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m geral, as religiões funcionam assim: tudo o que o homem fizer em vida pode ser usado a favor ou contra ele após a mort e . É praticamente como uma lei de mercado, onde o fiel segue à risca alguns manda- mentos para, em troca, garantir um bom lugar para sua alma depois que ela deixar seu corpo. A grande maioria das religiões cristãs, por exem- plo, defende que bons espíritos seguem direto para a tranqüilidade do paraíso, aquele mesmo que Adão e Eva desperdiçaram em busca do desco- nhecido. Já os maus vão para o tormento do infer- no, cujo maior castigo é ficar longe da companhia Julho/Dezembro 2004 42 MARIANA DUARTE, JOANA FARO, RAFAEL GUIMARÃES E RAFAEL LIMA Para onde vamos? Praticamente todas as religiões classificam a morte como um rito de passagem. A divergência está em onde o espírito vai parar depois que deixa o corpo National Geographic

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m geral, as religiões funcionamassim: tudo o que o homem fizerem vida pode ser usado a favorou contra ele após a mort e . Épraticamente como uma lei de

m e rcado, onde o fiel segue à risca alguns manda-mentos para, em troca, garantir um bom lugar

para sua alma depois que ela deixar seu corpo.A grande maioria das religiões cristãs, por exem-

plo, defende que bons espíritos seguem direto paraa tranqüilidade do paraíso, aquele mesmo queAdão e Eva desperdiçaram em busca do desco-nhecido. Já os maus vão para o tormento do infer-no, cujo maior castigo é ficar longe da companhia

Julho/Dezembro 200442

MARIANA DUARTE, JOANA FARO, RAFAEL GUIMARÃES E RAFAEL LIMA

Para onde vamos?Praticamente todas as religiões classificam a morte

como um rito de passagem.A divergência está em onde o espírito vai parar

depois que deixa o corpo

National Geographic

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de Deus. O resultado da futura moradia depende dafidelidade dos homens às leis pregadas pela Igreja,como amor a Deus, fraternidade, justiça e soli-dariedade.

O islamismo promete um ótimo lugar paraquem se comportar bem por aqui, seguindo osensinamentos de Alá e dos profetas – entre eles,Noé, Abrão, Moisés, Jesus e Muhammad. Os pro f e-tas e os márt i res têm acesso direto ao paraíso,enquanto os outros passam pelo julgamento deAlá. Quem for inocente encontra sombra, águapotável, vinho, mel e ainda ganha a companhiade belas mulheres de olhos brilhantes, as “uris”. Jáos culpados são lançados ao inferno, lugar comfogo ardente, onde as pessoas são castigadas cons-tantemente. Lá, a divisão é feita em sete part e s :seis re s e rvadas aos infiéis e uma aos mulçumanos.Não se sabe, somente, para onde vão as mulçu-manas depois da morte. Alguns teólogos doislamismo defendem até que elas nem sequer almaespiritual têm e, portanto, não teriam vez em ou-tras vidas.

Já o judaísmo pouco discute o que vem depois dam o rte e aceita múltiplas interpretações sobre otema. Há vertentes que acreditam em um paraíso,p a recido com o da maioria dasreligiões cristãs. Outras crêem emre e n c a rnação e há aquelas quepensam não existir vida após am o rte. Todas, porém, confiam nai m o rtalidade da alma e têm umasérie de rituais para pre s e rvar ocorpo na hora da morte. Exem-plos como cobri-lo imediatamen-te, em sinal de respeito, e fechar osolhos do morto o mais rápido possível, para evitarque o homem observe as coisas mundanas aomesmo tempo em que está usufruindo o encontrocom Deus.

– Para judeus ortodoxos, a noção de vida após amorte é uma declaração da crença na vinda deMessias, que ressuscitará fisicamente os mortos.Para os judeus liberais, por outro lado, a idéia émais figurativa do que literal: existe a terra dosvivos e existe a terra dos mortos. A ponte entre elasé a recordação. O homem morre e é enterrado, masseu espírito permanece eternamente vivo nos pen-

samentos e nos atos dos que ficam – interpreta orabino Henry Sobel, presidente do rabinato daCongregação Israelita Paulista.

Transfusão x ressurreiçãoA flexibilidade observada no judaísmo é bem

diferente da rígida doutrina das Testemunhas deJeová, que se definem como repre-sentantes do cristianismo primiti-vo, respeitando, quase ao pé daletra, as escrituras da Bíblia. Aprincípio, eles divergem da maio-ria dos religiosos e dizem que nãohá paraíso nem tampouco infer-no. A morte é o ponto final daexistência da alma porque, tendoherdado o pecado de Adão, os

homens não merecem coisa melhor: “sai-lhe oespírito, ele volta ao seu solo; neste dia perecemdeveras os seus pensamentos”, dizem, repetindo oSalmo 146.

