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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL (CPDOC) Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação. A citação deve ser textual, com indicação de fonte conforme abaixo. LARAIA, Roque de Barros. Roque de Barros Laraia (depoimento, 2008). Rio de Janeiro CPDOC/FGV; LAU/IFCS/UFRJ; ISCTE/IUL,, 2010. 22 p. ROQUE DE BARROS LARAIA (depoimento, 2008) Rio de Janeiro 2010

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Entrevista antropólogo

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  • FUNDAO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAO DE

    HISTRIA CONTEMPORNEA DO BRASIL (CPDOC)

    Proibida a publicao no todo ou em parte; permitida a citao. A citao deve ser textual, com indicao de fonte conforme abaixo.

    LARAIA, Roque de Barros. Roque de Barros Laraia (depoimento, 2008). Rio de Janeiro CPDOC/FGV; LAU/IFCS/UFRJ; ISCTE/IUL,, 2010. 22 p.

    ROQUE DE BARROS LARAIA (depoimento, 2008)

    Rio de Janeiro

    2010

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    Nome do entrevistado: Roque de Barros Laraia

    Local da entrevista: Hotel Glria/Caxambu, Minas Gerais

    Data da entrevista: 28 de outubro de 2008

    Nome do projeto: Cientistas Sociais de Pases de Lngua Portuguesa (CSPLP):

    Histrias de Vida

    Entrevistadores: Celso Castro e Karina Kuschnir

    Cmera: Arbel Griner

    Transcrio: Maria Izabel Cruz Bitar

    Data da transcrio: 23 de novembro de 2008

    Conferncia de fidelidade: Juliana Athayde Silva de Morais

    Data da conferncia: 07 de janeiro de 2009 ** O texto abaixo reproduz na ntegra a entrevista concedida por Roque de Barros Laraia em 28/10/2008. As partes destacadas em vermelho correspondem aos trechos excludos da edio disponibilizada no portal CPDOC. A consulta gravao integral da entrevista pode ser feita na sala de consulta do CPDOC.

    Celso Castro Roque, ns vimos j vrias entrevistas com voc e queramos no repeti-las muito nessa entrevista de hoje. Voc j falou vrias vezes de o seu interesse por Antropologia ter surgido mais ou menos por acaso, porque voc tinha feito Histria na graduao, mas eu no vi, nas entrevistas, a explicao sobre por que voc foi fazer Histria, e eu talvez quisesse comear assim, um pouco as suas origens familiares e por que o interesse. Pela sua famlia e o interesse de fazer Histria. Roque Laraia Eu nasci em Pouso Alegre, bem prximo aqui de Caxambu ns estamos a 100 quilmetros de Pouso Alegre , e quando eu estava completando o cientfico, eu tive que ir para So Paulo para terminar o cientfico porque o colgio em Pouso Alegre oferecia s as duas primeiras sries e no a terceira. E quando eu fui para So Paulo, eu sa de Pouso Alegre com essa idia de que eu ia fazer Engenharia. Na minha famlia, eu sou a primeira pessoa que chego universidade. O meu av era um imigrante italiano que veio para o Brasil no final da dcada de 80 do sculo XIX, eu acho que praticamente no ano da abolio da escravatura. E no Brasil, ele era sapateiro, e meu pai foi viajante comercial, ento, ningum tinha cursado alm do... O meu pai mesmo s tinha o primeiro grau. E a nica possibilidade que eu via de estudar era trabalhando e estudando ao mesmo tempo, ento, So Paulo era o lugar mais atraente, porque era... Pouso Alegre dista 180 quilmetros da capital de So Paulo. E eu fui para So Paulo, ento, para terminar o cientfico. E naquele momento, eu acreditava que ia fazer Engenharia. Eu no sei bem explicar por que da Engenharia, porque na adolescncia eu pensei muitas outras possibilidades. E quando eu cheguei em So Paulo, eu tinha que trabalhar, ento, um emprego que surgiu para mim foi trabalhar em um jornal como reprter. C.C. Qual era o jornal?

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    R.L. Era um jornal bem sensacionalista chamado A Hora, que era um jornal tablide. Era A Hora e O Esporte. Um fazia mais coberturas de crimes e, o outro, de futebol. E, com isso, eu terminei o segundo grau. Mas o jornal era uma coisa muito envolvente. Naquela poca, no havia essa exigncia que voc tivesse feito Jornalismo para ser reprter; era uma coisa muito mais de experincia. O meu amigo que me orientou para fazer a seleo no jornal disse: Eles vo fazer duas perguntas. Primeiro, se voc conhece a cidade de So Paulo, e eu tinha... Antes disso, eu tinha arrumado um emprego que era em um laboratrio chamado Novoterpica, e eu cobrava as farmcias que no pagavam. Eu levava as duplicatas para fazer a... E, com isso, eu conhecia toda a cidade de So Paulo, que naquela poca no era a cidade de So Paulo de hoje ela estava muito mais limitada pelos rios Tiet e Pinheiros. Tinha muito pouca coisa alm disso. Ento, eu conhecia a cidade. E me perguntaram: Voc trabalhou em jornal?. A resposta era para dizer sim. Todo mundo sabia que no era verdade, mas fazia parte do ritual, e eu tinha trabalhado no... Trabalhado no, eu tinha feito um jornal dentro do colgio, l em Pouso Alegre, ento... E eles davam um ms de prazo para voc mostrar a sua capacidade. Ento, eu comecei como reprter policial. C.C. Policial? R.L. , reprter policial. Porque o jornal... Era o forte do jornal. Ele fazia outras coisas... C.C. Mas voc ia s ruas fazer matrias? R.L. No, no. A gente ficava na redao aguardando um chamado qualquer que vinha da Central de Polcia. Acontecia um crime em tal lugar, a gente ia para l. C.C. Olha! R.L. E depois voc escrevia, fazia a reportagem toda, e isso ia para a redao do jornal, que podia fazer at uma edio diferente do que voc escreveu. Karina Kuschnir Isso no final dos anos 50? R.L. Isso ... K.K. Em meados? C.C. No incio. R.L. Isso no comeo de 50. Eu cheguei em So Paulo em 1950. Eu estava fazendo dezoito anos nessa poca. C.C. Mas a, quando voc completou... Voc no pensou em continuar no jornalismo nessa poca? R.L. No. Eu continuava sempre com a idia que eu ia fazer Engenharia. Eu me inscrevi no vestibular, e realmente eu no passava, porque eu estudava muito pouco. A,

