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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE DIREITO PAULA MENDES SAMPAIO LIMA E SOUZA FEMINISMO E DIREITO: ANÁLISE A PARTIR DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Niterói 2016

PAULA MENDES SAMPAIO LIMA E SOUZA · autoridade. Todas as mulheres carregavam o peso do pecado original e, desta forma, deveriam ser vigiadas de perto e por toda a vida. Tal pensamento,

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE DIREITO

PAULA MENDES SAMPAIO LIMA E SOUZA

FEMINISMO E DIREITO: ANÁLISE A PARTIR DO ORDENAMENTO JURÍDICO

BRASILEIRO

Niterói

2016

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2016

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE DIREITO

PAULA MENDES SAMPAIO LIMA E SOUZA

FEMINISMO E DIREITO: ANÁLISE A PARTIR DO ORDENAMENTO JURÍDICO

BRASILEIRO

Trabalho de conclusão de curso

apresentado ao curso de Bacharelado em

Direito como requisito parcial para

conclusão do curso.

Orientador:

Prof. Dr. Eder Fernandes Monica

Coorientadora:

Pesquisadora Ariíni Bomfim

Niterói

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Universidade Federal Fluminense

Superintendência de Documentação

Biblioteca da Faculdade de Direito

S72

9

Souza, Paula Mendes Sampaio Lima e Souza

Feminismo e direito: análise a partir do ordenamento jurídico

brasileiro / Paula Mendes Sampaio Lima e Souza – Niterói, 2016.

47 f.

Trabalho de Conclusão de Curso (Curso de Graduação em Direito) –

Universidade Federal Fluminense, 2016.

1. Teoria do direito. 2.Gênero. 3. Movimentos sociais. 4. Teoria

feminista. I. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Direito,

Instituição responsável II. Título.

CDD 342.16

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PAULA MENDES SAMPAIO LIMA E SOUZA

FEMINISMO E DIREITO: ANÁLISE A PARTIR DO ORDENAMENTO JURÍDICO

BRASILEIRO

Trabalho de conclusão de curso

apresentado ao curso de Bacharelado em

Direito como requisito parcial para

conclusão do curso.

Aprovada em

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________

Prof. Dr. Eder Fernandes Monica (Orientador) – UFF

_____________________________________________________

Pesquisadora Ariíni Bomfim (Coorientadora) - UFF

______________________________________________________

Profª. Me. Ana Paula Antunes Martins - UnB

_____________________________________________________

Profª. Giselle Picorelli - UFF

Niterói

2016

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À minha mãe, a primeira feminista que conheci.

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AGRADECIMENTOS

Pensar nos últimos cinco anos da minha vida e traduzi-los em poucas linhas é uma missão e

tanto. A evolução não se resume academicamente. Concluo esta etapa e este trabalho como

uma nova pessoa.

Começo agradecendo a toda a minha família, em especial minha mãe por ser sempre minha

melhor amiga e a mulher mais linda do universo, ao meu pai por ser um exemplo e a base

para a construção de uma vida em Niterói e aos meus avós Paulo, o homem mais honesto e

admirável que já conheci; e Vera, que foi minha grande mãe e a pessoa mais importante da

minha vida.

Um muito obrigada ao querido professor Éder, que não só teve uma compreensão e

humanidade tamanha, mas também me ensinou a enxergar um viés do Direito ainda

desconhecido para mim.

Agradeço à Ariíni, também, pelo tempo despendido em minha coorientação e à simpatia e

leveza.

Obrigada às minhas amigas feministas e a todo esse mundo novo que conheci e me acolheu.

Aos meus velhos amigos e às pessoas maravilhosas que encontrei ao longo desses anos no

Rio.

Como nos disse o profeta Samuel “Ebenézer, até aqui nos ajudou o Senhor”! Amém.

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Ninguém nasce mulher: torna-se mulher.

Simone de Beauvoir

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RESUMO

O objetivo do presente estudo é analisar as mudanças, novas demandas e as conquistas

alcançadas pelo feminismo brasileiro enquanto movimento social, bem como refletir sobre as

implicações de tal movimento nas leis brasileiras. A partir da década de 1970 começaram a

surgir mudanças e o feminismo passou a ser ferramenta de luta da mulher. As três ondas pelas

quais passou a teoria feminista – como um todo – nos faz entender mais claramente a luta por

ideais que pudessem propiciar à mulher a dignidade da pessoa humana. Através da análise

destas três ondas, bem como da legislação brasileira que cuida da proteção à mulher buscou-

se reconstruir o processo histórico da teoria feminista no Direito. A estrutura do texto analisa

as três ondas bem como a legislação que ampara a mulher. Como resultado, deve-se atentar

para o fato de que ainda há muito pelo que se lutar, principalmente para que a Lei seja

cumprida em favor das mesmas.

Palavras-chave: Feminismo. Teoria feminista do Direito. Gênero.

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ABSTRACT

The aim of this study is to analyze the changes, new demands and the achievements made by

the Brazilian feminism as a social movement, as well as reflect on the implications of such a

movement in Brazilian law. From the 1970s they began to emerge changes and feminism

became a woman fighting tool. The three waves which passed feminist theory does denote the

struggle for ideals that could provide the woman the dignity of the human person. Through

analysis of these three waves, as well as the Brazilian law which takes care of the protection

of women sought to reconstruct the historical process of feminist theory in the law. The text

structure analyzes the three waves and the legislation that supports women. As a result,

attention should be paid to the fact that there is still much to be fought primarily for the Law

is fulfilled in favor of women.

Keywords: Feminism. feminist legal theory. Genre.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11

1 CONTEXTO MUNDIAL .................................................................................................... 13

1.1 Teorias feministas ............................................................................................................. 15

1.1.1 Liberais ........................................................................................................................... 15

1.1.2 Socialistas ....................................................................................................................... 16

1.1.3 Radicais .......................................................................................................................... 16

1.2 Teorias feministas no direito ........................................................................................... 17

2 CONTEXTO BRASILEIRO .............................................................................................. 19

2.1 As ondas feministas no Brasil e um breve panorama atual .......................................... 19

2.2 Práticas e aplicações da teoria feminista no Brasil ........................................................ 25

2.2.1 Direitos civis das mulheres e a nova configuração de família ................................... 25

2.2.2 Participação na política ................................................................................................. 28

2.2.3 Violência doméstica – Lei Maria da Penha ................................................................. 30

2.2.4 Aborto ............................................................................................................................. 33

2.2.5 Direitos trabalhistas ...................................................................................................... 35

2.3 Direitos da mulher como direitos humanos (ou a perspectiva internacional) ............ 38

2.4 Efeitos constitucionais na tutela dos Direitos da mulher .............................................. 41

2.4.1 Convenção de Belém do Pará ....................................................................................... 41

2.4.2 A lei 10.778/04 ................................................................................................................ 42

2.4.3 A lei 13.150/2001 ............................................................................................................ 43

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 44

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 46

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INTRODUÇÃO

Devido à grande opressão em torno da mulher na sociedade, observa-se o surgimento

de teorias feministas, muitas elas críticas, as quais vêm se desenvolvendo no campo do

Direito, passando por várias fases.

No entanto é sabido que grande parte da cultura acadêmica nem sequer sabe do que

se trata a teoria feminista do direito, não percebendo desta forma também as normas jurídicas

que legislam em favor das mulheres e derivam de grande luta e expressão dos movimentos

feministas.

O feminismo é um movimento social e plural que visa a igualdade entre homens e

mulheres, sendo para uma grande maioria a maior revolução social ocorrida no século XX. O

Direito, enquanto ciência preza pela neutralidade e objetividade, uma vez que não está

vinculado a concepções políticas ou culturais.

As três ondas – falando resumidamente - pelas quais passaram a teoria feminista faz

denotar a luta por ideais que pudessem propiciar à mulher a dignidade da pessoa humana. A

primeira onda expressou-se pela luta do voto, uma luta no âmbito político, fazendo parte as

mulheres de classe média e alta. A segunda onda teve início durante o regime militar, na

década de 1970, onde observou-se a perda da cidadania discutindo-se a opressão patriarcal,

bem como discussões acerca da sexualidade e relação de poder, onde as leis deveriam dar

igualdade às mulheres. O movimento foi caracterizado por uma resistência ao militarismo,

bem como uma luta contra a violência sexual e o direito ao prazer. A terceira onda, ou

feminismo difuso, havendo uma tentativa de reformulação do próprio Estado e das políticas

por ele aplicadas. Houve também uma busca pela reconfiguração do espaço público, do qual

começam a participar lésbicas, negras, indígenas, dentre outras.

Assim sendo, este trabalho busca refletir sobre as mudanças, novas demandas e as

conquistas alcançadas pelo feminismo brasileiro enquanto movimento social. Observar as

implicações de tal movimento nas leis brasileiras é o objetivo central deste.

O primeiro capítulo trata do tema contexto mundial, onde fala-se resumidamente a

respeito das teorias feministas: liberais, socialistas e radicais, bem como das teorias feministas

no Direito.

O segundo capítulo é dedicado ao contexto brasileiro. As ondas feministas no Brasil

e um breve panorama atual, as práticas e aplicações da teoria feminista no Brasil, os direitos

civis das mulheres e a nova configuração de família.

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Também aborda este segundo capítulo a participação na política, a violência

doméstica e a Lei Maria da Penha, o aborto, os direitos trabalhistas, a evolução da legislação

na luta das mulheres pela proteção de seus direito, onde vê-se o Projeto de Lei 117/03, a

Convenção de Belém do Pará, a Lei 10.778/04 e a Lei 13.150/01.

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1 CONTEXTO MUNDIAL

No sentido de compreender o papel da mulher na sociedade necessário se faz um

retrocesso aos primórdios da existência da sociedade, principalmente quando se trata da

formação do sujeito, dos grupos e das classes sociais.

Com a colonização do Brasil deu-se início a um período em que as mulheres eram

tidas como objetos de domínio e submissão, onde segundo Del Priore (2001, p. 46), as

mulheres Tupinambás eram tratadas com barbarismo e as Leis do Estado e da Igreja tinham

por objetivo maior abafar a sexualidade feminina, uma vez que “ao arrebentar as amarras [...]

a sexualidade feminina [...] ameaçava o equilíbrio doméstico, a segurança social e a própria

ordem das instituições civis e eclesiásticas”.

Era função da Igreja “castrar” a sexualidade feminina, usando como

contraponto a idéia do homem superior a qual cabia o exercício da

autoridade. Todas as mulheres carregavam o peso do pecado original e, desta

forma, deveriam ser vigiadas de perto e por toda a vida. Tal pensamento,

crença e “medo” acompanhou e, talvez ainda acompanhe, a evolução e o

desenvolvimento feminino (DEL PRIORE, 2001, p. 46).

Para Pereira (2005), até o século XVII somente o sexo masculino era reconhecido,

tendo a mulher como um ser inferior, imperfeita, menos desenvolvida. Somente no século

XIX a mulher é vista como complemento do homem.

A diferença entre gêneros era voltada para a relação anatômico-fisiológica, onde

diferenças morais eram impostas aos comportamentos masculino e feminino, que era exigido

pela sociedade burguesa e capitalista da época. Tal característica também era notada em

países da Europa (PEREIRA, 2005).

