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51 Artes Cênicas RESUMO O presente artigo propõe uma reflexão sobre as propostas do encenador e pedago- go Jacques Copeau (1879-1949) a respeito das ideias relativas à renovação da arte dramática no início do século XX; à construção de uma nova comédia (a comédia improvisada); e à concepção de treinamento de ator por meio da improvisação. O artigo pretende traçar paralelos entre a pedagogia e a concepção do trabalho de ator que seriam desenvolvidas no Teatro do Vieux Colombier (1913) e na Escola do Vieux-Colombier (1920), e as características e o treinamento peculiares à arte do palhaço nos dias atuais. Palavras-chave: Jacques Copeau, Renovação da Arte Dramática, Comédia Improvisa- da, Arte do Palhaço. ABSTRACT This article proposes a reflection related at the proposals of the director and educator Jacques Copeau (1879-1949), about the ideas for the renewal of dramatic art in the early twentieth century, the construction of a new comedy (the impro- vised comedy), and the design of actor training through improvisation. The article intends to draw parallels between pedagogy and the conception of the actor work that would be developed at the Theatre du Vieux Colombier (1913) and at the Scho- ol of the Vieux-Colombier (1920), and the characteristics and peculiar training for the clown art nowadays. Keywords: Jacques Copeau, Renewal of Dramatic Art, Improvised comedy, Art Clown. PARA ALÉM DA RENOVAÇÃO DE JACQUES COPEAU: Uma nova forma de pensar o treinamento do ator a partir do trabalho de palhaço BEYOND THE RENEWAL OF JACQUES COPEAU: A new way of thinking about the actor training from the work of clown por Rhaisa Muniz

PARA ALÉM DA RENOVAÇÃO de JACQUES COPEAU

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Uma Nova Forma de Pensar o Treinamento Do Ator a Partir Do Trabalho de Palhaço (Rhaisa Muniz)

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    Artes Cnicas

    RESUMO

    O presente artigo prope uma reflexo sobre as propostas do encenador e pedago-go Jacques Copeau (1879-1949) a respeito das ideias relativas renovao da arte dramtica no incio do sculo XX; construo de uma nova comdia (a comdia improvisada); e concepo de treinamento de ator por meio da improvisao. O artigo pretende traar paralelos entre a pedagogia e a concepo do trabalho de ator que seriam desenvolvidas no Teatro do Vieux Colombier (1913) e na Escola do Vieux-Colombier (1920), e as caractersticas e o treinamento peculiares arte do palhao nos dias atuais.

    Palavras-chave: Jacques Copeau, Renovao da Arte Dramtica, Comdia Improvisa-da, Arte do Palhao.

    ABSTRACT

    This article proposes a reflection related at the proposals of the director and educator Jacques Copeau (1879-1949), about the ideas for the renewal of dramatic art in the early twentieth century, the construction of a new comedy (the impro-vised comedy), and the design of actor training through improvisation. The article intends to draw parallels between pedagogy and the conception of the actor work that would be developed at the Theatre du Vieux Colombier (1913) and at the Scho-ol of the Vieux-Colombier (1920), and the characteristics and peculiar training for the clown art nowadays.

    Keywords: Jacques Copeau, Renewal of Dramatic Art, Improvised comedy, Art Clown.

    PARA ALM DA RENOVAO DE JACQUES COPEAU: Uma nova forma de pensar o treinamento do

    ator a partir do trabalho de palhaoBEYOND THE RENEWAL OF JACQUES COPEAU: A new way of thinking about the actor training from the work of clown

    por Rhaisa Muniz

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    O teatro fnix de Jacques Copeau: uma tentativa de renovao

    Desse retorno s profundezas, dessa ambio da verdade, dessa reconstruo espiri-tual depender, sem dvida, a reconstruo de uma arte dramtica humana, determi-nando os limites do homem, o alcance de seus atos e o sentido do seu destino; de um teatro sincero, inspirado a partir de dentro, capaz dos maiores temas e das maiores personagens, e j no desligado do objeto, j no seduzido pela esquisitice, j no dis-trado por vises estticas vs, j no dessecadas por inesgotveis pesquisas tcnicas.

    (Jacques Copeau)

    Jacques Copeau (1879-1949) foi ator, encenador, dramaturgo e pedagogo, e principal-mente um renovador da arte dramtica francesa. Avesso ao tradicional teatro francs de sua poca, Copeau inaugurou em 1913 o Thtre du Vieux Colombier (Teatro do Velho Pombal), com o intuito de apresentar grandes clssicos, mas fugindo da ideia do tex-tocentrismo difundido nas escolas francesas e do cabotinismo da classe teatral de seu tempo. Suas ideias de renovao da arte dramtica e mais tarde a criao de uma nova comdia, a Comdia Improvisada ou Comdia Nova, tiveram a colaborao de alguns artistas da companhia do Vieux-Colombier, como Charles Dullin1 e Louis Jouvet2. Sua pedagogia, que foi desenvolvida em sua companhia, e mais tarde de 1920 at 1924, na cole du Vieux Colombier (Escola do Velho Pombal), era voltada para o treinamento do ator, e primava pela espontaneidade e pela naturalidade da atuao, ao mesmo tempo que buscava um ator com domnio do seu corpo e mente. Copeau passou a ver o corpo do ator - e no mais o texto - como o centro da cena teatral, quer dizer, acreditava que um corpo treinado, malevel e disposto teria maior capacidade de dizer um texto de forma clara, sem afetao. Para isso, Copeau desenvolveu um sistema de treinamento para o ator, e, mais tarde, com a criao da Comdia Nova, optou por um treinamento base da improvisao. O encenador buscou referncias na Commedia dellArte3, nas comdias primitivas e nas antigas figuras cmicas. Na mesma poca Copeau comeou a frequentar o circo e se encantou com os clowns/palhaos4, e percebeu naquelas fi-guras cmicas muitas qualidades artsticas que ele vinha buscando ao longo dos anos. Apesar dos seus empreendimentos no terem tido o xito esperado, seus ensinamentos tiveram continuidade por homens e mulheres de teatro como tienne Decroux5, Jacques Lecoq6 e Ariane Mnouchkine7. E hoje, analisando sua histria, seus anseios e tentativas de renovao da arte dramtica, possvel elencar alguns pontos de aproximao en-tre as ideias do encenador francs com as caractersticas e tcnicas relativas arte do

