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1 OLGÁRIA MATOS UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO - USP Fetichismo: princípio de realidade e “morada do sonho” Esta comunicação é sobre a questão do fetichismo da imagem e as relações entre princípio de realidade e aquilo que Walter Benjamin denomina, no seu livro Passagens, moradas do sonho. O cinema vai coincidir com o advento da metrópole, portanto da vida urbana, e de todos os mecanismos do capitalismo. Também o cinema, para Benjamin, rompe com essa idéia da cisão entre cultura de elite e cultura popular ou entre a separação daquilo que se chama de classes sociais e classes culturais. Ou seja, temos uma tendência a separar aquilo que se chama, no modo de produção, classes sociais e aquilo que corresponde, no modo de fruição, ao que são as classes culturais. Parte-se desta classificação para conceituar o “verdadeiro” público minoritário e cultivado em oposição à multidão inculta e que seria afetada por um déficit na faculdade de julgar e de avaliar, porque essa classe cultural de elite e a massa estariam cindidas pela sociedade do espetáculo, que produz, a um só tempo, mercadorias e fetiches. Esse conceito de “sociedade do espetáculo”, na maneira como Benjamin o entende, separa justamente o representante do representado, portanto, nesse mecanismo se dissociam aquilo que devia estar numa relação imediata, quer dizer: a imagem e a coisa da qual a imagem é a representação deveriam coincidir. Não obstante, na sociedade do espetáculo se cindem a imagem e o objeto do qual a imagem é a representação. Cito, em particular, Guy Debord quando diz: “o espetáculo é a realização técnica do exílio dos poderes humanos e no mais além”. 1 O que seria esse exílio dos poderes humanos no mais além? Significa que a razão conceitual, aquela que é capaz de compreensão, de interpretação, de passar da instantaneidade de uma percepção ao sentido dessa percepção, não mais se pode exercer. O que acontece é que, agora, essa imagem cindida do objeto se dirige para o público, a fim de persuadi-lo, e essa persuasão que é uma espécie de abolição da faculdade de pensar é a demonstração. Ou seja, hoje, as grandes massas estariam privadas da possibilidade de compreensão, porque não existe mais a demonstração, e aqui, lembro Aristóteles que, na sua Retórica 2 , já mostra a diferença entre a demonstração e a persuasão. A demonstração se inscreve na lógica do verdadeiro e do necessário, por isso ela parte de premissas verdadeiras e universais, e é a elaboração de um saber teórico, enquanto a persuasão procede da lógica do verossímil e, portanto, suas formulações são por natureza contingentes e prováveis, e, nesse caso, pertencem não ao campo da ciência, se campo teórico, mas ao campo da política e da opinião. Seria interessante não vai ser o caso agora mostrar como essa concepção de persuasão resultaria no vocabulário de Marx na análise das questões de ideologia. No caso da ideologia, então, que é uma forma de persuasão e de convencimento, 1 DEBORD, Guy. La Société du Spectacle. Paris: Éditions Buchet-Chastel, 1967. 2 ARISTÓTELES. Retórica. In: Os Pensadores: Aristóteles. Volume I. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

