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PSICODIAGNÓSTICO – V 105 11 Passos do processo psicodiagnóstico Jurema Alcides Cunha FORMULAÇÃO DAS PERGUNTAS BÁSICAS OU HIPÓTESES O processo psicodiagnóstico é um processo científico e, como tal, parte de perguntas es- pecíficas, cujas respostas prováveis se estrutu- ram na forma de hipóteses que serão confir- madas ou não através dos passos seguintes do processo. Geralmente, temos um ponto de partida, que é o encaminhamento. Qualquer pessoa que encaminha um paciente o faz sob a pressupo- sição de que ele apresenta problemas que têm uma explicação psicológica. Existe uma preo- cupação, que pode se expressar por meio de uma pergunta muito vaga, como: “Será que A não aprende por um problema psicológico?” Por certo, o psicólogo precisa de mais dados sobre o caso para desdobrar a pergunta vaga de um leigo, numa série de perguntas formu- ladas em termos psicológicos, como: “Será que A apresenta uma limitação intelectual?”, “Será que A não aprende por interferência de pro- blemas emocionais?” Ainda não são pergun- tas precisas, mas a história de A vai permitir que chegue a alternativas de explicação, como: a) “A tem um nível de inteligência fronteiriço”; b) “A tem um nível de inteligência normal, mas seu desempenho intelectual atual está limita- do, porque sofreu um trauma emocional re- cente”. Tais alternativas de explicação são hi- póteses, que serão testadas através do psi- codiagnóstico. Esse exemplo é de um caso muito simples, mas demonstra que o psicólogo precisa de mais dados para que as questões iniciais sejam pre- cisas, podendo, então, formular suas hipóte- ses. O esclarecimento e a organização das ques- tões pressupostas num encaminhamento são tarefas da responsabilidade do psicólogo. Se é um profissional que encaminha, pro- vavelmente não o faz com base numa pergun- ta vaga. Mesmo que o encaminhamento sugi- ra, freqüentemente tem em mente uma série de questões específicas, fundamentadas em observações ou informações prévias. Eventual- mente, tais questões estão explícitas no pró- prio encaminhamento. Outras vezes não, o que ocorre até em razão de sigilo profissional. As- sim, seguidamente, é através de um contato telefônico que as questões chegam a ser colo- cadas em termos mais funcionais e claros. En- tão, tais questões, reformuladas em termos psicológicos, vão dar um embasamento ade- quado a um exame, permitindo que o laudo sirva de fundamento para decisões que devem ser tomadas. Um médico, por exemplo, pode telefonar, dizendo que tem uma paciente com patologia de coluna e que suspeita que os sintomas se- MÓDULO V – Operacionalização do Processo

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PSICODIAGNÓSTICO – V 105

11Passos do processo psicodiagnóstico

Jurema Alcides Cunha

FORMULAÇÃO DAS PERGUNTAS BÁSICASOU HIPÓTESES

O processo psicodiagnóstico é um processocientífico e, como tal, parte de perguntas es-pecíficas, cujas respostas prováveis se estrutu-ram na forma de hipóteses que serão confir-madas ou não através dos passos seguintes doprocesso.

Geralmente, temos um ponto de partida,que é o encaminhamento. Qualquer pessoa queencaminha um paciente o faz sob a pressupo-sição de que ele apresenta problemas que têmuma explicação psicológica. Existe uma preo-cupação, que pode se expressar por meio deuma pergunta muito vaga, como: “Será que Anão aprende por um problema psicológico?”Por certo, o psicólogo precisa de mais dadossobre o caso para desdobrar a pergunta vagade um leigo, numa série de perguntas formu-ladas em termos psicológicos, como: “Será queA apresenta uma limitação intelectual?”, “Seráque A não aprende por interferência de pro-blemas emocionais?” Ainda não são pergun-tas precisas, mas a história de A vai permitirque chegue a alternativas de explicação, como:a) “A tem um nível de inteligência fronteiriço”;b) “A tem um nível de inteligência normal, masseu desempenho intelectual atual está limita-do, porque sofreu um trauma emocional re-

cente”. Tais alternativas de explicação são hi-póteses, que serão testadas através do psi-codiagnóstico.

Esse exemplo é de um caso muito simples,mas demonstra que o psicólogo precisa de maisdados para que as questões iniciais sejam pre-cisas, podendo, então, formular suas hipóte-ses. O esclarecimento e a organização das ques-tões pressupostas num encaminhamento sãotarefas da responsabilidade do psicólogo.

Se é um profissional que encaminha, pro-vavelmente não o faz com base numa pergun-ta vaga. Mesmo que o encaminhamento sugi-ra, freqüentemente tem em mente uma sériede questões específicas, fundamentadas emobservações ou informações prévias. Eventual-mente, tais questões estão explícitas no pró-prio encaminhamento. Outras vezes não, o queocorre até em razão de sigilo profissional. As-sim, seguidamente, é através de um contatotelefônico que as questões chegam a ser colo-cadas em termos mais funcionais e claros. En-tão, tais questões, reformuladas em termospsicológicos, vão dar um embasamento ade-quado a um exame, permitindo que o laudosirva de fundamento para decisões que devemser tomadas.

Um médico, por exemplo, pode telefonar,dizendo que tem uma paciente com patologiade coluna e que suspeita que os sintomas se-

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jam, pelo menos parcialmente, de fundo psi-cológico. Poderia ser indicada uma interven-ção cirúrgica, para alívio da dor e da restriçãoda motilidade, mas lhe é de importância fun-damental saber como a paciente reagiria à ci-rurgia.

Aqui, por certo, temos algumas questões:Há fatores psicológicos associados à condiçãomédica? Como a paciente reagiria à situaçãocirúrgica e à longa recuperação? Qual o prog-nóstico do caso? Delineiam-se, portanto, trêsobjetivos para o exame. Por outro lado, as ques-tões colocadas pelo médico já começam a sertraduzidas em termos psicológicos.

Consideremos a primeira questão. A hipó-tese de trabalho que o psicólogo levanta, pri-meiramente, é de que o diagnóstico da pacien-te, de acordo com o DSM-IV, seja 307.89, doEixo I, ou Transtorno Doloroso Associado tan-to com Fatores Psicológicos quanto com umaCondição Médica Geral, sendo que esta é co-dificada no Eixo III.

Não obstante, apenas com os poucos da-dos que possui, o psicólogo pode levantar per-guntas diferentes, como: a) A paciente apre-senta outro transtorno mental associado, emespecial depressão? b) Há algum problemapsicossocial agravante? c) A paciente tem con-flitos relacionados com dependência-indepen-dência? d) A paciente obtém ganhos secundá-rios a partir de seus sintomas? Aqui, houve tam-bém uma reformulação das perguntas em ou-tros termos, buscando também base em pres-supostos psicodinâmicos. O processo quepermitiria responder às últimas perguntasteria como objetivo básico o entendimentodinâmico.

Assim, os objetivos do psicodiagnósticodependem das perguntas iniciais. No caso, combase no encaminhamento, decidiu-se fazer umpsicodiagnóstico com dois objetivos básicos,de classificação nosológica e de entendimentodinâmico, para que o laudo fornecesse ao mé-dico não só uma explicação do caso, mas tam-bém uma compreensão que lhe facilitasse omanejo. A partir dos dados do psicodiagnósti-co, também seria possível atender aos objeti-vos de prognóstico e de prevenção. Confirma-das as hipóteses, o prognóstico não foi consi-

derado favorável, e foi recomendada uma psi-coterapia de reforço do ego para o enfrenta-mento da situação.

Neste caso, desde o início, foram levanta-das questões claras e funcionais. Eventualmen-te, porém, as entrevistas iniciais com o pacien-te levantarão perguntas complementares, quedefinem novos objetivos para o exame.

Na realidade, cada caso terá as suas pecu-liaridades. Às vezes, logo se torna possível le-vantar as primeiras perguntas a partir do pró-prio encaminhamento, quando este parececonfiável pelas questões propostas. Por exem-plo, no caso de um encaminhamento para diag-nóstico diferencial, em que o psiquiatra pro-põe alternativas, não só as perguntas estãoexplícitas, como também é possível formularhipóteses. Outras vezes, vai ser possível levan-tar alguma hipótese (ainda que provisória) sóno início da história clínica. Neste caso, a con-dução do restante da história clínica e da his-tória pessoal será estruturada em termos deuma sondagem para a obtenção de subsídiosque reforcem a fundamentação da hipótese oupara a busca de dados comprobatórios. Nãoobstante, geralmente o elenco das perguntassó fica inteiramente completo após o levanta-mento de toda a história, embora, durante todoo processo psicodiagnóstico, se possa, de vezem quando, levantar questões subsidiárias aosobjetivos previstos.

Porém, no momento em que é possível le-vantar as questões básicas e estabelecer osobjetivos, o que, em geral, ocorre no fim daprimeira ou segunda entrevista, há condiçõespara o estabelecimento de um plano de ava-liação com base nas hipóteses e, conseqüente-mente, para realizar o contrato de trabalho.

CONTRATO DE TRABALHO

O psicodiagnóstico é um processo limitado notempo. Esclarecidas as questões iniciais e defi-nidas as hipóteses e os objetivos do processo,o psicólogo tem condições de saber qual o tipode exame que é adequado para chegar a con-clusões e, conseqüentemente, pode prever otempo necessário para realizá-lo.

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A duração de um psicodiagnóstico consti-tui uma estimativa do tempo em que se podeoperacionalizar as tarefas implícitas pelo pla-no de avaliação, bem como completar as tare-fas subseqüentes até a comunicação dos re-sultados e recomendações pertinentes.

No momento em que é possível ter umaprevisão, deve-se formalizar com o paciente ouresponsável os termos em que o processo psi-codiagnóstico vai se desenvolver, definindopapéis, obrigações, direitos e responsabilida-des mútuas.

O momento mais propício para o estabele-cimento de um contrato de trabalho, porém, évariável, pois tanto depende da precisão dasquestões iniciais e dos objetivos, como da ex-periência do psicólogo. Por certo, há outrasvariáveis em jogo, associadas à sintomatolo-gia do paciente e de seu estilo de trabalho.Apesar de o paciente ou responsável muitasvezes desejarem apressar o contrato de traba-lho, por razões emocionais ou financeiras, e,então, se poder dar algumas indicações sobrea forma como se costuma trabalhar e sobrevalores médios, freqüentemente é mais dese-jável estabelecer o contrato, em termos defini-dos, depois de o psicólogo se familiarizar como desempenho do paciente.

O contrato de trabalho envolve um com-prometimento de ambas as partes de cumprircertas obrigações formais.

O psicólogo compromete-se a realizar umexame, durante certo número de sessões, cadauma com duração prevista, em horário prede-terminado, definindo com o paciente ou res-ponsável os tipos de informes necessários equem terá acesso aos dados do exame. Even-tualmente, tal informação já está determinadapelo encaminhamento, mas sempre convémexaminar se existe uma aceitação tácita do in-teressado a respeito.

Ao considerar a duração do processo, mui-tos profissionais incluem o tempo previsto paracontatos ou conferências com outros profis-sionais (embora nunca o tempo despendido emsupervisão). Entretanto, quando são necessá-rios vários tipos de informes ou laudos maiselaborados, o tempo estimado para a sua con-fecção deve ser computado na duração do pro-

cesso. A não ser em casos de pareceres muitosimples, em geral, deve-se prever um períodode duas horas para a preparação dos informes.Com base na estimativa do tempo, são estabe-lecidos os honorários, sendo definidas tambéma data e as formas de pagamento.

O paciente compromete-se a comparecernas horas aprazadas, nos dias previstos e im-plicitamente a colaborar para que o plano deavaliação seja realizado sem problemas. Issopressupõe que sejam esclarecidas as suas dú-vidas, aproveitando-se a oportunidade paratrabalhar suas expectativas irrealísticas ou fan-tasias sobre o psicodiagnóstico.

Finalmente, o contrato de trabalho deveenvolver certo grau de flexibilidade, devendoser revisto sempre que o desenvolvimento doprocesso tiver de sofrer modificações, seja por-que novas hipóteses precisam ser investigadas,seja por ficar obstaculizado por defesas do pró-prio paciente.

Não obstante, cabe uma ressalva. Vamossupor que o psicólogo tenha feito o seu planode avaliação, o tenha desenvolvido e, na fasede levantamento dos dados, chegue à conclu-são de que a administração de mais um instru-mento seria pertinente para elucidar certasdúvidas. O psicólogo hesita entre tirar conclu-sões com base em dados insuficientes ou con-vocar novamente o paciente. E o contrato detrabalho deve ser revisto? Não, a não ser que,previamente, o psicólogo tenha aventado talpossibilidade. Recomenda-se, pois, que o pa-ciente seja chamado, que lhe seja explicada anecessidade de se submeter a mais um teste,mas sem qualquer ônus para ele.

ESTABELECIMENTO DE UM PLANO DEAVALIAÇÃO

Essencialmente, o plano de avaliação é um pro-cesso pelo qual se procura identificar recursosque permitam estabelecer uma relação entreas perguntas iniciais e suas possíveis respos-tas.

O encaminhamento de um caso freqüente-mente sugere um objetivo para o exame psi-cológico. Por vezes, propõe algumas questões,

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que permitem ao psicólogo estabelecer algunspressupostos, que podem ser provisórios ounão. Via de regra, somente após um contatocom os fatos, o clínico poderá definir com maisprecisão as perguntas iniciais e os objetivos dopsicodiagnóstico, isto é, após complementar econfrontar os dados do encaminhamento cominformações subjetivas e objetivas sobre o caso,estará em condições de estabelecer seu planode avaliação.

Para as questões iniciais, há alternativas derespostas, que constituem as hipóteses subja-centes ao processo diagnóstico. O plano deavaliação consiste em traduzir essas pergun-tas em termos de técnicas e testes (Pope &Scott, 1967), isto é, consiste em programar aadministração de uma série de instrumentosadequados ao sujeito específico e especialmen-te selecionados para fornecer subsídios paraque se possa chegar às respostas para as per-guntas iniciais. Os dados resultantes, portan-to, devem possibilitar confirmar ou infirmar ashipóteses, com um grau satisfatório de certeza.

Eventualmente, antes do primeiro contatocom o paciente, o objetivo do exame já estábem definido, e as questões iniciais, bem deli-mitadas, como, por exemplo, quando há soli-citação de um diagnóstico diferencial num con-texto hospitalar. Há informações prévias sobreo sujeito e o caso em questão. Assim, a primei-ra entrevista já pode ser estruturada de ma-neira a permitir a resolução de algumas ques-tões diagnósticas. Então, a entrevista já fazparte do plano de avaliação, não sendo utili-zada principalmente para oferecer subsídiospara o delineamento do plano de avaliação.

Conseqüentemente, há casos em que o pla-no de avaliação é estabelecido previamentequando há dados que permitam formulá-lo.Mais freqüentemente, só é estabelecido apósa entrevista com o sujeito e/ou com o respon-sável, quando, então, se dá início ao processode testagem. Porém, às vezes, é necessário pro-gramar a utilização de recursos complementa-res, tais como observações do comportamen-to em situações da vida diária. Aliás, hoje emdia, há uma tendência crescente à valorizaçãodo levantamento de repertórios de conduta dopaciente e à identificação de variáveis do am-

biente que possam com ela se relacionar (Fer-nández-Ballesteros, 1986). Por outro lado,eventualmente, podem parecer importantesresultados de exames médicos e a análise deoutros materiais que não contribuíram para aanamnese (Pérez-Ramos, 1966), como fotogra-fias, gravações em vídeo, diários, desenhos,pinturas, cadernos escolares, que constituirãoamostras de comportamentos alheios à situa-ção de testagem, que podem levar à formula-ção de hipóteses subsidiárias ou à confronta-ção de informações de testes ou da interaçãoclínica com dados da vida cotidiana.

O elenco das hipóteses deve ser norteado edelimitado pelo objetivo do psicodiagnóstico.Isto significa que nem todas as hipóteses le-vantadas devem ser necessariamente testadas,sob pena de o processo se tornar inusitada-mente longo ou interminável. Por exemplo, seo objetivo do exame for o de uma classificaçãosimples na área intelectual, para o encaminha-mento ou não da criança para uma classe es-pecial, o plano de avaliação deve incluir ape-nas os testes que permitam cumprir tal objeti-vo. Então, somente uma hipótese de uma pseu-dolimitação intelectual, pela interferência defatores emocionais, justificaria a inclusão detécnicas projetivas no plano de avaliação, con-siderando que a confirmação ou não da hipó-tese poderia influir na decisão sobre a vida dosujeito. Não obstante, se a modificação no pla-no subentendesse um prolongamento substan-cial do período de testagem, recomendar-se-iaa revisão do contrato de trabalho. Entretanto,se fosse levantada alguma questão que não seassociasse ao objetivo proposto, no máximo opsicólogo deveria aconselhar uma complemen-tação do exame, estabelecendo, então, novoplano de avaliação e acarretando outro con-trato de trabalho.