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    cheguei concluso que, se eu ficasse em So Paulo, eu no largaria o jornal porque era uma atividade muito envolvente, eu tinha amigos l. E, com isto, eu cheguei concluso que o melhor seria mudar para Belo Horizonte para comear uma vida nova, e a eu fiz concurso para o IAPI que era o Instituto de Aposentadoria e Penso dos Industririos. Depois da revoluo, foi tudo fundido em INSS, mas naquela poca cada categoria tinha um instituto, e o IAPI era um dos maiores institutos perdia para o IAPC, que era dos comercirios. E isso possibilitaria eu estudar de manh e trabalhar tarde, porque o horrio do IAPI e dos institutos naquele tempo era de meio-dia s seis. Era um horrio corrido, especial. E, com isso, eu consegui uma transferncia para Belo Horizonte. A, tentei mais uma vez Engenharia. E nada, no ? Porque eu realmente no tinha nenhum prazer em estudar as coisas de Engenharia. E um dia, em um bar, eu lembro bem disso, eu conheci um psiquiatra era uma pessoa que fazia umas experincias l em Belo Horizonte, assim, curar verruga por hipnotismo e essas coisas todas e bebendo junto com ele, ele falou... Eu comentei o fato que eu no tinha interesse em estudar e ele falou: porque voc est estudando errado. A escolha errada. Olha o que voc l, quais so os livros que voc compra, ou coisa desse tipo. A eu descobri que toda vez que eu entrava em uma livraria eu comprava um livro de Histria: Histria do Brasil, Histria... No era Engenharia que eu lia. A eu resolvi fazer vestibular para Histria. Em um prazo muito curto, me preparei e passei, e entrei ento na Universidade Federal de Minas Gerais, no curso de Histria. Agora, no curso de Histria tinha a disciplina chamada Antropologia, que na poca eu nem sabia bem o que era. Era Antropologia Fsica no primeiro ano, Antropologia Cultural no segundo e Etnologia do Brasil no terceiro. C.C. Era trs anos, o curso? R.L. O curso era de trs anos. Depois tinha um ano a mais, de didtica. Mas gente recebia o ttulo de bacharel no terceiro ano, e de licenciado no quarto ano. E, com isso, eu comecei a me interessar um pouco por Antropologia, embora e eu j falei isso vrias vezes o professor de Antropologia fosse muito ruim. Ele era mdico dermatologista, e as pessoas diziam: Como dermatlogo, um bom antroplogo e como antroplogo um bom dermatlogo. Mas eu fiquei meio fascinado com a disciplina o primeiro livro que eu li de Antropologia mesmo foi O homem, de Ralph Linton, que talvez fosse o nico livro existente em portugus, no ? C.C. Sobre o curso de Histria ainda, voc gostou do curso de Histria, tirando essa disciplina de Antropologia? R.L. No, gostei. Eu gostava do curso de Histria. Na verdade, eu gosto tanto de Antropologia e, naquele momento, eu no pensava em fazer Antropologia porque... E tambm no via muita perspectiva para Antropologia no Brasil naquela poca. At o final do curso de Histria, o meu projeto era me tornar professor de Histria. No ltimo ano, no terceiro ano, eu recebi um convite para, no ano seguinte, eu ser auxiliar de ensino de Etnologia Indgena e Lngua Tupi. A disciplina era essa: Etnologia Indgena e Lngua Tupi. C.C. L em Minas mesmo?

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    R.L. Em Minas. Mas acontece que nas frias, depois que eu terminei o terceiro ano, eu vi, no corredor da faculdade, um anncio de um curso de Teoria e Pesquisa em Antropologia Social no Museu Nacional. A, cheguei concluso que havia, sim, uma possibilidade de fazer Antropologia e me inscrevi naquele concurso. Ofereciam seis vagas com bolsa e... C.C. Sempre saindo de Minas. R.L. A, sa de Minas. C.C. Pelo visto, voc no tinha vontade de ficar em Minas. R.L. No... Na verdade, o seguinte: em cada lugar que eu morei, eu gostei tanto que sempre... Em So Paulo, eu achava que eu tinha escolhido a cidade que eu ia viver sempre, e depois, fui para Belo Horizonte e tambm pensava nisso, mas sempre, quando surgia uma oportunidade, eu saa. A eu fui para o Rio. Eu fiz a seleo no Museu Nacional com o Roberto Cardoso de Oliveira e fiz parte da primeira turma do curso, que era: eu, o Roberto DaMatta, a Alcinda Ramos e mais trs, o Edson Diniz, a Hortncia Caminha e a Odlia Benvenucci. K.K. E o IAPI? Foi uma deciso tranqila? R.L. No, nesse momento, eu consegui uma licena sem remunerao no IAPI e fui fazer o curso. O curso era de durao de um ano. No final de um ano, o Museu, que h quatorze ou quinze anos no contratava ningum, resolveu contratar ento no s na Antropologia, mas na Biologia, na Botnica e na Geologia , contratar novos pesquisadores. E a deciso foi que os trs primeiros colocados no curso seriam colocados. Ento, eu no fiz um concurso para entrar no Museu; o curso foi considerado um concurso. C.C. Quem era, na poca, o...? Havia o Departamento de Antropologia j? R.L. J. C.C. Quem eram as pessoas? R.L. O Departamento de Antropologia... Na verdade, era assim: o Departamento era dividido em divises, e o Departamento era dirigido pelo Castro Faria, que era um antroplogo, vamos dizer, generalista ainda, porque ele sabia tanto Antropologia Cultural quanto Antropologia Fsica e Arqueologia. E havia as divises, que eram: Antropologia Cultural, que o Roberto Cardoso que dirigia, a Lingstica, que era o Mattoso Cmara, e Antropologia Fsica, que era a Marlia Carvalho que dirigia. Agora, na Antropologia Cultural, na verdade, s tinha o Roberto Cardoso. C.C. Voc disse em uma entrevista que, naquela poca, Antropologia era Etnologia. R.L. .

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    C.C. Na verdade, o antroplogo estudava ndio basicamente. R.L. . Naquela poca, praticamente todo mundo estudava ndio. Muito pouca gente... Eu tiraria Ren Ribeiro, que j fazia pesquisa com negro em Recife; Thales de Azevedo, na Bahia, que tambm trabalhava com a cultura, mas noventa por cento trabalhava diretamente com ndio. K.K. E essa distino, Antropologia Cultural e Antropologia Social, que voc menciona? R.L. , isso... Porque o Roberto Cardoso, na verdade, ele foi um elo de transio entre duas fases da Antropologia brasileira, que uma fase de autodidatas, e talvez o ltimo autodidata... meio surpreendente quando a gente fala isso, mas o ltimo autodidata foi o Darcy Ribeiro, porque no fundo ele s fez uma graduao em Sociologia e Antropologia, no fez nenhuma ps-graduao. E o Roberto, que fez a graduao de Filosofia na USP... C.C. Acho que foi estagirio do Darcy. R.L. Exato. E em 53, o Darcy foi fazer uma palestra em So Paulo, eu no sei exatamente como eles se comunicaram, mas ele gostou do Roberto e convidou o Roberto para ser assistente dele em um curso de especializao em Antropologia que ele oferecia no Museu do ndio, na Seo de Estudos do Servio de Proteo aos ndios. Agora, o Roberto j tinha uma experincia com... Como ele fez o curso de Filosofia, no ltimo ano do curso de Filosofia ele tinha que fazer uma especializao. aquela histria, a Filosofia tudo, mas no tem contedo, e precisa voc ter se especializado em alguma coisa, e ele escolheu Sociologia para fazer essa especializao. E Sociologia era o Florestan Fernandes. E o Florestan Fernandes, naquele tempo, embora fosse socilogo, ele estava muito mais envolvido com ndios Tupinamb, com a Etnologia do que com outra coisa. Ento ele tinha uma noo j de Etnologia. E nesse momento o Darcy estava montando a Grande Exposio na Oca, no novo parque do Ibirapuera, que inaugura o Ibirapuera, em 54, e o Roberto colaborou com ele. Ento, o Roberto foi para o Rio e, depois, para o Museu Nacional. K.K. Voc estava comeando a explicar a diferena, quela altura, da Antropologia Cultural e Social. R.L. Ah, desculpe. Acontece o seguinte, o que o Roberto lia, enquanto todos os antroplogos brasileiros, o Darcy e todos os antroplogos brasileiros seguiam uma tendncia culturalista americana era uma forte influncia da Antropologia americana que era a Antropologia definida como Cultural, o Roberto comeou a ler muito mais Radcliffe-Brown e todos os ingleses, que falavam em Antropologia Social. Ento, ele comeou a usar esse termo, Antropologia Social. O Darcy falava: Isso no Antropologia, isso Sociologia. E foi da que surgiu. E Antropologia Social, a gente entendia Antropologia Social porque os ingleses estavam muito mais interessados em organizao social e nos parentescos do que os americanos e a Antropologia Cultural, que dava muita nfase cultura material e outras coisas desse tipo.