    1 Charles Dullin (1885-1949) foi um ator de teatro e cinema, pedagogo e diretor francs.2 Louis Jouvet (1887-1951) foi um ator e diretor de teatro francs.3 Commedia dellArte um tipo de comdia improvisada que floresceu na Itlia do sculo XVI ao sculo XVIII.4 Neste artigo seguirei a ideia de Lus Otvio Burnier que afirma: Na verdade palhao e clown so termos distintos para se designar a mesma coisa. Existem, sim, diferenas quanto s linhas de trabalho (2009: 205). Nesse sentido, tm-se a linha dos clowns americanos, dos clowns europeus, os palhaos de circo, os palhaos de rua, de palco, etc. Porm, no entrarei nessa discusso.5 tienne Decroux (1898-1991) foi um ator e mmico francs.6 Jacques Lecoq (1921-1999) foi um ator, mimo e pedagogo francs.7 Ariane Mnouchkine (1939) diretora do Thtre du Soleil.

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    palhao, o clown8.

    Parece que em todas as pocas h sempre algum ator, encenador, crtico ou algum estudioso da arte teatral que afirma que o teatro est morrendo ou que j est morto, como bem disse o personagem Godot em seu dilogo com o seu criador Samuel Becket na pea O ltimo Godot (1987), de Matei Visniec: O teatro est morto. (VISNIEC apud AMARANTE, 2012, sem p.). Para alguns o teatro est morrendo e no h nada que se possa fazer, enquanto para outros a sociedade que est morrendo e o teatro ser a sua nica salvao, como o caso do fundador do grupo T na Rua, do Rio de Janeiro, Amir Haddad. Ele afirma: S o teatro salva. A possvel arte do futuro. Com tudo desmo-ronado a nica fnix, capaz de renascer das cinzas, ser uma manifestao tipo teatral. Vamos ser ns, atores, saindo dos escombros desse mundo que est em runas. (HAD-DAD, 2006, p. 23). Haddad acredita que a sociedade atual est em runas e que o teatro seria a panacia para esse mal ou seu nico sobrevivente. Como se pode ver, a escrita de Haddad apaixonada e contempornea; sua ideia, porm, no indita.

    J em 1913, Copeau escreveu o manifesto Uma tentativa de renovao dramtica: O Teatro do Vieux Colombier, sobre a inaugurao do seu teatro, o Vieux Colombier, na rua de mesmo nome, em Paris (Frana), no qual afirmou que o teatro uma arte que est morrendo, e que j nem sequer discutida. (COPEAU, 1974b, p. 01)9. Porm Copeau, um encenador apaixonado tanto quanto Haddad, tinha ideia de renovar a arte dramti-ca de seu tempo e transform-la em arte viva. Segundo Copeau (1979), a Comdia Nova nascer, crescer e morrer, talvez, mas ir instituir algo novo, e aquilo que vir depois ser mais vivo, ser o teatro do futuro. Porm, o encenador alegava: No sabemos o que ser o teatro do futuro. No anunciamos nada. Mas ns nos dedicamos a reagir contra todas as covardias do teatro contemporneo. Fundando o Teatro do Vieux Co-lombier, preparamos um lugar de abrigo para o talento futuro. (COPEAU, 1974b, p. 06).

    Copeau reservou as primeiras pginas do seu manifesto para apresentar ao seu leitor de forma fervorosa sua opinio sobre a decadncia do teatro francs no incio do sculo XX e o seu desejo por renovar essa arte to antiga. Desacreditado daquele teatro texto-centrista e de atuao afetada, ele levantou alguns dos problemas que, em sua opinio, levaram o teatro a tal decadncia:

    Uma industrializao desenfreada que, dia a dia mais cinicamente, degrada a nossa cena francesa e desvia dela o pblico cultivado; a monopolizao da maior parte dos teatros por um punhado de farsantes a soldo de comerciantes sem vergonha; por toda parte, e at onde grandes tradies deveriam salvaguardar algum pudor, o mesmo esprito de cabotinismo e de especulao, a mesma baixeza; por toda parte o blefe, o exagero de todo tipo e o exibicionismo de toda natureza parasitando uma arte que est morrendo, e que j nem sequer discutida; por toda parte apatia, desordem, indisciplina, ignorncia e imbecilidade, desdm do criador, dio da beleza; uma

    8 O clown a exposio do ridculo e das fraquezas de cada um. Logo, ele um tipo pessoal e nico. Uma pessoa pode ter tendncias para o clown branco ou o clown augusto, dependendo de sua personalidade. O clown no representa, ele - o que faz lembrar os bobos e os bufes da Idade Mdia. No se trata de um personagem, ou seja, uma entidade externa a ns, mas da ampliao e dilatao dos aspectos ingnuos, puros e humanos (como nos clods), portanto estpidos, de nosso prprio ser. (BURNIER, 2009, p. 209).9 Neste artigo, cada vez que citar uma traduo indita, o nmero da pgina se referir ao texto digitado dessa traduo.

