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 Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação www.compos.org.br 1 PEDRO COSTA NO INTERIOR DO CINEMA PORTUGUÊS  Resumo: Este artigo pretende discorrer acerca da trajetória do importante realizador português Pedro Costa, sobretudo, do ponto de vista historiográfico, recorrendo, para tanto, à contextualização do mencionado diretor na história do cinema português ao abordar a problemática do cinema novo português e da configuração posterior de uma “escola portuguesa de cinema”, mas não só. A análise dos recursos estilísticos do diretor, a crescente escolha pela dissolução das  fronteiras entre ficção e documentário, assim como as opções temáticas de Pedro Costa serão pensadas em contraposição e justaposição a outros grandes nomes do cinema português, tais como Fernando Lopes, Manoel de Oliveira e António Reis.  Palavras-Chave: novo cinema português, escola portuguesa de cinema, Pedro Costa PEDRO COSTA INSIDE THE PORTUGUESE CINEMA  Abstract: This article intends to discuss about the important history of Portuguese  filmmaker Pedro Costa, especially from the standpoint of historiography, using for both, the contextualization of that director in the history of Portuguese cinema to address the issue of new Portuguese cinema and later setting of a "school of Portuguese cinema," but not only. The analysis of the stylistic features of the director, increasing choice for the dissolution of boundaries between fiction and documentary, as well as options for thematic Pedro Costa will be weighed by contrast and juxtaposition with other great names in Portuguese cinema, such as Fernando Lopes, Manoel de Oliveira and Antonio Reis.  Keywords: new portuguese cinema, school of portuguese cinema, Pedro Costa 1. Pedro Costa no interior do cinema português O cinema português tem vivido desde os seus primeiros anos com a incessante questão de sua inviabilidade ou mesmo de sua inexistência. Como parte da cinematografia européia, mas nunca tendo alcançado projeção como aquela, o cinema português viveu ao longo do século XX uma longa crise que, como a nossa, manifestava-se nos altos custos de

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PEDRO COSTA NO INTERIOR DO CINEMA PORTUGUÊS

 Resumo: Este artigo pretende discorrer acerca da trajetória do importanterealizador português Pedro Costa, sobretudo, do ponto de vista historiográfico,recorrendo, para tanto, à contextualização do mencionado diretor na história docinema português ao abordar a problemática do cinema novo português e da

configuração posterior de uma “escola portuguesa de cinema”, mas não só. Aanálise dos recursos estilísticos do diretor, a crescente escolha pela dissolução das

 fronteiras entre ficção e documentário, assim como as opções temáticas de PedroCosta serão pensadas em contraposição e justaposição a outros grandes nomes docinema português, tais como Fernando Lopes, Manoel de Oliveira e António Reis.

 Palavras-Chave: novo cinema português, escola portuguesa de cinema, PedroCosta

PEDRO COSTA INSIDE THE PORTUGUESE CINEMA

 Abstract: This article intends to discuss about the important history of Portuguese filmmaker Pedro Costa, especially from the standpoint of historiography, using for 

both, the contextualization of that director in the history of Portuguese cinema toaddress the issue of new Portuguese cinema and later setting of a "school of Portuguese cinema," but not only. The analysis of the stylistic features of thedirector, increasing choice for the dissolution of boundaries between fiction and documentary, as well as options for thematic Pedro Costa will be weighed bycontrast and juxtaposition with other great names in Portuguese cinema, such asFernando Lopes, Manoel de Oliveira and Antonio Reis.

 Keywords: new portuguese cinema, school of portuguese cinema, Pedro Costa

1. Pedro Costa no interior do cinema português

O cinema português tem vivido desde os seus primeiros anos com a incessante

questão de sua inviabilidade ou mesmo de sua inexistência. Como parte da cinematografia

européia, mas nunca tendo alcançado projeção como aquela, o cinema português viveu ao

longo do século XX uma longa crise que, como a nossa, manifestava-se nos altos custos de

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produção, na pouca disponibilidade estatal para criar ou adaptar uma legislação própria e, no

caso específico português, no desejo recorrente de se tornar Arte.