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    C.C. Voc estava no Museu Nacional j contratado quando teve o golpe de 64. R.L. Foi. C.C. A impresso que se tem que a Antropologia foi mais preservada do que outras disciplinas. R.L. Ah, sim. C.C. Do ponto de vista poltico, como que voc viveu esse perodo, voc lembra? R.L. Lembro. Sabe, um perodo... Os anos 60, eu passei muito tempo no campo fazendo pesquisa. E naquele tempo, ir para o campo era um isolamento total: voc no tinha telefones como tem hoje, por satlite, e at rdio era difcil. Voc tinha que levar um rdio imenso e uma quantidade de pilhas to grande que... E chegava um tempo que as pilhas acabavam, ento, voc ficava muito sem notcias. Por exemplo, o Jnio Quadros renunciou no dia 25 de agosto e eu fiquei sabendo no dia 8 de setembro que o pas no tinha mais... que o presidente era outro, e coisas desse tipo, no ? Ento, nesse perodo de 64, eu passei tambm um perodo no campo. E o importante o seguinte... A sensao que a gente tinha que... Os militares, na revoluo, eles consideraram a Antropologia uma coisa como Paleontologia, Arqueologia, uma coisa que mexia com o passado e no com o presente. Tanto que outras reas foram atingidas pesadamente: a Sociologia foi muito atingida, a Histria quase que acabou praticamente. Em Antropologia mesmo... Quer dizer, o nico antroplogo que foi cassado era o Darcy Ribeiro. E no foi porque era antroplogo. Ele era chefe da Casa Civil do Joo Goulart. E, com isso, em 68, quando o Roberto abre o curso de mestrado em Antropologia Social no Rio de Janeiro, havia todo um grupo de estudantes que queriam ser socilogos, e que no podiam ser socilogos porque no havia a ps-graduao, que foram para o Museu Nacional. Eu estou falando de Lygia Sigaud, Otvio Velho... Acabaram se transformando em antroplogos, mas o projeto era serem socilogos. Eu acho que s uma, a Alice Abreu, que entrou nessa leva e que persistiu em ser sociloga e foi fazer doutorado em Sociologia na Inglaterra. C.C. E como foi a chegada do programa? Quer dizer, havia o Departamento de Antropologia, mas no havia um programa de ps-graduao. O que isso influenciou dentro do Museu? R.L. Bom, havia uma... Isso era... Desde o curso de Teoria, que era um curso de especializao, em 1960, 61 e 62, j havia um problema com os pesquisadores mais antigos do Museu. Porque o Museu estava congelado no tempo: todos os pesquisadores, independente da diviso, chamavam-se naturalistas, todos usavam... A gente usava um avental branco, tem fotos dessa poca, como se fossem mdicos, os pesquisadores. A, de repente, os pesquisadores descobriram que a nossa bolsa era equivalente ao salrio deles, e a j comearam a no gostar disso. E no final do ano, quando eu, o Roberto DaMatta e a Alcinda, que devia ter sido contratada mas no foi porque descobriram que ela no era brasileira, era portuguesa, e ela no pde assumir, porque era um cargo pblico, embora ela tenha vindo jovem ainda, bem criana para o Brasil... A houve uma grande... Bom, o Museu Nacional foi incorporado Universidade do Brasil. Porque at

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    ento e eu tenho at uma carteira de identidade o Museu Nacional era um rgo autnomo do Ministrio da Educao e Cultura. No final de 60 e comeo de 61, ele foi incorporado Universidade do Brasil, que hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro, e a o salrio triplicou. Ento, houve um descontentamento, porque ns passamos a ganhar tanto quanto os velhos. Porque no havia diferenciao de tempo. Eles achavam um absurdo... Ns achvamos que eles deviam at ganhar mais, mas ns no queramos ganhar menos tambm. Ento, era como se fosse uma renovao no quadro do Museu, que comeou com aquele grupo de botnicos. C.C. Esse curso tem quase 50 anos, no ? Ele completa 50 anos o ano que vem. R.L. . K.K. Antes de voc fazer essa pergunta, Celso, eu queria s voltar um instantinho, porque nesse perodo que voc mencionou, um tempo bastante grande no campo na dcada de 60, um pouco antes de a gente comear a entrevista, voc mencionou que o seu filho nasceu em 64. R.L. Sim. K.K. Como foi conciliar essa carreira, a ausncia e a constituio de uma famlia? R.L. Bom, eu casei no final de 63 e, praticamente, a nossa lua-de-mel foi no Xingu. Ento, o meu filho foi concebido no Xingu. E depois que ele nasceu... A minha esposa foi junto comigo, mas depois ela nunca mais foi para o campo, exatamente porque havia uma dificuldade, que era voc ir com uma criana pequena para uma aldeia indgena. Alis, a gente quase perdeu esse meu mais velho. Porque ela ficou grvida no Xingu, a gente no sabia que ela estava grvida, e ela... Naquele tempo, voc ia para o campo e voltava de l quase assim... com um aspecto de refugiado de campo de concentrao nazista, pelo problema de alimentao. Ela estava muito magra, ficou grvida, e ela desmaiou um dia provavelmente, era j sinal da gravidez e achava que era outra coisa, malria e essas coisas, e quando ela chegou no Rio, ela estava na eminncia de perder a criana. Ento, com isso, eu acho que ela nunca mais se interessou em ir. E quando a minha filha nasceu, em 67, eu estava no campo e demorei vinte dias para saber que ela tinha nascido. At hoje ela no me perdoa por esta ausncia, de no estar l no momento em que ela nasceu. Mas em um aniversrio dela, eu copiei o dirio do dia que ela nasceu e dei para ela, para ela ficar sabendo o que eu estava fazendo. O Roberto DaMatta tambm tinha essa situao. O Roberto DaMatta tambm ia para o campo com a mulher. Eu acho que a Celeste gostou mais do campo, porque eles foram vrias vezes depois. C.C. Os seus dirios de campo, voc nunca pensou em publicar? R.L. Sabe de uma coisa, eu sempre fui contra publicar dirio de campo. Quando o Marco Antnio publicou o dirio de campo do Eduardo Galvo, eu acho que... Eu gosto muito do Marco Antonio, ele prestou um servio em publicar, mas o Galvo no teria gostado. E o Galvo no teria gostado pelo seguinte, porque... Quando o Darcy publicou o seu dirio de campo... O Darcy tinha uma secretria que chamava Berta Ribeiro e,

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    quando ele chegava do campo, ela datilografava tudo e, no momento que ela datilografava tudo, ela editava tambm. Ento, ela corrigia os erros... Porque voc escreve o dirio de campo aqui , literalmente, em cima das coxas e escrevendo da maneira mais econmica e no se preocupando muito com gramtica. Voc est muito mais preocupado em preservar a memria do que voc est vendo. E, alm disso, o antroplogo... Embora todas as vezes que eu fui para o campo e todos os antroplogos do Museu Nacional que iam para o campo saa uma portaria da expedio tal. Quando voc fala em expedio, voc imagina um safri ou qualquer coisa desse tipo, mas a expedio era um homem s. Ento, voc passa, no perodo de campo, por um perodo muito grande de isolamento. como o Malinowski disse: voc no tem comunicao com o nativo. Voc est trabalhando cem por cento, porque voc no tem lazer. Porque mesmo quando voc entra em uma roda de conversa com os homens, eles esto falando sobre as coisas que eles gostam: caada, pescaria... Ento, no te interessa isso. Voc no consegue relaxar e voc se sente isolado. Voc est no meio de 40, 50, 60 pessoas, mas est sozinho. E sozinho mesmo, porque, na sua frente, como eles so polticos tambm, eles te tratam assim... para o Kamaiur, o irmo mais velho. Embora, naquela poca, muita gente era mais velha que eu, mas irmo mais velho era um ttulo que dava autoridade. Todos eles se diziam... Eles te tratavam como se fosse uma pessoa muito importante. Mas quando eu escutava as conversas deles, entre eles, eles sempre falavam o homem branco, o [caraba]. Ou seja, na verdade, voc nunca se integrava. Eu nunca acreditei nesses antroplogos que falam: No, eles me tratavam como um deles. Tratava como um deles, mas na retrica, na prtica, voc era o estranho. Entre os Assurini, at era pior, porque entre os Assurini eu era chamado, entre eles, o macaco, por causa da quantidade de plos, porque eles no tm. E eu caa e coisas assim. Ento, voc sempre se sente muito isolado, e quando voc se sente isolado, voc usa o dirio como interlocutor. como uma garota de quinze anos que est escrevendo o seu dirio. Ento, por isso, o dirio tem coisas ntimas, que no devem ser publicadas. No dirio do Galvo, ele falava mal de pessoas, e foi publicado com as pessoas vivas. C.C. No dirio de Malinowski tambm tinha... R.L. No dirio de Malinowski, no ? Tanto que eu comeo a... Na resenha que eu publiquei sobre o dirio do Eduardo Galvo, eu cito toda a polmica que foi o dirio do Malinowski. E eu sempre brincava, depois da histria do Malinowski, porque a mulher dele publicou o dirio depois que ele morreu, eu sempre brincava, fazendo uma pardia de Marx: Antroplogos do mundo, queimai os seus dirios. K.K. E, de alguma forma, a experincia como jornalista, voc acha que ela influenciou? Como que ela foi incorporada por voc? R.L. Eu acho que ela me desenvolveu uma capacidade etnogrfica. Porque quando voc ia... Porque, no fundo, eu tambm no fazia apenas reportagem policial, no ? De vez em quando, eu fazia tambm outras coisas, assim, coisas muito agradveis como, por exemplo, almoar com a Tnia Carrero porque ela estava fazendo um grande filme, porque faltava algum no jornal para fazer essa cobertura. Durante... Essa uma piada: durante um ms, quem fazia o horscopo entrou em frias e eu fiz, porque sabia todas as regras. Basta escrever coisa boa que todo mundo acredita. Coisas desse tipo, no ?

