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PATRIMÔNIO CULTURAL E IDENTIDADE EM GUAÍRA-PR Aline Rafaela Portílio Lemes, Universidade Estadual de Maringá (UEM), bolsista de iniciação científica da Fundação Araucária Samuel Douglas Farias Costa, Universidade Estadual de Maringá (UEM), bolsista de iniciação científica do CNPq Resumo: Partindo de uma concepção antropológica dos conceitos de cultura, memória e patrimônio cultural, nossa proposta é levantar uma discussão acerca da construção de identidade na cidade de Guaíra-PR. Para tanto, num primeiro momento realizaremos uma introdução sobre o que é patrimônio cultural, buscando uma compreensão mais ampla desse tema e dando ênfase aos diversos contornos semânticos que essa categoria pode assumir. Em seguida, com base em fotografias e textos já produzidos a respeito da cidade de Guaíra, procuramos apresentar os principais patrimônios culturais adotados pela cidade como elementos simbólicos importantes na configuração de sua identidade. Em contraste com tais elementos, com base em pesquisa realizada pelos autores, abordaremos a questão da presença indígena dos Guarani Nhandeva, cuja cultura e, consequentemente, seus patrimônios culturais, são marginalizados dessa identidade da cidade. A partir dessa situação, presenciamos um movimento partindo dos Guarani da aldeia Tekoha Porã em busca da valorização de sua cultura. Nesse sentido, entendemos a importância da discussão do conceito e abrangência do patrimônio cultural na compreensão de como se conforma a imagem da cidade de Guaíra com base nos seus patrimônios, e como a mesma atua e resulta da/na exclusão de determinado grupo. Entendemos a cidade de Guaíra como um caso em que se apresenta de maneira clara a problemática envolvida na questão do patrimônio cultural, se tornando um campo profícuo para as discussões acerca de patrimônio, memória e identidade. Palavras-Chave: Patrimônio Cultural, Identidade, Guaíra-PR Através da articulação dos conceitos de cultura, memória e patrimônio cultural – sob um viés antropológico –, nossa proposta é discutir a construção da identidade na cidade de Guaíra-PR. Como definido por Le Goff, entendemos monumento como um sinal do passado, ou seja, “tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação” (LE GOFF, 2003, p. 535). Entendendo a dimensão cultural e memorial do patrimônio, iremos analisar como essa discussão se insere na cidade de Guaíra. Nossa análise se realiza sobre dois aspectos: de que maneira verificamos a identificação e escolha da cidade de Guaíra de seus patrimônios considerados importantes, e como essa escolha resulta na/da exclusão de determinados grupos, especificamente os indígenas Guarani Nhandeva. Para tanto, será realizada num primeiro momento uma discussão sobre cultura segundo uma definição antropológica, sobre símbolos e trocas simbólicas e sobre identidade social. III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR 127

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PATRIMÔNIO CULTURAL E IDENTIDADE EM GUAÍRA-PR

Aline Rafaela Portílio Lemes, Universidade Estadual de Maringá (UEM), bolsista de

iniciação científica da Fundação Araucária

Samuel Douglas Farias Costa, Universidade Estadual de Maringá (UEM), bolsista de

iniciação científica do CNPq

Resumo: Partindo de uma concepção antropológica dos conceitos de cultura, memória e patrimônio cultural, nossa proposta é levantar uma discussão acerca da construção de identidade na cidade de Guaíra-PR. Para tanto, num primeiro momento realizaremos uma introdução sobre o que é patrimônio cultural, buscando uma compreensão mais ampla desse tema e dando ênfase aos diversos contornos semânticos que essa categoria pode assumir. Em seguida, com base em fotografias e textos já produzidos a respeito da cidade de Guaíra, procuramos apresentar os principais patrimônios culturais adotados pela cidade como elementos simbólicos importantes na configuração de sua identidade. Em contraste com tais elementos, com base em pesquisa realizada pelos autores, abordaremos a questão da presença indígena dos Guarani Nhandeva, cuja cultura e, consequentemente, seus patrimônios culturais, são marginalizados dessa identidade da cidade. A partir dessa situação, presenciamos um movimento partindo dos Guarani da aldeia Tekoha Porã em busca da valorização de sua cultura. Nesse sentido, entendemos a importância da discussão do conceito e abrangência do patrimônio cultural na compreensão de como se conforma a imagem da cidade de Guaíra com base nos seus patrimônios, e como a mesma atua e resulta da/na exclusão de determinado grupo. Entendemos a cidade de Guaíra como um caso em que se apresenta de maneira clara a problemática envolvida na questão do patrimônio cultural, se tornando um campo profícuo para as discussões acerca de patrimônio, memória e identidade.

Palavras-Chave: Patrimônio Cultural, Identidade, Guaíra-PR

Através da articulação dos conceitos de cultura, memória e patrimônio cultural – sob

um viés antropológico –, nossa proposta é discutir a construção da identidade na cidade de

Guaíra-PR. Como definido por Le Goff, entendemos monumento como um sinal do passado,

ou seja, “tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação” (LE GOFF, 2003, p.

535). Entendendo a dimensão cultural e memorial do patrimônio, iremos analisar como essa

discussão se insere na cidade de Guaíra. Nossa análise se realiza sobre dois aspectos: de que

maneira verificamos a identificação e escolha da cidade de Guaíra de seus patrimônios

considerados importantes, e como essa escolha resulta na/da exclusão de determinados

grupos, especificamente os indígenas Guarani Nhandeva.

