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www.medicinaatual.com.br Pancreatite crônica Autores Carlos de Barros Mott 1 Publicação: Mai-2007 1 - Como conceituar as pancreatites crônicas (PC)? Conceitua-se pancreatite crônica (PC) como uma doença inflamatória crônica do pâncreas, caracterizada pela esclerose mutilante do parênquima glandular, inicialmente focal e, a seguir, difusa por todo o pâncreas e, do ponto de vista evolutivo, pela persistência das lesões mesmo com a retirada do fator causal, determinando alterações glandulares residuais, anatômicas e funcionais. Essas alterações morfológicas são as responsáveis pelas crises dolorosas e pelas complicações (pseudocistos, derrames cavitários, icterícia, hemorragia digestiva etc) quase sempre presentes e, dependendo do estágio evolutivo da afecção, pelas insuficiências exócrina (má absorção) e endócrina (diabetes). 2 - Como são classificadas as pancreatites crônicas (PC)? Existem dois tipos principais de PC: as calcificantes (PCC) e as obstrutivas (PCO). Esta classificação proposta em Roma, em 1988, embora útil, deixa de englobar alguns outros tipos de PC, em particular, as PC inflamatórias (PC auto-imunes). Pancreatites crônicas calcificantes Assim denominadas porque irão se calcificar com o passar do tempo. Representam a quase totalidade dos casos de PC e correspondem às PC alcoólica, hereditária, nutricional, metabólica e idiopática. Esses diferentes fatores etiológicos determinam sempre as mesmas lesões morfológicas na glândula pancreática, caracterizadas pela distribuição lobular das lesões, isto é, são observados lóbulos comprometidos entremeados por lóbulos normais, em diferentes fases de desenvolvimento. Pancreatites crônicas obstrutivas Bem mais raras, são conseqüentes a qualquer situação anatômica que dificulte a drenagem de secreção pancreática para o duodeno, tais como estenose cicatricial, traumática, cirúrgica, endoscópica e congênita do Wirsung, oddites, pancreas divisum etc. Diferenciam-se da forma calcificante, não só histologicamente, pela distribuição uniforme das lesões (fibrose localizada em torno dos ductos pancreáticos comprometidos), as quais encontram-se sempre num mesmo estágio de desenvolvimento, mas também do ponto de vista clínico evolutivo. 3 - As pancreatites crônicas (PC) apresentam incidência mundial uniforme? A incidência mundial das PC não apresenta distribuição uniforme e estudos multicêntricos têm evidenciado que elas apresentam maior incidência em países desenvolvidos, nos quais o consumo alcoólico e a alimentação rica em proteínas e gorduras são elevados e, por outro lado, em regiões onde ocorre má nutrição, sobretudo protéica, como na Ásia tropical e em certos países da África. No continente europeu é relativamente freqüente em quase todos os países, enquanto que no americano, à exceção do Brasil e México, apresenta menor incidência. 4 - As pancreatites crônicas (PC) são freqüentes no Brasil? Do ponto de vista epidemiológico, as PC apresentam elevada incidência no Brasil, em particular nas regiões Sudeste e Central, como ficou caracterizado em inquérito nacional por nós realizado. Essa incidência é igual ou mesmo superior àquela observada em certos países da Europa, como Itália, França e Suíça, e no continente africano, na África do Sul, regiões sabidamente com elevada prevalência. 1 Prof. Livre Docente e Membro do Grupo de Pâncreas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Pancreatite crônica

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Pancreatite crônica

Autores Carlos de Barros Mott1 Publicação: Mai-2007

1 - Como conceituar as pancreatites crônicas (PC)?

Conceitua-se pancreatite crônica (PC) como uma doença inflamatória crônica do pâncreas, caracterizada pela esclerose mutilante do parênquima glandular, inicialmente focal e, a seguir, difusa por todo o pâncreas e, do ponto de vista evolutivo, pela persistência das lesões mesmo com a retirada do fator causal, determinando alterações glandulares residuais, anatômicas e funcionais.

Essas alterações morfológicas são as responsáveis pelas crises dolorosas e pelas complicações (pseudocistos, derrames cavitários, icterícia, hemorragia digestiva etc) quase sempre presentes e, dependendo do estágio evolutivo da afecção, pelas insuficiências exócrina (má absorção) e endócrina (diabetes).

2 - Como são classificadas as pancreatites crônicas (PC)? Existem dois tipos principais de PC: as calcificantes (PCC) e as obstrutivas (PCO). Esta classificação proposta em Roma, em 1988, embora útil, deixa de englobar alguns outros tipos de PC, em particular, as PC inflamatórias (PC auto-imunes). Pancreatites crônicas calcificantes Assim denominadas porque irão se calcificar com o passar do tempo. Representam a quase totalidade dos casos de PC e correspondem às PC alcoólica, hereditária, nutricional, metabólica e idiopática. Esses diferentes fatores etiológicos determinam sempre as mesmas lesões morfológicas na glândula pancreática, caracterizadas pela distribuição lobular das lesões, isto é, são observados lóbulos comprometidos entremeados por lóbulos normais, em diferentes fases de desenvolvimento. Pancreatites crônicas obstrutivas Bem mais raras, são conseqüentes a qualquer situação anatômica que dificulte a drenagem de secreção pancreática para o duodeno, tais como estenose cicatricial, traumática, cirúrgica, endoscópica e congênita do Wirsung, oddites, pancreas divisum etc. Diferenciam-se da forma calcificante, não só histologicamente, pela distribuição uniforme das lesões (fibrose localizada em torno dos ductos pancreáticos comprometidos), as quais encontram-se sempre num mesmo estágio de desenvolvimento, mas também do ponto de vista clínico evolutivo.

3 - As pancreatites crônicas (PC) apresentam incidência mundial uniforme?

A incidência mundial das PC não apresenta distribuição uniforme e estudos multicêntricos têm evidenciado que elas apresentam maior incidência em países desenvolvidos, nos quais o consumo alcoólico e a alimentação rica em proteínas e gorduras são elevados e, por outro lado, em regiões onde ocorre má nutrição, sobretudo protéica, como na Ásia tropical e em certos países da África. No continente europeu é relativamente freqüente em quase todos os países, enquanto que no americano, à exceção do Brasil e México, apresenta menor incidência.