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    C.C. Isso verdade? Voc fez um ms de horscopo? R.L. Eu fiz um ms de horscopo. Mas acho que nunca... No est assinado. Ainda bem, no ? C.C. Da que veio o interesse por cosmologia amerndia? R.L. Eu acho que eu nunca consegui fazer essa relao, no [risos]. E o fato que isso desenvolve, primeiro, a capacidade de escrever, porque no jornal, voc chegava, voc sentava l e escrevia mquina no era computador, eu escrevia mquina o texto que ia ser publicado rapidamente no jornal, o tempo, tudo muito rpido , e a capacidade de observar as coisas. K.K. Voc tinha algum dolo nessa poca no jornalismo, na poca em que voc achava at que no ia conseguir largar o jornalismo? R.L. No. gozado, no ? Eu no... A gente tinha admirao por pessoas que, publicamente, no tinham visibilidade, porque as reportagens policiais nunca eram assinadas. K.K. No tem nenhuma reportagem sua assinada no A Hora? R.L. No. Eu tenho recortes, tenho fotos minhas, mas no... A gente no assinava. No jornal, s quem assinava eram os colunistas, e um dos colunistas do meu jornal era um cara meio maluco chamado Jnio Quadros, que j era maluco naquela poca. C.C. Agora, Roque, voc gostava de ir a campo? R.L. Ah, gostava. lgico que, quando voc estava no campo, tinha hora que voc pensava... O Roberto DaMatta, em uma reunio da ABA, em 92, em Belo Horizonte, ele narra, na palestra dele, um dilogo entre eu e ele em que eu perguntei: Voc gosta de caar? No. Voc gosta de pescar? No. Voc j foi escoteiro? No. Ento, que diabo que ns estamos fazendo aqui?!. Agora, no momento que eu estava l, eu gostava muito da experincia de voc conviver com outro povo e coisas desse tipo. E no tinha muito problema com [INAUDVEL]. O primeiro ano, ns fomos com um aparato incrvel, levando centenas de papis de filtro de gua. K.K. Com os Terena? R.L. No, quando a gente foi para... Quando eu fui para a Suru e o Matta foi para a Gavio. K.K. Ah, o primeiro trabalho isolado. Porque antes voc foi com o Roberto... R.L. , antes ns estvamos indo com o Roberto Cardoso, mas aquilo foi pesquisa urbana. Os ndios Terena que ns estudamos com o Roberto e que deu origem ao livro dele Urbanizao e Tribalismo, as pesquisas foram feitas na cidade de Campo Grande, Aquidauana. Havia um bairro da cidade ocupado pelos ndios.

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    C.C. Voc tirava fotos do campo naquela poca? R.L. Eu levava a mquina, tirava fotos, mas acontece o seguinte, na primeira pesquisa que eu fui, eu no levei em considerao a capacidade da umidade, do bolor e a maior parte dos filmes estragou. A partir de ento, eu comeava a usar uma caixa de isopor cheia de slica gel, para poder pr a mquina, o equipamento e o filme. Mas, na verdade, o seguinte, muito difcil voc fazer as duas coisas junto. Quando a pessoa faz Antropologia Visual, ele est dividido entre filmar e ver. Quando voc est filmando, voc tem um foco s, est olhando uma coisa s, est preocupado com o enquadramento, e as coisas esto acontecendo ao seu redor. Ento, eu usei muito pouco a fotografia. Eu usei muito pouco. K.K. Mas voc estava comentando que no seu primeiro campo, com os Suru, voc levou muito equipamento. Tinha uma estrutura muito grande para fazer essa pesquisa? R.L. No, equipamentos que eu digo, assim, preventivos para doena: voc teria que filtrar a gua, para no beber... Mas em pouco tempo a gente chegou concluso que isso era uma loucura, que tinha que beber a gua do rio mesmo, fazer as coisas todas e o que o melhor era quando voltar, curava a doena. E se voc ficar pensando em doena no campo, voc fica louco. Tivemos vrios casos de antroplogos americanos ou mesmo brasileiros que tiveram que fazer toda uma situao de resgate e tudo porque tinha uma crise de apendicite, que desapareceu no momento em que chegou na cidade. K.K. Era uma somatizao talvez? R.L. . No Museu, a gente usava um termo: ele estrambelhou. K.K. Estrambelhou? R.L. Estrambelhou, quando a pessoa perdia o controle dentro do campo. Porque teve gente que foi para o campo uma vez e nunca mais foi, nunca mais quis ir. C.C. Roque, como eu estava comentando, ano que vem completa 50 anos do curso de especializao que voc fez, e voc est narrando um grupo muito pequeno de antroplogos ainda que havia naquela poca. Dando um salto no tempo para hoje em dia, 50 anos depois, voc foi professor de Antropologia em vrias universidades, voc continua dando aula de Antropologia, foi presidente da ABA, o que que mantm, quer dizer, aquilo que voc comeou a estudar em 1960 e o que hoje se chama de Antropologia, sendo a mesma disciplina? Quer dizer, com todas as transformaes que teve. R .L. A primeira coisa que me chama a ateno que Antropologia no mais Etnologia Indgena, porque a gente era a maioria e hoje uma minoria muito pequena. Houve toda uma diversidade de temas. Eu acho que logo depois que ns comeamos a fazer Antropologia, o interesse foi se deslocando para a prpria sociedade. O prprio Roberto DaMatta, que tem uma trajetria exatamente igual minha at um certo ponto, de repente ele descobre que o que interessa mesmo a sociedade nacional. Tanto que,