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    OLGRIA MATOS UNIVERSIDADE DE SO PAULO - USP Fetichismo: princpio de realidade e morada do sonho Esta comunicao sobre a questo do fetichismo da imagem e as relaes entre princpio de realidade e aquilo que Walter Benjamin denomina, no seu livro Passagens, moradas do sonho. O cinema vai coincidir com o advento da metrpole, portanto da vida urbana, e de todos os mecanismos do capitalismo. Tambm o cinema, para Benjamin, rompe com essa idia da ciso entre cultura de elite e cultura popular ou entre a separao daquilo que se chama de classes sociais e classes culturais. Ou seja, temos uma tendncia a separar aquilo que se chama, no modo de produo, classes sociais e aquilo que corresponde, no modo de fruio, ao que so as classes culturais. Parte-se desta classificao para conceituar o verdadeiro pblico minoritrio e cultivado em oposio multido inculta e que seria afetada por um dficit na faculdade de julgar e de avaliar, porque essa classe cultural de elite e a massa estariam cindidas pela sociedade do espetculo, que produz, a um s tempo, mercadorias e fetiches. Esse conceito de sociedade do espetculo, na maneira como Benjamin o entende, separa justamente o representante do representado, portanto, nesse mecanismo se dissociam aquilo que devia estar numa relao imediata, quer dizer: a imagem e a coisa da qual a imagem a representao deveriam coincidir. No obstante, na sociedade do espetculo se cindem a imagem e o objeto do qual a imagem a representao. Cito, em particular, Guy Debord quando diz: o espetculo a realizao tcnica do exlio dos poderes humanos e no mais alm. 1 O que seria esse exlio dos poderes humanos no mais alm? Significa que a razo conceitual, aquela que capaz de compreenso, de interpretao, de passar da instantaneidade de uma percepo ao sentido dessa percepo, no mais se pode exercer. O que acontece que, agora, essa imagem cindida do objeto se dirige para o pblico, a fim de persuadi-lo, e essa persuaso que uma espcie de abolio da faculdade de pensar a demonstrao. Ou seja, hoje, as grandes massas estariam privadas da possibilidade de compreenso, porque no existe mais a demonstrao, e aqui, lembro Aristteles que, na sua Retrica2, j mostra a diferena entre a demonstrao e a persuaso. A demonstrao se inscreve na lgica do verdadeiro e do necessrio, por isso ela parte de premissas verdadeiras e universais, e a elaborao de um saber terico, enquanto a persuaso procede da lgica do verossmil e, portanto, suas formulaes so por natureza contingentes e provveis, e, nesse caso, pertencem no ao campo da cincia, se campo terico, mas ao campo da poltica e da opinio. Seria interessante no vai ser o caso agora mostrar como essa concepo de persuaso resultaria no vocabulrio de Marx na anlise das questes de ideologia. No caso da ideologia, ento, que uma forma de persuaso e de convencimento,

    1 DEBORD, Guy. La Socit du Spectacle. Paris: ditions Buchet-Chastel, 1967. 2 ARISTTELES. Retrica. In: Os Pensadores: Aristteles. Volume I. So Paulo: Nova Cultural, 1987.

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    Marx vai trabalhar essa questo sobretudo no plano das fantasmagorias, em particular a fantasmagoria fetiche, como uma imagem ilusria dos objetos mercantis e como esses objetos acabam sendo impregnados de poderes mgicos. E justamente para mostrar qual essa magia aderida aos objetos de produo em srie, Marx vai pensar nas questes de desvalorizao reificacional, dado o modo de produo do capitalismo, e se produzem tanto e tantas mais fantasmagorias quanto maior o nmero de mercadorias enviadas ao mercado. Ora, Walter Benjamin, na questo da anlise do fetiche, tal como elaborado por Marx, em particular no Capital, vai ater-se mais na idia de fantasmagoria do que na de fetiche, porque ele quer justamente enfatizar esse aspecto espetacular, que emana dessa base econmica e tcnica. Em particular, Walter Benjamin vai observar isso nos espetculos, que se apresentam sobretudo na Frana, mas tambm na Blgica, a partir do sculo XVIII, e que so os precursores das fantasmagorias contemporneas e do cinema. Ele se refere ao fantoscpio uma espcie de lanterna mgica inventada pelo fsico e pintor belga, Etienne Gaspard Robertson [1763-1837] utilizado por ele em 1780, mais ou menos, em espetculo teatral chamado Fantasmagoria. No convento dos capuchinhos, em Paris, e justamente nos espetculos apresentados por Robertson, ele faz aparecer, por assim dizer, o esprito dos mortos, nesse fantoscpio, e, em particular, faz aparecer o esprito de Marat, em cena da Revoluo Francesa, mostrando ento Marat, antes do seu assassinato. Como Benjamin d grande importncia a esses fenmenos espritas ligados s imagens, ele vai deriv-los do conceito de mercadoria no sentido em que descende de Marx, mas, ao mesmo tempo, ele vai tomar uma outra direo a partir da primeira grande exposio da mercadoria, que foi a apresentao, em 1855, e das exposies universais, em Paris, freqentadas por mais de 55 milhes de trabalhadores, que peregrinaram em um novo fervor religioso para contemplar as mercadorias. Walter Benjamin vai notar que a esse valor econmico acrescenta-se um outro, a essas mercadorias, que o valor da comunicao visual. Ou seja, as mercadorias produzem valores, produzem estilo, produzem comportamentos e afetos. Mas o que interessa a Walter Benjamin a ambigidade de que esto vestidas as mercadorias, e justamente essa ambigidade que lhes vai dar o carter de fantasmagoria universal. Essa idia de mercadoria visual um mecanismo prprio da imagem de hoje, sobretudo da publicidade, desde que no a publicidade que faz a propaganda de um determinado produto, o produto que faz a propaganda da imagem. E isso Walter Benjamin entende como falsa conscincia. A falsa conscincia significa uma ao que realizamos conscientemente, mas com falsa conscincia. No conhecemos as motivaes e o sentido ltimo das escolhas, porque consumimos aquilo de que no necessitamos, e necessitamos daquilo que no consumimos. Isso pode ser ampliado para o fenmeno do fetichismo, quando Adorno diz que os indivduos no so mais agentes do seu destino, pois quanto mais os indivduos se vem transformados em coisas, mais investem nas coisas com uma aura humana. As mercadorias visuais produzem imagens fantasmas, elas so uma espcie de sonho em estado de viglia que confere ao nosso tempo esse carter onrico, segundo Benjamin. E esse carter onrico, Benjamin o reconhece sobretudo nas