Da mesma forma, se o objetivo do examefor o de diagnóstico diferencial entre transtor-no bipolar e transtorno de conduta, num ado-lescente, o plano de avaliação deve se restrin-gir a instrumentos na área da personalidade, anão ser que os contínuos fracassos escolaressuscitem questões referentes ao potencial in-telectual, cuja resposta possa se tornar impor-tante para a orientação subseqüente do caso.

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Em resumo, o plano de avaliação deve per-mitir obter respostas confiáveis para as ques-tões colocadas e, ao mesmo tempo, atenderaos objetivos propostos. Contudo, a testagemde uma hipótese, por vezes, pode ser realizadacom diferentes instrumentos. A opção por uminstrumento específico, além de eventualmen-te ficar delimitada pelo objetivo do exame, deveser feita tanto pela consideração das caracte-rísticas demográficas do sujeito (idade, sexo,nível sociocultural, etc.), como por suas condi-ções específicas (comprometimentos perma-nentes ou temporários de ordem sensorial,motora, cognitiva, etc.). Também devem serlevados em conta fatores situacionais, comohospitalização do paciente e uso de determi-nadas medicações, que podem ter reflexos noscorrelatos comportamentais, que têm efeitosnas respostas aos testes. Então, deve-se ava-liar a urgência dos resultados do exame ou apropriedade de adiá-lo, para evitar os efeitosdo estresse situacional e dos produtos quími-cos. Por outro lado, é importante previamentesaber se o português é o idioma pátrio do su-jeito, se é destro ou canhoto, se usa habitual-mente óculos ou aparelho auditivo, se tem al-guma dificuldade na discriminação de cores oucegueira para cores. Tais informações são es-senciais para determinar a opção entre técni-cas diversas, para a introdução de procedimen-tos subsidiários, para a recomendação do usode óculos ou do aparelho auditivo durante atestagem e para a determinação da validade eutilidade da introdução de certas técnicas noplano de avaliação.

Considerada a especificidade das técnicas,uma vez delineado o plano de avaliação, tem-se uma idéia de seu número aproximado e dotempo necessário para a testagem. Às vezes,são previstos instrumentos alternativos paratestar a mesma hipótese, seja por se desejaruma intervalidação dos resultados, seja porquetemos dúvida sobre uma determinada técnicaserá suficiente para responder, de forma satis-fatória, às questões propostas. De qualquermodo, nesse momento, pode-se prever, comrazoável segurança, o número de sessões ne-cessárias para completar o processo diagnós-tico. No caso de se pressupor uma diferença

apreciável no tempo de duração previsto nocontrato de trabalho, convém reexaminá-locom o paciente ou responsável, sempre dandouma margem de tolerância, se não temos ain-da uma estimativa segura do ritmo de desem-penho do sujeito.

Conseguindo selecionar as técnicas e os tes-tes adequados, deve-se distribuí-los, conformeas recomendações inerentes à natureza e aotipo de cada um, considerando, ainda, o tem-po de administração e as características espe-cíficas do paciente. Como se pode pressupor,o plano de avaliação envolve a organização deuma bateria de testes.

Bateria de testes

Bateria de testes é a expressão utilizada paradesignar um conjunto de testes ou de técni-cas, que podem variar entre dois e cinco oumais instrumentos, que são incluídos no pro-cesso psicodiagnóstico para fornecer subsí-dios que permitam confirmar ou infirmar ashipóteses iniciais, atendendo o objetivo da ava-liação.

A bateria de testes é utilizada por duas ra-zões principais. Primeiramente, considera-seque nenhum teste, isoladamente, pode propor-cionar uma avaliação abrangente da pessoacomo um todo. Em segundo lugar, o empregode uma série de testes envolve a tentativa deuma validação intertestes dos dados obtidos,a partir de cada instrumento em particular, di-minuindo, dessa maneira, a margem de erro efornecendo melhor fundamento para se che-gar a inferências clínicas (Exner, 1980).

Em relação às técnicas projetivas, como onúmero de pesquisas é muito pequeno, e atéescasso no caso de crianças (Cunha, Nunes &Silveira, 1990), é aconselhável corroborar a sig-nificação clínica de indicadores de um deter-minado teste através de indícios sugestivos emoutra técnica. Quanto a técnicas psicométri-cas, considerando o número relativamente pe-queno de testes com normas brasileiras, reco-menda-se buscar a intervalidação dos resulta-dos, especialmente nos casos em que as con-clusões deverão servir de base para ações de-

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cisórias na vida do sujeito. Contudo, emboratais recursos garantam maior segurança nasconclusões, devem ser reduzidos ao essencial,de modo a não alargar desnecessariamente oprocesso diagnóstico.

Há dois tipos principais de baterias de tes-tes: as baterias padronizadas para avaliaçõesespecíficas e as não-padronizadas, que são or-ganizadas a partir de um plano de avaliação.

No primeiro caso, a bateria de testes nãoresulta de uma seleção de instrumentos deacordo com as questões levantadas num casoindividual, pelo psicólogo responsável pelopsicodiagnóstico, a não ser quando se trata debateria padronizada especializada. A organi-zação da bateria padronizada é efetuada combase em pesquisas realizadas com determina-dos tipos de pacientes e recomendada paraexames bem específicos, como em certos tiposde avaliação neuropsicológica. É indicada emrazão de sua eficiência preditiva e para obteruma amostra suficientemente adequada defunções importantes para a natureza comple-xa da avaliação proposta (Lezak, 1995). Trata-se de uma bateria padronizada, com objetivosexplícitos, e deve ser administrada em sua ín-tegra. Contudo, o psicólogo tem a liberdadede acrescentar testes para se adequar à espe-cificidade do caso individual.

Assim, em princípio, é possível a organiza-ção de uma bateria de testes padronizados paracasos específicos. Mas isso demanda conside-rável pesquisa prévia. Nada tem que ver combaterias e testes, usadas de forma sistemáticae regularmente por alguns psicólogos, indepen-dentemente de aspectos específicos do caso in-dividual, que envolvem perda de tempo e acú-mulo de dados inúteis. Por exemplo, lembraría-mos que certos psicólogos usam, invariavelmen-te, alguma escala Wechsler, mesmo que não te-nha sido levantada qualquer hipótese referenteà área intelectual ou a déficit cognitivo.

Na prática clínica, é tradicional o uso dabateria não-padronizada. No plano de avalia-ção, são determinados a especificidade e onúmero de testes, que são programados se-qüencialmente, conforme sua natureza, tipo,propriedades psicométricas, tempo de admi-nistração, grau de dificuldade, qualidade ansi-

ogênica e características do paciente individual.Embora a bateria não-padronizada deva aten-der, então, a vários requisitos, ela é organiza-da de acordo com critérios mais flexíveis doque a bateria padronizada. O número de tes-tes, por exemplo, eventualmente pode sermodificado para mais ou para menos.

Geralmente, o número é modificado paramais, quando, por algum motivo, parece im-portante buscar uma intervalidação de resul-tados ou corroborar dados em função de umadeterminada hipótese. Pode ser modificadopara menos, quando, por exemplo, o objetivoda avaliação foi atingido antes de a totalidadedos instrumentos ser administrada. Suponha-mos que um dos objetivos do exame é o deavaliar o nível de funcionamento da personali-dade. Contudo, pela administração de umaescala Wechsler – selecionada para examinarcertos aspectos cognitivos –, surgem indíciosque permitem inferir um nível de funcionamen-to psicótico. Trata-se de um caso, conforme su-gere Exner (1980), em que se pode perfeitamen-te prescindir da administração do Rorschach, queconstava do plano de avaliação precisamentepara testar uma hipótese neste sentido.

Por outro lado, se durante a administraçãodo WAIS-R, mais especificamente no subtestede Informação, o paciente fracassa em váriositens, queixando-se de que, em outra época,saberia perfeitamente as respostas, o que sus-cita, após o subteste, o relato de vários episó-dios de sua vida, sugestivos de déficit de me-mória (não trazido como queixa inicial), pode-se levantar uma hipótese adicional que justifi-ca a administração de instrumentos para ava-liar disfunções da memória. Neste caso, pres-supõe-se que estariam sendo avaliadas as fun-ções cognitivas, o que autoriza o levantamen-to de outra hipótese abrangida pelo objetivodo psicodiagnóstico. Entretanto, se surgemindícios que levam a questões não pertinentesao objetivo do exame, não fica justificada ainclusão de uma técnica adicional na bateria.

Em razão da variedade de questões propos-tas inicialmente e adequadas aos objetivos dopsicodiagnóstico, freqüentemente a bateria detestes inclui testes psicométricos e técnicasprojetivas. Neste caso, sua seqüência e distri-

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buição relativa, na bateria de testes, devem sercuidadosamente consideradas, levando emconta o tempo necessário para a administra-ção, o grau de dificuldade das mesmas, suaqualidade ansiogênica e as características es-pecíficas do paciente.

Ocampo e colegas (1981) dão primordialimportância à questão da mobilização ou nãoda ansiedade na distribuição seqüencial dastécnicas. Dessa maneira, recomendam priori-dade para instrumentos não-ansiogênicos.

Pressupondo a presença de um certo graude ansiedade no paciente que inicia um pro-cesso de testagem, sugerem que as técnicasgráficas sejam utilizadas nesse momento. Sen-do breves e familiares para o paciente, concor-rem para baixar o nível de ansiedade, emborasejam ricas em conteúdos projetivos. Já, sob onosso ponto de vista, concordamos que a téc-nica gráfica pode ser bastante recomendável,como instrumento introdutório, mormente setratando de crianças. Contudo, não parece in-dicado preencher toda a sessão inicial com oque, para o paciente, não passa de simplesdesenhos. Por outro lado, sendo de execuçãobreve, após utilizar uma delas como introdu-tória, conviria reservar as demais (se constamda bateria de testes) para outras oportunida-des, por uma série de razões.

Em primeiro lugar, não é só importantebaixar a ansiedade inicial, mas ter recursos paralidar com uma situação ansiogênica, em qual-quer momento da testagem em que se apre-sente. Por exemplo, certas técnicas projetivaspodem ter um efeito ansiogênico e, além dis-so, não se pode prever exatamente seu tempode administração. Muitas vezes, ao completá-las, vemos que dispomos de 10 a 15 minutos,quando a introdução de uma técnica gráficaparece ser recomendável, pois estamos utili-zando o tempo de forma racional, permitindoque o sujeito se sinta mais confortável.

Em segundo lugar, há situações na testa-gem em que o paciente demonstra cansaço,seja pela dificuldade da tarefa proposta, sejapor seu baixo nível de tolerância à fatigabili-dade. Neste caso, a introdução de uma tarefasimples, breve e fácil pode constituir uma boaalternativa.

Em terceiro lugar, pelo caráter aparente-mente lúdico das técnicas que envolvem dese-nho, não recomendamos acumulá-las no iní-cio da testagem. Quando se trata de crianças,o procedimento não parece indicado, a não serque o plano de avaliação não pretenda ultra-passar um nível lúdico, incluindo, ainda, umahora de jogo diagnóstica e o Sceno-test. Casocontrário, há sempre o risco de, na sessão se-guinte, a criança desejar persistir no mesmotipo de atividade, porque, consciente ou in-conscientemente, o psicólogo a motivou nes-se sentido. Quando se trata de adultos, pode-se pressupor que cheguem com disposiçõesbem variadas. Alguns pretendem se submetera um exame científico, que fornecerá dadosimportantes para o profissional que os enca-minhou. Outros vêm com muita dificuldadepara participar do processo do psicodiagnósti-co, porque isto os coloca num status de pa-ciente, que podem considerar humilhante, en-quanto outros comparecem sem qualquer pres-suposição do que seja um psicodiagnóstico,simplesmente porque foram encaminhados,assim como iriam a um laboratório, porque istolhes foi indicado. Para todos esses casos e,possivelmente, para outros, é importante quepassemos a mensagem de que o psicodiag-nóstico é um processo sério, com bases cientí-ficas. Ora, sabemos que os desenhos do pa-ciente podem constituir um material rico eminformações psicodinâmicas, mas ele pode nãoter condições de pressupor isso. Então, corre-mos o risco de o nosso trabalho ser desvalori-zado simplesmente por uma distribuição ina-dequada das técnicas. Assim, no primeiro caso,podemos estar desmotivando o paciente quevem com uma expectativa de que vai se sub-meter a uma investigação científica; no segun-do caso, podemos reforçar as defesas do sujei-to que tem dificuldade de aceitar seu status depaciente, porque o estamos “submetendo” a“atividades de pré-escola”, ao passo que, noúltimo caso, estamos passando uma imagemfalsa do que é um psicodiagnóstico.

Acreditamos que, exatamente porque aspessoas temem tanto enfrentar seus aspectosdoentios, ainda existam atitudes preconceitu-osas em relação ao psicodiagnóstico, que “ma-

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gicamente” pode revelar “seus pontos fracos”e “possibilidades para o futuro”. Como profis-sionais, não podemos reforçar tais atitudes.Portanto, lidando com adultos, é importantedeixar bem claros os objetivos do psicodiag-nóstico. Além disso, acreditamos que a distri-buição seqüencial das técnicas bem adequadapossa constituir uma mensagem corroborató-ria de tais objetivos.

Na verdade, na maioria dos casos, existecerto grau de ansiedade inicial, que justifica aintrodução de uma técnica gráfica. Mas, de-pendendo da atitude do paciente adulto, pres-cindimos de tal introdução. No caso de o obje-tivo do exame permitir, damos prioridade aoBender, como técnica introdutória com adul-tos, de preferência ao desenho da figura hu-mana ou ao HTP. Depois, solicitamos que re-produza os desenhos sem os estímulos, dandoo intervalo de tempo previsto, com uma ob-servação de que é importante saber como estáa sua memória. De acordo com nossa experiên-cia, mesmo que tenha percebido o Bendercomo uma tarefa infantil (copiar desenhos,ora!), defronta-se, logo, com um desafio, queo leva a revisar a sua impressão inicial. É claroque este é um mero exemplo, e não um proce-dimento sistemático.

À medida que são apresentadas técnicasprojetivas, há maior mobilização da ansieda-de, porque os estímulos escassamente estru-turados não oferecem referencial para a pro-dução de respostas, e o paciente tem de assu-mir a responsabilidade pelo manejo da situa-ção. Conseqüentemente, se estão previstas téc-nicas projetivas e psicométricas, é convenientealterná-las, iniciando e completando a bateriacom material pouco ou não-ansiogênico.

Para aquilatar a qualidade ansiogênica deum instrumento, deve-se levar em conta nãosó a natureza dos estímulos, mas também ascaracterísticas do próprio sujeito. Pressupomosque as técnicas projetivas são mais ansiogêni-cas. Não obstante, eventualmente, o pacienteenfrenta bem um material pouco estruturado,porque diminui a consciência do que poderiaser uma resposta “certa” ou “errada”, ou, me-lhor, do que constituiria uma “resposta pato-lógica” ou não, mas fica muito ansioso ao se

dar conta de uma sucessão de fracassos, numteste de inteligência.

Contudo, as respostas dos pacientes sãovariadas. Por exemplo, a tomada de consciên-cia da própria problemática nem sempre é an-siogênica para o sujeito, como se observa par-ticularmente durante a administração doMMPI. Neste caso, o simples fato de se depa-rar com seus próprios sintomas e preocupa-ções, impressos no caderno do Inventário, queé utilizado por outros pacientes, é suficientepara que os mesmos não pareçam tão inusita-dos e ameaçadores.

Finalmente, uma questão que deve ser le-vada em conta, ao se distribuir testes e técni-cas numa bateria, programando-a para as ses-sões de testagem, é o tempo de administraçãode cada instrumento e a possibilidade ou nãode o mesmo ser interrompido para ser concluídonum outro dia. Evidentemente, o processo podeficar facilitado, se o psicólogo dispuser de salaextra para técnicas de auto-administração.

É importante notar que dificilmente se con-segue administrar qualquer das escalas Wechs-ler em uma única sessão. Entretanto, cada sub-teste deve ser apresentado em sua íntegra. Apossibilidade de se alternar subtestes da esca-la verbal e de execução não só permite mantero bom nível de interesse, como distribuir astarefas adequadamente e conforme o tempodisponível.

As técnicas projetivas, de um modo geral,não devem ser interrompidas. O TAT, quandoaplicado em sua íntegra, é uma exceção. Pode-se reservar uma sessão para cada série de 10lâminas. Não obstante, dificilmente é necessá-rio aplicar todas as 20 lâminas. Shentoub ecolegas (1990) propõem uma série de 16 lâmi-nas, a serem administradas numa única ses-são, mas que, com grande número de pacien-tes, provavelmente ultrapassará 50 minutos.Mais comumente, o psicólogo organiza a suaprópria série, conforme os conflitos que pre-tende investigar, planejando-a para uma ses-são, ou, no máximo, em duas pequenas séries,com a lâmina 16 no final, em vista de suas pro-priedades ansiogênicas.

