns.Spencer,quefoiumgrandefilósofoinglês,chegavaapôralgodãonosouvidosquandoobrigadoarecebercertasvisitas.

—Porqueisso?—Paraqueasasneirasdovisitantenãofossemsujaroseumaravilhoso

cérebro,sempreocupadocomosgrandesproblemasdavida.O navio a vapor foi uma conseqüência lógica da locomotiva de

Stephenson.Assimcomoamáquinaavaporpodiacarregar-seasiprópriaem terra, poderia também carregar-se no mar. E Roberto Fulton, umamericano,teveaidéia.Comonãohaviamderir-sedele!Olouco!Oimbecil.. .AtéNapoleãosorriu,quandoFultonafirmousercapazdeconstruirumbarcoavaporqueatravessasseocanaldaMancha.Hojenãoexistemaremque os navios de Fulton não deslizem por cima como baratinhasfumegantes.

—Eantesdonavioavapor?— Espere. O pé do homem já havia resolvido o problema de andar

rápidosobreaterrasemsecansar.Tinhadepoisderesolveroproblemadeandarsobreaágua.Umtroncoboiandodeuaprimeiraidéiadacanoa.Masumtronconãotemestabilidade;virafacilmentedeumladooudeoutro.Foiprecisoescavaresse tronco—ea canoasurgiu.Paraescavá-loohomemrecorreuaofogolento;queimavacombrasasotroncoatétê-lonaformadecanoa.

Acanoafoiprimeiramentemovidapelasmãos,queiamempurrandoaáguapara trás.Comonãodesserendimentoecansassemuito,ocanoeiroteveaidéiadeencompridaramãocomoremo,queéumapalmademãodepau posta num cabo. Pronto. Estava inventada a navegação. Da canoavieram as galeras dos romanos e outros povos antigos. As galerasempregavamgrandenúmeroderemosmovidosporescravos.

Umdiaumcanoeiroqueperdeuoremolongedacostateveaidéiadeerguercontraoventoumcouroquetrazia.Acanoadeslizouveloz.Estava

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inventada a vela. Era só fincar na canoa um mastro e amarrar nele umcouroesticado,comaspontasseguraspormeiodecordas.

Dessa humilde canoa de vela de couro saíramos navios veleiros comque os navegantes do séculoXVIpuseram todas as terras domundo emligaçãoumascomasoutras.Esaiuocomérciomarítimo,queconsisteemlevar os produtos dum país para outro. Do Brasil os navios de velacarregaramopau-brasilusadonatinturariadaépoca;dasíndiastraziamasfamosasespeciarias.DaÁfricatraziamescravosedaEuropatrouxeramoscolonosqueformaramosnossospaísesdaAmérica.

Afinalsurgiuobarcoavapor,eavelatevedecederseucetroderainhadosoceanos.Graçasàcanoa,aobarcodevelaehojeaosgrandesnaviosavapor, o pé humano conseguiu omilagre de caminhar sobre a superfíciedosmarestãoseguramentecomocaminhaemterra.

Outra invençãopara dar eficiência ao pé humano foramos túneis, oucaminhossubterrâneosquevaramasmaisaltasmontanhas,oupassamporbaixoderios.

—Eaescada,vovó?Nãoétambémpé?— Certamente. Com a escada o pé adquiremeios de subir até certas

alturas.SehouvesseumaescadadaTerraàLua,podíamosiratéláapé.—Masnãochegaríamosnunca—observouPedrinho.—Adistânciaeu

seiqualé:354000quilômetros.Cadadegrautendoumpalmo,seriam. . .seriam...

Narizinho fezdepressaaconta,dandoacadapalmo20centímetros,erespondeu:

—Umbilhãoesetecentosesetentamilhõesdedegraus.Pedrinhonãoquisficaratrás;calculoudepressaquanto

tempoumhomemlevariaparasubirtodosaquelesdegrausedisse:—Seumhomemsubissemildegrauspordia,tinhadelevar1770000

diassubindo,ousejam4850anos. . .QuerdizerquesecomminhaidadeJúlio César começasse a subir essa escada, estaria hoje a poucomais demeiocaminho,apenas...Umabsurdo,vovó,iràLuaapé.

DonaBenta riu-sedaqueles cálculos, satisfeitade ver comoo cérebrodosmeninosjáestavadesenvolvido.Depoisconcordou:

—Realmente.Apé,comonossopédecarne,éimpossível.Mascomopéaumentadoporalgumainvenção,quemsabe?Essepédecarne,quenotempo do peludo só vencia uma distância insignificante, já está hojeterrivelmente veloz. Por meio do avião atinge a velocidade de 600quilômetros por hora. Quer dizer que se formos à Lua com o nosso pévoador,levaremos...Façamaconta.

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Emíliaganhouacorrida.Foiquemrespondeuprimeiro:—Vinteecincodias!Umaviãoa600quilômetrosporhoravaidaquià

Luaemvinteecincodias.—Só?—exclamouPedrinho,admirado,eaoconcluirsuaconta,vendo

queeraaquilomesmo,assombrou-se.— Sim, meu filho. O homem já atingiu na Terra velocidade que lhe

permite ir à Lua em vinte e cinco dias. Mas por enquanto o vôo éimpraticável.Osaviõestêmqueabastecer-sedecombustívelpelocaminho,eentreaTerraeaLuaaindanãoexisteumasóbombadegasolina...

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X–OPÉQUEVOA:OAVIÃO

NodiaseguinteDonaBentacontinuouafalardasinvençõesquevieram

substituir o pé humano na função de caminhar. Antes disso referiu-se ainúmeras invençõesmenores que nasceramdas grandes, como os ramosnascemdotroncodaárvore.

— O que há de invençõezinhas numa locomotiva, nos carros que elapuxaenostrilhossobreosquaiscorrenãotemconta.Oapitodamáquina;os sinais de aviso à beira da linha; os "jacarés" ou entrecruzamentos detrilhos; os freios pneumáticos que travam o trem com a força do arcomprimido; o carro-salão, o carro-restaurante, o carro-dormitório... Setodasessasinvençõesfossemmencionadasdariamparaencherumlivro.

Amesmacoisanosnavios.Ainvençãodoleme,daâncora,dahélice,dabússola... A bússola foi de tremendas conseqüências, porque permite aosnavegadores orientarem-se com a maior exatidão, qualquer que seja oestadodotempo.Antesdabússolaelessópodiamguiar-sepelosoloupelasestrelas,oqueospunhaatrapalhadosnosdiasdecéuencoberto.

Porfimveioonavioavapor,queresolveudamaneiramaiscompletao

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problema da navegação. O homem não ficava mais na dependência docaprichodovento.Houvesseounãovento,onaviocaminhavadomesmomodo.Sóentãoeleconseguiudominarcompletamenteomar.Restavaoar.Dono já da terra e dos mares, o ar ainda não era domínio do homem.Tornava-seprecisoconquistá-lo.

—Quebichinho insaciável!—observouamenina.—Nãoháoqueocontente...

—Justamenteporissoohomemprogridesempre.Suaambiçãonãotemlimites.Mais,mais,mais!éoseulema.

—Quepontopretenderáatingir?—Ninguémsabe.Ohomemavançaparaafrentemovidoporumaforça

misteriosa. Impossível prever até onde o levará essa corrida louca.Impossível também fazê-lo parar. O progresso lembra uma pedra que sedespenhoudoaltodamontanha.Temvelocidadecadavezmaior.