Isso, porém, se dá até que a Terra seja dominadapelo Reino de Deus o que, segundo eles, está próxi-mo de acontecer. A partir daí, os escolhidos vão le-vantar de seus túmulos e voltar a viver. Até lá, suasalmas se mantém completamente inconscientes.

O medo de não receberem a graça da volta à vidafaz com que as Testemunhas de Jeová abram mãoda transfusão de sangue mesmo em casos ex-

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O corpo é a morada da alma para a maioria das religiões

Há criançasrejeitadas pelos paisdepois de fazerem

transfusão deemergência

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tremos, ainda que o procedimento seja indicadopelos médicos. Os fiéis têm até representantes emhospitais para mostrar formas alternativas detratamento e, assim, evitar que seu sangue se mis-ture com o de outra pessoa. “Impuros”, eles perde-riam o direito de serem escolhidos para a ressur-reição. Doar órgãos, por isso, também é algo forade cogitação.

– As Testemunhas de Jeová querem apenas ocumprimento de uma ordem divina, dada a todos –justifica Lea Meneguelle, uma dentre os quatro mi-lhões de seguidores da religião em todo o mundo.

Apesar disso, uma resolução de 1980 do ConselhoFederal de Medicina respalda a transfusão desangue, independentemente de consentimento dopaciente ou de seus responsáveis, se houver perigoà vida. Já se o risco não for imediato, recomenda-seao médico consultar o paciente.

– A obrigação do médico é salvar a vida. Mesmoporque, se não fizer, pode até perder o registro noConselho Regional de Medicina. O paciente podeentrar na justiça depois, mas, na hora, qualquermédico tem que fazer a transfusão – afirma umaprofessora adjunta de clínica médica da Faculdadede Medicina da UFRJ, que preferiu não se identi-ficar.

Ela lembra que a transfusão fre q ü e n t e m e n t erevolta a maioria dos pacientes e dos parentes quesão Testemunhas de Jeová. Eles afirmam preferir amorte a se submeter ao tratamento.

– Eles se sacrificam o tempo todo para terem di-reito à ressurreição. Então, se perdem este direito,

ou se o filho deles perde isso, nada valeu a pena.Há casos de crianças que são rejeitadas pelos paisdepois de fazerem alguma transfusão de emergên-cia. Os pais a entregam para o médico criar, porqueaquela criança já está perdida, não tem mais comoviver com a família, na visão deles. Se o médicocondenou o filho deles, ele que termine de criá-lo –relata a médica.

ReencarnaçõesEnquanto as Testemunhas de Jeová esperam pelo

Reino de Deus para recuperarem a vida, os espíritasdefendem a reencarnação contínua como forma debuscar o crescimento da alma. A base da doutrinaé O livro dos espíritos, de Allan Kardec, todopsicografado com depoimentos de almas com altograu de evolução.

No espiritismo, a morte não é vista como o fim detudo, mas apenas como uma mudança de dimen-são. O caminho da alma (de via única, em nome doc rescimento) começa na pedra e chega ao homem,passando pelos reinos vegetal (onde o espíritocomeça a perceber sensações) e animal (onde eledemonstra princípios de inteligência). Mesmo emd i f e rentes corpos, elas pre s e rvam uma série de deta-lhes de sua personalidade, preferências e aquisiçõesmorais.

Quando não ocupa nenhum corpo, a alma vaipara um plano espiritual, que esteja de acordo comsua evolução, e permanece lá por um período va-riável. O próprio espírito pode determinar quantotempo pretende ficar desencarnado. Por vezes, ele écapaz, inclusive, de decidir vagar pela Terra paraestudar ou trabalhar. Segundo a doutrina, estasalmas são responsáveis por iluminar outras que, nomomento, estão encarnadas. Por isso, aquela inspi-ração que surge de repente, aquela idéia queaparece do nada pode, na verdade, ser uma dica deum espírito que esteja ao seu lado, soprando tudoem seu ouvido.