4 - As pancreatites crônicas (PC) são freqüentes no Brasil?

Do ponto de vista epidemiológico, as PC apresentam elevada incidência no Brasil, em particular nas regiões Sudeste e Central, como ficou caracterizado em inquérito nacional por nós realizado. Essa incidência é igual ou mesmo superior àquela observada em certos países da Europa, como Itália, França e Suíça, e no continente africano, na África do Sul, regiões sabidamente com elevada prevalência.

1 Prof. Livre Docente e Membro do Grupo de Pâncreas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

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No continente americano, o Brasil, ao lado do México, apresenta nítida prevalência aumentada desta afecção em relação aos demais países. Assim temos observado prevalência de 0,49% de PC em relação a todos os pacientes internados no Hospital das Clínicas de São Paulo durante certo tempo.

5 - Por que as pancreatites crônicas (PC) apresentam elevada prevalência no Brasil?

A alta incidência das PC entre nós deve-se, entre outros eventuais fatores, ao elevado consumo alcoólico apresentado por certa faixa da população. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 5% a 6% da população brasileira consome bebidas alcoólicas acima da dose considerada crítica para determinar o envolvimento pancreático crônico. Este consumo alcoólico excessivo é favorecido, entre outros fatores, pelo elevado teor alcoólico existente na bebida mais consumida, a aguardente de cana, associado à facilidade para sua obtenção e ao seu baixo custo.

O Brasil é campeão mundial no consumo de bebidas destiladas, sendo a produção oficial de aguardente de cana estimada em mais de três bilhões de litros anuais. Aproximadamente a metade do volume da aguardente de cana é constituída de etanol, um litro contém cerca de quatro a cinco vezes mais etanol que um litro de vinho e custa, em média, cinco vezes menos.

6 - As pancreatites crônicas (PC) são semelhantes em todo mundo?

As PC apresentam características geográficas particulares em diferentes regiões do mundo, mostrando diferenças quando à incidência, aspectos etiológicos, clínicos evolutivos de uma região a outra. Nesse sentido não podemos nos valer dos resultados obtidos em outros centros, tornando-se sempre necessária à obtenção de casuística própria. Por esse motivo temos investigado prospectivamente, em nosso meio, vários aspectos das PC.

7 - Quais são os principais fatores etiológicos das pancreatites crônicas (PC)?

Numerosos fatores etiológicos são habitualmente citados na gênese das PC, em particular etilismo crônico, carência protéica, causas hereditárias e metabólicas (hiperparatireoidismo e hiperlipemia) e obstáculos no esfíncter de Oddi ou sobre o canal de Wirsung.

A prevalência de um ou outro fator etiológico varia em função da região na qual os pacientes são investigados. Em quase todos os países do mundo ocidental é atribuída importância muito maior ao alcoolismo crônico, enquanto que em áreas tropicais e intertropicais, como Índia, Indonésia, China e certos países da África, maior importância é dada à carência protéica, sendo as outras causas mais raras.

Em São Paulo, no Grupo de Pâncreas do Hospital das Clínicas (HC-SP), os principais fatores etiológicos comprovados em 545 portadores de PC podem se observados na Tabela 1.

Tabela 1. Principais fatores etiológicos de PC no Hospital das Clínicas (HC-USP) Fatores etiológicos N(%) Álcool 509 (93,4%) Idiopático 24 (4,4%) Hereditário 4 (0,7%) Nutricional 3 (0,5%) Metabólico 3 (0,5%) Obstrutivo 2 (0,3%)

Pode ser comprovada, por esses dados, a alta prevalência de alcoolismo crônico na gênese das PC (93,4%) e a baixa incidência da forma obstrutiva (0,3%), entre nós.

O mesmo fato tem sido observado por outros autores nacionais. Um inquérito nacional sobre as PC, do qual participaram oito grupos de pesquisadores brasileiros, perfazendo 2.199 pacientes, mostrou que o etilismo crônico foi responsável pela etiologia das PC em 1966/ 2199 (90,7%).

Os dados obtidos no inquérito nacional sobre a etiologia das PC confirmam a impressão que tínhamos, desde há muitos anos, que de cada dez pacientes com PC em nosso meio, nove têm

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no alcoolismo crônico a causa determinante da sua afecção. Esta prevalência do alcoolismo crônico na gênese desta doença é nitidamente superior à observada em outros países.

Sabe-se hoje que qualquer tipo de bebida alcoólica, fermentada ou destilada, pode determinar o envolvimento pancreático crônico, desde que a quantidade de etanol consumida, num espaço de tempo, supere a dose considerada crítica para determinar o comprometimento crônico do pâncreas. Esta dose situa-se em torno de 80 e 100 ml de etanol puro diário, respectivamente, para o sexo feminino e para o masculino, em espaço de tempo superior a cinco anos. Da mesma forma, a maneira de consumo das bebidas alcoólicas, se regular, como no Brasil, França, Itália, ou irregular, como nos países escandinavos, desde que ultrapasse a dose considerada crítica, num certo período, pode determinar o comprometimento crônico do pâncreas.

8 - Quais são as características do consumo alcoólico nos portadores de pancreatite crônica (PC) no Brasil?

As características gerais do consumo alcoólico em 509 dos 545 pacientes (93,4%), investigados no Grupo de Pâncreas do Hospital das Clínicas – SP, podem ser observadas na tabela 2.

Tabela 2. Características do consumo alcoólico em 509 portadores de PC no HC-USP

Idade do início da ingestão (anos) 19,5+6,5 Idade do início dos sintomas 34,9+9,8 Consumo de álcool (g de etanol/dia) 358,6+282,0 Tempo de consumo (anos) 19,8+8,8 Tipo de bebida

• Destiladas – no pacientes (%) 504 (99,2%) • Fermentadas – no pacientes (%) 5 (0,95%)

Observa-se, pela análise destes dados, que os portadores de PC de etiologia alcoólica, em nosso meio, iniciam o consumo de álcool em torno dos 20 anos, permanecendo assintomáticos, em média, por 15 anos. A quantidade média diária de etanol consumida por estes pacientes é elevada, correspondendo aproximadamente a uma garrafa de aguardente diária, de modo regular, durante 20 anos.