Tendo vivido, durante algumas décadas (1930  – 1950), entre documentários oficiais

do regime de António Salazar, filmes históricos e comédias fáceis, o ideário do cinema

 português passou a combater a todo custo este cinema “menor”, bestializado e bestializante,

defendendo um novo cinema: capaz, dessa vez, de dar forma cinematográfica ao elevado

“gênio português”, citando a categoria criada pelo poeta modernista José Régio. 

A moralização do cinema português, estando subsidiada por valores provenientes do

campo artístico mais “elevado” ou das “grandes artes”, como música, teatro e pintura, tinha

como dever e obrigação transformar o campo cinematográfico em mais uma esfera de

atuação artística.

Do ponto de vista consensual, foi esse desejo o cerne da questão germinada no interior

da proposta de um cinema novo português (ou novo cinema português, como é

corriqueiramente intitulado). Após anos de cinefilia e pesquisa crítica ao longo das décadas

de 1940 e 1950, Portugal parecia, através do filme de Paulo Rocha Os verdes anos, de 1963,

finalmente dar a ver um projeto de modernização do cinema português que, ao longo das

décadas anteriores, dividia a produção entre a famigerada comédia portuguesa, entre filmes

históricos e entre adaptações literárias de grandes nomes da literatura portuguesa do século

XIX, todos estes, de certa forma, mostravam-se ou de caráter apolítico ou de exaltação ao

regime de Salazar.

Ao lado do filme Os verdes anos, que vem sendo apontado, ao longo da história do

cinema português, como o marco do novo cinema português de acordo com a argumentação

contida na tese Em busca de um novo cinema português1, há no ano de 1963 uma confluência

emblemática para o cinema português porque é também nesta data que estreiam os filmes

 Acto da primavera, de Manoel de Oliveira,  A caça, também de Oliveira e Pássaros de asascortadas, de Arthur Ramos.

A novidade trazida pelo filme de Paulo Rocha está menos nos recursos estilísticos de

Os verdes anos do que nos aspectos extra-fílmicos ou nas informações contidas ao redor do

filme. O fato é que recém-egressos de cursos de cinema no estrangeiro, alguns jovens

1 Sales, Michelle Cunha; Gomes, Renato Cordeiro. Em busca de um novo cinema português. Rio de Janeiro,2010. 236 p. Tese de Doutorado – Departamento de Letras. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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inexperientes, como Paulo Rocha, mas repletos de sonhos, decidem revolver as estruturas

precárias de produção de cinema em Portugal, propondo novas temáticas, novas estéticas e

novos modos de fazer cinema. O encontro de Paulo Rocha com António da Cunha Telles

(produtor de Os verdes anos e fundador da Produções Cunha Telles), ambos egressos do

IDHEC -   Institut des Hautes Études Cinématographiques -, a famosa escola de cinema de

Paris, converge-se no filme-marco do novo cinema português, importando da França o modo

de fazer cinema pensado pela nouvelle vague, corporificando, assim, o desejo de

internacionalização e modernização do cinema feito em Portugal, “canonizando-o” pela

vertente francesa.

Além de Os verdes anos, Cunha Telles produz o primeiro longa-metragem de

Fernando Lopes, egresso de Londres, onde o jovem realizador havia estudado, travando

contato ali com as novas técnicas do documentário inglês e do cinema independente.

Fernando Lopes estréia no formato do longa-metragem com o filme  Belarmino (1964) –  

espécie de misto entre ficção e documentário que traz como personagem central um ex-boxer

português que vive entre os treinos e o bas-fond lisboeta.

Figura 1 –  Os verdes anos, O cerco, Os verdes anos, filmagem de Belarmino

Fonte – arquivo pessoal

 Belarmino, mais experimental que Os verdes anos, despertou mais uma vez a atenção

não só do público português mas também da crítica de cinema internacional. O filme marca a

chegada definitiva de Fernando Lopes na cena cinematográfica portuguesa  – apesar de já ter

dirigido dois belos curtas-metragens anteriormente  – e aponta para um novo modo de fazer

cinema: uma linguagem “mais solta” feita com câmeras mais leves, com filmagens nas ruas,

utilizando personagens reais, um pouco ao gosto do neo-realismo italiano que alcançou

grande fama por toda a Europa no período pós-guerra. Mais adiante, apontaremos

aproximações entre este filme e o estilema central de Pedro Costa em alguns de seus filmes.