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    passagens de Paris essas construes em ferro e vidro que tiveram um tempo muito curto de durao, mas marcaram profundamente a possibilidade de compreenso do capitalismo contemporneo. Segundo Sloterdijk 3, a interpretao que Benjamin dava das passagens, se inspirava na idia marxista realista, embora trivial, segundo a qual, por detrs das superfcies brilhantes das mercadorias, dissimula-se um mundo de trabalho desagradvel, e, por vezes, sinistro. O contexto mundial criado pelo capitalismo era, enquanto tal, um inferno. O belo mundo sobre o vidro era um dos avatares do inferno de Dante. Isto interessante, essa observao de Peter Sloterdijk, porque Walter Benjamin se refere, em um dos fragmentos de Infncia Berlinense, a um brinquedo que ele via todas as vezes que freqentava a casa de uma tia. Era um brinquedo de criana todo feito de vidro, portanto translcido, transparente, que apresentava uma mina de carvo. S que essa mina de carvo dava a totalidade da viso do que acontecia no mundo do trabalho. Quer dizer, o mundo da superfcie, que um mundo do espetculo, dos brilhos, da iluso, das cores, do diamante lapidado e, ao mesmo tempo, das miniaturas de ferro, dos bonecos que se mobilizavam e produziam, no interior dessa caverna, essas belezas para o mundo externo, ao qual ele teria acesso. Cito a seguinte passagem de Walter Benjamin: Mal eu acabava de entrar na casa da tia, j ela cuidava que trouxessem e colocassem minha frente o grande cubo de cristal com a mina, onde se moviam operrios e capatazes em miniatura, transportando pequenos vagezinhos, picaretas e lanternas. Esse brinquedo se que posso cham-lo assim provinha de uma poca em que ainda concediam aos filhos dos ricos burgueses a viso do local de trabalho e das mquinas. E, dentre todos os trabalhos, distinguia-se desde sempre o das minas, pois revelava no s os tesouros que uma atividade penosa extraia, para proveito dos homens hbeis, mas tambm o brilho prateado de seus files, pelo qual se perdeu a poca Biedermeier com Jean-Paul, Novalis, Tieck e Werner.4 Lembrando que o estilo Biedermeier corresponde ao Art Nouveau na Frana e uma supersaturao dos interiores: tapearias, porcelanas, objetos dourados, quadros, muitos tecidos todo um interior quase que calafetado de objetos e muito preenchido, um mundo totalmente onrico como se tivesse protegendo o homem do exterior, quer dizer, a morada interna protegendo a falsa iluso de segurana que esses interiores burgueses davam ao mundo. O que nos interessa como o mundo do trabalho ilustrado nesse brinquedo, que um brinquedo ambguo. Comea a ambigidade pelo fato de ser um brinquedo, e no o podermos manuse-lo. A nica coisa que se pode fazer apertar um boto, que aciona um mecanismo, colocando os personagens em movimento, como se fosse a engrenagem de um relgio. Para a criana, o carvo transfigura-se nas profundezas da mina em minerais nobres, brilhantes e prateados. Mas so, tambm, galerias subterrneas das quais Benjamin o arquelogo; e, a partir dessas galerias subterrneas, que ele compreende essa histria do sculo XIX. O

    3 Peter Sloterdijk [1947 ], filsofo alemo, considerado um dos maiores inovadores da filosofia atual, autor, entre outros, de Regras para o parque humano. Uma resposta carta de Heidegger sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Estao liberdade, 2000 e Crtica da razo cnica, traduo brasileira no prelo. 4 BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: ED. UFMG, 2006.