Pereira (2005) vislumbra a existência de um modelo cultural básico da antropologia

mediterrânea, onde para o homem é fundamental que o mesmo conserve sua honra, através da

proteção à família e da posse de bens. Para as mulheres, cabia-lhes o dever de gerir a casa,

cuidando da família e indo à missa.

Ainda sob o prisma de manter a honra, o homem deveria controlar a sexualidade e a

fertilidade femininas, as quais eram consideradas uma ameaça à honra e um perigo, onde a

virgindade e a castidade eram o alicerce (PEREIRA, 2005).

Com o advento do século XIX a discussão sobre gêneros tem início, sendo o mesmo

definido como uma construção cultural das características masculinas e femininas, onde o

sexo define a diferença entre homem e mulher (PEREIRA, 2005).

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O gênero é a definição cultural da conduta entendida como apropriada aos

sexos numa sociedade dada e numa época especifica. (...) É um disfarce,

uma máscara, uma camisa de força na qual homens e mulheres dançam a sua

desigual dança (PEREIRA, 2005, p. 45).

Segundo Pachá (2008), ao longo da história mudanças ocorreram no casamento, no

amor e na sexualidade, observando-se uma revolução sexual e emancipação feminina, o que

propiciou mudanças radicais, principalmente no que diz respeito ao avanço das mulheres nas

áreas da política e da cultura.

A história da luta das mulheres por igualdade de direitos é relativamente recente.

Embora o movimento feminista só ganhe essa denominação no fim do século XIX, muito

ocorreu antes para que chegasse a esse ponto. O feminismo preconiza a igualdade entre os

sexos e a redefinição do papel da mulher na sociedade, é certamente a expressão máxima de

consciência crítica feminina. Uma consciência que será forjada, inicialmente, na Europa

setecentista, particularmente na França e na Inglaterra, em meio às grandes transformações

que então se operam.

A revolução teórica iniciada no século XVIII com Mary Wollstonecraft1 e o primeiro

questionamento sobre as questões de gênero no mundo em Reinvidicação do Direito das

Mulheres2 obteve desdobramentos sistemáticos em todo o mundo.

1 Mary Wollstonecraft (1759-1797) foi testemunha e protagonista da cena iluminista, para a qual contribuiu com

a inclusão da temática da igualdade de gênero, debatendo publicamente com escritores como Jean-Jacques

Rousseau sobre o direito da mulher à educação. Precursora do feminismo e também uma aguerrida militante

antiescravagista, foi uma mulher à frente de seu tempo em vários aspectos: era solteira quando teve sua primeira

filha; defendeu o amor livre e a não obrigatoriedade do casamento; foi uma escritora reconhecida já em vida,

autora de uma série de romances, tratados, narrativas de viagens e, inclusive, uma história da Revolução

Francesa; conviveu com intelectuais como o editor Joseph Johnson e os escritores William Blake e William

Godwin, com o qual veio a se casar e que se tornou pai de sua segunda filha, Mary Shelley (autora

de Frankenstein). Sua obra mais importante é Reivindicação dos direitos da mulher (1792), considerada uma das

peças inaugurais da literatura feminista. 2 Considerado um dos documentos fundadores do feminismo, o livro denuncia a exclusão das mulheres do

acesso a direitos básicos no século XVIII, especialmente o acesso à educação formal. Escrito em um período

histórico marcado pelas transformações que o capitalismo industrial traria para o mundo, o texto discute a

condição da mulher na sociedade inglesa de então, respondendo a filósofos como John Gregory, James Fordyce

e Jean-Jacques Rousseau.

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1.1 Teorias feministas

1.1.1 Liberais

A teoria feminista liberal concebe a liberdade e a igualdade como valores

fundamentais, cabendo ao Estado a garantia destes direitos. No entanto observa-se que o

feminismo liberal possui algumas vertentes, devido ao fato de que o significado da liberdade e

da igualdade é discutido entre os liberais.

Rawls (1971) aborda a igualdade política e econômica para as mulheres. Já Pateman

(1983) distingue o público e o privado sob a ótica liberal. Porém cabe salientar que embora as

ativistas feministas procuravam caracterizar a violência contra a mulher como um ato

criminoso, assim Allen (1999, p. 85) aduz:

Esta corrente se desdobra na elaboração de uma compreensão crítica de

aspectos importantes do liberalismo, como por exemplo, a distinção entre as

esferas privada e pública que servem para sustentar a dominação masculina

sobre as mulheres, tornando as relações de poder dentro da família como

natural e imune a regulação política.

Tem-se, assim, o círculo doméstico e a esfera privada como sendo o foco opressor da

mulher. Desta forma, Cyfer (2010) chama atenção para o espaço doméstico ser considerado

dominado pelo sexo masculino, havendo uma desvalorização do trabalho da mulher dentro de

casa, bem como um tolhimento em sua liberdade de escolha, uma vez que o ambiente

doméstico é considerado o natural das mulheres, chegando-se ao fato de que a vida política e

social é apenas característica masculina, devendo então a mulher se ater aos afazeres

domésticos e reprodução.

Cyfer (2010) observa que no liberalismo contemporâneo há uma interdependência

entre o público e o privado, demonstrado sua fragilidade no momento em que há uma

limitação em por não haver uma visão estrutural da opressão do gênero. Para o autor, o

feminismo liberal mantém a dominação do homem sobre a mulher.

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1.1.2 Socialistas

De acordo com Cyfer (2010, p. 85) o feminismo socialista é um ramo do feminismo

que “se concentra no âmbito público e privado da vida da mulher e argumenta que a liberação

feminina só pode ser alcançada através do fim das fontes econômicas e culturais de opressão

contra as mulheres”.

Uma das características do feminismo socialista é o fato de não reconhecer o

patriarcado como principal forma de opressão das mulheres, mas afirmam que as mulheres

não são livres uma vez que dependem financeiramente dos homens. Havendo um

desequilíbrio da riqueza, onde o sexo masculino detém maior poder, as mulheres são

dominadas pelos governantes (CYFER, 2010).

Desta forma tem-se que o sistema econômico é o principal causador de subjugação

da mulher, devendo ela buscar a justiça social, econômica e política.

A base do feminismo socialista é o marxismo, havendo uma relação das condições

materiais do indivíduo com a vida do mesmo. Desta forma tem-se que em cada época da

história houve um sistema econômico que influenciou diretamente na divisão sexual do

trabalho, criando uma relação capitalista e patriarcal (CYFER, 2010).

Cabe salientar que para as feministas socialistas, em contrário ao que Karl Marx

afirmava, não há opressão de gênero como uma sub-classe da opressão de classe. Para elas,

abolindo-se a propriedade privada e transformando-se a divisão sexual do trabalho haverá a

libertação das mulheres (CYFER, 2010).

1.1.3 Radicais

Segundo Cyfer (2010) o feminismo radical ganhou vulto na década de 1970, onde o

patriarcado seria a “raiz” do problema, daí o nome radical.

O patriarcado é uma ideologia que organiza e divide o mundo em princípios

e valores duais, tais como razão/emoção, objetivo/subjetivo, público/privado.

Esses aspectos, todavia, não são considerados de igual importância. Os

primeiros, como no exemplo, seriam considerados socialmente superiores e

ao sexo masculino seriam atribuídas suas características. Em contrapartida,

os atributos considerado frágeis e imperfeitos seriam pertencentes às

mulheres. O patriarcado se fundamentaria, portanto, atribuindo uma natureza

inferior e imutável às mulheres, o que legitimaria sua condição de

subalternidade (NÓBREGA, 2015).

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Com isso tem-se que o controle do corpo feminino, principalmente no que diz

respeito à reprodução e sexualidade seria o fundamento desta ideologia, seguida pelos níveis

político, econômico e jurídico.

Esta corrente, de acordo com Nóbrega (2015) acredita que o sistema de dominação

social do sexo é o principal opressor das mulheres, sendo necessário expor o patriarcado e as

experiências de opressão vivenciadas. Desta forma o conhecimento da opressão sofrida seria

vivenciado por todos, o que daria oportunidade de se construir ferramentas para a

transformação do mundo, momento em que as mulheres conquistariam a liberdade.

1.2 Teorias feministas no direito

Segundo Serafim (2014) o Direito é tido como neutro e objetivo, desta forma a

legislação é isenta de construções sociais, não tendo nenhuma relação com política ou cultura.

Assim, foi possível justificar a imunidade das normas jurídicas às

construções sociais, inclusive as sexistas, já que o próprio direito não estaria

vinculado aos influxos políticos e culturais, sendo sempre neutro e objetivo.

Com a evolução dos debates teórico-filosóficos em torno do fenômeno

jurídico, foram desenvolvidas teorias contemporâneas perpassadas por

análises críticas, dentre as quais se pode situar as teorias feministas do

direito (SERAFIM, 2014, p. 2).

De acordo com Serafim (2014) as teorias feministas não possuem as características

da neutralidade e objetividade, justificando a discriminação com base no sexo e como o

mesmo influencia as leis, doutrinas e jurisprudências, momento em que se faz a associação da

teoria à prática.

Para Serafim (2014, p. 3) “o feminismo é um movimento social que milita em favor

da igualdade entre mulheres e homens, pondo-se, desde os seus primórdios, em favor dos

direitos femininos, restando clara a necessidade de aproximá-lo do estudo jurídico”.

No entender de Bueno (2011, p. 5) “as feministas destacaram o papel do Direito

Penal como instância criadora e reprodutora da discriminação entre homens e mulheres,

atuando como um dos principais sistemas de controle formal das mulheres”.

Para Bueno (2011) os temas feministas passaram a ser vistos pelo Direito a partir do

momento em que outras áreas como História, Sociologia, Psicologia, Artes, dentre outras

passaram a produzir estudos acerca do tema.

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Outro fator que contribuiu para que isso ocorresse foi a maior participação da mulher

no meio jurídico, porém cabe salientar que no início apenas os casos levados às Cortes eram

analisados sob este prisma, levando-se a entender que se tratava mais de uma questão prática

(BUENO, 2011).

Na década de 1980 houve um avanço neste processo, onde o tema passou a fazer

parte da área acadêmica, momento em que deu-se ênfase aos cursos de Teoria Feminista do

Direito nas faculdades. Assim observou-se o surgimento de diversas correntes envolvendo

Direito, gênero e mulheres (BUENO, 2011).

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2 CONTEXTO BRASILEIRO

2.1 As ondas feministas no Brasil e um breve panorama atual

O movimento feminista brasileiro não acontece isolado, de forma homogênea e

alheio ao contexto mundial. Para começarmos a falar sobre o movimento no âmbito do Brasil,

primeiramente, é preciso delinear alguns momentos ou ondas presentes nele, que coincidem

com a forma de produção do conhecimento feminista europeu e americano, ou com o

pensamento clássico da formação dos direitos.

Para isso, iniciamos citando a tendência na qual teve seu início no final do século XX

e se trata do movimento sufragista e emancipacionista liderado por Bertha Lutz3, este tem

como principal veículo de divulgação de ideias a imprensa feminista4. Através de sua luta,

Lutz consegue que em 24 de fevereiro de 1932, através do Decreto 21.076 as mulheres

tenham direito ao voto. Esta primeira onda possui um caráter conservador no que se refere ao

questionamento da divisão sexual dos papeis de gênero.

