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135 PARTE II Direito e mudança social: a formação jurídica e as recentes demandas de reconhecimento no Brasil e na Argentina Richard Miskolci 1 Maximiliano Campana 2 1. Introdução Martha Minow, ao escrever sobre a relação entre direito e mudança social começa expressando o seguinte: “Penso que existem duas classes de pessoas quando se trata do tema do direito e mudança social: aquelas que pensam que o direito é um importante instrumento de mudança social e aquelas que não creem que seja. […] Quando se trata das relações entre direito e mudança social, não posso dizer quem está errado” (2000, p.1). Essa reflexão parecenos interessante como um pontapé inicial para realizar algumas considerações em torno da utilização do litígio como instrumento de mudança social nas demandas por reconhecimento de direitos. Mas para entender melhor como e para que se mobiliza o direito, é interessante primeiro adentrar no processo de formação e socialização profissional dos/as estudantes de advocacia para seu futuro exercício profissional. 1 Richard Miskolci é professor do Departamento e do Programa de PósGraduação em Sociologia da UFSCar e pesquisador do CNPq. Tem publicações na área de sexualidade, gênero e direitos humanos. 2 Advogado pela Universidade Nacional de Córdoba (UNC). Doutorando em Direito e Ciências Sociais (UNC), coordenador do Programa dos Direitos Sexuais e Reprodutivos da Faculdade de Direito (UNC) e coordenador da área de litígio estratégico da Clínica de Interesse Público de Córdoba.

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PARTE II  

 Direito e mudança social: a formação jurídica e as recentes demandas 

de reconhecimento no Brasil e na Argentina   

Richard Miskolci1  Maximiliano Campana2 

  1. Introdução  

Martha  Minow,  ao  escrever  sobre  a  relação  entre  direito  e mudança social começa expressando o seguinte:  

 “Penso que existem duas classes de pessoas quando se  trata do  tema do direito e mudança social: aquelas que pensam que o direito é um importante  instrumento de mudança  social  e  aquelas que não  creem que  seja.  […] Quando  se  trata  das  relações  entre  direito  e mudança social, não posso dizer quem está errado” (2000, p.1). 

   Essa  reflexão parece‐nos  interessante  como um pontapé  inicial para  realizar  algumas  considerações  em  torno da utilização do  litígio como  instrumento  de  mudança  social  nas  demandas  por reconhecimento de direitos. Mas para entender melhor como e para que se mobiliza o direito,  é  interessante primeiro adentrar no processo de formação  e  socialização  profissional  dos/as  estudantes  de  advocacia para seu futuro exercício profissional. 

                                                            1 Richard Miskolci é professor do Departamento e do Programa de Pós‐Graduação em Sociologia  da  UFSCar  e  pesquisador  do  CNPq.  Tem  publicações  na  área  de sexualidade, gênero e direitos humanos.  

2 Advogado pela Universidade Nacional de Córdoba (UNC). Doutorando em Direito e Ciências  Sociais  (UNC),  coordenador  do  Programa  dos  Direitos  Sexuais  e Reprodutivos  da  Faculdade  de  Direito  (UNC)  e  coordenador  da  área  de  litígio estratégico da Clínica de Interesse Público de Córdoba. 

 

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A maioria das pessoas vê o Direito como a área profissional de quem  se  sente  vinculado/a  às demandas por  justiça. Não  é  incomum ouvir  jovens  às vésperas de  entrar na universidade  refletindo  sobre  a advocacia como uma possibilidade atraente por causa de seus ideais de fazer  valer  a  igualdade  de  todos  perante  a  lei  e  contribuir  para  uma sociedade  mais  justa.  No  entanto,  pesquisas  em  vários  contextos nacionais  indicam que  se o  impulso  inicial para  a  carreira pode  ser  a busca por  justiça, a estrutura  formativa no Direito  tende a  frustrá‐la e até mesmo substituí‐la por objetivos mais práticos.3   Neste  artigo,  buscamos  discutir  como  a  formação  de advogados/as  poderia  ser  vinculada  proficuamente  a  um comprometimento  com  a  justiça  e  a  igualdade.  O  compromisso (commitment)  com  esses  valores  poderia  ter  um  efeito  positivo  de democratização  de  sociedades  com  uma  história  marcada  por desigualdades,  injustiças  e  autoritarismos.  Em  especial,  nos  casos brasileiro  e  argentino,  essas  três  chagas  culturais  demandam  que  a atuação da área da justiça se engaje em um processo em andamento de gradativa transformação social pelo qual passam nossos países desde o fim de suas últimas ditaturas militares. 

 2. Formação jurídica e socialização dos advogados 

 Voltemo‐nos  para  a  formação  de  advogados/as.  Para 

compreendê‐la melhor podemos nos basear em Basil Bernstein (1977) e seu conceito de “código de conhecimento educativo”, o qual se compõe pelo currículo, a pedagogia e a avaliação: 

 “Ao aplicar a  ideia de código à  transmissão educativa que  tem  lugar nas  escolas,  Bernstein  trata  de  demostrar  que  a  organização,  a transmissão  e  a  avaliação  do  conhecimento  (ou  seja,  o  currículo,  a pedagogia  e  a  avaliação  respectivamente)  estão  intimamente 

                                                            3 Dentre essas pesquisas destacamos as de Carlos Lista e sua equipe na Argentina e a de Boaventura de Souza Santos  (2012)  em Portugal. No Brasil, há várias  investigações sobre o tema e também uma vertente que analisa o contraste entre os ideais de justiça e neutralidade e a forma como a profissionalização os impede ou frustra. Sobre esse último tópico consulte as pesquisas de Bonelli et alli (2008) e Bonelli (2011).  

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relacionadas  com  os  padrões  de  autoridade  e  de  controle  social vigentes  na  sociedade.  […]  Enfim,  o  código  educativo  explica  a estrutura de poder e os princípios de controle vigentes na instituição” (Brígido, 2006a, p.45).   Dessa maneira, aquele/as alunos/as que  tenham  internalizado o 

“código de conhecimento educativo” da instituição de maneira correta, terão  assegurado  o  êxito  na  carreira  educativa  e  universitária. Desse modo,  o  triunfo  e  a  imposição  de  determinados  “códigos”  nas faculdades  de  direito  redundará  em  determinadas  concepções  de justiça,  equidade,  liberdade  e  direitos,  concepções  que  atualmente  se caracterizam por  serem  conservadoras  e  individualistas. Essa  questão não  deixa  de  ser  relevante  ao  levar  em  conta  que  em  países  como  a Argentina,  o  acesso  à  justiça  só  é  possível  pela  mão  de  um/a advogado/a, o que implica a conversão de estudantes de advocacia em profissionais  que  finalmente  custodiariam  a  liberdade  individual  e  a propriedade  privada,  dois  valores  sumamente  importantes  na sociedade argentina.4  

Diante  desse  panorama,  quais  são  as  motivações  dos/as estudantes no momento de escolher a carreira de advocacia e quando devem inserir‐se no mercado de trabalho? 

Para  responder essa pergunta, Tessio Conca  (2006) nos adverte que existe uma  importante variação na resposta dos/as estudantes. Em geral,  essas  motivações  podem  se  enquadrar  em  quatro  grupos5:  o primeiro  deles  se  vincula  com  a  influência  de  um  círculo  próximo, constituído por  familiares  e  amigos/as  advogados/as, que  influenciam na decisão. Um segundo grupo, por sua parte, manifesta ter escolhido a profissão  por  sentir  certa  inclinação  por  disciplinas  vinculadas  às ciências  sociais  e,  depois  de  ter  considerado  opções  como  ciência 

                                                            4 A representação de um advogado matriculado é obrigatória para atuar frente às cortes de  justiça, e a condição de advogado condição necessária para ocupar alguns cargos públicos, em particular para  ser  juiz em qualquer  instância do sistema de  justiça. É por isso que se deve sublinhar que, na Argentina, os advogados têm o “monopólio” do acesso à justiça e as faculdades de direito um grande poder político.  

