14
1 52: Metabolismo dos xenobióticos Robert K. Murray, MD, PhD IMPORTÂNCIA BIOMÉDICA Os seres humanos estão cada vez mais expostos a diversas substâncias químicas estranhas (xenobióticos) — fármacos, aditivos alimentares, poluentes etc. A situação foi bem resumida na seguinte citação de Rachel Carson: “Com uma arma tão tosca quanto o porrete do homem das cavernas, a barragem da química foi lançada contra a fábrica da vida”. O entendimento da maneira como os xenobióticos são manipulados no nível celular é importante para aprendermos a lidar com os ataques químicos violentos. O conhecimento sobre o metabolismo dos xenobióticos é fundamental para o entendimento racional da farmacologia e da terapêutica, da farmácia e da toxicologia, do tratamento do câncer e da dependência química. Todas essas especialidades incluem a administração ou a exposição aos xenobióticos. OS SERES HUMANOS ENTRAM EM CONTATO COM MILHARES DE XENOBIÓTICOS, QUE PRECISAM SER METABOLIZADOS ANTES DE SEREM EXCRETADOS Xenobiótico (do grego xenos, “estranho”) é um composto químico estranho ao corpo. As principais classes de xenobióticos de relevância médica são fármacos, carcinógenos químicos e vários compostos que são liberados no ambiente de uma forma ou de outra, tais como os policlorados bifenilos (PCB) e alguns inseticidas. Existem mais de 200.000 compostos químicos ambientais manufaturados. A maioria desses compostos é metabolizada (alterada quimicamente) no corpo humano e o fígado é o principal órgão envolvido nesse processo; em alguns casos, o xenobiótico pode ser excretado sem alterações. No mínimo 30 enzimas diferentes catalisam as reações envolvidas no metabolismo dos xenobióticos; entretanto, este capítulo descreve apenas um grupo seleto dessas enzimas. É interessante considerar o metabolismo dos xenobióticos em duas fases. Na fase 1, a principal reação envolvida é a hidroxilação, catalisada pelos componentes de uma classe de enzimas conhecida como monoxigenases ou citocromos P450. A hidroxilação pode suprimir a ação de um fármaco, embora nem sempre isto ocorra. Além da hidroxilação, essas enzimas catalisam grande variedade de reações, inclusive as que envolvem desaminação, desalogenização, dessulfatação, epoxidação, peroxigenação e redução. As reações que envolvem hidrólise (p. ex., catalisadas pelas esterases) e algumas outras que não são catalisadas pelo citocromo P450 também ocorrem na fase 1.

PDF - [Selma] Aula 3 - Metabolismo Dos Xenobióticos

Embed Size (px)

Citation preview

  • 1

    52: Metabolismo dos xenobiticos

    Robert K. Murray, MD, PhD

    IMPORTNCIA BIOMDICA Os seres humanos esto cada vez mais expostos a diversas substncias qumicas

    estranhas (xenobiticos) frmacos, aditivos alimentares, poluentes etc. A situao foi bem

    resumida na seguinte citao de Rachel Carson: Com uma arma to tosca quanto o porrete do

    homem das cavernas, a barragem da qumica foi lanada contra a fbrica da vida. O

    entendimento da maneira como os xenobiticos so manipulados no nvel celular importante

    para aprendermos a lidar com os ataques qumicos violentos.

    O conhecimento sobre o metabolismo dos xenobiticos fundamental para o

    entendimento racional da farmacologia e da teraputica, da farmcia e da toxicologia, do

    tratamento do cncer e da dependncia qumica. Todas essas especialidades incluem a

    administrao ou a exposio aos xenobiticos.

    OS SERES HUMANOS ENTRAM EM CONTATO COM MILHARES DE

    XENOBITICOS, QUE PRECISAM SER METABOLIZADOS ANTES DE

    SEREM EXCRETADOS

    Xenobitico (do grego xenos, estranho) um composto qumico estranho ao corpo. As

    principais classes de xenobiticos de relevncia mdica so frmacos, carcingenos qumicos e

    vrios compostos que so liberados no ambiente de uma forma ou de outra, tais como os

    policlorados bifenilos (PCB) e alguns inseticidas. Existem mais de 200.000 compostos

    qumicos ambientais manufaturados. A maioria desses compostos metabolizada (alterada

    quimicamente) no corpo humano e o fgado o principal rgo envolvido nesse processo; em

    alguns casos, o xenobitico pode ser excretado sem alteraes. No mnimo 30 enzimas

    diferentes catalisam as reaes envolvidas no metabolismo dos xenobiticos; entretanto, este

    captulo descreve apenas um grupo seleto dessas enzimas.

    interessante considerar o metabolismo dos xenobiticos em duas fases. Na fase 1, a principal

    reao envolvida a hidroxilao, catalisada pelos componentes de uma classe de enzimas

    conhecida como monoxigenases ou citocromos P450. A hidroxilao pode suprimir a ao de

    um frmaco, embora nem sempre isto ocorra. Alm da hidroxilao, essas enzimas catalisam

    grande variedade de reaes, inclusive as que envolvem desaminao, desalogenizao,

    dessulfatao, epoxidao, peroxigenao e reduo. As reaes que envolvem hidrlise (p.

    ex., catalisadas pelas esterases) e algumas outras que no so catalisadas pelo citocromo P450

    tambm ocorrem na fase 1.