Com o advento do golpe militar de 1964 e durante a ditadura, os movimentos de

mulheres, juntamente com outros vários movimentos sociais, foram silenciados e

massacrados. E um ponto curioso é que as mulheres, em sua maioria de classe média e

burguesas, foram usadas como “massa de manobra” para a manutenção e apoio ao regime

militar instalado na época5. Havia mulheres que participavam ativamente de movimentos

3 A bióloga Bertha Lutz foi uma das pioneiras do movimento feminista no Brasil, responsável direta pela

articulação política que resultou nas leis que deram direito de voto às mulheres e igualdade de direitos políticos

nos anos 20 e 30. 4 A convite do jornal “Correio da Manhã”, a Federação Brasileira Pelo Progresso F eminino

organiza um suplemento dominical em que se discute o progresso da mulher e do feminismo em

geral. O suplemento saiu no dia 29 de outubro de 1930. A Federação Brasileira pelo Progresso

Feminino tornavam públicas suas atividades de várias formas. Reg ularmente, as feministas se

quotizavam para publicar no jornal “O Paíz” um suplemento dominical contendo notícias

políticas. Aqui, mostramos o registro de campanha de propaganda feminista. Os objetivos eram

atrair ativistas para a entidade e promover a con sciência política feminina. O jornal “Diário

Carioca” publica com destaque as iniciativas de Bertha e de suas colaboradoras em 29 de abril

de 1930. 5 A Marcha da Família com Deus pela Liberdade foi o nome comum de uma série de manifestações públicas

ocorridas entre 19 de março e 8 de junho de 1964 no Brasil em resposta a uma suposta

ameaça comunista representada pelo discurso em comício realizado pelo então presidente João Goulart em 13 de

março daquele mesmo ano. Na data, o mandatário assinou dois decretos, permitindo a desapropriação de terras

numa faixa de dez quilômetros às margens de rodovias, ferrovias e barragens e transferindo para a União o

controle de cinco refinarias de petróleo que operavam no país. Além disso, prometeu realizar as

chamadas reformas de base, uma série de mudanças administrativas, agrárias, financeiras e tributárias,

garantindo o que chamava de justiça social. Fundamentados na função social da terra e empreendimentos

urbanos, demandas antigas e de ampla penetração na sociedade da época. Com discurso insuflando os sargentos

a amotinar-se nos quartéis, Goulart antecipou uma pretensa reforma urbana e a implementação de um imposto

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contra o regime, e que foram reprimidas com torturas específicas para elas, como quartos

escuros cheios de insetos, torturas com penetração, abortos forçados, dentre outros.

A segunda onda feminista compreende o período de 1960 até a década de 1980. O

conservadorismo ainda presente vai, lentamente, sendo deixado de lado para dar lugar a ideias

influenciadas pelo anarquismo e pelo socialismo, nas quais os imigrantes espanhóis e italianos

são responsáveis por difundir. Dessa forma já era possível encontrar mulheres ligadas às lutas

e movimentos sindicais e na defesa de melhores salários e condições de saúde e higiene no

trabalho, além do combate às discriminações e abusos que estavam submetidas por

pertencerem ao gênero feminino.

A preocupação deixa de ser os direitos políticos e passa a ser o fim da discriminação

e a igualdade entre os sexos. A principal luta era para que as mulheres se politizassem e

combatessem as estruturas sexistas do poder.

No ano de 1964, com o slogan “Liberação das Mulheres” viu-se uma transformação

na luta das mulheres, que então almejavam trabalhar e sustentarem-se a si próprias, sendo

respeitadas em igualdade e capacidade.

Um período de grande efervescência se mostra e o processo também incorpora a

efervescência cultural presente na época, com os novos comportamentos afetivos e sexuais,

acesso a recursos de terapia psicológica e psicanalítica e etc. Há então inúmeros grupos e

coletivos de mulheres organizados para tratar de uma gama muito ampla de temas

relacionados à mulher, principalmente a partir das comemorações do Ano Internacional da

Mulher, em 1975. Assuntos como violência, sexualidade, direito ao trabalho, igualdade no

casamento, direito a terra, direito à saúde materno-infantil, luta contra o racismo e opções

sexuais, foram importantes também no sentido de, mais tarde, contribuir para o advento da

nova Constituição Federal, considerada um marco para os Direitos da mulher. A volta das

exiladas pela ditadura com a anistia de 79 também contribui para este ambiente favorável ao

debate e de fortalecimento da corrente feminista brasileira.

A criação do Conselho Estadual da Condição Feminina, em abril de 1983 significou

o surgimento do primeiro mecanismo de Estado voltado para a implementação de políticas

para a mulher no Brasil. Com esse fato sobrevieram críticas por parte dos que acreditavam

que a atuação no âmbito do Estado representava uma brecha na autonomia do movimento

feminista como um todo, como um processo de redemocratização. Podemos citar a fala de

Elizabeth Souza Lobo:

sobre grandes fortunas. No contexto da Guerra Fria e da polarização entre os Estados Unidos e a União

Soviética, estas ideias foram vistas como um passo em direção à implementação de uma ditadura socialista.

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[...] depois de 1982, em alguns Estados e cidades, se criaram os Conselhos

dos Direitos da Mulher, e mais adiante o Conselho Nacional dos Direitos da

Mulher, se configurou novos interlocutores na relação com os movimentos.

Duas posições polarizaram as discussões: de um lado, as que se propunham

ocupar os novos espaços governamentais, e do outro, as que insistiam na

exclusividade dos movimentos como espaços feministas (LOBO, 1987).

Dessa forma podemos delimitar aqui um terceiro momento, historicamente falando,

da arqueologia feminista no Brasil. Um dos principais objetivos deste nessa época era dar

visibilidade à violência contra as mulheres e combatê-la mediante intervenções sociais,

psicológicas e jurídicas.

No período da Assembleia Nacional Constituinte, em conjunto com outras

organizações do movimento em todo país, o CNDM (Conselho Nacional dos Direitos da

Mulher) conduziu uma campanha nacional denominada “Constituinte pra valer tem que ter

palavra de mulher”. Tal campanha objetivava maior participação na articulação das demandas

femininas e culminou com a elaboração de diversos eventos no país e sistematização de

propostas a nível regional e, posteriormente, nacional em um encontro com a participação de

duas mil mulheres. Surgiu assim a Carta das Mulheres à Assembleia Constituinte como forma

de sistematizar as ideias e apresentá-las à sociedade civil e aos constituintes. Mulheres de

todas as representatividades invadiram o Congresso Nacional.

Tais mulheres visavam garantir a aprovação das demandas do movimento e através

de uma ação direta de covencimento que ficou conhecida como lobby do batom, conseguiram

aprovar em torno de 80% de suas demandas. Isso representou uma quebra nos tradicionais

modelos de representação vigentes, como Celi Pinto explica:

[...] a presença constante das feministas no cenário da Constiuinte e a

consequente ‘conversão’ da bancada feminina apontam para formas de

participação distintas da exercida pelo voto, formas estas que não podem ser

ignoradas e que talvez constituam a forma mais acessível de participação

política das feministas. Este tipo de ação política, própria dos movimentos

sociais, não passa pela representação. Constituindo-se em pressão

organizada, tem tido retornos significativos em momentos de mobilização e

pode ser entendida como uma resposta à falência do sistema partidário como

espaço de participação (PINTO, 1994, p. 265).

Uma das conquistas mais importantes desse período são as delegacias da mulher, as

quais ainda constituem uma das principais políticas públicas de combate à violência contra a

mulher e à impunidade. A primeira delegacia da mulher – no mundo - foi criada na cidade de

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São Paulo em agosto de 1985 para que policiais femininos investigassem crimes em que a

vítima fosse mulher.

Já nos anos 90, a teoria feminista ganha uma proposta de construção de uma nova

subjetividade feminina e masculina. Podemos enxergar aí uma mudança teórico significativa,

sob a influência dos debates norte-americanos e franceses sobre a construção social de gênero

e começa a se propor a substituição da categoria “mulher” pela categoria “gênero”. Há o

nascimento de uma terceira onda do movimento, que foi abrindo espaço para questões de

ordem inconsciente, essa corrente relativiza a perspectiva dominação-vitimização. Foi-se

abrindo espaço para se trabalhar com o que Pierre Bourdieu denomina “violência simbólica”,

ou seja, internalização (inconsciente) do discurso do dominador pelo dominado, que o faz

cúmplice de sua dominação. Neste viés, as pesquisas de Heloisa Pontes e Maria Filomena

Gregori se destacaram e foram se tornando visíveis os elementos que permitam ver a

violência como um mecanismo relacional. (SARTI, 2004)

Nesta terceira onda inicia-se o feminismo da diferença, onde defende-se as

diferenças entre os sexos. A micropolítica é enfatizada, desafiando os paradigmas da segunda

onda a respeito do que não é bom para as mulheres.

Tais estudos contribuíram de forma decisiva para mostrar os intrincados problemas

nas relações de gênero, afirmando a necessidade de se trabalhar e pensar em termos de

identidades que se constituem em relações de gênero, afirmando a necessidade de se trabalhar

e pensar em termos de identidades que se constituem em relações construídas a partir de

referencias sociais e culturais específicas. Viu-se também que a análise do feminismo não

pode ser dissociada de sua enunciação, que lhe dá significado. Ou seja, as mulheres não

constituem uma categoria universal, elas se tornam mulheres em contextos sociais e culturais

específicos.

Além de se influenciarem pelos debates teóricos internacionais e nacionais sobre o

uso e definição da categoria gênero, nos anos 90 os estudos sobre violência contra as

mulheres também refletem mudanças no cenário jurídico-político nacional e internacional. O

processo de redemocratização do Brasil dá ensejo à promulgação de novas leis e novas

instituições – como as já citadas delegacias da mulher – que vêm ampliar formalmente os

direitos das mulheres. Com a ratificação, pelo Estado brasileiro, de normas internacionais

reconhecendo formalmente os direitos das mulheres como direitos humanos – por exemplo, as

Convenções da ONU e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a

Violência contra a Mulher, também chamada Convenção “Belém do Pará” -, o paradigma

internacional dos direitos humanos é também trazido para as práticas e estudos feministas.

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Nesse contexto, as pesquisas sobre violência contra as mulheres passam a enfatizar uma

preocupação com a ampliação dos direitos humanos das mulheres e o exercício de sua

cidadania no âmbito das instituições públicas, principalmente na esfera da Justiça. (SANTOS;

IZUMINO, 2005).

Aliadas a essas mudanças, se multiplicaram as várias modalidades de organizações e

identidades feministas. O crescimento do feminismo popular e a diversidade que ele trouxe

teve como consequência a diluição de barreiras e resistências ideológicas para com o

feminismo.

O resultado da I Conferência Nacional de Políticas para Mulheres é demonstração da

força e da capacidade de mobilização e articulação em torno de propostas transformadoras.

A 1ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres reuniu cerca de 2.500

pessoas em Brasília entre os dias 15 e 17 de julho de 2004. De acordo com a Articulação de

Mulheres Brasileiras (AMB), as 1.800 delegadas saíram com a sensação de dever cumprido.