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    produo cada vez mais louca e v, uma crtica cada vez mais indulgente, um gosto cada vez mais perdido: eis o que nos indigna e nos revolta. (COPEAU, 1974b, p. 01).

    Para Copeau, no bastava realizar somente uma boa encenao, pois ela no teria aceitao da sociedade e no haveria sequer lugar onde represent-la: o problema es-tava na base da sociedade, no cerne da criao artstica, nos moldes da pedagogia te-atral francesa. Copeau observava: no temos nada que esperar do presente. Devemos considerar como nada o que existe. Se quisermos recobrar a sade e a vida, convm rejeitarmos o contato do que viciado em sua forma e em seu fundo, em seu esprito, em seus costumes. (1974b, p. 02). Diante desta situao era preciso mais que uma renovao, era preciso reconstruir tudo novamente, era preciso renascer das cinzas.

    Construir em bases absolutamente intactas um teatro novo; que ele seja o ponto de reunio de todos aqueles autores, atores, espectadores que so atormentados pela necessidade de restituir a beleza ao espetculo cnico. Talvez um dia veja a rea-lizao deste milagre. Ento o futuro se abrir diante de ns. (COPEAU, 1974b, p. 02).

    Surgiu, ento, o Teatro Vieux Colombier e o futuro comeou a se fazer presente. Diversa-mente do que se entende hoje por uma casa de espetculos, o Vieux Colombier compor-tava, alm do espao fsico para apresentaes, uma companhia comandada pelo pr-prio Copeau, com colaborao de Charles Dullin, Louis Jouvet e Suzanne Bing10. Copeau queria uma companhia de atores jovens, entusiastas, que quisessem servir totalmente arte teatral, sair do ciclo vicioso do teatro francs vigente e criar algo novo atravs de um sistema de treinamento de ator diferenciado. O treinamento proposto por Copeau era diversificado, com exerccio de voz, ritmo, dana e ginstica, e leituras e estudos de textos e peas. Ao contrrio das escolas francesas da poca que primavam somente pelo texto, Copeau colocou o corpo no centro da cena, e salientou a importncia de um treinamento corporal, de uma educao completa, a fim de desenvolver as habilidades individuais dos atores, aprimorar a tcnica teatral, a maleabilidade corporal, mas sem perder a capacidade de emisso de um texto de forma clara.

    Para a montagem dos primeiros espetculos apresentados na abertura do Teatro Vieux Colombier, Copeau seguiu com a sua companhia para a sua casa no campo para um treinamento intensivo. Esse foi o primeiro laboratrio da companhia, e, poder-se-ia dizer, a prvia do que viria a ser a Escola Vieux-Colombier. Diferentemente do senso comum da poca de como ensaiar um espetculo, Copeau props um treinamento de sete horas dirias, sendo cinco horas direcionadas para estudos das peas do repertrio e outras duas horas de leituras de textos em voz alta, exerccios, jogos e ginstica, tudo ao ar livre. Porm, Copeau (1974b) tinha a conscincia que este tipo de treinamento no teria resultados imediatos, estes s poderiam ser observados depois de alguns anos. O encenador acreditava que o ator deveria exercitar tanto o corpo como a mente, tanto os msculos como a criatividade, buscando ser um ator completo, pronto, disposto tcnica e poeticamente:

    10 Suzanne Bing (1885-1967) foi uma atriz francesa.

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    Para reencontrar essa simplicidade vvida, devemos lavar-nos de todas as ndoas do teatro, despojar todos os seus hbitos. E obteremos esse resultado no tanto ensinan-do a nossos jovens atores uma nova tcnica quanto ensinando-lhes a viver e a sentir, mudando seu carter, fazendo deles seres humanos. Que o ator volte a ser um ser humano, e todas as grandes transformaes no teatro decorrero da. (1974c, p. 04).

    Alm das inovaes na rea de treinamento do ator, Copeau tambm pensou a orga-nizao do seu teatro de forma minuciosa, e instaurou um esquema de organizao diferente dos sistemas dos vaudevilles e dos teatros comerciais. Sua empreitada foi complexa, abarcou alm da gerncia do teatro (localizao, organizao interna, re-pertrio, cenrio, etc); a criao e direo da companhia do Vieux Colombier (ideia de grupo, treinamento completo do ator); e a escola de atores que s seria concretizada em 1920, a Escola Vieux-Colombier. No geral, suas ideias foram modestas e previam o mnimo de despesas, mas com uma qualidade artstica rigorosa, pois Copeau acreditava que s por meio da especializao dos atores que a arte dramtica iria se renovar completamente.