— Mas a pedra que desce da montanha tem de parar um dia —observou o menino.— Na base das montanhas há sempre um vale, umabismo...

—Sevocêcochicharessaadvertênciaaoouvidodapedraquerola,nemporissoelasedeterá.Assimtambémcomoavançodoprogresso.Sejavale,sejaabismooquehápela frente(enadapodemossaberaesserespeito),suamarchanãopodeserdetidapornenhumcochicho.

Oar,porexemplo.Durantemilhõesdeanosohomemolhavaparaocéucomoalgoinacessível.Eraodomíniodaságuias.Masumdiaresolveuvoar."Se as águias voam, por que não hei de voar também, eu que sou maisinteligentequeaságuias?"

Avidadasavesfazia invejaaohomem.Nãosearrastampelochãoemmovimentosdelagarta,comonós.Sãodonasdessamaravilhosaestradaderodagem sempoeira, semburacos, sem lameiros, que se chama "camadaatmosférica". E como podem com amaior facilidade transportar-se dumpontoparaoutro,estão livresdoshorroresdoextremofrioedoextremocalor.Seoinvernochega,emigramparaasterrasquentes;seoverãoestámuitoforte,voamparaasterrastemperadas.

Háséculosqueohomemencasquetouaidéiadevoar.O papagaio de papel inventado na velha China mostra essa

preocupação.Masnopapagaio ele apenas consegue fazervoarumacoisaconstruídaporsuasmãos;nãoconseguequeessacoisaolevepelosares.

Entrequererepodervaiumaboadistância.OgrandeitalianodenomeLeonardodaVinci,umdosmaioresgêniosdahumanidade,sonhoumuitocomissoedesenhouváriosaparelhosvoadores.Sótinhamumdefeito:voar

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apenasnopapel.FaltavaaLeonardoumacoisa:aenergiamecânicadealtapotênciaparamoverasasasdosseusaparelhos.Comaforçamusculardosbraços era impossível. E naquele tempo as grandes invenções queaumentavam o poder dos músculos do homem ainda não haviamaparecido.

Outra idéia surgiu mais tarde: fazer um balão que subisse com arquente.Ohomemtinhanotadoqueoarquenteémais levequeoar frio.Nas chaminés dos fogões vemos isso. O ar aquecido pelo fogo sobe pelachaminé.

A experiência foi pela primeira vez tentada em Lisboa por umbrasileiro, Bartolomeu de Gusmão. O seu balão chamava-se Passarola.Subiu até o beirai dum telhado; no qual bateu, escangalhando-se. Vaias,risadas,edepoisperseguiçõesda"gentedejuízo"daépoca,sobpretextodequeeleeraumdoido.

Mais tarde um francês tentou igual experiência e foi bem sucedido.Montgolfier,queerapapeleiro,construiuumgrandebalãodepapeleofezsubircomarquente,pelosistemaquevocêsusamcomosbalõesdodiadeSãoJoão.

Foiumacontecimento.Todagenteficoudenarizparaoar,assombrada;equandoobalãocaiu,aconteceuomesmoquehojequandoosbalõesdevocêscaem.Oscamponesesperseguiram-nocomseusgadanhosempunhopara espetá-lo — para destruir o monstro aéreo. Os moleques de hojerepetem o impulso instintivo daqueles campônios; quando um balãocomeçaadescer,corremembandoemsuadireção,sósossegandodepoisqueoestraçalham.

Estavafeitaumagrandedescoberta.Construindo-seumbalãomaiorede material mais resistente, era possível levar pelos ares um homem. Ocasofoiresolvido.

Esses balões de ar quente, com uma barquinha pendurada de cordasondeoaeronautapodiaacomodar-se, tinhamváriosdefeitos.Oprincipal:não irparaondeohomemqueria.Oventoogovernava.Ora,balãoqueovento governa pode sermuito bompara o vento; para nós não presta. Etocaohomemaestudarmeiosdeconstruirumbalãogovernávelporquemvainabarquinha.

Aprimeiraidéiaocorridafoimudaraforma.Emvezdeesféricooudeformato de pêra, adotaram a forma do charuto—mas issomuitos anosdepoisdobalãodopapeleirofrancês.

Os sábios oficiais meteram-se no meio, para atrapalhar. Com todo opesodasuaciênciagarantidapelogovernoepelasacademias,declararam

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absurdo isso de voar com direção. Omais que o homem podia fazer eravoar para onde quisesse o vento. E na Academia de Ciências de Parisprovaramessaimpossibilidadecommilargumentos.

O balão sobe porque é mais leve que o ar. E se se construísse umaparelhovoadormaispesadoqueoar?Asavessãomaispesadasqueoarevoam. Essa idéia louca deu de bulir com a cabeça de muitos loucos. Ossábiosoficiais,chamadosadarparecer,riram-seeprovarampora-f-bqueera um disparate sem nome. E como os governos e o povo dão grandeimportância à opinião deles, os experimentadores partidários do "maispesado que o ar" nunca tiveram o apoio de ninguém. Ficou assente queeramloucosvarridos.

Mas tais loucospreferiram ficar coma sua loucuraa ficar comobomsensodossábiosoficiais.Insistiram.Experimentaram.Muitosmorreramdedesastre—ecadavezqueissoaconteciaossábiosvinhamparaosjornaisdizer:"Bemfeito!Eujánãoproveiqueumcorpomaispesadoqueoarnãovoa?"Eopovorepetiaosdogmasdosgrandesperusdaciênciaoficial.

UmdiaSantosDumontvoouparaondequis.Vooudeverdade.Encheudumgásmaislevequeoarumbalãoemformadecharuto;colocounobicodo charutoumahélicemovidaporummotorde gasolina—e voou.Masvooumesmo,deverdade,dandovoltaemtornodacélebreTorreEiffelemParisevindopousarnopontodepartida.

Foi um assombro. Não contente com isso, voou mais tarde no seuaviãozinhoDemoiselle,queeramaispesadoqueoar.

Opovo, jáesquecidodaspalavrasdosperus,aclamou-ocomdelírio.OgrandeacontecimentodaqueleanonaEuropaforamessesprimeirosvôosdeSantosDumont.

—Eossábiosoficiais,quefizeram?— Encolheram-se, de bico caladinho. Enfiaram-se nas tocas,

desapontadíssimos.TambémnaAméricadoishomensviviamaestudaromesmoproblema

— os irmãos Wright; conseguiram voar, ou realizar o primeiro vôo umpouco antes de Santos Dumont. De modo que essa tremenda invençãosurgiuquaseaomesmotemponaAméricaenaEuropa,semqueoinventorde lá conhecesse as experiências dos de cá, e vice-versa. Isso sucedefreqüentemente. Quando uma invenção está madura, sua tendência ébrotaraomesmotempoemváriospontos.

—Porqueestavamaduraainvençãodoaeroplano?—Porqueacoisadependiaapenasdoaperfeiçoamentodosmotoresde

gasolina.Nodiaemqueohomemdispusessedummotordepequenopeso

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e grande força, estaria na posse do elemento que faltou a Leonardo daVinci.Ora, quando SantosDumont e osWrightmeterammãos à obra, osmotoresdegasolinajáestavambemleves.

