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    O sistema político nas sociedades modernas: do surgimento do estado

    soberano à globalização política e seus dilemas

    Paulo Magalhães Araújo

    Resumo

    O presente artigo parte de um referêncial sistêmico para abordar o Estado moderno

    desde o seu surgimento, no seculo XVII, até a contemporaneidade. A intenção é

    mostrar a evolução do Estado como sistema político, responsável pela manutenção

    eficiente da ordem e pela difusão de direitos civis políticos e sociais – direitos esses

    que propiciaram a adesão societária ao poder estatal, consolidando a soberania do

    Estado na forma hoje conhecida. O artigo aborda ainda as implicações da

    internacionalização ou globalização da política e suas consequências sobre a

    soberania estatal e sobre o reconhecimento, pelos cidadãos, da autoridade do

    Estado. Tendo em vista que, hoje em dia, a interdependência global entre as nações

    implica o enfraquecimento do estado em certos campos de ação política de

    interesse nacional, os tempos atuais indicam possibilidades de crises da soberania

    estatal, que podem levar à reconfiguração das estruturas de poder do estado em sua

    relação com a sociedade.

    1  – Introdução 

     As formas sucessivas assumidas pelo Estado moderno ao longo da sua história se

    prestam a análises bastante distintas, que vão do individualismo ao coletivismo

    metodológico e assumem formas variadas de combinação que procuram resolver a

    problemática relação entre vida social e estrutura política. Em que pesem as críticasque tais análises apresentam-se umas às outras, todas são, em alguma medida,

    formas legítimas e úteis para a explicação dos processos de formação do Estado, e

    dos seus padrões de funcionamento. Em virtude da forma sistêmica, altamente

    complexa e organizada assumida pela sociedade capitalista, o funcionalismo

    sistêmico se apresenta como modelo analítico privilegiado que pretende abarcar a

    totalidade da forma social, buscando entender sua estrutura interna a partir da

    interdependência funcional de suas partes  –  economia, política, comunidade ecultura.

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     A partir de uma análise que se poderia chamar sistêmica ou funcional, neste

    trabalho, procura-se discutir a relação entre política e sociedade por referência a

    alguns problemas hodiernos do Estado nacional. Cabe ressaltar, contudo, que não

    se pretende lançar mão de um modelo sistêmico "puro" ao modo de Talcott Parsons,

    Niklas Luhmann ou David Easton, mas utilizar de forma não doutrinária (como é

    comum na literatura sociológico-política) elementos de diversas vertentes que

    permitam uma análise mais flexível e, espera-se, ajustada aos fenômenos que se

    pretendem explicar.

    Necessário também dizer que esses argumentos não constituem uma defesa da

    existência ontológica do sistema social. Ao contrário, acredita-se que, se não todos,

    a maioria dos fenômenos, aqui apresentados de forma sistêmica, podem serreduzidos a explicações causais fundadas em ações individuais racionais e em suas

    conseqüências não intencionais. Infelizmente não poderemos resolver aqui as

    questões relativas a uma combinação tão polêmica. Em todo caso, o propósito deste

    texto é, antes, afirmar a utilidade heurística, metodológica, dos modelos explicativos

    funcionais-sistêmicos para o entendimento dos grandes processos sociais

    enfrentados pelas sociedades nacionais contemporâneas.

    2  – Política e Estados Nacionais

    O Estado moderno é uma forma política específica que substituiu a fragmentada

    estrutura de poder da sociedade feudal. Em termos de uma análise funcional-

    sistêmica, pode-se dizer que o surgimento da forma moderna de Estado foi

    conseqüência das transformações sociais que demandaram um modelo de

    organização política capaz de permitir um fluxo contínuo e crescentemente

    complexo de interações verticais e horizontais que marcam a vida social moderna.

    No feudalismo, a acentuada fragmentação das interações sociais em espaços

    territorialmente reduzidos produziu uma dinâmica social frouxa (em termos da

    sociedade global) em que não havia possibilidade nem mesmo necessidade para o

    estreitamento de laços sociais, juridicamente sustentados por uma autoridade

    central com efetivo poder de mando. Sob o feudalismo, a pretensa universalidade da

    autoridade religiosa não correspondeu a uma universalização do poder político pois

    encontrava barreiras nos escassos contatos entre as distintas comunidades, na sua

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    auto-suficiência econômica e em padrões diversos de relação de poder (expressivos

    de interesses também diversos) instituídos no interior de formas comunais

    específicas, tais como feudos, corporações de ofício, ordens religiosas alternativas,

    burgos, reinos, etc.