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    se voc pegar a bibliografia dele, hoje muito mais sobre cultura brasileira e a sociedade nacional do que a sociedade indgena. Ento, houve um crescimento muito grande a partir daquela poca, e isso ficou bem patenteado em 74, quando o Slvio Coelho dos Santos, que a gente vai fazer uma homenagem a ele noite, ressuscitou praticamente a Associao Brasileira de Antropologia, organizando uma reunio em Florianpolis na expectativa que aparecessem 50 antroplogos, e apareceram 400. J era uma conseqncia dos primeiros programas de ps-graduao instalados no pas. Ento, houve uma mudana muito grande de tema. C.C. E isso no incomodava os etnlogos mais tradicionais, que achavam que isso...? R.L. Ah, bom, incomodava. Tanto que... nessa proposio que o Darcy passou a chamar o Roberto de socilogo. Ento, a gente sempre falava: Mas isso no Antropologia. Eu orientei um aluno que o trabalho de campo dele foi de sof, analisando uma novela da Globo. Ele passou meses gravando uma novela da Globo para poder fazer a anlise. Era uma novela chamada Partido Alto, que tinha um trem que corria para a Zona Norte e para a Zona Sul e mudava tudo: quando corria para a Zona Norte, todo mundo ficava pobre e para a Zona Sul, todo mundo ficava rico. Ento, ele foi analisando isso. E gravou no com DVD, gravou com gravador de udio s, porque era o que existia. Ento, para poder fazer a anlise, ele tinha que ouvir e lembrar das imagens. Agora, no final, ele estava desesperado, porque a novela no acabava nunca e ele no saa do sof, no ? Ento, a gente achava que era uma outra coisa que estava sendo feita. Mas tambm, com esse papel duplo que a gente tem, de ser ao mesmo tempo pesquisador e professor, a gente tambm vai entrando nos projetos dos alunos, ento, eu acho que com isso amenizou esse estranhamento com um novo tipo de fazer Antropologia. C.C. No caso dos etnlogos, tinha tambm, tradicionalmente, um papel duplo, no de professor, mas de se envolver com poltica indianista nessas instituies, no ? R.L. . C.C. Voc j falou com bastante detalhe sobre a sua experincia na Funai em outras entrevistas, mas como essa mudana do papel do antroplogo para o da pessoa que lida com o indianismo? R.L. Eu acho o seguinte, quando a gente foi para o campo fazer as primeiras pesquisas com ndio, a gente queria escrever um livro como o Malinowski: uma monografia no estilo da... do jeito daquela imprensa que ns tnhamos da Antropologia Social inglesa, a gente criar uma monografia no estilo do Malinowski, que um grupo isolado, vivendo totalmente diferente da sociedade envolvente. E quando ns chegamos l, a situao era outra. Eu chego na aldeia Suru um ano depois do contato e encontro um grupo em estado de choque, porque um ano antes eles tinham 126 pessoas isso eu reconstitui pela genealogia e na primeira gripe, 86 morreram, na primeira semana. C.C. Ficaram quarenta.

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    R.L. A, ficaram quarenta. Ento, voc imagina uma sociedade humana que, em uma semana, perde dois teros da populao. Ento, para eles o mundo tinha desabado realmente. Ento, eu no podia ficar escrevendo s como eram os Suru, e da surgiu essa idia de fazer uma Antropologia poltica, de denncia e coisas desse tipo. C.C. O Darcy tem uma frase, em uma entrevista que ele deu e que, se no me engano, saiu publicada na Civilizao Brasileira, em que ele falava que tentar fazer um estudo sobre a sociedade tradicional indgena, na situao que elas estavam na poca, era como tentar fazer um estudo sobre a sociedade alem... R.L. Em um bombardeio. C.C. ...s vsperas do final da Segunda Guerra Mundial. R.L. Exato. C.C. O Darcy tinha essas frases de efeito, mas o que voc est narrando se parece com isso. R.L. exatamente isso. Nenhum antroplogo conseguiu fazer uma monografia... Nenhum antroplogo brasileiro conseguiu fazer uma monografia como os ingleses fizeram. Mesmo porque eles trabalharam com povos isolados. Se voc pensa o Malinowski, o Malinowski deve Primeira Guerra Mundial o fato de ele ter feito uma grande monografia, porque como ele era polons e estava na Austrlia, que fazia parte do Reino Unido, ele foi confinado nas ilhas Trobriand e teve que ficar l durante toda a guerra praticamente. C.C. , mas lendo... Eu j li com ateno Os argonautas inteiro e, em vrias passagens, o Malinowski... Voc vislumbra a histria por trs daquela descrio de cultura. R.L. inglesa, no ? C.C. H momentos em que ele fala: Ah, esse ritual, j no se faz h alguns anos, embora ele descreva. H algumas passagens onde... brechas onde se v essa histria, embora o modelo fosse de uma descrio sincrnica e presente. Com a tua formao de historiador, isso no ficava, vamos dizer, mais evidente, perceber a transformao? Ou o que voc estudou de histria no tinha a ver com essa sua prtica antropolgica? R.L. No, o que a gente estudava de histria... Naquela poca, o que a gente estudava de histria era o documento, que voc tem que fazer a anlise dos documentos todos. E quando a gente vai para o campo, a gente comea a se defrontar com uma coisa nova, que uma histria oral, ou seja, com uma etnoistria, que nenhum antroplogo brasileiro... Isso uma coisa que eu sempre critiquei, porque toda vez, no Brasil, que se fala em etnoistria, eles esto fazendo uma histria do ndio atravs da historiografia brasileira, atravs de documentao. No sentido da ethnoscience americana, a etnoistria seria a histria que o ndio conta, no ? No a histria que foi registrada a respeito daquele grupo. Isso a gente tentava fazer, buscar... Eu consegui reconstruir,

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    pelo menos, a histria do grupo em que eu trabalhei em um perodo de duas geraes. O que aconteceu tambm que, os 126 que morreram, os mais velhos morreram. K.K. Os 80 que morreram. R.L. Os 80 que morreram. Ficou uma populao muito jovem. E essa populao muito jovem perdeu uma parte considervel da tradio da histria oral, da tradio oral que eles tinham. Mas, de qualquer forma, eles saram da regio onde hoje a Serra dos Carajs, l onde est a Vale do Rio Doce, perseguidos pelos Kaiap, que ainda esto l, e foram fugindo at o sudeste do Par e se localizaram ali na regio prxima a Marab, exatamente onde ocorreu a guerrilha de 73. E voc no tinha os fragmentos dessa histria. Era... Mais longe a gente ficava do tempo do mito, da mitologia, porque hoje no se pode falar mito. Porque uma das coisas que eu estou lendo agora tambm na antropologia que voc tem um expurgo das palavras tradicionais. A anlise de uma tribo primitiva: voc no pode falar nem tribo nem primitiva. No pode mais falar em mito, vai ter que ser a narrativa. C.C. Voc mencionou que, na poca que voc fez o curso de especializao, que talvez o nico livro publicado no Brasil e traduzido para o portugus fosse o do Linton. Se voc tivesse que destacar um livro de Antropologia que mais o marcou, ou de Antropologia ou de qualquer outra rea, qual o livro que voc destacaria? R.L. Eu acho que quando ns comeamos a fazer Antropologia teve todo um impacto do estruturalismo e comeamos a ler logo o Lvi-Strauss, O pensamento selvagem, O totemismo e, no meu caso, que estava muito interessado em parentesco, o Estruturas elementares do parentesco. Mas a monografia sempre foi Os argonautas do Pacfico ocidental. Eu nunca tinha pensado em escolher um livro. Eu fiquei com o Ralph Linton mesmo porque foi o meu comeo. C.C. E mudando, mas falando de livro, como a experincia de ser o autor do grande best-seller da Antropologia brasileira, que foi o livro Cultura, da Zahar. o que mais vende na rea de cincias sociais da Zahar. Eu no sei em que edio est. K.K. o livro de Antropologia que mais vende no Brasil, no ? R.L. . O que acontece o seguinte: em 77, eu fiz um ps-doutorado na Inglaterra, e quando eu voltei... Eu sempre gostei de dar aula de Introduo Antropologia. Eu acho que o nosso Programa de Antropologia na Universidade de Braslia hoje um programa sete e tudo porque a gente formou bons alunos tambm na graduao. E a gente tinha discutido, eu e o Melatti, que Introduo Antropologia a disciplina mais importante do curso de graduao, porque onde voc... Em um curso de Cincias Sociais, voc est competindo com Sociologia e Poltica. Se a Introduo Antropologia no for melhor que a Introduo Sociologia e a Introduo Cincia Poltica, a gente perde o aluno para essas outras disciplinas. Ento, sempre eram os professores mais experientes que davam Introduo Antropologia. Hoje mudou. Hoje, voc chega l, Introduo Antropologia est sendo dada por aluno do doutorado ou coisa desse tipo. E eu sempre gostei. Mas faltava um manual mais brasileiro, provavelmente, com exemplo de coisa brasileira e coisa desse tipo. Ento, em decorrncia desse curso, eu fiz aquele livro.