A administração do Rorschach não pode serinterrompida, mas o inquérito pode ser trans-

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ferido para outro dia, exceto em casos de crian-ças ou de pacientes com muito comprometi-mento da memória. Neste último caso, sendoimpossível fazer o inquérito em seguida, façao inquérito de localização logo após a admi-nistração, realizando o inquérito em relação àsdemais categorias o mais breve possível. Compacientes comuns, o intervalo não deve ultra-passar uma semana.

No caso do MMPI, é previsto um mínimode 30 minutos e um máximo de 90 minutospara a administração. Mas, dificilmente os pa-cientes terminam em 60 minutos e, em média,geralmente 90 minutos. Não há sugestões nosmanuais sobre como manejar o problema, masnão só não é praticável reservar apenas umasessão para tal administração, como a maioriados pacientes a acham cansativa. Uma suges-tão é a de interromper a administração no item366 e deixar os restantes para a próxima ses-são. A vantagem é que, neste item, fica com-pletada a escala abreviada, e, se houver algumproblema para a continuação (hospitalização,viagem súbita, desistência), obtêm-se dadossobre todas as escalas, com exceção da K e da Si.Também, se o paciente não demonstra sinais defadiga, é bom lembrar que, sendo o MMPI auto-administrado, o sujeito pode completá-lo numasala extra, sem problemas de interrupção.

Dessa maneira, no momento em que seestabelece um plano de avaliação e se organi-za uma bateria de testes, convém revisar cer-tas particularidades da administração dos tes-tes, individualmente. No caso da Escala deMemória Wechsler-Revisada, por exemplo, ainterrupção, antes do restante de certos sub-testes, prejudica irremediavelmente o levanta-mento do Índice de Evocação Retardada. Taiscuidados são especialmente pertinentes quandose lida com pacientes com desempenho lento.

ADMINISTRAÇÃO DE TESTES E TÉCNICAS:PARTICULARIDADES DA SITUAÇÃO DAINTERAÇÃO COM O EXAMINANDO E DOMANEJO CLÍNICO

É sempre importante salientar que o foco datestagem deve ser o sujeito, e não os testes.

Mas, para que o psicólogo possa concentrar asua atenção no paciente, deve estar perfeita-mente seguro quanto à adequabilidade do ins-trumento para o caso em estudo, estar bemfamiliarizado com as instruções e o sistema deescore, saber manejar o material pertinente eter em mente os objetivos a que se propõe paraa administração de cada instrumento. Há, pois,algumas questões básicas que devem ser con-sideradas.

Em primeiro lugar, mesmo que o psicólogotenha estabelecido seu plano de avaliação comcuidado, previamente à sua administração, éimportante revisar certas particularidades re-ferentes aos instrumentos e às característicasdo paciente. Por exemplo, se está prevista umaescala ou teste de que há várias versões ou for-mas, é importante conferir se a opção feita é amais apropriada e, principalmente, se o mate-rial correto está disponível na hora exata. Poroutro lado, se o psicólogo pretende usar algu-ma escala Wechsler, por exemplo, é bom con-ferir se o paciente é canhoto para providenciaruma folha de protocolo extra e evitar que hajadificuldades na administração de Código.

Em segundo lugar, o psicólogo deve estarsuficientemente familiarizado com o instru-mento, jamais utilizando uma técnica em quenão esteja treinado o suficiente para estar se-guro no seu manejo. Não basta conhecer asinstruções, mas deve ter muita intimidade como material, com a maneira de conduzir o in-quérito, com as normas de atribuição de esco-res (se for o caso), com a forma adequada deregistro das respostas e com perguntas e difi-culdades que podem surgir durante a admi-nistração.

Em terceiro lugar, antes da entrada do pa-ciente, o psicólogo deve organizar todo o ma-terial que pretende utilizar, de maneira que fi-que acessível e o manejo seja facilitado. Issorequer, por exemplo, que as lâminas do Ror-schach ou do CAT estejam dispostas em ordemnumérica, sem que as manchas de tinta ou asfiguras fiquem à vista do paciente. O materialdas escalas Wechsler deve estar arranjado detal maneira que o psicólogo não precise maisde 15 segundos para manejá-lo entre um sub-teste e outro. Além disso, deve ter à mão o

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cronômetro e outros materiais necessários,como protocolo do teste (se for o caso), lápis,borracha, apontador, papel em branco, even-tualmente, lápis vermelho para Labirintos doWPPSI ou lápis coloridos em geral, se pretendeutilizar o HTP cromático. Sugere-se deixar todoo material de teste e folhas de protocolo numamesinha auxiliar, ao lado do examinador, en-quanto o material complementar pode ficarsobre a mesa de trabalho do psicólogo. Os lá-pis devem estar apontados, e, especialmenteem certas técnicas, em que o examinando deveescrever ou desenhar, deve haver mais de um àsua disposição. Por outro lado, se está progra-mada a realização do inquérito de Rorschach,é conveniente ter à mão um conjunto de cane-tas coloridas para delinear com mais precisãoa localização de cada resposta na folha ade-quada.

Em quarto lugar, é importante ter em men-te os objetivos para a inclusão de cada técnicada bateria. O psicólogo está utilizando seusinstrumentos para colher subsídios para testarhipóteses e deve tê-las bem presentes, de for-ma a estar atento a qualquer indício sugestivoe conseguir introduzir as perguntas adequa-das, no momento oportuno, se for o caso.

Após a consideração de todas essas ques-tões, o psicólogo não deve iniciar a adminis-tração de testes e técnicas sem o estabeleci-mento de um bom rapport. Um clima descon-traído de confiança e entendimento é neces-sário, não só para assegurar o desempenho deteste adequado do paciente, como para eliciarum material projetivo genuíno, de forma aobter amostras variadas de comportamentoque permitam chegar a um diagnóstico maispreciso.

A situação deve ser manejada de modo nãosó a diminuir a ansiedade natural do paciente,mas a levá-lo a uma atitude de cooperação.MacKinnon & Yudofsky (1988a), falando de fa-tores que podem influenciar a entrevista, cha-mam a atenção para situações especiais, queintroduzem dimensões diferenciadas no con-texto clínico, como no caso do paciente eminternação hospitalar. Ainda que não consti-tua a rotina usual, muitas vezes o psicólogo ésolicitado para a realização de um psicodiag-

nóstico em paciente em situação clínica espe-cial, principalmente internado em clínica psi-quiátrica.

Em tal situação, o rapport torna-se de fun-damental importância, não apenas porque osujeito já deve ter passado por várias entrevis-tas diagnósticas, como também porque o seuestado mental ou, mesmo, a impregnação pormedicamentos pode torná-lo menos motiva-do ou acessível para o tipo de exame que estásendo proposto. Então, exatamente por se tra-tar em geral de um processo diagnóstico mul-tidisciplinar, a entrevista inicial e o rapport, paraa administração de instrumentos, praticamen-te podem se superpor, porque não há necessi-dade de mobilizar tanto o paciente com per-guntas, cujas respostas já constam de regis-tros hospitalares, e porque os objetivos do exa-me já estão bem claros e definidos.

Naturalmente, a situação torna-se maiscomplexa se o psicodiagnóstico for realizadocom objetivos forenses e o paciente tiver co-nhecimento disso, demonstrando uma atitudeparanóide. Neste caso, o psicólogo deve con-tar com sua sensibilidade clínica para podermanejar a situação com propriedade, propor-cionando, na medida do possível, um reasse-guramento que possa atenuar os efeitos deseus temores e suspeições.

Para o estabelecimento de um clima ade-quado à testagem, o psicólogo deve ser capazde esclarecer as dúvidas do paciente, não sódurante o rapport, como, eventualmente, an-tes da introdução de algum instrumento espe-cífico. Muitas vezes, como também ocorre nasentrevistas anteriores, as questões que surgemtêm que ver com confidencialidade. O pacien-te deseja saber quem terá acesso aos resulta-dos. O psicólogo deve ser honesto com o pa-ciente e nunca prometer o que não poderácumprir. Contudo, parece importante a existên-cia de uma autorização tácita do sujeito (a nãoser quando carece de responsabilidade legal)quanto à identidade das pessoas ou institui-ções que podem ter acesso às informaçõesobtidas. Via de regra, porém, não há proble-mas nesse sentido. O paciente vem para umpsicodiagnóstico porque tem confiança emquem o encaminhou, não criando qualquer

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obstáculo para que os resultados sejam total-mente acessíveis a este profissional, mas, ge-ralmente, somente a ele.

Para a administração de testes, por vezes éimportante a determinação da posição do pa-ciente em relação à do examinando. Se há ins-truções específicas, estas devem ser seguidaspara que a situação de teste seja padronizada.Noutros casos, há apenas sugestões neste sen-tido. Em relação ao teste de Rorschach, porexemplo, há autores que consideram preferí-vel que o examinando fique ao lado do exami-nador, e não à sua frente, para diminuir a in-terferência de mensagens faciais, gestuais ouposturais deste (Exner, 1980).

Como regra geral, a administração de tes-tes deve ser realizada em ambiente com boailuminação e em que haja condições de priva-cidade, aeração e silêncio. Ainda que, paramuitos testes, não haja restrições quanto à ilu-minação artificial, no caso do material de testeenvolver cores, como no Rorschach, a ilumina-ção deve ser natural. Além disso, deve-se tercuidado para que o examinando se coloque emposição adequada em relação à mesa, sentadode forma que possa trabalhar confortavelmen-te, especialmente no caso de crianças e de téc-nicas que exijam maior precisão nos movimen-tos. Por outro lado, se o desempenho envolvecópia gráfica de figuras, ou desenho, é essen-cial que a superfície da mesa não tenha aspe-reza. Se tiver, aconselha-se colocar um pape-lão sob a folha de trabalho ou várias folhas depapel.

Geralmente, não há qualquer problemaquanto à manutenção de uma situação padro-nizada quando a administração de testes é rea-lizada no consultório do psicólogo. Outro é ocaso quando a testagem deve ser levada a efei-to em outro ambiente, como num hospital ounuma escola. Então, torna-se mais difícil man-ter condições ideais, sobretudo evitar ruídos einterrupções. Convém que, antecipadamente,o psicólogo tome as providências cabíveis paraevitar, ao máximo, as interferências.

A situação padronizada na aplicação de umteste garante, em parte, a fidedignidade deseus resultados. Portanto, as instruções devemser seguidas cuidadosamente. Muitas vezes,

recomenda-se memorizá-las, e, em alguns ca-sos, é permitido lê-las, ou, ainda, mantê-las aoalcance dos olhos para evitar que o examina-dor omita ou substitua inadvertidamente al-guma palavra ou expressão. Observa-se que,em muitos casos, há uma tendência para opsicólogo dar as instruções, com uma formu-lação que parece “mais fácil” para o examinan-do, sobretudo, quando se trata de crianças,mas isto geralmente não é permitido. Tambémo examinador deve estar atento para a possi-bilidade ou não de repetir instruções, bemcomo para a forma de responder a perguntasadicionais.

Dadas as instruções, geralmente não é pre-vista uma ajuda extra (a não ser quando expli-citamente permitida), exceto um reassegura-mento por meio de estímulos neutros. É preci-so um máximo de cautela para que tais “estí-mulos neutros” não se transformem em indí-cios que podem ser percebidos como suges-tões sobre a maneira de agir. Isto é observável,especialmente, na aplicação de alguns testes,em que, inadvertidamente, o psicólogo podereforçar a produção de determinadas catego-rias de respostas. A propósito, um procedimen-to preventivo em relação a tal comportamentoé a gravação de algumas administrações du-rante o período de treinamento. Mas o psicó-logo deve estar atento para suas intervençõesinvoluntárias, já que nem todos os “vícios” sãoadquiridos durante o treinamento e, inclusive,podem ocorrer seletivamente com determina-dos tipos de pacientes pelo fenômeno contra-transferencial.

A contratransferência pode acontecer nasituação de testagem, como na terapia, por-que a administração de testes pressupõe umainteração clínica e, conseqüentemente, podesuscitar respostas inconscientes do psicólogoa aspectos do comportamento do paciente.Assim, se o psicólogo percebe em si certas rea-ções afetivas, como intolerância, enfado, an-siedade, raiva, etc., frente a comportamentosdo examinando, deve procurar que não inter-firam, ainda que de forma sutil, no contextoda testagem, mas, antes, deve utilizá-las comofonte de informação para o melhor entendi-mento dinâmico do caso. Naturalmente, o psi-

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cólogo terá mais facilidade em se conscienti-zar de suas reações contratransferenciais se ti-ver se submetido à psicoterapia. No entanto, épreciso diferenciar reações contratransferen-ciais de certas respostas indevidas de psicólo-gos inexperientes, por dificuldades comuns nomanejo de certos testes, especialmente duran-te a condução do inquérito, muitas vezes rela-cionadas com as expectativas que têm de res-postas por parte do paciente.

É preciso que o psicólogo esteja bem côns-cio dos aspectos estruturais e dinâmicos da si-tuação de testagem para que possa fazer dopaciente o foco principal de sua atenção. Asrespostas deste devem estar anotadas em suaíntegra, isto é, não apenas especificamente asrespostas ao teste, mas também todas as suasreações, verbais ou não. Isto vale dizer que to-dos os indícios comportamentais explícitos ouimplícitos devem ser cuidadosamente observa-dos e registrados durante a administração detestes e técnicas.

É um hábito comum, quando o psicólogoestá familiarizado com o sistema de escores,num instrumento psicométrico, simplesmenteatribuir o escore correspondente e deixar deregistrar a resposta dada. Este é um procedi-mento perfeitamente correto quando a respos-ta é única ou possível de ser categorizadasimplesmente como “sim” ou “não”. Contu-do, sempre que a resposta envolve uma for-mulação verbal, como nos subtestes de Com-preensão, Semelhanças e Vocabulário de umaescala Wechsler, deve ser anotada literalmen-te, porque: a) é difícil ter em mente todos osexemplos do manual, para atribuir um escorecorreto; b) nem todas as respostas constamentre os exemplos ilustrativos, e temos de exa-miná-las à luz de critérios gerais para a atribui-ção do escore: c) muitos indícios qualitativosficam irremediavelmente perdidos, se não sãoregistrados. Dessa maneira, a falta de transcri-ção literal pode acarretar tanto uma falha naatribuição de escores, quanto uma omissão dedados úteis. Berg, já em 1983, por exemplo,chamou a atenção de que, freqüentemente,transtornos de pensamentos são observáveisem testes projetivos, e não em testes estrutu-rados, por uma prática tradicional entre psicó-

logos de registrar textualmente as respostasa técnicas projetivas e de reduzir a um míni-mo as anotações referentes a testes de inte-ligência.

A recomendação do registro literal das res-postas não significa prescindir do conhecimen-to do sistema de escores. Este é essencial paraque, após a obtenção da resposta, o psicólogosaiba quando e como formular perguntas adi-cionais para explorar toda a potencialidade deresposta do paciente. Tal inquérito deve reve-lar o interesse do examinador em exploraraquele potencial e não dar a impressão de quea resposta foi “errada”. Da mesma forma, re-comenda-se a anotação de ensaios e erros oude outras particularidades no desempenho deuma tarefa, que podem vir a constituir impor-tantes indícios sobre os aspectos cognitivos eemocionais do paciente. Igualmente, devem serregistradas as hesitações, as observações es-pontâneas, as reações de raiva, fadiga ou an-siedade, bem como quaisquer outras que, deuma forma ou de outra, constituem respostasà situação de teste.

O fato de se recomendar o uso de pergun-tas adicionais ou a realização de inquérito, sem-pre que parecer oportuno e as normas o per-mitirem, não significa que o psicólogo se apres-se em fazê-lo. Primeiramente, é importanteutilizar estímulos neutros, como “Que mais?”,“E daí?”, ou “Pode explicar melhor?”, paraobter o máximo de material espontâneo. Sódepois pode passar a outras perguntas, sem-pre que possível usando como referencial asverbalizações do sujeito, de preferência suaspróprias palavras. É importante ter isso emmente, porque pode ocorrer, especialmentecom profissionais novatos, que, no afã de con-seguir dados, o paciente seja interrompido comperguntas, que, às vezes, cortam o fluxo de seupensamento, induzem determinadas respostas,bloqueiam a produtividade e a fantasia e des-pertam ansiedade, prejudicando os resultados.

Existe uma situação padronizada de testa-gem, mas sempre é importante que o psicólo-go lide com ela não meramente como um tes-tólogo, mas de uma maneira clínica, atento aum sujeito que reage de forma personalizadae única ao aqui e agora da interação.

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LEVANTAMENTO, ANÁLISE,INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃODOS DADOS

Independentemente das informações dos tes-tes, nesse momento, o psicólogo já possui umacervo de observações que constitui uma amos-tra do comportamento do paciente durante asvárias sessões em que transcorreu o processodiagnóstico, desde o contato inicial até a últi-ma técnica utilizada. Em resumo, é capaz dedescrever o paciente. Uma revisão das obser-vações feitas é indicada para melhor entendi-mento da maneira como respondeu à situaçãodo psicodiagnóstico. Dependendo dos objeti-vos do exame, um sumário de tais observaçõesjá constituirá uma parte introdutória do laudo.