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Além dos dois filmes anteriores mencionados, Cunha Telles irá produzir outros ao

longo da década de 1960, além do seu próprio O cerco, de 1968, que obteve grande sucesso

no circuito cinéfilo francês. Entretanto, por outro lado, o fato é que sem o auxílio ou a

proteção do Estado português, engessado nos moldes da Lei 20272, de 1948, ruiu, por volta

do final da década de 1960, não apenas a “Produções Cunha Telles” mas todo um mecanismo

novo de produção voltado para o cinema de autor que possibilitou a consolidação de um novo

cinema português.

Figura 2 – cenas de Belarmino

Fonte – arquivo pessoal

O ano de 1968 é particularmente importante para a história do cinema português e

 para a configuração de uma espécie de “escola portuguesa de cinema” voltada para o cinema

de autor, pois, é neste ano que alguns cineastas, reunidos em torno de Fernando Lopes, PauloRocha e outros, publicam “O ofício do cinema em Portugal”, documento que representa as

intenções, os interesses desse grupo auto-intitulado “Centro Português de Cinema”3 que

propuseram a criação de um Centro Gulbenkian de Cinema, aproveitando, para tanto, parte

dos subsídios designados anualmente às artes plásticas, ao teatro, à música, etc. A

configuração de um cinema autoral desprendido de interesses comerciais está bastante claro

no trecho que diz que: “A acção do Centro no processo de produção, se a sua criação se vier a

concretizar, deve confinar-se a uma ajuda material e abster-se de toda a acção que possa

2 A Lei 2027 criada em 1948 criou o Fundo Cinematográfico Nacional com o objetivo de proteger o cinemanacional e criar um mecanismo de fomento à produção. De acordo co m Mauro Neves: o fundo “tinha por 

intuito possibilitar a realização de filmes regionais ou folclóricos, filmes históricos, filmes policiais, filmesextraídos de romances ou peças portugueses e de documentários que promovessem o país e seus monumentosou paisagens” (Neves:2005, 200). Fica assim claro que o cinema autoral e moderno que se buscou fazer emPortugal por volta dos anos 1960 não caberia nos interesses da lei e não podendo por esse mecanismo serfinanciado.3 Para receber o financiamento do Centro Calouste Gulbenkian foi necessário a criação de uma cooperativa derealizadores que, em Portugal, nomeou-se Centro Português de Cinema, o CPC.

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representar uma limitação do caminho livremente escolhido pelos autores-realizadores”

(BÉNARD, 2007, 61).

Caracterizado como o período dos “Anos Gulbenkian” o patrocínio do Centro foi

imprescindível para a realização de importantes filmes portugueses entre 1970 e 1974, entre

eles O passado e o presente, de Manoel de Oliveira, primeiro filme realizado com

financiamento do Centro.

O alvorecer do 25 de Abril, em 1974, veio novamente desestabilizar as bases de

financiamento do cinema português. A reconfiguração da política do cinema de autor ficou

posta, sob novos moldes, na publicação da Lei 7/71, já que:

Com a publicação da Lei 7/71 é criado, juridicamente, o IPC (Instituto Português deCinema) que nasce em 1973, no ano anterior à revolução de Abril. Esta lei,

 juntamente com a criação do instituto, é a pedra basilar para a política de cinema deautor que será aplicada até aos dias de hoje. É também meses antes da revoluçãoque nasce a Escola Superior de Cinema, elemento vital para o ensino das futurasgerações de cineastas. Esta Escola será, desde o início, dominada pela geração doCinema Novo. O seu primeiro director é Alberto Seixas Santos e nela passam aleccionar, nos primeiros anos, Fernando Lopes, Paulo Rocha e Cunha Telles(BÉNARD DA COSTA, 2007: 34). Outro dos primeiros professores da escola seráAntónio Reis, que terá, como veremos mais tarde, uma influência decisiva nacarreira de Pedro Costa. (RIBAS, Daniel et BARROSO, Bárbara, 2008, pág. 139) 