  • 2

    Na fase 2, os compostos hidroxilados ou outros gerados na fase 1 so convertidos por enzimas

    especficas em vrios metablitos polares, por conjugao com cido glicurnico, sulfato,

    acetato, glutation ou alguns aminocidos, ou por metilao.

    O propsito final dessas duas fases metablicas dos xenobiticos aumentar sua

    hidrossolubilidade (polaridade) e, desse modo, facilitar a excreo pelo corpo. Os

    xenobiticos muito hidrofbicos podem permanecer quase indefinidamente nos tecidos

    adiposos, se no forem convertidos em compostos mais polares. Em alguns casos, as reaes

    metablicas da fase 1 convertem os xenobiticos inativos em compostos biologicamente

    ativos. Nesses casos, os xenobiticos originais so conhecidos como pr-drogas ou pr-

    carcingenos. Em outros casos, reaes adicionais da fase 1 (p. ex., reaes adicionais de

    hidroxilao) convertem os compostos ativos em formas menos ativas ou inativas antes da

    conjugao. Tambm existem casos em que as prprias reaes de conjugao convertem os

    produtos ativos gerados pelas reaes da fase 1 em compostos menos ativos ou inativos, que

    depois so excretados na urina ou na bile. Em casos muito raros, a conjugao pode, na

    verdade, acentuar a atividade biolgica de um xenobitico.

    O termo destoxificao s vezes utilizado para descrever algumas das reaes envolvidas

    no metabolismo dos xenobiticos. Contudo, esse termo nem sempre apropriado porque, como

    j foi mencionado, em alguns casos as reaes s quais os xenobiticos so submetidos na

    verdade aumentam sua atividade e sua toxicidade biolgicas.

    AS ISOFORMAS DO CITOCROMO P450 HIDROXILAM INMEROS

    XENOBITICOS NA FASE 1 DO SEU METABOLISMO

    A hidroxilao a principal reao envolvida na fase 1. As enzimas responsveis so

    conhecidas como monoxigenases ou citocromos P450. Algumas estimativas sugeriram que

    existam cerca de 60 genes para os citocromos P450 existentes nos seres humanos. A reao

    catalisada por uma monoxigenase (citocromo P450) a seguinte:

    RH +O2 + NADPH + H + R OH + H2 O + NADP

    Nessa reao, RH pode representar uma grande variedade de xenobiticos, inclusive frmacos,

    carcingenos, pesticidas, produtos derivados do petrleo e poluentes (p. ex., uma mistura de

    PCB). Alm disso, os compostos endgenos, tais como alguns esterides, eicosanides, cidos

    graxos e retinides, tambm atuam como substratos dessas enzimas. Em geral, os substratos so

    lipoflicos e transformam-se em compostos mais hidroflicos por hidroxilao.

    O citocromo P450 considerado o biocatalisador mais verstil que se conhece. O mecanismo

    real dessa reao complexo e j foi descrito sucintamente nos captulos anteriores (Fig. 12.6).

    Com a utilizao do 18O2, estudos mostraram que um tomo de oxignio entra em R-OH e

    outro vai para a gua. Essa destinao dupla do oxignio explica por que as monoxigenases

    eram conhecidas no passado como oxidases de funo mista. A reao catalisada pelo

    citocromo P450 tambm pode ser representada da seguinte forma:

  • 3

    O citocromo P450 tem esse nome porque a enzima foi descoberta quando se observou que as

    preparaes de microssomos que tinham sido reduzidas quimicamente e depois expostas ao

    monxido de carbono apresentavam um pico de absoro bemdefinido em 450 nm. Entre as

    razes pelas quais essa enzima importante est o fato de que cerca de 50% dos frmacos

    comumente ingeridos pelos seres humanos so metabolizados pelas isoformas do citocromo

    P450; essas enzimas tambm atuam em vrios carcingenos e poluentes. Os principais

    citocromos P450 envolvidos no metabolismo dos frmacos so os membros das famlias CYP1,

    CYP2 e CYP3 (ver adiante).