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    interior da mina de vidro o duplo invertido dos interiores (intrieurs) da poca Lus-Felipe: inteiramente voltada para o sonho essa poca estava decorada de sonho, estava mobiliada de sonho. alternncia de estilos gticos, persas, renascentistas, ligadas ao intrieur da sala de jantar burguesa, sobrepunha-se uma sala de banquete de Csar Brgia, do boudoir de uma dona de casa, emerge uma capela gtica; o escritrio do dono da casa transmuda-se de forma irisante num aposento de um sheik persa. Ento, todos os estilos esto presentes nesses interiores. H um sonho, um onirismo nesses interiores que no , apenas, uma espcie de mensageiro alado que se abre, de maneira indolor, para o futuro. O sonho engendrado pelo capitalismo tambm, para Benjamin, embotamento, entorpecimento. Ele indcio de um universo ao mesmo tempo sedutor e ameaador, porque ele assombrado pelas condies do trabalho, que Benjamin, na trilha de Marx, evoca como priso do corpo e runa do esprito. E, justamente, para ilustrar essas fantasmagorias, essas ambigidades, Walter Benjamin se volta para a revoluo, a insurreio operria de 1848, na Frana, e a represso que se seguiu a ela. Para falar desses interiores, tanto do interior burgus, quanto do interior da mina, quanto do que vai se passar na represso dessa insurreio de 1848: A maioria dos prisioneiros foi levada para as pedreiras e galerias subterrneas que se encontravam sob os fortes de Paris e so to extensas que a metade da populao de Paris poderia caber nelas. O frio nessas galerias subterrneas to intenso que muitos s conseguem manter o calor do corpo correndo sem parar, ou movendo os braos, sem que algum ousasse deitar-se sobre as pedras geladas. Os prisioneiros deram a todas as galerias nomes de ruas parisienses e trocavam endereos quando se encontravam, para no poder se perder nesse labirinto subterrneo da cidade que mais brilha no mundo. Nos interiores, tudo predispe a aparies e transfiguraes.5 Aquele que os observa, ou seja, ns os observadores da mina de vidro, das galerias, das pedreiras ou das passagens de Paris, pode efetivamente transportar-se para um sonho ou para algumas dessas fantasmagorias, das quais j falei a propsito de Robertson, onde o espectro surge, como o espectro de Marat, e se deslocam nas reconstrues dos antigos interiores. Porque nesses interiores, Benjamin retorna, capta justamente a morte, que ronda todo esse acmulo de pocas, de estilos e de saturao de acontecimentos. Diz, ento, Benjamin: Todos conhecem, nos sonhos, o horror das portas que no fecham, mais precisamente, so portas que parecem estar fechadas, mas no esto. Conheci esse fenmeno de forma intensa em um sonho, no qual estando em companhia de um amigo, vi um fantasma na janela do andar trreo de uma casa que se encontrava nossa direita. Enquanto caminhvamos, ele nos acompanhava passando pelo interior de todas as casas. Ele atravessava muros e paredes. Eu via tudo isso, embora fosse cego. A caminhada que empreendemos pelas passagens, tambm , no fundo, um caminho fantasmagrico em que as portas cedem e as paredes abrem.6 Benjamin quer enfatizar esse lado fantasmagrico do capitalismo, como ns somos totalmente invadidos por imagens fantasmais e no nos damos mais conta de todos os mecanismos de desrealizao nos quais vivemos.