    A nova comdia improvisada: uma renovao

    Em 1914 o Vieux Colombier foi fechado por causa da primeira guerra mundial, Dullin e Jouvet foram para o fronte de batalha, e Copeau seguiu em busca da sua renovao da arte dramtica. interessante perceber a mudana de pensamento do encenador ao longo dos anos: em um primeiro momento, como exposto no manifesto de inaugurao do Vieux Colombier em 1913, Copeau queria realizar um repertrio de peas clssicas modernas, como Molire ou Shakespeare, mas sem deturp-las, sem querer contextu-aliz-las, pois isso para Copeau seria deforma-lhes o esprito [...]. Toda a originalidade da nossa interpretao, se nela encontrarem alguma, s vir de um conhecimento apro-fundado dos textos. (1974b, p. 05); no segundo momento, Andr Gide11 apresentou a Copeau a Comdia Improvisada. Copeau apaixonou-se por essa antiga forma de arte, e passou a se corresponder com Dullin e Jouvet confabulando sobre a criao desta nova comdia, que teria como base a improvisao. Ou seja, o que antes seria somente a encenao de um texto realizado na ntegra pela sua companhia, transformou-se em uma ideia de criao livre, de improvisaes sobre determinado tema, com persona-gens-tipo, como na Commedia dellArte.

    Copeau foi arrebatado por esse novo empreendimento - a restaurao da comdia im-provisada -, e afirmou: uma arte que no conheo, que vou estudar em sua histria. Mas vejo, sinto, compreendo que preciso restaurar essa arte, fazer com que renasa, ajud-la a reviver, que apenas ela nos restituir um teatro vivo: uma comdia e atores. (1979b, p. 01). Para ele, a Commedia dellArte parecia ser um dos meios de se chegar a essa comdia improvisada, pois ia ao encontro de seus ideais, era a juno perfeita entre o texto e ao. Dario Fo, ator comediante e pesquisador italiano, explica, a Com-media dellArte se baseia na combinao de dilogo e ao, monlogo falado e gesto

    11 Andr Gide (1869-1951) foi um escritor francs.

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    executado. (1998, p. 22). J Lus Otvio Burnier12 cita Magnani, que esclarece:

    A commedia dellarte era baseada num roteiro (canovaccio), que servia como su-porte para que os atores improvisassem. Esse roteiro no era um texto estruturado: indicava apenas as entradas e sadas dos atores, os monlogos, os dilogos, epis-dios burlescos, os cantos e danas. Personagens fixos e situaes codificadas facili-tavam o jogo espontneo da improvisao. (MAGNANI apud BURNIER, 2009, p. 207).

    Portanto, a proposta de Copeau consistia em estudar a Commedia dellArte italiana e os teatros de feira franceses de antigamente para entender os personagens-tipo, o traba-lho dos atores, a construo e o desenvolvimento da improvisao, e ento ressignificar esse tipo de teatro, atualiz-lo, criar personagens-tipo atuais e abordar temticas con-temporneas e populares. A pesquisadora Paula Farias corrobora: um dos conselhos que Copeau nos oferece recorrer commedia dellarte, buscando silhuetas de per-sonagens locais, fazendo com que o pblico os reconhea e saiba antecipadamente a natureza de seu carter, um espetculo concentrado na ao e no jogo (2006, p. 06).

    Copeau compreendeu que a contextualizao era uma forma de alcanar a identificao do espectador para com a obra. Percebeu, igualmente, que a arte se nutre da vida co-tidiana, que do prprio cerne da sociedade que nasce a comdia primitiva e as figu-ras cmicas: nas festas populares, nos rituais religiosos, nos jogos, nas charadas, nas piadas. Na viso do encenador, a resposta do pblico diante de um espetculo que iria apontar se a obra tinha qualidade ou no, e seria nesse contato com o espectador que os personagens tomariam a forma final. Por esse motivo, Copeau acreditava que deveria restituir essa antiga forma de arte, e transform-la em

    uma forma dramtica nova, clara, viva, dotada de todos os meios de ex-presso que o teatro comporta, dirigindo-se ao povo todo, traduzindo para ele as formas, as ideias, os sentimentos, os conflitos e os caracteres do mun-do moderno: eis, penso eu, o que a nossa poca requer. Eis o que, h muito tempo, ambicionamos realizar sem fraude (COPEAU apud JOMARON, 1992, p. 07).

    O novo empreendimento de Copeau, a Comdia Nova Improvisada, teve pontos de con-fluncia tanto com os personagens-tipo da Commedia dellArte, como com a figura do palhao. Sua proposta era basicamente que cada ator da sua companhia descobrisse o seu personagem e o vivesse intensamente, at torn-lo seu, assim como os atores da Commedia dellArte. Outro aspecto importante residia no fato de priorizar as carac-tersticas, dons, qualidades dos atores para o desenvolvimento dos personagens. Sua proposta de treinamento tinha como base a improvisao, e primava por diverso alm da tcnica.

    12 Lus Otvio Burnier (1956-1995) foi um ator, mmico, pesquisador e diretor de teatro brasileiro. Foi fundador do Grupo LUME Campinas SP.

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    Laos e entrelaos entre a Comdia Nova e a Arte do Palhao: uma paixo copeliana

    Dada a ideia da Comdia Nova Improvisada, o entusiasmado encenador pretendia ento formar uma nova companhia, uma trupe de farsantes do Vieux Colombier. Na mesma poca em que lhe foi apresentada a Comdia Nova, Copeau p-se a frequentar o Circo Mdrano acompanhado do seu amigo, Andr Gide. Foi nesse ponto da vida de Copeau que o palhao comeou a se delinear como uma figura importante no seu pensar prti-co e terico. E talvez, mesmo sem o almejar, Copeau restituiu uma forma artstica com aspectos muito prximos arte circense e arte do palhao. Em certo ponto, Copeau declarou: acho que atualmente s gosto mesmo de farsa, no teatro. Fui cinco vezes ao Circo para rever os mesmos clowns... (1979a, p. 02).