Além do consumo alcoólico excessivo observado em nossos pacientes, comparativamente aos outros países, comprova-se também que seu início é mais precoce e o tempo médio de consumo é mais prolongado. O consumo alcoólico precoce, intenso, regular e prolongado, observado nos portadores de PC em nosso meio, seguramente é responsável pelas lesões morfológicas pancreáticas mais intensas e freqüentes observadas nestes pacientes, comparativamente às comprovadas naqueles de outros centros. Este fato ficou bem caracterizado por um estudo multicêntrico comparativo sobre a anatomia patológica das PC, realizado entre Brasil, França, Itália e África do Sul. As lesões morfológicas pancreáticas mais intensas e freqüentes encontradas em nossos pacientes, explicam, como veremos, a maior incidência de complicações nos portadores de PC calcificantes entre nós comparativamente a outros centros.

Como vimos, além do alcoolismo crônico, participam também na etiologia das PCC outras causas tais como hereditariedade, metabólicas, nutricional e presença de obstáculos no esfíncter de Oddi ou sobre o canal de Wirsung.

9 - Como o alcoolismo crônico determina o envolvimento pancreático crônico?

Tem sido demonstrado, tanto no homem como em animais, que a ingestão crônica de etanol determina, por meio de um mecanismo neuro-hormonal, importante disfunção na glândula pancreática, tanto nas células acinares como nas ductais, acarretando significativas modificações bioquímicas na composição do suco pancreático. Estas alterações bioquímicas são representadas, fundamentalmente, pelo aumento da concentração de proteínas e pela redução de bicarbonato no suco pancreático.

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Essas modificações bioquímicas favorecem a precipitação protéica dentro dos ductos pancreáticos, com a subseqüente formação da rolha protéica (figura 1). A rolha protéica constitui a primeira alteração morfológica observada nas pancreatites crônicas calcificantes (PCC). Representa também a matriz do cálculo pancreático e será responsável por todas as alterações morfológicas e funcionais observadas na glândula pancreática, além das manifestações clínicas apresentadas pelos portadores de PCC.

Figura 1. Rolha protéica em pequeno ducto pancreático.

10 - Qual é o quadro clínico das pancreatites crônicas (PC)?

A PC, em particular a alcoólica, é uma doença que incide predominantemente no sexo masculino, no adulto jovem com manifestações clínicas, iniciando geralmente entre os 30 e 40 anos.

Durante a evolução das PC, seus portadores apresentam manifestações clínicas dependentes da própria evolução natural da doença ou da presença de certas complicações. As principais manifestações clínicas decorrentes da história natural da doença são representadas pelas crises dolorosas abdominais, pelo emagrecimento e, nas fases mais adiantadas da doença, pela má absorção e pelo diabetes, como pode ser visto na tabela 3, com suas respectivas freqüências observadas em 545 pacientes portadores de PC, investigados no Hospital das Clínicas – S.Paulo.

Tabela 3. Manifestações clínicas das PC atendidas no HC-USP (n=545) Manifestações clínicas N (%) Dor 503 (93,2%) Emagrecimento 499 (91,6%) Má-absorção 185 (33,9%) Diabetes 252 (46,3%)

A crise dolorosa abdominal, conhecida como crise de agudização, é o sintoma mais freqüente e, geralmente, a primeira manifestação da doença. Localiza-se no andar superior do abdome, com alguns pacientes referindo melhora quando assumem a posição genupeitoral. Tem duração de um a três dias, precipitada pelo abuso alimentar, sobretudo gordurosos e pela ingestão alcoólica, com períodos de acalmia variáveis de meses a anos. É mais freqüente nas fases iniciais, tornando-se mais escassa com o evoluir da doença. Sua patogênese é multifatorial, parecendo que a hipertensão intracanalicular secundária, inicialmente a rolha protéica e, a seguir, aos cálculos e estenoses, constitui papel preponderante. Inflamação dos nervos pancreáticos e a liberação excessiva de radicais livres de oxigênio são também consideradas na gênese da dor. Como veremos, a manifestação dolorosa, sobretudo quando persistente e repetida, constitui a principal indicação do tratamento cirúrgico das PC.

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A redução de peso corpóreo nestes pacientes é freqüente e intensa (o emagrecimento foi em média de 11 quilos em nossa casuística) e depende de vários fatores: anorexia nas crises dolorosas, receio de se alimentar para prevenir o aparecimento da dor, aproveitamento inadequado dos nutrientes pela má absorção, descompensação do diabetes, até então mantido em estado latente, ou, ainda, a presença de complicações ou de doenças associadas.

Após certo tempo de evolução da doença, é comum o aparecimento das insuficiências exócrina (má absorção) e endócrina (diabetes), em decorrência da substituição gradativa do parênquima secretor exócrino e endócrino pela fibrose. Em razão da grande reserva funcional do pâncreas, a má absorção e o diabetes somente surgem quando mais de 70% do órgão encontra-se comprometido, sendo, portanto manifestações clínicas que aparecem somente nas fases finais da doença.

11 - Quais as principais complicações das pancreatites crônicas (PC)?

Nos pacientes investigados no Hospital das Clínicas em São Paulo, 310 dos 545 (56,8%) apresentaram, durante a evolução da doença, uma ou mais complicações. As principais complicações, com suas respectivas freqüências podem ser observadas na tabela 4.

Tabela 4. Complicações das PC atendidas no HU-USP) Manifestações clínicas N (%) Icterícia 131 (24,6%) Pseudocisto 196 (35,9%) Derrames cavitários 73 (13,3%) Necrose 26 (4,7%) Abscessos 20 (3,6%) Compressão gastrointestinal 18 (3,3%) Hemorragia digestiva 13 (2,3%) Fístulas 6 (1,1%)

12 - Em que fase evolutiva da pancreatite crônica (PC) as complicações aparecem? São elas muito freqüentes entre nós? Por quê?