    As isoformas do citocromo P450 constituem uma superfamlia de

    enzimas que contm heme

    Com referncia aos citocromos P450, so importantes as seguintes consideraes:

    (1) Em virtude do grande nmero de isoformas (cerca de 150) descobertas, tornou-se

    importante desenvolver uma nomenclatura sistemtica para descrever as isoformas do P450 e

    seus genes. Hoje, essa terminologia est disponvel, amplamente utilizada e baseia-se na

    homologia estrutural. O smbolo-raiz abreviado CYP denota um citocromo P450. Em seguida,

    h um algarismo arbico que designa a famlia; os citocromos P450 so includos na mesma

    famlia se tiverem homologia de 40% ou mais entre as seqncias dos aminocidos. O nmero

    arbico seguido de uma letra maiscula que indica a subfamlia, caso existam dois ou mais

    componentes; os citocromos P450 so agrupados na mesma subfamlia se tiverem homologia

    de seqncia maior que 55%. Em seguida, os citocromos P450 individuais recebem algarismos

    arbicos atribudos arbitrariamente. Desse modo, o termo CYP1A1 descreve um citocromo

    P450 que faz parte da famlia 1 e da subfamlia A e foi o primeiro membro identificado nessa

    subfamlia. A nomenclatura dos genes que codificam os citocromos P450 a mesma descrita

    antes, exceto quanto ao fato de que se utilizam smbolos em itlico; desse modo, o gene que

    codifica o CYP1A1 o CYP1A1.

    O CYP3A o citocromo P450 mais importante envolvido no metabolismo dos frmacos, tendo

    em vista sua abundncia no fgado e no intestino. Essa enzima pode atuar em grande variedade

    de frmacos de quase todas as classes farmacolgicas. Alm disso, sua atividade at certo

    ponto imprevisvel, porque ela pode variar quase 400 vezes em virtude da inibio e induo;

    isto acarreta dificuldades na determinao da posologia dos frmacos.

    (2) Assim como ocorre com a hemoglobina, essas enzimas so hemoprotenas.

    (3) Os citocromos P450 esto amplamente distribudos entre as espcies, inclusive bactrias.

  • 4

    (4) Essas enzimas esto presentes em quantidades maiores nos hepatcitos e nos entercitos,

    mas provavelmente so encontradas em todos os tecidos. No fgado e em muitos outros tecidos,

    elas esto localizadas principalmente nas membranas do retculo endoplasmtico liso, que

    constituem parte da frao microssomal quando os tecidos so submetidos ao fracionamento

    subcelular. Nos microssomos hepticos, os citocromos P450 podem constituir at 20% das

    protenas totais. Essas enzimas so encontradas na maioria dos tecidos, embora geralmente em

    quantidades pequenas, quando comparadas com o fgado. Na supra-renal, os citocromos P450

    esto presentes nas mitocndrias e tambm no retculo endoplasmtico; as diversas

    hidroxilases presentes nesse rgo desempenham papel importante na biossntese do colesterol

    e dos esterides. O sistema dos citocromos P450 mitocondriais difere do sistema microssomal,

    porque utiliza uma flavoprotena ligada ao NADPH (adrenodoxina redutase) e uma protena

    no-heme com ferro e enxofre (adrenodoxina). Alm disso, as isoformas P450 especficas

    envolvidas na biossntese dos esterides geralmente so muito mais estritas no que se refere

    especificidade pelos substratos.

    (5) No retculo endoplasmtico do fgado humano, existem no mnimo seis isoformas do P450,

    cada qual com especificidades por substratos amplas e at certo ponto superpostas, com

    atuao nos xenobiticos e em compostos endgenos. Nos ltimos anos, os genes de algumas

    isoformas do P450 (nos seres humanos e em animais como ratos) foram isolados e estudados

    detalhadamente.

    (6) O NADPH, em vez do NADH, est envolvido no mecanismo de reao do citocromo P450.

    A enzima que utiliza NADPH para gerar o citocromo P450 reduzido, assinalado no lado

    esquerdo da equao ilustrada anteriormente, conhecida como NADPH-citocromo P450

    redutase. Os eltrons so transferidos do NADPH para a NADPH-citocromo P450 redutase e,

    depois, para o citocromo P450. Isso resulta na ativao redutora do oxignio molecular e, em

    seguida, um tomo de oxignio inserido no substrato. O citocromo b5, outra hemoprotena

    encontrada nas membranas do retculo endoplasmtico liso (Cap. 12), pode participar da reao

    como doador de eltrons em alguns casos.

    (7) Os lipdios tambm so componentes do sistema dos citocromos P450. O lipdio preferido

    a fosfatidilcolina, o principal lipdio encontrado nas membranas do retculo endoplasmtico.