5 Havia um quinto grupo, que manifestou ter escolhido a carreira “por eliminação”, por não  saber  o  que  estudar  ou  não  ter  podido  ingressar  em  outras  carreiras  de  seu agrado.   

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política,  serviço  social  ou  sociologia,  escolhem  a  advocacia  por considerá‐la uma carreira que abre perspectivas seguras de trabalho, ao que  também  incluem  a  posição  de  prestígio  e  poder  que  ela  permite alcançar. O  terceiro tipo de motivações está vinculado à busca de uma carreira que abra as portas de uma profissão  tradicional, prestigiosa e economicamente  rentável.  Finalmente,  encontramos  como  principal motivação da  escolha da  carreira  a necessidade de dar  resposta a um ideal social e humanitário. 

No  caso  desses  ideais,  os/as  estudantes  manifestam  que  sua verdadeira motivação se vincula ao seu interesse pela justiça, a busca de una sociedade mais igualitária e a defesa dos direitos dos demais: “[…] o que me levou a escolher essa profissão [foi] a sede de justiça, e se me perguntam o que é, digo: buscar que se respeitem as instituições, as leis e as constituições”  (apud Tessio Conca, 2006, p.63) Com essa resposta, um  estudante  se  associa  claramente  com  esse  último  grupo  de alternativas. Com certeza, a autora adverte que:  

 “Conforme vão avançando no curso, suas motivações iniciais começam a  se  ver  contrariadas. A  própria  estrutura  da  agência  educativa,  os conteúdos  que  se  transmitem  e  as  metodologias  de  ensino  vão defendendo uma percepção mais ajustada das possibilidades reais que têm  o  advogado  para mudar  situações  de  injustiça”  (Tessio  Conca, 2006, p.63).   Desse modo,  os/as  alunos/as  que  alguma  vez  acreditaram  na 

possibilidade  de  satisfazer  seu  desejo  por  uma  sociedade mais  justa como  advogados/as  terminam  convencendo‐se  de  que  o  papel verdadeiro  do/advogado/a  se  centra  principalmente  em  “litigar  e ganhar”  e  que  aqueles  valores  vinculados  à  proteção  de  direitos  de pessoas desprotegidas e a busca de maior justiça e igualdade social são ideais dificilmente realizáveis no exercício profissional. 

Isso  se  deve,  principalmente,  ao modo  em  que  se  estrutura  a educação legal em países como o Brasil e a Argentina. Neles, a maioria dos advogados e advogadas são formados dentro de disciplinas em que 

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a formação se caracteriza por ser marcadamente teórica,6 e nas quais se encontram dois núcleos  temáticos claros: um central que se vincula ao direito positivo (como é o direito civil, penal ou comercial) e outro, mais periférico,  formado  por  disciplinas  consideradas  auxiliares  ou meramente  informativas  (entre  as  quais  se  encontram  a  história,  a economia e a sociologia). Tudo isso implica uma ausência de conteúdos e  debates  que  fomentem  nos/as  estudantes  perspectivas  críticas  que discutam  com  os  discursos  jurídicos  dominantes. A  consequência  de tudo  isso  é  que  as  carreiras  de  advocacia  acabam  promovendo  uma identidade  profissional  pouco  comprometida  socialmente,  carente  de crítica  diante  dos  discursos  sócio‐jurídicos  tradicionais  e  altamente individualistas, onde os  futuros  advogados  e  advogadas  se  limitam  a reproduzir a ordem social existente (Brígido, 2006b).    Segundo  Lista  (2011),  a  predominância  de  uma  concepção formal e instrumental de justiça na formação de estudantes de direito na Argentina  faz  com  que  eles/as  não  percebam  ou  reconheçam  a existência de relações de poder. É como se a “neutralidade” da justiça a impedisse  de  reconhecer  desigualdades  e,  principalmente,  diferenças. Denominamos  desigualdade  o  contraste  relacional  entre  sujeitos detentores  de  condições  econômicas,  culturais  e  mesmo  de  acesso privilegiado  à  justiça  e  aqueles/as  que  não  detém  essas  condições  no mesmo nível. Diferenças, por  sua  vez,  referem‐se  à  forma  como  cada sociedade  distingue/marca  as  pessoas  com  relação  ao  gênero,  à sexualidade, à raça, etnia, geração, entre outras categorias.  

Se  em  relação  às  desigualdades  socioeconômicas  a  esfera jurídica  até  busca  fazer  frente  ainda  é menor  o  reconhecimento  das diferenças como  também engendrando desigualdades, as quais não se resumem  à  renda  ou  classe  social,  antes  a  experiências  sociais  de discriminação, preconceito e outras formas de violência simbólica.  

                                                            6  De  qualquer  forma,  nos  últimos  28  anos  de  transição  democrática  argentina experimentamos diversas mudanças curriculares que apontam para a inclusão em um núcleo de  formação prática, a associação do segundo núcleo  temático com matérias interdisciplinares que  flexibilizariam o currículo,  também a diminuição dos anos de curso e a incentivar uma perspectiva crítica na aproximação pedagógica. Nem todos esses objetivos  foram alcançados e a  implementação dessas  reformas ainda está em execução. 

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  Os contextos brasileiro e argentino são similares na formação de advogados/as, em ambos predominam os aspectos ressaltados por Lista como  a  predominância  da  transmissão  de  conhecimento  sobre  o desenvolvimento  de  habilidades  que  combina  três  aspectos:  “a centralidade do direito e da monodisciplinaridade, fragmentação, forte classificação  e  hierarquização  do  conhecimento  e  a  reprodução  da abordagem  legal  positivista  e  formalista  como modelo  hegemônico” (2011, p.5).  

Nesse modelo  de  ensino  e  aprendizado,  o Direito  tende  a  ser isolado  de  suas  origens  sociais  e  políticas,  portanto  apagando  sua contingência  de  forma  a  reproduzir  violências  simbólicas  típicas  da sociedade em que ele  se estabeleceu. O passado autoritário e  classista em  que  o  acesso  à  justiça  foi  mantido  um  privilégio  das  elites dominantes  é  ignorado  de  forma  a  preservar  intocadas  as  estruturas legais  e  culturais  que  as  beneficiam  até  hoje.  Assim,  não  é  de  se estranhar o contraste, ao menos no caso argentino, entre os  ideais com os  quais  estudantes  ingressam  nos  cursos  e  o  pragmatismo desencantado com que os deixam tornando‐se profissionais às custas da adoção de um apoliticismo alienante. Afinal, a neutralidade da  justiça não  pode  ser  confundida  com  cegueira  com  relação  às  condições  de desigualdade  em  que  ela  é  aplicada  ou,  inclusive,  não  é  aplicada, mantendo  boa  parte  da  população  apartada  de  seus  direitos  e  do reconhecimento de sua cidadania. 

Em  parte,  isso  se  passa  porque  o  sociológico  e  o  histórico tendem  a  ser mantidos  fora  ou  apenas  parcialmente  incorporados  na formação  legal, por meio, por  exemplo, da  filtragem das  reflexões de cunho  sociológico  e  político  pela  perspectiva  do  direito.  É  clara  a tendência  dos  cursos  brasileiros  a  priorizarem  a  contratação  de advogados  para  oferecerem  disciplinas  que  permitiriam  maior permeabilidade  da  formação  às  discussões  históricas,  sociológicas, antropológicas  e políticas. Buscando  evitar  esses  contatos  e  trocas,  os cursos levam a uma formação que prioriza a manutenção – e até mesmo o  reforço  ‐  de  um  hermetismo  do  direito,  o  que  contribui  para  que estudantes  passem  a  ver  com  desconfiança  fontes  que  poderiam problematizar  conteúdos  apresentados  como doutrinas  e/ou  verdades inquestionáveis. 