Para tanto, será realizada num primeiro momento uma discussão sobre cultura segundo

uma definição antropológica, sobre símbolos e trocas simbólicas e sobre identidade social.

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Em seguida, entendendo o patrimônio como um símbolo e categoria de pensamento, fazendo

parte da identidade social de determinado grupo, apresentaremos uma análise sobre a questão

do patrimônio cultural atualmente, entendendo as repercussões que definições limitadas

acerca do patrimônio, e consequentes políticas públicas em relação a isso, provocam.

Após uma discussão teórica, teremos base para realizar a análise da situação guairense

em relação ao patrimônio cultural. Através de análise de fotos dos principais monumentos1,

discutiremos a ideologia que está impregnada na escolha dos patrimônios considerados

importantes, bem como os grupos excluídos do processo histórico de constituição da cidade.

Cultura

Quando nos referimos a categoria patrimônio abrimos uma possibilidade muito ampla

de significados, “falamos dos patrimônios econômicos e financeiros, dos patrimônios

imobiliários;[...] usamos também a noção de patrimônios culturais, arquitetônicos, históricos,

artísticos, etnográficos, ecológicos, genéticos” (GONÇALVES, 2009, p.25). No entanto

quando falamos particularmente de patrimônio cultural nos referimos a um elemento

específico, a cultura. O debate sobre cultura nas Ciências Sociais é extenso, sobretudo a

Antropologia se destaca desde sua consolidação como ciência, em meados do século XIX,

como um dos principais campo dos estudos culturais.

  No livro Cultura: um conceito antropológico, de Roque de Barros Laraia,

somos apresentados a uma breve reconstrução da trajetória da Antropologia na discussão

desse conceito. Segundo Laraia (2000) o primeiro conceito de cultura em uma perspectiva

antropológica foi o de Edward Taylor (1832-1917) que em sua obra clássica Primitive Culture

de 1871 já marcava a separação entre cultural e biológico, ou seja, a cultura é aprendida e não

transmitida de forma hereditária. O autor apresenta também que esse rompimento é

evidenciado ainda mais em 1917 com o artigo O Superorgânico de Alfred Kroeber (1876-

1960), que além de indicar essa ruptura, mostra que o aspecto cultural do homem é

predominante sobre o orgânico. Laraia indica também, como um expoente no debate sobre

cultura, Franz Boas (1858-1942), um dos críticos do Evolucionismo Cultural e introdutor do

conceito de particularismo histórico. Boas também foi a principal influência para a corrente

antropológica do início do século XX denominada de Escola Culturalista Americana. Nesse

período as noções de relativismo e diversidade se aproximam ao conceito de cultura. Não nos

é interessante continuar aqui essa discussão levantada por Laraia sobre os primeiros discursos

a respeito da cultura, mas julgamos ser importante destacar essa separação básica entre

cultura, que compreendemos como um conjunto de elementos aprendidos, transmitidos

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através da comunicação e que variam dentro de um grupo humano e outro, e as funções

biológicas que são universais a todos os seres humanos.

O antropólogo estadunidense Clifford Geertz, que se consagrou como o expoente da

Antropologia Interpretativa, define a categoria cultura destacando os significados.

O conceito de cultura que eu defendo [...] é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa à procura do significado (GEERTZ, 1978, p.15).

Portanto segundo Geertz a cultura é constituída de significados, ou seja, atua na

esfera do simbólico, “como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis” (GEERTZ, 1978,

p.24). Ressaltamos, no entanto, que não podemos dispensar o caráter material da cultura,

símbolo e matéria estão em constante interação. Geertz ainda atribui ao conceito de cultura as

seguintes características.

[...] a cultura é melhor vista não como complexos de padrões concretos de comportamento – costumes, usos, tradições, feixes de hábitos –, como tem sido o caso até agora, mas como um conjunto de mecanismos de controle – planos, receitas, regras, instruções (o que os engenheiros de computação chamam “programas”) – para governar o comportamento (GEERTZ, 1978, p.56).

A noção de cultura que adotamos de Geertz também é uma ruptura com o que vinha

sendo na produzido em Antropologia até então, pois ele a compreende como mecanismos de

controle e não apenas como formas de comportamento. Isso significa dizer que a cultura serve

como um modelo de significados que ordenam o nosso comportamento no cotidiano.

Outra noção sobre cultura que devemos deixar claro é que ela dinâmica, plástica, ou

seja, ela se transforma durante a história. Sobre mudança cultural buscamos a abordagem de

Sahlins.

[...] toda a cultura foi programada para que houvesse a valorização simbólica da força da prática material. Assim, ela muda precisamente porque, quando permite ao mundo incorporação plena às suas categorias, admite a possibilidade de que estas categorias sejam funcionalmente reavaliadas. [...] Enquanto a categoria dada é reavaliada no curso de referência histórica, as relações entre as categorias também mudam: a estrutura é transformada. (SAHLINS, 1990, p. 50).

Através de uma perspectiva de dialética entre a estrutura (simbólico) e a práxis,

Sahlins (1990) nos mostra na descrição da expedição do Capitão James Cook às ilhas

havaianas como a estrutura de um grupo se transforma ao longo da história a partir da ação

prática de seus membros. Vale esclarecer também que as mudanças não vem apenas de

relações internas do grupo. Segundo Mota e Assis (2008, p.67) “por nunca viverem isolados,

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todos os grupos humanos sempre influenciaram e sofreram influências de outros grupos, o

que colabora significativamente para essas mudanças”.