A doutrina espírita guarda muitas semelhançascom o budismo. De acordo com o Livro tibetano damorte, existem 49 etapas, ou 49 dias, após a morte.Neste período, os monges oram para que as pessoasatinjam a Terra Pura – lugar de paz, tranqüilidadee sabedoria iluminada – ou reencarnem em níveissuperiores. As voltas dependem do carma (uma

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Para a tradição judaica o espírito permanece vivo

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espécie de histórico que os homens carregam desuas ações em vidas passadas) de cada um. Ao con-trário do espiritismo, porém, o budismo acreditaque é possível que um homem reencarne no corpode um animal, dependendo do que ele fez em vidaspassadas. A filosofia é muito parecida com a dosHare Krishnas, que também crêem em uma almaque passa por vários corpos, carregando carmas ebuscando o crescimento.

A reencarnação também é aceita na religiãoWicca. Nela, a morte não é tratada como o fim,mas como um acontecimento natural. Quandouma pessoa desencarna, vai para a Terra do Verão,que só existe no plano astral, onde fica por tempoindeterminado, até se “libertar” e retomar o mate-rial que a alma carrega vida após vida. Segundo abruxa Liane Laars, essa crença é seguida pelos wic-canos da linha celta. Nesse mesmo grupo, algunsacreditam que características indi-viduais são mantidas pelas almasnas reencarnações e outros achamque elas se perdem pelo caminho.

– Todo wiccano acredita no“Eterno Retorno”, ou seja, acreditaque há outras vidas após a morte,mas existem diversas formas de seacreditar nisso. A reencarnação éuma delas, onde a pessoa nãoperde sua individualidade, onde osdéjà vu são acontecimentos de vidas passadas –explica Liane. – O renascimento também é outraforma, onde a essência de cada pessoa é misturadaà essência de todas as outras que não estariammais nesse plano, onde todos voltariam aocaldeirão da Grande Mãe, perdendo a individuali-dade. Nesse caso, os déjà vu seriam lembranças davida de qualquer pessoa que já tenha existido,como uma espécie de inconsciente coletivo – con-clui a bruxa.

Apesar das divergências, a morte é sagrada paraos wiccanos, que preparam um ritual para celebrá-la, chamado Réquiem. Nele, os bruxos relembramtodas as coisas boas que o morto trouxe para avida, dançam e comem sua comida favorita. Aroupa é sempre branca, pois a Deusa da FacePálida é a senhora da morte e, segundo a tradição,a cor branca representa o “além”.

Este outro mundo, aliás, é constantemente visita-do por adeptos do Santo Daime, religião nascida noinício do século passado, na Floresta Amazônica.Para vivenciar fenômenos paranormais, como aregressão a vidas passadas e o contato com espíri-tos de seus antepassados, os fiéis tomam uma bebi-da chamada Ayahuasca. Consumido em pratica-mente todos os rituais do Daime, ela é resultado damistura do cipó Jagube e da folha Rainha e temefeitos alucinógenos. Por isso, não é aconselhávelpara deficientes mentais ou pessoas que tenhampassado por traumas recentes, porque pode trazermás lembranças. Além disso, a bebida é capaz decausar vômitos, diarréia e até o sentimento de“morte súbita”. Somente neste ano o consumo dochá foi admitido pelo Conselho Nacional Anti-dro-gas (Conad), exclusivamente para fins religiosos.

Segundo Francisco Schnoor, adepto da religião,tomar o chá significa entrar emcontato com o “eu espiritual”,portanto, o uso de bebidas alcoóli-cas ou qualquer outra dro g apodem influenciar o efeito dabebida. Existem, inclusive, casosde morte após o ritual.

– Houve o caso de um meninoem Mauá que se jogou na fo-gueira e outro que cometeu suicí-dio em Mapiá. Disseram-me que

ele usava drogas antes de tomar a Ayahuasca.Certamente, o Daime mexe muito com a pessoa,interfere bastante no cérebro. Muita gente toma ochá para “ver fadinhas”, enquanto que o objetivo ése espiritualizar e melhorar a vida. Eu tenho certezaque até agora a religião me ajudou bastante, masnão posso negar que não seja incomum pessoasmorrerem – afirma Francisco.

As pessoas que seguem essa religião acre d i t a mque “a morte é uma mentira que a matéria querp rovar”, ou seja, o espírito continua vivo e ape-nas o corpo morre. Para Francisco, a morte sig-nifica o fim de uma etapa da vida na Te rra. Oespírito continua a evoluir, preparando-se paraoutras vidas.

– Na Santa Missa do Mestre Irineu, fundador dadoutrina, cantamos hinos para as almas que sãomuito introspectivos e bonitos – encerra Francisco.

Para o Espiritismo, a alma passa pelos

reinos mineral e vegetal até chegar

ao homem

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