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No  Brasil,  como  analisado  por  Lista  na Argentina,  o  discurso pedagógico do direito tem quatro características que clamam por crítica: a centralidade e autoridade dos professores, a passividade e indiferença dos  estudantes,  o  estilo  ritualístico  e  dogmático  do  ensino  e  a arbitrariedade  e  o  antagonismo  nas  discussões  (Cf.  Lista,  2011,  p.8). Trata‐se de características não apenas da área do Direito, mas  também de sociedades  latino‐americanas que vivenciaram uma história comum marcada pelo autoritarismo e pela manutenção do acesso à justiça como privilégio das elites.  

Nossas  sociedades mudaram  e  se democratizaram nas últimas décadas e análises críticas como esta ou a de Lista são produtos dessa nova  realidade  político‐institucional,  a  qual,  infelizmente  ainda  não interferiu ou modificou a esfera de formação dos aplicadores do direito. Segundo Boaventura de Souza Santos:   

“O principal desafio que se coloca nesse contexto é que todo o sistema de  justiça,  incluindo  o  sistema  de  ensino  e  formação,  não  foi  criado para  responder  a  um  novo  tipo  de  sociedade  e  a  um  novo  tipo  de funções. O  sistema  foi criado, não para um processo de  inovação, de ruptura, mas para um processo de continuidade para  fazer melhor o que sempre tinha feito” (2012, p.81).  Estudantes  de  Direito  formam  um  contingente  grande  e 

potencialmente  poderoso  de  profissionais  que  poderia  auxiliar  no aprofundamento  da  democracia  em  nossos  países.  Infelizmente,  sua potencialidade  democrática  mantém‐se  controlada  por  valores historicamente  arraigados  e  que  tendem  mais  a  frear  processos  de mudança  social  do  que  os  aprofundar.  É  paradoxal  que  as  recentes conquistas  no  Supremo  Tribunal  Federal  brasileiro,  como  o reconhecimento  das  uniões  entre  pessoas  do  mesmo  sexo  e  a constitucionalidade das  cotas  raciais,7  se deem  em um país  em que  a graduação  em  Direito  mantém  um  perfil  dogmático  e  conservador. Qual a origem desse descompasso? 

                                                            7 A respeito das discussões sobre a constitucionalidade das cotas consulte Silvério (2012) e sobre as uniões entre pessoas do mesmo sexo veja Oliveira (2012). 

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Estudos  como  os  de  Bonelli  (2008;  2011)  demonstram  que  as carreiras  jurídicas  brasileiras,  marcadas  por  alta  competitividade, tendem a inculcar nos  jovens profissionais discursos universalistas que apagam  as  problemáticas  das  diferenças.  Quem  quer  conseguir  e manter um emprego como advogado é  induzido a adotar estratégias e discursos  em  que  o  profissionalismo  se  confunde  com  neutralidade. Bonelli  et  alli  (2008)  mostra  como  isso  se  passa  com  mulheres advogadas que, na base da profissão, afirmam não reconhecer nenhuma particularidade ou dificuldade extra por serem mulheres em uma área de  atuação majoritariamente masculina.  Compreensivelmente,  depois de  ascender  profissionalmente  o  discurso  ganha  nuances  e  muitas mulheres reconhecem e trazem ao discurso as dificuldades enfrentadas para  serem  reconhecidas  como  boas  profissionais  em  contextos historicamente masculinos.8 

Assim,  o  paradoxo  entre  as  recentes  decisões  do  Supremo Tribunal  Federal  brasileiro  e  os  discursos  predominantes  na  base profissional  –  em  especial  na  esfera  de  formação  –  se  torna  mais compreensível. A  lógica de  entrada na  área de  trabalho  ainda  é  a da adoção,  o mais  irrestrita  possível,  das  concepções mais  tradicionais  e arraigadas  do  que  é  o Direito,  a  profissão  de  advogado/a,  do  que  é passível de discussão ou não. O reconhecimento das diferenças sociais, das desigualdades ou mesmo do acesso desigual à justiça ainda é quase um  privilégio  de  quem  conseguiu  um  emprego  e  certa  estabilidade profissional.  

 3. O caso argentino dos advogados/as ativistas: os avanços LGBT e o poder conservador dos movimentos contra o aborto   

Em  contraste  com  o  cenário  brasileiro  mencionado  no  item anterior,  vale  a  pena  conhecer  uma  particularidade  argentina. Conforme  alguns  teóricos  (Lista,  2012, Manzo,  2011, Vecchioli,  2006), uma nova classe de advogados/as  litigantes estaria emergindo no país, fundamentalmente  por  meio  das  transformações  sociopolíticas  e 

                                                            8 Bonelli et alli (2008) conceitua como “apagamento de gênero” a característica marcante de como a incorporação de mulheres na base da profissão tem se dado em nosso país. 

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jurídicas  que  se  deram  desde  a  reinstauração  da  democracia.  Esses novos  profissionais  poderiam  ser  chamados  de  “ativistas”  e  se caracterizam  por  estarem  vinculados  a  movimentos  sociais  e/ou organizações não‐governamentais e compreenderem que o direito pode ser  entendido  também  como  uma  ferramenta  de  mudança  e transformação social e que o acesso à  justiça não pode ser considerado apenas  de  um  ponto  de  vista  formal,  antes  ser  plenamente  exercido pelos/as  afetados/as.  Em  relação  a  isso,  e  ao  referir‐se  aos/às advogados/as ativistas, Lista (2012, p.148) reflete: 

 “Quem adota e promove uma definição de acesso à justiça mais ampla, dinâmica  e  com base  substantiva  […]  tende  a  conceber  a politização dos  conflitos  sociais  como  uma  estratégia  jurídica  na  demanda  e  na defesa  dos  direitos  dos  peticionantes.  Por  sua  vez,  ao  promover  a participação  e  a  incorporação  dos  setores  mais  desprotegidos  nas relações  de  desigualdade  social,  tendem  a  reforçar  o  poder  de  tais setores e fortalecer sua autonomia”.    A  origem  desses  novos  “ativistas”  foi  favorecida  por  diversos 

fatores,  entre  os quais  se destacam  a  reforma  constitucional de  19949, um maior  nível  de mobilização  de  organizações  não‐governamentais em  defesa  dos  direitos  de  incidência  coletiva10,  uma  situação  política favorável para a mobilização do direito, a  incorporação por parte dos movimentos  sociais  de  profissionais  legais  em  suas  fileiras,  a  adoção por  parte  desses movimentos  de  um  discurso  de  direitos  humanos  e fundamentalmente  pelas  ajudas  econômicas  recebidas  por  parte  de organismos internacionais que exigiam, em troca, que entre as medidas 

                                                            9  Tal  reforma  implicou  a  incorporação  do  reconhecimento  de  direitos  de  incidência coletiva e instrumentos jurídicos próprios para a defesa desse tipo de direitos, como o amparo coletivo e a ação de habeas data. 

10 Por “direitos de  incidência  coletiva” entendemos aqueles direitos que possuem um número  indeterminado  de  indivíduos,  os  quais  podem  ver‐se  afetados  diante  de determinadas  ações  ou  medidas  tanto  do  Estado  como  de  outros  indivíduos.  Se incluem  nos  direitos  de  usuários  e  consumidores,  direitos  a  um  ambiente  sadio, direitos das minorias (sexuais, raciais, etc), entre outros.  