Como exposto, entendendo a cultura como constituída de significados, atuando na

esfera do simbólico, o patrimônio se configura como um símbolo. Nesse sentido, Robert

Darnton realiza uma discussão acerca das trocas simbólicas e do processo de significação e

interpretação dos símbolos na qual ele contraria as críticas de Roger Chartier, propondo uma

visão dos símbolos como polissêmicos. Isso significa abandonar uma relação de representação

direta e irrestrita entre o símbolo e seu significado, sendo sua compreensão possível somente

na medida em que o contextualizamos. Adota uma noção etnográfica de troca simbólica, onde

os símbolos podem admitir múltiplos sentidos.

Os etnógrafos trabalham com uma noção muito diferente de troca simbólica. Na verdade, preferem noções rivais, mas, quaisquer que sejam suas bandeiras teóricas, em geral não esperam que seus informantes nativos utilizem símbolos do tipo “leão=valor”. Pelo contrário, eles acham que os símbolos transmitem múltiplos sentidos, e que o sentido é interpretado de diferentes maneiras por diferentes pessoas. Como diz Michael Herzfeld “Os símbolos não representam equivalências fixas, mas analogias contextualmente compreensíveis” (DARNTON, 2010, p. 339, grifo nosso).

Isso significa que só é possível compreender determinado símbolo se o situarmos em

relação ao seu contexto, o que na prática não se revela uma tarefa simples. Dentro de uma

mesma sociedade, e até mesmo dentro de um mesmo grupo, os símbolos podem assumir

diferentes significados. Nesse sentido, a história, a sociedade e a cultura são entendidas como

dinâmicas, e os símbolos não constituem uma representação mecânica. O cotidiano se realiza

através de relações metafóricas, com lógicas próprias, não seguindo necessariamente a lógica

e racionalização históricas.

Memória coletiva e Identidade Social

Outro conceito importante para este trabalho é a noção de memória coletiva que está

fortemente vinculada à categoria patrimônio cultural.

Os indivíduos compartilham da construção da memória coletiva, sentem-se parte do mesmo grupo, pois têm a mesma história, uma memória comum a todos, composta por acontecimentos vivenciados ou que lhes foram contados como se fossem suas, passando então, a fazer parte do seu imaginário. Vê-se que a memória coletiva, assim como a identidade social, é composta por dados objetivos e subjetivos. Uma memória também é preenchida por fatos criados a partir de interpretações que o grupo faz da realidade, cujo resultado permanece na memória. Todavia, ela não é composta por toda a realidade objetiva, ou seja, por todos os acontecimentos vividos pelo grupo. Alguns deles são preteridos na composição da memória e a escolha do que será privilegiado ou não pela memória está ancorada nos critérios subjetivos do grupo (ARAÚJO, 1997, p. 204).

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O patrimônio cultural está estritamente ligado a preservação da memória coletiva,

construída nas relações sociais de um grupo com uma cultura e identidade social em comum.

Essa memória está vinculada não somente com a realidade objetiva, mas também com as

representações coletivas desse grupo, ou o que Cardoso de Oliveira (1976), por uma leitura da

sociologia do conhecimento, chama de ideologia, isto é, “representações ideológicas da

experiência coletiva vivida ou conhecimento de senso comum gerado pela realidade social do

quotidiano” (p.39). Dessa forma entendemos memória coletiva como essas representações que

fazem parte do imaginário do grupo e que estão ligadas à uma origem, história, passado e

cultura em comum. A idéia de memória coletiva nos remete a noção de identidade social.

A memória coletiva, compreendida como um traço identitário, é um elemento de

identidade social. Esta

é sempre conformada a partir de uma relação, de um convívio ou de experiências que definem os agentes de relação. As várias relações e experiências vivenciadas pelo grupo são elementos de um processo de distinção que estabelece limites para se determinar o que se é e o que o outro é. E essas classificações são, de um modo geral, reproduzidas pela maioria dos membros do grupo (ARAÚJO, 1997, p.195-196, grifo do autor).

Entendemos então que a identidade social é formada através de relações sociais entre

eu/nós e o/os outro/outros. É composta por elementos culturais que através das diferenças

definem essa ou aquela identidade. Por exemplo, a identidade de gênero feminino está em

diferenciação à identidade de gênero masculino. Também devemos destacar que a identidade

possui caráter múltiplo, ou seja, nós possuímos inevitavelmente mais do que uma identidade,

por exemplo, brasileiro, paranaense, Guarani Nhandeva, estudante, universitário, xamã,

cristão, entre outras. Como em nossa pesquisa trabalhamos com um grupo indígena, adotamos

também o conceito de um tipo específico de identidade social, a identidade étnica. Cardoso de

Oliveira (1976) define a identidade étnica enquanto identidade contrastiva.

A identidade contrastiva parece se construir na essência da identidade étnica, i.e., a base da qual esta se define. Implica a afirmação de nós diante dos outros. Quando uma pessoa ou um grupo se afirmam como tais, o fazem como meio de diferenciação em relação a alguma pessoa ou grupo com que se defrontam. É uma identidade que surge por oposição. No caso da identidade étnica ela se afirma “negando” a outra identidade, “etnocentricamente” por ela visualizada (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976, p.5-6).