    (8) A maioria das isoformas do citocromo P450 indutvel. Por exemplo, a administrao de

    fenobarbital ou muitos outros frmacos provoca hipertrofia do retculo endoplasmtico liso e

    um aumento de 3 a 4 vezes na quantidade de citocromo P450 em 4 a 5 dias. O mecanismo

    dessa induo foi exaustivamente estudado e, na maioria dos casos, envolve o aumento da

    transcrio do mRNA do citocromo P450. Contudo, alguns casos de induo dependem da

    estabilizao do mRNA, da estabilizao enzimtica ou de outros mecanismos (p. ex., um

    efeito na traduo).

    A induo do citocromo P450 tem implicaes clnicas importantes, porque este um dos

    mecanismos bioqumicos de interao farmacolgica. A interao farmacolgica ocorre

    quando os efeitos de um frmaco so alterados pela administrao prvia, concomitante ou

  • 5

    subseqente de outro frmaco. Por exemplo, consideremos a situao em que um paciente

    utiliza o anticoagulante varfarina para evitar a coagulao do sangue. Esse frmaco

    metabolizado pelo CYP2C9. Ao mesmo tempo, o paciente comea a utilizar fenobarbital (um

    indutor desse P450) para tratar algum tipo de epilepsia, mas a dose da varfarina no alterada.

    Depois de 5 dias ou algo assim, o nvel do CYP2C9 no fgado do paciente aumentar em 3 a 4

    vezes. Por sua vez, isso significa que a varfarina ser metabolizada muito mais rapidamente do

    que antes e que sua dosagem passar a ser insuficiente. Por essa razo, a dose precisa ser

    aumentada para que a varfarina mantenha sua eficcia teraputica. Para ampliar ainda mais esse

    exemplo, mais tarde poderia ocorrer outro problema se o uso de fenobarbital fosse interrompido

    e a dose aumentada de varfarina fosse mantida. O paciente estaria sob risco de sangramento,

    porque a dose alta de varfarina seria ainda mais ativa do que antes, pois o nvel do CYP2C9

    declinaria aps a interrupo do tratamento com fenobarbital.

    Outro exemplo de induo enzimtica envolve o CYP2E1, que induzido pelo consumo de

    etanol. Isso preocupante, porque este citocromo P450 metaboliza alguns solventes

    amplamente utilizados e tambm os componentes encontrados na fumaa do tabaco, entre os

    quais muitos so carcingenos comprovados. Desse modo, se a atividade do CYP2E1 for

    aumentada por induo, isto poderia agravar o risco de carcinogenicidade secundria

    exposio a esses compostos.

    (9) Algumas isoformas do citocromo P450 (p. ex., CYP1A1) esto envolvidas especialmente

    no metabolismo dos hidrocarbonetos aromticos policclicos (PAH) e das molculas

    semelhantes; por esta razo, no passado elas eram conhecidas como hidroxilases dos

    hidrocarbonetos aromticos (AHH). Essa enzima importante para o metabolismo dos PAH

    e para a carcinognese produzida por esses compostos. Por exemplo, nos pulmes, essas

    enzimas podem estar envolvidas na converso dos PAH inativos (pr-carcingenos) inalados

    pela fumaa em carcingenos ativos depois das reaes de hidroxilao. Os fumantes tm

    nveis mais altos dessa enzima em algumas de suas clulas e tecidos, quando comparados com

    os indivduos que no fumam. Alguns estudos indicaram que a atividade dessa enzima pode

    estar aumentada (induzida) na placenta de mulheres fumantes, o que altera potencialmente as

    quantidades de metablitos dos PAH (dos quais alguns so deletrios) aos quais o feto fica

    exposto.

    (10) Alguns citocromos P450 tm formas polimrficas, (lisoformas genticas) das quais

    algumas possuem pouca atividade cataltica. Essas observaes constituem uma explicao

    importante para as variaes das respostas de alguns pacientes aos frmacos. Um citocromo

    P450 que mostra polimorfismo o CYP2D6, que est envolvido no metabolismo da

    debrisoquina (um frmaco anti-hipertensivo; ver Quadro 52.2) e da espartena (um frmaco

    antiarrtmico e oxitcico). Alguns polimorfismos do CYP2D6 reduzem o metabolismo desses

    frmacos e de vrios outros, de modo que eles podem acumular-se no organismo e trazer con se

    qn cias deletrias. Outro polimorfismo curioso o do CYP2A6, que est envolvido no

    metabolismo da nicotina em cotinina. Existem trs alelos conhecidos do gene CYP2A6: um tipo

    selvagem e dois alelos inativos ou nulos. Estudos mostraram que os indivduos com alelos

    inativos, que deprimem o metabolismo da nicotina, aparentemente ficam protegidos de se

  • 6

    tornarem fumantes dependentes do tabaco (Quadro 52.2). Esses indivduos fumam menos,

    provavelmente porque suas concentraes sanguneas e cerebrais de nicotina permanecem

    elevadas por mais tempo do que nos in di v duos com o alelo natural. Alguns autores

    especularam que a inibio do CYP2A6 poderia ser uma abordagem nova para evitar e tratar o

    tabagismo.