    Em suas inmeras visitas ao Circo Mdrano, o encenador pde analisar a apresentao de vrios artistas cmicos que lhe chamavam ateno. Suas anotaes eram em geral sobre a forma de atuao daqueles cmicos, as improvisaes com o pblico, a energia em cena, a honestidade da atuao, a desenvoltura corporal, os figurinos, a maquia-gem, etc. Porm, para Copeau alguns clowns exageravam nos acessrios, ele preferia uma cena mais limpa: Sempre so melhores quando renunciam a eles [acessrios], em seus lazzi mais simples. Por exemplo: os Fratellini cumprimentando um ao outro com um frenesi crescente. (1979a, p. 03). Entretanto, em alguns casos, Copeau via de forma diferente: Ceratto, [...] clown fantasista, o mais ator de todos. Seus trajes, suas perucas, toda a sua mmica, seus jogos de fisionomia, seus silncios, seu andar, tudo nele tem personalidade. Eu o vi algumas noites, admirvel. Seu parceiro, Dario, no chega aos seus ps, mas tem uma boa figura de clown. (COPEAU, 1979b , p. 02).

    Para Copeau os artistas circenses eram artistas completos, sabiam fazer de tudo um pouco. Seus corpos eram treinados e maleveis, possuam humor, tcnica e vivacidade, e sabiam improvisar como ningum. Copeau relatou um fato acontecido com um mala-barista ingls em uma das noites que foi ao Circo Mdrano:

    Fora da trupe bastante numerosa de clowns, palhaos, augustos, havia um ma-labarista excntrico ingls que me interessou muito. Era de uma sobriedade, de uma distino notveis. Bastante varivel, conforme os espetculos, em seu hu-mor, em sua disposio. Seu nmero: exerccios, lazzi, evolues na pista, entra-das e sadas, rigorosamente estabelecido. Ele o executava sempre com a mesma preciso, com a mesma conscincia [...]. Uma noite, um de seus lazzi desenca-deia o riso sonoro e prolongado de uma dama da galeria. O malabarista parou no mesmo instante e, postado firmemente de perfil, encarou a risonha, sem se mexer, com as sobrancelhas para o alto. E como a mulher risse cada vez mais, no deixou de olhar para ela. Depois, retomou o seu exerccio, e no fez nada, naquela noite, que no estivesse em funo daquela cumplicidade que ele tinha na sala. Com isso, o sabor do seu jogo ficava decuplicado (COPEAU, 1979b, p. 02).

    Portanto, os artistas circenses, cmicos, em especial os clowns, passaram a ser objeto de anlise e estu-do para Copeau, que afirmou apaixonadamente:

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    Gosto desses clowns, gosto da alegria de seus rostos, do divertimento deles com o que fazem, da graa gil de seus corpos treinados, e de todo o seu porte quan-do voltam para cumprimentar, com a cabea erguida, os olhos nos olhos do p-blico, os braos levantados, as mos abertas, dizendo A est com pequenas acenos da cabea, que fazem os seus olhos astutos piscarem. (1979a, p. 03).

    Porm, a eminncia da morte no somente um privilgio do teatro, segundo um dos irmos Fratellini13, o circo tambm sofre do mesmo mal. Em conversa com Copeau, queixou-se de no haver mais circos como antigamente, e que at mesmo music hall invadiu o Circo Mdrano (1979). Apesar do diagnstico do Fratellini, Copeau ainda acre-ditava que o teatro tinha muito que aprender com as artes circenses, pois, segundo ele, sua superioridade em relao aos atores de teatro reside em que so realmente uma confraria, uma corporao, pessoas que trabalham juntas e no podem passar umas sem as outras, os homens de um ofcio difcil, e os artesos de uma tradio viva. (1979a, p. 03).

    Talvez viesse da a vontade de Copeau de querer montar uma trupe de farsantes do Vieux Colombier: do desejo de um trabalho coletivo, da necessidade de criao cons-tante, da busca por criar um ambiente de improvisao 24 horas por dia. Para os dois artistas (Copeau e Fratellini) qualquer momento era passvel e inspirador para se ter uma ideia de um jogo, de uma cena ou de um nmero, uma entrada. Era dessa forma que os irmos Fratellini trabalhavam, e era dessa forma que Copeau queria trabalhar. O encenador relatou uma conversa que teve com um dos irmos Fratellini (1979, p. 04) desta maneira:

    Ele e seus dois irmos inventam em comum. No preparam muito longa-mente os nmeros deles. O hbito de trabalhar em conjunto o segredo de sua inspirao. Inventamos continuamente diz ele. Basta um piscar de olhos entre ns. Imediatamente nos compreendemos. Ele repete vrias ve-zes: Somos artistas. E ele me fala com convico, mas muito simplesmen-te, dos prprios princpios da sua arte: o movimento, o ritmo e a preciso.

    Como se sabe, Copeau criou uma metodologia centrada no desenvolvimento tcnico, corporal e espiritual do ator. Um dos pontos que ele priorizou, e que passou pelos prin-cpios citados pelos Fratellini, foi o trabalho do ator relacionando-o com o ritmo musical, o movimento e a palavra. Assim como a famlia Fratellini, Copeau tambm acreditava que o convvio constante entre os artistas era um ponto crucial para a construo daquele teatro vivo que ele esperava restituir, e que a inveno de jogos e cenas era favorecida com a convivncia quase familiar entre os atores da companhia, como nas famlias circenses. Para ele, qualquer momento era uma boa oportunidade de treina-mento, de proporcionar ao ator o exerccio constante com o seu personagem por meio de brincadeiras e jogos em conjunto, ou at mesmo em ocasies cotidianas.