    5 BENJAMIN, Walter. Op cit. 6 Idem.

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    Essas passagens de Paris so o labirinto desorientador em que o flneur se converte em espectador, que, tomado por uma espcie de embriaguez amnsica, depara-se com a modernidade e a modernidade o transitrio, o efmero, o contingente. Mas as passagens no so s o encontro incidental de pessoas que se desconhecem e nunca mais se encontraro, as passagens so tambm esses centros destinados a um tipo de comrcio especial que um comrcio de luxo. Por isso que essas passagens so o templo do capital mercantil e, de uma maneira mais ampla, essas passagens so o espao onde o sonho complementa um novo modo de produo. Na verdade, esse modo de produo capitalista, que arruna o corpo e martiriza o esprito, tem a sua superestrutura nesse sonho que as mercadorias produzem, nas embalagens que as mercadorias nos oferecem, na forma da disposio das vitrines para o consumo, que uma espcie de compensao s carncias da ordem social vigentes no interior do processo produtivo. Por isso que Benjamin escreve, ainda: As passagens brilhavam na Paris do Segundo Imprio como grutas fericas. Como que vemos as coisas enquanto nos deslocamos nesses interiores e nessas passagens de Paris. Ele diz que as vemos como uma imagem cinematogrfica. E para falar dessa temporalidade do cinema, que coincide com todas as formas fantonmticas, os panoramas, os pleoramas, os dioramas, enfim, tudo aquilo que precedeu ao cinema e que vai se consolidar depois nessa imagem do cinema, e nessa temporalidade nova da contemporaneidade, vai ser o flash back. O flash back, no tempo, vir tambm com a fotografia. Mas o que que h de especial, para Benjamin, no cinema? que no so todas as fotografias que permitem um acesso modernidade. Apenas algum tipo de fotografia, alguns tipos de aspectos da cidade que so propiciatrios de flash back. Ele cita alguns exemplos desses particularismos citadinos que favorecem o flash back : passagens, jardins de inverno, panoramas, fbricas, museus de cera, cassinos, edifcios arquitetnicos antigos, galerias, teatros, monumentos, esttuas, estaes ferrovirias. E o que o flash back ? So duas temporalidades que se sobrepem, e isso s pode acontecer no cinema. Enquanto a imagem est se processando est fluindo temos uma coisa que est acontecendo agora, e uma coisa que j aconteceu. No temos mais a possibilidade de causalidade, de determinismo histrico, porque temos duas coisas acontecendo ao mesmo tempo: a que est acontecendo agora e a que j aconteceu. como se o arcaico e o atual coincidissem. Lembro que Walter Benjamin, que era um grande leitor de Baudelaire7, para mostrar esse cruzamento das temporalidades, e no mais a causalidade histrica, mas a ruptura e as correspondncias, entre o passado, mais recuado, e o presente atual, recorre anlise que Baudelaire faz da maquiagem. Ele se refere em particular moda de se vestir de negro, nas mulheres do sculo XIX, e elegncia desse luto que a modernidade. Ele se refere ao p de arroz, esse aspecto muito embranquecido que se dava aos rostos das mulheres na cidade. Diz que o p de arroz no rosto da mulher moderna, como a mica, ou o mrmore, confere mulher moderna a dignidade de uma esttua grega. Essa presena de duas pocas, na mesma, o que o flash back consegue refazer.

    7 Charles-Pierre Baudelaire [1821 1867], poeta e terico francs. Sua obra terica influenciou profundamente as artes plsticas do Sculo XIX.

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    Benjamin se refere aos lugares por excelncia dessas fantasmagorias, portanto, desses subterrneos, como se vivssemos hoje na caverna platnica ao inverso. Quer dizer, a caverna onde estamos, a superfcie; e essa superfcie, Benjamin, em particular, capta nas estaes ferrovirias. Ele diz que h sempre uma histria, uma narrativa mtica acontecendo, sempre numa estao ferroviria a histria de Orfeu e Eurdice. E ele diz ento: Mais uma vez representa-se para ns o desgastado melodrama grego. Orfeu e Eurdice e Hermes na estao. (Hermes o empregado que d o sinal de partida da locomotiva). Na montanha de malas, sob a qual se encontra Eurdice, abre-se a fenda escarpada, a cripta na qual ela se afunda, quando o hermtico chefe da estao, com a sinaleira em punho, fixando os olhos lacrimejantes de Orfeu, d o sinal da partida. Cicatriz da despedida que estremece nos corpos representados dos deuses, como um trincamento de um vaso grego. Ento, esses espritos do passado, habitam as modernas estaes rodovirias que so uma espcie de entrada arcaica da cidade; nesse sentido que Benjamin reconhece a modernidade das fotografias de Arget. Ele diz: Por mais estranho que parea, quase todas as suas fotos so quase sempre vazias. Vazia desde a porte daccueil aos postigos, vazias as escadarias majestosas, vazios os ptios, vazios os terraos do caf, vazia, como convm Place du Tertre (na colina de Montmartre, em Paris). No so tocados pela solido, mas so sem atmosfera. A cidade nestas fotos est vazia como um apartamento que ainda no encontrou seu locatrio. Lembro de algumas fotografias que foram feitas daquela cidade ao lado de Chernobil, que uma cidade modernssima, mas que foi necessariamente palco da catstrofe de Chernobil. Ento temos uma coisa que totalmente benjaminiana: uma cidade nova, totalmente vazia, como se ainda no tivesse encontrado nem um morador. Essas imagens fixas exigem ruas desertas e espaos mal-assombrados; e o que lhes confere o movimento o cinema, que, diferentemente da fotografia, que mostra o instantneo do passado, revela a vida no momento em que ela est passando. Elementos palpveis da cidade, plano da cidade, arquitetura, as mercadorias, seus veculos, a multido, so apenas manifestaes da modernidade, mas so tambm as fantasmagorias do mercado que do paisagem urbana seu aspecto espectral. Esse mundo de sonho e de sono, de encantamento e desencantamento, o cinema, para Benjamin, transforma-se tambm em fantasmagoria, pois a cidade paisagem imaginria e mgica. Cinema e cidade dizem respeito ao inconsciente, o filme revelador do inconsciente, revelador do choque e do trauma que constituem a modernidade. Benjamin faz uma diferena entre uma ateno distrada, que temos no cinema, com a idia de entretenimento. O entretenimento de outra categoria. Ele chamaria essa distrao que o cinema exige de distrao, esclarecida, iluminista, que possvel contemplar nessas imagens muito rpidas e que necessariamente suscitam nossa distrao o choque da passagem quase imperceptvel de um movimento ao outro. De espetculo atraente para os olhos ou seduo para os ouvidos que a obra de arte fora antes, ela se torna projtil para os dadastas, e atinge, pela agresso, o espectador. A obra de arte adquiriu uma qualidade traumtica. Ela favoreceu a demanda pelo cinema, cujo elemento de distrao , em primeiro lugar, igualmente traumatizante, j que fundado em mudanas de ngulo e de plano, que golpeiam intermitentemente o espectador.