    No interior desses espaços comunais, não havia (como há no capitalismo) uma

    diferenciação dos padrões de interação de acordo com esferas de convívio ou

    atividades sociais específicas. A inexistência de normas próprias para a regulação

    de atividades econômicas, políticas, afetivas, etc., resultava na subsunção do

    indivíduo à totalidade dos valores sociais, que eram observados de forma contínua e

    simultânea nas atividades sociais cotidianas. A tessitura social que se constitui com

    base neste padrão "global" de interação levou à instituição de laços comunitárioshierarquizados e discricionários, de caráter funcional difuso, e estruturou as relações

    de dependência (em todas as esferas de convívio) do indivíduo com relação a sua

    comunidade – ou seja, a ausência de normas de conduta diferenciadas, abstratas,

    universais e funcionalmente específicas impedia a individualização do processo

    social que veio a ser tão característica do capitalismo. Compôs-se, então, na era

    medieval, uma intensa rede de solidariedade social entre indivíduo e sociedade,

    reforçando a coesão das comunidades locais em detrimento da afirmação de uma

    ordem social assentada em bases territoriais e populacionais extensas.

    Devido ao caráter fechado da estrutura das comunidades feudais e ao seu padrão

    de organização interna, o feudo se tornou uma unidade social "relativamente auto-

    suficiente, onde atuava uma força de trabalho hereditária, dependente, num status

    não-livre, de um senhor feudal, geralmente um indivíduo mas freqüentemente uma

    corporação religiosa  –  por exemplo, um mosteiro ou uma catedral de cabido". A

    difusão funcional do feudo se expressava no status do senhor, que combinava os

    papéis de dono da terra, chefe de família, líder político, comandante militar,

    autoridade judiciária e chefe da organização econômica (Parsons, 1974:53). Segue-

    se que a base para o uso autorizado do poder político  – embora uma esfera que

    pudesse ser chamada propriamente de política ainda não tivesse um caráter

    autônomo – se constituía muito mais a partir destas unidades locais que na estrutura

    de poder decorrente de eventuais "ligas" ou acordos entre feudos, burgos ou

    quaisquer outras bases de organização territorial da vida social.

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    O resultado da combinação desses elementos, em termos de uma ordem social

    territorialmente ampla (o continente europeu), foi uma fragmentação política

    acentuada em que os "poderes", muitas vezes concorrentes entre si, se afirmavam

    de forma confusa, seja pelo aspecto territorial, com territórios políticos superpostos e

    imprecisos1, seja pela interseção conflitiva entre a jurisprudência do poder temporal

    e os “mandamentos” do poder religioso. Como nos lembra Parsons (1974), a

    pluralidade de organizações sociais se expressou politicamente em uma "estrutura"

    social cujo poder era mobilizado de forma descentralizada, localizada e

    estruturalmente diferenciada, fato este que constrangia a formação de um centro a

    partir do qual as relações de mando e obediência pudessem ser coordenadas. A

    tendência geral da dinâmica do feudalismo não parecia, pois, conduzir a uma base

    universalista e territorialmente ampla de ordem pública, mas, ao contrário, induzia à

    constituição de lealdades particularizadas e localizadas. As estreitas relações

    intracomunitárias, combinadas com as ralas trocas sociais estabelecidas entre as

    comunidades, tendiam a produzir, "no plano dos direitos políticos e jurídicos

    fundamentais, relações hierárquicas difusas [e muitas vezes confusas], baseadas na

    desigualdade de deveres recíprocos de vassalagem, proteção e serviço" (Parsons,

    1974:51).

    Enquanto esse modelo de dominação predominou, ele foi funcional às formas de

    interação feudais, próprias da sociedade medieval, mas a gradativa transformação

    dessa estrutura sócio-política fragmentada em um sistema social mais complexo,

    amplo e unificado se deu em correspondência à dinamização da produção

    econômica e ao seu fenômeno político correlato, a concentração de poderes nas

    mãos do Príncipe, processo esse que deu origem ao primeiro sistema político

    moderno: o Estado absolutista.