O que diferencia identidade étnica, enquanto identidade contrastiva, de identidade

social é a situação de contato interétnico, mais precisamente, nos termos de Cardoso de

Oliveira (1976), a situação de Fricção Interétnica. Esta teoria pressupõe o contato étnico em

termos de conflito e confronto. O autor define Fricção Interétnica como “o equivalente lógico,

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(mas não ontológico) do que os sociólogos chamam ‘Luta de classes’” (CARDOSO DE

OLIVEIRA, 1978a, apud ATHIAS, 2007, p.110).

Memória coletiva e Patrimônio

A palavra latina monumentum remete para a raiz indo-européia men, que exprime uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (memini). O verbo monere significa ‘fazer recordar’, de onde ‘avisar’, ‘iluminar’, ‘instruir’. O monumentum é um sinal do passado. Atendendo às suas origens filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação (LE GOFF, 2003, p. 535)

A memória é um elemento presente em todos os indivíduos, tanto na sua forma

pessoal de memória individual como na sua forma social de memória coletiva. Assim como

aquela é indispensável na construção do indivíduo, esta é indispensável à construção da

identidade de determinado grupo, se constitui em um de seus vínculos. E, enquanto sociedade,

o patrimônio cultural se constitui em um elemento de memória, de “fazer recordar”, sendo,

portanto, um traço e um vínculo identitário. De acordo com Sant’Anna (2009),

preservar a memória de fatos, pessoas ou idéias, por meio de construtos que as comemoram, narram ou representam, é uma prática que diz respeito a todas as sociedades humanas. É, pode-se dizer, um universo cultural e é essa função memorial que está por trás da noção de monumento em seu sentido original (p. 49)

A autora assinala, ainda, que o conceito de patrimônio cultural vincula-se a uma

“produção simbólica, à instituição de um objeto como monumento por um grupo e à

capacidade deste atuar sobre a memória coletiva” (SANT’ANNA, 2009, p. 49). O patrimônio,

portanto, é um símbolo que serve de vínculo, manipulando elementos emotivos e afetivos,

remetendo a uma memória em comum, funcionando como um vínculo identitário.

A visão tradicional de patrimônio cultural, forjada na modernidade, no entanto, se

sobrepôs a esse sentido original. Segundo Maria Cecília Londres Fonseca (2009), a imagem

evocada pela expressão “patrimônio histórico e artístico” está “longe de refletir a diversidade,

assim como as tensões e os conflitos que caracterizam a produção cultural do Brasil” (p. 59).

A autora cita o exemplo da Praça XV no centro do Rio de Janeiro, que tradicionalmente

remete a um símbolo do poder real, devido a presença do Paço Imperial, sede da corte; há

também a antiga catedral, que atesta o poder da Igreja Católica no período. Essa leitura, no

entanto, “esquece”

a presença, nesses espaços, de mercadores, escravos domésticos, negros de serviço e alforriados, enfim, da sociedade complexa e multifacetada que por ali circulava. (...) O exemplo da Praça XV é significativo. Nesse local não é possível encontrar nenhuma marca ou menção, atualmente, à presença constante dos escravos

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pegando água no Chafariz do Mestre Valentim, que lá ainda permanece apenas como mera extensão do Paço Imperial. Se, como pesquisas históricas vêm comprovando, o Rio de Janeiro foi uma cidade quase africana durante a primeira metade do século XIX, essa informação não ficou registrada nos bens que ali são identificados como patrimônio cultural brasileiro, nem na leitura que deles fazem os órgãos de preservação (FONSECA, 2009, p. 59-60).

Nesse sentido, José Reginaldo Santos Gonçalves propõe o entendimento de patrimônio

cultural como categoria de pensamento. Isso significa evitar uma visão restrita de patrimônio,

tentando entender em que medida é uma categoria “também presente em sistemas de

pensamento não modernos ou tradicionais” (GONÇALVES, 2009, p. 25). Para isso é

necessário realizar um esforço no sentido de “escapar” da concepção moderna de patrimônio,

que possui delimitações muito precisas e o apresenta como uma categoria individualizada.

A idéia de patrimônio imaterial ou intangível vem ao encontro dessa crítica a uma

visão exclusivamente moderna patrimônio cultural. Entendendo o patrimônio como um

elemento de memória, um vínculo identitário, é uma concepção de patrimônio que valoriza

aspectos da vida social e cultural de determinado grupo (GONÇALVES, 2009, p. 28).

Nessa nova categoria estão lugares, festas, religiões, formas de medicina popular, música, dança, culinária, técnicas, etc. Como sugere o próprio termo, a ênfase recai menos nos aspectos materiais e mais nos aspectos ideais e valorativos dessas formas de vida. Diferentemente das concepções tradicionais, não se propõe o tombamento dos bens listados nesse patrimônio. A proposta existe no sentido de registrar essas práticas e representações e acompanha-las para verificar sua permanência e suas transformações. A iniciativa é bastante louvável, porque representa uma inovação e flexibilização nos usos da categoria “patrimônio”, particularmente no Brasil. Ela oferece, também, a oportunidade de aprofundar nossa reflexão sobre os significados que pode assumir essa categoria (GONÇALVES, 2009, p. 28).