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    Inicialmente, como uma apostila praticamente. E em uma viagem ao Rio, conversando com o Jorge Zahar, acidentalmente, ele falou assim: Eu tenho um livro de Antropologia que vende, mas que no tem nada a ver com a gente, que o Pertti Pelto, Iniciao Antropologia. Eu gostaria de ter alguma coisa feita no Brasil. E eu falei que tinha e ele falou: Ento, manda para c. E o livro de repente comeou a vender muito. E o interessante no livro que quanto mais velho, mais ele vende. Porque as edies iniciais eram de dois mil e agora so de dez mil, e vende uma por semestre praticamente. C.C. Isso o torna o autor, o antroplogo mais lido do Brasil, principalmente nos cursos de graduao. R.L. E que me causa algumas surpresas. Por exemplo, eu chego um dia em um hotel em Uberlndia, est um rapaz na portaria l, o rapaz da portaria, e quando eu fao a ficha, ele fala: O senhor que escreveu esse livro? Uma carteira vai entregar uma correspondncia na porta da minha casa e pergunta: Mas a mesma pessoa que escreveu o livro tal? Porque o livro tem uma amplitude muito maior do que o curso universitrio, porque ele est sendo dado tambm, em So Paulo, na terceira srie do segundo grau, no Colgio Santa Cruz. E as pessoas falam: Mas voc no vai atualizar o livro? Eu falo: No. Eu acho que o livro est tendo resultado para quem no escreveu. No adianta... Eu no escrevi aquele livro para antroplogo ler. Mesmo porque eu teria que estar atualizando constantemente.

    [PAUSA] C.C. Roque, eu te perguntei de um livro marcante, se voc tivesse que destacar um livro, no ? E um personagem que voc acha que, na sua trajetria, foi mais marcante para voc? R.L. Ah, tm vrios. Eu acho que o Eduardo Galvo, de certa forma, para a gente ele meio o modelo do etnlogo mesmo, a pessoa que fazia o trabalho de campo, e que foi, de certa forma, obscurecido pela figura do Darcy. Os dois eram grandes amigos, mas o Galvo era exatamente ao contrrio do Darcy. O Galvo era uma pessoa que falava muito baixo a gente tinha uma dificuldade muito grande de ouvi-lo e ele fazia muito pouco marketing dele prprio. Ele foi o primeiro antroplogo brasileiro a fazer doutorado em Antropologia e o primeiro, tambm, a fazer doutorado no exterior, porque ele foi para a Universidade de Columbia, no tempo de Boas. C.C. Eu acho que em 49 que ele fez o doutorado, no ? R.L. . E eu acho que, nessa minha vida como antroplogo, nem sempre a personagem marcante teria que ser antroplogo, no ? Uma delas foi o Noel Nutels, que a gente sempre encontrava no campo. Alis, ele sempre tinha uma... Ele era muito irreverente, ele sempre dizia que antroplogo era gigol de ndio, que vivia s custas dos ndios e coisas desse tipo, mas ele tambm vivia, porque fazia as Unidades Sanitrias [Areas]. Era uma figura muito interessante. E eu acho que... Hoje, quando eu falo com os alunos, ningum mais sabe quem Noel Nutels. E tm trs livros sobre ele, no ?

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    C.C. , tem O ndio cor-de-rosa, do Orgenes Lessa. R.L. O ndio cor-de-rosa e tem o romance do Moacyr Scliar, O imperador do Xingu1, que no ele que a personagem central do livro, mas ele o pano de fundo de tudo. C.C. Mas voc teve contato com o Galvo? Porque ele estava em Belm. Ele foi para o Museu Goeldi. R.L. , mas como eu fazia pesquisa no Par, a minha base era o Museu Goeldi. Eu ia para Belm, para poder atingir a regio l, e ficava hospedado no Museu. O Museu Goeldi tinha um alojamento. E era uma coisa muito interessante, porque a gente... Um dos alojamentos era um bangal que j no existe mais, no meio do parque, que tinha dois apartamentos, e uma vez, eu estava em um desses apartamentos e no outro estava o rei da Blgica, que era praticamente exilado ali. Como ele colaborou com os nazistas, ele foi obrigado a renunciar e passar o trono para o filho, e a ele se tornou um naturalista. C.C. O Darcy, que voc conviveu, a impresso que se tem que ele ficou muito crtico da Antropologia brasileira depois, mais recente, no s por orientao terica, ele se dizia evolucionista, e tem tambm uma entrevista em que ele fala dos cavalos-de-santo do Lvi-Strauss que baixavam e falou mal do Museu Nacional, do programa, e depois largou, foi para a educao, depois poltica e no voltou mais Antropologia. Como que voc acompanhou esse personagem? R.L. Para comear, eu j participei de uma banca sobre o Darcy Ribeiro e eu estava dizendo, eu tive muito pouco contato com ele. Tive muito pouco. Porque o seguinte, eu comecei a fazer Antropologia em 60, no Museu Nacional, como aluno, e o Darcy, nessa poca, j estava no CBPE, o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, e j no fazia mais Etnologia. Nos anos seguintes, rapidamente, ele deixou isto para ser ministro da Educao e, depois, ser chefe da Casa Civil do Joo Goulart, e a, veio a revoluo e ele foi para o exterior. Ento, eu tive muito... Eu lembro muito pouco de contatos com o Darcy. Para dizer a verdade, eu nunca conversei com o Darcy Ribeiro. Eu estive assim, em eventos em que ele estava. O Roberto me levou, eu era aluno, na casa de uma escritora em que ele estava l, assim, como o centro das atenes. Coisas desse tipo. E quando ele voltou do campo, quando ele voltou do exlio, alis, ele voltou uma outra pessoa praticamente, e a que ele comea a atacar a Antropologia brasileira, nos chamando de cavalos-de-santo do Lvi-Strauss, ele, que era cavalo-de-santo do Leslie White, porque toda a Antropologia dele era do neo-evolucionismo norte-americano. C.C. Do Julian Steward... R.L. Aquele negcio todo, no ? Ento, o Roberto DaMatta assumiu a briga, e outras pessoas do Museu, e defendeu o Museu. Porque o Museu era uma instituio importante de pesquisa no Brasil. E a crtica dele era totalmente injusta, na verdade. Mas eu acho que o problema dele que ele voltou e sentiu que ele j tinha passado. Porque tudo que