     As imbricadas transformações2  nos campos cultura, da tecnologia e sobretudo da

    produção econômica levaram à constituição de uma rede social mais ampla e cada

    1  Os reinos costumavam ser divididos em feudos, cujos senhores muitas vezes disputavam comsucesso o poder com seu próprio Rei. Ademais, na hierarquia de poder, os indivíduos deviamobediência ao seu senhor imediato mas não ao senhor do seu senhor  –  como se dizia à época "ovassalo do meu vassalo não é meu vassalo". Fatos como esses inviabilizaram por longos séculos acomposição de uma rede ampla e racionalizada de poder que hoje conhecemos como Estadonacional.2

     Certamente, essas transformações podem ser entendidas sistemicamente, a partir de uma lógicainterna ao funcionamento do sistema feudal, contudo, não se pretende aqui dar ênfase a esseprocesso posto que o propósito deste trabalho é o de explorar, com mais vagar, os dilemas relativos

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    vez mais complexa. As grandes descobertas, o crescimento populacional, o

    aperfeiçoamento das formas de comunicação e de transporte, a racionalização dos

    costumes, o declínio das ideologias religiosas e a expansão da produção de bens

    agrários e industriais levaram à reestruturação e ao aumento dos fluxos sociais e

    exigiram a instituição de um poder que pudesse produzir e observar regras de

    convívio legitimamente constituídas no interior de determinado território. Assim, em

    sua fase absolutista, o Estado representa a superação do poder da igreja e a

    separação (não sem retrocessos, como em todo processo social) entre o poder

    religioso e o político. À margem da religião, o Estado moderno assegurou sua

    legitimidade através da centralização racional (e funcionalmente eficiente) da

    soberania política e da delimitação precisa do território nacional, que significaram a

    neutralização da fragmentação feudal e a subsunção do poder religioso ao poder

    político, agora organizado na forma do Estado soberano.

     A partir da monopolização da violência sobre uma base territorial delimitada, as

    atividades sociais em geral puderam se desenvolver sob a proteção do direito e das

    instituições político-burocráticas estatais. O incremento das formas produtivas e das

    atividades comerciais internas, a estruturação de redes de comunicação e

    transporte, a organização de uma estrutura burocrática capaz de fazer fluir e de

    executar as ordens oriundas do centro de poder e o aumento da capacidade de

    implementação de políticas compulsórias e vinculantes da comunidade nacional

    foram fatores que promoveram uma crescente interdependência entre os vários

    segmentos societários e as distintas atividades socialmente relevantes. O resultado

    dessa complexa combinação redundou em uma integração social de maior alcance

    territorial e ao mesmo tempo maior diferenciação e complexidade que aquela

    alcançada pelo modelo sócio-político feudal.

    No interior dessa nova ordem, a diferenciação se expressava em sistemas de regras

    distintos para o controle das atividades sociais dos indivíduos. A economia se

    constituiu como mecanismo autônomo, desvinculado de princípios morais ou

    religiosos tradicionais, e passou a se regular pela lógica estrita da maximização do

    lucro, tendo a moeda como instrumento mediador das transações (impessoais e

    ao atual processo de transformação dos Estados nacionais em direção à cristalização de um sistema-mundo.

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    racionais) entre os agentes sociais3; já a religião, cujos valores outrora se impunham

    em toda dinâmica comunitária, restringiu-se gradativamente ao âmbito das escolhas

    privadas pela salvação pessoal, perdendo cada vez mais influência em espaços que,

    por sua natureza e função, passaram a ser estruturados por padrões de conduta

    racionalizados e/ou burocratizados. Na esteira desse processo de racionalização

    sistêmica, a arte e a ciência também se constituíram como (sub)sistemas sociais

    autônomos, organizados a partir de regras próprias e internamente definidas. Assim,

    em paralelo à composição desses múltiplos espaços  –  subsistemas econômico,

    cultural e comunitário  –  o subsistema político nacional se estruturou com a

    indispensável função de estabelecer e fazer cumprir regras jurídicas que deveriam

    assegurar a integração sistêmica e a normalidade da vida social.