Desdeentãoaartedevoar se foi aperfeiçoandocomenormerapidez.Inúmerospioneirosaelasededicaram.Umfrancês,Bleriot,construiuumaeroplano com que atravessou o canal da Mancha. Os inglesesassombraram-se. Viviam na sua ilha seguríssimos de si, guardados pelamaispoderosaesquadradomundo.Sópunhaláopéquemelesquisessem—equementrassepelaportadarua.Ora,Bleriotentrousempedirlicença—eporcimadaporta.Issodeixouosinglesesatordoados.

"Se um homem entrou cá sem nossa licença, poderão entrarmil", foicomorefletiram,vendoqueasegurançadailha,apesardetodoopoderdaesquadra, já não era a mesma. E começaram a mudar de mentalidade.Começaramaaprenderavoar.

AGrandeGuerraveioconfirmaraqueleraciocínio.Afamosailhajánãoera a antiga fortaleza inexpugnável. Não podendo entrar por baixo, oinimigo entrava por cima. A cidade de Londres foi muitas vezesbombardeadapeloszepelinsvindosdaAlemanha.

—Equeminventouoszepelins?— Foi o Conde Zepelin— um sábio alemão. Enquanto os franceses,

ingleseseamericanossededicavamdecorpoealmaao"maispesadoqueoar",oCondeZepelinpôs-seaaperfeiçoaro"maislevequeoar",quehaviasidomaisoumenosabandonado.E conseguiumaravilhas.Os zepelinsdehoje fazem proezas extraordinárias. São monstros aéreos feitos dealumínio, com capacidade para bastante carga e numerosos passageiros.Mas só os alemães sabem construir zepelins. As tentativas feitas pelosoutros povos fracassaram. Hoje vemo-los flutuar no céu em viagens tãoregularescomoasdosnaviostransatlânticos.Viajar de zepelim constitui uma das maiores novidades. Outro dia

visitou-me um escritor paulista de quem gosto muito — aquele queescreveuoProfessorJeremias.PoisatéelejáfoiàEuropadezepelim;foievoltou.Essemoço tinha famade cético, isto é, denãoacreditar emnada.Agora acredita no zepelim. Descreveu-me toda a viagem com asmaioresminúcias.Quemaravilha!Acoisaé tão lindaque,apesardevelha,eunãodesistodumaviajadapelosares.3

Osmeninosbaterampalmas.Quebelezasefossemtodosnumzepelim,emviagemaoredordoglobo...

Isso,vovó!Ehavemosdeirobandointeiro—atéQuindim. . .Quando

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partimos?—TalveznodiadeSãoNunca.Osmeninosficaramdenarizcomprido.ApesardissoEmíliafoiarrumar

suamalinha,ajudadapeloVisconde.—Sabedoquemaisvougostarnessepasseiodezepelim?—perguntou

aqueleespirrodegente.Oemboloradosabugocientíficofezcaradequemnãosabia.—Dedarminhascuspidinhasládecima...—confessouEmília.

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XI–ABOCA

DonaBentaaindafaloulongamentedaaviação.Contouquequantomais

altosobeumaeroplanomaisrápidopodeserovôo.— Os homens andam agora a estudar a estratosfera, ou as camadas

superioresda atmosfera. Zona aindamal conhecida e que sónosúltimostempos tem preocupado os sábios. Entretanto, parece que é lá o paraísodos aviadores. Sendo o ar muito rarefeito, oferece menos resistência aovôo,demodoquepermiteaosaviõesalcançaremvelocidadestremendas.

Maschegadear,oupé,porqueagoratodasestasinvençõesaéreassãocoisasdopé.Vamosagoraveraboca.Queéboca?

Pedrinhorespondeulogo:—Éapartemaisimportantedocorpo,porquesemelaocorponãovive.

Comabocaéqueagentecome.—Efala—acrescentouNarizinho.—Masoprincipalécomer—insistiuomenino.—Ummudonãofala

masvive.Quemnãocomenãovive.Aindanãohouveumnão-comedorquevivesse.

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DonaBentariu-sedadiscussão.—Esperem.Vamosporpartes.Abocaserveparacomer,eissogarante

a vida do corpo. Está certo. Mas nesse ponto não há diferença entre ohomemeosoutrosanimais.Ondeohomemsedistanciadosanimaisénofalar.

—Masosanimaistambémfalam,vovó—advertiuPedrinho.—Nóséquenãoentendemosa linguagemdeles.Duas formigasqueseencontramfalamentresina lingüinhadelasedecidemcoisas.Tenhoobservado issomuitasvezes.

— Sim, os animais também possuem linguagem, que nós nãoentendemos.É,porém,umalinguagemmuitorudimentar,quedenenhummodo pode comparar-se à nossa. Eles também são inventores, mas emescalamínima.Emtudosomosmais,mais,mais,eemmatériadelinguagemsomostremendamentemais.

Comonasceua linguagem?Comcertezadanecessidadededefenderavida. Quando um gavião passa por cima do galinheiro não há galinhacriadeiraquenãodêsinaldeaviso—eospintinhoscorremparadebaixodas asas protetoras. O galo também avisa as galinhas. Eu imagino que ogritodemedooupavorfoiocomeçodalinguagem.Operigonosfazgritarsemquerer, comdois fins: espantar o perigo ou avisar outra criatura dequeháperigo.

A vida na Terra sempre esteve ameaçada de mil perigos; daí odesenvolvimentodogritodeaviso,que,sendocomumatodososanimais,sónohomemevoluiudummodotremendo.

Háduassortesdeperigos:oqueagentevêeoqueagentenãovê.Esteassusta mais, porque é misterioso. Vinha daí o pavor em que viviam astribosselvagens.Receavamsobretudoaescuridãoeosilêncio.Oescuroeraomistério,operigo.Qualquerbarulhinhodenoiteatéhojenosincomoda."Queserá?"Osselvagenspadeciammuitocomopavordastrevas,oquefezquesuaimaginaçãoinventassedeusesediabosemquantidadeenorme.Osdeusesprotegiam-noseosdiabosatropelavam-nos.

—Aqui no Brasil ainda temos o saci, vovó, que é um diabinho dumapernasóqueatormentaoscavalosnopastoeagentedaroça.

— Sim, temos o saci, a caipora, o lobisomem, a mula-sem-cabeça, abruxa e outros, tudo coisa do Capeta, que é o Diabo. Quem botou essascrençasnacabeçadopovo?Oescuro.Numagrandecidadebem-iluminadaànoite,nãohádisso.AscriançascrescemlivresdemedodoDiabo.Masnaroça, onde a única luz possível é a duma fumarenta lamparina dequerosene,oDiaboaindatemgrandeimportância.

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Feras de dia e diabos de noite — eram os dois grandes pavores dohomemprimitivo.Eomeiodedefesaestavanogrito.Comoogritomuitasvezesespantasseasferas,elesaplicavamomesmoprocessoparaespantarosdiabos.

Mas o grito requer muito esforço das cordas vocais. Tornou-senecessário inventar gritos mais poderosos, de defesa e de aviso, isto é,inventar gritos mecânicos de grande alcance — e o homem meteu-se aaperfeiçoarogrito.

O tanta dos selvagens, donde saíram os tambores modernos, foi oprimeiropassonessecaminho.