Convém, também, fazer um exame da his-tória clínica, cujas informações poderão con-tribuir para atribuir significação a alguns da-dos e interpretar conteúdos do material da tes-tagem. Dessa maneira, o relato sistematizadoda história clínica não só constituirá uma ou-tra etapa vencida para certos tipos de laudo,como também ajudará o psicólogo a se prepa-rar para entender os dados colhidos. Isso nãosignifica que o psicólogo vá procurar nos tes-tes a confirmação de dados situacionais ou his-tóricos, mas que se capacite para atribuir sig-nificação às respostas e aos escores que ob-tém, que podem diferir, muitas vezes, confor-me variáveis demográficas e características dofuncionamento do examinando.

É necessário recapitular, então, as hipóte-ses levantadas inicialmente e no decorrer doprocesso, tendo em mente os objetivos do exa-me. As hipóteses levantadas servirão de crité-rios para a análise e seleção dos dados úteis,enquanto os objetivos fornecerão um enqua-dramento para a sua integração. Desta manei-ra, as perguntas indicarão que respostas de-vem ser buscadas, confirmando ou não as hi-póteses. A presença de mais ou menos indí-cios e a sua compatibilidade e intervalidaçãopermitirão hierarquizar a importância dos da-dos obtidos. O objetivo do exame norteará aorganização de tais informações.

Nos testes quantitativos, se ainda não o fez,atribua escores para as respostas. No caso das

escalas Wechsler, o escore bruto deve ser trans-formado em ponderado. Em algumas dessasescalas, se administrou mais ou menos subtes-tes que os previstos para cálculo do QI, lem-bre-se de efetuar a transformação proporcio-nal da contagem ponderada antes de determi-ná-lo. Além disso, deve verificar o percentilcorrespondente, o percentual da população emque se localiza o QI, calcular as médias dos es-cores em cada escala e considerar o desviopadrão da média do sujeito e da populaçãoantes de chegar a um entendimento do caso.

A contagem, em alguns outros testes, de-verá ser transformada em percentis, em quar-tis ou em escores T. Tais dados devem ser ana-lisados e entendidos. Resultados de testes psi-cométricos são medidas estatísticas que, indi-vidualmente, podem subentender sistemas di-versos, de maneira que é importante o psicó-logo se familiarizar com sua significação e equi-valência. Se tiver alguma dificuldade práticanesse sentido, a consulta ao item sobre enten-dimento dos dados, no Capítulo 14, sobre Ava-liação psicométrica, nesta edição, é recomen-dada. Outros testes, que medem funções es-pecíficas, em geral usam os mesmos sistemasque os testes de inteligência, de maneira que aleitura desse texto ajudará a clarear certas dú-vidas.

Dependendo dos objetivos do exame e dashipóteses levantadas, provavelmente, a essaaltura, algumas respostas podem ter sido en-contradas.

Em alguns outros testes, como o Bender,por exemplo, que, conforme o enfoque adota-do, também envolve contagem, é necessáriointerpretar a significação do escore, eventual-mente comparando-o com a média e o desviopadrão para a idade do paciente.

Mesmo que o teste seja dito projetivo, mui-tas vezes é necessária a consideração de nú-meros brutos de percentuais ou da relaçãonumérica entre escores de categorias, como noRorschach.

Damos ênfase aos dados quantitativos, umavez que, havendo mais pesquisas a respeito,oferecem uma base probabilística maior deacerto do que as informações oriundas de umaanálise qualitativa (Exner, 1983). No entanto,

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quando se pretende ter uma compreensão di-nâmica sobre o paciente, muitas vezes, parafundamentar a formulação diagnóstica ou parachegar a uma orientação sobre o caso, os da-dos qualitativos assumem grande importância.Por outro lado, se os dados qualitativos per-dem em objetividade para os dados quantita-tivos, podem ser validados, no caso individual,com a corroboração de alguns indícios por ou-tros, e, por sua vez, a integração pode ficar con-substanciada por um embasamento teórico, queencontre denominadores comuns na história clí-nica e no comportamento sintomático atual.

Não entraremos em maiores detalhes sobrea análise e interpretação de dados qualitativos,porque cada técnica tem o seu manejo específi-co, que é tratado na seção pertinente deste livro.

Cabe apenas salientar a necessidade de or-ganizar os dados oriundos das diferentes téc-nicas, buscando um entendimento de coinci-dências e discordâncias, hierarquizando indí-cios e identificando os dados mais significati-vos, que, contrastados com as informaçõessobre o paciente, são integrados para confir-mar ou infirmar as hipóteses iniciais. A seleçãodas informações que fundamentam as conclu-sões finais deve atender aos objetivos propos-tos para o psicodiagnóstico e pressupõe umdeterminado nível de inferência clínica.

Níveis de inferência clínica

Lembramos que psicodiagnóstico é um proces-so científico, que utiliza técnicas e testes psi-cológicos (input) e, através de uma série de pas-sos, termina com a comunicação de resultados(output) após a integração e seleção dos dados.

Vimos que, após a admissão de uma quan-tidade de dados, estes devem ser trabalhados,conforme os objetivos predeterminados, e in-tegrados em função do nível de inferência quese pretende atingir. Inferência é, pois, “o pro-cesso que vincula o input ao output” (Pope &Scott, 1967, p.34).

A inferência pode ficar num nível simples,quando se baseia apenas num levantamentoquantitativo, ou pode ser feita em diferentesgraus de generalização, como no caso de uma

classificação diagnóstica, podendo chegar a in-terpretações mais inclusivas, que pressupõem omarco referencial de uma teoria de personalidade.

A comunicação dos resultados (output) nãoé mais que a formalização oral e/ou escrita deconclusões a que o psicólogo chegou, estabe-lecidas em função de um determinado nível deinferência. Todavia, a comunicação não abran-ge todos os dados e, quase sempre, não com-preende todas as conclusões. Há uma seleçãode informações que, por um lado, é pertinenteaos motivos do encaminhamento e se mantémnum determinado nível de inferência, previstopelo objetivo do exame, e, por outro lado, seestrutura conforme a natureza do serviço aoqual será encaminhado o laudo ou de acordocom o tipo de profissional que o solicitou.

DIAGNÓSTICO E PROGNÓSTICO

Nem sempre o psicólogo precisa chegar, obri-gatoriamente, ao nível mais elevado de infe-rência para obter uma hipótese diagnóstica ouo diagnóstico mais provável. Principalmente emcasos mais graves, freqüentemente apenas oquadro sintomático e a história clínica contêminformações suficientes para que o profissio-nal possa enquadrar o transtorno numa cate-goria nosológica. Esta modalidade de proces-so diagnóstico seguiria mais um modelo médi-co do que psicológico, o que não significa quesomente o psiquiatra tenha competência paratal. Entretanto, mesmo quando parece nãohaver dúvidas quanto à classificação nosológi-ca do paciente, o psicólogo muitas vezes é con-vocado para identificar déficits ou funções pre-servadas, enfim, para coletar dados mais subs-tanciais como base para um prognóstico. Nou-tros casos, como há alternativas diagnósticaspossíveis, o psicólogo pode assumir a respon-sabilidade de um diagnóstico diferencial, quese efetua através de um modelo psicológico,isto é, pelo psicodiagnóstico.

Para chegar à inferência clínica, chamadade diagnóstico, o psicólogo deve examinar osdados de que dispõe (que englobam informa-ções sobre o quadro sintomático, dados da his-tória clínica, as observações do comportamen-

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to do paciente durante o processo psicodiag-nóstico e os resultados da testagem), em fun-ção de determinados critérios (critérios diag-nósticos), podendo considerar, assim, váriasalternativas diagnósticas. Se certos critérios es-pecíficos são atendidos, pode classificar o casonuma categoria nosológica. Para tal fim, deveutilizar uma das classificações oficiais conheci-das, como o DSM-IV. Com base em tal classifica-ção e em aspectos específicos da história clínica,poderá fazer predições sobre o curso prováveldo transtorno (prognóstico) e planejar a inter-venção terapêutica adequada. Muitos testes uti-lizados no psicodiagnóstico também podem for-necer indícios muito úteis para o prognóstico.

Em alguns casos ou transtornos, há umgrande número de sinais e sintomas que po-dem se apresentar em diferentes categoriasdiagnósticas e que se organizam numa ordemhierárquica. O profissional deve fazer um diag-nóstico diferencial e, para chegar a ele, devetomar uma série de decisões, pelo exame devárias alternativas, que geralmente pressupõemum modelo estatístico e se baseiam, freqüen-temente, em estudos epidemiológicos. São uti-lizadas considerações probabilísticas para che-gar a um diagnóstico diferencial e que tam-bém servem de fundamento para o prognósti-co. Como num diagnóstico médico, há umasérie de passos e questões levantadas, que per-mitem a eliminação de determinadas alterna-tivas e a seleção de outras, chegando, afinal, àhipótese mais provável, à qual podem ser acres-centados diagnósticos alternativos.

Às vezes, conforme o caso e as razões doencaminhamento, o psicólogo deve realizaruma avaliação mais compreensiva, baseada eminformações adicionais, pressupondo-se queatinja o nível mais elevado de inferência, for-necendo um embasamento psicodinâmico, quepode facilitar a opção por um tipo de terapia ea condução de um processo terapêutico. Issonão significa uma desconsideração pela classi-ficação diagnóstica do caso, mas um passosubseqüente, que leva a uma formulação in-terpretativa mais abrangente e inclusiva, queé integrada conforme pressupostos teóricosbásicos. Para MacKinnon e Yudofsky (1988), “oobjetivo da formulação psicodinâmica é facili-

tar o entendimento do médico da estrutura dapersonalidade e conflitos psicológicos do pa-ciente e desenvolver um plano de tratamentoefetivo” (p.217). Como se observa, para taisautores, a avaliação compreensiva utiliza pres-supostos psicanalíticos. Mas são possíveis ou-tras abordagens, inclusive da psicologia com-portamental ou cognitiva, por exemplo. O im-portante é que tal tipo de avaliação esteja fir-memente ancorado numa teoria de personali-dade, sendo mais freqüentemente utilizadospressupostos psicanalíticos.

Para chegar à avaliação compreensiva, opsicólogo deve ter um entendimento da natu-reza da interação clínica, não só na entrevista,mas durante a realização da série de tarefas,implícitas numa bateria de testes, que consti-tuem um campo fértil para observar vários ti-pos de comportamento e, especialmente, amaneira como o paciente “formula ou distor-ce a situação (...) a fim de adaptá-la às suasfantasias, atitudes e expectativas profunda-mente arraigadas (habitualmente inconscien-tes) sobre as relações interpessoais” (APA,1980, p.11).

Muitas informações úteis, no mesmo senti-do, também são fornecidas pelos testes proje-tivos. Não obstante, testes mais estruturadospodem proporcionar dados, tanto com baseno conteúdo das respostas quanto pela rela-ção transferencial que eventualmente se esta-belece e que pode ser consubstanciada poraspectos da dinâmica familiar. A propósito,Baker (1970) dá um exemplo de uma reaçãoagressiva do paciente, em relação ao examina-dor, durante a administração do subteste deCompreensão do WAIS, em razão da próprianatureza da prova, “fortemente carregada deitens pertinentes a valores e comportamentosocial” (p.365). Assim, principalmente se umareação transferencial for corroborada por ou-tros dados da testagem (ou pelo uso pós-diag-nóstico dos testes, sugerido por essa autora) epor informações da história clínica, há condi-ções de prever o comportamento futuro dopaciente durante o processo psicoterápico.Assim, tanto as observações sobre o compor-tamento do sujeito e suas respostas aos testescomo as reações contratransferenciais do exa-

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minador fornecem indícios que podem permi-tir que se chegue a elaborar “uma formulaçãodiagnóstica psicodinâmica, que é uma explica-ção da psicopatologia do paciente, em termosde seus conflitos inconscientes e mecanismosde defesa e das origens de seu comportamen-to atual na experiência de vida precoce” (APA,1980, p.11).

Embora forneça informações úteis, emmuitos casos, a formulação psicodinâmica en-volve uma tarefa exaustiva e um registro bas-tante extensivo e é menos freqüentemente so-licitada do que exames com outros objetivos.Mais comumente, é realizada de forma maisrestrita, limitando-se ao exame de certos as-pectos psicodinâmicos, que podem facilitar edar embasamento para certas decisões sobreabordagens terapêuticas, inclusive não-psico-terápicas, identificando recursos do ego e,eventualmente, sistemas de apoio no ambien-te sociofamiliar para que o paciente possa en-frentar certas situações. Por exemplo, num doscasos ilustrativos deste livro, é apresentado oproblema de uma paciente que foi encaminha-da para a avaliação de suas condições psicoló-gicas para se submeter a uma intervenção ci-rúrgica e para prognóstico sobre a sua possí-vel resposta à mesma. O laudo incluiu uma clas-sificação diagnóstica e uma formulação dinâ-mica para permitir uma compreensão dos mo-tivos que justificaram o encaminhamento. Po-rém, se o encaminhamento tivesse que ver coma consideração de uma terapia familiar, porexemplo, as informações seriam de naturezadiversa, focalizando a paciente em interação comos membros de sua família, como unidade sociale dentro de um contexto social mais amplo.

Classificação diagnóstica

“Fica facultado ao psicólogo o uso do CódigoInternacional de Doenças – CID, ou outros có-digos de diagnóstico, científica e socialmentereconhecidos, como fonte de enquadramentode diagnóstico.”

(Parágrafo único, do Art. 1º, da Resolução CFPnº 015/96, de 13 de dezembro de 1996.)

Como vimos, para verificar se um caso pre-enche os critérios de uma categoria diagnósti-

ca, o psicólogo pode e, conseqüentemente,deve utilizar algum sistema oficial de classifi-cação de transtornos mentais.

Atualmente, os dois sistemas de classifica-ção mais difundidos e usados são a CID-10(OMS, 1993) e o DSM-IV (APA, 1995). Conside-rando que foram criadas facilidades para “umintercâmbio mutuamente produtivo” entre aOrganização Mundial da Saúde e a Associa-ção Psiquiátrica Americana, houve um incre-mento da compatibilidade entre os dois sis-temas (APA, 1995, p.xiii). Desse modo, va-mos nos restringir a comentários sobre oDSM-IV, uma vez que as classificações ameri-canas têm suscitado um número extraordi-nário de pesquisas, com amplas repercussõesna área do psicodiagnóstico, inclusive com acriação de instrumentos que visam a facilitaro processo diagnóstico.

O DSM-IV utiliza um modelo categórico,classificando os transtornos mentais “em tiposcom base nos conjuntos de critérios que osdefinem” (p.xxi), claramente inspirado nummodelo médico. Tais critérios são apresenta-dos “como diretrizes para a confecção de diag-nósticos, uma vez que comprovadamente o usodesses melhora o consenso entre clínicos e in-vestigadores” (p.xxv).

A abordagem multiaxial do DSM-IV incluidiversas áreas, dimensões, mais adequada-mente denominadas eixos, nos quais cada pa-ciente pode ser avaliado, de vez que se refe-rem “a um diferente domínio de informa-ções” (p.27).

Segundo o DSM-IV, o Eixo I inclui todos ostranstornos mentais – exceto os Transtornos dePersonalidade e Retardamento Mental, queconstituem o Eixo II – e mais “outras condi-ções que podem ser foco de atenção clínica”(p.28), enquanto, no Eixo III, são classificadascondições médicas gerais, “que podem estarrelacionadas aos transtornos mentais de diver-sas maneiras” (p.29).

Os Eixos I, II e III permitem o registro de diag-nósticos múltiplos, em casos de co-morbidade,enquanto, no Eixo IV, são considerados proble-mas psicossociais, e, no V, o nível de funciona-mento. Esse tipo de classificação, portanto, “fa-cilita a avaliação abrangente e sistemática” (p.27).

PSICODIAGNÓSTICO – V 121

A classificação diagnóstica, conforme essesistema, além de útil, fidedigna e muito viávelpara a comunicação entre profissionais, leva opsicólogo ou o psiquiatra a realizar a sua cole-ta de dados de forma sistemática e organiza-da, sendo também adequada para a descriçãodos sujeitos em trabalhos de pesquisa. Destaforma, consideramos que todo psicólogo queinclui o psicodiagnóstico entre suas atividadesespecíficas deve não só se familiarizar com essesistema de classificação, mas utilizá-lo em seuslaudos, sempre que for pertinente.

COMUNICAÇÃO DOS RESULTADOS

O psicodiagnóstico, quanto à sua estrutura,possui algumas unidades fundamentais: o su-jeito ou examinando, o psicólogo, os testes ouas técnicas psicológicas, o informe psicodiag-nóstico e o receptor. Em conseqüência, pode-se afirmar que o informe ou a comunicaçãodos resultados constitui uma unidade essen-cial do psicodiagnóstico e, portanto, deve serprevisto no contrato de trabalho com o sujeitoe/ou responsável.

Na operacionalização do processo, a comu-nicação dos resultados logicamente deve serealizar como último passo, seguida apenaspelas recomendações pertinentes e pelo encer-ramento. É da responsabilidade do psicólogodefinir seu tipo, conteúdo e forma.