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a  serem  implementadas  deviam  se  desenhar  estratégias  de  litígio  de interesse público.11  

Dentro desse contexto, surgem as primeiras clínicas jurídicas na Argentina  (incentivadas  pelo  financiamento  externo  e  aplicando  um modelo e uma metodologia de trabalho que surgiu nos Estados Unidos na década de 1920 e foi transplantada para a América Latina quase um século depois) que pretendiam  ser  espaços de  reflexão  e  formação de futuros/as advogados/as, com a ideia de alterar a concepção tradicional do  direito  em  dois  sentidos:  por  um  lado,  educando  advogados/as diferentes,  com maior  sensibilidade  social  em defesa dos direitos dos mais  desprotegidos,  bem  treinados  em  questões  de  interpretação  e crítica ao direito e às instituições; também, a médio e longo prazo, que o direito  fosse mobilizado como uma verdadeira arma de  transformação social,  diminuindo  as  desigualdades  sociais  e  protegendo  direitos historicamente postergados (Puga, 2002).  

Desde  então,  advogados  e  advogadas  comprometidos/as  com causas  de  interesse  público  ou  com  a  defesa  de  interesses  de movimentos sociais não deixaram de proliferar, e os tribunais em todo país conheceram e resolveram causas novas que vão desde pedidos de proteção ao meio ambiente sadio, saneamento de rios e bacias hídricas, proteção  a  usuários  e  consumidores,  discriminação  racial  ou  por motivos  de  gênero,  sexualidade,  direitos  de  propriedade  dos  povos originários, entre muitos outros. E apesar do  incômodo e da reticência que  essas  demandas  causaram  (e  ainda  causam)  nos  distintos  órgãos judiciais, uma posição favorável por parte da Corte Suprema de Justiça da Nação diante desse tipo de demandas, na última década, incentivou a  utilização  estratégica  do  direito  por  parte  desses/as  novos/as profissionais.  

Nos últimos anos, em matéria de direitos sexuais e reprodutivos, diversos  grupos  vinculados  ao  movimento  da  diversidade  sexual12 

                                                            11Por  litígio de interesse público entendemos a estratégia de  judicializar diversos casos com a finalidade de penetrar nas agendas públicas, gerar mudanças políticas e sociais ou  impactar  nas políticas de  governo. Em  relação  à  ajuda  econômica  recebida por parte dessas organizações, foi particularmente importante a proveniente da Fundação Ford, que exigia a utilização desse tipo de litígio (Teles, 2008) 

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tiveram  um  grande  êxito  no  momento  de  obter  respostas  às  suas demandas. Essas se vincularam  fundamentalmente ao  reconhecimento de  direitos,  por  parte  do  Estado,  para  conseguir  o  matrimônio  em condições  iguais  às  dos  casais  heterossexuais  e,  posteriormente,  para que  fosse  reconhecida  a  identidade  de  gênero  autoconferida  de  toda pessoa  que  assim  o  deseje. Durante  as  campanhas  desenvolvidas,  se desenharam estratégias  judiciais e políticas tendentes a obter respostas judiciais aos seus pedidos, e, em alguns casos, dando bons resultados. É por  isso que  se deve  considerar que  esse movimento  soube mobilizar com grande efetividade o direito (Manzo, 2011). 

No  caso  das  estratégias  para  o  casamento  entre  pessoas  do mesmo sexo, sua origem data do ano de 2006, quando um conjunto de organizações LGBT13 decidiram nuclear‐se em uma federação (imitando o mesmo modelo  que  tinha  demonstrado  êxito  na  Espanha).  Assim, surgiu a FALGBT: Federación Argentina de Lesbianas, Gays, Bisexuales y Trans14. Um ano mais  tarde, essa  federação  lançou a campanha pelo reconhecimento  do  direito  ao  casamento  para  casais  formados  por pessoas  do  mesmo  sexo  (denominada  “Campanha  pelo  Casamento Igualitário”), com apresentações diante da justiça. A principal estratégia não  consistia  tanto  em  obter uma  sentença  judicial  favorável,  antes  o 

                                                                                                                                                12 Cabe  esclarecer  que  o movimento pela diversidade  sexual na Argentina não  é um bloco unitário  e homogêneo. Ao  contrário,  existem diversas  e  importantes divisões dentro  dele  (Meccia,  2006).  O mesmo  se  passa  no  Brasil,  país  em  que  não  se  dá unificação similar à observada na Argentina. A ABGLT, com sede em Curitiba, não foi criada a partir de uma coalizão das diversas vertentes LGBT brasileiras tampouco tem um discurso e/ou metas partilhados com elas. Em outras palavras, no Brasil há mais divergências e menos coesão do que na Argentina no que toca às demandas de diversidade sexual.  

13 A sigla LGBT faz referência a “Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros/as”.  14  Em  relação  a  isso,  Litardo  (2009:171)  menciona  que  a  FALGBT  surge  como consequência da “experiência espanhola, FELGBT – Federación Estatal de Lesbianas, gais, bisexuales y  trans  ‐  (…) a que possibilitou a  reforma do código civil espanhol para o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo” no ano de 2005 e que a federação na Argentina “tem uma série de objetivos que se destacam a priori por uma nacionalização  da  questão GLTTTBI  em  todo  território  argentino. A  Federación  se instalou  como um  espaço de  integração  regional  em  busca de uma  articulação  em nível  federal  como  estratégia de  integração  na  luta  e demanda por direitos  civis  e políticos da comunidade GLTTTBI”.  

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que se buscava era  instalar o debate sobre a reforma do casamento na agenda  pública  de  então.  Foi  por  isso  que,  alguns meses mais  tarde, diversos  deputados  apresentaram  na  Câmara  um  projeto  de  lei  de “casamento igualitário” no marco da mesma campanha. 

De maneira surpreendente, a estratégia  judicial funcionou e, no dia  10  de  novembro  de  2009,  uma  juíza  da  cidade  de  Buenos Aires resolveu  o  caso  declarando  a  inconstitucionalidade  dos  artigos  do Código  Civil  que  regulavam  o  matrimônio,  classificando‐a  de discriminatória. Em poucos meses, na cidade de Buenos Aires, distintos juízes  reconheceram novamente esse direito, gerando uma  importante jurisprudência  vinculada  ao  reconhecimento  dessas  demandas.  Com esses  precedentes  favoráveis,  a  FALGBT  anunciou  que  lançaria  uma “campanha  judicial em  todo o  território nacional” com a finalidade de obter  novas  sentenças  desse  tipo  em  lugares  diferentes  do  país.  As representações  se  fariam  por  parte  de  advogados  e  advogadas  da Federación e contariam com a colaboração do Instituto Nacional contra la Discriminación,  la Xenofobia  y  el Racismo  (INADI)  (Campana,  2011). As respostas  a  essas  novas  demandas  não  foram  favoráveis  e  a  questão caiu nas mãos da Corte Suprema de Justicia de la Nación.  

Não  foi  necessário  que  o  órgão  máximo  judicial  do  país resolvesse: no dia 15 de julho de 2010, o Congresso argentino aprovava as modificações no Código Civil15, permitindo  o  acesso  ao  casamento para os/as homossexuais.  

Obtido o direito ao casamento, a FALGBT lançava uma segunda campanha denominada “Derecho a la identidad, derecho a tener derecho” e, com  ela,  o  reconhecimento  da  identidade  de  gênero  se  convertia  na nova  demanda  do movimento  pela  diversidade  sexual  na Argentina. Nesse  caso,  a  estratégia  seguida  foi  a  mesma:  pressionar  tanto  no âmbito  legislativo  quanto  no  judicial.  No  primeiro,  se  apresentaram vários  projetos  de  lei  e,  em  novembro  de  2011,  as  comissões  de “Legislación General” e “Justicia” da Câmara dos Deputados discutiram e aprovaram  um  deles16,  começando  assim  o  processo  legislativo.  No                                                             15 Lei nacional número 26.618. 16  Veja  “Un  paso  hacia  la  identidad  de  género”.  Disponível  em  http://www. pagina12.com.ar/diario/sociedad/3‐180876‐2011‐11‐09.html.  (último  acesso:  30  de novembro de 2011).  