—Queéotanta?—Umtroncodepauocosobreoqualpregavam,bemesticadinha,uma

peledeanimal.Batendonapeleosomaumentavapelaressonânciadentrodooco—eobarulhoassimfeitoeramuitomaiorqueobarulhoproduzidocomaboca.

Em certas tribos os tantas trabalhavam sem descanso. Os selvagensbatiamnelesdiasinteiros,àsvezessemanas,quandoosdiabossetornavammuitoagressivos.Abarulhadaosmantinhaàdistância.

Depois vieram os sinos. Na Idade Média, tempo da mais crassaignorância e portanto tempo de pavor geral, a função dos sinos era amesma do tanta dos selvagens — afugentar para longe os diabos ouespíritosmaus. Não havia cidademedieval em que o sino de bronze nãotocasse de atordoar a população. Depois que o povo foi saindo daquelaestupidez, a função do sino mudou. Passou a servir para o mesmo queaindaservehoje—daravisodemissas,marcarhoras,convocarreuniõesdopovo,anunciarincêndioseoutrascalamidades.

Já os seguidores da religião de Maomé nunca usaram o sino. Parachamar os fiéis à oração sempre empregaram a voz humana. Os seussacerdotes, chamados muezins, gritam avisos do alto de esguias torreschamadasminaretes.

Depoisqueomedoaosespíritosdecresceu,afunçãodogrito,dotantaedosinolimitou-seaavisar.

Entreos avisadosestavamosmarinheirosdosnaviosquenavegavampertodascostas.Operigodasrochasàflord'águaeragrande,demodoqueemcertospontosficavamhomensdeplantãoparagritaravisologoqueumbarcoseaproximava.Paraissoinventou-seuminstrumentodeaumentaroalcancedavoz—omegafone.Éumacometadentrodaqualosomressoa,crescendodevolume.

DosdesenhosencontradosnostijolosdaBabilôniavê-sequejánaquele

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tempoera conhecido essemeiode aumentar o som.Os feitoresdeobrasusavam-noparade longedaremordensaosescravos,demodoquetodosouvissem.

Jáeraalgumacoisa,maspoucodiantedoqueprecisavaser.Numanoitede tormenta em que o vento uivasse, era impossível aos navegantesouvirem o aviso do megafone— e lá davam os navios sobre as rochas,naufragando.

Foiprecisoinventarcoisamelhoreadotou-seoavisopormeiodaluz.—Osfaróis!— Isso mesmo. No começo, simples fogueiras acesas de noite nos

promontórios.Depois, torrescomuma luzpermanenteemcima.Entreosfaróis ficou célebre o de Alexandria, construído trezentos anos antes deCristo.Foiconsideradoumadassetemaravilhasdomundo—edeviaser,porqueresistiudepédurantedezesseisséculos,acabandodestruídopelofurordumterremoto.

Osromanosforammestresnaartedosfaróis.Construírammuitoscomgrandehabilidade.Depoisdaquedadosromanos,veioatristeIdadeMédiaemqueoshomenssócuidavamderezar—eosfaróisficaramreduzidosaruínas,ouforamtransformadosemcapelas.Omundoescureceudumavez.

—Masiluminou-sedenovo—advertiuPedrinho.—Sim.Depoisde longomarasmooshomensdaEuroparetomaramo

progressonopontodeixadopelosgregoseromanos—ereconstruíramosfaróis indispensáveisànavegação.Entrouemcenaopetróleocomo fontedeluz.Maistardeadotaramaluzelétrica,muitomaispoderosa.

Infelizmente o farol tem o grave defeito de nada valer nos dias denevoeiro. Para resolver o problema o homem teve de voltar ao grito,porque, se a luz não atravessa os nevoeiros, o grito atravessa — eapareceramasmáquinasdegritar,entreelasoapitoavaporeasereia.

Asereiaéterrível.Dáumgritodeouvir-seaquilômetrosdedistância.Eacoisaficouassim.Tempolimpo?Luz.Nevoeiroforte?Gritodesereia.

Hojetudomudoucomorádio.Osnaviospodemseravisadosdoperigosem grito, nem luz nenhuma. Basta uma comunicação lançada ao ar. Osnavios a apanhamondequer que estejame ficam sabendoo quehá. Pormeiodeleoshomensem terrapodemcomunicar-se constantementecomosqueestãonomar.

Masquantotempoequantospassosatéchegarmosaesseponto!Paradarsinaisoupôr-seemcomunicação,ohomemlançoumãodosmeiosquejá vimos e ainda de outros. O pombo-correio, por exemplo. Essas avespossuem um extraordinário senso de orientação que lhes permite voltar

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paracasadeondequerquesejamsoltas.Ohomemutilizou-sedessesensodeorientaçãoparatransformarospombosemcorreios,ouportadoresderecados.

Aqui já é a vista auxiliando a boca. Um recado escrito corresponde aumafalaçãosemsons.

Foramusadíssimosossinaisquesedirigiramaosolhos,cujoalcanceémuito maior que o dos ouvidos. No mar, antes do rádio, os navioscomunicavam-se uns aos outros, ou com a terra, por meio de sinaissemafóricos.Comváriasbandeiras,erguendo-asouacenando-asdeváriosjeitos,oracomumaoracomoutra,conseguiamdizeroquedesejavam.EnaAntigüidadeossinaisvisíveisaosolhosforamusadosparatransmitircomrapidez notícias ou ordens. Quando a cidade de Tróia foi tomada pelosgregos,anotíciachegouaAtenaspormeiodesinaisdefumaça.

—Comoisso?—Acendiamumfogofumarentonumalto;deoutroaltooshomensque

avistavamafumaçaacendiamoutrofogo—eassim,defumaçaemfumaça,anotíciachegouaAtenas.

—EquetinhaafumaçacomatomadadeTróia?— Como os gregos contassem com a vitória, já haviam com

antecedência combinado aquilo. Fumaça nos altos queria dizer vitóriasobreostroianos.

Esse meio de telegrafar notícias era rudimentar demais e em tudodependentedobomtempo.Bastavaumachuvaparaestragarocapítulo.Oproblema só foi bem resolvido depois que Morse, um pintor americano,inventouotelégrafoelétrico.Foiumpassogigantesco.Tornou-sepossível,por meio de sinais que representavam letras, telegrafar dum extremo aoutrodumpaísquantaspalavrasohomemquisesse.Emaistardetornou-sepossíveltelegrafardumpaísaoutro,dumcontinenteaoutro.

—Como?— Por meio do telégrafo submarino. Encastoam muito bem o fio

telegráficoeofazemcorrerpelofundodooceano.Hoje o telégrafo submarino está perdendo a importância. O rádio o

substitui.Acomunicaçãopelorádiotemavantagemdenãoexigirfios.Vemsoltapeloar.

—Estáaíumacoisaquenãoentendo—dissePedrinho.—Otelégrafoeo telefone entendomuito bem. As palavras caminham por um fio.Mas orádio?

—Realmenteédenãoseentender.Quemdescobriuesseimensocamponovofoiumalemão,Hertz;daíchamarem-se"ondashertzianas"asondas

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que nos trazem os sons transmitidos pelo rádio. Hertz descobriu essasondasedeterminouas leisqueasgovernam.Foiograndepasso.Orestoteriadevir fatalmente—eveiopor intermédiodum italiano,Marconi, oinventordotelégrafosemfio.