O tipo de comunicação dos resultados oudo informe é definido basicamente pelos obje-tivos do exame. Os laudos, por exemplo, ge-ralmente respondem a questões como “o que”,“quanto”, “como”, “por que”, “para que” e“quando”, enquanto os pareceres se restrin-gem à análise de problemas específicos colo-cados por determinado profissional que já dis-põe de várias informações sobre o sujeito. En-tão, o tipo de informe depende do objetivo ouobjetivos do exame, que podem ser, por exem-plo, de classificação simples, de entendimentodinâmico, de diagnóstico diferencial, etc. Quasesempre, os laudos constituem o resultado deum processo psicodiagnóstico com vários ob-jetivos, enquanto um parecer pressupõe umúnico objetivo. Em conseqüência, os laudos

costumam ser mais extensos, abrangentes eminuciosos, ao passo que os pareceres são maisfocalizados, resumidos e curtos.

Dependendo dos objetivos, podem ser ne-cessários vários tipos de comunicação, como,por exemplo, entrevista de devolução com ospais e com o sujeito, laudo encaminhado aopediatra, laudo encaminhado à escola especiale parecer para o serviço de orientação de umaescola, que fez a sugestão inicial do exame.

O conteúdo da comunicação é definido tan-to pelas questões específicas, formuladas noinício do processo, como pela identidade doreceptor. Existem questões cuja resposta é dointeresse de um receptor, mas não de outro.Tomemos um exemplo simples de um meninoque está tendo reações agressivas contra pes-soas do sexo feminino, que é encaminhadopara exame pela pré-escola. Ao psicoterapeu-ta, ao qual será encaminhado, interessa por quee para que existe o sintoma, isto é, importa oentendimento dinâmico do caso. À escola im-porta mais saber como se apresenta, em quecircunstâncias, e como manejar o problema.Portanto, o conteúdo pode variar quanto ànatureza dos dados, conforme as questões aque responde.

Eventualmente, as mesmas questões podemser respondidas através de comunicações dife-rentes, mas o conteúdo de cada uma pode serdiverso, em especificidade, profundidade e ex-tensão, seja o receptor, por exemplo, um psi-quiatra, um professor ou um pai de nível so-cioeconômico baixo. Então, suponhamos queo psicólogo tenha realizado uma avaliação in-telectual. Para o psiquiatra, pode-se informarqual o QIV, QIE e QIT, ao mesmo tempo emque é possível fazer uma análise das funçõescognitivas. Para o professor, interessará maister uma idéia em que percentual da populaçãoestá enquadrado o seu aluno, em termos inte-lectuais, e em que áreas se concentram mais seuspotenciais e seus pontos fracos. Já para o pai denível socioeconômico baixo, provavelmente émais importante saber qual pode ser a sua ex-pectativa em termos do nível de instrução queseu filho pode atingir com relativa facilidade.

Aqui, leva-se em conta não só o nível deinferência que os resultados podem atingir,

122 JUREMA ALCIDES CUNHA

mas, também, o cumprimento de certas nor-mas éticas. Por exemplo, certas informaçõespodem ser passadas a um receptor, cuja pro-fissão pressuponha um certo código de ética,mas, talvez, não a outro. O sigilo profissionalcompromete o psicólogo a não fornecer certasinformações, ou a prestá-las somente a quemde direito e sempre contemplando o benefíciodo paciente. Por exemplo, a suspeita da pre-sença de traços psicóticos numa criança deveser obrigatoriamente comunicada ao profissio-nal responsável pelo tratamento neurológico,já que a criança pode responder de forma di-ferente a certos medicamentos e contamoscom a ética profissional do neurologista. Poroutro lado, o informe sobre a mesma criança,para a escola, pode perfeitamente dispensar aclassificação nosológica, cujo conhecimentopoderia eventualmente levar a uma discrimi-nação do sujeito. Para a escola, interessa maissaber que existe um problema, como se mani-festa, qual a melhor maneira de lidar com ele eque está havendo um atendimento diferencia-do para o mesmo. Já no caso de a escola con-tar com uma psicóloga, esta poderá receberum laudo mais extenso e profundo, do qualsaberá selecionar as informações que sabe quedeve prestar à professora. Entretanto, se sabe-mos que a escola não dispõe de local onde oinforme possa ser mantido sigilosamente, épreferível restringir a comunicação a um con-tato telefônico ou pessoal.

Um outro exemplo seria de uma história decaso, que incluísse uma tentativa de estupropor um membro da família, guardada sigilosa-mente pelos pais de uma menina. Este é umtipo de dado que, preferencialmente, deve sercomunicado, de forma pessoal, com autoriza-ção do responsável, somente ao profissionalque se encarregará da psicoterapia do sujeito,mas não ao técnico que, por exemplo, vai seresponsabilizar por um programa foniátrico.

A forma é definida pela identidade e quali-dade do receptor. A terminologia e a lingua-gem, de modo geral, devem ser adequadas àsdo receptor. Dessa maneira, o informe preser-va a comunicação necessária, se estiver de acor-do com a profissão, o nível sociocultural e in-telectual e com as condições emocionais do re-

ceptor. Conseqüentemente, o laudo a ser en-caminhado a outro psicólogo vai diferir bas-tante, na forma, do encaminhado a um orto-pedista e será muito diferente da devoluçãorealizada com pais ansiosos e de nível socio-cultural inferior.

Para que a comunicação dos resultados sejacientificamente adequada, é necessário que aseleção, organização e integração dos dadosse realize, chegando a inferências sobre o caso,tendo como pontos de referência as pergun-tas iniciais e os objetivos do exame. Tais da-dos, que emergem da testagem numa termi-nologia científica, precisam, então, ser deco-dificados, conforme a identidade e a qualida-de do receptor, sendo comunicados de formaoral ou escrita.

O que isto representa para o psicólogo? Emtermos de desempenho profissional, quer di-zer que realizou uma tarefa que lhe é específi-ca e dela presta contas. Não obstante, há mui-tas variáveis em jogo, em parte tendo que vercom a sua identidade como psicólogo clínico.Implícita ou explicitamente, o psicólogo per-cebe o informe psicodiagnóstico como um ates-tado que apresenta de sua competência pro-fissional. Sem dúvida, variáveis associadas comformação, experiência e com sua própria per-sonalidade estão em jogo. Igualmente, devem-se levar em conta variáveis que têm relação coma competência do receptor e com suas expec-tativas, e que também influem na situação, in-terferindo, bloqueando, acelerando ou croni-ficando o processo psicodiagnóstico e, conse-qüentemente, dificultando ou facilitando acomunicação. Assim como nas terapias, às ve-zes os processos psicodiagnósticos parecemintermináveis, nem tanto por falta de dados,mas porque o psicólogo não sabe o que fazercom eles.

A ciência ajuda o psicólogo a operacionali-zar o seu trabalho através dos passos de umprocesso de psicodiagnóstico. Por isso, sãoimportantes sua formação, sua preparação téc-nica, sua familiaridade com recursos e manejodas técnicas para um bom exame psicológico.Mas o ponto-chave, o elemento crucial, no pro-cesso é o próprio psicólogo. O sucesso de seutrabalho ultrapassa a questão da competência

PSICODIAGNÓSTICO – V 123

profissional e, portanto, recomendamos psi-coterapia para quem trabalha com psicodiag-nóstico. Isso se justifica por várias razões, mas,especialmente em entrevistas de devolução, opsicólogo deve ter condições para lidar comproblemas às vezes muito sérios, devendo,eventualmente, encaminhar decisões cruciaispara a vida de outrem, numa situação poten-cialmente ansiogênica, dentro de uma relaçãorestrita no tempo. Deste modo, precisa estarmuito consciente do que está ocorrendo, sermuito ágil em suas percepções, muito flexívelno manejo da relação, muito seguro de suasconclusões e de si mesmo para manter a suasensibilidade clínica e ser hábil em sua comu-nicação.

Ao falar em comunicação, parece importan-te examinar a questão do receptor em poten-cial. Em princípio, quem solicita um psicodiag-nóstico deve ter assegurado o seu direito àcomunicação dos resultados, o que deve cons-tar já no contrato de trabalho. Teoricamente, eregulamentarmente, o direito à devolução éobrigatório, e, na prática, é exatamente essedireito que facilita o rapport e a confiança noprofissional que escolheu.

Ainda que, tradicionalmente, houvesse umpressuposto de que os resultados de um psi-codiagnóstico não seriam de interesse do clien-te, em vista de sua complexidade científica,hoje em dia, na prática, acredita-se que o usuá-rio tenha direito a um feedback. Entretanto,embora cada problema tenha a sua especifici-dade, na verdade, pode ser apresentado sobdiferentes perspectivas, conforme as caracte-rísticas peculiares, nível social e profissão dapessoa a quem se está relatando os resulta-dos. É claro que, conforme o Código de Ética,“o psicólogo está obrigado a fornecer a este(ao examinando) as informações que foramencaminhadas ao solicitante e a orientá-lo emfunção dos resultados obtidos”*, mas, para quea comunicação seja eficaz, deve ser clara, pre-cisa e inteligível. Portanto, freqüentemente, alinguagem científica tem de ser traduzida para

um modo coloquial de dizer as coisas, com ouso de um vocabulário acessível e enfatizandoas questões que serão mais úteis, para que sepossam fornecer novas maneiras de percebera realidade e opções para a solução de proble-mas, em benefício do cliente.

Não obstante, essa questão da comunica-ção de resultados envolve aspectos extrema-mente complexos, porque é preciso distinguira pessoa que solicita o exame daquela que con-trata o serviço, que nem sempre são coinciden-tes, e, então, por definição, o receptor nemsempre é a pessoa que contrata o serviço, des-de que, no contrato de trabalho, tenha havidoum consentimento informado do contratantea respeito. Este é um problema muito delica-do, devendo ser analisado criteriosamente porsuas implicações interprofissionais, interpes-soais e éticas.

Vamos imaginar um caso oriundo de umsetting terapêutico, sendo o paciente encami-nhado para psicodiagnóstico na expectativa deque os resultados ofereçam subsídios para re-solver uma questão naquele contexto. Pareceque o receptor legítimo deveria ser o profissio-nal que encaminhou o caso – claro –, desdeque os termos do contrato garantissem essedireito. Senão, vejamos: a) se o encaminhamen-to foi feito por um psicólogo-terapeuta paraum psicólogo especialista em psicodiagnósti-co, para obter informações que poderão levá-lo a modificar certos focos de intervenção te-rapêutica; e, por outro lado, b) se o psicólogoque fez o psicodiagnóstico se sentir obrigadonão só a fornecer informações, como tambémorientar o paciente, poderá estar descumprin-do o seguinte item do Código de Ética: “o psi-cólogo não deve intervir na prestação de servi-ços psicológicos efetuados por outros profis-sionais, salvo em algumas situações”*.

Como vemos, há situações com implicaçõesinterprofissionais (psicólogo versus psicólogo),interpessoais (psicólogo versus paciente e psi-cólogo versus examinando) e éticas (qual dositens é o mais pertinente?). Desse modo, acre-

*Vide nota de rodapé anterior.*Transcrito do Guia para o exercício profissional, distri-buído pelo CRP/07 entre os membros da classe.

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ditamos que, para o desempenho competentede sua tarefa e a bem da ética, o psicólogodeve usar seu bom senso, procedendo em be-neficio do usuário e com sua concordância, emcasos especiais como este.

Quando se falou que o informe tem nor-mas específicas, salientou-se muito a questãoda identidade do receptor. Encaminham-se lau-dos a profissionais, aos quais possam ser deinteresse, em benefício do cliente e com suaconcordância. Entretanto, parece mais reco-mendável dar um feedback ao cliente ou a pes-soas de sua família, sempre através de umaentrevista de devolução, que também será di-ferenciada, dependendo da qualificação pro-fissional, nível social, escolaridade e caracte-rísticas psicológicas pessoais. A comunicaçãooral parece ser um recurso mais esclarecedor eeficaz que as informações por escrito, porquecada item pode ser devidamente analisado eesclarecido, se necessário for. Na realidade, éuma forma de se prevenir a ocorrência de in-terpretações dúbias, especialmente de resulta-dos quantitativos, por entendimento errôneode dados estatísticos.

A comunicação dos resultados pode ser feitade forma sistemática ou assistemática. Tome-mos o exemplo do caso de uma criança, emque, muito freqüentemente, parece importan-te que, na medida em que os dados colhidos ojustificarem, se forneça um feedback ocasio-nal aos pais, seja para alívio da ansiedade, parasatisfazer necessidades reparatórias, para re-forço do ego ou para discutir soluções emer-genciais. Assim, a devolução vai sendo realiza-da de forma bastante assistemática, de modoque a entrevista final seja dedicada mais à in-tegração das informações já prestadas, comvistas à discussão de soluções viáveis.

Outro tipo assistemático de comunicaçãoocorre quando surgem situações emergenciaisde urgência psiquiátrica. Suponhamos que umapaciente, encaminhada para exame de um pro-blema de memória, apresente indícios compa-tíveis com risco de suicídio. Em conseqüência,deve haver troca imediata do objetivo do exa-me, passando-se a avaliar a gravidade do ris-co. Se for o caso, faz-se a comunicação ime-diatamente ao responsável, apontando cuida-

dos e soluções cabíveis. A troca de objetivoocasiona a mudança do tipo de informe e, even-tualmente, a troca do receptor. Por outro lado,a necessidade de proteção da paciente quebrao compromisso com o sigilo profissional.

Vemos, portanto, que a comunicação deresultados pode ser assistemática ou sistemá-tica. Entre os informes sistemáticos, os tiposmais comuns são algumas entrevistas de de-volução e os laudos. Estes são, habitualmente,encaminhados a profissionais da área médicae a outros, da área de saúde e da educação.

Os laudos podem variar em sua estrutura,conforme as questões básicas e os objetivosdo exame ou, ainda, de acordo com o estilo dopsicólogo. Em alguns, por exemplo, os dadosda anamnese e sobre a dinâmica familiar sefazem imprescindíveis para a compreensão docaso, enquanto outros citam apenas os aspec-tos mais significativos ou, eventualmente, osomitem, quando são do conhecimento do re-ceptor. Geralmente, o laudo é iniciado comdados de identificação, seguidos da época derealização do exame. Registram-se os motivosexplícitos e implícitos da consulta, citam-se astécnicas utilizadas (por extenso), comunica-sea impressão sobre o sujeito, apresentam-sedados sobre o estado mental, relata-se sua his-tória clínica, descrevem-se os resultados datestagem, comumente organizados em tópi-cos; conforme os objetivos do exame, faz-se,se for o caso, o entendimento dinâmico e/ou aclassificação nosológica, com prognóstico e pos-síveis encaminhamentos ou recomendações. Esteé mais um modelo tradicional e, conforme osobjetivos do exame, nem sempre precisa sermuito extenso, exaustivo ou profundo. Na ver-dade, não há regras fixas. O importante não éque o psicólogo escreva tudo o que sabe sobre apessoa, mas o que for pertinente aos objetivosdo exame e de interesse para o receptor.

No caso, por exemplo, de um laudo na áreaforense, o psicólogo deve se restringir a res-ponder os quesitos propostos de uma formaclara, concisa e não sofisticada, registrandoapenas dados que possam ser úteis ao objeti-vo a que se destinam e excluindo os que po-dem ser classificados como impressões, opi-niões ou suspeitas.

PSICODIAGNÓSTICO – V 125

Freqüentemente, não é necessária a reda-ção de um laudo, mas somente de um parecer.Suponhamos que a questão, proposta por ummédico, seja se os problemas de memória apre-sentados por um paciente podem ser justificá-veis pelos sintomas de depressão que vêm sen-do observados. Embora, até certo ponto, oexame possa ser complexo, o objetivo é sim-ples e único, e nem há razões para a elabora-ção de um laudo extensivo. O que se requer éum parecer, com base no exame realizado, in-cluindo justificativas sucintas para o ponto devista firmado.

Em alguns casos, não se exige entrevista dedevolução, laudo ou, até, parecer por escrito.Isso muitas vezes ocorre quando o psicólogo émembro de uma equipe multidisciplinar. Cadaprofissional utiliza o seu modelo próprio, parao exame do sujeito, e os dados são interde-pendentes. O caso é discutido pela equipe, emseus vários aspectos, e os dados são integra-dos num informe, conforme os objetivos pro-postos. Às vezes, o objetivo é o de classifica-ção nosológica, para fins de estudo epidemio-lógico da população atendida por um serviço,restringindo-se a comunicação à especificação deum código, conforme uma classificação oficial.

Vê-se, portanto, que o tema é vasto e com-plexo e que existem, além disso, maneiras pes-soais de elaborar informes, que o psicólogo vaidesenvolvendo ao longo de sua prática profis-sional. Em resumo, o tipo de comunicação édefinido pelos objetivos do exame, e seu con-teúdo o é pelas questões específicas iniciais epela identidade do receptor. Dessa maneira,pode variar quanto à natureza dos dados, emprofundidade e extensão, e deve atender aprincípios de ética profissional. Em sua for-ma, é definido pela identidade e qualidadedo receptor.