O documento oficial, elaborado a partir da Plenária Final justifica esta avaliação, confirmada

nos acordos gerais, princípios, diretrizes e moções apresentadas. Durante o evento, o processo

de elaboração das diretrizes para uma Política Nacional para as Mulheres se deu a partir da

discussão do documento "Propostas de Diretrizes para uma Política Nacional para as

Mulheres", nos 20 grupos de trabalho constituídos durante o evento. .(ALVAREZ, 1994)

Já nos anos 2000, quando o Núcleo de Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo

(FPA) realizou sua primeira pesquisa sobre as mulheres brasileiras, os dados revelados

tornaram mensurável aquilo que a porção feminina da sociedade pensava e sentia na pele

cotidianamente. Ou seja, traduziu-se em dados que apesar da melhoria de vida e de condições

da mulher no país, ainda enfrentávamos sérios obstáculos. A continuidade de comportamentos

machistas e sexistas arraigados na sociedade e a violência contra a mulher em suas mais

variadas formas seguia sendo imensa.

Os dados citados foram publicados no livro “A mulher brasileira nos espaços

públicos e privados” em 2004 e tornaram-se referência relevante nos debates sobre gênero.

Desde então importantes conquistas foram obtidas. Exemplos são a criação em 2003 da

Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), pelo governo federal; os programas de

desenvolvimento, distribuição e geração de renda, ao apostarem nas mulheres como

destinatárias dos recursos e assegurarem a autonomia econômica e a emancipação social de

um enorme contingente de brasileiras; a aprovação da Lei Maria da Penha (n. 11.340/2006) e

a eleição de uma mulher para a Presidência da República do país, que deu a materialidade à

ideia de que lugar de mulher é no poder.

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Segundo Ilíada (2013), esses e outros avanços institucionais conjuntamente com os

obtidos no plano cultural e social a partir da luta individual ou coletiva de muitas mulheres

nos espaços públicos e privados, fez com que novos estudos fossem realizados.

Enquanto “novo” movimento social, o movimento feminista brasileiro extrapolou os

limites do seu status e do próprio conceito. Entrou no Estado, interagiu com ele, mas ao

mesmo tempo conseguiu permanecer como movimento autônomo. Através dos espaços aí

conquistados (conselhos, secretarias, coordenadorias, ministérios, etc.) elaborou e executou

políticas. O movimento reivindica, propõe, pressiona, monitora a atuação do Estado e

acompanha a forma como as demandas estão sendo atendidas.

A I Conferência Nacional de Políticas para Mulheres e seus resultados, são a

demonstração da força e da capacidade de mobilização e articulação de novas alianças em

torno de propostas transformadoras, não só da condição feminina, mas de toda a sociedade

brasileira. Para chegarmos aí houve um longo e tortuoso caminho de mudanças, dilemas,

enfrentamentos, ajustes, derrotas e vitórias.

O feminismo enfrentou o autoritarismo da ditadura militar construindo novos

espaços públicos democráticos, ao mesmo tempo em que se rebelava contra o autoritarismo

patriarcal presente na família, na escola, nos espaços de trabalho, e também no Estado.

Rompeu fronteiras para o florescer de novas práticas e identidades feministas. Mas é

importante lembrar que esse não é o ponto final do movimento, a cada vitória surgem novas

demandas e novos enfrentamentos.

No documento “Articulando a luta feminista nas políticas públicas, a AMB6

(Articulação de Mulheres Brasileiras) expõe que o feminismo ainda enfrenta a resistências

culturais e políticas e apresenta os três campos principais dessa resistência, são eles: os setores

que têm uma perspectiva funcional e antifeminista da abordagem de gênero; um setor que

questiona a existência do feminismo hoje e que acredita ser possível mudar a sociedade e

superar as injustiças apenas a partir de comportamentos individuais de homens e mulheres;

aqueles que não reconhecem a centralidade das desigualdades e buscam explicá-las apenas

pela classe. (Costa, Ana Alice Alcantara. 2004)

O desafio do movimento feminista hoje, com isso, é entender e começar a dar

respostas mais elaboradas a essas parcelas da sociedade, nas quais ainda persistem

considerações patriarcais e sexistas.

6

A AMB é uma organização política feminista, antirracista, não partidária, instituída em 1994 para coordenar as

ações dos movimentos de mulheres brasileiras com vistas à sua consolidação como sujeito político no processo

da IV Conferência Mundial sobre a Mulher – Igualdade, Desenvolvimento e Paz (ONU, Beijing, 1995).

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2.2 Práticas e aplicações da teoria feminista no Brasil

Os textos legais acabam por retratar, ainda que vagarosamente, a trajetória da mulher

no país. A seguir, discorreremos acerca de alguns dos avanços alcançados no Direito através

ou com a ajuda das lutas feministas por direitos e por condições mais igualitárias e justas para

as mulheres em nossa sociedade.

2.2.1 Direitos civis das mulheres e a nova configuração de família

O Código Civil de 1916 retrata a sociedade conservadora e patriarcal da época. Nas

palavras de Pontes de Miranda, a obra de Clóvis “[...] constitui algo de nacional, de

característico, a despeito do cosmopolitismo inerente às construções de feitio universitário,

nos povos novos”. O mesmo autor relata o ataque que Rui Barbosa desferiu ao projeto de

Clóvis Beviláqua não quanto ao conteúdo, mas somente no que diz respeito ao aspecto

vernacular, afirmando ironicamente que “são hoje trabalhos indispensáveis a quem procura

estudar a língua portuguesa, mas sem nenhum interesse jurídico”.

Dessa forma, pautados no livro “Feminismo e Política” de Luis Felipe Miguel e

Flávia Biroli, podemos afirmar que o antigo ordenamento civilístico outorgava o homem

como comando exclusivo da família, que se identificava pelo nome do varão, sendo a mulher

obrigada a adotar os sobrenomes do marido. O casamento era indissolúvel e só existia o

desquite – significando não quites, em débito para com a sociedade – que rompia a sociedade

conjugal, mas não dissolvia o casamento. Só o casamento constituía a família legítima e os

vínculos extramatrimoniais, além de não reconhecidos, eram punidos. Com o nome de

concubinato, eram condenados à clandestinidade e à exclusão não só social, mas também

jurídica, não gerando qualquer direito. Em face da posição da mulher, às claras, era ela a

grande prejudicada.

Dois passos importantes para o começo da dissolução da hegemonia masculina foram

a edição da Lei 6.121, o chamado Estatuto da Mulher Casada em 1962 e da Lei do Divórcio,

aprovada em 1977. A primeira devolveu a plena capacidade à mulher, que passou à condição

de colaboradora na administração da sociedade conjugal. Mesmo tendo sido deixado para a

mulher a guarda dos filhos menores, sua posição ainda era subalterna. Foi dispensada a

necessidade da autorização marital para o trabalho e instituído o que se chamou de bens

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reservados, que se constituía do patrimônio adquirido pela esposa com o produto de seu

trabalho. Já a Lei do Divórcio foi possível após a aprovação da Emenda Constitucional nº 9

que introduziu a dissolubilidade do vínculo matrimonial. A nova lei, ao invés de regular o

divórcio, limitou-se a substituir a palavra “desquite” pela expressão “separação judicial”,

mantendo as mesmas exigências e limitações à sua concessão. Trouxe, no entanto, alguns

avanços em relação à mulher. Tornou facultativa a adoção do patronímico do marido. Em

nome da equidade estendeu ao marido o direito de pedir alimentos, que antes só eram

assegurados à mulher “honesta e pobre”. Outra alteração significativa foi a mudança do

regime legal de bens. No silêncio dos nubentes ao invés da comunhão universal, passou a

vigorar o regime da comunhão parcial de bens.

Foi somente com o advento da Constituição Federal de 1988 que houve a maior

reforma já ocorrida no Direito de Família. Pela primeira vez foi enfatizada a igualdade entre

homens e mulheres, em direitos e obrigações (inc. I do art. 5º). De forma até repetitiva é

afirmado que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente

pelo homem e pela mulher (§ 5º do art. 226). Mas a Constituição foi além. Já no preâmbulo

assegura o direito à igualdade e estabelece como objetivo fundamental do Estado promover o

bem de todos, sem preconceito de sexo (inc. IV do art. 2º). A isonomia também foi imposta

entre os filhos, eis proibida quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, todos têm os mesmos direitos e

qualificações (§ 6º do art. 227). O próprio conceito de família recebeu da Constituição

tratamento igualitário. Foi reconhecida como entidade familiar não só a família constituída

pelo casamento. Foram albergadas nesse conceito a união estável entre o homem e a mulher e

a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (art. 226).

Porém, mesmo após o novo ordenamento constitucional, o legislador não havia

adequado os dispositivos da ordem infraconstitucional e, mesmo que sem eficácia,

continuavam no ordenamento jurídico como letra morta. Um exemplo é que mantinha o

Código Civil em elencos distintos os direitos e deveres do marido (arts. 233 a 239) e da

mulher (arts. 240 a 255). Permaneceu no texto legal assertivas como essas: art. 233 – o marido

é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher (...).

Compete-lhe: inc. I – a representação legal da família; inc. II – a administração dos bens

comuns e dos particulares da mulher (...); inc. III – o direito de fixar o domicílio da família

(...); inc. IV – prover a manutenção da família (...).

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Talvez um dos grandes méritos do atual Código Civil, tenha sido afastar toda uma

terminologia discriminatória, não só com relação à mulher, mas também com referência à

família e à filiação (Dias, Maria Berenice. A Mulher no Código Civil.).

O CC de 2002 substitui a palavra "homem" por "pessoa", e assim, sucessivamente,

em todo o Código, para que se retire definitivamente deste, toda e qualquer desigualdade nas

relações jurídicas, seguindo o princípio da isonomia declarado pela Carta Magna de 1.988.

De acordo com Cabral (2004), no novo CC, liga-se à pessoa a ideia de personalidade,

exprimindo aptidões genéricas para adquirir direitos e contrair obrigações. Assim, a pessoa

natural somente pode ser sujeito nas relações jurídicas, pois, possui personalidade e, portanto,

toda pessoa que tem personalidade é abrangida pela legislação civil e constitucional.

Uma inovação deste Código é a possibilidade que se dá para qualquer dos nubentes,

querendo, acrescentar ao seu nome o nome do outro e não apenas à mulher acrescentar o

nome do marido. Agora, o marido também poderá acrescer ao seu nome, o nome da esposa.