    No processo evolucionário do sistema societário4, a representação política e a

    expansão dos direitos de cidadania se deram com a função de garantir a

    legitimidade do poder e da forma institucional que este veio a assumir, o Estado

    liberal . Por um lado, o subsistema econômico industrial liberal, que integra de forma

    complexa a indústria, o setor rural e o setor de serviços, depende de uma burocracia

    pública organizadora e observadora das regras de funcionamento da economia, em

    especial, e do sistema social como um todo; por outro, os padrões de conduta, que

    se expressam num subsistema cultural, garantem interpretações compartilhadas de

    fenômenos sociais e viabilizam a integração comunitária simbolicamente mediada, a

    coesão e a estabilidade do sistema social fundadas em valores que o sistema

    produz e difunde. Neste estágio de desenvolvimento (interdependente), a

    comunidade política liberal, instituída a partir do direito universal e da constituição

    estatal, devido à adesão dos cidadãos ao centro de poder, passou a ser a base de

    sustentação e legitimação de toda a estrutura econômica e jurídico-institucional do

    sistema. O vínculo legitimador entre a comunidade societária culturalmente

    3 Vide argumentos de Weber, em  A ética protestante e o espírito do capitalismo. Nesta obra clássica,o autor mostra a importância do protestantismo ascético no desenvolvimento da economia capitalista;mas, o mais importante, o autor revela também como os mecanismos capitalistas, uma vezconstituídos, dispensaram a ética protestante e se sustentaram em sua própria lógica: a busca demaximização do lucro justificada por uma ética racional e utilitária.4 É muito importante frisar que, embora haja opiniões em contrário, não se trata de uma evoluçãonecessária (no sentido de Comte) mas de um processo marcado por contingências de toda ordem. Osistema social não tem um telos que se possa conhecer priori, pois, em que pese a constatação deuma lógica evolucionária, não há (e nunca houve) garantias de que tal lógica seja inexorável e

    independente do que buscam os indivíduos histórica e socialmente localizados. Isso implicareconhecer que uma abordagem sociológica à luz de uma teoria dos sistemas consiste numaproposta metodológica, mas não necessariamente ontológica.

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    integrada e os subsistemas econômico e político é viabilizado pelas instituições

    políticas liberais que canalizam até o Estado soberano os valores e os interesses

    sociais que deverão estruturar a economia (liberal) e a política (democrática)5.

    Finalmente, o sistema social está plenamente constituído6, mas a existência de certa

    incompatibilidade entre os princípios liberais e os democráticos produz uma tensão

    que não encontra solução sob o liberalismo, e induz o sistema social a assumir uma

    nova forma política: a social-democracia7.

     As desigualdades sociais, oriundas das relações de produção capitalistas e

    sustentadas pela estrutura jurídica liberal, produziram tensões (entre as classes

    proprietária e trabalhadora) que comprometeram a integração entre o subsistema

    econômico e a comunidade societária, causando desestabilidade no sistema comoum todo. A solução social-democrática, ao disciplinar os focos de conflitos sociais e

    reforçar o espírito nacional, garantiu maior inclusão dos cidadãos ao sistema e maior

    adesão à institucionalidade política, o que possibilitou a minimização dos vícios

    gerados pela economia liberal. O advento do Estado social-democrático (ainda

    liberal em aspectos essenciais) levou a uma reconfiguração das tensões políticas e

    produziu uma dinâmica social distinta daquela que o liberalismo “puro” nos fizera

    experimentar. Como bem revelou Marshall, a institucionalização da cidadania

    induziu à composição de novas bases de solidariedade em que os interesses

    econômicos (individuais, como querem os liberais ou classistas, como defendem os

    marxistas) passaram a concorrer com outras fontes de identificação dos indivíduos e

    se viram, não raro, subsumidos pelas identidades políticas formadas a partir de

    referências identitárias alternativas – a etnia, a religião, a raça, o gênero, etc. Assim,

    no interior dos Estados nacionais, a relevância e a gravidade dos conflitos de classe

    foram sendo pouco a pouco minadas por disputas fundadas em outras bases de

    5  As bases comunitárias da legitimação dos subsistemas econômico e político-institucional sãodefendidas de forma convincente por Habermas, autor, por sinal, fortemente influenciado pelasteorias sistêmicas de Parsons e Luhmann.6 Como nos lembra Rocher, para Parsons, a sociedade industrial moderna é o mais perfeito sistemasocial porque neste estágio todas as suas funções estão plenamente constituídas e diferenciadas.Esta sociedade é o melhor “laboratório” para o cientista social, porque nela pode-se distinguirnitidamente cada uma das funções ainda fundidas em sociedades menos avançadas, como foi opróprio sistema absolutista em seu nascedouro (Rocher, 1976). Obviamente, esse evolucionismoparsoniano, de caráter determinista e teleológico, é alvo de críticas de teóricos que acreditam numindeterminismo  fundamental dos processos sociais. De toda forma, para efeito de análise, éadequado pensar na sociedade industrial moderna como um exemplo paradigmático de sistema

    social.7 Por falta de tempo e espaço, não serão comentados neste trabalho os caminhos não democráticos trilhados pelo Estado moderno, tais como o nazismo e o socialismo.