O informe pode ser sistemático ou assiste-mático, mas, considerando a estrutura do psi-codiagnóstico, é uma unidade essencial e, noprocesso, um passo obrigatório e final do psi-codiagnóstico que, em alguns casos, pode acar-retar novo contrato, mas de natureza terapêu-tica. Assim, desta entrevista de devolução de-correm recomendações, orientações e/ou en-caminhamento do caso e o encerramento do

processo, conservando-se o material do psi-codiagnóstico arquivado durante algum tem-po (No caso de pareceres ou atestados para oserviço público, deve ser mantido por cerca de10 anos.), para poder ser retomado caso o pa-ciente volte para exames complementares, oupara fornecer subsídios para responder a even-tuais consultas suplementares.

CASO ILUSTRATIVO

Para ilustrar o processo psicodiagnóstico, ocaso constante na edição passada foi reformu-lado em termos de novas abordagens do MMPIe em relação a critérios do DSM-IV. Este caso éinteressante não só por causa da complexida-de que apresenta, mas por envolver uma ques-tão de diagnóstico diferencial.

A forma escolhida para expor o caso temfinalidades didáticas. Por esse motivo, é dadaênfase a certos pontos, mais de interesse parao psicólogo, que não seriam tratados tão ex-tensivamente num laudo comum. Na realida-de, ao final do processo diagnóstico, o casofoi discutido amplamente com o psiquiatraencarregado do tratamento do paciente, ten-do-se optado pela elaboração de um laudosucinto, necessário para instruir um processoadministrativo que havia sido instaurado con-tra o paciente, com a observação de que so-mente o acompanhamento do caso permitiriaconfirmar as hipóteses levantadas, o que aca-bou ocorrendo, meses depois, conforme de-poimento do psiquiatra responsável.

Identificação: B.S.Idade: 35 anosSexo: masculinoProfissão: bancárioNível socioeconômico: médio

Motivos do encaminhamento

Encaminhado pelo psiquiatra para diagnósti-co diferencial, o qual deu, por telefone, as se-guintes informações sobre o caso:

O sujeito, que sempre apresentou uma vidamuito regrada, com bom relacionamento fa-

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miliar, embora com poucos amigos, teve umareação de culpa muito intensa em razão dofalecimento do pai há dois anos.

Durante o último ano, passou a se envolvercom rituais de religião afro-brasileira. Em se-guida, sob a influência de uma mãe-de-santo,começou a “encomendar trabalhos” e, parapagá-los, fez um desfalque de quantia consi-derável no banco em que trabalhava. Ao serdescoberto e decidido o seu afastamento dobanco, apresentou sintomas depressivos, inclu-sive com tentativa de suicídio, sendo interna-do em hospital psiquiátrico.

A primeira entrevista com o irmão, na casade quem permaneceu após a alta hospitalar,não acrescentou muitos dados, exceto a res-peito de detalhes sobre o comportamento dopaciente após a morte do pai e sobre seus sin-tomas depressivos antes da hospitalização.

Descrição

B.S. é um homem de 35 anos, casado, com duasfilhas, com nível de escolaridade de 3o Grauincompleto, que reside numa pequena locali-dade, no interior de... Seu padrão de vida éconsiderado muito satisfatório, dadas as con-dições socioeconômicas do lugar.

Veste-se de maneira informal e, quase in-variavelmente, chega para as sessões de exa-me de 10 a 15 minutos antes. Uma pessoa, quecruzou com ele ao sair, comentou que sua apa-rência era de quem havia sido padre.

Sua fala é muito monótona, algo macia,mas não afeminada. Apresenta-se semprecom um sorriso, que mantém, tanto quandoresponde a questões de cultura geral comoquando relata fatos estressantes, como o fa-lecimento do pai. Pode-se dizer que não apre-senta uma modulação afetiva nítida. Mostra-se muito constrito. Dá uma impressão de in-genuidade e de ser menos inteligente do querealmente é. Sua linguagem é algo pobre e,eventualmente, troca termos comuns, como“dependente” por “independente” e vice-ver-sa.

Não obstante, o seu comportamento, naentrevista, parece apropriado.

Hipóteses e perguntas iniciais

O processo precisou ser iniciado apenas comos dados fornecidos pelo psiquiatra, pelo ir-mão e pelo paciente, já que o exame objetivocom a esposa só foi realizado após a testagem,por motivo de viagem.

Contudo, tais dados já permitiam rejeitarou levantar certas hipóteses. Em primeiro lu-gar, pelas informações dadas pelo irmão, foipossível verificar que o caso não atendia aoscritérios diagnósticos de um transtorno de per-sonalidade anti-social. Em segundo lugar, combase em subsídios, fornecidos pelo irmão e pelopróprio paciente sobre a reação deste ao fale-cimento do pai, isto é, a um estressor severo,foi possível pressupor que estivesse apresen-tando um episódio depressivo. Sua personali-dade pré-mórbida, bastante dependente, pa-rece ter desenvolvido uma série de sintomasante esse fato, que, por sua gravidade e dura-ção, teria ultrapassado um quadro depressivonormal pela perda de um ente querido. O pa-ciente informou a respeito de sintomas, queperduraram por meses, e que, por sua especi-ficidade, pareciam corresponder a um episó-dio de depressão maior. Por outro lado, a sin-tomatologia que o levou à internação recentetambém parecia atender aos critérios de umadepressão maior. A partir daí, era possível le-vantar algumas perguntas.

Estaríamos diante de um transtorno bipo-lar, em que o envolvimento do paciente ematividades altamente prejudiciais para a suavida, entre os dois episódios depressivos, po-deria ser explicado como uma sintomatologiamaníaca? As informações não permitiam man-ter essa hipótese como a mais provável, umavez que, nesse transtorno, o episódio inicialgeralmente é maníaco.

Estaríamos, então, diante de um transtor-no depressivo maior recorrente, em que o en-volvimento do paciente, no período interme-diário, em atividades religiosas ritualísticas,pudesse ser explicado por um transtorno depersonalidade esquizotípica? Mas como enten-der o comportamento impulsivo e imprevisível(se comparado com sua vida anterior), carac-terizado pelo desfalque? Poderia ser explicado

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pela presença de um transtorno de personali-dade borderline? E a subserviência absoluta àmãe-de-santo poderia ser justificada por umtranstorno de personalidade dependente oupor uma tendência à superidealização?

Estas últimas perguntas deveriam ser con-sideradas seriamente. A depressão maior é umacomplicação comum, tanto no transtorno bor-derline, como no transtorno de personalidadedependente. Já no transtorno de personalida-de esquizotípica, são comuns a ansiedade, adepressão, e podem surgir sintomas psicóticos,mas são transitórios.

Considerando as primeiras hipóteses levan-tadas, dever-se-iam excluir fatores orgânicos efazer o diferencial com transtorno esquizofrê-nico. Aliás, cabia a pergunta: a escassa modu-lação afetiva, observada no primeiro contato,seria devida apenas a um controle exagera-damente constritivo ou a um afeto inadequa-do, típico do transtorno esquizofrênico? Na-turalmente, também seria importante o di-ferencial em relação a outros transtornos afe-tivos e entre diferentes transtornos de per-sonalidade.

Plano de avaliação

O Teste de Bender, que é uma boa técnica in-trodutória, foi selecionado como instrumentode triagem de disfunção cerebral. A seguir,decidiu-se usar o HTP, mais com um sentidoexploratório e para retardar a introdução detécnicas mais importantes, porém mais ansio-gênicas.

A seguir, foi programada a administraçãodo MMPI, do Rorschach, do WAIS e do TAT. OMMPI é bastante indicado, no psicodiagnósti-co de adultos, quando o objetivo é o examediferencial. Por outro lado, todas essas técni-cas são consideradas adequadas quando exis-te a hipótese de transtorno de personalidade,especialmente de tipo borderline.

Foi planejado, também, um exame objeti-vo, através de entrevista com a esposa do pa-ciente, que completaria a coleta de dados, ser-vindo, além disso, para corroborar indíciosobservados durante a testagem.

Observação

Para facilitar a compreensão do caso, serãoapresentados, a seguir, a história clínica, umexame das funções do ego que parecem im-portantes para fundamentar o diagnóstico,uma tentativa de entendimento dinâmico euma discussão sobre achados nas técnicas enos testes utilizados, em função das hipóteses eperguntas levantadas. Os dados foram, assim,integrados para servir como referencial paraum encontro entre o psiquiatra e a psicóloga,em que foram examinados alguns pontos crí-ticos, em especial, a qualidade do contato dopaciente e outros sintomas apresentados.

História clínica

O paciente, segundo o irmão, teve uma vidaaparentemente normal, até aproximadamente14 ou 15 anos atrás, quando apresentou com-portamento impulsivo e imprevisível. Tinhapassado no vestibular, freqüentava um cursosuperior sem problemas, quando foi aprovadona seleção para um banco. Então, abandonoua universidade, voltou para o interior, ondenascera, casando-se pouco depois. Já o pacien-te não descreve o ato como impulsivo, dizen-do que desejava ser bancário, tanto que se sub-metia à seleção pela terceira vez. Por outro lado,a esposa, que sempre o considerou muito de-pendente, disse que a decisão de voltar para ointerior e casar foi “a única atitude que tomouem sua vida sem consultar alguém” (sic). Con-tudo, em sua opinião, continuou “muito ape-gado” à família, ao ponto de ela sempre lheafirmar que tinha de “cortar o cordão umbili-cal” (sic).

Daí por diante, a sua vida é descrita comosupermetódica e regrada, tido como funcioná-rio exemplar e como pessoa honesta e respon-sável. Não obstante, a natureza de suas fun-ções no banco não exigia muita independên-cia e nunca recomeçou os estudos, emborasempre desse apoio à esposa para fazê-lo. Rela-cionava-se bem com a família, mas tinha poucosamigos. Se convidado para festas, só ia com afamília, “não se desgrudando da esposa” (sic).

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Com a morte súbita do pai, há dois anos,começou a apresentar problemas. O pacienterelata: “... ele ficou doente. Fiz tudo o quemandaram. Ficou bom. Foi um enfarto... Esta-vam fazendo um check-up geral. Teve outroenfarto e, daí, veio a morrer. Eu me senti cul-pado pela morte dele... (?) Poderia ter levado aum centro maior, mas não havia recomenda-ção médica... Como faleceu e eu era o únicofilho, vieram os irmãos e, daí, veio esse senti-mento... Mas enfarto não se pode prever...Depois da morte, me senti culpado... (?) Dias,semanas, sem dormir... Tomei medicamentos...Não houve o sentimento de perda pela morte,mas o sentimento de culpa, que eu carreguei...Mas o sentimento nunca passou...” Mais adian-te: “Passei meses para tirar da idéia. Não fiznenhum tratamento com psiquiatra, nada... (?)Nervoso, o dia inteiro... Na relação afetiva, dei-xei a mulher e as crianças de lado... Levei se-manas sem fazer a barba, cortar o cabelo, que-rendo, parece, jogar alguma culpa... (?) Queos outros percebessem alguma coisa... Demo-rou meses... Ia rezar, ia no cemitério todos osdias. Conversava e saía mais calmo... Chegan-do em casa, revertia tudo...” (sic).

A esposa descreveu o sogro como uma pes-soa fria, sem amigos, mas que procurava mui-to esse filho, com quem se parecia, mas comquem “só conversava sobre coisas banais” (sic).

Com o falecimento do pai, o paciente “sefechou, entrou em crise” (sic). Quando conver-savam, o assunto era só o pai e sua culpa.Quando chegava em casa, deitava-se em posi-ção fetal, coberto com acolchoados, muitodeprimido: “estava numa concha” (sic). Tinhainsônia e tomava comprimidos. Emagreceubastante e, depois, começou a engordar. Tor-nou-se muito parecido com o pai, falando, agin-do como ele. Achou que também tinha proble-mas cardíacos. Consultou muitos médicos e fezmuitos exames. Deixou de ter amigos e usavadesculpas para não sair, exceto ao cemitério.

Gradualmente, começou a falar mais coma esposa e filhos, mas não como antes do fale-cimento do pai. Principiou a se preocupar exa-geradamente com sua mãe, especialmentequanto à sua saúde, querendo que sua filhamais velha morasse com ela.

Instado pela esposa a procurar um psicó-logo ou psiquiatra, não o fez. Ao invés disso,passou a procurar pessoas que, usando bú-zios, cartas, etc., pudessem lhe dizer “comoseu pai estava, se se encontrava bem ondeestava” (sic), buscando avidamente anúnciosa respeito.

Construíram outra casa. Depois, resolveramcomprar um apartamento na praia. Ao mesmotempo, passou a se envolver, ativa, intensa ecada vez mais freqüentemente, com ativida-des ritualísticas de religião afro-brasileira, co-meçando a ficar muito dependente de umamãe-de-santo.

Quanto à sua vida com a família, “não par-ticipava, procurava não conversar, evitava aspessoas e, até com a esposa, era muito fecha-do. Chegava em casa, não conversava, ia parao quarto, ficava sozinho... Amigos, nem fa-lar...”, e, também, mostrava-se “desinteressa-do pelas coisas da casa” (sic). Queria trocar decarro, falava em comprar outro apartamento,um sítio. Parecia não dar valor ao dinheiro. Oque as filhas queriam, dava. Presenteava exa-geradamente, em quantidade e preço. Mas “sóficava fazendo contas”. Parecia “alegre, masinsatisfeito” (sic).

Demonstrou uma atitude de subserviênciaà mãe-de-santo, passando a consultá-la cadavez mais (anotando tudo o que dizia), procu-rando ter contatos telefônicos diários com ela,mesmo que estivesse em outro estado, parasaber como estavam os negócios e a vida dafamília. Freqüentemente, queria que a esposafizesse tais contatos, ficando numa extensãopara escutar. Uma vez que esta se negou, che-gou a ajoelhar-se à sua frente, pedindo parafazê-lo. Começou, segundo a esposa, a ficarinseguro.

No início, a preocupação era com o pai; emseguida, com sua saúde e, depois, com os fi-lhos e a esposa. Então, surgiram “avisos” deque alguém, no banco, o estava prejudicando.Cada vez que havia ameaça de perigos, porrevelação dos búzios ou de outra forma, “en-comendava trabalhos” à mãe-de-santo, queeram remunerados acima do exigido, afirman-do “que valiam mais” e “não admitia que nin-guém falasse mal dela” (sic).

PSICODIAGNÓSTICO – V 129

A situação chegou a um clímax quando amãe-de-santo lhe disse que sua mãe corria ris-co de vida. Foram contratados novos “traba-lhos”, cada vez mais absurdos e dispendiosos.Na época, a esposa estava viajando, e, segun-do ela, a mãe-de-santo “sentiu nele uma pes-soa fácil de manipular” (sic).

Sobre esse período, o paciente relata que,de início, estava convicto de que poderia secomunicar com o pai. Depois, passou a temerperigos iminentes para si e para sua família,dos quais poderia se livrar por meio de “traba-lhos”: “Na ânsia de me livrar, comecei a tirardinheiro do banco... Entrei e não tinha comosair... Foi se avolumando mais... Diziam quedavam proteção... Fiquei independente... de-pendente daquelas pessoas...” (sic). Sentiu-se,então, “desligado do sentimento de culpa”(sic).

Desde a época em que começou a freqüen-tar terreiros e até pouco antes de sua hospita-lização, relata o que poderiam ter sido ilusões(?) ou alucinações visuais (?). Começou a, even-tualmente, enxergar um vulto, ao acordar. De-pois, passou a vê-lo em outros momentos esituações, chegando a achar que o vulto pas-sou a segui-lo na rua. Também há a história deilusões auditivas (?): “Já ouvi vozes... já ouvialguma coisa... Eu sentia a sensação de queestava falando... (?) Não sei, talvez fosse umaviso de que algo ia acontecer... Não houve umfato concreto...” (sic). Fala também de odorespeculiares, no serviço (alucinações olfativas?).Além disso, acha que “foi induzido a procuraro centro espírita e a fazer coisas que me man-davam” (sic). Por outro lado, refere situaçõesem que, “quando alguém me olhava forte, fi-cava meio paralisado, meio tonto e perdia anoção da memória, por momentos”, e outrasem que, “por segundos, me dava uma tonteirae perdia a noção” (sic). Também achava que,realmente, havia pessoas no banco querendoprejudicá-lo.

O desfalque foi descoberto no banco, e,segundo ele, “pediu um tempo”, porque nãoconseguia falar. Procurou a esposa em seu tra-balho. Ao chegar lá, as pessoas “sentiram queele estava diferente”. Disse a ela: “Descobri-ram tudo, no banco, e eu estou na rua”. “Tudo

o quê?” – perguntou ela, uma vez que ele sem-pre lhe dizia que os pagamentos eram feitoscom dinheiro da poupança, empréstimos, etc.