Ou ainda, continuarem com os nomes de solteiras. Inclui entre os direitos regulamentados

pelo Código Civil, a questão do Planejamento Familiar. E repetindo a Constituição Federal,

afirma que o Planejamento Familiar é livre decisão do casal, além de expressar que é uma

competência do Estado, propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse

direito. Proíbe, também, qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou

públicas. Ou seja, nenhuma instituição pode dizer às pessoas quantos filhos e quando eles

devem ter. A opção é da mulher, do homem ou do casal. São deveres de ambos os cônjuges:

I. fidelidade recíproca (não pode haver traição no casamento);

II. vida em comum, no domicílio conjugal (o casal deve viver sob o mesmo teto);

III. mútua assistência (a mulher ou o marido deve dar assistência quando o outro

precisar);

IV. sustento, guarda e educação dos filhos (ambos são responsáveis não apenas na

questão financeira, mas também na guarda e educação dos filhos. Isto pode ser entendido que

o homem também deve participar dos trabalhos domésticos com a casa e com as crianças);

V. respeito e consideração mútuos.

Dessa forma, a mulher deixou de ser apenas uma colaboradora do marido, que tinha

a chefia da família. Agora, a direção da sociedade conjugal passa a ser exercida por ambos,

marido e mulher, um colaborando com o outro, no mesmo pé de igualdade. Deve ser

respeitado, em primeiro lugar, o interesse do casal e dos filhos. Se houver alguma

divergência, qualquer um dos cônjuges poderá recorrer ao juiz, que decidirá considerando os

interesses do casal e dos filhos.

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Sobre o sustento da família e, partindo do princípio de que, a todo direito

corresponde um dever, este novo Código, além de estabelecer o direito da igualdade,

estabelece também as obrigações para com as despesas de sustento da família e a educação

dos filhos, que são obrigações tanto do homem como da mulher. Esta obrigação deve ser

cumprida, qualquer que seja o regime patrimonial.

Outra inovação é referente ao domicílio do casal. Anteriormente, o homem era quem

tinha o privilégio de escolher o local de moradia da família. Entre os direitos conquistados

pela mulher está a sua participação na escolha do domicílio, em igualdade de condições com o

homem. Também está explícito que qualquer um dos cônjuges pode ausentar-se do domicílio

conjugal para atender a encargos públicos, ao exercício de sua profissão, ou a interesses

particulares relevantes, sem que, com isto, esteja violando um dos deveres no casamento.

Para os casos nos quais um dos cônjuges esteja em lugar remoto ou não se saiba de

seu paradeiro, esteja encarcerado por mais de cento e oitenta (180) dias, interditado

judicialmente ou privado, mesmo que seja temporariamente de consciência, em virtude de

enfermidade ou de acidente, o outro exercerá com exclusividade a direção da família,

cabendo-lhe a administração dos bens, responsabilidades com os filhos e todos os demais

direitos e deveres no casamento.

2.2.2 Participação na política

A conquista do direito de voto no Brasil foi garantido em 1932, através do decreto

21.076 do Código Eleitoral Provisório, após intensa campanha nacional. Com a consolidação

da participação feminina nas eleições, a mulher passou a conquistar cada vez mais o seu

espaço no cenário político brasileiro. Fruto de uma longa luta, iniciada antes mesmo da

Proclamação da República, foi ainda aprovado parcialmente por permitir somente às mulheres

casadas (com autorização dos maridos) e às viúvas e solteiras que tivessem renda própria, o

exercício de um direito básico para o pleno exercício da cidadania.

Já em 1934, as restrições ao voto feminino foram eliminadas do Código Eleitoral,

embora a obrigatoriedade do voto fosse um dever masculino. Em 1946, a obrigatoriedade do

voto foi estendida às mulheres.

Sobre a participação efetiva da mulher na política o Brasil, com menos de 9% de

mulheres na Câmara dos Deputados, está entre os piores colocados no ranking internacional,

atrás de 154 países. Desde que o acompanhamento começou a ser feito há uma tendência de

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ampliação da presença feminina nos parlamentos do mundo, mas em velocidade reduzida,

com um aumento médio de meio ponto percentual por ano.

Dessa forma, fica claro que a abolição das barreiras legais não representou o acesso a

condições igualitárias de ingresso na arena política. O insulamento na vida doméstica retira

delas a possibilidade de estabelecer a rede de contatos necessária para se lançar na carreira

política. Aquelas que exercem trabalho remunerado permanecem em geral como responsáveis

pelo lar, no fenômeno conhecido como “dupla jornada de trabalho”, tendo seu tempo para

outras atividades reduzido, como atuação na política.

Segundo Miguel (2013), no Brasil a mudança começa a partir dos anos finais de

regime militar, quando foram criados conselhos estaduais dos direitos das mulheres, em

seguida já no início do novo governo civil, surgiram as delegacias especializadas no

atendimento à mulher e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulheres (CNDM), como já

discorrido neste trabalho. Já em 2003, por fim, o governo federal criou a Secretaria de

Políticas para as Mulheres, com status de ministério. Tais experiências marcam a vitória de

um movimento feminista que se empenhava em fazer o Estado trabalhar no sentido da

igualdade de gênero Também em 2013 criou-se a Secretaria Especial de Políticas de

Promoção da Igualdade Racial (Seppir), também com status de ministério, tendo como um

dos seus focos a mulher negra e todas as ministras vieram do movimento de mulheres. Foram

realizadas três Conferências de Políticas para as Mulheres – 2009, 2010, 2011; institui-se o

Prêmio “Construindo a Igualdade de Gênero” para as categorias de estudantes de graduação e

pós-graduação. Realizaram-se também inúmeros Fóruns Nacionais de Elaboração de Política

de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres do Campo e da Floresta; a Conferência

Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transsexuais em 2008; e criou-se o

Memorial da Mulher Brasileira em 2010.

Os estudos que mostram essa nova realidade da influência das organizações de

mulheres na ampliação dos direitos civis e políticos consignados na legislação vêm ganhando

força.

Citando a tese de doutora de Patrícia Rangel, podemos inferir que as

[...] protagonistas (do Brasil) tiveram sucesso em transitar por distintos

espaços e influenciar decisões nos três poderes [...] por meio do novo

patamar institucional de intermediação entre Estado e sociedade e de

representação nas formas de participação [...] tornando mais claras as

relações entre representação substantiva e descritiva das mulheres e o

impacto dos movimentos feministas sobre as políticas.

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Podemos concluir que uma coisa é a militância das mulheres nas instituições de

representação sem autorização eleitoral, outra coisa é o eleitorado, com reservas de

conservadorismo e tradicionalismo de gênero. Um fato interessante, ainda, é o que as próprias

mulheres pensam sobre sua relação com a política. Para Avelar (2013), são evidentes os

ganhos obtidos no campo dos direitos das mulheres como resultado de ações no campo

institucional, porém o eleitorado desconhece as ações e tem uma maioria desinformada devido

à baixa escolaridade e pelo apego a valores tradicionais e conservadores.

2.2.3 Violência doméstica – Lei Maria da Penha

A Lei 11.340/2006 ou Lei Maria da Penha é a primeira e mais relevante normativa

nacional de prevenção, assistência e punição à violência doméstica e familiar contra as

mulheres. A promulgação da Lei rompeu com a visão jurídica tradicional de lidar com a

violência praticada contra mulheres e, por isso, sofreu fortes resistências.

A respeito da citada lei, Pachá (2008) afirma:

Eu acho que é muito importante o passo que se deu para criar essa lei e para

ter coragem de enfrentar esse problema do tamanho que ele tem. Eu acho

que muito mais do que um problema com consequências graves, a violência

doméstica é fruto da ignorância. As pessoas não denunciam porque têm

medo e, normalmente, o medo é o pior inimigo que se pode ter para reverter

esse quadro (PACHÁ, 2008, p. 89).

Logo após sua promulgação alguns operadores do direito recusaram-se a aplicá-la

sustentando a sua inconstitucionalidade por acreditarem violar o princípio da igualdade entre

homens e mulheres ao proteger exclusivamente as mulheres. Porém, recentes decisões do STF

julgaram constitucional a Lei Maria da Penha e, decidiu também, que nos casos de lesão

corporal de natureza leve não cabe representação, isto é, a ação penal é movida

independentemente do desejo da vítima de processar o agressor.

Segundo Moraes (2000):

A lei 11.340/06 não é perfeita, mas traz em seu bojo, dentre outros aspectos,

todo o procedimento a ser seguido tanto pela Polícia Judiciária, Ministério

Público e Judiciário. Também estabelece medidas protetivas de urgência

relativas à vítima. Assim, a lei Maria da Penha possui um espírito muito

mais educacional e de incentivo às ações afirmativas que de punição mais

severas aos agressores (MORAES, 2000, p. 179).

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Segundo Hein (2013), a cultura da violência é prática diária nas relações familiares,

fato constatado em pesquisas. Há muito que as feministas vêm denunciando e abordando que

o contexto familiar não é local pacífico para as mulheres e crianças. Porém a naturalização da

resolução de conflitos através de atos violentos é uma prática que atinge também as mulheres.

A experiência de ter apanhado quando criança parece conduzir a comportamentos violentos

ou sua aceitação na idade adulta e diversos estudos psicológicos apontam para essa ligação.

Com a Lei Maria da Penha algumas mudanças ocorreram na esfera jurídica: a Lei

Maria da Penha tipifica e define a violência doméstica e familiar contra a mulher; estabelece

as formas da violência doméstica contra a mulher como sendo física, psicológica, sexual,

patrimonial e moral; determina que a violência doméstica contra a mulher independe de

orientação sexual; retira dos Juizados Especiais Criminais a competência para julgar os crimes

de violência doméstica contra a mulher; proíbe a aplicação destas penas; foram criados

Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher com competência cível

e criminal para abranger todas as questões; prevê um capítulo específico para o atendimento

pela autoridade policial para os casos de violência doméstica contra a mulher; a mulher

somente poderá renunciar perante o Juiz; é vedada a entrega da intimação pela mulher ao

agressor; possibilita a prisão em flagrante; altera o Código de Processo penal para possibilitar

ao Juiz a decretação da prisão preventiva quando houver riscos à integridade física ou

psicológica da mulher; a mulher vítima de violência doméstica será notificada dos atos

processuais especialmente quanto ao ingresso e saída da prisão do agressor; a mulher deverá

estar acompanhada de advogado ou defensor em todos os atos processuais; altera o art. 61 do

Código Penal para considerar este tipo de violência como agravante de pena; a pena do crime

de violência doméstica passará a ser de 3 meses a 3 anos; se a violência doméstica for

cometida contra mulher portadora de deficiência, a pena será aumentada em 1/3; altera a Lei

de Execuções Penais para permitir que o Juiz determine o comparecimento do agressor a

programas de recuperação e reeducação.

O Título I da referida Lei, que trata das Disposições Preliminares, traz o seguinte

texto:

Art. 1º - Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência

doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da

Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas

de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir,

Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados

internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a

criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e

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estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de

violência doméstica e familiar.

Art. 2º - Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação

sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos

fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as

oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde

física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

Art. 3º - Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo

dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à

cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à

cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e

comunitária.

§ 1º - O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos

humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no

sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação,

exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 2º - Cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições

necessárias para o efetivo exercício dos direitos enunciados no caput.

Art. 4º - Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que

ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em

situação de violência doméstica e familiar.

Diante disso, torna-se imprescindível a atuação do Estado na implementação de

políticas públicas em busca da aplicação da Lei.

Cabe ainda citar que, além da crítica em relação ao alcance de tal Lei, também há

uma crítica quanto ao alcance dela em relação às mulheres trans. Sem dúvida a lei trata

também das relações entre homossexuais. Todavia, para seus efeitos, a relação entre

homossexuais há de ser, aparentemente, apenas do sexo feminino. A discussão jurisprudencial

sobre o abarcamento das trans na mesma se torna cada vez mais importante.