As complicações das PC podem aparecer em qualquer fase evolutiva da afecção; são, no entanto, mais freqüentes nas fases iniciais quando o parênquima pancreático não se encontra muito comprometido. Resultam da compressão de órgãos e estruturas próximas ao pâncreas, da necrose glandular e da infecção da glândula pancreática.

A incidência dessas complicações é muito elevada entre nós (56,8%), sendo nitidamente superior à observada em outros centros, em particular, a icterícia, os pseudocistos e derrames cavitários. Como vimos anteriormente, tudo leva a crer que as complicações das PC são mais freqüentes no Brasil porque as lesões morfológicas pancreáticas observadas nos nossos pacientes são mais intensas e freqüentes comparativamente às observadas em outros centros, como ficou caracterizado através de um estudo multicêntrico sobre a anatomia patológica das PC realizado entre Brasil, França, Itália e África do Sul. Com muita probabilidade, isso ocorre devido às características do consumo alcoólico dos nossos pacientes, ou seja, consumo precoce, intenso, regular e prolongado.

13 - Qual a patogenia da icterícia como complicação nas pancreatites crônicas (PC)?

A icterícia, clínica ou laboratorial, aparece durante ou imediatamente após as crises dolorosas. Trata-se de icterícia obstrutiva, habitualmente discreta e fugaz, que, quase sempre, surge em conseqüência da compressão do colédoco terminal, retro-pancreático, por alterações morfológicas observadas na cabeça do pâncreas, representadas por edema, nódulos fibróticos, cálculos pancreáticos e por cistos ou pseudocistos (figuras 2 e 3).

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Figura 2. Importante dilatação das vias biliares intra e extra-hepáticas em portador

de PC calcificante, secundária à compressão do colédoco distal por dois

pseudocistos. Notar ductos de Wirsung e secundários dilatados.

Figura 3. Compressão do colédoco distal secundário ao aumento do volume da

cabeça do pâncreas com dilatação à montante, inclusive das vias biliares intra-

hepáticas em portador de PC calcificante.

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Temos observado não existir relação entre o aparecimento da icterícia e a fase evolutiva da PC; a sua presença depende da relação anatômica entre a cabeça do pâncreas e o colédoco terminal.

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14 - Como se formam e se comportam os cistos nas pancreatites crônicas (PC)?

As formações císticas são complicações freqüentes nas PC, sendo de dois tipos: cistos de retenção e pseudocistos. Os cistos de retenção são pequenas dilatações dos ductos pancreáticos, resultantes da dificuldade de drenagem do suco pancreático, pela rolha protéica, por estenoses cicatriciais ou por cálculos. São sempre pequenos, intraglandulares, apensos ao ducto pancreático principal ou a seus ramos (figura 4).

Figura 4. Cisto de retenção na cauda do pâncreas.

Os pseudocistos são maiores, uni ou multiloculados, intra ou extra-glandulares, próximos ou mesmo distantes do pâncreas (figura 5).

Figura 5. Pseudocistos em portador de PC calcificante

observados à tomografia computadorizada.

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Os pseudocistos resultam do extravasamento do suco pancreático secundário a necrose no pâncreas. Estes pseudocistos, embora raramente, podem ser sede de complicações, tais como hemorragia, infecção, compressão de órgãos ou estruturas vizinhas e perfurações em peritônio livre ou em vísceras ocas. Temos observado que os mesmos têm maior probabilidade de formação nas fases mais precoces da doença, ocasião em que, além da maior capacidade de secreção glandular, o pâncreas é mais susceptível à necrose. Do ponto de vista evolutivo, contrariamente ao que se admitia anteriormente, os pseudocistos secundários às PC, apresentam possibilidade de resolução espontânea em cerca de 70% das vezes.

15 - Como ocorrem os derrames cavitários nas pancreatites crônicas (PC)?

Os derrames cavitários, ascite, derrame pleural e, mais raramente, derrame pericárdico, nas PC surgem em conseqüência da ruptura de pseudocistos ou então do próprio ducto pancreático, com o subseqüente extravasamento do suco pancreático para as cavidades abdominal, pleural ou pericárdica (figura 6).

Figura 6. Presença de pseudocisto roto com extravasamento do suco pancreático

formando ascite em portador de PC calcificante observada à tomografia

computadorizada abdominal.

Os derrames cavitários podem aparecer em qualquer fase evolutiva das PC, mas surgem, preferencialmente, nas fases iniciais da afecção, ocasião em que o parênquima secretor glandular não se encontra muito comprometido e os pseudocistos são mais freqüentes.

É bem conhecida a elevada incidência dos derrames cavitários em portadores de PC em São Paulo. O maior número de derrames cavitários nos pancreatopatas crônicos entre nós decorre, seguramente, à semelhança dos pseudocistos, das lesões morfológicas pancreáticas mais importantes e freqüentes, em particular a necrose pancreática, comparativamente às observadas em outras regiões. Este fato ficou bem caracterizado em trabalho realizado em nosso grupo, ao se comprovar que 45 de 49 dos pancreatopatas crônicos (91,8%) que evoluíram com derrames cavitários apresentaram pseudocistos secundários à necrose glandular.

Em relação aos tipos de derrames cavitários, a ascite ocorre com maior prevalência para a maioria dos autores. Na nossa casuística, ascite isolada ocorreu em 39/73 (53,4%), derrame pleural em 17/73 (23,2%), associação de ambos em 16/73 (21,9%) e derrame pericárdico em somente um dos pacientes 1/73 (1,3%).

16 - A necrose pancreática é comum nas pancreatites crônicas (PC)?

Não. Contrariamente ao relatado nas pancreatites agudas, a presença de necrose pancreática em portadores de PC tem sido pouco mencionada e, quando presente, tem baixa incidência.

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Na nossa casuística, 26 de 545 pacientes (4,7%) apresentaram necrose pancreática, comprovada no ato operatório. Tal prevalência seguramente não corresponde à realidade, visto que nem todos os pacientes da presente casuística que apresentaram crise de agudização foram enviados ao tratamento cirúrgico.