Por outro lado, essa noção moderna de patrimônio cultural, que costuma relacioná-lo a

coisas corpóreas e a bens estáticos, gerou visões e políticas restritas, durante um longo tempo,

a respeito da preservação, que costuma ser confundida com tombamento (FONSECA, 2009,

p. 64). Para Fonseca, essa visão tradicional, além de excluir da preservação bens imateriais ou

intangíveis, exclui determinados grupos do processo de construção da memória coletiva.

Ainda segundo a autora há uma gama de bens entendidos pela Constituição Federal de 1988

como “patrimônio cultural brasileiro” que até recentemente não se podia aplicar nenhum

instrumento legal para constituí-los como patrimônio. É necessário pensar na produção de

patrimônios culturais como uma “‘formação discursiva’, que permite ‘mapear’ conteúdos

simbólicos, visando descrever a ‘formação da nação’ e constituir uma ‘identidade cultural

brasileira’” (FONSECA, 2009, p. 66).

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Uma análise crítica dos Livros do Tombo, do Iphan, revela que essa limitação tem consequências mais graves que a mera exclusão de “tipos” de bens culturais desse repertório. Na realidade, essa estratégia produziu um “retrato” da nação que termina por se identificar à cultura trazida pelos colonizadores europeus, reproduzindo a estrutura social por eles aqui implantada. Reduzir o patrimônio cultural de uma sociedade às expressões de apenas algumas de suas matrizes culturais – no caso brasileiro, as de origem europeia, predominantemente portuguesa – é tão problemático quanto reduzir a função de patrimônio à proteção física do bem. É perder de vista o que justifica essa proteção, que, evidentemente, representa também um ônus para a sociedade e para alguns cidadãos em particular. Para que essa função se cumpra, é necessário que a ação de “proteger” seja precedida pelas ações de “identificar” e “documentar” – bases para a seleção do que deve ser protegido -, seguida pelas ações de “promover” e “difundir”, que viabilizam a reapropriação simbólica e, em alguns casos, econômica e funcional dos bens preservados (FONSECA, 2009, p. 67).

Patrimônio Cultural e Guaíra-PR

A Província do Guairá compreendia as terras ao sul do rio Paranapanema, estendia-se até a linha imaginária do Tratado de Tordesilhas, na fronteira leste, e se projetava para o sul até encontrar o rio Uruguai, tendo a oeste o limite do rio Paraná. Este espaço geográfico era cortado transversalmente por grandes rios, como o Iguaçu, o Piquiri, o Ivaí e o Tibagi, que tiveram grande importância para a penetração dos colonizadores e para a circulação de produtos coloniais. O Guairá constituía-se num ponto de confluência dos colonialismos espanhol e português. Representava uma zona de passagem do Atlântico para o Mato Grosso, Assunção e Peru e da capitania de São Vicente para as áreas contíguas do estuário do rio da Prata (GREGORY; SCHALLENBERGER, 2008, p. 72).

Antes de realizarmos uma discussão sobre os patrimônios culturais adotados pela

cidade, vamos a uma breve introdução histórica. Para tanto, utilizaremos o livro “Guaíra: um

mundo de águas e histórias”, de Valdir Gregory e Erneldo Schallenberger (2008). Os autores

começam o livro com uma discussão sobre a região do Guairá. Essa região foi povoada pelos

europeus quando eles buscavam um caminho para chegar aos Andes, e suas riquezas

minerais. Segundo os autores, a importância da região está relacionada a rede hidrográfica

platina. No início do livro, é mencionada a presença dos Guarani como “primitivos

habitantes” da região. Eram povos migrantes vindos da região amazônica e do litoral

atlântico.

Com a chegada dos europeus, houve o início de desconstrução da “territorialidade

Guarani”2, que passaram a dividir e demarcar os territórios. Segundo Gregory e

Schallenberger (2008), “para dar suporte aos colonos do Guairá, fundaram-se vilas” (p. 63):

Ontiveros (1554), que depois foi transferida para a margem esquerda da foz do rio Piquiri

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(1557) e denominada Ciudade Real do Guairá; e Vila Rica do Espírito Santo, na foz do rio

Corumbataí com o Ivaí (1570) (GREGORY; SCHALLENBERGER, 2008, p. 63-64). As

cidades eram rodeadas por chácaras e fazendas, onde se cultivava alimentos, criavam-se

animais e se realizava o extrativismo, principalmente da erva-mate. Os povoamentos e

cidades da região, estabelecidos até começos do século XVII, se utilizavam majoritariamente

de mão-de-obra indígena. Outro aspecto destacado pelos autores são as incursões de

bandeirantes paulistas, destinadas para o apresamento de índios. “As bandeiras foram,

igualmente, grandes responsáveis pela desintegração do território Guarani” (GREGORY;

SCHALLENBERGER, 2008, p. 68).

As reduções jesuíticas são outro ponto destacado como importante na constituição

histórica da região. Segundo os autores, existiram 14 povoados missioneiros na região do

Guairá. Em 1610 foi estabelecido o primeiro povoado, denominado Nossa Senhora de Loreto,

e em 1611, o de Santo Ignácio. A partir desses, houve uma expansão das reduções. O ocaso

delas se deu devido aos constantes saques dos paulistas e a omissão e permissividade das

autoridades, que fez com que “a experiência reducional no Guairá fosse, progressivamente,

assolada e destruída” (GREGORY; SCHALLENBERGER, 2008, p. 91).