    O Quadro 52.1 resume alguns dos principais aspectos dos citocromos P450.

    Quadro 52.1

    Algumas propriedades dos citocromos P450 humanos

  • 7

    AS REAES DE CONJUGAO PREPARAM OS XENOBITICOS

    PARA A EXCREO NA FASE 2 DO SEU METABOLISMO

    Nas reaes da fase 1, os xenobiticos geralmente so convertidos em derivados hidroxilados

    mais polares. Nas reaes da fase 2, esses compostos so conjugados com molculas, tais como

    o cido glicurnico, o sulfato ou a glutation. Isso os torna ainda mais solveis e, por fim, eles

    so excretados na urina ou na bile.

    Cinco tipos de reaes da fase 2 esto descritos a seguir

    A. GLICURONIDAO A glicuronidao da bilirrubina analisada no Cap. 31; as reaes pelas quais os xenobiticos

    so glicuronizados so praticamente idnticas. O UDP-cido glicurnico o doador de

    glicuronil e vrias glicuroniltransferases presentes no retculo citoplasmtico e no citossol so

    os agentes catalisadores. Molculas como o 2-acetilaminofluorano (um agente carcinognico),

    a anilina, o cido benzico, o meprobamato (tranqilizante), o fenol e alguns esterides so

    excretadas em forma de glicurondios. O glicurondio pode ser ligado ao oxignio, ao

    nitrognio ou aos grupos com enxofre nos substratos. A glicuronidao provavelmente a

    reao de conjugao mais comum.

    B. SULFATAO Alguns alcois, as arilaminas e os fenis so sulfatados. O doador de sulfato dessas e de

    outras reaes de sulfatao biolgica (p. ex., sulfatao dos esterides, dos

    glicosaminoglicanos, dos glicolipdios e das glicoprotenas) a adenosina-3-fosfato-5-

    fosfossulfato (PAPS) (Cap. 24), que tambm conhecido como sulfato ativo.

    C. CONJUGAO COM GLUTATION O glutation (-glutamil-cisteinilglicina) um tripeptdio formado por cido glutmico, cistena

    e glicina (Fig. 3.3). O glutation geralmente abreviado pela sigla GSH (em razo do grupo

    sulfidrila da sua cistena, que a parte ativa da molcula). Alguns xenobiticos eletroflicos

    potencialmente txicos (como, por exemplo, certos carcingenos) so conjugados com o GSH

    nucleoflico por meio das reaes representadas da seguinte forma:

    R + GSH R S G

    em que R = xenobitico eletroflico. As enzimas que catalisam essas reaes so conhecidas

    como glutation-S-transferases e esto presentes em grandes quantidades no citossol dos

    hepatcitos e em nveis mais baixos em outros tecidos. Nos tecidos dos seres humanos, existem

    vrios glutation-S-transferases, que mostram diferentes especificidades pelos substratos e

    podem ser separados por eletroforese ou por outras tcnicas. Se os xenobiticos potencialmente

    txicos no fossem conjugados com o GSH, poderiam ficar livres para estabelecer ligaes

    covalentes com o DNA, o RNA ou as protenas celulares e, desse modo, poderiam causar srios

    danos s clulas. Assim, o GSH um mecanismo de defesa importante contra alguns

    compostos txicos, inclusive certos frmacos e agentes carcinognicos. Se os nveis do GSH

    em tecidos como o fgado forem reduzidos (como se pode conseguir pela administrao a ratos

    de alguns compostos que reagem com o GSH), esses tecidos podem ficar mais suscetveis aos

  • 8

    danos causados por vrios compostos qumicos que, em condies normais, seriam conjugados

    com o GSH. Os conjugados de glutation ainda so submetidos a outras reaes metablicas

    antes da excreo. Os grupos glutamil e glicinil, que fazem parte da molcula do glutation, so

    removidos por enzimas especficas e um grupo acetil (doado pela acetil-CoA) acrescentado

    ao grupo amino da molcula de cisteinila remanescente. O composto resultante um cido

    mercaptrico, conjugado de L-acetilcistena, que depois excretado na urina.

    O glutation desempenha outras funes importantes nas clulas humanas, alm do seu papel no

    metabolismo dos xenobiticos:

    1. O glutation participa da decomposio do perxido de hidrognio potencialmente

    txico na reao catalisada pela glutation peroxidase (Cap. 21).

    2. O glutation um redutor intracelular importante, que ajuda a manter os grupos SH

    essenciais das enzimas em seu estado reduzido. Essa funo analisada no Cap. 21 e sua

    participao na anemia hemoltica causada por deficincia de glicose-6-fosfato-desidrogenase

    est descrita nos Caps. 21 e 51.