Nesse sentido, é importante analisar a Lei Maria da Penha sob a perspectiva de uma

ação afirmativa, pois visa amparar mulheres em situações prejudiciais e desiguais. Nas

palavras de Guilherme Peña de Moraes, as ações afirmativas podem ser definidas como:

como políticas ou programas, públicos ou privados, que objetivam conceder algum

tipo de benefício a minorias ou grupos sociais que se encontrem em condições

desvantajosas em determinado contexto social [...] ou [...] como compensação de

danos causados por discriminações ocorridas no passado ou distribuição de

benefícios entre os membros da sociedade, de sorte a viabilizar o acesso de minorias

a determinadas posições no futuro, em atenção à diversidade de origem, raça, sexo,

cor e idade (DE MORAES, 2003).

A proteção ao gênero justifica-se, portanto, pelo contexto patriarcal no qual as relações

sociais estão inseridas dentro de uma sociedade, onde mulheres são agredidas, feitas de objeto

e subjugadas pelo só fato de serem mulheres. Ainda nesse contexto, deve-se encarar o termo

“benefício” utilizado pelo autor de maneira crítica, posto que as políticas públicas de ações

afirmativas têm papel reparador em vista de uma igualdade de fato, embora que de antemão

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possa ser interpretado como uma discricionariedade em favor de um grupo que encontra-se

em situação semelhante aos demais. Cumpre frisar que a corrente feminista da dominação

patriarcal remonta ao conceito foucaultiano estático de poder, e, dessa forma, mostra-se

insuficiente para a compreensão de tal violência, consoante o seguinte entendimento:

[...] a segunda corrente, que chamamos de dominação patriarcal, é influenciada pela

perspectiva feminista e marxista, compreendendo violência como expressão do

patriarcado, em que a mulher é vista como sujeito social autônomo, porém

historicamente vitimada pelo controle social masculino – grifo do autor.

[...] Adotando o conceito de poder de Foucault e o conceito de gênero de Scott,

Izumino argumenta que “pensar as relações de gênero como uma das formas de

circulação de poder na sociedade significa alterar os termos em que se baseiam as

relações entre homens e mulheres nas sociedades; implica em considerar essas

relações como dinâmicas de poder e não mais como resultado da dominação de

homens sobre mulheres, estática, polarizada”. Nessa perspectiva, violência de

gênero não pode ser definida como uma relação de dominação do homem sobre a

mulher. A situação de violência conjugal, por exemplo, encerra uma relação de

poder muito mais complexa e dinâmica do que a descrita pelo viés da dominação

patriarcal (SANTOS, IZUMINO, 2005).

Nota-se ainda que, na espécie, o legislador não ampliou o alcance da tutela para a

proteção de transexuais e travestis. Ao citar o termo “gênero” no dispositivo legal, o

legislador culmina por ser omisso quanto ao seu real significado, dando margem a discursos

pautados no conceito biológico, um conceito limitado cujo objetivo é definir o gênero de uma

pessoa a partir do sexo designado ao nascer. Dessa maneira, é necessária uma análise mais

profunda acerca dos conceitos de sexo e de gênero, bem como o grau de reflexo de padrões

cisgênero7 e heteronormativo

8 nesse dispositivo legal, de modo a concluirmos pela

imprescindibilidade de uma reforma quanto ao tratamento de travestis e transexuais no Direito

por uma via não binária na contramão do patriarcado e das suas ressonâncias.

2.2.4 Aborto

É claro para nós hoje em dia que a criminalização do aborto impede a autonomia das

mulheres no país. A opressão patriarcal sobre as mulheres e a construção de fartos

7

Termo utilizado para se referir às pessoas cujo gênero é o mesmo que o designado em seu nascimento. 8

A heteronormatividade diz respeito ao conjunto de obrigações sociais impostas pela suposição de que a

heterosexualidade é o fundamento da sociedade. Diante disso, é possivel analisar a heteronormatividade a partir

do conceito de heteronomia, pois “significa a aceitação da norma que não é nossa, que vem de fora, quando nos

submetemos aos valores da tradição e obedecemos passivamente aos costumes por conformismo ou por temor à

reprovação da sociedade ou dos deuses”, em oposição a este, temos o conceito de autonomia, que “não nega a

influência externa, os condicionamentos e os determinismos, mas recoloca no homem a capacidade de refletir

sobre as limitações que lhe são impostas, a partir das quais orienta a sua ação. Portanto quando decide pelo dever

de cumprir uma norma, o centro da decisão é ele mesmo, a sua própria consciência moral”. ARANHA, M. L. A.;

MARTINS, M. H. P. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1986.p. 307/308.

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mecanismos de controle sobre o corpo feminino, bem como a construção do modelo atual de

maternidade e o modelo atual de feminilidade profundamente atrelado à maternidade,

naturalizando a mulher como ser destinado a reprodução são fatores cruciais para explicar

todo o tabu constituído em torno do tema.

O tema do direito ao aborto entrou na agenda do movimento feminista brasileiro no

início dos anos 1980. Tardio por que os movimentos sociais anteriormente eram

profundamente influenciados por setores religiosos e os temas tratados pelo feminismo, em

particular aqueles que tocam a família e a sexualidade, sempre foram um campo de conflito

entre os direitos das mulheres e a igreja.

Segundo Gomes (2012), a legislação brasileira permite o aborto em alguns casos.

O Código Penal, no art. 128, prevê duas hipóteses de aborto permitido: o necessário, quando

há risco de vida para a gestante (CP, art. 128, I) e o humanitário ou sentimental (quando a

gravidez resulta de estupro – CP, art. 128, II).

Mas também há uma exceção, como por exemplo no caso de se constatar que a

mulher carrega dentro de si um feto anencefálico9. De acordo com o STF, aborto de

anencefálico não é crime, não necessitando de ordem judicial para tal, cabendo aos médicos a

decisão de realizar o aborto ou não. Em caso de aborto o médico deverá constatar que o feto é

anencefálico e a inviabilidade da vida (GOMES, 2012).

A despeito de tal assertiva há jurisprudências:

Ementa: HABEAS CORPUS. FETO ANENCEFÁLICO. ABORTO

EUGENÉSICO. PEDIDO DOSIMPETRANTES PARA QUE SEJA

RECONHECIDO O DIREITO DO PACIENTE (NASCITURO) À COMPLETA

GESTAÇÃO. SUPERVENIENTE AUSÊNCIA DE INTERESSEPROCESSUAL.

ESCLARECIMENTO DA GESTANTE DE QUE NÃO MAIS

PRETENDEREALIZAR O ABORTAMENTO. ULTERIOR PETIÇÃO DOS

IMPETRANTES NA QUALPUGNAM PELA PREJUDICIALIDADE DO

HABEAS CORPUS, ANTE O TRANSCURSO DOPRAZO DO ALVARÁ

JUDICIAL. WRIT PREJUDICADO. 1. Na hipótese, o Juiz de Direito da Vara

Única da Comarca de Santa Adélia/SP proferiu, em 09/02/2011, sentença por meio

da qual autorizou Gestante a submeter-se "aos procedimentos médicos necessários

para a antecipação/interrupção do parto". Tal autorização ocorreu após a realização

de exames pré-natal e de ultrassom, em hospital público municipal, que constataram

a "má formação fetal do crânio, denominada pela medicina como anencefalia". 2.

Levado em mesa para julgamento na sessão do dia 7 de junho de2011, esta Turma, à

unanimidade, entendeu por bem converter o feito em diligência, para que a Gestante

fosse ouvida sobre seu desejo de proceder à intervenção cirúrgica, ou se teria dela

desistido. Em juízo, no dia 9 de junho de 2011, esclareceu a Grávida que desistiu do

procedimento. 3. Outrossim, conforme esclarecem os Impetrantes, em petição na

9 Trata-se de patologia letal. Bebês com anencefalia possuem expectativa de vida muito curta, embora não se

possa estabelecer com precisão o tempo de vida que terão fora do útero. A anomalia pode ser diagnosticada, com

certa precisão, a partir das 12 semanas de gestação, através de um exame de ultra-sonografia, quando já é

possível a visualização do segmento cefálico fetal.

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qualposteriormente pugnam pela prejudicialidade do writ, a interrupção do parto

fora autorizada por intermédio de alvará judicial expedido em 10 de fevereiro de

2011, cuja validade era de 120 dias .Ultrapassado tal prazo, resta configurada a

ulterior ausência de interesse na tramitação do presente writ. 4. Habeas corpus

prejudicado, cassando a liminar anteriormente deferida (STF, 2011).

Sabemos que o procedimento ocorre, de qualquer forma, a despeito da saúde das

mulheres que o fazem, pois o fazem muitas vezes em clínicas clandestinas ou com auxílio de

remédios muito invasivos.

Observa-se então que há um ponto favorável na questão de aborto de feto

anencefálico, no entanto, ainda há um grande caminho a ser percorrido por conta da

legalização do aborto no país.

2.2.5 Direitos trabalhistas

Há alguns anos atrás as mulheres eram consideradas um perigo para a sociedade,

como é o caso do pensamento de Hegel (1958), “Se as mulheres estão no ápice do governo, o

estado corre perigo. A formação das mulheres se faz não sabemos como, mais pelas

circunstâncias da vida do que pela aquisição de conhecimento”.

Em uma sociedade patriarcal, Hegel (1958) materializa este texto em seu clássico

Filosofia do Direito, trazendo à tona a discriminação que as mulheres sofriam, principalmente

no que dizia respeito à política.

Para Del Priori (2001), o mercado de trabalho foi outro meio social no qual a mulher

foi vítima de preconceitos e humilhações, principalmente no que dizia respeito ao

desempenho profissional, sendo desde a Revolução Industrial submetida a serviços pesados

sem que houvesse qualquer tipo de respeito à dignidade da pessoa.

Com o surgimento de legislações de caráter protecionistas em favor da mulher a

mesma gradativamente foi tomando conta do mercado de trabalho, notando-se uma mudança

no comportamento social (DEL PRIORI, 2001).

Destaca-se a Constituição Federal de 1988 e a Consolidação das Leis Trabalhistas

(CLT), as quais garantem a dignidade e proteção ao trabalho da mulher, embora em sua

redação observa-se um tom discriminatório ao salientar a necessidade de passar a imagem da

mulher como um ser frágil, que necessita de maiores regalias, levando muitas vezes o

empregador a não admiti-las (DEL PRIORI, 2001).

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A Constituição Federal estabelece no seu art. 5º, inciso I que homens e

mulheres são iguais em direitos e obrigações. No art. 7°, inciso XX prevê

incentivos específicos, visando à proteção do mercado de trabalho da

mulher, no XXX existe a proibição da diferença de salários, de exercício de

funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado

civil (BRASIL, 1988).

A Consolidação das Leis do Trabalho, em seu capítulo III, estabelece normas

especiais de proteção ao trabalho da Mulher, do art. 372 ao art. 400, com as

penalidades pela inobservância contidas no art. 401 (BRASIL, 1943).