    Para a criao da sua nova companhia ele escolheria alguns atores, os mais aptos a este tipo de teatro improvisado. Segundo Copeau, o hbito da improvisao dar ao ator maleabilidade, elasticidade, a verdadeira vida espontnea da palavra e do gesto, o 13 Fratellini era uma tradicional famlia circense europeia, de origem italiana.

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    verdadeiro sentimento do movimento, o verdadeiro contato com o pblico, a inspirao, o fogo, mpeto e a audcia do farsante. (1979b, p. 02). Ao mesmo tempo que se dedi-cariam quase exclusivamente improvisao, os atores trabalhariam seus personagens intensamente, a ponto de no saber mais a diferena entre eles, a fim de obter uma fuso completa entre ator e personagem:

    Cada um desses atores se apropria de uma das personagens da nova com-dia. Ele a torna propriedade sua. Ele a nutre, ele a engorda com a sua prpria substncia, identifica com ela a sua personalidade, pensa nela continuamen-te, vive com ela, a dotando no somente com a sua prpria constituio, com os seus meios externos, com as suas particularidades fsicas, mas com as suas maneiras de sentir, de pensar, com o seu humor, com as suas observa-es, com a sua experincia, fazendo com que aproveite das suas leituras, en-fim se desenvolvendo e se modificando com ela. (COPEAU, 1979a, p. 02-03).

    Copeau foi formando e transformando seus pensamentos e propsitos ao longo dos anos, por meio do contato com outros artistas e colaboradores. A restituio da Nova Comdia Improvisada era um interesse de Copeau compartilhado principalmente com seus colaboradores Dullin e Jouvet. Os trs compartilhavam dos mesmos pensamentos, mas em certos aspectos possuam opinies divergentes, o que, de certa forma, enri-queceu o processo de construo da nova comdia, e acabou por deline-la. As contri-buies foram significativas tambm para a sistematizao do treinamento do ator por meio da improvisao e para o desenvolvimento do processo de descoberta dos tipos. Neste sentido, Jouvet escreveu uma carta do fronte de batalha endereada a Copeau, na qual descrevia o procedimento de criao (ou seria descoberta?) de seu tipo. Apesar de a Commedia dellArte ser a maior referncia para a construo dessa arte, visvel a semelhana entre a descoberta dos tipos e a tcnica de descoberta do clown pessoal. Jouvet (apud COPEAU, 1979a, p. 16) assim descreveu:

    Estou muito travado na anlise que tento fazer do meu tipo. Eu escrevo, eu noto, eu me olho. Mas no vem. Parece-me que me vejo melhor quando me ponho diante de certos tipos, de certos papis. Eu me enredo na Comdia Ita-liana, da qual sinto muito bem todas as personagens, a ponto de me encontrar aspectos comuns a todos de tanto que eu as compreendo e as amo. Falta--me uma referncia. Talvez esse perodo de fermentao seja bom? Eu me vejo bastante bem como uma espcie de ttere, com uma gozao muito imprevista e muito variada gozao a palavra que puxa para a insolncia, do grotes-co licencioso a uma sentimentalidade bastante aguda com tiques, sacos de ti-ques. Uma sntese do bizarro. A mscara do tolo, do ingnuo, afvel e tmido...

    Ao analisar este trecho da carta de Jouvet, acima citado, percebe-se sua nsia por des-cobrir o seu tipo, e, se for posta luz sobre as ltimas linhas, v-se uma referncia ntida essncia do palhao. As cartas que Jouvet trocava com Copeau eram cheias de entu-siasmo; porm a guerra ainda estava em andamento, e suas ideias teriam que esperar para serem transformadas em prtica. Apesar de algumas consideraes significativas de Jouvet sobre os tipos, para Copeau (1979b, p. 11),

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    O fervor de Jouvey o arrebata e o extravia. Ele quer abarcar demasiadas coisas e por meios que no so diretos, vivos. Vou precisar fazer com que compreenda que aqui-lo que deve vir primeiro na pesquisa do tipo em questo so as qualidades, os dons pessoais, e a observao direta da realidade. O que dado o ator, com o seu fsico, com os seus meios, com a sua natureza, encarnando um sujeito. A atitude cientfica, a erudio genealgica s vm depois, para aprumar, enriquecer, reforar o estilo.

    Observam-se, portanto, na fala de Copeau, assim como na de Jouvet, aluses arte do palhao. Contudo, Copeau prope o caminho inverso daquele que Jouvet estava trilhando. Para o encenador, o processo de descoberta do tipo teria que ser feito de dentro para fora, do corao e no da cabea: primeiro viria o sentimento e depois a razo. Seria necessrio partir daquilo que j existia: do seu prprio corpo, do seu tipo fsico, da sua voz, seus tiques, ritmo, etc. Tudo aquilo de que se precisava j estava dado, bastaria ter sensibilidade para desvendar, e tcnica adequada para aprimorar-se. Copeau respondeu deste modo a Jouvet:

    Sim, meu velho, isso mesmo, isso mesmo. Ests por dentro. s vezes te atra-palhas um pouco porque queres abraar demasiadas coisas ao mesmo tempo, queres ir at o fundo, ento tens uma vertigem e uma nvoa se espalha pelos teus olhos. Assim, em tua pesquisa dos tipos antigos de nossa nova comdia, creio que queres ser demasiado completo e que correrias o risco, seguindo essa inclinao, de te tornares livresco. Creio que disso que ser preciso que consi-gas te livrar completamente: de toda e qualquer tentao livresca. (1979b, p. 13).