    3. Um ciclo metablico que envolve o GSH como carreador foi implicado no transporte

    de alguns aminocidos atravs das membranas das clulas renais. A primeira reao desse

    ciclo est ilustrada a seguir.

    Aminocido + GSH Aminocido -glutamilamino + Cisteinilglicina

    Essa reao ajuda a transferir alguns aminocidos atravs da membrana plasmtica e, em

    seguida, esses aminocidos so hidrolisados do seu complexo com o GSH e esta sintetizada

    novamente a partir da cisteinilglicina. A enzima que catalisa a reao descrita antes a -

    glutamiltransferase (GGT). Essa enzima est presente na membrana plasmtica das clulas

    tubulares renais e nas clulas dos dctulos biliares, assim como no retculo endoplasmtico dos

    hepatcitos. A GGT tem valor diagnstico porque liberada na corrente sangunea pelos

    hepatcitos lesionados em vrios distrbios hepatobiliares.

    D. OUTRAS REAES As duas outras reaes mais importantes so a acetilao e a metilao.

    1. Acetilao a acetilao representada pela seguinte reao:

    X + Acetil-CoA Acetil-X + CoA

    em que X representa o xenobitico. Assim como ocorre com outras reaes de acetilao, a

    acetil-CoA (acetato ativo) o doador de acetil. Essas reaes so catalisadas pelas

    acetiltransferases presentes no citossol de vrios tecidos, principalmente no fgado. O frmaco

    isoniazida utilizado no tratamento da tuberculose metabolizado por acetilao. Existem tipos

    polimrficos de acetiltransferases e isto permite que os indivduos sejam classificados como

    acetiladores lentos ou rpidos e influencia a taxa de depurao sangunea de frmacos como a

    isoniazida. Os acetiladores lentos esto mais sujeitos a determinados efeitos txicos da

    isoniazida porque este frmaco persiste por mais tempo nesses indivduos.

    2. Metilao alguns xenobiticos so metilados por metil-transferases, que utilizam S-

    adenosilmetionina (Fig. 29.17) como doador de grupos metila.

  • 9

    AS ATIVIDADES DAS ENZIMAS QUE METABOLIZAM

    XENOBITICOS SO INFLUENCIADAS PELA IDADE, PELO SEXO E

    POR OUTROS FATORES

    Vrios fatores influenciam as atividades das enzimas que metabolizam os xenobiticos. As

    atividades dessas enzimas podem diferir substancialmente entre as diversas espcies. Desse

    modo, por exemplo, a toxicidade ou carcinogenicidade potencial dos xenobiticos no pode

    ser extrapolada diretamente de uma espcie para outra. Existem diferenas significativas nas

    atividades enzimticas em cada indivduo e algumas parecem ser atribuveis aos fatores

    genticos. As atividades de algumas dessas enzimas tambm variam de acordo com a idade e o

    sexo.

    A ingesto de vrios xenobiticos como o fenobarbital, as PCB ou alguns hidrocarbonetos pode

    causar induo enzimtica. Desse modo, importante saber se um indivduo foi ou no

    exposto a esses agentes indutores, antes de avaliar as respostas bioqumicas aos xenobiticos.

    Os metablitos de alguns xenobiticos podem inibir ou estimular as atividades das enzimas

    que metabolizam esses compostos. Tambm nesse caso, isso pode afetar as doses de alguns

    frmacos administrados aos pacientes. Vrias doenas (p. ex., cirrose heptica) podem afetar as

    atividades das enzimas que metabolizam frmacos e, em alguns casos, necessrio ajustar as

    doses dos vrios frmacos utilizados pelos pacientes que tm esses distrbios.

    ENTRE AS RESPOSTAS AOS XENOBITICOS ESTO EFEITOS

    FARMACOLGICOS, TXICOS IMUNOLGICOS E

    CARCINOGNICOS

    Os xenobiticos so metabolizados no organismo por meio das reaes descritas antes. Quando

    o xenobitico um frmaco, as reaes da fase 1 podem produzir sua forma ativa, ou reduzir

    ou suprimir sua ao, caso ele seja farmacologicamente ativo no corpo sem metabolismo

    prvio. Os diversos efeitos produzidos pelos frmacos constituem o campo de estudo da

    farmacologia; neste caso, importante reconhecer que os frmacos atuam predominantemente

    por mecanismos bioqumicos. O Quadro 52.2 resume quatro reaes importantes aos frmacos,

    que refletem diferenas geneticamente determinadas nas enzimas e estruturas proticas dos

    diferentes indivduos parte do campo de estudo conhecido como farmacogentica (ver

    adiante).