Como vimos anteriormente, a presença de necrose pancreática leva ao aparecimento de muitas complicações nos portadores de PC, em particular os pseudocistos, os derrames cavitários, os abscessos e os pseudomicroaneurismas, o que explicaria a maior prevalência das mesmas nos portadores de PC entre nós.

17 - Como ocorrem os abscessos pancreáticos nas pancreatites crônicas (PC)?

Os abscessos pancreáticos podem ser detectados durante a evolução das PC e devem ter o diagnóstico feito precocemente para que a conduta terapêutica adequada seja instituída o mais rapidamente possível, pela gravidade que geralmente representam. Com a utilização rotineira da tomografia computadorizada helicoidal, esta complicação passou a ser mais fácil e corretamente diagnosticada. Surgem em decorrência da infecção da necrose glandular e, por vezes, após a realização da pancreatografia endoscópica transpapilar. Por esta razão, este exame somente deverá ser realizado, se possível, antecedendo o ato operatório, sobretudo nos pacientes que apresentam ductos pancreáticos dilatados, tortuosos e nos casos com pseudocistos. A incidência de abscessos nestes pacientes é variável de autor para autor, tendo sido de 20 de 545 pacientes (3,6%) na nossa casuística.

18 - Como ocorrem as fistulizações nas pancreatites crônicas (PC)?

A fistulização pancreática para outras vísceras, em particular estômago, duodeno, intestinos delgado e grosso e baço, constitui complicação relativamente rara nos portadores de PC. Na presente casuística, foi comprovada somente em seis dos 545 pacientes (1,1%). Surge, em geral, quando da presença de necrose ou pseudocistos infectados, sobretudo quando adjacentes ao estômago, duodeno, jejuno, íleo ou cólon.

19 - Por que as pancreatites crônicas (PC) podem cursar com hemorragia digestiva?

Durante a evolução das PC, seus portadores podem, ainda, desenvolver hemorragia digestiva de origem pancreática, exteriorizada como hematêmese ou melena. Esta complicação resulta de:

• ruptura de varizes esofagianas e/ou gástricas e, excepcionalmente, duodenais, conseqüentes à hipertensão portal segmentar por compressão ou trombose da veia esplênica e, raramente, da veia porta, pelo processo pancreático crônico;

• ruptura de vasos intra-císticos, quando estes mantêm comunicação com os ductos pancreáticos;

• presença de pseudomicroaneurismas.

Na presente casuística, 13 de 545 pacientes (2,3%) apresentaram hemorragias digestivas de origem pancreática, representadas por: hemorragia intra-cisto, em quatro; ruptura de varizes esofagianas e/ou fundo gástrico em sete; ruptura de aneurisma da artéria gastroduodenal em um e finalmente pseudoaneurisma em um.

20 - Quais são as complicações compressivas relacionadas à pancreatite crônica (PC)?

Durante a evolução das PC, pode-se observar a compressão de órgãos e estruturas adjacentes ao pâncreas. O aumento do volume do órgão, secundariamente ao edema ou à fibrose per se ou associado à presença de pseudocisto justa-glandular, pode determinar compressão, tanto no trato gastrointestinal como também na via biliar principal e na veia esplênica.

Em relação ao trato gastrointestinal, as alterações compressivas são mais freqüentemente observadas no estômago e no duodeno, embora possam também ser detectadas nos intestinos delgado e grosso, esta última eventualidade dependendo da presença de pseudocisto à distância. Na presente casuística, 18 dos 545 pacientes (3,3%) apresentaram alterações gastroduodenais, diagnosticadas pelos exames radiológicos convencionais, pela tomografia computadorizada e pela endoscopia.

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21 - Como fazer o diagnóstico das pancreatites crônicas (PC)?

A suspeita diagnóstica, baseada em dados clínicos, particularmente nos casos com antecedentes de alcoolismo intenso e prolongado, deverá ser confirmada através de exames subsidiários. Estes incluem estudos laboratoriais, radiológicos, ecográficos e endoscópicos. Os exames laboratoriais compreendem determinações realizadas no sangue, nos derrames cavitários, no suco duodenal e nas fezes.

22 - Que exames laboratoriais são úteis no diagnóstico da pancreatite crônica (PC)?

As determinações séricas das enzimas pancreáticas, amilase e lipase, somente têm valor relativo, quando realizadas na vigência das crises de agudizações, ocasião em que normalmente estão elevadas. Isso ocorre no início do envolvimento pancreático crônico, quando o parênquima glandular ainda não se encontra muito comprometido. À medida que o processo fibrótico progride, mesmo nas fases dolorosas, os níveis enzimáticos podem ser normais. Nos casos em que houver compressão do colédoco terminal, além dos níveis elevados das bilirrubinas, as enzimas canaliculares também estarão elevadas.

A comprovação de níveis elevados das enzimas pancreáticas e das proteínas nos derrames cavitários confirma a origem pancreática dos mesmos.

23 - Como avaliar funcionalmente a função pancreática exócrina?

A determinação quantitativa dos constituintes do suco pancreático, no suco duodenal, (bicarbonato e enzimas), obtida por tubagem duodenal, após estímulo hormonal adequado (secretina e pancreozimina ou ceruleína) constitui-se no melhor método de se avaliar a capacidade funcional do pâncreas exócrino e, desta forma, detectar a presença do comprometimento crônico glandular. Embora se constitua num procedimento útil para o diagnóstico das afecções pancreáticas, mesmo nas fases iniciais, a exploração funcional do pâncreas exócrino vem sendo cada vez menos utilizada devido ao seu custo, ao tempo necessário para sua realização e ao desconforto causado ao paciente pela sonda naso-entérica, mas, sobretudo, pelo grande desenvolvimento dos métodos de imagens.

A dosagem quantitativa da gordura fecal excretada (balanço de gordura fecal), embora não constitua exame subsidiário específico pancreático, apresenta enorme interesse prático no diagnóstico do grau de avaliação do comprometimento glandular, constituindo-se em exame obrigatório para a orientação terapêutica substitutiva com enzimas pancreáticas, nos casos de esteatorréia.