    1 SCLIAR, Moacyr. A majestade do Xingu.

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    ele publicou depois que ele voltou, o que era bom foi o que ele produziu antes. Ele republicou as coisas todas, no ? Aquele Os ndios e a civilizao um conjunto de trabalhos isolados que ele fez antes, que era muito bom at. Na dcada de 50, ele era o grande antroplogo brasileiro. Mas voc no pode parar dez, quinze anos e voltar e achar que continua sendo o grande antroplogo brasileiro. C.C. Voc acha que tinha um incmodo com uma nova gerao? R.L. Com uma nova gerao. E outra coisa... C.C. Agora, o Roberto Cardoso era dessa nova gerao e era ligado a ele. R.L. . Mas ele renegou o Roberto. impressionante. Na verdade, eu daria uma explicao de ordem psicolgica, assim, chutando: o Darcy voltou do exlio para morrer... C.C. Sim. Ele tinha um cncer no pulmo. R.L. Os militares s permitiram que ele voltasse porque ele estava com um cncer no pulmo. C.C. Tinha tirado um pulmo, se eu no me engano. R.L. Ele retirou no Brasil. Porque se ele tivesse feito no Peru, ele j estava morto. Ento, ele voltou porque eles acreditavam que ele ia morrer. E ele no morreu. E no morrendo, eu acho que ele assumiu uma outra vida. A primeira coisa, ele rompeu com o passado. E o primeiro rompimento foi com a Berta. Ele deixou a mulher dele. E essa uma coisa muito interessante, porque a Berta iria... Ela tem uma histria de vida incrvel at. E ela nunca deixou o Darcy. Ela continuou sendo a mulher dele, quando ele j no era mais o marido dela. Ela sempre se identificava. E ela foi para o Museu Nacional. Ela fez tudo que ela deixou de fazer enquanto era mulher dele, porque ela virou uma secretria de alto nvel, ento, ela fez o doutorado, ela fez o concurso para titular, ela publicou pesadamente nesse perodo, quando ele j tinha praticamente parado de fazer Antropologia. Eu acho que, com isso, ele rompeu com o Museu tambm, e nunca mais foi na Associao Brasileira de Antropologia, ele, que foi um dos fundadores da ABA. Foi uma mudana muito forte de personalidade. C.C. E o Florestan, que foi tambm um pouco o seu orientador, at ele ser cassado... R.L. Ele foi meu orientador de tese. C.C. Durante pouco tempo, no ? Como era a relao pessoal com ele? R.L. Na verdade, foi muito pouco tempo mesmo, porque o meu doutorado foi feito tambm... Da mesma forma que o meu memorial foi feito pela moda antiga, o meu doutorado tambm. Eu fiz doutorado na USP quando no se exigia... O curso era apenas duas teses subsidirias e uma tese principal. E por que eu fui fazer na cadeira de Sociologia com o Florestan e no na cadeira de Antropologia com o Egon Schaden?

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    porque eu estudava Tupi contemporneo, e ele tinha feito o seu grande trabalho sobre os ndios Tupinamb, que so os Tupi do sculo XVI. Tanto que ele, embora ele tenha se destacado como socilogo marxista, em entrevista com a Mariza Peirano ele falou: Os dois livros importantes da minha vida foram A organizao social dos Tupinamb e A funo social da guerra na sociedade Tupinamb, que so dois livros funcionalistas, no ? C.C. E eram livros muito rigorosos, vamos dizer assim, do ponto de vista acadmico, de pesquisa, de fontes. Tinham um padro de trabalho intelectual que era muito impressionante para a poca, no ? R.L. E esse era o padro dele. Ele tinha um livro, que o Roberto nos obrigou a ler quinhentas vezes, chamado Fundamentos empricos da explicao sociolgica que desenvolve todo esse mtodo que ele usa para fazer a anlise, reconstituir uma sociedade do passado atravs de anlise de documentos, que so s vezes contraditrios. Porque os cronistas viam de vrias maneiras os Tupinamb. Ento, ele fez um trabalho incrvel, assim, de pegar cada cronista, cada grupo, e s aceitar como verdade aquilo que tinha um certo consenso entre vrios cronistas. C.C. E deixa eu lhe perguntar sobre o Darcy Ribeiro. O Darcy foi professor de Antropologia, escreveu livro de Antropologia, embora seja um personagem muito multifacetado, tanto como socilogo como historiador, como ensasta, como... Mas nessa altura que voc entrou na Antropologia, nos anos 60, ele tinha alguma participao ou influncia? R.L. No. Na Antropologia... No, ele tinha uma influncia pelo que... A gente lia o que ele escreveu nos anos 50, que foi o meu caso, porque eu trabalhava com Tupi e ele trabalhou com os Urubu-Kaapor. Eu voltei ao campo quatorze anos depois dele, na mesma aldeia. Ento, ele tinha essa influncia. Mas no tinha contato, por isso que eu estava dizendo, ele estava em um outro mundo, cada vez mais distante, em uma outra comunidade: ele estava entrando para a poltica. C.C. Desculpe, voc est falando do Darcy Ribeiro? K.K. . Voc falou do Darcy. C.C. Ah, perdo! Eu queria perguntar do Gilberto Freyre. Desculpe, eu que me confundi. Foi um ato falho. O Gilberto Freyre, que tambm, enfim, escreveu Ensaios brasileiros de Antropologia2, foi professor de Antropologia, embora tenha tambm um estilo diferente, no... Desculpe, a figura do Gilberto que eu queria perguntar. R.L. Eu acho o seguinte, no tempo que a gente comeou em Antropologia, que era jovem e tudo, a gente tinha um p atrs com o Gilberto Freyre, porque... Quando eu lia Casa-grande e senzala, eu encontrava uma srie de afirmaes sobre ndios que so estranhas. O Gilberto Freyre tinha... Agora, na medida que a gente foi amadurecendo como pesquisador, o livro foi crescendo. Mesmo porque o seguinte, a gente tomou

    2 FREYRE, Gilberto. Problemas brasileiros de antropologia (1943).

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    conscincia de que um livro tem que ser avaliado pela poca que foi escrito. Ento, nos anos 30, aquele livro foi um livro revolucionrio. Ele chegou at a ser proibido no Brasil. Ento, eu lembro... Eu conheci o Gilberto... Eu e o Matta tivemos uma entrevista com ele quando ele j estava bem velho mesmo. E, com isso, eu passei a usar muito o livro dele, o Casa-grande e senzala, dentro dos cursos que no eram de Etnologia, lgico , e vencendo a resistncia dos alunos, porque tinha sempre aquela histria. Mesmo porque o seguinte, em uma crtica que foi feita ao Gilberto Freyre por um socilogo marxista, ele foi taxado de racista porque, no seu prefcio, ele fala: Quando eu estava andando pelas neves do Brooklyn, eu vi um grupo de marinheiros brasileiros desengonados, pareciam macacos..., ou qualquer coisa desse tipo assim. A, isso foi tomado e utilizado contra ele. Mas esqueceram da frase seguinte, quando ele diz: Mas naquele tempo eu ainda no tinha sido aluno de Franz Boas. C.C. Exato. , ele cita justamente como exemplo do que ele havia mudado. Antes da converso... K.K. Prenoes dele. R.L. Houve um corte de m-f. Ele estava fazendo um ato de contrio ou coisa desse tipo, mostrando que o Franz Boas mostrou o que era importante. C.C. E teve uma mesa na ABA, eu no me lembro agora se em 78, que o Gilberto Velho at chamou o Gilberto Freyre e fez uma mesa. Foi a primeira volta dele, vamos dizer assim, ao cenrio antropolgico, porque at ento ele tinha sido relegado como figura de segundo plano. R.L. Eu no lembro bem dessa... C.C. E o seu contato com antroplogos estrangeiros que estudavam o Brasil o [Charles] Wagley, o [David] Maybury-Lewis...? R.L. Eu fui grande amigo do Maybury-Lewis porque... Eu o conheci logo quando ele comeou a vir para o Brasil e depois ele me convidou para passar um ano em Harvard, embora o programa que ele tinha com o Museu Nacional era mais ligado aos G. Mas eu passei um ano l com ele e a gente sempre manteve uma forte ligao, at pouco tempo atrs, quando ele entrou numa fase de Parkinson e a comunicao ficou difcil. O Wagley tambm freqentava muito o Museu Nacional, porque foi atravs do Museu Nacional que ele entrou na Antropologia brasileira. Alis, o Wagley responsvel pela carreira do Eduardo Galvo. Porque quando ele vai estudar os Tapirap, ele leva um jovem estagirio do Museu Nacional. Era o Eduardo Galvo. E o Wagley casou com uma brasileira. Foi um brasilianista muito ligado ao Brasil. No ltimo livro dele, inclusive, ele cita trabalho meu. Ento, eu tinha um bom relacionamento. E a gente teve um grande relacionamento com o pessoal do Projeto Harvard-Museu Nacional: Terence Turner, John Bamberg, Jean Carter, [INAUDVEL], Chris Crocker, o outro, o William Crocker, que o antroplogo mais antigo a estudar... o antroplogo americano que mais tempo estuda no Brasil, e ainda continua ele do Smithsonian. Quer dizer, na verdade, a gente teve muito mais relao com antroplogos americanos do que com antroplogos ingleses e franceses. Essa influncia francesa no Museu Nacional