Outro momento importante para a região foi o contexto das obrages no século XIX.

“Estas, no século XIX e nos primeiros decênios do século XX, eram fazendas com

características próprias, tendo normalmente acesso aos rios, onde era costume criar uma infra-

estrutura de portos para os quais eram transportadas as riquezas extrativas” (GREGORY;

SCHALLENBERGER, 2008, p. 161). Era realizada a exploração da erva-mate e da madeira,

e a criação de gado, atividades que impulsionaram a economia da região.

Segundo Gregory e Schallenberger (2008), “em torno das obrages foi sendo

estruturado um ambiente de exploração, produção e comercialização extrativista para o

mercado platino” (p.169). A mão-de-obra utilizada nesse sistema “era, principalmente,

paraguaia de descendência indígena” (GREGORY; SCHALLENBERGER, 2008, p. 170).

A Companhia Mate Larangeira é, sem dúvida, um dos elementos mais importantes na

constituição da história de Guaíra. Sem nos determos muito na história dessa companhia em

específico, só interessa ressaltar que ela estava inserida no contexto das obrages, com a

função de elaboração e exportação da erva-mate.

Correa Filho informa que a Companhia Mate Larangeira possuía cerca de 2 milhões de hectares de terras no sul do Mato Grosso, onde estão localizados, hoje, em torno de vinte municípios, e explorou, também, áreas do território do Paraná. Esse tipo de atividade econômica contribuiu para criar uma mentalidade política existente até hoje nestas áreas. Segundo o autor, no período de 1872/1892, esta companhia pertencia a Thomaz Larangeira. De

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1892 a 1902, Thomaz Larangeira se associou aos Irmãos Murtinho. De 1902 até 1937, a Companhia passou para a Companhia Mendes (Argentina). O poder da Companhia despertou a ira de inimigos políticos, como por exemplo, de Pedro Celestino Correia da Costa. O próprio Getúlio Vargas combateu a Companhia Mate Laranjeira com seu nacionalismo, criando o Serviço de Navegação Nacional da Bacia do Prata, que encampou seu patrimônio. Em 1947, o governador do Paraná, Arnaldo Estevão Figueiredo, tirou a concessão dos ervais da Mate Larangeira (GREGORY; SCHALLENBERGER, 2008, p. 184).

Como exposto na citação acima, a atuação dessa companhia ia além do poder

econômico, gozando de um imenso poder político e privilégios. A Companhia inclusive

propunha “abrir portos pelo rio Paraná, abrir estradas internas, construir uma ferrovia de 50

quilômetros” (GREGORY; SCHALLENBERGER, 2008, p. 186). Os autores relatam também

a intensa exploração a que eram submetidos os trabalhadores nas obrages, inclusive na

Companhia Mate Larangeira. Não nos interessa discutir e apresentar as más condições e a

exploração a que eram submetidos esses trabalhadores, apenas ressaltamos esse aspecto da

colonização da Companhia Mate Larangeira, companhia essa que se constituiu em um dos

principais referenciais históricos da cidade de Guaíra.

Terminada a breve retomada histórica, em que procuramos apresentar os principais

aspectos da construção de Guaíra que se relacionam à escolha de seus patrimônios, vamos

agora à apresentação e análise destes. Nosso objeto de análise para tanto continua a ser o livro

de Gregory e Schallenberger (2008), que em sua terceira parte busca analisar a “Cultura e

Memória” de Guaíra, e as informações apresentadas pelo site oficial do município, na seção

de turismo. Na introdução da terceira parte da obra de Gregory e Schallenberger (2008), é

destacada a intenção de apresentar os “lugares de memória” da cidade, por um lado, e por

outro como isso também se relaciona a intenções de instituições públicas, empreendimentos

privados e lideranças em relação ao potencial turístico do local (p. 306). Destaca-se a

intenção de apresentar alguns marcos simbólicos estabelecidos em Guaíra.

Discutiremos, nesta parte do livro, algumas tentativas de construções de identidades e memórias sobre Guaíra. Nos últimos anos a assessoria de imprensa da Prefeitura Municipal de Guaíra elaborou um conjunto de informações em forma de notícias, que foram divulgadas e constam no site oficial do município (GREGORY; SCHALLENBERGER, 2008, p.308).

Estabeleceremos um diálogo entre o livro e o site do município e suas imagens, na

tentativa de compreender os “lugares de memória” escolhidos pela cidade. Embora temos

entendimento que são monumentos oficialmente escolhidos, e que não apresentaremos todos,

procuramos demonstrar como esses que escolhemos podem representar uma visão limitada da

história e dos conflitos que envolvem a construção de Guaíra. Assinala-se, ainda, o fim

turístico envolvido na escolha dos mesmos.

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O nosso primeiro ponto de discussão será o “Cruzeiro das Américas”, que “simboliza

a marca mais antiga do espanhol no Brasil”3. Símbolo da conquista religiosa, tanto a nível

político e econômico como a nível religioso e social.

Nas comemorações dos 500 anos do Descobrimento da América pela Espanha, no dia 12 de em outubro de 1992, foi construída uma grande cruz em Madeira de Lei, que está encravada nas rochas de uma pedreira localizada no Centro Náutico. Segundo historiadores, a cruz foi erguida tal qual o modelo que era utilizado por padres jesuítas em missas Guarany. Junto a ela existe um quadro entalhado em madeira que homenageia a passagem histórica4.