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âmbito judicial, levaram‐se a cabo vários pedidos de reconhecimento de identidade de gênero diante da justiça e autorização para mudar nomes nos  documentos  públicos. A  novidade  dessas  solicitações  foram  que os/as afetados/as alegavam que era sua identidade autodeclarada a que deveria  se  levar  em  conta  no momento  de  resolver,  e  não  o  fato  de terem sido submetidos/as a intervenções cirúrgicas ou perícias médicas, psicológicas  ou  psiquiátricas.17  Essas  demandas  obtiveram  uma recepção  favorável  nos  mesmos  tribunais  de  Buenos  Aires  que consideraram  que  a  instituição  civil  do  matrimônio  compreendido apenas como entre homem e mulher era inconstitucional (enquanto que, nos  tribunais do  resto do país, diante da mesma demanda, a  resposta era muito  diferente),  autorizando  aos  demandantes  a mudarem  suas identidades  sem  obrigá‐los/as  a  submeterem‐se  a perícias médicas  ou psicológicas, e levando em consideração somente a autonomia de quem demandava. Essa demanda  também se  resolveu no âmbito  legislativo, com a  lei nacional 26.743, a qual  reconhece a  identidade de gênero de todas as pessoas do país.  

Nesse caso, resulta difícil aferir a influência que a estratégia judicial pôde ter na decisão do Congresso Nacional argentino. Na verdade, o que se pode supor é que a lei de identidade de gênero seria o primeiro passo de um  processo  de  transformações  em  diferentes  instituições  estatais  (nas quais se incluem a justiça) que já havia começado.18  

                                                            17  É  importante  sublinhar  que  até  o  momento,  os  pedidos  de  reconhecimento  de identidade de gênero para  realizar  intervenções  cirúrgicas de mudança de  sexo ou retificar documentos públicos, em sua maioria se caracterizavam por: 1.  Outorgar  uma  grande  relevância  às  distintas  perícias  a  que  as  pessoas  trans deveriam  submeter‐se  e  os  informes  de  experts  (médicos  forenses,  psiquiatras, psicólogos, entre outros) que, em consequência, se produziam.  2. O relato de uma vida de sofrimento. Esses casos, em geral, tratavam sobre pessoas trans que  já tinham sofrido intervenções cirúrgicas, e que por suas histórias de vida, caracterizadas  pelo  sofrimento  constante  e  a  discriminação  permanente,  logravam convencer ao  juíz  sobre a necessidade de  intervenção  cirúrgica  e/ou  retificação dos registros documentais. 

18  Já existia o  reconhecimento da  identidade de gênero das pessoas  trans em distintas repartições públicas no momento de aprovação e sanção da lei. Assim, por exemplo, na  província  de  Córdoba,  no  ano  de  2011,  o  Ministério  da  Saúde  reconheceu  a identidade de gênero de  travestis  e  transsexuais que  foram atendidas  em hospitais públicos  da  Província  (Resol.  Ministerial  146/2001).  A  Universidade  Nacional  de 

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Quando  se  faz  referência  ao  uso  estratégico  do  direito  na Argentina,  em  geral  os  teóricos  têm  uma  perspectiva  otimista,  e entendem que a mobilização do direito pode ser entendida como uma ferramenta  capaz  de  conseguir  mudanças  sociais  significativas  no reconhecimento de direitos por meio de  vitórias  em  campos  judiciais (Böhmer,  1997;  Courtis,  2003;  CELS,  2008).  Inclusive  quando  as respostas dos juízes não são favoráveis, se considera que o mero feito de ter utilizado os  tribunais produz “efeitos  indiretos” benéficos, pois em alguns casos as demandas se  instalaram na opinião pública, nos meios de  comunicação  e  nos  setores  políticos  e  acadêmicos. Dessa maneira, mantém‐se  justificada  a  estratégia  jurídica.  Essa  postura  se  baseia  na visão estadunidense exposta por Michael W. McCann, o qual, em  sua obra  Rights  at  Work  (1994),  considera  que  o  direito  pode  participar diretamente em um processo político de contestação contra uma ordem estabelecida. Como  sublinha  esse  autor  em um  artigo mais  recente, o direito  proporciona  “simultaneamente  princípios  normativos  e estratégicos para a direção das lutas sociais” (McCann, 2004, p.508). 

Dentro dessa perspectiva se poderia entender porque uma parte importante  do  movimento  da  diversidade  sexual  optou  por  uma inclusão  de  estratégias  judiciais  em  suas  campanhas  pelo reconhecimento de direitos. Além disso, nos permitiria  justificar como as decisões da  justiça  asseguraram direta  e  indiretamente  o  êxito das campanhas lançadas. Desse modo, o uso estratégico do direito por parte do movimento  LGBT  seria  um  claro  exemplo  de  quanto  os  tribunais podem contribuir à mudança social.  

Com certeza, se fizermos uma leitura mais detalhada, em ambos os  casos,  as  demandas  se  resolveram  definitivamente  no  Congresso Nacional e não na justiça. Além disso, não é possível encontrar vínculos diretos  entre  essas  sentenças que  reconheciam direitos  e  a decisão do 

                                                                                                                                                Córdoba, por sua parte fez o mesmo em outubro, sendo a primeira universidade na Argentina  que  legislou  sobre  esse  assunto,  garantindo  o  respeito  à  identidade  de gênero autopercebida de  seus membros  (Ord. HCS 9/11),  e, posteriormente, viria a resolução 1181/2011 do Ministério de Seguridad de la Nación, estabelecendo que “Las personas trans deberán ser reconocidas por  la  identidad de género adecuada a su percepción, tanto en el trato personal como para cualquier tipo de trámite, comunicación o publicación al interior de las Fuerzas”.  

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Poder Legislativo. E mais, em quase todos os casos, as sentenças que se ditaram  fora  da  cidade  de  Buenos Aires  não  reconheciam  os  direitos que  o  movimento  demandava.  Assim  mesmo,  a  maior  parte  da imprensa  escrita  se  centrou  no  debate  parlamentar  e  houve, comparativamente,  uma  escassa  cobertura  dos  fatos  judiciais  (Sgró Ruata e Rabbia, 2011). Tudo isso nos leva a duvidar da efetividade que tiveram realmente as estratégias  judiciais empregadas pelo movimento e  quanto  essas  estratégias  trouxeram  para  suas  lutas  por reconhecimento.  

Ainda  que  não  possamos  concluir  que  o  movimento  pela diversidade  sexual  tenha  sido  exitoso  pelo  emprego  de  estratégias judiciais, é possível admitir que outros setores, aos quais denominamos “pró vida”  têm uma grande eficácia no momento de usar os  tribunais argentinos.  Esses  setores  se  caracterizam  por  serem  marcadamente conservadores,  estarem  relacionados  com  instituições  católicas, manterem uma concepção estática e tradicional da sexualidade (à qual vinculam exclusivamente com  seu papel  reprodutivo) e expressar que seu principal objetivo é a defesa da vida desde a concepção. Ademais, esses setores se caracterizam por ter utilizado tradicionalmente a arena judicial  para  impedir  o  avanço  em  matéria  de  sexualidade  e  (não) reprodução.  De  fato,  atualmente,  o  Ministerio  de  Salud  de  la  Nación enfrenta nove demandas judiciais somente contra o Programa Nacional de Salud Sexual y Procreación Responsable19 (Peñas Defagó, 2009). 