Notemqueumainvençãotrazconsigooutras.Depoisdotelégrafosemfio veioo telefone sem fio, e agora já temoso rádiodeondas curtas. É amaior das maravilhas. Falam lá numa estação da Europa ou da Ásia eouvimos tudoaqui comamaiorcomodidade.Maso rádionãoserveparafalar segredos.O queumouve, todos ouvem, demodoque os amigosdosegredotêmdecontentar-secomotelégrafo.

—Equeminventouotelefone?— Muitos homens lidaram com isso. Quem, entretanto, j resolveu

praticamente o problema foi um professor escocês ' duma escola desurdos-mudosemBoston,nosEstadosUnidos.

Chamava-seAlexandreGrahamBell.Bellquerdizersinooucampainha.Porissoascompanhiastelefônicasadotamosinocomomarca.

—Ahn!—exclamouPedrinho.—Bemquejáviisso,alinaestaçãotelefônicadavila.Masnãosabiaarazão.Estacámefica.Bell,sino...

—Pois esse professor fez que a boca humana adquirisse um grande

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alcance.Antesdelenossavozsópodia serouvidaapequenadistância—dezenas de metros. Bell multiplicou tremendamente essas dezenas demetros.Podemoshoje falardaqui comumapessoa lánaEuropa—e tãobemqueatélhereconhecemosavoz.

Asmaravilhasdainvençãohumanaacumularam-sedetalmaneiraquerapidamente nos acostumamos a elas, a ponto de não lhes prestarmos amenor atenção. Ficam como se fossem coisas que existiram sempre. Aescrita,porexemplo.Quempensa,quemrefletesobreessemilagrequeéaescrita?Equeéaescrita?

—Éomeiodefixaretransmitiropensamento.—Ecomoapareceu?__?—Ossábiostêmquebradoacabeçanoestudodisso.Pensemumpouco.

No princípio o homem desenvolveu a linguagem, isto é, a arte de seentenderem por meio de sons emitidos pela boca. Um grito queriasignificarumacoisa;outrogritosignificavaoutra.Depoisvieramsonsquenão eram gritos e significavam outras coisas — e o que chamamoslinguagemfoisedesenvolvendo.

Mas esses sons que saíamda boca e significavam coisas não eramosmesmosemtodasastribos.Daíadiversidadedaslínguas,emboraemtodasas línguas as coisas que os sons significam sejam as mesmas. A arte datraduçãoveiomostrarcomoaspalavrasde línguasdiferentesdesignandoumamesmacoisasecorrespondem.

—Issoéfácil—dissePedrinho.—Seeuvejouminglêsapontarparauma pedra e dizer stone, fico sabendo que stone corresponde à nossapalavrapedra.

—Muitobem.Eparafixaressapalavra?Eparafixarosconhecimentosque os homens iam adquirindo, de modo que a experiência do passadoaproveitasseaopresenteeaofuturo?Issoéquefoiomilagre.

A escrita começou com desenhos. Nas cavernas pré-históricasencontramosdesenhosdeanimaisecoisasfeitospelospeludoshámilharesde anos. Era o começo. Com aqueles desenhos eles fixavam na pedraacontecimentosqueseusfilhosenetosentendiam.

Depoisvieramoschinesescomainvençãodumsinalparacadapalavra.Resolvia o problema, mas dava aos estudiosos um trabalho infinito. Oschins possuem mais de quarenta mil sinais diferentes — imaginem atrabalheiraparaumestudantedecorá-lostodos!Levavaavidainteira.

Os egípciosderamnovopassoà frente. Inventaramoshieróglifos, emqueháumacombinaçãodesinais formandopalavras,oque tornou inútil

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haverumsinalparacadapalavra.Depoisveioagrandecoisa,o alfabeto inventadopelos fenícios, istoé,

vinte e tantos sinais que servem para escrever todas as palavras que ohomemusa.

—Comoconseguiramisso?—EramosfeníciososmaioresnegociantesdaAntigüidade.Nãofaziam

outracoisasenãocompraraquipararevendercomlucrosláadiante.Tendotransaçõescommuitagente,surgiuanecessidadedetomarapontamentos.Pegaramentãooshieróglifoseosforamaperfeiçoandoesimplificando,atétransformá-losnessemaravilhosoinstrumentoqueéoalfabeto.

Oalfabetodosfeníciosveiopermitiramaiorperfeiçãonaescrita,istoé,ummeiodefixareperpetuaropensamento.Foiumprogressogigantesco.Graçasaoalfabetoumhomemdehojepode leroquePlatãoescreveuháséculos, e os meninos do ano 3000 poderão ler as futuras memórias daMarquesadeRabicó...

Emíliarebolou-setoda.— Antes do alfabeto o homem fixava os fatos com o desenho. Nas

cavernas pré-históricas encontram-se, junto às ossadas que as enchem,pedrinhas com sinais. Os sábios ainda não conseguiram traduzir essessinais,comoofizeramcomossinaishieroglíficos,rúnicoseassírios.

—Sinaisrúnicos?Queéisso?— São os sinais encontrados nas pedras do norte da Europa.

Dinamarca,Suécia,Noruega,Islândia.Run,emlínguadaIslândia,querdizermisterioso. Notem que a idéia de fixar os acontecimentos por meio dedesenhos ia ocorrendo a todos os povos ao mesmo tempo, cada qualusandosinaisseus.

Masdepoisdainvençãodoalfabeto,aartedefixaropensamentopelaescritasedesenvolveurapidamente.Vieramoslivros.Vieramosjornais.Eemnossos temposveioamáquinadeescrever,o fonógrafoqueguardaosom exatinho como foi ouvido pela máquina, e vieram ultimamente osprocessosqueocinemafaladousa.

Vejamquemaravilhaestáficandoomundo,graçasàsinvenções!Oqueumhomemdizhojepodeserguardadoerepetidodaquiamilanos.Epodeser jogado ao ar demodo que lá nos antípodas o ouçam. Podemos tudo.Podemos até transmitir daqui para a Europa um desenho, uma imagemqualquer.

—Como?—Pelo telefone. Ali na Enciclopédia Britânica há a reprodução duma

vista fotográfica transmitidada cidadedeCleveland, nosEstadosUnidos,

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para a de Nova York. Perfeita. Pura maravilha. E esse serviço já estáorganizado por lá. Um banqueiro de Londres que quer transmitir comurgência um documento para Nova York chega à estação telefônica emandatransmitirodocumentofotograficamente.InstantesdepoisacópiaigualzinhaestáemNovaYork.

Antes desses assombros o meio de reproduzir um desenho era pelagravura em madeira ou metal. O gravador gravava o desenho e depoisimprimia-o no papel. Era caro, trabalhoso e não muito fiel, porque ogravador semprevariavana cópiadodesenho.Apareceuentãoagravuramecânica. Fotografa-se o desenho numa chapa de metal e, depois dunsbanhos químicos, obtém-se um clichê que pode ir para o prelo. Dáreproduçãoigualzinhaaomodelo.