Outro símbolo é o “Cine Teatro Sete Quedas”, que funciona num prédio de 1905 da

Companhia Mate Larangeira. Há também destaque para a locomotiva n°4, monumento que se

relaciona historicamente a ferrovia Guaíra – Porto Mendes, construída em 1917 para o

transporte de erva-mate e madeiras.

A Igreja de Pedra é outro ponto relevante, construída em 1923, representando a

“religiosidade”. No site oficial do município, a Igreja é apresentada como “Santuário histórico

da fé guairense”5. “Parece que celebra os ícones da conquista espiritual e da conquista

material” (GREGORY; SCHALLENBERGER, 2008, p. 318). Há também o Museu Sete

Quedas, fundado em 1956. Atualmente o museu se localiza no prédio histórico onde

funcionou a sede da Companhia Mate Larangeira.

Os monumentos acima assinalados destacam a importância, para a cidade, de dois

momentos: a colonização espanhola e cristã e a Companhia Mate Larangeira, “a companhia

que fundou a cidade”6. Em relação a ocupação indígena, anterior à conquista espanhola,

encontramos menção apenas nos objetos do museu, um espaço que, infelizmente, ainda é

entendido como lugar de exposição de objetos exóticos e extintos, de um passado isolado.

Não há a integração e identificação dessa população com essa época da história de Guaíra,

faltando a inserção da população nessa construção do patrimônio. Além disso, após a

conquista espanhola, a participação indígena é mencionada como passiva. Não há o

entendimento da importância desses grupos na constituição da cidade, sua participação e

resistência nos momentos de conquista e catequização, e no posterior momento das obrages.

Retomando Fonseca (2009), os conflitos que envolvem a constituição desses

monumentos são apagados. Nos prédios históricos da Companhia Mate Laranjeira, há o seu

entendimento como apenas representantes dessa Companhia que fundou a cidade. Não se

encontram expostos e não há a identificação desses prédios com os agentes explorados nesse

processo, e com os conflitos que envolveram essa “fundação”.

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Em relação a Igreja e ao Cruzeiro das Américas, são os marcos evidentes da conquista

espiritual e material. Conquista, no entanto, que aparece como louvável. Não há, assim como

nos monumentos relacionados a Companhia Mate Larangeira, a menção dos conflitos e

sujeições que envolvem esse processo. São elementos de civilização, incutidos nesses

territórios e indivíduos passivos. É apagado do patrimônio sua dinâmica e seus conflitos.

Ação indígena em Guaíra-PR

Como pudemos perceber há uma visão restrita de patrimônio cultural no município

de Guaíra-PR. Essa perspectiva que elege e seleciona esses bens valoriza principalmente a

contribuição européia, da colonização espanhola e ação jesuítica na região, acarreta na

exclusão de outros bens patrimoniais tão dignos de valorização e que são atropelados por uma

ideologia de uma maioria étnica. Os bens patrimoniais de uma minoria, no caso de nosso

estudo, dos Guarani Nhandeva não são contemplados como deveriam, já que também fazem

parte da história, da construção da memória e identidade desta região.

Entendemos esse contexto como resultado de uma situação de Fricção Interétnica,

portanto deve ser superada a idéia de que os indígenas são agentes passivos na relação com a

sociedade nacional, ou seja, a idéia de aculturação ou perda de cultura. Segundo Athias (2007)

a teoria de Fricção Interétnica, e decorrente disso, a de identidade étnica de Cardoso de

Oliveira, fazem parte de uma perspectiva de integração. Sendo assim, os povos indígenas,

“deverão integrar-se à sociedade nacional sem perder, contudo sua particularidade cultural e

étnica, tendo suficiente autonomia para dispor de sua própria organização política e cultural.

Em outros termos, são os próprios povos indígenas que decidirão o seu próprio destino” (p.

56).

Devemos retomar aquilo que já dissemos aqui, a cultura não é fixa e cristalizada, ela

é plástica, dinâmica e se transforma ao longo da história. Portanto, o fato da marginalização

do patrimônio indígena não quer dizer que estes são aculturados, o que acontece é uma

relação de trocas recíprocas entre indígenas e sociedade nacional, mas que está permeada não

apenas por aspectos culturais, mas também questões políticas. Em uma concepção sócio-

antropológica entendemos

a la política como una actividad humana, una práctica, orientada a La producción de unidades y divisiones sociales, de relaciones de identificación y diferencia, de lazos de proximidad y distancia, que se despliega en espacios e tiempos concretos. El ejercicio de esta práctica conlleva la pugna, la competencia desigual por el control de recursos de diversa índole que, mediante su manipulación y exposición públicas, son capaces de producir

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y/o reproducir , jerarquías sociales, crear distinciones y visiones de la realidad (WILDE, 2009, p.39).