    Nota-se, que a metodologia desenvolvida por Copeau passou por um processo seme-lhante ao de outros encenadores e pesquisadores que desenvolveram a tcnica refe-rente descoberta do clown pessoal, como os franceses Jacques Lecoq e Philippe Gaulier14, e o brasileiro Lus Otvio Burnier. Na linha de trabalho concebida na cole International du Thtre de Jacques Lecoq, que fora discpulo de Jean Dast15, e que este por sua vez fora aluno da Escola do Vieux-Colombier, est presente a ideia de que o clown o prprio artista visto sob outro aspecto; a dilatao de sua personalidade, seu desnudamento diante dos outros, ou seja, cada clown visto como um ser nico. A pesquisadora Dbora de Matos (2009, p. 64) assim explica:

    A expresso clown pessoal evoca no artista o exerccio da exposio da sua singularidade para a composio do seu palhao. Refere-se busca do artista em compreender seu modo especfico de jogo e de relao, reportando-se criao de uma lgica prpria de cada palhao, que o orienta em sua forma de pensar e agir: no um pensar puramente racional, mas um pensar que psicofsico, corpreo.

    Embora a sua formao na Frana tenha sido predominantemente feita com tienne Decroux como aluno e como professor em sua escola , Lus Otvio Burnier, o pesqui-sador e fundador do Grupo LUME Teatro (1985), que ao chegar a Paris fez um curso de vero de Jacques Lecoq no American Center (1975), e mais tarde com Philippe Gaulier

    14 Philippe Gaulier (1943) diretor, dramaturgo e pedagogo francs.15 Jean Dast (1904-1994) foi ator e encenador francs.

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    tambm desenvolveu formas de trabalhar o clown pessoal. Pode-se pensar, nesse aspecto, numa analogia do trabalho de Burnier com o de Lecoq e Gaulier. Entre as pes-quisas realizadas pelo LUME (mmesis corprea, dana pessoal, treinamento energtico, tcnica do ator, etc.), a pesquisa sobre o estudo do clown e o sentido cmico do corpo marca a trajetria do grupo e o incio de pesquisas relacionadas linha francesa do clown pessoal aqui no Brasil. Sobre o assunto, Ricardo Puccetti, ator do LUME que levou para o grupo o interesse pelo trabalho do clown, esclarece:

    O trabalho do palhao muito pessoal, ele no um personagem, ento o ator trabalha consigo mesmo, com a pessoa dele, e a base do treinamento que o Lus buscava no LUME era um trabalho que fosse totalmente pessoal do ator, ento tinha um contato total. Apesar de ser um outro estilo, o nosso palhao est to-talmente ligado dana pessoal, nossa base de trabalho. diferente de um palhao de outras tradies, que um estilo que vem [pronto, construdo ex-teriormente]: no LUME voc chega na figura do palhao depois. O trabalho an-terior como a dana pessoal, s que por outros caminhos, ento essa busca muito pessoal e prpria de cada ator. (PUCCETTI apud CERASOLI, 2010, p. 84).

    possvel observar que o sistema de treinamento, as metodologias e propostas desse encenador e pesquisador brasileiro so muito semelhantes ideias provenientes de Jacques Lecoq e Philippe Gaulier, e pode-se dizer, de forma indireta, at mesmo de Jac-ques Copeau. Uma das metodologias de treinamento que Burnier desenvolveu aqui no Brasil foram os chamados Retiros de Clowns: encontro de alguns dias em um lugar afastado para a descoberta do seu prprio clown. Aqui se constata uma semelhana entre a primeira atividade que Copeau realizou junto aos atores da companhia do Vieux Colombier em sua casa de campo e, algum tempo depois, com as novas ideias do encenador francs sobre o sistema de treinamento do ator para a nova comdia. possvel comparar tais semelhanas nos seguintes escritos de Copeau e Burnier, res-pectivamente:

    Ns nos exercitamos, sem descanso, mas sem nunca retomar o mesmo roteiro mais de quatro ou cinco vezes. Ns nos exercitamos a cada instante passe-ando, durante as refeies, consultando a prpria personagem sobre qual-quer incidente. Ns nos tornamos nossa personagem. Ns a confrontamos com as personagens dos colegas. Comeamos a fazer obra coletiva (1979b, p. 03).

    A jornada clown, para que se tenha uma ideia, um dia inteiro vivido com o nariz vermelho. Isso significa ao longo de todos os trabalhos e afazeres: des-de o treinamento at o almoo e a hora do lazer na piscina... inimagin-vel o que pode acontecer num almoo com 20 clowns juntos!... (2009, p. 212).

    notvel que a tcnica do clown pessoal, o trabalho do palhao, interessou muitos artistas e pesquisadores, por causa de suas caractersticas e tcnica. J no incio do sculo XX, Copeau viu nos palhaos e artistas cmicos qualidades que ele no conse-guia achar nos atores de teatro de sua poca, e vislumbrando sistematizar uma nova metodologia de treinamento para o ator, procurou estabelecer um mtodo de trabalho

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    holstico, que visasse sinceridade do ator, a vivacidade em cena, a prontido e male-abilidade corporal e a ateno para a improvisao. Segundo Copeau,

    Para o ator, doar-se tudo. E para doar-se, preciso antes possuir-se. Nosso ofcio, com a disciplina que supe, com os reflexos que fixou e comanda, a prpria trama de nossa arte, com a liberdade que exige e as iluminaes que encontra. A expresso emotiva surge da expresso justa. A tcnica no s no exclui a sensibilidade, mas a autoriza e liberta. seu suporte e sua salvaguarda. graas ao ofcio que podemos abandonar-nos, pois graas a ele que saberemos reencontrar-nos. O estudo e observncia dos princpios, um mecanismo infalvel, uma memria segura, uma dico obediente, a respirao regular e os nervos re-laxados, a liberdade da cabea e do estmago proporcionam-nos uma seguran-a que nos inspira a audcia. (...) Permite-nos improvisar. (1974a. p. 203-215).