A fotografia foi outra invenção assombrosa e de conseqüênciastremendas.Pormeiodelaohomemcolheaimagemdascoisaseafixanopapel. E como uma invenção sempre puxa outra, da fotografia nasceu ocinema,queéamesmafotografiarepetidamilharesdevezes,demodoqueaodesfilardiantedenossosolhosreproduzaomovimento,avida.Edepoisveioocinemafalado,quereproduzomovimentoetambémossons.

—Issoéqueémesmoumassombro,vovó!OutrodiaviaBaboona,umfilmedaÁfricatiradopelocasalJohnson.

Fiquei idiota. A vida dos animais— leões, tigres, serpentes enormes,girafas,elefantes,flamingosaosmilhões,macacadaquenãoacabamais—estavatudoali,tãovivocomtodososurrosebarulhinhos,queeraomesmoqueagenteestaremplenaÁfrica.Viajarhojeébobagem,porqueagentepodevertudo,tudo,eouvirtodosossons,semsairdecasa...

—Realmente,meufilho:AsinvençõesvãomudandodetalformaavidadohomemnaTerra, queo cérebromal tem tempoparaadaptar-se.Essagrandecoisaqueeraviajar,cadadiaperdeumbocadodasuaimportância.Viajávamosparavereouvir.Eraoúnicomeio.Hojevemoseouvimostudosemsairdecasa.Antigamentequemqueriaboamúsicatinhadeiràcidadeem dia de concerto. Hoje temos concertos de graça a toda hora. Eescolhemos. Pulamos da música argentina para a alemã. E com umatorcidinha da chave do rádio pulamos para os sambas do Brasil. E se amúsicanosaborrece,zás!arrolhamososfazedoresdemúsica.Eu,quesouvelhaejáconheciostemposemquenãohavianadadisso,seidarvaloraessasinvenções.Vocês,não.Jánasceramdentrodelas...

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XII–ONARIZ

NooutrodiaDonaBentafaloudonariz.—Pobrenariz!Dosórgãosdossentidoséomaisatrasado,omaisfeio,o

menos útil. Presta bem poucos serviços ao homem, comparado com osórgãosdosoutrossentidos.Eseporacasoficainútilquandoumresfriadonos"deixasemnariz",nemsequernosdamoscontadisso.Onariz,coitado,éumpobre-diaboquetemosnacaraecujafunçãoécheirar.

—Etambémcabidedeóculos—observouamenina.—Sim.Ocoitadoservedecavaloparaosóculos,umainvençãozinhade

benefícionãoparaele,masparaosolhos.Onarizhumanodiaadiaperdede importância.Nosanimais temumafunçãomuitomaisséria.Éoórgãodo faro. Não há animalzinho das florestas que não possua um faromaravilhoso.Delongepercebemoinimigoouacaçadequesealimentam.Se lhes cortássemos o nariz ficavam aleijados, incapacitados de bem sedefenderem.Mas nós, com ou sem nariz, viveríamos damesmamaneira.Nãonosfazgrandefalta.

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Infeliz em tudo, o nariz. Os poetas abrem-se em grandes elogios aosolhos,àboca,àsmãos.Aonariznada.Nenhumcantaonariz.Nenhumpõeonarizemsonetos.Sóosmédicoslidamcomele,porqueonarizvivedoentecomascorizas,osresfriados—pingando,fungando..

E não houve invenção nenhuma para aumentar o poder do nariz. Ohomemjamaiscuidoudele.ÉaGataBorralheiradacasa.MasGataantesdeiraobaile.OpríncipedessaCinderelaestácustandoaaparecer...

NessemomentoEmíliaespirrouepuxouoseulencinho.Todosriram-se.

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XIII–OOUVIDO

—Eoouvido,vovó?—perguntouNarizinho.—Oouvido tambémnãoédosórgãosque tenhampreocupadomuito

aohomem.Mesmoassimderrotaonariz longe.Várias invençõesexistemque lhe aumentam o poder, quase todas bem modernas. Há as cometasacústicas, que permitem aos surdos ouvir alguma coisa. Há omicrofone,queaumentaovolumedosom,permitindoqueoouvidoouçacoisasquesemeleseriaminaudíveis.

—Queéisso?— Inaudível é o contrário de audível. Audível é o que se pode ouvir.

Inaudível é o que não se pode ouvir. Certos barulhinhos microscópicostornaram-sehojeperfeitamenteaudíveisgraçasaomicrofone.

Aaviaçãoveiofazeroouvidohumanomaisprestadiodoqueera.Háanecessidadedeouvirdomaislongepossívelaaproximaçãodumaeroplanoinimigo,eohomeminventouaparelhosquepermitemcaptaroruídodosmotoresaumadistânciaenorme.

Aáguaconduzmuitobemosom,demodoqueoshomensdomardehá

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muito vinham aproveitando essa propriedade para transmitir sinais quepudessemserouvidospelosmarinheirosdeoutronavio.Qualquerpancadaquesedênapartesubmersadocascosetransmiteagrandedistância.

Na medicina também existem instrumentos que permitem ao ouvidoouvirossonsinternosdosórgãosdocorpo.Omédicoausculta.Auscultaréescutar medicamente. O estetoscópio é um desses instrumentos, usadoparaouvirosomdoarnospulmões,verificandoassimseesseórgãoestáfuncionandonormalmenteounão.Eéquasequesó.

—Coitado!—exclamouEmília.—Formaumaboaparelhacomonariz,nãohádúvida...

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XIV–OOLHO

—Hojequeé?—perguntouNarizinhonodia seguinte, quandoDona

Bentasesentouparaoserãocientífico.—Hojeéoolho—omaismaravilhosoórgãodequedispomos.Oolhoé

oórgãodavista,eoqueéavistanãoprecisoexplicar.Quemquisersaber,bastaquefecheosolhosporalgunssegundos.Issoensinarámelhordoqueumlivrointeirooqueéeoquevaleavista.

Osmeninosfecharamosolhosporalgunssegundos.—Quehorror!—exclamouNarizinhoreabrindoosseus.—Quehorror

acegueira,vovó!...— E no entanto há animais completamente cegos que se arrumam

muitobemnavida—disseDonaBenta.—Maspossuemosoutrossentidosapuradíssimos, de modo que conseguem equilibrar a ausência de olhos.Vamosvero livrodecapapreta.DonaBentacorreuosolhospelo livroefalou:

— Van Loon começa dizendo que os homens vivem no fundo dum

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oceanodearde talprofundidadequeninguémainda conseguiu chegar àsuperfície.Durantecertashorasdodiaesseoceanogasosoestáiluminadopelosraiosdesol.Estácheiodeluz—aluzsolarquenospermitever.Porquê?Porquepertencemosaumaespécieanimaldotadadeolhos,istoé,deórgãossensíveisàluz.

Omecanismodosolhoséummistério,meusfilhos.Puramaravilhadanatureza.Poisapesardissoumsábioalemão,especialistanoconhecimentodosefeitosdaluz,declarouquequalquerfabricantedeaparelhosdeóticaseenvergonhariasedesuasoficinassaísseumórgãotãoimperfeitocomooolhohumano.

— Como se chama esse monstro, vovó? — perguntou o menino,indignado.

— Helmholtz. E o interessante é que ele prova com muito bonsargumentos que o olho humano podia ser infinitamente mais bemarranjado...