Por se tratar as medidas de proteção ao trabalho da mulher de ordem pública, não há

que se falar em redução salarial, bem como não pode haver anúncio de emprego referência a

sexo, idade, cor ou situação familiar, exceto quando a natureza da atividade exigir. Os

mesmos critérios não podem ser considerados para fins de remuneração, formação

profissional e possibilidades de ascensão profissional, nem para recusa de emprego ou

dispensa. Também não constitui motivo de dispensa, o estado de gravidez.

Segundo Pachá (2008, p. 102):

O trabalho noturno (aquele compreendido entre as 22 horas de um dia até as

05 horas do dia seguinte) terá um acréscimo de 20% sobre o trabalho diurno,

sendo a hora noturna de 52 minutos e 30 segundos, desta forma computando-

se neste período de tempo, 8 horas. Estes preceitos, na verdade, valem para

os trabalhadores em geral, assim como os períodos de descanso (11 horas

consecutivas, no mínimo, entre duas jornadas, e 01 hora, no mínimo, no

máximo 02, para refeição e repouso, salvo redução autorizada por ato do

Ministério do Trabalho). Também no descanso semanal remunerado de 24

horas, que deve coincidir no todo ou em parte com o domingo, bem como

nos trabalhos em feriados, observa-se os preceitos referentes aos

trabalhadores em geral.

Os locais de trabalho devem ser confortáveis, havendo vestiários privativos das

mulheres, bem como as mesmas devem receber gratuitamente o equipamento de proteção

individual. Em locais que trabalham ao menos trinta mulheres acima de dezesseis anos de

idade, é indispensável um local onde seja possível a guarda sob vigilância das crianças no

período de amamentação. Os convênios com creches são admitidos como forma de suprir esta

exigência (PACHÁ, 2008).

A licença maternidade hoje é de seis meses (Lei 11.770/2008), com garantia de

salário, mesmo em caso de parto antecipado, podendo durante o período da gravidez, se

necessário for, por motivo de saúde, a gestante ser transferida de função, e após a licença

retornar à sua função original (PACHÁ, 2008).

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Em caso de adoção ou guarda, a mulher terá uma licença maternidade de 120 dias

para crianças com até um ano de idade, 60 dias para crianças de 01 a 04 anos de idade e de 30

dias para crianças de 04 a 08 anos de idade (PACHÁ, 2008).

Caso o médico julgue o trabalho prejudicial à gestação, é facultado à gestante o

rompimento do contrato de trabalho. Em caso de aborto não criminoso a mulher terá duas

semanas de descanso remunerado, devendo o mesmo ser comprovado através de atestado

médico, retornando à sua função original após o afastamento (PACHÁ, 2008).

No caso de amamentar filho até seis meses, a mulher tem direito a dois descansos de

meia hora cada um durante a jornada de trabalho. Os locais destinados à guarda e

amamentação deverão possuir, no mínimo, um berçário, uma saleta para amamentação, uma

cozinha dietética e uma instalação sanitária. Vale salientar ainda que a estabilidade da

gestante estende-se até o quinto mês após o parto.

Pereira (2005) atenta para o fato de que dia após dia a mulher tem conquistado seu

lugar na sociedade, onde as mudanças de caráter ideológico, político, social e jurídico tem

sido observadas. Igualmente importante a observação do autor aos vários movimentos de

caráter social e moralista que são desenvolvidos em prol de se valorizar e proteger o trabalho

da mulher.

Em seu início a proteção ao trabalho feminino foi visto com um ar de ameaça, sendo

apontada a legislação trabalhista como justificativa para que a mulher tivesse regalias no

ambiente de trabalho. Com isso houve grande impacto no mercado de trabalho, dificultando o

acesso das mulheres, as quais muitas vezes concordava com os baixos salários e jornadas de

trabalho excessivas para garantir o emprego (PEREIRA, 2005).

No entanto, com o passar do tempo novas posturas foram adotadas, tendo-se a

mulher como um indivíduo que apresenta momentos de fragilidade, a despeito da gravidez,

amamentação, sendo a mesma resguardada em seus direitos pela legislação vigente

(PEREIRA, 2005).

Pereira (2005) observa que a legislação está se adequando a cada dia que passa à

realidade social e fazendo de tudo para reconhecer a igualdade entre o homem e a mulher em

todas as esferas sociais, propiciando à mulher maior identidade, dando-lhe a oportunidade de

ter acesso ao mercado de trabalho, onde pode contribuir para o desenvolvimento do país e

sentir-se cidadã participativa.

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2.3 Direitos da mulher como direitos humanos (ou a perspectiva internacional)

A Declaração Universal dos Direitos Humanos promulgada pelas Nações Unidas em

10 de dezembro de 1948 foi fundamental para garantia dos direitos do ser humano, uma vez

que considera todas as pessoas titulares de direitos, independentemente de sua condição

social, sexo, credo político ou religioso, raça e etnia.

Contudo, conforme dito por Bobbio (1992):

Mesmo assim, as mulheres foram excluídas dos direitos humanos por serem

discriminadas historicamente. São alvo principal da violência doméstica e sexual,

praticada, na maioria das vezes, por pessoas de sua própria família, de suas relações

íntimas, como marido, companheiro ou namorado. Tratava-se desta violência como

um fenômeno natural entre mulheres e homens e não cabia ao Estado ou à sociedade

intervir diretamente. Considerava-se, então, violação de direitos humanos somente

atos de violência policial ou institucional, não a violência doméstica ou contra a

mulher. Somente em 1993, com a realização da Conferência Mundial de Direitos,

em Viena, os direitos humanos das mulheres foram reconhecidos. O documento

produzido naquela Conferência, a Declaração de Direitos Humanos de Viena, em

seu parágrafo 18, afirma categoricamente: "os direitos humanos das mulheres e das

meninas são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos

universais” (BOBBIO, 1992, p. 45).

Em função disso, no ano de 1993, com o objetivo de resolver tal omissão, a

Organização das Nações Unidas realizou a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos a

qual admitiu ser a violência contra a mulher um obstáculo ao desenvolvimento, à paz e aos

ideais de igualdade entre os seres humanos. Igualmente entendeu que a violência contra a

mulher é uma violação aos direitos humanos e que esta violência tem como premissa ser a

pessoa agredida do sexo feminino.

A preocupação foi e é tão grande que em 1994 a ONU aprovou a Declaração sobre a

Eliminação da Violência contra a Mulher promulgando pela OEA, a Convenção

Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.

No ano de 1994 na Áustria, durante a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos,

o movimento de mulheres levantou a bandeira de luta “Os Direitos das Mulheres também são

Direitos Humanos”.

Desde então observam-se significativos avanços, sendo que na Declaração e

Programa de Ação de Viena os direitos humanos das mulheres e das meninas foram incluídos

como sendo inalienáveis, fazendo parte integral dos direitos humanos universais.

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Referido fato é importante posto que os direitos das mulheres foram

reconhecidos, pela primeira vez, como direitos humanos e, foi em

decorrência deste Programa em Viena que a Assembleia Geral das Nações

Unidas aprovou, em 20.12.1993 a Resolução 48/104, contendo a Declaração

sobre a Violência contra a Mulher, tema que, até então, não contava com

nenhum documento específico no mundo.

Desta forma tem-se que tal documento foi a base para a Convenção Interamericana

para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher além de ter sido o precursor ao

definir a violência de gênero, englobando a violência física, sexual e psicológica ocorrida no

âmbito público ou privado.

No ano de 1994 a Comissão de Direitos Humanos da ONU determinou que uma

relatora especial monitorasse a violência contra a mulher em todo o mundo, momento em que

a mesma foi internacionalmente reconhecida como violação dos direitos humanos das

mulheres.

Romero (2008) salienta:

Tais documentos são instrumentos fundamentais para a proteção e defesa dos

direitos humanos das mulheres. Criam obrigações para os Estados e toda a sociedade

de tomar medidas e desenvolver ações veementes para prevenir, enfrentar e pôr fim

à violência contra a mulher e à violência racial que atinge prioritariamente a

população negra e indígena. Os números da violência contra a mulher são

alarmantes. Em Viena constatou-se que anualmente o número de mulheres vítimas

da violência de gênero é maior do que o número de vítimas de todos os conflitos

armados no mundo. A divulgação das conquistas internacionais dos movimentos de

mulheres torna-se necessária, incluindo a avaliação da sua utilização no cotidiano da

vida e do trabalho das pessoas. É fundamental celebrar os 10 anos de Viena para

lembrar a todos e todas, em particular ao Poder Público, a obrigação e o

compromisso de formular e implementar políticas públicas que garantam segurança

e relações igualitárias entre os diferentes segmentos da população (ROMERO, 2008,

p. 76).

No ano de 1995 em Pequim, na IV Conferência Mundial sobre a Mulher os direitos

da mulher como direitos humanos foram reconhecidos definitivamente por meio da

Declaração e Plataforma de Ação. No ano de 1998, a Declaração dos Direitos Humanos fez

cinquenta anos e estas conquistas foram renovadas.

Para Romero (2008), apesar de todo este avanço ainda há a necessidade de

divulgação dos direitos constitucionais e dos direitos internacionais que colaboram

efetivamente para combater a violência contra a mulher.

Ainda hoje a violência contra a mulher, principalmente no âmbito doméstico é

grande, sendo esta uma forma de violação dos direitos humanos mais comuns e com

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frequência não exposta devido à negligência do poder público e da própria sociedade

(ROMERO, 2008).

Segundo Romero (2008) a impunidade é fator preponderante para que se continue

violando os direitos da mulher, principalmente no que diz respeito à violência doméstica,

onde a sociedade toma este tipo de violência como um simples acontecimento que é próprio

das relações familiares.

A cultura exige que a esteriopatização do gênero masculino seja em função do

homem desempenhar um papel de autoridade, independente e proprietário e a mulher ser

submissa, medrosa e carinhosa (ROMERO, 2008).

Em grau cada vem mais elevado ocorre a violência doméstica, a qual também recebe

a denominação de violência sexista, indo de um simples empurrão a um assassinato, onde o

ciclo agressão, conciliação, maior agressão, conciliação influencia não só o estado emocional

da mulher, bem como dos filhos, que a tudo assiste sem ter o que fazer (ROMERO, 2008).

A Constituição Federal de 1988 foi um marco na afirmação da plena cidadania da

mulher. Para Lima (2004):

A Constituição, como documento jurídico e político dos cidadãos, buscou

romper com um sistema legal fortemente discriminatório contra as mulheres

e ainda contribuiu para que o Brasil se integrasse ao sistema de proteção

internacional dos direitos humanos, reivindicação histórica da sociedade

(LIMA, 2004, p. 203).

Igualmente importante, segundo Lima (2004) foram os dois tratados internacionais

assinados pelo Brasil, tendo em vista a preocupação com a violência doméstica: Convenção

da Organização das Nações Unidas sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação

contra a Mulher, e Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência

contra a Mulher. A este respeito Lima (2004) assevera:

Tais tratados, além de criarem obrigações para o Brasil perante a

comunidade internacional, também originam obrigações no âmbito nacional

e geram novos direitos para as mulheres que passam a contar com a instância

internacional de decisão, quando todos os recursos disponíveis no nosso país

falharem na realização da justiça. Isto significa que é possível, portanto,

pedir auxílio e denunciar práticas de violência contra a mulher à Comissão

Interamericana de Direitos Humanos (LIMA, 2004, p. 209).