De todos os casos, o mais emblemático foi o “Portal de Belén”20. O caso  se  originou  quando  um  laboratório  farmacêutico  obteve  uma autorização do Ministerio de Salud de la Nación para produzir a pílula de anticoncepção hormonal de emergência (conhecida como “pílula do dia seguinte”). Essa autorização fez com que uma ONG chamada “Portal de Belén” se apresentasse diante da  justiça argumentando que  tais pílulas atentavam  contra  a  vida  das  crianças  por  nascer,  e  solicitou  que  se tirasse  sua  autorização  e  se  proibisse  sua  fabricação,  distribuição  e comercialização  em  todo país. A Corte Suprema  de  Justicia  de  la Nación aceitou a demanda  considerando que a vida humana  começa desde a                                                             19 Lei 25.673 20 Caso  “Portal  de  Belén Asociación Civil  sin  fines  de  lucro  c/Ministerio  de  Salud  y Acción Social de la Nación s/Amparo”. 

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concepção  e  tal  fármaco  devia  ser  considerado  abortivo  e,  em consequência, ilegal.  

Os  casos  não  se  esgotam  aqui.  Esses  grupos  obtiveram resoluções judiciais favoráveis que impediram as realizações de abortos permitidos  pela  lei,  o  ensino  de  educação  sexual  nas  escolas,  a distribuição  de  métodos  contraceptivos  em  hospitais  públicos  e, inclusive, a anulação dos primeiros casamentos entre pessoas do mesmo sexo  a  que  fizemos  referência  anteriormente  (Campana,  2011).  Se  a maioria desses casos  se caracteriza por utilizar o  sistema  judicial para impedir o avanço dos direitos, os tribunais em todo país se mostraram bastante receptivos a esse tipo de demanda, convertendo‐se em aliados importantes quando se disputam essas questões.  

O  caso  dos  avanços  alcançados  pelas  demandas  de  direitos LGBT  argentinos  e  a manutenção  de  uma  visão  negativa  do  aborto podem ser pensados dentro da dinâmica maior em que se enquadram essas  disputas  judiciais  no  período  democrático  recente:  uma rediscussão do que  é  a nação  argentina. De  forma paralela,  o mesmo tem  se  passado  no  Brasil,  no  qual  não  apenas  o  aborto  continua criminalizado como os direitos LGBT têm avançado mais timidamente. É perceptível que a partir do Governo Dilma Rousseff a agenda geral dos direitos humanos sofreu uma freada, o que o caso recente da eleição de um parlamentar da frente evangélica para a presidência da Comissão do Congresso sobre Direitos Humanos vem corroborar.  

De forma apenas parcial e controlada, o que temos assistido em terras brasileiras são algumas conquistas envolvendo nossa diversidade étnico‐cultural,  em  especial  o  reconhecimento  da  constitucionalidade das  cotas  nas  universidades  pelo  Supremo  Tribunal  Federal. Compreensivelmente, devido às diferentes  composições populacionais e às diferentes histórias, o caso argentino se desenvolve de maneira que demandas de reconhecimento e direitos se dão em uma sociedade que (ainda)  se  vê  de  forma  mais  homogênea  enquanto  no  Brasil  a problemática de uma sociedade multirracial se impõe.  

A despeito das diferenças, ambas as sociedades passam por um processo  democrático  de  reavaliação  do  que  se  compreende  como  a nação  argentina  ou  brasileira.  A  seguir  refletimos  preliminarmente como  essa  transformação  da  forma  como  compreendemos  quem  faz 

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parte  de  nossas  respectivas  nações  tem  se  dado  a  partir  de  um enquadramento multiculturalista,  o  qual  tem marcas  das  sociedades que  criaram  a noção de diversidade  e podem  limitar os  avanços  e  as conquistas em dois países do Sul Global.  4. Diversidade e diferenças: para onde caminham as nações? 

 Em  relação  ao  caso  argentino  e  suas  conquistas  recentes,  a 

sociedade brasileira e seu  legado cultural autoritário parece amortecer as  conquistas democráticas  recentes  em uma das  esferas  em  que  elas mais  poderiam  florescer.  Afinal,  como  já  observamos,  entre  as motivações que levam estudantes a optarem pelo Direito se encontram ideais  como  o  de  prestar  um  serviço  à  sociedade  e  aos  que  mais precisam. 

Trata‐se  de  algo  similar  ao  que  se  passa  em  outras  esferas profissionais e políticas que mantém esses compromissos vinculados a vertentes  de  reflexão  sobre  diversidade  e  multiculturalismo.  As melhores  das  intenções  terminam  por  traduzir  demandas  de transformação das  relações de poder  e diminuição das desigualdades sociais  em  discursos  que  apelam  à  retórica  da  tolerância  e  da incorporação  de  grupos  sociais  minoritários  sem  modificar  os privilégios dos socialmente majoritários, leia‐se, frequentemente não os mais  numerosos,  antes  os  que  detém  o  poder  regulador  da  ordem social.  

O  fato  acima  é  perceptível  no  contrassenso  de  chamar  as mulheres  ou  os  negros  de  minorais  em  uma  sociedade  como  a brasileira,  em  que  eles/as  são  metade  ou  mais  da  população.  Na verdade,  minorias,  diversidade  e  multiculturalismo  formam  um vocabulário  tímido  e  conservador  para  lidar  com  desigualdades  e injustiças. O termo diversidade é uma noção teórico‐política que surgiu na  América  do  Norte  em meio  à  preocupação  com  conflitos  étnico‐raciais,  e mesmo  culturais,  entre  a década de  80  e  a de  90 do  século passado. Nesse período, havia, por  exemplo, desde  conflitos  culturais entre  diferentes  comunidades  de  imigrantes  de  ex‐colônias  na Inglaterra,  na  França  e  na  Holanda  até,  na  América  do  Norte,  a rivalidade  entre  as  partes  de  fala  francesa  e  inglesa  no  Canadá  que 

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levou a uma tentativa de transformar o Quebec em um outro país. Nos Estados Unidos, no  início da década de 1990, entraram para a história episódios  de  conflitos  raciais  entre  negros  e  brancos  como  os  que  se passaram em Los Angeles.  

É neste contexto histórico de grande preocupação social que surge a  demanda  por  reflexões  acadêmicas  e  políticas  apaziguadoras  e conciliatórias. Em 1990, é lançado um texto fundamental sobre o tema, The Politics of Recognition [A política do reconhecimento] do filósofo canadense Charles Taylor. Nesse artigo há uma reflexão que serve de base para boa parte do  que  foi  produzido daí  por diante  sobre diversidade,  tanto  em termos  acadêmicos  como  na  forma  de  políticas  sociais.  A  noção  de diversidade busca compreender as demandas por respeito, das demandas por acesso a direitos por parte de pessoas que historicamente não tiveram esses direitos reconhecidos como negros, povos indígenas, homossexuais, mas de forma a que esses direitos particulares sejam reconhecidos dentro de um contexto institucional universalista. 

O universalismo se revela  intransigente e  incapaz de  lidar com transformações  históricas  e  sociais  em  que  o  apelo  à  igualdade  se sobrepõe  ao  reconhecimento  das  injustiças  sobre  o  qual  sua  tradição intelectual, social e  legal se assentou desde ao menos o final do século XVIII  (cf. Miskolci, 2010). O multiculturalismo, por sua vez, menos do que antagonizar com o universalismo busca atualizá‐lo para a realidade contemporânea,  em  particular  das  nações  mais  heterogêneas  ou  – melhor dizendo – mais abertas ao  reconhecimento de  sua diversidade interna. A despeito dos avanços, o multiculturalismo mantém intocado e inquestionado o olhar hegemônico sobre o qual assenta seus ideais, o qual pode ser claramente definido como os dos grupos estabelecidos e detentores do poder econômico, cultural e político desde a colonização.   