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    solidariedade, as quais pressupõem como inquestionável a solidariedade territorial

    ampla, erigida em torno das instituições políticas estatais e da autoridade do poder

    central.

     A eficiência do arranjo social-democrático, em termos da sua função de integraçãodo sistema social, garantiu, do final do século XIX até as últimas décadas do século

    XX, o bom funcionamento da forma política historicamente conhecida como Estado

    Nacional Capitalista. Contudo, esta forma dependeu de um crescimento econômico

    continuado para sustentar seus compromissos sociais e sua estabilidade interna;

    crescimento este que se mostrou impossível em função das contingências

    decorrentes seja da dinâmica interna ao sistema seja do ambiente internacional ao

    qual o Estado-comunidade deve se adaptar. Em decorrência dos reveses sofridospela economia capitalista, o Estado só pôde gerir a dependência dos cidadãos por

    meio de um endividamento crescente que implicou incongruências entre a dinâmica

    econômica e os valores fundados na idéia de cidadania, idéia esta que era a base

    da estrutura político-institucional e da integração (jurídica) da comunidade societária.

    De acordo com Aguiar 8,

    “a necessidade de gerir a conflitualidade entre as gerações na repartição dos

    direitos de acesso ao sistema de segurança social, na medida em que asdificuldades de seu financiamento obrigam a restringir a universalidade

    desses direitos, [faz] nascer uma conflitualidade política nova, para a qual os

    recursos políticos disponíveis poderão revelar-se insuficientes” (Aguiar, sem

    data: 25)

     Ademais, em paralelo aos problemas dos sistemas econômicos nacionais, ocorre o

    aumento das interdependências econômica, cultural e política das nações,

    decorrentes de um processo de integração crescente da vida social, integração estabaseada na intensificação das trocas em todas as esferas societárias. Daí, a

    interpretação das relações entre a dinâmica política e a estrutura social-econômica

    coloca novas perplexidades que uma leitura funcional-sistêmica pode ajudar a

    entender.

    3  – Sistemas Internacionais e Sistema Global

    8 Em texto de edição portuguesa, xerocopiado, sem informações editoriais.

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    O surgimento do chamado neoliberalismo coincide com transformações sociais que

    sugerem uma forma sócio-política global, substancialmente distinta do Estado

    Nacional Soberano. Portanto, com vistas à economia de texto, o modelo econômico

    neoliberal será considerado uma expressão (no plano do subsistema econômico) do

    desenvolvimento de um processo de formação de um sistema social planetário que

    transcende (e provavelmente compromete) a forma Estado, claramente estabelecida

    desde, pelo menos, o século XVII9.

    Conforme comentado acima, a auto-suficiência do sistema-Estado, durante todo o

    tempo em que pode existir autárquico e soberano, se estruturou em termos de uma

    articulação entre seu território, sua população e seus recursos naturais e se

    preservou com base em seu poder militar sobre o seu espaço de soberania.Passada a fase inicial, de ajustamento entre a afirmação do poder soberano e a

    definição territorial da soberania, os estados inauguraram um sistema de relações

    internacionais juridicamente frouxo, mas economicamente vantajoso, que permitia a

    circulação de bens econômicos nos marcos de uma necessária divisão internacional

    da produção.

     Aguiar nos lembra que a estruturação dessa rede capitalista mundial não

    comprometeu a unidade nacional, ao contrário, foi a própria condição de suaexistência como poder soberano. Embora este tenha sido um primeiro passo na

    mudança da noção de soberania (em favor de uma perda de poder da autoridade

    nacional), o mútuo reconhecimento da soberania dos Estados em seus respectivos

    territórios era a contraparte necessária à mútua afirmação da obrigação de cada

    governo com as necessidades da sua população e com a ordem em seu território.

     Apenas a assunção dessas responsabilidades políticas territorialmente demarcadas

    poderia manter a viabilidade de um sistema internacional que permitisse a eficiência

    dos sistemas nacionais, das trocas estratégicas entre eles e, principalmente, da

    manutenção da hierarquia já estabelecida no plano das relações internacionais.