    O teatro do futuro agora: o que permanece dos ensinamentos de Copeau

    Observa-se que as ideias de Copeau atravessaram os tempos. Os pensamentos desse renovador acabaram por instaurar no campo teatral as conhecidas potica, esttica e tica copelianas. Por esse motivo o Teatro Vieux Colombier no foi um empreendimento estanque. O Vieux Colombier foi o bero de novas ideias, foi um dos lugares onde o te-atro que conhecemos hoje comeou a dar seus primeiros passos. Foi l que Copeau ps em prtica seus planos: instaurou uma nova forma de pensar a arte dramtica, criou uma nova concepo de teatro em grupo e executou suas ideias sobre o treinamento do ator. Copeau no estava sozinho nessa empreitada, de acordo com Josete Fral (2000, p. 03):

    Na Frana, Copeau, Dullin, Jouvet estiveram entre os primeiros a ressaltar a necessidade de um treinamento sistemtico do ator, em reao ao ensino que era ento praticado na maioria das instituies, criando os teatros-escola, os teatros-laboratrio cujos her-deiros diretos so, hoje, Grotowski, Barba e, indubitavelmente, Mnouchkine e Brook.

    Copeau tambm influenciou e foi influenciado por outros encenadores de sua poca, como: Adolphe Appia16, Emile-Jaques Dalcroze17 e Edward Gordon Craig18, e chegou a dizer que se ele tivesse um mestre, este seria Constantin Stanislvski19 (FALEIRO, 2010). Em relao aos trs primeiros encenadores, o pesquisador Jos Ronaldo Faleiro, afirma: o encontro com essas trs personalidades contribuiu para a consolidao da teoria e da prtica teatral de Jacques Copeau, de sua criao e de sua pedagogia. (2010, p. 05).

    Nota-se, que Copeau manteve-se aberto a dilogos constantes com outros diretores, dramaturgos, escritores, e at mesmo com o seu pblico. perceptvel que as visitas

    16 Adolphe Appia (1862-1928) foi encenador suo.17 Emile Jaques-Dalcroze (1865-1950) foi msico, compositor e pedagogo austro-suo.18 Edward Gordon Craig (1872-1966) foi ator, encenador e cengrafo ingls.19 Constantin Stanislvski (1963-1938) foi ator, encenador, pedagogo e escritor russo.

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    de Copeau ao Circo Mdrano tambm foram fundamentais para o desenvolvimento de suas ideias inovadoras. Sua viso holstica do treinamento do ator foi influenciada pelo contato do encenador com os artistas circenses, especialmente pela grande ad-mirao que ele tinha pelos palhaos. Sua proposta de treinamento integral, de forma a abarcar tanto o corpo como a mente e o esprito do ator, se assemelhou com outras inmeras propostas de outros encenadores que buscavam igualmente uma nova forma de sistematizao do treinamento do ator. Portanto, seus intentos fizeram parte do um movimento de renovao teatral ocidental que ocorreu no incio do sculo XX, e o acompanharam.

    Porm, alguns de seus intentos no tiveram o xito desejado. Apesar de seu grande trabalho por instaurar a Comdia Nova, ela permaneceu embrionria. Mas Copeau foi um sonhador, e apesar de sua fala desacreditada por alguns, seguiu seus desejos e se manteve firme em seus propsitos. Suas ideias de renovao continuam vivas at hoje, e, como ele mesmo afirmou, apesar da possvel morte da Comdia Nova, suas ideias seriam a base para o teatro do futuro:

    Nasceu um gnero. Ele se desenvolver, depois declinar e finalmente morrer. Mas ter restitudo a liberdade imaginao criadora, fantasia dramtica. Ter sido verdadeiramente uma criao autntica, um gnero dramtico (e no somente uma plida variedade literria), e no dia em que for destronado ser talvez por algo mais vivo e mais consumado do que ele, por esse teatro do futuro de que alguns falam tanto sem ter a menor ideia dele. Tudo reside nisso. (COPEAU, 1979a, p. 03).

    Atualmente, pode-se elencar alguns grupos e diretores teatrais que possuem uma me-todologia de trabalho com fundamento nos pensamentos do encenador francs, como o caso direto da diretora Ariane Mnouchkine no Thtre du Soleil, e de uma forma mais indireta, os estudos e metodologias criados pelo pesquisador e diretor Lus Otvio Bur-nier, e que ainda hoje so desenvolvidas e aperfeioadas pelo Grupo LUME. Ambos os grupos possuem bases de pesquisa muito semelhantes de Copeau, e so atualmente companhias de reconhecimento mundial que valem pena serem pesquisadas sob o foco da pedagogia copeliana. Talvez estes sejam exemplos do tal teatro do futuro a que Jacques Copeau se referia.

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    Rhaisa Muniz, Departamento de Artes Cnicas, rea de [email protected]