No  Brasil,  um  país  marcado  por  séculos  de  colonização exploratória e pela escravidão, a República foi criada em fins do XIX de forma a preservar os privilégios das classes dominantes brancas, ricas e letradas. Desde então predominou o discurso universalista e os  ideais de um liberalismo aparentemente fora de lugar, mas cuja lógica servia a 

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manter a imensa maioria da população sem cidadania plena.21 De forma simplificada, pode‐se dizer que apenas após o final da última ditadura militar  (1964‐1985)  é  que  surgiram  condições  políticas  abertas  a demandas de reconhecimento de diferenças anteriormente ignoradas ou violentamente negadas.  

A Assembleia Constituinte de meados da década de 1980  foi um marco ao  impulsionar debates democráticos sobre nossa sociedade e seu resultado, a Constituição de 1988, estabeleceu o marco institucional dentro do qual floresceriam as demandas por reconhecimento das diferenças em fins do século XX. Dentre elas, algumas das mais visíveis foram a demanda de  igualdade  de  direitos  por  parte  de  homossexuais,  a  luta  dos movimentos negros pelas ações afirmativas e de indígenas e quilombolas por demarcação de suas terras e reconhecimento de suas culturas.  

Na  Argentina,  a  situação  não  é  muito  diferente.  O  modelo agroexportador,  desenhado  no  final  do  século  XIX,  por  uma  elite capitalista e liberal quase não se modificou até hoje. E ainda que, formal e  legalmente,  a  cidadania  plena  se  alcançou  em  1947,  quando  se reconheceu  o  direito  ao  voto  feminino,  e  os movimentos  operários  e sindicais  estavam  bem  estabelecidos,  não  foi  antes  de  1983,  com  a reinstauração  da  democracia,  que  os  diversos  movimentos  sociais  e atores  coletivos  começaram  a  ter  participação  na  vida  política  e institucional do país.  

A  crescente  importância política  e  institucional que  começou a cobrar a sociedade civil na arena política  foi  juridicamente  respaldada pela  reforma  constitucional  de  1994.  Essa  reforma  implicou  uma importante transformação nas instituições do país, o reconhecimento de novos direitos e instrumentos  jurídicos tendentes a garantir o exercício efetivo deles. Mas, além disso, durante a década de 1990  se produziu uma importante retirada por parte do Estado de várias de suas funções tradicionais e, consequentemente, o surgimento de muitas organizações políticas e sociais  tendentes a suprir esse vazio. Dentro desse contexto político  e  institucional  favorável  é  que  floresceram  diversas  das demandas por reconhecimento de direitos e das diferenças.                                                              21  Sobre  essa  profícua  linha  de  reflexão  sobre  os  aparentes  paradoxos  brasileiros consulte a clássica discussão de Roberto Schwarz intitulada “As ideias fora de lugar” (2000). 

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Apenas dentro do que as pessoas de fala inglesa denominam de constitutional  law  e  que  podemos  traduzir  por  Estado  de  Direito podemos  debater  os  termos  de  convivência  em  uma  sociedade  que pretende um dia ser plenamente democrática. Muito além das também fundamentais  conquistas  das  eleições  diretas,  do  voto  universal,  a democracia é um construto histórico e cultural que depende do grau de liberdade de rediscussão dos limites da cidadania, sobretudo buscando ampliá‐la  para  aqueles  e  aquelas  que  não  têm  reconhecida  sua humanidade,  seus  direitos,  sua  igualdade  jurídica  e  social.  Apenas depois  dos  anos  oitenta  que  as  sociedades  brasileira  e  argentina passaram a viver dentro dessas condições, portanto há apenas menos de três décadas, um curto período dentro de nossa longa história.  

Quando  alguém  se  pergunta  por  que  ainda  vivemos  em  uma sociedade injusta e autoritária é só refletir sobre como nossa experiência democrática é recente e curta. No caso brasileiro, vinte e cinco anos são muito  pouco  tempo  dentro  desses  séculos  de  experiência  histórica colonial,  escravagista  e  mesmo  imperial  ou  republicana  dentro  dos quais  se  forjou  uma  sociedade  altamente  desigual  não  apenas  em termos  econômicos,  mas  também  em  outros  aspectos  não  menos importantes  como  raça/etnia,  gênero,  sexualidade,  etc.  De  qualquer forma,  o Brasil  conquistou muito neste  quarto de  século  e  avançou  a passos  largos em comparação com muitas outras nações com histórias similares. Ainda há muito o que fazer, mas vivemos dentro de um clima democrático profícuo para as  transformações que, quiçá, possam vir a nos  tornar uma  sociedade plenamente democrática e  com  justiça para todos/as.  

No caso argentino, os contínuos golpes de estado, a instabilidade das  instituições  políticas,  a  alternância  entre  regimes  ditatoriais  e democráticos, um modelo baseado na exportação de matérias agrícolas e  importação de manufaturas e a dependência econômica das grandes potências produziram um paulatino empobrecimento da maior parte da população, convertendo‐se também em um país altamente desigual.  

É em meio ao cenário inaugurado pelas novas Constituições e a rearticulação dos movimentos sociais na década de 1990 que começa a surgir  uma  nova  forma  de  compreensão  da  nação  e  do  acesso  à cidadania. As políticas criadas sob o rótulo da diversidade buscam fazer 

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frente  a  este  novo  cenário  cultural  e  político  tão  recente  quanto imprevisível. Não é de se estranhar que em sociedades marcadas pelo comando por elites temerosas com relação ao povo e à possibilidade de perda de  sua posição de  comando22 busquem,  ao menos  inicialmente, fazer frente às demandas sociais de reconhecimento das diferenças por meio  do  filtro  político  que  as  traduz  na  linguagem  da  tolerância  da diversidade.  

Tolerar é muito diferente de reconhecer alteridades, de valorizá‐las em sua especificidade e conviver com a diversidade também não quer dizer aceitá‐la. Em termos teóricos, diversidade é uma noção derivada de uma  concepção  estática  de  cultura  que  advoga  a  tolerância  dos “diferentes”,  mas  mantendo  a  cultura  dominante  intocada  por  esses “Outros”  sociais.  É  como  se  da  ignorância  ou  do  apagamento  das diferenças  sociais  passássemos  apenas  a  reconhecê‐las  recusando  nos relacionarmos/transformarmos  pelo  contato  com  elas.  A  retórica  da diversidade busca manter  intocada a cultura dominante criando apenas condições de tolerância para os diferentes, os estranhos, os “outros”. Seu resultado, o multiculturalismo, tende a criar condições sociais e políticas de gestão das diferenças ou, sendo mais direto e claro, o estabelecimento de  um  regime  atualizado  das  antigas  formas  de  segregação  que caracterizaram historicamente sociedades como a norte‐americana.  

A  retórica  da  diversidade  tem  forte  apelo,  e  não  apenas  no Brasil, na Argentina ou na esfera da política, pois apresenta o mundo como  podendo  ser  diverso  sem modificar  hierarquias  ou  relações  de poder.  Alguns  falam  de  diversidade  por  meio  do  termo multiculturalismo,  essa  utopia  euro‐norte‐americana  da  convivência com  imigrantes, não‐brancos, não‐heterossexuais, entre outros, a partir de  uma  perspectiva  que  mal  encobre  sua  origem  branca,  cristã, ocidental e masculina. Trata‐se de uma utopia dos nostálgicos do poder branco  colonial, na qual as diferenças  seriam  toleradas  sem modificar profundamente  os  valores  e  os  privilégios  dos  grupos  sociais dominantes.                                                              22 Sobre as origens históricas desse medo da elite brasileira em relação ao povo consulte Miskolci (2012) e Azevedo (1987). Azevedo mostra que o temor da Abolição originou o medo  dos  negros  no  Brasil, Miskolci  por  sua  vez  analisa  como  esse  temor  dos negros foi transformado em medo do povo após a proclamação da República. 