A Escola Superior de Cinema tendo como representantes maiores os representantes

daquela fase inicial do cinema novo português será, ao lado da criação da IPC, a instituição

responsável pela, com o trocadilho, institucionalização do cinema autoral no campo

cinematográfico português, sobretudo, na virada da década de 1970 para 1980, momento no

qual uma nova geração de realizadores surge, tais como Pedro Costa, Tereza Villaverde, João

Canijo e outros. É dessa forma que:

Os anos 1980 foram, assim, com estas características técnicas e políticas, os anos daconsolidação do que à posteriori  se identificoau como a “Escola Portuguesa”

(Bénard da Costa, 1991: 164). Esta Escola, como vimos, ancora-se no cinema deautor onde cada filme de cada realizador vive pela sua própria originalidade. É, porisso, decisivo recuperar quais as principais características – temáticas, estéticas e deprodução – que contribuem, por um lado, para a originalidade de cada realizador e,por outro, para a unidade entre eles, de forma a criar um imaginário comum.(RIBAS, Daniel et BARROSO, Bárbara, 2008, pág. 142)

Conceito criado pelo ex-presidente da Cinemateca Portuguesa e também ator de

muitos filmes de Manoel de Oliveira, João Bénard da Costa consolida na terminologia da

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“escola portuguesa de cinema” o imaginário produtivo e a inclinação estética do modelo

pretensamente desejado pelos realizadores portugueses. Personalista nas suas classificações,

Bénard inventa uma categoria de cinema para Portugal que mistura despojamento financeiro,

desinteresse comercial com as obras, a importância da autoria, ao mesmo tempo em que

privilegia o fato de ser uma escola portuguesa, voltada para as questões da nação. Questões

estas que, ao longo de toda a história do cinema português, não cessaram de aparecer. E

Pedro Costa não estará imune, como apontaremos adiante.

Para além disso, a virada da década de 1980 para 1990 é o momento da consagração

internacional de nomes como Manoel de Oliveira e João César Monteiro. A estréia, em 1989,

de  Recordações da casa amarela, de João César Monteiro, vencedor do Leão de Prata no

Festival de Veneza, juntamente com os filmes posteriores fizeram dele um nome de culto do

cinema português, ao lado do decano Manoel de Oliveira que continua, a partir daí, a

produzir um filme por ano.

Será também nesta década, a de 1990, a década da diluição formal entre os gêneros da

ficção e do documentário cuja paternidade poderá ser atribuída ao  Belarmino, de Fernando

Lopes, obra central do novo cinema português,  Acto da primavera, de Manoel de Oliveira e

Trás-os-Montes, de 1977, do casal António Reis e Margarida Cordeiro, como corrobora

Ribas em artigo publicado na Devires:

Com uma crescente importância durante a década de 1990, retoma-se uma diluiçãoda ficção, patente em filmes importantes do cinema português, como os citados

 Acto da Primavera (Manoel de Oliveira, 1963), Belarmino (Fernando Lopes, 1964)ou Trás-os-Montes (António Reis e Margarida Cordeiro, 1977), onde a ficção e odocumentário coexistem na criação de algo novo. Para esta diluição concorre asignificativa ajuda da introdução do digital – de que é caso paradigmático a obra dePedro Costa. (RIBAS, Daniel et BARROSO, Bárbara, 2008, pag. 146)

No interior deste emaranhado de relações e processos cinematográficos, Pedro Costainicia sua trajetória na famigerada Escola Superior de Cinema, já tendo passado por uma

licenciatura inconclusa na área da História. Depois do premiado Cartas a Júlia, Costa estréia

no formato do longa-metragem com O sangue, em 1989. Já neste filme, é de particular

interesse a relação do realizador com os atores, profissionais e não-profissionais. O enredo

e/ou a narrativa de O sangue, assim como dos filmes seguintes, é o que menos importa,

tornando-se mais relevante o envolvimento de Costa através da mediação da câmera com os

atores. O lugar habitado pelos personagens é o ponto de partida e elemento central deste