24 - Que exames de imagem podem ser empregados na investigação da pancreatite crônica (PC)?

Os mais importantes são:

• Radiografia simples do abdômen • Ultra-som abdominal • Tomografia computadorizada helicoidal abdominal • Ressonância magnética abdominal

25 - Qual a importância da radiografia simples de abdômen no diagnóstico da pancreatite crônica (PC)?

A radiografia simples do abdômen sem preparação, pela facilidade de realização e pelos informes que fornece, revelando a presença de calcificação pancreática, patognomônica da afecção, deverá constituir-se no ponto de partida, juntamente com ecografia abdominal, para investigação diagnóstica, sobretudo nos pacientes com história clínica com mais de cinco anos de evolução. Convém ser lembrado, no entanto, que a ausência de calcificação ao RX simples de abdômen, não afasta o diagnóstico de PC, visto que a mesma aparece, em média, cinco a dez anos após o início das manifestações clínicas pancreáticas.

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26 - Qual a importância da ecografia abdominal convencional no diagnóstico da pancreatite crônica (PC)?

A ecografia abdominal convencional (ultra-som de abdômen), por ser um método não invasivo, podendo ser repetido várias vezes, pela contribuição na comprovação diagnóstica nos casos de PC, deve constituir-se no ponto de partida em todo caso suspeito. Além da elevada sensibilidade e especificidade diagnóstica nesta afecção, permite também detectar a presença de complicações, bem como avaliar a evolução da doença.

27 - Qual o papel da tomografia computadorizada abdominal no diagnóstico da pancreatite crônica (PC)?

A tomografia computadorizada abdominal, sobretudo a helicoidal e a multislice, tem se mostrado extremamente útil no diagnóstico das afecções pancreáticas, pois permite o acesso à região retroperitoneal, com observação direta do tecido pancreático, além de fornecer informações sobre os tecidos adjacentes. Este procedimento, além de ser muito útil no diagnóstico da PC e de suas complicações, torna-se imprescindível nos casos que evoluem com necrose glandular, para acompanhar sua evolução.

28 - Qual o papel da ressonância magnética abdominal no diagnóstico da pancreatite crônica (PC)?

A ressonância magnética abdominal convencional auxilia no diagnóstico das pancreatites crônicas, especialmente quando realizada também a pancreatocolangiografia por este método, possibilitando o estudo detalhado dos canais biliares e pancreáticos. Este último procedimento vem sendo cada vez mais utilizado, pelas informações relevantes prestadas e por ser destituído de qualquer risco para o paciente. Quando tecnicamente bem executado, este procedimento fornece imagens dos canais biliares e pancreáticos semelhantes às obtidas com a pancreatocolangiografia endoscópica transpapilar.

29 - Qual o papel dos exames endoscópicos no diagnóstico da pancreatite crônica (PC)?

Do ponto de vista endoscópico, a pancreatografia transpapilar, quando bem indicada, é extremamente útil no diagnóstico das PC, mesmo nas fases iniciais. Além de auxiliar no diagnóstico e na avaliação da fase evolutiva da doença, possibilita a programação prévia do tipo de procedimento cirúrgico a ser realizado. Constitui exame de realização obrigatória em todos os casos de PC que evoluem com derrames cavitários, pois, normalmente, permite localizar a fístula pancreática ou mesmo um pseudocisto roto. Possibilita, ainda, verificar, no pós-operatório, a permeabilidade da anastomose pancreática, sobretudo nos casos que evoluem com dor persistente após o ato cirúrgico.

A colangiografia endoscópica, isolada ou associada à pancreatografia, permite o estudo da via biliar principal, em particular do colédoco terminal, segmento este que se altera, como vimos, com muita freqüência nos casos de PC.

A pancreatocolangiografia endoscópica, no entanto, não está totalmente isenta de riscos. A principal complicação está relacionada à infecção, tanto do pâncreas como das vias biliares, condição esta mais freqüente nos casos com Wirsung dilatado e tortuoso e com pseudocistos que mantêm comunicação com os ductos pancreáticos. Em razão deste fato, em hipótese alguma, justifica-se sua realização nos casos em que o diagnóstico já foi estabelecido, se não houver suspeita de derrames cavitários e se não houver indicação para o tratamento cirúrgico. Sempre que possível este exame deverá ser realizado imediatamente antes do ato operatório.

A ecoendoscopia, embora possa auxiliar no diagnóstico das PC, tem sido mais utilizada nos casos que suscitam dúvidas entre PC e neoplasia pancreática, nas formações císticas pancreáticas não inflamatórias, nas neoplasias císticas e também para caracterizar a fase evolutiva das neoplasias pancreáticas.

30 - Quais as condutas terapêuticas iniciais nas pancreatites crônicas (PC) fora das crises?

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O tratamento da PC deve ser inicialmente clínico, visando corrigir os sintomas, certas complicações e, sobretudo, as insuficiências exócrina e endócrina do pâncreas, presentes nas fases adiantadas da doença. Convém chamar a atenção que, mesmo quando bem orientado, o tratamento clínico, por vezes, pode resultar ineficaz em certos casos, devido ao caráter geralmente progressivo da doença.

A suspensão do consumo alcoólico é uma medida necessária e definitiva, devendo ser adequadamente apresentada ao doente para que ele possa compreender os benefícios advindos da interrupção deste hábito. O paciente deverá ser bem conscientizado da gravidade que representa a continuação do consumo de bebidas para a evolução de sua doença. Sem este preparo, por vezes completado por suporte psicoterápico, conduzido inicialmente pelo próprio clínico e, em casos mais especiais, com a participação de psicólogos ou psiquiatras, os pacientes dificilmente deixarão de consumir bebidas alcoólicas. Na nossa experiência, mais de 80% dos pacientes se tornam totalmente abstêmios.

O insucesso do abandono do consumo de bebidas alcoólicas, observado em menos de 20% dos pacientes, deve-se geralmente ao baixo nível intelectual, associado a importante desequilíbrio psicológico, explicando, desta forma, a estreita dependência ao álcool. Na nossa experiência, 80% dos pacientes que se tornaram abstêmios definitivamente, apresentam vida tolerável, enquanto que aqueles que continuaram a beber apresentaram sempre resultados desfavoráveis e catastróficos.