Osmeninosdanaramcomosábioalemão.—Opeludo—continuouDonaBenta—aprendeunapráticaquecom

os dois olhos que tinha no rosto ele se garantia dos perigos vendo osperigos. Notou que se fechasse os olhos estava liquidado e à mercê dasferas atacantes. Tambémnotouque logoque o sol desaparecia atrás dosmorros,eraomesmoqueelefecharosolhos.A.noitecorrespondeaolhosfechados. Por isso, para fugir aos perigos que ameaçam as criaturas deolhosfechados,logoqueanoitesobrevinhaopeludocorriaaesconder-senascavernas.

Depoisqueaprendeuaacenderofogo,observouqueofogodavaumaluzinhabemboa,capazdetornarasnoitesmenosperigosas.Eveioohábitodeiluminarcomfogueirasascavernas.Sentia-seassimmaisgarantido;asferas não se aproximavam; limitavam-se a rondar por perto,intrigadíssimascomaquelemistériodofogo,quenãocompreendiam.

Começou então o aperfeiçoamento da arte de combater o escuro. Ospeludosforamexperimentandooraum,oraoutromaterialcombustívelatéacertarcomoóleo,quetemapropriedadedeembeberumamecha,dandoumaluzcontínua, istoé,queduraenquantoháóleo.Abanhadosanimaisfoiaprimeirasubstânciaempregada.

Surgiu o archote. Se embebermos uma corda de fibra em óleoformaremos uma corda gordurosa, que se queima lentamente até otoquinhofinal.Osgregosusarammuitooarchote.NospoemasdeHomeroháarchotesempenca.

Veio depois um progresso. Em vez de embeber a corda no óleo,

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colocavamneleumacordinha—mechaoupavio,eobtinha-seluzmelhor.Essesistemadeiluminaçãoperduraatéhoje.Sótemvariadooóleo.Usou-seodebaleia.Vieramdepoisosóleosvegetais,comoodamamona,eporfimoóleomineral,oupetróleo,queéomaisbarato.

Pormilharesdeanosohomem iluminousuasnoitesassim,apesardaincômodafumaçadesprendidaportaislâmpadas.Umprogressograndefoia vela emqueopavio se reduz aomínimoe ficadentrodumcilindrodematéria queimante. A cera passou a ser usada, e até hoje a vemos nasigrejas—os círios. Apareceramdepois as velas de espermacete, que é amassaqueasbaleiaspossuemnacaixacraniana.Surgiutambémaveladesebo,efinalmenteasvelasmodernasdeestearina,emqueoespermaceteeosebosãosubstituídosporumamisturagraxa.

Aluzdasvelas,porém,eramuitofraquinha.Alémdissocara.Ohomemcontinuou a procurar melhores meios de produzir luz. Lembrou-se dequeimarogásdocarvão-de-pedra.

Sabemcomoogásentrou?DuranteaRevoluçãoFrancesaosbalõesdear quente tomaram um grande desenvolvimento na guerra, paraobservaçãodosacampamentosoudamarchadoinimigo.Umfísicofrancêsteveaboaidéiadeenchê-loscomgásemvezdearquente.Usouogásdecarvão-de-pedra,queé tambémmais levequeoar.Masogasômetroqueeleconstruiutinhaumrendimentomaiorqueonecessário—eotalfísicolembrou-sedecanalizarparasuacasaogásquesobrava,empregando-onailuminação.

O povo estranhou muito aquela "arte do Diabo", mas, como outroscomeçassemaimitarofísico,omedofoiacabando.Porfimtodasascasasqueseprezavameasruasdascidadesimportantesacabaramiluminadasagás.

Parece incrível,masaresistênciafoigrande.AsautoridadesdacidadedeColônia,naAlemanha,condenaramaluzdogáscomoofensivaàreligiãoeaindaporcimaantipatriótica...

—Porquê?—Ofensivaà religião,porqueDeushavia criadoodiaeanoite, eera

heresiaquerermodificarisso.Eantipatriótica,porqueacostumavaopovocomaluzduranteanoite,dessemodoimpedindo-odeentusiasmar-secomailuminaçãodosdiasdefestanacional.

— Bem diz a senhora que a estupidez humana não tem limites —comentouPedrinho.

—Poisé.Houvegranderesistênciaaogás,oquenão impediuqueelevencesse e se generalizasse. Todas as cidades de alguma importância

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passaram a iluminar-se pelo novo processo. No Estado de São Paulotivemosumacidadedointeriorquepormuitosanosseiluminoucomogásextraídodoxistobetuminoso,abundantenasmargensdorioParaíba.

—Quecidadefoiessa?—Taubaté.—Eaindaousa?—Não.Depoisqueaeletricidadeentrouemcampo,ailuminaçãoagás

morreu completamente. Hoje, Taubaté e todas as cidades do mundo sóusamaluzelétrica,muitomaiseconômica,maislimpa,maistudo.

Essenovohábitodeterluzdenoiteentretantoveioafetarosórgãosdavista. Quando a natureza fez os olhos não previu que o homem fosse apontodedestruir as trevas noturnas em suas casas e cidades. Coma luzartificialcomeçouoabusodelerànoite,detrabalhardenoite,eosolhosseressentiram.Avistaenfraqueciamaisdepressa.

Tocaa corrigiraquilo.Como? Inventandomeiosdeaumentaropoderdavistaenfraquecida.

—Evieramosóculos—adiantouNarizinho.—Isso.Atribui-seainvençãodosóculosaRogerBacon,umantigosábio

inglês.Amodapegou.Todagentequeriausaróculos,precisasseounão,porachar bonito. Muitos os adotaram para se impingirem como estudiosos.Estãovendo?Fiqueicomavistafracadetantoler.

Mas hoje o número de pessoas que usam óculos porque de fatoprecisam é enorme. Entre os que lêemmuito o uso é quase geral. Comotambém é geral entre os velhos. Os anos enfraquecem nossa vista, comoaliástodososoutrossentidos.Eu,porexemplo,quenuncaabuseidosmeusolhos,jánãopossolersemestesvidros.

—PoiseuenxergoumapulganopêlodaGrandeUrsalánocéu—disseEmíliagabolamente.

Emília vivia a proclamar o maravilhoso poder de visão dos seusolhinhos, deixando os meninos na dúvida. Seria verdade ou peta?Impossívelverificar.NarizinhoePedrinhoenxergavamnaperfeição,comoemregratodasascriaturasaindanocomeçodavida. JáEmíliaenxergavamilvezesmais,segundoviviadizendo...

—Masaeletricidade—continuouDonaBenta—,alémdeacabarcomastrevasdentrodecasaenasruas,veioaumentarmuitoopoderdosolhoshumanos.

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Graçasaosholofotes,quesãoluzesfortíssimasqueohomemprojetana

direçãoquequer, conseguimosdevassarosespaços sobretudonaguerra.Umavião inimigopodeservistoaenormedistância,pormaisescuraquesejaanoite.

Agrandeproezadosolhos,porém, foiemrelaçãoaocéu.A infinidadedeestrelasqueenchemoespaçoànoitesempreimpressionouvivamenteaimaginação humana. Surgiram os astrônomos, isto é, os homens que sededicamaoestudodosastros.NaBabilônia,noEgito,naGrécia,aciênciadocéualcançougrandedesenvolvimento.Massóusavamnessesestudososolhosnaturais.