Foram para casa, porque ele queria telefo-nar para a mãe-de-santo, e, em seguida, fo-ram procurá-la na cidade onde se encontrava.No caminho, “estava completamente baratina-do... Começou a falar sozinho...” Várias vezes,“tentou jogar o carro para fora da estrada, naserra” (sic). As crianças gritavam, e ela passoua viajar segurando a trava de mão. Queria as-sumir a direção do veículo, mas ele não permi-tia. Ela disse-lhe, então: “Se quiser tomar umaatitude, tome, mas não quando as crianças es-tiverem no carro” (sic).

Conseguiram chegar à cidade, onde perma-neceram uma semana, em que manteve con-tatos com a mãe-de-santo, que não se mos-trou tão solícita.

Confessou à esposa que “seria melhor terdeixado a mãe morrer e não tocar no dinhei-ro” (sic). Só queria dormir. Em vez de um com-primido, tomava quatro ou cinco. Deitava-sena cama, em dia de calor, com dois acolchoa-dos. Ficava “em posição fetal, ao desamparo”(sic). Dormia sem trocar de roupa e não cuida-va de sua higiene. Se não estava deitado, ca-minhava de um lado para outro, sem conver-sar. Nesse período, escreveu bilhetes suicidas,dirigidos à esposa.

Segundo o paciente, “estava bem maluco,não acreditava na gravidade do problema”.Não se alimentava e não conseguia dormir:“Queria só dormir... Queria pegar o carro e mejogar num barranco... Peguei até um revólver,mas as pessoas da família não deixaram” (sic).

Conforme o irmão, “fez uma confissão dedívida, para o banco, que foi patética” (sic).Foi então que o irmão mais velho o levou a umcentro maior e o internou num hospital psi-quiátrico, onde permaneceu 28 dias.

Ao sair, suspensa a medicação, para querealizasse os testes psicológicos, voltou a terinsônia, vagando à noite pela cidade. Na casado irmão, onde ficou durante esse período,mostrava-se calado, alimentava-se mal e escre-veu duas cartas, sem falar em suicídio, mas comteor idêntico às anteriores. Chorava muito. Coma visita da mãe e de sua filha, passou a se mos-

130 JUREMA ALCIDES CUNHA

trar preocupado com o futuro da família. Nãoobstante, a esposa, que o visitou 10 dias de-pois, afirmou que, embora fale no assunto, nãosabe “até que ponto sofre com isso. Está maisestranho, mais distante... Não é a mesma coi-sa... (?) Ele não sabe da gravidade do fato... Àsvezes, dá a impressão de que não está nemaí... (?) Está aéreo, alheio, não está normal, nãocolocou os pés no chão” (sic).

A esposa não sabe informar sobre anteceden-tes de doença mental na família do paciente.

Integração e seleção dos dados

Funções do ego

Inteligência e funções cognitivas em geral – OQIT de 98 é médio, provavelmente no mesmonível da inteligência pré-mórbida. Não obstan-te, uma análise mais cuidadosa das produçõesverbais do paciente, em provas estruturadas,revela a intrusão de aspectos conflitivos emfunções do ego, consideradas teoricamente li-vres de conflito. Desta maneira, há respostasincorretas, na escala de inteligência, que suge-rem que a função do juízo pode ficar compro-metida por impulsividade e que há dificuldadena capacidade de considerar as necessidadesdos outros.

Por outro lado, observam-se irregularidadesno desempenho, tanto inter como intratestes.Num subteste específico, cujo escore caiu nolimite inferior da normalidade (ao contrário dosdemais), mostra um tipo de inconsistência que,por vezes, é encontrada em sujeitos que tive-ram de fazer ajustamentos caracterológicos oucognitivos para manejar uma ansiedade esma-gadora, pouco controlada por defesas frágeis.Já a variabilidade parece sugerir uma capaci-dade inconsistente para moderar pressõesemocionais e resguardar as operações cogniti-vas do afeto, o que pode levar a um funciona-mento errático. Tal variabilidade na qualidadedas respostas também aparece em provas nãoestruturadas. Notam-se, portanto, sinais oca-sionais no funcionamento cognitivo que, quan-do ocorrem em quadros de nível “neurótico”,são muito mais discretos. Contudo, trata-se de

sinais isolados, mas deve-se considerar que onível de inteligência, preservado, também ser-ve como variável moderadora em relação àdesorganização, em provas intelectuais.

Observam-se, ainda, erros não compatíveiscom a formação do sujeito, sugerindo poucacapacidade para tirar proveito adequado daeducação formal, talvez por perda de interes-se no ambiente, embora certas lacunas iso-ladas possam se associar a dificuldades oca-sionais de atenção, em parte devidas à an-siedade.

Pensamento e linguagem – Nos testes es-truturados, o escore mais baixo é indicativo decomprometimento do pensamento abstrato. Osujeito apresentou respostas incorretas emmuitos itens, chegando a um escore inconsis-tente com os demais, sugerindo um declínioda eficácia cognitiva da análise e síntese. Con-frontado, no reteste de um item, conseguiu daruma resposta de nível melhor, mas não com-pletamente exata, sem crítica. Por outro lado,seu comentário sobre o fracasso em certos itensenvolveu nitidamente projeção, compatívelcom uma opção de resposta paranóide, ao li-dar com estresse.

Em outro subteste, que envolve pensamen-to conceitual, o comprometimento evidencia-do foi mais qualitativo do que quantitativo, nãosó pela emergência de respostas em nível con-creto e funcional, mas também por uma ten-dência a apresentar conceitos muito amplos esincréticos e pelo aparecimento de uma res-posta isolada de natureza confabulatória.

No Rorschach, apresentou vários lapsos nopensamento lógico, em sua maioria sutis, mas,também, uma resposta isolada, baseada emraciocínio falso, em nível possível de ser carac-terizado como um tipo de lógica autista, sematitude crítica por parte do sujeito.

Todavia, quanto ao número e grau de gra-vidade, não apresentou distorções de pensa-mento mais comuns no transtorno esquizofrê-nico. Por outro lado, confrontado com um doslapsos mais sutis de funcionamento lógico,mostrou-se, até certo ponto, capaz de melho-rar a resposta.

Quanto à linguagem, tanto na entrevistacomo na testagem, foi verificada constante tro-

PSICODIAGNÓSTICO – V 131

ca dos termos “dependente” e “independen-te”, que corrigiu uma vez, mas observando-seque, nas outras ocasiões, eles eram usados in-discriminadamente, como se aspectos emocio-nais se infiltrassem no conteúdo da linguagem.No mais, por vezes, empregou termos não emsua forma mais usual, embora tal fato possaser devido, até certo ponto, a diferenças so-cioculturais.

De um modo geral, é possível considerarque a sua linguagem é pobre, e sua produçãoé ingênua, quase infantil.

Teste de realidade e sentido de realidade –A análise do nível formal das respostas sugereque, de um modo geral, lida com a realidadede uma forma cuidadosamente controlada, oque denota a presença de traços compulsivosna estrutura do caráter. Entretanto, a maneiracomo se distribuem os escores é compatívelcom uma constrição superficial, mais situacio-nal do que característica, como uma forma denão se envolver emocionalmente na situação.Contudo, aparecem indícios que nos permitempressupor, pelo menos, a existência de lapsostransitórios no teste de realidade que, no mí-nimo, autorizam a afirmar que o sujeito nãolida adequadamente com a realidade.

Por outro lado, grande parte das distorçõesmenos graves, na percepção e interpretação,tendem a ocorrer em perceptos que envolvemsímbolos fálicos, parecendo respostas disfun-cionais, associadas com uma fonte de conflitoe não ao acaso, como costumam ocorrer empacientes cujo teste de realidade está óbvia egrosseiramente comprometido. Também, umadas respostas de conteúdo humano, no Ror-schach, pode levantar a possibilidade de algumconflito na área sexual ou, no mínimo, umadesvalorização de suas próprias projeções: “...é um homem... Não do sexo masculino, umapessoa adulta”.

Há, também, indícios que permitem supora presença de um certo enfraquecimento nacapacidade de testar e de discriminar estímu-los internos e externos, como, aliás, a históriado paciente permite pressupor. Quando relataexperiências nesse sentido, nota-se ora confu-são entre estados interiores e exteriores, àsvezes, ao acordar, ora possível projeção de es-

tados interiores na realidade externa e, até,experiências que poderiam se caracterizar comoalucinações. Nesse momento, estas estavamausentes, mas a fachada de constrição pode-ria estar mascarando certo grau de incertezaquanto à capacidade de distinguir o real doirreal. Por outro lado, no exame de limites, noMMPI, ao ser solicitado a esclarecer os moti-vos de sua concordância com a afirmação “Fre-qüentemente, sinto como se as coisas não fos-sem reais”, disse que é “uma fantasia”: “Àsvezes, de uma fantasia, faço uma coisa real...de um problema, faço uma fantasia...” (sic),alongando-se numa explicação complexa, quepermite concluir que nem sempre a realidadeexterna é percebida totalmente como real ouque podem ocorrer percepções alteradas darealidade externa.

Sua auto-imagem parece geralmente de-pender do feedback externo. No momento emque tal feedback falta ou é negativo, como nasituação atual, diz-se “perdido, com medo”(sic). Então, mostra fortes sentimentos de fal-ta de valor pessoal, mas que não podem serconsiderados irrealísticos, em face dos fatoresestressantes com que se defronta.

Organização afetiva – O paciente descreve-se como “pessoa muito calma, tranqüila atédemais” (sic). Isso pode ter que ver com a fa-chada de constrição ou com uma forma de nãose envolver afetivamente, manifestando-se demodo estereotipado. Por outro lado, compor-tar-se conforme a expectativa permite a satis-fação de necessidades de dependência, queparecem muito intensas. Não obstante, há in-dícios de que tal atitude possa ser apenas su-perficial. As observações, durante a testagem,são reveladoras. Embora com esforços de semostrar submisso e cooperador, ao ponto deesperar que o examinador terminasse de es-crever, para continuar a falar, houve momen-tos em que se mostrou evasivo nas respostas,pouco colaborador no inquérito, reticente aodar explicações ou dependente, com contínuasperguntas sobre as instruções. Mas, noutrasvezes, pareceu ansioso, ao ponto de dar umaresposta impulsiva, manifestando uma atitu-de de oposicionismo ao lidar com o materialdo teste ou demonstrando irritação e claramen-

132 JUREMA ALCIDES CUNHA

te projetando no examinador a culpa por seuspróprios erros.

No Rorschach, não há indícios que caracte-rizem uma labilidade contínua, mas, invaria-velmente, se observou que à produção de umaresposta com conotação emocional se seguiaoutra, caracterizada por uma tentativa de con-trole mais rígido, de vez em quando com si-nais prévios de ansiedade, insuficientes paragarantir uma boa qualidade. Já no TAT, elabo-rou histórias em que os afetos se mostram maislábeis e pelo menos duas em que se notammudanças abruptas, tanto na expressão emo-cional, como no comportamento dos persona-gens. Desse modo, o quadro geral é de umaregulação não adequada dos afetos, predomi-nando irrupções de afeto nem sempre bemcontroladas e seguidas por inibição afetiva,mas, eventualmente, havendo a ocorrência demudanças lábeis. O comportamento não foimarcado por inquietação, mas houve eventuaisrespostas impulsivas. As histórias do TAT são,em sua maioria, focalizadas mais na ação doque na descrição da experiência interior dospersonagens. Pode-se dizer que a ação é usa-da, até certo ponto, como descarga de ten-são, mas, especialmente, num nível de fan-tasia. Neste, a descarga de tensão e a gratifi-cação direta dos desejos, dependentes ouagressivos, não sofre a influência das normasconvencionais. Assim, ao contrário da vidasempre regrada que levou, seus personagensjogam, ficam bêbados, brigam e matam umamigo, sem serem punidos ou mostraremremorso e culpa. Todavia, também são pes-soas muito infelizes, descontentes, ambiva-lentes ou doentes.

Em relação ao MMPI, os dados sugerem queos mecanismos de defesa não são suficientespara o sujeito lidar com a ansiedade ou paracanalizar apropriadamente impulsos agressi-vos. Há mau controle desses impulsos, poden-do ocorrer episódios de forte atuação. A an-siedade associa-se à ameaça que o sujeito sen-te em relação a esses impulsos, que não con-seguem ser liberados adequadamente, mas sedirigem contra si mesmo. Aliás, a história dopaciente inclui gestos suicidas recentes. A ele-vação da escala 2, combinada com outras ele-

vações, no perfil, é compatível com a presençade risco de suicídio.

Organização das defesas – A série de rituaisem que o sujeito se envolveu há algum tempoe nos quais possivelmente ainda confia sugerea utilização maciça do mecanismo de anula-ção. Da mesma maneira, a forma como o su-jeito se refere aos fatos relativos ao falecimen-to paterno e a sua reação aos mesmos são ca-racterísticas do uso do mecanismo de anula-ção, que também se evidencia em alguns indí-cios dos testes.

No MMPI, há sinais de reativação de defe-sas que, envolvendo pensamento mágico, ru-minação e rituais, estão associadas com usosmenos eficientes de repressão (como negaçãorígida), mais característicos de níveis mais pre-coces do desenvolvimento psicossexual. Con-tudo, a configuração geral do perfil tambémsugere a incapacidade crescente de o pacientelidar com o estresse, pelo uso de defesas ob-sessivo-compulsivas, como também a sua ten-tativa de mudar a sua visão do mundo atravésda utilização de projeções mais grosseiras. Des-ta maneira, notam-se evidências da presençade defesas mais arcaicas, seguidas ou precedi-das por demonstrações de funcionamento emmelhor nível. No próprio processo de diagnós-tico, foi necessário propiciar algum encoraja-mento, por manifestações que sugeriam queora o paciente considerava o examinador comconfiança, ora, noutro momento, reagia comsuspeição.

Os indícios de utilização do mecanismo denegação não são muito conspícuos. Surgiram,eventualmente, no TAT, num exemplo de ne-gação de impulsos agressivos e num perceptoque envolvia disforia aguda e que evoluiu paraa expressão e um otimismo ingênuo. Projeçãoé fortemente sugerida pelo MMPI. Nos demaistestes, há indícios, aqui e ali, mas de uma for-ma caracteristicamente marcante, já que gran-de parte do material produzido foi sobrecarre-gado por forte tendência à constrição e, àsvezes, por sinais de impotência e dificuldadede associação das idéias. Uma vez que muitosdos itens do MMPI são expressos no passado,talvez a diferença em lidar com o estresse,numa e noutra prova, explique, até certo pon-

PSICODIAGNÓSTICO – V 133

to, por que a utilização de certos mecanismos,embora ainda presente, não seja tão marcantecomo já o foi.

Há, também, alguma sugestão do uso decisão, como tática de defesa, através de repre-sentações de objeto altamente polarizadas,corporificando qualidades extremas, acompa-nhadas por outros sinais de inconsistências, natestagem, que podem se associar com possí-veis contradições na percepção das pessoas ede si mesmo.

Estrutura do mundo dos objetos – Obser-vam-se alguns indícios de certas contradições,na autopercepção, a partir da descrição depessoas, nas técnicas projetivas, que podem sercompatíveis com uma dificuldade para resol-ver aspectos discrepantes de si mesmo e paraver os demais como estáveis e previsíveis.

Notam-se, também, certas inconsistênciasem perceptos de objetos, que podem estardentro ou fora de outros, que talvez tenhamque ver com dificuldades do sujeito quantoà representação dos próprios limites dos ob-jetos.

Verifica-se que, no TAT, os personagens, porvezes, mudam de atitude ou de sentimentosde forma imprevisível. Assim, ora eles demons-tram falta de modulação afetiva, são superfi-ciais ou algo amorfos, ora são levados pelosimpulsos. Quando as histórias envolvem maisde um personagem, quase sempre são descri-tos de forma dicotômica (um é rico, e o outro,pobre; um é feliz, enquanto o outro, infeliz;um é muito dependente, e o outro, gratifica-dor). Essas descrições polarizadas sugerem cer-ta inconstância e instabilidade na percepçãodos demais e de si mesmo.

Também se observa que a própria maneirade o sujeito experienciar culpa parece incon-sistente, ora se considerando como uma pes-soa que prejudicou a si mesmo e à família,pronto para se autocastigar; ora sugerindo queas preocupações éticas estão ausentes, quan-do diz que realizou o desfalque com completasegurança e, mesmo quando descoberto, nãoparecia acreditar na gravidade do problema.Tais extremos de ação e fracasso do superegotambém se refletem no TAT, com um persona-gem querendo abandonar o lar apenas por ter

chegado tarde, o que desgostou a esposa, en-quanto se observa outro escapando impune-mente após assassinar um amigo. Tais discre-pâncias, por certo, influem na percepção dosoutros em termos de estabilidade e previsibili-dade.

Por outro lado, há personagens muito va-lorizados ou muito desvalorizados, sugerindodescontinuidade na auto-estima, com reflexosno mundo objetal.

Finalmente, há respostas, no Rorschach,compatíveis com alguma dificuldade na inter-nalização do papel sexual, o que, junto aosdemais indícios encontrados, aponta para umproblema de identidade e, conseqüentemen-te, na percepção de si mesmo e dos demais.