Fora das crises dolorosas, nos períodos assintomáticos da doença, preconiza-se dieta pobre em lípides, normo ou hiperprotéica, completando-se o teor calórico total com hidrato de carbono.

A simples restrição do álcool, associada aos cuidados dietéticos, contribui, em alguns casos, para diminuir a freqüência e a intensidade das crises dolorosas.

Temos observado, à semelhança de outros autores, que a administração regular de extratos pancreáticos, em pequenas doses, mesmo na ausência de má-absorção, diminui a freqüência e a intensidade das crises dolorosas, por um mecanismo de “feedback” negativo na regulação da secreção pancreática, desde que as enzimas pancreáticas contidas no extrato pancreático sejam liberadas no duodeno.

31 - Qual o tratamento das crises dolorosas da pancreatite crônica (PC)?

Em cerca de 80% dos casos, a crise de agudização da PC é representada exclusivamente pela manifestação dolorosa. Nestes casos, o substrato anátomo-patológico é representado somente pelo edema e, conseqüentemente, a mortalidade e a morbidade são praticamente nulas.

Nas crises dolorosas, temos utilizado desde analgésicos simples até a novocaína a 10%, em solução contínua glicosada, num total de 6 a 8 gramas diárias, com excelentes resultados.

32 - Qual o tratamento da má-absorção na pancreatite crônica (PC)?

A má absorção é tratada com a administração de extratos pancreáticos. A quantidade a ser administrada variará em função do teor de gordura fecal excretada. Os extratos pancreáticos devem ser apresentados preferencialmente em forma de cápsulas, com micro esferas, para evitar a inativação das enzimas, em particular da lipase pelo suco gástrico, e devem ser administrados fracionadamente, durante ou imediatamente após as principais refeições.

Quando a quantidade e a maneira de administração dos extratos pancreáticos forem adequadas, os efeitos terapêuticos são comprovados de imediato em quase todos os pacientes. Observa-se redução no volume e aumento na consistência das fezes, ganho de peso corpóreo e melhora das condições nutricionais. Pode-se também comprovar a eficácia terapêutica por meio de novo balanço de gordura fecal, na vigência da utilização dos extratos pancreáticos.

Nos raros casos em que a resposta terapêutica não for adequada, deve-se pensar na possibilidade da validade do medicamento ter vencido ou, então, na presença de hipercloridria.

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Nesta última eventualidade, torna-se imprescindível corrigi-la com a administração de inibidores ou bloqueadores da secreção gástrica.

É importante também a administração de vitaminas lipossolúveis e do complexo B.

33 - Qual o tratamento do diabetes na pancreatite crônica (PC)?

O diabetes deve ser tratado, além da orientação dietética, com a utilização de hipoglicemiantes orais e/ ou insulina. Em geral, os hipoglicemiantes orais são efetivos no início do diabetes, quando a hiperglicemia encontra-se em torno de 200 mg%. Nas fases mais avançadas, com hiperglicemias mais elevadas, torna-se imprescindível a utilização da insulina. Embora a literatura insista que o diabetes secundário à PC pode ser controlado com doses de insulina inferiores a 50 unidades diárias, há casos em que doses superiores a 100 unidades são necessárias.

Pelas próprias condições sócio-econômicas e psicológicas destes pacientes, torna-se necessária a orientação quanto à possibilidade da instalação da hipoglicemia e as medidas necessárias para combatê-la. Na nossa experiência, a hipoglicemia constitui a principal causa de morte desses pacientes.

34 - Qual tem sido o resultado do tratamento clínico nas pancreatites crônicas (PC)?

Nas PCC não complicadas, o tratamento médico é geralmente suficiente para assegurar aos doentes uma vida satisfatória, com capacidade para o trabalho, mas com tempo de vida médio cerca de dez anos menor que o da população em geral. O prognóstico da doença guarda certa relação com o caráter evolutivo da mesma, mas também com a indisciplina dos doentes e com a orientação terapêutica inadequada. A continuidade do consumo alcoólico, mesmo que mínimo, é responsável pelos maus resultados obtidos, tanto do ponto de vista clínico como cirúrgico.

Em cerca de 20% dos casos de PC, o tratamento médico, mesmo quando bem conduzido, é insuficiente para assegurar aos doentes uma vida satisfatória, com capacidade para o trabalho, não só pelo caráter evolutivo da afecção, mas também pelo fato dos pacientes não seguirem as recomendações médicas ou, ainda, pelo aparecimento de certas complicações.

35 - Qual a importância do tratamento endoscópico nas pancreatites crônicas (PC)?

Nos últimos anos, vários procedimentos endoscópicos têm sido propostos no tratamento das PC, em particular quando seus portadores evoluem com crises dolorosas recorrentes, colestases, pseudocistos e derrames cavitários. Os procedimentos endoscópicos preconizados para tais fins incluem:

• esfincterectomia pancreática, isolada ou associada à retirada de cálculos localizados na cabeça do pâncreas;

• colocação de endopróteses na via pancreática principal e/ ou na via biliar principal; • drenagem de cistos de retenção e/ ou de pseudocistos.

Os resultados com estes procedimentos endoscópicos, na grande maioria das vezes, não têm sido satisfatórios. Não devemos nos esquecer que a abordagem endoscópica é incapaz de atuar sobre a causa determinante da afecção, pode apresentar morbidade e, mesmo, mortalidade, as recidivas podem ser freqüentes e sua execução necessita de profissionais altamente especializados. Além do mais, a indicação imprecisa do procedimento endoscópico, em certas eventualidades poderá mesmo interferir desfavoravelmente na evolução clínica e no tratamento cirúrgico dos portadores de PC, sobretudo quando da utilização de endopróteses. Nesse sentido, a abordagem terapêutica endoscópica nas PC tem sido pouco realizada ultimamente.

36 - Quando indicar o tratamento cirúrgico nas pancreatites crônicas (PC)?