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filme e também dos próximos. Já está posto em O sangue um importante estilema de Pedro

Costa: trata-se dos longos planos que, corroborando a importância da ação interna/ emoção

do personagem em contraposição ao enredo central, mais ofuscam do que revelam, citando

Robert Bresson através de Anabela Moutinho “o que é importante no seu cinema (de

Bresson, de Costa, portanto) não é o que é visto nem o que acontece naquilo que é visto, mas

o que fica por dizer ou ver naquilo que existe entre os planos montados.” (MOUTINHO:

2005, pag. 27)

No segundo longa-metragem, Casa de Lava, Pedro Costa abandonaria por completo o

uso do preto e branco utilizado em O sangue, considerando o recurso esteticismo

desnecessário e afastamento em relação à vida. Em Casa de Lava, de 1994, está presente

outro elemento também recorrente na obra de Pedro Costa. É neste último, que o diretor

aborda pela primeira vez a temática dos imigrantes e através dessa, o questionamento e a

reflexão sobre a identidade portuguesa e sobre Portugal  –  tema recorrente e absolutamente

presente não apenas nos filmes da geração do novo cinema português, como enredo central

nos realizadores da escola portuguesa. E assim:

Deste modo, mantém-se uma unidade temática com a Escola Portuguesa que colocaem jogo esta questão do país, sendo muito importante frisar a dimensão da invenção

formal que se lhe associa (desde o cinema novo). Vários realizadores constituem-setambém como „grupo‟ pois nos seus filmes identifica -se a partilha de certos dadosformais  –  como a importância do material literário ou a teatralidade comoinstrumento antinaturalista (casos de Manoel de Oliveira, João Botelho, José ÁlvaroMorais, Alberto Seixas Santos, João César Monteiro). Por um lado, Costa insere-senesta unidade temática –  “We make films as members of society, although there aremany people who make films, or see films today, and who think that we live onMars, or the planet in Terminator , or wherever, but no, we live in a society,Japanese, Portuguese, English (...). Upon what, finally, is this society based? Whathappens in this society, ours?” (COSTA, 2007: 12)  – por outro, é aqui que PedroCosta inicia uma linha de ruptura, ao estabelecer como foco do seu questionamentoparticular o posicionamento de comunidades externas que se tornam internas.(RIBAS, Daniel et BARROSO, Bárbara, 2008, pág. 148)

Neste filme, a enfermeira Mariana tem como missão acompanhar a extradição de um

cabo-verdiano, vítima de um acidente na construção civil em Portugal. Ainda em coma, o

corpo do imigrante cabo-verdiano acaba por transformar-se em objeto de repulsa e desejo

para Mariana. A paisagem vulcânica e inóspita de Cabo Verde também afasta e aproxima,

assim como a língua, o crioulo cabo-verdiano (cuja matriz é a miscigenação entre o português

e dialetos cabo-verdianos), que impede que Mariana melhor se aproxime ou compreenda

aquela situação.

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de reconhecer que não é apenas o que acontece com o(s) corpo(s), mas, sobretudo, o que se

passa no interior do(s) corpo(s) aquilo a que se dá ênfase neste cinema.

Dessa forma, o corpo assume já em Casa de Lava um lugar central, pois é através

dele que as principais transformações acontecem. É do corpo que partem não só o desejo,

mas também a dor, elemento que catapulta a ação da narrativa deste filme e também do

próximo, Ossos, de 1997.

A problemática do corpo continua característica estruturante da narrativa, pois, o

enredo de Ossos fala exatamente da degradação de corpos, da pauperização e das condições

extremas aos quais o corpo do imigrante continua a ser submetido em Portugal. Como é

sabido, Costa conviveu, já para realizar este filme, intensos meses com a comunidade do

Bairro das Fontaínhas, lugar periférico de Lisboa e assentamento de grande parte da

comunidade cabo-verdiana, em Portugal.