Conforme salienta Romero (2008):

Passo a passo, unem-se a sociedade e o Estado em ações que visam à prevenção e

combate à violência doméstica. Por meio de normas legais, políticas públicas e

jurisprudência os Poderes constituídos vêm atendendo aos reclamos dos movimentos

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feminista e de mulheres. Muitos conceitos retrógrados caíram por terra, dando lugar

a doutrinas que realçam a dignidade da mulher como ser humano e sua igualdade

face ao homem (ROMERO, 2008, p. 204).

Algumas legislações surgiram antes mesmo da promulgação da Lei Maria da Penha.

2.4 Efeitos constitucionais na tutela dos Direitos da mulher

O Projeto de Lei nº 117/03, da deputada Lara Bernardi, que elimina a expressão

"mulher honesta" dos artigos 216 e 231 do Código Penal. No mesmo projeto a deputada

propõe a alteração do artigo 129 daquele Código, introduzindo o crime de violência

doméstica.

Desta forma, a violência contra a mulher passou a ser entendida como qualquer ato

ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou

psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada (art. 1º da Convenção de

Belém do Pará).

Uma vez que os agressores das mulheres comumente são parentes ou pessoas

próximas, este conceito alarga ainda mais sua importância ao preocupar-se com a violência na

esfera privada, isto é, a violência doméstica.

Segundo Romero (2008):

O indivíduo, ao agredir ou matar sua mulher, porque ela deixou de fazer a comida,

não chegou cedo em casa, enfim, resolveu desobedecê-lo, está difundindo um

modelo perigoso à ordem pública. A pouca importância dada aos crimes cometidos

no espaço doméstico pode levar ao entendimento de que existe uma lei privada, uma

lei interna às famílias que permite que pais castiguem filhos até à brutalidade e que

maridos e companheiros castiguem suas mulheres porque elas não corresponderam

ao papel de esposas ou de mães tradicionais (ROMERO, 2008, p.208).

A mulher dentro do contexto doméstico é rotineiramente penalizada em dobro.

2.4.1 Convenção de Belém do Pará

Segundo Lima (2004, p. 85):

A Convenção de Belém do Pará estabelece como preceito que a mulher está

protegida pelos demais direitos previstos em todos os instrumentos regionais

e internacionais relativos aos direitos humanos, mencionando expressamente

o direito a que se respeite sua vida, integridade física, mental e moral; direito

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à liberdade e à segurança pessoais; o direito a não ser submetida à tortura; o

direito a que se respeite a dignidade inerente a sua pessoa e a que se proteja

sua família; o direito a igual proteção perante a lei e da lei; o direito a

recurso simples e rápido perante tribunal competente que a proteja contra

atos que violem os seus direitos; o direito de livre associação; o direito de

professar a própria religião e as próprias crenças, de acordo com a lei; e o

direito a ter igualdade de acesso às funções públicas de seu país e a

participar nos assuntos públicos, inclusive na tomada de decisões.

Para esta Convenção a violência contra a mulher, seja sexual, física ou psicológica,

tolhe seus direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais e, sendo assim é capaz de

lesar, simultaneamente, vários bens jurídicos protegidos (LIMA, 2004).

O Estado possui a responsabilidade de proteger a mulher da violência no âmbito

privado e público. Desta forma os Estados têm o dever adotar medidas que previnam a

violência, investigue qualquer violação, responsabilizando os violadores, e assegurando a

existência de recursos adequados e efetivos para a devida compensação às violações.

Lima (2004) afirma:

A Convenção adotou a sistemática de deveres exigíveis de imediato e de deveres

exigíveis progressivamente. Os últimos assumem a feição de medidas programáticas

a serem adotadas paulatinamente e referem-se em sua maior parte a medidas

educativas, principalmente preventivas, destinadas a evitar a violência contra a

mulher. É importante ressaltar que tais direitos, sejam de natureza imediata ou

progressiva, devem ser concomitantemente aplicados. Para a avaliação da sua

implementação nos Estados, estes devem enviar relatórios para a Comissão

Interamericana de Direitos Humanos, com informações sobre as medidas adotadas,

bem como sobre as dificuldades que observaram na sua aplicação e os fatores que

contribuem para a violência contra a mulher. Qualquer pessoa ou grupo, ou qualquer

entidade não-governamental juridicamente reconhecida em um ou mais dos Estados-

membros da OEA também pode apresentar à Comissão queixas e denúncias sobre a

sua não aplicação ou violação (LIMA, 2004, p. 207).

No entanto, tal Convenção para que seja enviado o caso para a Comissão acima

citada é necessário que se prove que o Estado foi negligente ou incompetente e não tomou

qualquer atitude em relação ao caso.

2.4.2 A lei 10.778/04

Segundo Lima (2004) as Convenções e Acordos internacionais assinados pelo Brasil

devem ser observados no que diz respeito aos meios de prevenir, punir e erradicar a violência

contra a mulher.

Necessário se faz que, no atendimento feito pelos serviços de saúde público ou

privado, em caso de agressão à mulher, seja feita notificação do fato, como estabelece tal Lei.

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Moraes (2000) explica:

Notificar é dar conhecimento e compulsório é obrigar a dar conhecimento de

alguma coisa, para alguém. A presente lei torna obrigatório aos serviços de

saúde públicos ou privados, dar conhecimento do atendimento que fizerem

às vitimas deste tipo de violência. A notificação compulsória faz parte de um

conjunto de atividades, pactuado entre a Fundação Nacional de Saúde -

FUNASA (órgão executivo do Ministério da Saúde), Secretarias Estaduais

de Saúde - SES e Secretarias Municipais de Saúde - SMS, relativos a área de

epidemiologia e controle de doenças e agravos (MORAES, 2000, p. 78).

De posse de tais notificações o Estado deverá planejar políticas públicas que visem

colocar um fim à violência contra a mulher, utilizando-se para tanto o contexto real em que

vive a mulher: a frequência com que ocorre esse tipo de violência, quem a comete, enfim,

fazer uma análise criteriosa do quadro que se apresenta em relação á violência contra a mulher

(MORAES, 2000).

Assim deve ser observado o gênero, sexo, conduta baseada no gênero e a violência

praticada.

Moraes (2000) afirma:

Como gênero se refere aos papéis sociais diferentes de homens e mulheres

em um contexto cultural específico e o sexo se refere às diferenças

biológicas entre os homens e mulheres, a conduta baseada no gênero é

aquela em que as diferenças sexuais são utilizadas para discriminar um dos

sexos. A violência praticada (perpetrada) ou tolerada pelo Estado ou seus

agentes, onde quer que ocorra também deve ser notificada de forma

compulsória (MORAES, 2000, p. 78).

Tais notificações, segundo Moraes (2000) devem ser mantidas em sigilo, sem que a

identidade da vítima seja exposta, devendo ser esse sigilo observado por enfermeiros,

médicos, psicólogos ou qualquer outra pessoa do serviço de saúde que atenda a mulher vítima

de violência.

2.4.3 A lei 13.150/2001

A Lei 13.150/02 é uma lei da cidade de São Paulo, de autoria do Vereador Ítalo

Cardoso10

, editada em 20 de junho de 2001, que diz:

10

www.jusnavigandi.com.br. Violência contra Mulher. Acesso em 22.10.2010.

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Art. 1º. Fica introduzido o quesito violência de gênero no sistema municipal

de informação em saúde. Parágrafo único - Para os fins do disposto na

presente lei entende-se por violência de gênero qualquer ação ou conduta

que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher.

Com a regulamentação desta Lei a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo teve

como objetivo conhecer as situações de violência que chegavam à Rede Municipal de Saúde,

criando também o Sistema de Informação e Notificação de Casos Suspeitos ou Confirmados

de Violência nos Serviços Municipais de Saúde (LIMA, 2004).

Através deste sistema tem-se uma estatística a respeito dos diversos tipos de

violência, momento em que se pode tomar algumas medidas em relação ao ocorrido. Tal Lei

tem como objetivos:

1 - Identificar usuários (as) dos serviços da Rede Municipal de Saúde que vivem em

situação de violência nas suas mais diversas formas: doméstica, sexual, institucional, nas

relações de trabalho, entre outras.

2 - Traçar o perfil epidemiológico da violência por tipo segundo, a idade, sexo,

etnia/raça/cor, pessoa com deficiência, local de ocorrência e de atendimento.

3 - Planejar e executar intervenções coletivas de promoção da saúde e de prevenção

da violência em áreas de maior risco e em asilos/abrigos/locais de trabalho, considerando a

incidência de casos.

4 - Oferecer atendimento direto às vítimas de violência, bem como os

encaminhamentos necessários.

3 Considerações finais

A teoria feminista do direito obteve grande avanço em toda sua trajetória. A mulher,

antes destinada a satisfazer os desejos do marido ou do pai, agora tem seu espaço na

sociedade moderna, trabalhando e produzindo para si e para a sociedade, sendo mais

respeitada como indivíduo e tendo legislação que a ampara.

A análise apresentada de forma rápida neste trabalho nos dá a dimensão deste

movimento, onde o sonho de deter as injustiças contra a mulher é o principal objetivo. Houve

uma energia voltada unicamente para colocar fim à opressão sofrida pelas mulheres, que

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durante muitos anos permaneceram caladas. A mulher conquistou seu espaço, no entanto é

necessário que o mesmo seja consolidado, mantido e até mesmo alargado.

No entanto cabe salientar que apesar destes avanços ainda há muito para se fazer no

sentido de verdadeiro respeito e aceitação, principalmente no que tange a violência doméstica,

que apesar de ter amparo legal pela Lei Maria da Penha observa-se que ainda há muita falta de

comprometimento das próprias autoridades em fazer valer o direito da mulher, além do

silenciamento em torno de tal problemática.

Além da crítica feita à Lei Maria da Penha, é importante pontuar que o movimento

feminista não é um movimento hegemônico. Portanto há de se reconhecer os limites da

própria militância, que tem demandas heterogêneas como, por exemplo, as do feminismo

negro.

Cabe dizer que há uma maior objetificação e sexualização da mulher negra, bem

como menor espaço de trabalho e preconceitos estéticos que passam pelo crime de racismo

até chegar no âmbito da moda e da representatividade. Elas ainda permanecem passos atrás

das mulheres brancas em vários aspectos, na medida em que as demandas já alcançadas por

estas, muitas vezes, ainda não abarcam tais.

Também há a discussão em torno da conceituação sobre o que é gênero, com o

advento da teoria Queer que, muito sucintamente falando, é uma teoria desenvolvida nos

Estados Unidos que afirma ser a orientação sexual e a identidade sexual ou de gênero

dos indivíduos, o resultado de uma construção social e que, portanto, não

existem papéis sexuais essenciais ou biologicamente inscritos na natureza humana, antes

formas socialmente variáveis de desempenhar um ou vários papéis sexuais.

Os desafios que o feminismo moderno tem que enfrentar superam a fronteira do

Estado, estando prestes a iniciar uma quarta onda, onde o dinamismo é o fundamento para a

luta.

É preciso que a mulher continue sua luta, para tanto necessário se faz um

conhecimento das Leis que a amparam, bem como fazer valer seus direitos de forma

responsável e corajosa.

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