    “O sistema estatal foi a defesa possível do Estado nacional, [foi a] entidade

    considerada necessária para que a regulação de cada espaço nacional fosse

    9 Segundo alguns autores, a origem do Estado moderno é coetânea da origem do moderno sistemainternacional de estados soberanos. Este marco histórico data de meados do século XVII  – 

    precisamente, de 1648 em diante  –  quando diversos estados europeus estabeleceram entre siacordos de paz assentados no reconhecimento mútuo da soberania (BURNS, Edward M. História daCivilização Ocidental. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1985)

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    concretizável. [Isso...] corresponde a uma fórmula estratégica bem definida de

    regulação do sistema, no seu conjunto, deixando graus de autonomia relativa

     – o que recomenda que quem tem a posição dominante no conjunto esteja

    interessado em promover o funcionamento eficaz de suas partes. [...] tanto o

    “território” quanto a “circulação” são factores que continuam a precisar de

    bases territoriais e populações estáveis (“social caging” ou encarceramento)

     para além de precisarem da livre circulação dos recursos e dos produtos: era

    inerente aos factores de soberania a conveniência em manter a convenção

    dos estados nacionais soberanos [a partir dos quais se formaram os blocos

    geopolíticos]. (Aguiar, sem data: 27)

     As transformações sociais que coincidiram com a ascensão do neoliberalismo sãoas mesmas que, se expressando também no plano da cultura e, mais discretamente,

    no plano da política produziram um aumento da interdependência social que foi

    gradativamente transformando um sistema de relações internacionais  em um

    sistema social virtualmente planetário. A estruturação de uma rede efetivamente

    global de comunicação e a circulação da informação em escalas sem precedentes é

    o fator básico de “supranacionalização” das formas associativas no campo da

    economia, da cultura e da política10. Nestas bases, as possibilidades de cooperação

    se expressam na constituição de constelações transnacionais de interesses diversos

    como os grupos empresariais, as organizações humanitárias e os grupos identitários

    cujas bases de identificação vão desde preocupações ecológicas até afinidades de

    gosto musical, literário ou acadêmico em geral. O fato é que as possibilidades de

    cooperação social, fundadas em identidades e interesses que concorrem com os

    valores nacionais, estão cada vez menos condenadas aos territórios sob o controle

    estatal soberano. Por conseqüência, o Estado-Nação enfrenta graves problemas

    seja no campo da sua legitimação política seja no campo do controle de recursos

    que permitem a efetiva coordenação dos interesses sociais que perpassam seu

    território.

    10  Importante lembrar a existência de uma vasta corrente de estudos sociológicos, entre os quaisautores “sistêmicos” como Habermas e Luhmann, que combinam o conceito de comunicação com oconceito de sociedade. Luhmann, por exemplo, defende a idéia de que, sobretudo agora, em tempos

    de globalização, não cabe confundir sociedade com Estado nacional ou com outras formas deagregação territorial ou cultural. A sociedade, para esse autor, é toda a rede de comunicação quevincula efetiva ou potencialmente os diversos grupos humanos.

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     A estrutura social mundial, historicamente articulada em torno da posição das

    nações na hierarquia de poder internacional, sofre abalos em função do surgimento

    de organizações que, com recursos variados, fazem frente ao poder dos Estados

    nacionais em transações que representam interesses desvinculados de quaisquer

    marcos territoriais. Tais interesses vêem, muitas vezes, o Estado nacional não como

    garantidor das conquistas sociais como outrora, mas como obstáculo que

    compromete a maximização de interesses grupais ou mesmo aqueles que se

    poderiam chamar humanitários e universais11.

    O problema crucial, contudo, está no fato de que a mobilidade alcançada por certos

    grupos sociais ou corporações de interesses supranacionais se combina de modo

    perverso com a imobilidade de outros grupos ou corporações que, destituídos oumenos favorecidos com relação às oportunidades sociais, acabam por se excluir dos

    processos de integração planetária. Ademais, os mesmos interesses que podem se

    expressar ao nível da sociedade transnacional são aqueles que podem pressionar

    os governos nacionais contra as políticas públicas que aparecem como

    comprometedoras dos livres fluxos globais. As conseqüências desse desequilíbrio

    se revelam no alijamento de temas e segmentos sociais que são, não obstante,

    importantes à constituição de fundamentos comunitários efetivamente legitimadores