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    Ento, esse choque significa, ao mesmo tempo, um impacto fsico e moral que desperta para a conscincia daquilo que Giorgio Agamben trabalha no mundo contemporneo: o estado de exceo em permanncia que a modernidade. Se o cinema por excelncia arte moderna, por suscitar o inconsciente tico pois acontecimentos e experincias traumticas, como sabemos, j que Freud o indicara, so experincias no assimiladas pela conscincia, que deixam os seus rastros no inconsciente. O cinema capta o duplo sentido do choque. Experincia traumtica aquela que fere o inconsciente e, ao mesmo tempo, o choque da recordao quando se torna consciente. Ento, h dois traumas no mesmo: um trauma que faz esquecer e um trauma quando lembramos do trauma esquecido. O cinema torna manifesto o que de outra maneira permaneceria invisvel na paisagem urbana moderna. Para Benjamin, o cinema opera como uma espcie de aviso de incndio: O filme representa a forma de arte que corresponde ao perigo de morte que vive os homens de hoje. Ele corresponde a profundas transformaes nos modos de percepo percepo que todo pedestre experimenta na grande cidade. De que natureza so essas imagens do cinema? So de natureza mista, para Benjamin, porque fundem a memria voluntria, aquela memria natural e aquela memria artificial, aquelas imagens equivalentes quelas da experincia vivida, pois essa nova memria o registro que nos advm pela natureza tcnica do modo de apreenso que so a fotografia, o vdeo, etc. Ou seja, o cinema como o vdeo, a fotografia suprem, por assim dizer, as falhas da memria comum. Isto, para Benjamin, significaria que vivemos entre espectros ou que os espectros vivem entre ns. E eu lembro o filme de Woody Allen, A rosa prpura do Cairo(EUA, 1985), em que os personagens saem da tela e vm ao encontro do espectador. Ento, justamente pela preciso da rplica, pelo rastro, pela marca que trazem consigo, que a imagem fotogrfica e a imagem flmica operam uma duplicao da antiga mimesis pictrica. A funo indiciria e a imaginria que sobrepem representaes e sonhos. Lembrando ainda que na seqncia do iluminismo cientifico, que faz os olhos verem o que eles no viam, o telescpio ou ento o microscpio, ou mais recentemente, o controle remoto, ou o replay, o cinema faz ver o que o olho nu ou o olho instrumentado do astrnomo no podem discernir. justamente pelo medium das ampliaes, dos grandes planos ou ento da cmera lenta, ou da acelerao, que o cinema pde ingressar e agir no mundo imaginrio com preciso cirrgica. Benjamin chama muito ateno para esse aspecto operatrio do cinema. Sobre essa dimenso teraputica, cirrgica, do cinema. Ele escreve: O comportamento do mgico que coloca as mos sobre o doente para cur-lo, distinto do comportamento do cirurgio que realiza uma interveno em seu corpo. O cinegrafista penetra profundamente nas vsceras da realidade. A imagem do operador composta de inmeros fragmentos que se recompem segundo novas leis.