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Distinguir  entre diferença  e diversidade  exige  abandonar uma concepção normativa e fossilizada de sociedade. Se a diversidade apela para  uma  concepção  horizontalizada  de  relações  em  que  se  afasta  o conflito e a divergência em nome da conciliação, lidar com a diferença é algo  incomensurável,  mas  potencialmente  mais  democrático  e promissor.  Uma  perspectiva  informada  pelas  diferenças  pode questionar  e  até  modificar  hierarquias,  colocar  em  diálogo  os subalternizados com o hegemônico de  forma, quiçá, a mudar a ordem que mantém e reproduz desigualdades. 

Os discursos jurídicos e a formação em Direito ainda constituem um conjunto de técnicas que buscam fazer o Outro se enquadrar ou ser reconhecido  sem  modificar  as  concepções  hegemônicas  de  justiça  e igualdade. Ou seja, demandas de reconhecimento e  igualdade a partir da diferença tendem a ser enquadradas em um modelo legal autoritário, normativo,  violento.  Podemos  reavaliá‐lo  de  forma  que,  ao  invés  de homogeneizar ou alocar confortavelmente cada um em uma gaveta por meio  das  diferenças  possamos  modificá‐lo  e  atualizá‐lo  de  forma  a mudar  sua  histórica  conformação  aos  interesses  dos  grupos dominantes.  

Nas sábias palavras de Adriana Vianna:  “Falar de “direito à diferença” implica, em primeiro lugar, reconhecer a possibilidade de heterogeneidade cultural e social como algo legítimo em  universos  políticos  mais  amplos,  dotados  de  uma  suposta “unidade”,  como  se  dá  nos  Estados‐nação  modernos. Mais  do  que apreender a diferença como condição inerente aos grupos sociais, isso equivale  a  defendê‐la  como  algo  relevante  na  constituição  da especificidade de  indivíduos e coletividades que não desejam negá‐la para  serem  reconhecidos  como  participantes  legítimos  de  unidades abrangentes” (Vianna, 2012, p. 204‐205). 

   Percebe‐se como as demandas de reconhecimento e acolhimento das diferenças questionam a compreensão ainda corrente do que seria a nação brasileira ou mesmo a argentina. Esse construto cultural e legal, a nação,  pode  ser  repensado  e  adquirir  uma  acepção mais  inclusiva  e democrática.  A  noção  de  diversidade  busca  amortecer  as  críticas  e incorporar  de  forma  controlada  e/ou  subalterna  grupos  sociais  cuja 

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história se confunde com uma de luta constante contra o aniquilamento de suas singularidades. A perspectiva das diferenças tende a ser temida como  trazendo  consigo  necessariamente  o  conflito  e  a  discórdia, interpretação  dos  estabelecidos  sociais  que  deixa  de  reconhecer  as alteridades  internas  à  sociedade  brasileira  ou  argentina  como interlocutoras em nível de igualdade.  

As  diferenças  podem  incitar  o  debate,  fazer  com  que  as divergências  se  traduzam  em diálogos  e  negociações. Talvez  o maior desafio  de  nossas  democracias  seja  o  de  deixar  para  trás  os  temores elitistas  sobre  o  povo  ou  as  demandas  subalternas  como  ameaças  à ordem. Superar este medo dos grupos sociais  injustamente mantidos à margem do reconhecimento, do respeito e da  justiça exige modificar a histórica aversão de nossas elites políticas, intelectuais e econômicas às divergências ou ao  conflito. Em um  contexto plenamente democrático todos/as  –  e  especialmente  cada  um/a  –  tem  o  direito  de  divergir  ao mesmo  tempo  que  demanda  seu  reconhecimento  como  parte  da coletividade.  

É nesse contexto em que o papel da formação dos advogados e das  advogadas,  na Argentina  e  no  Brasil,  cumpre  um  papel  central. Concepções  jus‐naturalistas,  arcaicas,  positivistas  e  conservadoras continuam  dominando  o  currículo  quando  se  tratam  de  profissões jurídicas. Os estudantes são meros receptores passivos de discursos que não podem ser colocados em dúvida  tampouco discutir, são  formados sem  ferramentas  críticas  e,  em  sua maioria,  carecem de  compromisso social  e  ideal de  justiça. Desse modo,  se  formam operadores  jurídicos cujo papel é reproduzir a ordem existente.  

No  caso  argentino,  os/as  advogados/as  ativistas  têm  pouca margem  para  produzir  mudanças  significativas  no  que  se  refere  ao reconhecimento  de  direitos.  Nesse  mesmo  contexto,  aqueles/as advogados/as  que  se  oponham  ao  avanço  dos  direitos  encontram  na justiça um campo propício para tornar efetivas suas demandas. Cenário similar se encontra no Brasil, de forma que em ambos os países o direito e a mudança social parecem não se dar bem.  

Uma modificação na esfera formativa do Direito seria uma bem‐vinda  contribuição para  o  aprofundamento de nossas democracias. A transformação poderia começar pela  incorporação de uma perspectiva 

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educacional  dialógica,  o  incentivo  ao  debate  em  sala  de  aula  e  a incorporação  de  fontes  históricas  e  sociológicas  que  tensionam, mas também  enriquecem,  o  aprendizado  legal  por  meio  do  incentivo  à reflexão e a contextualização da prática profissional. Dessa maneira, o próprio Direito  passaria  a  incorporar  as  diferenças  reconhecendo  seu papel social não apenas de mantenedor da tradição ou do estabelecido, mas também de veículo de transformação social. 

A prática profissional pode adaptar‐se às demandas atuais por maior  acesso  à  justiça,  reconhecimento  de  diferenças  historicamente ignoradas ou negadas pela ordem  jurídica herdada de nosso passado autoritário. Em  suma,  o Direto pode manter  seu  compromisso  com  a ordem  sem  deixar  de  incorporar  as  demandas  que  apontam  para  a construção  de  uma  sociedade mais  justa,  a  qual  não  alcançará  seus ideais de igualdade sem o apoio da esfera jurídica.       Bibliografia  AZEVEDO,  Celia  Maria  Marinho  de.  Onda  negra,  medo  branco:  o  negro  no imaginário das elites do XIX. São Paulo, Paz e Terra, 1987. BERNSTEIN,  Basil.  “Class,  codes  and  control”.  Londres.  Routledge & Keegan Paul, 1977.  BONELLI,  Maria  da  Gloria.  Profissionalismo,  gênero  e  significados  da diferença entre  juízes e  juízas estaduais e federais. In: Contemporânea – Revista de  Sociologia  da  UFSCar.  São  Carlos,  Departamento  e  Programa  de  Pós‐Graduação em Sociologia, pp. 103‐123, 2011. BONELLI, Maria da Gloria; CUNHA, Luciana G.; OLIVEIRA, Fabiana L. De; SILVEIRA,  M.  Natália  B.  da.  Profissionalização  por  gênero  em  escritórios paulistas de advocacia In: Tempo Social‐ Revista de Sociologia da USP. São Paulo: PPGS‐USP, v. 20, n.1, pp. 265‐290, 2008.  BOHMER,  Martín  F.  “Sobre  la  inexistencia  del  derecho  de  interés  público  en Argentina”. En Revista  Jurídica de  la Universidad de Palermo. Buenos Aires, 1997.  BRÍGIDO,  Ana  María.  “Claves  teóricas  para  interpretar  el  proceso  de socialización  profesional  de  los  futuros  abogados”.  En  La  socialización  de  los estudiantes  de  abogacía.  Crónica  de  una metamorfosis.  Brígido, Ana María  et  al. Córdoba. Hispania Editorial, 2006a.  

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