—Háolhosartificiais,então?—Há. Os instrumentos que dão grande poder aos olhos bem podem

chamar-seolhosartificiais.RogerBaconparecetersidooprimeiroateraidéia,mas foi naHolanda que os óculos de alcance apareceram. Povo demarujos, talvez a necessidade de ver ao longe os conduzisse a essainvenção.

AHolandapassoua forneceróculosdealcanceou lunetasaorestodaEuropa. Uma delas caiu na mão dum italiano de nome Galileu, que aestudou e a transformou no telescópio, isto é, num poderosíssimo óculocapazdeaproximartremendamenteosastrosquebrilhamnocéu.

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Estudandoocéu,Galileuviuqueasidéiasaceitaspelos"sábiosoficiais"da época estavam erradas. Eles queriam que a Terra fosse o centro douniversoequeoSollhegirasseemtorno.Galileuprovouocontrário—epor um triz não foi queimado vivo. Teve de comparecer perante ostribunaisreligiosos,queoobrigaramadesdizer-se.

Denadaadiantouessaestúpidaviolência.Averdadeestavacomosábioitaliano,ehojeninguémseanimaadizerqueaTerraéfixa.

Galileu,portanto,inventouomeiodedaraosolhosopoderdeestudarocéu e ver os astros invisíveis a olho nu. Hoje os telescópios estãoaperfeiçoadíssimos.Sãomáquinasgigantescasdealtíssimapotência.ALuanotelescópioficapertinho—aalgunsquilômetrosapenas.

—Comoéotelescópio?—Nãopassada combinaçãodumcertonúmerode lentes, ou cristais

com a propriedade de aumentar os objetos vistos através deles. Se esseinstrumentos aponta para o céu, é telescópio — engenhoca de verlongíssimo.Seapontaparabaixo,viramicroscópio—instrumentodeverpertíssimotodasascoisinhasinvisíveisaolhonu.Otelescópiosólidacomas maiores coisas que existem — os astros. O microscópio lida com asmenores—comoosmicróbios.

—Euqueriatantoterummicroscópio!...—suspirouPedrinho.— Deixe. Quando o café subir, comprarei um. É na realidade um

instrumentomaravilhoso.Graçasaeleoolhohumanoconseguedevassaroque os sábios chamam omundo do infinitamente pequeno. E da mesmaforma que o telescópio se aperfeiçoa constantemente, omicroscópio nãofa2outracoisasenãoaumentardepoder,aumentandodessemodoopoderdoolhohumano.

— Eu queria ter um telescópio— disse Narizinho.—Deve ser lindopassaranoiteadescobrirastrosinvisíveisaosolhosdetodomundo...

—Realmente.SetivéssemosaquiofamosotelescópiodemonteWilson,nosEstadosUnidos,omaiordomundo, comcempolegadasdediâmetro,vocêshaviamderegalar-se.Essetremendoolhoartificialalcançaastrosadistância de trezentos milhões de anos-luz. Com ele, os astrônomosdistinguemcemmilhõesdevias-láteas, tãograndescomoasquevemosaolhonu.

—Cemmilhões,vovó?Quecolosso!. . .Entãoouniversoémesmoumabsurdodegrande...

—Ah!minhafilha!Nemqueirapensarnisso.Étãograndeouniverso,queumasódessas cemmilhõesdevias-láteasmostraoitentamilhõesdevezesmaismatériadoqueaquecompõeoSol.

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—Puxa!—exclamouPedrinho,arregalandoosolhos.—Onúmerodeastrosqueohomemvêcomoolhoartificialétambém

oitentamilhõesdevezesmaiorqueonúmerodasnebulosas.Esabemqualéonúmerodasnebulosasconhecidas?

DonaBentaparouparatomarfôlego;depoisdisse:—Quinhentostrilhões!...—NossaSenhora!—gritouamenina.—Issoatédátonturanagente,

vovó!Oitentamilhõesdevezesquinhentostrilhões!...TiaNastáciaentrounessemomentocomapeneiradepipocas.— Está aí uma invenção de que a senhora não falou— disse Emília,

apontando para as pipocas. — E é das boas, porque Narizinho já estálambendoosbeiços.

—Lábios, aliás— emendou amenina.—Beiço é de boi. DonaBentafalouaindadeinúmerascoisasinventadaspeloshomens;depoisdiscorreusobreomuitoqueaindaeranecessário inventar.A idéiadomelhumanoentrouemcena.

—Todasasnossasdoenças—disseela—vêmdeerrodealimentação.Jáconversamossobreisto.Ohomeméoanimalquenãosabecomer.Daíasdoenças.Nodiaemqueinventarmosumalimentoperfeito,comoomeloéparaasabelhas,nessediaasfarmáciascomeçarãoafecharasportas.

Espantoso o homem, meus filhos! Mede a distância entre os astros;pesa-os;descobremilhõesdemilhõesdevias-láteas;tornavisíveloqueéinvisível;faladumcontinenteparaoutro;voacomvelocidadesespantosas;fazprodígios sobreprodígios—masnão sabe comer.Come tudoquantoencontra, e ainda comete o crime de destruir com o fogo o que há demelhor nos alimentos. Leite fervido, por exemplo, não é mais leite— écadáverdeleite.Etodosnóssofremosastremendasconseqüênciasdesseserros,nummundoemquetodososanimaizinhoschamadosinferioressãomestres na arte de comer. As abelhas, por exemplo. Não é maravilhosocomoacertaramcomasuacomida?Chegamapontode"fabricar"assuasrainhascomumasimplesmodificaçãodoalimentocomum.

—Como?— Se querem criar uma rainha nova, limitam-se a modificar a

alimentação duma larva qualquer. As abelhas sabemque o animal se fazpelaboca.Ohomemtambémsabedisso,massóoaplicaaosanimaisquecria— aos cavalos, aos bois, às aves domésticas. Quando se trata de sipróprioohomemfalha lamentavelmente.Por isso,Pedrinho,nãoesqueçaderealizaraquiloqueprometeu:inventaromelhumano.Essa,sim,vaiseramaiordasinvenções.

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—Fiquedescansada,vovó—declarouomeninoconvencidamente.—Juroqueheideresolveresseproblema.

—Eeu?—perguntouNarizinho.—Queheideinventar?—Inventeumamáquinadecosturarquenãoprecisede linhanemde

agulha—disseDonaBenta,lembrando-sedatragédiaquelheeraenfiaraagulhaeda lutaparaacharocarretel.ComanovamaniadePedrinho,deempinarpapagaios,nãohaviacarreteldelinhaqueparassenamáquinadeDonaBenta.

—Poiseuheideinventarcoisamuitomelhorqueomelhumano,queorádio,quetudo!—gritouEmília.

Todosficaramatentos,àesperadaasneirinha.—Vou inventaramáquinade fazer invenções.Bota-sea idéiadentro,

vira-seamanivelaepronto—tem-seainvençãoquesequer.Quindim,queestavaespiandopelajanela,fezquó,quó,quó...

CamposdoJordão,setembro,1935.

FIM

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Notas(1)IstofoiescritomuitoantesdorompimentodaSegundaGuerraMundial.(2)BairroindustrialdeSãoPaulo.(3)AlgunsanosdepoissobreveioohorríveldesastredozepelimHindenburgnomomentodechegaraosEstadosUnidos.Acatástrofehorrorizouomundoeninguémmaisquissaberdosdirigíveis.