Entendimento dinâmico

Parece haver uma preocupação ansiosa a res-peito da expressão da agressão e quanto àagressão como força motivadora, uma vez queas histórias que o paciente produz às vezes sãomarcadas por tensão, oposição e frustração,e, em algumas, há personagens que são víti-mas de ou responsáveis por homicídio. Mas ofato de o tema não ser muito freqüente e ha-ver outras respostas, em que símbolos agressi-vos são desvalorizados ou negados, torna ocaso bem menos severo, embora possa ter al-guma relação com a intensificação de necessi-dades de dependência, que vão sendo frustra-das por contingências da vida, apesar de seusintensos esforços de evitar abandonos imagi-nados.

O que parece predominar, no material deteste, é a ansiedade quanto à possibilidade deabandono. Nas histórias do TAT, encontram-sesituações em que indivíduos dependem basi-camente de outros, e de personagens que en-tram em desespero quando esses outros fal-tam, com a emergência de ansiedade e depres-são, associadas com sentimentos de abando-no. Por outro lado, há uma qualidade infantilna subserviência a alguém idealizado de for-ma onipotente, que pode tomar conta do su-jeito, relacionada com desejos e expectativasmágicas de que esse alguém possa compensar

134 JUREMA ALCIDES CUNHA

a incapacidade pessoal de encontrar equilíbrioe de lidar com a vida.

O pai do paciente foi descrito por ele como“bom, calado, bem forte, grandão” (sic), pro-vavelmente uma figura onipotente, da qualdependia. A intensidade das necessidades dedependência provavelmente ajuda a entendera dinâmica do caso. Em primeiro lugar, vemosa sua incapacidade em tolerar o grau de esti-mulação de um centro maior e as exigênciasde um curso universitário, precisando retornarpara seu lugar de origem, para perto da famí-lia e de um ambiente protetor. Em segundolugar, compreende-se o desespero com quereagiu à morte do pai (primeiro episódio de-pressivo). Em terceiro lugar, a mãe-de-santoaparece como uma continuidade de sua possi-bilidade de manter vivo seu vínculo com umafigura onipotente (o pai), de quem dependia,passando a substituí-lo e garantindo-lhe segu-rança, com o que dependência poderia ser per-cebida como independência. E, finalmente,entende-se sua reação ao desmoronamento detodo um complexo delirante, com nova frus-tração de suas necessidades de dependência(segundo episódio depressivo?).

Discussão sobre os achados nas técnicas etestes, em função das hipóteses eperguntas iniciais

O protocolo Bender, levantado conforme o sis-tema de Lacks (1984), revelou a presença dequatro indicadores de disfunção orgânica ce-rebral, que é um número insuficiente, em ter-mos probabilísticos, para uma hipótese diag-nóstica neste sentido e que, também, não en-contrava embasamento em outros dados clí-nicos.

No HTP, foram produzidas figuras muitoregressivas, especialmente a da árvore, o que,em comparação com o desenho da pessoa eda casa, sugere um mau prognóstico. A estru-tura da árvore é muito primitiva, sem galhos,compatível com dificuldades de contato como ambiente e lembrando desenhos de pacien-tes esquizofrênicos. Já a casa é desenhada pra-ticamente sem aberturas, ou melhor, há ape-

nas uma porta fechada e uma janela lateral,consideravelmente acima de onde se supõe sero chão, já que há o esboço de uma escada,que se liga a um caminho, que não leva a lugaralgum. Novamente, o desenho sugere, pelomenos, dificuldades no contato com a realida-de, quando não suspeita do rompimento detal vínculo. Há, também, um sinal de transpa-rência no telhado, compatível com a dificulda-de de estabelecer limites entre a realidade ex-terna e a interna. A figura humana, com a ca-beça exageradamente grande, pode sugerir apresença de sintomas ideacionais. Por outrolado, a acentuação dos óculos e das orelhasassinala uma atitude de vigilância frente aoambiente. Há traços de dependência. Os deta-lhes são poucos e desenhados de forma muitoesquemática, que tanto podem assinalar ten-dências regressivas, como lembram desenhosproduzidos por sujeitos com transtornos depersonalidade.

Os resultados do Rorschach são atípicos.Trata-se de um protocolo constrito (percentualde F=57%, mas percentual de F’=91%), emque o percentual de F+ sugere um ego débil,com qualidade apenas pouco inferior à normal,embora, aparentemente, não tão prejudicadacomo num transtorno esquizofrênico. Mas asoma de F’o+F+ indica que o contato com arealidade é apenas superficialmente bom. Poroutro lado, a presença de 3 F’s e 1 F’– é com-patível, pelo menos, com lapsos transitórios noteste de realidade, podendo-se levantar a hi-pótese de um contato borderline, no teste derealidade, mascarado por constrição. Notam-se, também, vários lapsos sutis no pensamen-to lógico, bem como uma resposta caracterís-tica de lógica autista, além de presença de umasíndrome autista incompleta. Há, ainda, indí-cios de algumas defesas de nível “neurótico”(obsessivo-compulsivas), embora com a emer-gência eventual de mecanismos mais arcaicos.Há sugestão de confusão de identidade, masnão se trata de um Rorschach típico de trans-torno de personalidade borderline, pelo menosno que se refere à presença de problemas maissérios no controle dos impulsos, embora não sepossa esquecer que esse quadro é muito hetero-gêneo (Widiger, Sanderson & Warner, 1986).

PSICODIAGNÓSTICO – V 135

O TAT foi utilizado mais para um entendimen-to dos vínculos afetivos e da regulação dos afe-tos. Caracterizou-se pela pobreza na produção epela ênfase mais na ação do que na interpreta-ção do estado interior dos personagens, o que

foi observado por Berg (1983), em protocolos depacientes com transtorno de personalidade bor-derline. As figuras humanas são mal delineadase dicotômicas, isto é, boas ou más, felizes ou in-felizes, etc. A ênfase é na relação dependente.

O perfil do MMPI impressiona pela eleva-ção global que apresenta (com a elevação mé-dia das escalas 82,67), sugerindo, pela formacomo se delineia, um transtorno de personali-dade (Código: 6!!!2!!!8!!!1!!4!3!9x1:35:7). Aselevações predominantes 628, à primeira vis-ta, caracterizam um quadro psicótico, aindaque a elevação F torne importante a conside-ração da validade do perfil. Mas, de acordo comestudos recentes, o F-K de 27 corresponde exa-tamente ao ponto de corte estimado para pa-cientes psiquiátricos (Groth-Marnat, 1999) e,portanto, não invalida o perfil. Na época emque o paciente foi testado, com um ponto decorte admitido do F-K mais baixo, ficamos emdúvida quanto à questão da validade. Por ou-tro lado, o fato de o sujeito ter levado mais deduas horas podia ser atribuído a alguns fato-res – gravidade da sintomatologia, exagero noauto-relato da patologia (para passar uma de-terminada impressão e/ou como pedido de aju-da) ou por má compreensão verbal. Mas o ín-dice TR+CLS é apenas igual a 1 (portanto,

Figura 11.1 Desenho da casa de um paciente do sexomasculino, de 35 anos.

Figura 11.2 Desenho da árvore de um paciente do sexomasculino, de 35 anos.

Figura 11.3 Desenho da pessoa de um paciente do sexomasculino, de 35 anos.

136 JUREMA ALCIDES CUNHA

menor do que 7), indicando que o pacientedeve ter respondido com honestidade, demons-trando compreensão verbal suficiente para for-necer um protocolo válido (conforme Levitt &Gotts, 1995).

Analisando os sintomas principais do pa-ciente, através dos indícios do perfil, como aelevação maior que T70, na escala D (T=90), epelo uso de escalas especiais – a escala de Wi-ggins e a escala de Tryon, Stein e Chu (apudLevitt & Gotts,1995) –, que ultrapassam umT70, pode-se afirmar que os dados apontampara uma depressão clinicamente grave, comindícios compatíveis com risco de suicídio. Tam-bém, utilizando a escala de tensão, vê-se queo paciente endossou itens que indicam que seunível atual de ansiedade é elevado, o que, pos-sivelmente, deve-se, em grande parte, à situa-ção estressante que vem atravessando.

Usando a escala I-RD, de Distorção da Rea-lidade (apud Levitt & Gotts, 1995), o escore dopaciente ultrapassa um T69, com o que se podedizer que o paciente admite apreciável núme-ro de sintomas usualmente considerados com-patíveis com a existência de uma psicose, comoalucinações e experiências peculiares e bizar-ras, como as seguintes:

“Às vezes, maus espíritos se apoderam demim”;

“Tenho tido experiências muito peculiarese estranhas”;

“Quando estou com outras pessoas, abor-rece-me ouvir coisas muito estranhas”;

“Minha alma algumas vezes deixa meu cor-po”;

“Vejo pessoas, coisas, animais, ao meu re-dor, que os outros não vêem”;

“Creio que estão tramando alguma coisacontra mim”;

“Creio que estou sendo seguido”;“Comumente, ouço vozes sem saber de

onde vêm”;“Alguém controla a minha mente”;“Uma ou mais vezes, em minha vida, senti

alguém hipnotizando-me, induzindo-me a fa-zer coisas”;

“Às vezes, sinto odores peculiares”;“Freqüentemente, sinto como se as coisas

não fossem reais”;

“Tenho pensamentos estranhos e peculia-res”;

“Ouço coisas estranhas quando estou só”;“Nunca tive visões” (E).Levando em conta, ao mesmo tempo, a ele-

vação maior que T70 da escala de Psicoticismode Wiggins, aumenta a possibilidade da hipó-tese de psicose, embora, a partir de um inven-tário verbal, esta seja só uma probabilidade,viável, até certo ponto, em termos da históriaclínica do paciente, mas não integralmentecorroborada pelos dados do Rorschach.

Por outro lado, usando escalas suplemen-tares de transtornos de personalidade, obser-va-se que, para o transtorno de personalidadeesquizotípica, o paciente preenche critérios (es-core 16) que o classificariam num nível V, en-quanto, tanto para o transtorno de personali-dade borderline (escore 20) como dependen-tes, estaria no nível IV. Evidentemente, dada anatureza do instrumento e o fato de apresen-tar itens formulados no tempo presente e nopassado, não é possível chegar a inferênciassem considerar os demais dados da testageme as informações da história clínica presente epassada.

O WAIS foi administrado para esclarecimen-to de aspectos cognitivos, que já foram am-plamente discutidos no item sobre as funçõesdo ego. Além dos indícios de comprometimen-to examinados, especialmente no que tange apensamento conceitual, os recursos intelec-tuais, em geral, encontram-se bastante preser-vados.

Fundamentação das hipóteses diagnósticas

As hipóteses iniciais centravam-se num trans-torno afetivo a partir das informações iniciaisdo próprio paciente e de seu irmão. Não obs-tante, nova entrevista com o paciente, a entre-vista com sua esposa, bem como a observaçãodo comportamento do paciente e os dadosobtidos na testagem sugeriram um quadropsicopatológico bem mais complexo.

No momento, sem dúvida, o paciente apre-senta e relata sintomas depressivos apreciáveis,bem como sinais residuais de natureza psicótica.

PSICODIAGNÓSTICO – V 137

Em relação à hipótese da presença de trans-torno de personalidade esquizotípica, obser-va-se que satisfaz os critérios diagnósticos doDSM-IV. Quanto ao transtorno de personalida-de borderline, não preenche todos os critérios,e o mesmo se pode dizer quanto ao transtor-no de personalidade dependente. Mas, semdúvida, apresenta alguns traços. Em relaçãoao último, não só foram observados indícioscaracterísticos no MMPI, como a maneiracomo a esposa o descreveu, desde que co-meçaram a se relacionar, corresponde pelomenos a um tipo de personalidade depen-dente, como uma pessoa dócil, imatura, pas-siva e submissa a uma figura mais forte. Éingênuo e facilmente persuadível. Evita com-petição e tensão social. Parece sentir-se fra-co, frágil e, eventualmente, inadequado, emcertas circunstâncias.

Entretanto, durante o processo do psico-diagnóstico, chamou especial atenção a ausên-cia de uma modulação afetiva nítida, tambémobservada pelo psiquiatra responsável por seutratamento. Por outro lado, a esposa tambémobservou diferenças em sua personalidade,descrevendo-o como “desligado”, “aéreo”,“alheio”, “parado”, parecendo que “não é maiso mesmo”, “que não está normal”, “que nãoestá nem aí” (sic). Além disso, como há dadoscompatíveis com a presença de indícios detranstornos de pensamento, da existência de,pelo menos, lapsos no teste de realidade, deproblemas no sentido de realidade, de conteú-dos delirantes e de prováveis alucinações, es-tão satisfeitos alguns critérios para o diagnós-tico de transtorno esquizofrênico, em que ostraços de transtorno de personalidade esqui-zotípica e borderline poderiam ter uma signifi-cação pré-mórbida. Observa-se, porém, que osepisódios depressivos não podem ser conside-rados curtos. Por outro lado, na história, pelorelato do paciente, parece ter havido períodosem que se apresentaram sintomas psicóticos,sem alterações realmente importantes de hu-mor. Ainda, pelos dados da testagem, logoapós a hospitalização, em que foram observa-dos sintomas psicóticos, parece haver coinci-dência de ambos os quadros. Esses dados su-gerem a presença de 297.70, transtorno esqui-

zoafetivo, em remissão. Todavia, como os sin-tomas de natureza esquizofrênica podem seremergentes, sendo difícil distinguir formas se-veras de transtorno de personalidade esquizo-típica de sinais prodrômicos de esquizofrenia,só um acompanhamento do caso poderá per-mitir um diagnóstico mais seguro.

Laudo psicológico

Identificação: B.S.Idade: 35 anosÉpoca do exame: –Motivo do encaminhamento: diagnóstico

diferencial.Técnicas utilizadas: Entrevistas com o pa-

ciente, com o irmão e com a esposa; Teste deRorschach, Minnesota Multiphasic PersonalityInventory (MMPI), Thematic Aperception Test(TAT), Wechsler Adult Intelligence Scale (WAIS)e técnicas gráficas.

Sumário dos resultados: O paciente apre-senta um quadro depressivo, com sinais resi-duais e/ou incipientes de natureza psicótica. Aomesmo tempo, os resultados são compatíveiscom a presença de transtorno de personalida-de esquizotípica, com traços de transtornoborderline, ainda com características de per-sonalidade de tipo dependente.

Confrontando os resultados do exame coma história clínica, as características de perso-nalidade de tipo dependente já podiam serobservadas na fase pré-mórbida, quando apre-sentou um episódio que, pela descrição dosfamiliares, poderia ter preenchido os critériosde episódio de depressão maior, tendo comofator precipitador a ocorrência do falecimentopaterno, com repercussões importantes emsuas relações sociais. Todavia, não houve umatendimento especializado, e, assim, as infor-mações não são totalmente confiáveis para seestabelecer um diagnóstico. Considerando queapresenta um transtorno de personalidade es-quizotípica com traços de personalidade bor-derline, era muito possível a ocorrência de umtranstorno de humor concomitante, com a pro-funda alteração que se verificou após a mortesúbita do pai.

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Apesar de seus antecedentes como pessoade vida muito regrada e honesta, passou a en-volver-se fanaticamente em atividades ritualís-ticas de religião afro-brasileira e, em razão desua subserviência absoluta a uma mãe-de-san-to, chegou a realizar um desfalque importantena agência bancária em que era funcionáriopara pagamento de “trabalhos”, que visavama livrá-lo de seus problemas depressivos eprevenir a ocorrência de desgraças imaginá-rias. Nessa época, não se pode descartar ahipótese da coexistência, no paciente, de as-pectos delirantes e, provavelmente, de sin-tomas alucinatórios (?). Ao ser descoberto odesfalque e instaurado processo administra-tivo, o paciente apresentou outro episódiodepressivo, sendo hospitalizado com sinto-mas psicóticos.

No momento, em fase de remissão do epi-sódio depressivo, está apresentando traços nãocongruentes, como falta de modulação afeti-va nítida, alheamento, além da ocorrência, nostestes, de respostas isoladas compatíveis coma presença de transtorno de pensamento, ob-servando-se, também, pobreza da fala e po-breza do conteúdo da linguagem, isolamento

social marcante e comprometimento de seupapel como esposo e pai de família.

Considerando-se alguns prováveis sintomasanteriores, mais os sintomas emergentes e adificuldade de distinguir formas severas detranstorno de personalidade esquizotípica desinais prodrômicos de esquizofrenia, as hipó-teses diagnósticas que podem ser atualmentelevantadas, com base no DSM-IV, são coloca-das a seguir, embora só o acompanhamentodo caso poderá permitir chegar a um diagnós-tico mais seguro.

Hipóteses diagnósticasEixo 1 – 297.70. Transtorno Esquizoafeti-

vo. Tipo depressivo. Em remissão.Eixo 2 – 301.22. Transtorno de Personali-

dade Esquizotípica, com traços de301.83. Transtorno de Personali-dade Borderline e301.6. Transtorno de Personalida-de Dependente

Eixo 3 – NenhumEixo 4 – Problema ocupacional (demissão

do emprego), administrativo (pro-cesso) e financeiro

Eixo 5 – 40