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    recente. O primeiro que apareceu por a foi o Patrick [Manger], que foi meu colega em Harvard. K.K. E dentro desse... Voc quer perguntar? C.C. Eu ia perguntar, at porque voc mencionou que havia poucos livros traduzidos para o portugus e tal, e a Antropologia portuguesa, em Portugal? Quer dizer, j que a mesma lngua... R.L. No. A gente no conhecia nada, absolutamente nada... K.K. Nem africana? R.L. ...da Antropologia portuguesa. Quer dizer, a idia que a gente tinha realmente era que, com a ditadura do Salazar, ela no tinha possibilidade de desenvolver. Como aconteceu, por exemplo, com a Antropologia espanhola. E hoje um grande amigo meu o Claudio Esteva-Fabregat, que uma pessoa bem idosa hoje, e ele tinha dezesseis anos quando comeou a Guerra Civil. Mas foi muito emocionante, em Barcelona, uma vez que estava eu, ele e a mulher e a minha esposa, porque ele chegou na escadaria da prefeitura e de repente ele falou: Eu tinha dezesseis anos, e estvamos todos deitados aqui no cho quando algum gritou Atacar!, e todo mundo levantou e correu para tomar a prefeitura. E ele falou: Morreram 600 pessoas naquele dia. Foi o comeo da Guerra Civil. Quando a Guerra Civil terminou, ele se refugiou na Frana atravessou ali os Pirineus e foi para a Frana e de l ele foi para o Mxico, estudou Antropologia com o Juan Comas, que era o grande nome da Antropologia mexicana, e voltou para a Espanha, para reconstruir a Antropologia espanhola depois do Franco. Portugal, a gente no tinha nenhum contato. C.C. E hoje h vrios portugueses aqui. R.L. Hoje esto vrios aqui, no ? E hoje muita gente vai para a Espanha estudar Antropologia. Hoje voc tem um grande contato com a Pennsula Ibrica. Mas o problema o seguinte... K.K. As ditaduras, no ? R.L. S no Brasil que se conseguiu conciliar o desenvolvimento da Antropologia com uma ditadura, exatamente porque ela foi deixada de lado, no ? Foi deixada de lado. Porque a Alemanha nunca mais teve uma Antropologia, e antes do Hitler ela tinha, no ? K.K. A Etnologia brasileira nunca tentou nem se interessou por esse... pelo estudo fora do pas? Ou em algum momento isso chegou a ser uma questo...? R.L. Naquele tempo, que a gente trabalhava com tanta escassez de recurso, fazer Antropologia no Brasil j era uma enorme dificuldade. Eu tenho um amigo, o George Zarur, que ele se considera o primeiro brasileiro a fazer pesquisa fora do Brasil, porque ele estudou pescadores na Flrida. Porque ele grande amigo do... A me dele era grande

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    amiga do Charles Wagley e ele fez mestrado no Museu Nacional e foi fazer o doutorado na Flrida e l ele estudou uma comunidade de pescadores, na Flrida. Eu acho que o primeiro mesmo. No o primeiro, no, porque o Ruy Coelho, em So Paulo, fez uma pesquisa fora do Brasil nas Guianas, me parece. Hoje a situao mudou: o Departamento de Antropologia da Universidade de Braslia faz pesquisa em Guin-Bissau, em Cabo Verde e no Timor-Leste, e em outras universidades est ocorrendo a mesma coisa. K.K. Como que voc v a formao desse aluno de graduao de Antropologia hoje, comparado com a formao que vocs...? R.L. De certa forma, ele mais preparado, porque o currculo, foi possvel concentrar mais disciplinas de Antropologia na graduao, enquanto que o currculo antigo no permitia isso. Eu tive trs disciplinas: uma no primeiro, uma no segundo e uma no terceiro ano. Ento, diferente, no ? De tal forma que hoje h um movimento muito forte at para a separao dos cursos: acabar com o curso de Cincias Sociais e comear Antropologia, Sociologia ou Poltica, separado. Na Universidade de Braslia, Poltica j separado. K.K. A graduao em Sociologia e Antropologia? R.L. . Ento, eu acho que h uma intensidade maior de informaes. O aluno chega mais preparado agora. C.C. Eu tenho uma ltima pergunta. Como eu disse, voc j deu entrevistas bem detalhadas sobre a sua experincia na Funai, mas, por exemplo, hoje est o STF para julgar a questo da regio da Raposa Serra do Sol e a gente acompanha todo esse debate, essa polmica. Como que o antroplogo se situa no meio dos indianistas antigos, os sertanistas, que so cada vez menos, as ONGs, polticos locais ou militares falando que aquilo vai afetar a soberania brasileira, e organizaes religiosas, missionrios? Quer dizer, um campo muito... R.L. , eu acho que ... Eu tenho uma experincia com a Raposa Serra do Sol porque a histria comeou... Alis, essa histria comeou muito antes. Quando eu estava na Funai, j estava em uma situao bem difcil. Porque estava tudo pronto, a demarcao toda pronta, e faltava s o decreto de homologao, e ns pressionamos fortemente o Fernando Henrique para assinar e ele no assinou. Porque, por outro lado, havia toda uma presso poltica dos parlamentares de qualquer partido de Roraima. Porque, em Roraima, voc pode ser do PT, pode ser de qualquer partido que voc, antes de tudo, voc contra o ndio. H uma unanimidade. Ento, em 2000, eu participei de uma misso comandada... mandada pelo general Cardoso, porque ele mesmo, no ltimo momento, ele se desligou da misso para poder correr para Porto Seguro, onde estava acontecendo... Aquelas coisas estranhas, que resultaram inclusive na demisso do presidente da Funai. Mas eu, com um grupo de militares de alta patente, ns visitamos toda a regio da Raposa Serra do Sol. E esse grupo saiu convencido de l. O grupo saiu convencido que ali a terra tinha que ser contnua, que a maioria de ndios era por terra contnua. E por outro lado, na Funai, vrias vezes eu tive que enfrentar parlamentares de Roraima, que vinham com essa conversa sempre, essa parania que existe no Brasil que

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    os Estados Unidos querem tomar a Amaznia. Desde Paulo de... Eu esqueci agora o sobrenome. Desde o sculo XIX que as pessoas j escrevem isso. Ou seja, uma geopoltica do sculo XIX, que acha que, para dominar, tem que ocupar, tomar e coisas desse tipo. Ento, as trs acusaes: as sete potncias, que esto contra anexar o territrio amaznico, as misses religiosas e as ONGs. Mas eu tive oportunidade de uma vez falar para vrios parlamentares, at para o governador de Roraima, quando eu estava na Funai: Em primeiro lugar, no tenho nenhum compromisso com a Igreja Catlica, no tenho nenhum compromisso com ONG eu no tinha naquela poca e tambm no aceito que duvidem da lealdade que eu tenho com o meu pas para falar que eu estou servindo a essas sete potncias. Ento, eu tenho toda essa conversa. Agora, eu estou pessimista, porque a sensao que ns temos que o Supremo vai votar contra. C.C. E no so s polticos. Os militares tambm falam muito em... R.L. Falam muito nisso. parania. O Gustavo tem um artigo muito bom, sobre o daltonismo dos militares: havia um tempo que eles enxergavam todo mundo vermelho, at o trmino do perodo ditatorial, e depois eles passaram a enxergar todo mundo verde, no ? Ento, so os ambientalistas, so... K.K. Obrigada, Roque. C.C. Eu no sei. Tem alguma outra coisa que voc queira comentar? R.L. Eu falei muito. C.C. No, foi timo porque eu acho que ns conseguimos fazer umas perguntas que no repetem muito outras entrevistas que voc deu, no ? O sol tambm est j chegando a. R.L. J est chegando aqui. K.K. Eu acho que deu muitas sugestes: a gente ir a Braslia filmar os materiais que voc mencionou, sobre...

    [FINAL DO DEPOIMENTO]