Na indicação do tratamento cirúrgico, deve-se sempre levar em consideração que este procedimento não propicia a cura da PC, mas somente é capaz, por vezes, de atenuar ou suprimir certos sintomas e sinais e algumas complicações. Em razão deste fato, sua indicação somente deverá ser formalizada após análise minuciosa de certos aspectos relacionados, não

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só à doença, mas, sobretudo, ao doente. Como vimos, a incerteza do abandono definitivo do consumo alcoólico e a impossibilidade de seguir a contento o tratamento clínico, após a intervenção cirúrgica, em princípio contra-indicam sua execução.

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De maneira geral, o tratamento cirúrgico está indicado nas seguintes eventualidades:

• crises dolorosas, persistentes ou recorrentes, impossibilitando o paciente de exercer suas atividades normais, após abstinência total do álcool e com cuidados terapêuticos adequados e seguidos pelo paciente;

• presença de certas complicações, em particular: o icterícia persistente, o derrames cavitários, o pseudocistos complicados, o hemorragias digestivas, o necrose infectada, o fístulas, o abscessos, o compressão de órgãos e estruturas vizinhas.

As principais causas da indicação do tratamento cirúrgico nas PC, observadas em 193 pacientes operados no Grupo de Pâncreas da Disciplina de Cirurgia do Aparelho Digestivo no Hospital das Clínicas de São Paulo, estão discriminadas na tabela 5.

Tabela 5. Principais indicações do tratamento cirúrgico nas PC no HC-USP (n=193) Indicação N % Dor persistente 110 54 Pseudocisto 20 9 Ascite 19 8,6 Icterícia 16 7,2 Abscesso 13 5,9 Derrame pleural 8 3,6 Hemorragia digestiva 3 1,3 Fístula 2 0,9 Associação de fatores 2 0,9

Observa-se, pela análise desta tabela, que cerca de metade dos pacientes teve indicação do tratamento cirúrgico pela persistência da dor e a outra metade pela presença de complicações.

37 - Quais os tipos de procedimentos cirúrgicos mais utilizados nas pancreatites crônicas (PC)?

A intervenção cirúrgica nas PC deve seguir certos princípios, tais como:

• alívio da dor; • correção da obstrução canalicular; • sacrifício mínimo parênquima glandular; • retorno das enzimas ao tubo digestivo, • correção das alterações de órgãos e estruturas vizinhas.

A intervenção cirúrgica de qualquer tipo deve ser sempre precedida de adequado preparo do paciente, tanto do ponto de vista orgânico como psicológico.

As intervenções cirúrgicas preconizadas para o tratamento das PC são divididas em dois grandes grupos: derivação e ressecção. De uma maneira geral, sempre que possível, deve-se preferir a cirurgia de derivação pancreática por ser menos mutilante, estando sempre indicada nos pacientes com ducto pancreático principal dilatado. A técnica consiste na abertura longitudinal do Wirsung desde a cabeça até a cauda, preservando o baço, anastomosando-o com alça jejunal exclusa em Y de Roux.

As ressecções pancreáticas parciais são preconizadas nos casos de comprometimento localizado da glândula pancreática, sobretudo quando o ducto de Wirsung não estiver dilatado, situação essa pouco freqüente, na esclerose difusa da glândula, sobretudo quando houver déficit funcional, exócrino e endócrino, importante.

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Nos casos de PC que evoluem com compressão persistente do colédoco, pseudocistos complicados, derrames cavitários, necrose infectada, fístulas, hemorragia digestiva e compressão importante do trato digestivo, além da abordagem da glândula pancreática, torna-se imprescindível a abordagem cirúrgica concomitante dessas complicações.

38 - Qual é a evolução e o prognóstico das pancreatites crônicas (PC)?

A observação em longo prazo de pacientes com PC mostra que, de um modo geral, nas fases iniciais da doença são mais freqüentes as crises dolorosas e as complicações, ocasião em que o parênquima secretor glandular não se encontra muito comprometido.

A mortalidade nas crises dolorosas (crises de agudização) é desprezível, visto que o substrato anátomo-patológico das mesmas, como vimos, é quase sempre representado pelo edema. Quando ocorre a necrose glandular, normalmente é localizada e de pequena extensão. Com a evolução da doença, havendo substituição progressiva do parênquima glandular por fibrose, as crises dolorosas e as complicações tornam-se bem mais raras, surgindo, nesta fase, a má absorção, o diabetes e algumas doenças associadas.

Quando os cuidados terapêuticos, clínicos e cirúrgicos forem adequados e seguidos, a grande maioria dos doentes apresenta vida tolerável, com capacidade para o trabalho, mas, em geral, apresentam expectativa de vida 10 anos menor que a da população em geral.

39 - Leitura recomendada

Cunha RM, Mott CB, Guarita DR, et al. Complicações das pancreatites crônicas em São Paulo. Rev Hosp Clin Fac Med São Paulo 1997;52:306-315.

Dani R, Mott CB, Guarita DR, Nogueira, CED. Epidemiology and etiology of chronic pancreatitis in Brazil: A tale of two cities. Pancreas 1990;5:474-78.

Guarita DR, Coelho MEP, Mott CB, Bettarello A. Pancreatites crônicas: características clínicas, complicações e associação com outras afecções. Rev Hosp Clin São Paulo 1989;44:221-26.

Mott CB, Guarita DR, Barros MIB, et al. Ascite na pancreatite crônica. Arq Gastrenterol 1975;112:245-49.

Mott CB, Guarita DR, Coelho MEP et al. Etiologia das pancreatites crônicas em São Paulo. Estudo de 407 casos. Rev Hosp Clin Fac Med São Paulo, 1989;44:214-220.

Mott CB, Guarita DR et al. Características geográficas das pancreatites crônicas em São Paulo. XXIV Congresso Panamericano de Enfermidades Digestivas-Belo Horizonte 1995.

Mott CB, Cunha RM, Pedroso MRA, Guarita DR. Pancreatite crônica. Gastroclínica 1995;3:7-12.

Mott CB, Guarita DR. Pancreatite Crônica. In Mincis Meds Gastroenterologia e Hepatologia. Diagnóstico e Tratamento. São Paulo, Lemos Editorial, 1997:521-553.