    Quadro 52.2

  • 10

    Algumas reaes farmacolgicas importantes atribudas s formas mutantes ou polimrficas

    das enzimas ou das pro tenas1

    1 A G6PD analisada nos Caps. 21 e 51 e a hipertermia maligna no Cap. 48. Alm do gene que

    codifica o receptor da rianodina, no mnimo um outro est envolvido em determinados casos de

    hipertermia maligna. Existem muitos outros exemplos de reaes farmacolgicas acarretadas

    pelo polimorfismo ou por mutaes.

    Os polimorfismos que afetam o metabolismo dos frmacos podem envolver qualquer uma das

    enzimas envolvidas nesse processo metablico (inclusive citocromos P450), os

    transportadores e os receptores.

    Alguns xenobiticos so muito txicos mesmo em nveis baixos (p. ex., cianeto). Por outro

    lado, existem alguns xenobiticos, inclusive frmacos, que no produzem alguns efeitos txicos

    quando so administrados em quantidades suficientes. Os efeitos txicos dos xenobiticos so

    muito variados, mas os principais podem ser classificados em trs grupos (Fig. 52.1).

    Fig. 52.1

    Esquema simplificado mostrando como o metabolismo de um xenobitico pode causar danos

    celulares, anormalidades imunolgicas ou cncer. Nesse caso, a converso do xenobitico em

    um metablito ativo catalisada por um citocromo P450, enquanto a converso do metablito

  • 11

    ativo (p. ex., um epxido) em outro metablito atxico catalisada por uma GSH-S transferase

    ou epxido hidrolase.

    O primeiro tipo a leso celular (citotoxicidade) que pode ser grave a ponto de provocar a

    morte da clula. Existem alguns mecanismos pelos quais os xenobiticos danificam as clulas.

    O mecanismo considerado aqui a ligao covalente s macromolculas celulares das

    espcies reativas dos xenobiticos metabolizados. Entre esses alvos macromoleculares esto o

    DNA, o RNA e as protenas. Se a macromolcula qual o xenobitico reativo se liga for

    essencial sobrevivncia imediata da clula (p. ex., uma protena ou enzima envolvida em

    alguma funo fundamental, como a fosforilao oxidativa ou a regulao da permeabilidade

    da membrana plasmtica), os efeitos graves na funo celular seriam evidenciados muito

    rapidamente.

    Em segundo lugar, as espcies reativas de um xenobitico podem ligar-se a uma protena e

    alterar sua antigenicidade. Nesse caso, diz-se que o xenobitico atua como hapteno, isto ,

    uma molcula pequena que isoladamente no estimula a sntese de anticorpos, mas se combina

    com o anticorpo formado. Em seguida, os anticorpos resultantes podem lesionar a clula por

    vrios mecanismos imunolgicos que, grosso modo, interferem nos processos bioqumicos

    celulares normais.

    Em terceiro lugar, as reaes das espcies ativadas dos carcingenos qumicos com o DNA

    parecem ser muito importantes na carcinognese qumica. Algumas substncias qumicas (p.

    ex., benzo[]pireno) precisam ser ativada pelas monoxigenases do retculo endoplasmtico para

    se transformar em um composto carcinognico (por esta razo, elas so conhecidas como

    carcingenos indiretos). Desse modo, as atividades das monoxigenases e de outras enzimas

    que metabolizam os xenobiticos e esto presentes no retculo endoplasmtico ajudam a

    determinar se os compostos atuaro como agentes carcinognicos ou sero desintoxicados.

    Outros compostos qumicos (p. ex., vrios agentes alquilantes) podem reagir diretamente

    (carcinognese direta) com o DNA, sem precisar ser ativados quimicamente dentro da clula.

    A enzima epxido hidrolase interessante porque pode conferir efeito protetor contra alguns

    carcingenos. Os produtos da ao de determinadas monoxigenases em alguns substratos pr-

    carcinognicos so epxidos. Os epxidos so altamente reativos e mutagnicos ou

    carcinognicos, ou ambos. A epxido hidrolase assim como o citocromo P450, que tambm

    est presente nas membranas do retculo endoplasmtico atua nesses compostos e os

    converte em diidrodiis muito menos reativos. A reao catalisada pela epxido hidrolase pode

    ser representada da seguinte forma:

  • 12

    A FARMACOGENMICA PROMOVER O DESENVOLVIMENTO DE

    FRMACOS NOVOS E MAIS SEGUROS

    Como foi mencionado, farmacogentica o estudo das influncias das variaes genticas nas

    respostas aos frmacos. Em virtude do progresso efetuado no seqenciamento do genoma

    humano, recentemente surgiu um novo campo de estudo a farmacogenmica. Essa

    especialidade inclui a farmacogentica, mas abarca uma rea muito mais ampla de atividades.