    de uma nova forma política pós-nacional. Segue-se que surgem espaços vazios de

    soberania  –  decorrentes da incapacidade do Estado, por um lado, e do caráter

    exclusivista e desigual dos processos globais, por outro  –  em que se encontram

    segmentos relevantes das sociedades que, outrora, demandavam proteção e

    ofereciam apoio legitimador à forma Estado. Sugere-se, pois, um complicado

    processo de dissolução dos sistemas territoriais nacionais (ao menos com relação a

    aspectos essenciais da economia e da cultura) sem a estruturação correspondente

    de um sistema social efetivamente global  – algo, talvez, como o desenrolar de um

    processo de desestruturação da dinâmica social feudal sem a correspondente

    constituição do Estado absolutista.

    11  Não só os interesses de grupos econômicos se dizem obstruídos pela atuação dos governosnacionais, os grupos humanitários ou ecológicos também sofrem obstruções igualmente sérias àafirmação dos interesses que representam. A ausência de uma autoridade capaz de

    “transnacionalizar” a aplicação do direito, em paralelo ao enclausuramento jurídico do Estado, fazcom que, por exemplo, nem políticas ecológicas planetárias nem leis de proteção efetiva aos direitoshumanos universais tenham aplicação, caso firam os interesses nacionais.

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    O problema se torna ainda mais dramático para o caso das chamadas sociedades

    de terceiro mundo ou subdesenvolvidas, como o caso brasileiro. Nestas sociedades,

    a própria legitimação do sistema político enfrenta obstáculos nos altos graus de

    exclusão social e na correspondente incapacidade das instituições políticas12  de

    incluir igualitariamente os seus cidadãos. O drama consiste no fato de que muitos

    dos interesses ou temas excluídos das agendas nacionais ainda não podem contar

    com outra instância à qual apresentar suas demandas. Tais questões se tornam

    patentes nos processos de reformas constitucionais nos países subdesenvolvidos,

    nos quais a restrição dos graus de liberdade política aparece como resultado dos

    constrangimentos impostos pelas dinâmicas econômico-culturais mundiais  – 

    certamente não é por mero “oportunismo” político, mas por restrições estruturais,

    que o discurso ideológico dos partidos de esquerda e direita perdem cada vez mais

    sua coloração. As mudanças nas instituições nacionais, que deveriam, em muitos

    casos, corrigir problemas sociais historicamente acumulados, acabam por atender às

    pressões que, ao contrário, restringem ainda mais a capacidade do Estado de

    efetivar políticas de justiça social.

    Em suma, para finalizar  – embora não concluir  – em termos de uma argumentação

    sistêmica, pode-se dizer que os problemas de integração das sociedades nacionais,

    decorrentes dos desarranjos da relação entre o subsistema político e os demais

    subsistemas sociais, não parecem mais ser solucionáveis no âmbito dos Estados-

    comunidades. Por outro lado, ao nível de uma dinâmica social global, os dramas

    resultantes dos processos econômicos e culturais não encontram correspondência

    no desenvolvimento de um sistema político planetário e soberano. E dadas as

    contingências e complexidades do processo social, muitas teorias, pesquisas

    empíricas e estudos históricos deverão ser mobilizados para que se possa

    vislumbrar para onde caminha a sociedade humana.

    12  No Brasil, as características seletivas das leis eleitorias e partidárias distorcem a representação

    política e redundam no conservadorismo do Congresso Nacional (sobretudo do Senado) que impedemudanças substantivas ou mesmo o livre debate de questões polêmicas, sejam elas econômicascomo a reforma agrária, ou morais como o casamento entre homossexuais.

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    6- Bibliografia

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    Editora Saraiva, 1995

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     Anthropos. (sem data).

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    PARSONS, Talcott. O Sistema das Sociedades Modernas. São Paulo: Pioneira,

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    Livraria Pioneira Editora, 1969.

    REIS, Fábio Wanderley. Política e Participação: Notas sobre Aspectos Doutrinários e

    Empíricos. In.: Revista USP , março/maio, 2001.

    REIS, Fábio Wanderley. Mercado e Utopia: Teoria Política e Sociedade Brasileira.

    São Paulo: Edusp, 2000.

    ROCHER, Guy. Talcott Parsons e a Sociologia Americana. Rio de Janeiro: Editora

    Francisco Alves, 1976.