Guillermo Wilde faz uma ótima análise das missões e do período pós-jesuítico

enfatizando acima de tudo a atuação indígena como um sujeito ativo, ação que ele denomina

de agencia indígena. Sua hipótese é de que “los líderes indígenas y sus seguidores fueron la

base de la organización política misional y el fundamento de su continuidad y dinamismo”

(WILDE,2009, p.23). Ele é crítico à historiografia clássica sobre as missões e os Guarani, e

mais ainda aos escritos dos missionários. Os jesuítas foram inventores de uma história ao

omitir parte do que realmente ocorria dentro das reduções, como feitiçaria e poligamia, a

favor de uma ordem moral e cristã. Ele também coloca duas importantes posições em seu

trabalho: primeiro que as reduções não eram um sistema político a favor da proteção indígena

e segundo que os Guarani não se submeteram passivamente à tutela dos jesuítas. Para ele é

necessário dar atenção a atuação indígena. A partir de uma análise pautada em uma

Antropologia Histórica é necessário conhecer as dinâmicas locais, as concepções nativas de

especialidade, temporalidade e memória. É preciso também alteridade com o tempo, ou seja, a

difícil tarefa de buscar compreender uma forma de pensar em um tempo passado.

Portanto a ação indígena (agencia indígena) compreendida como ação política e que

resulta em transformações culturais, reafirmação de tradições, cultura e identidade, expressa

formas singulares de ser desses povos, como podemos perceber com a noção de etnogênese

missionária, que segundo Wilde (2009) se refere a atuação indígena nas missões, onde os

Guarani através de uma racionalidade construíram singularidades, dinâmicas de tempo e

espaço a partir da tradição e o contexto no qual se encontravam. Os indígenas, assim como

qualquer outro grupo social, possuem identidades plurais, e não podem ser visto simples e

unicamente de forma genérica.

No município de Guaíra-PR fomos testemunhas dessa ação. Os indígenas Guarani

Nhandeva moradores da TI Tekoha Porã buscaram uma parceria com a Universidade Estadual

de Maringá para realizarem o registro de alguns de seus patrimônios culturais. Mais

especificamente a proposta que está em andamento é realizar a gravação de CD e DVD com

cantos e danças Guarani e o registro de narrativas dos moradores da comunidade em um livro.

Entendemos essa ação política como uma estratégia indígena para transmitir às crianças da

aldeia os traços tradicionais da cultura Guarani Nhandeva, sobretudo, o que foi eleito por eles

como seu patrimônio. Os moradores da aldeia estão em intenso contato com a sociedade

nacional, a maioria dos homens são trabalhadores assalariados e as crianças frequentam a

escola fora da aldeia regularmente. Dessa forma a transmissão dos conhecimentos tradicionais

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para estas crianças concorre em desvantagem com outros saberes disponíveis. Sendo assim, a

estratégia estaria na utilização de recursos audiovisual e tecnológicos para facilitar essa

transmissão de conhecimentos tradicionais.

Mas também não restringimos nossa compreensão dessa ação apenas dentro da aldeia

e voltada para as crianças. Pelo fato do intenso contato e do preconceito existente da

sociedade nacional, essa população Guarani Nhandeva tem a sua identidade indígena

questionada a todo momento. O estereótipo de índio que impera no senso comum não condiz

com a realidade desse indivíduos, o que acarreta na estigmatização de que estes não são

índios, ou seja, é a velha idéia de aculturação que ecoa no pensamento social. Portanto o

registro desses bens patrimoniais também é um artifício que, por contraste, busca mostrar à

sociedade ao redor a sua identidade étnica Guarani.

Considerações Finais

Conforme apresentado no texto, a construção da identidade em Guaíra-PR, através da

análise patrimônios culturais eleitos, se configurou enfatizando alguns elementos em

detrimento de outros. Embora atualmente a discussão em torno do patrimônio cultural

enfatize a diversidade e a dinâmica presentes em tais elementos, na prática se verifica ainda a

exclusão de grupos, e a valorização de monumentos estáticos, desprovidos muitas vezes de

um significado profundo. Foi a atitude presenciada na cidade de Guaíra-PR, através da análise

dos monumentos tidos como importantes.

Por outro lado, verificamos a atitude dos grupos excluídos frente a essa situação. Isso

evidencia que, embora marginalizados, esses grupos não sofrem a dita “aculturação” e não

estão prestes a desaparecer. A discussão em torno do patrimônio cultural evidencia-se como

importante, portanto, num processo de valorização dos grupos marginalizados.

                                                            1 As imagens utilizadas podem ser acessadas no portal de turismo do site oficial da cidade. Disponível em: <http://www.guaira.pr.gov.br/turismo/> acesso em: 02/04/2011. Todos os monumentos apresentados ao longo do texto podem ser vistos no site, com exceção da locomotiva n°4 da Companhia Mate Larangeira. 2 O território simbólico Guarani está relacionado à sua vivência e a sua ocupação histórica. Não é um território demarcado/formal, constituído por limites precisos. 3 Disponível em: <http://www.guaira.pr.gov.br/turismo/index.php?option=com_content&view=article&id=99&Itemid=190> acesso em 02/04/2011. 4 Disponível em: <http://www.guaira.pr.gov.br/turismo/index.php?option=com_content&view=article&id=99&Itemid=190> acesso em 02/04/2011. 5 Disponível em:

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                                                                                                                                                                                          <http://www.guaira.pr.gov.br/turismo/index.php?option=com_content&view=article&id=100&Itemid=191> acesso em 02/04/2011. 6 Disponível em: <http://www.guaira.pr.gov.br/turismo/index.php?option=com_content&view=article&id=94&Itemid=176> acesso em 02/04/2011. Bibliografia ARAÚJO, Marivânia C. Considerações sobre o conceito de identidade social. In: Cadernos de Metodologia e Técnica de Pesquisa (UEM). v. 8, 1997, p. 191-218.

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