    As informaes fornecidas pela genmica, pela protemica, pela bioinformtica e por outras

    disciplinas como a bioqumica e a toxicologia sero incorporadas para possibilitar a sntese de

    frmacos mais novos e mais seguros. medida que as seqncias de todos os nossos genes e

    das suas protenas codificadas forem determinadas, isto revelar muitos alvos de ao

    farmacolgica novos. Esses estudos tambm esclarecero os polimorfismos (este termo est

    descrito sucintamente no Cap. 49) das enzimas e das protenas relacionadas com o

    metabolismo, a ao e a toxicidade dos frmacos. No futuro, sero construdos microarranjos

    capazes de detectlas, o que possibilitar a triagem dos indivduos quanto existncia de

    polimorfismos potencialmente deletrios, antes de se iniciar o tratamento com um frmaco. J

    existem chips genticos para analisar alguns gentipos dos citocromos P450 (p. ex., para o

    CYP2D6, cujo produto gentico est envolvido no metabolismo de alguns antidepressivos,

    antipsicticos, betabloqueadores e alguns quimioterpicos). A Fig. 52.2 resume algumas

    abordagens utilizadas para o desenvolvimento de novos fr-macos. As principais razes para o

    desenvolvimento de novos frmacos so melhorar a eficcia teraputica e fornecer frmacos

    personalizados mais seguros, levando em considerao os polimorfismos e outros fatores.

    Alguns estudos estimaram que cerca de 100.000 mortes por reaes adversas a frmacos

    ocorrem anualmente apenas nos EUA. A esperana que as informaes novas fornecidas

    pelos estudos nessas vrias reas indicadas na Fig. 52.2 e em outras reas sejam traduzidas em

    tratamentos bem-sucedidos e, por fim, tambm abram uma nova era de teraputica

    personalizada.

    Fig. 52.2

  • 13

    Esquema simplicado para algumas abordagens do desenvolvimento de novos frmacos

    RESUMO Os xenobiticos so compostos qumicos estranhos ao orga-nismo, inclusive frmacos,

    aditivos alimentares e poluentes ambientais; existem mais de 200.000 xenobiticos conhecidos.

    Os xenobiticos so metabolizados em duas fases. A principal reao da fase 1 a

    hidroxilao catalisada por vrias monoxigenases, tambm conhecidas como citocromos P450.

    Na fase 2, os compostos hidroxilados so conjugados com vrios compostos hidroflicos, tais

    como o cido glicurnico, o sulfato ou o glutation. A atuao simultnea dessas duas fases

    transforma os compostos lipoflicos em molculas hidrossolveis que podem ser eliminadas

    pelo organismo.

    Os citocromos P450 catalisam as reaes que introduzem um tomo de oxignio

    derivado do O2 molecular no substrato, gerando um produto hidroxilado. O NADPH e a

    NADPH-citocromo P450 redutase esto envolvidos nesse complexo mecanismo de reao.

    Todos os citocromos P450 so hemoprotenas e, em geral, tm especificidade ampla por

    substratos e atuam em compostos endgenos e exgenos. Essas enzimas so os biocatalisadores

    mais versteis que se conhece.

    Nos tecidos humanos, existem cerca de 60 genes para os citocromos P450.

    Os citocromos P450 geralmente esto localizados no retculo endoplasmtico das

    clulas e so particularmente abundantes no fgado.

  • 14

    Os citocromos P450 podem ser induzidos. Isso tem implicaes importantes em

    fenmenos como as interaes farmacolgicas.

    Tambm existem citocromos P450 mitocondriais, que esto envolvidos na biossntese

    do colesterol e dos esterides. Essas enzimas utilizam uma protena no-heme que contm

    ferro, a adrenodoxina, que no necessria s isoformas microssomais.

    Em virtude das suas atividades catalticas, os citocromos P450 desempenham funes

    importantes nas reaes das clulas aos compostos qumicos e na carcinognese qumica.

    As reaes da fase 2 so catalisadas por enzimas como as glicuroniltransferases, as

    sulfotransferases e o glutation S transferases, que utilizam como doadores o UDP-cido

    glicurnico, o PAPS (sulfato ativo) e o glutation, respectivamente.

    O glutation no tem apenas uma funo importante nas reaes da fase 2, mas tambm

    um agente redutor intracelular envolvido no transporte de alguns aminocidos para dentro das

    clulas.

    Os xenobiticos podem produzir vrios efeitos biolgicos, inclusive respostas

    farmacolgicas, toxicidade, reaes imunes e cncer.

    Impulsionado pelos progressos efetuados no seqenciamento do genoma humano, o

    novo campo da farmacogenmica traz a promessa de conseguir desenvolver vrios frmacos

    mais seguros planejados em bases mais racionais.

    (MURRAY 583-589)

    MURRAY. HARPER BIOQUMICA ILUSTRADA, 27th Edition. ArtMed.

    .