Figura 4 - Ossos 

Absolutamente entregue ao trabalho de atores não-profissionais, habitantes daquela

comunidade, Costa consegue através de longos planos, da representação naturalista dos

personagens, ainda imersos no seu cotidiano e habitat  natural, e de um enredo mínimo, a  justaposição e a hibridização entre o gênero da ficção e do documentário, marca central de

sua trajetória como realizador, pois, para Costa: “Never in my life have I thought: am I

making a documentary? Am I making a fiction, and what are the ways to make one or

another? They don‟t exist. We film life (…)” (Costa, 2007, 135). 

O interesse do realizador pode-se dizer desde O sangue, é para com a vida ou, melhor

dito, para o ser-humano em perda, ou para a perda da humanidade do ser-humano, já que os

  personagens de Costa, estejam eles submetidos a uma “ficção” ou a um “documentário”,

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encontram-se sempre em situação de desconforto, privação, indigência, flagelação.

Constatação dessa continuidade de propósito está na fala de Carlos Melo Ferreira:

Para a sua terceira longa-metragem Pedro Costa vai, inesperadamente, sacudir oconforto do cinema, em que facilmente se podia ter instalado, para ir à procura dodesconforto, mais, do mal-estar e do sofrimento aí onde eles se encontram. Para issofilma pela primeira vez num bairro degradado dos arredores de Lisboa, asFontainhas, vidas vividas em sobressalto, em aflição, mas não o faz como umdocumentarista, antes ficciona a partir da realidade para tentar chegar, exactamente,onde o documentário normalmente não chega. Ossos (1997) é, assim, um filme deurgência: urgência de captar o que habitualmente o cinema não regista, urgência deir além da superfície, do que se costuma mostrar no cinema, urgência de estabelecere apurar um ponto de vista que se revele adequado, urgência de não ignorar, de nãovirar as costas e passar a outra coisa. (FERREIRA, 2009, pag. 54)

Foi da experiência de convívio com os habitantes do Bairro de Fontaínhas, ainda na

altura de Ossos, que faz surgir os dois filmes seguintes,  No quarto da Vanda, de 2000, e

 Juventude em Marcha, de 2006, filmes que são, ainda na opinião de Carlos Melo Ferreira, o

díptico central da obra daquele realizador português.

Com relação ao regime de produção,   No quarto da Vanda representa a máxima

experimentação, pois é neste filme que Costa abandona a equipe de filmagem para trabalhar

quase que absolutamente sozinho, acompanhado apenas de sua câmera digital.

Figura 5 –   No quarto da Vanda 

Possibilitado pelos recursos do digital,  No quarto da Vanda registra o encontro do

realizador com o seu personagem, impedindo qualquer identificação do público com Vanda

Duarte, porque o relevante é a revelação daquele mundo inóspito, desconhecido mesmo da

realidade portuguesa. O fluxo permitido pela linguagem audiovisual do equipamento digital

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permite ao realizador infiltrar-se no cotidiano de Vanda, relativizando a maneira já usual e

clichê com que o digital é visto, como comenta Ruy Gardnier:

Costa leva ao paroxismo duas outras "habilidades" do material digital. Primeiro, seucaráter de "olho onipresente". Inúmeros realizadores têm declarado a facilidade queé lidar com seus atores ou documentados com esta nova câmera, pois na maioria dasvezes o tamanho e a aparência quase amadora do equipamento, além da falta denecessidade de iluminação artificial, criam um clima intimista que incentiva anaturalidade, em oposição ao aparato do cinema tradicional. Com isso, o filmepropõe uma relação com as suas imagens quase contemplativa.  O segundo pontodiz respeito ao tempo. Com a câmera digital, pode-se filmar por mais temposeguido, e principalmente, sem o excesso de zelo pelo negativo que o cinema seacostumou. Assim, a busca incessante pela imagem rara, pelo extremos designificados, é trocada pela possibilidade da imagem vazia, da imagem feia, daausência prévia de significados, criando tantos outros ao serem assistidas. O jogo

com o tempo e com a montagem permite ao filme uma dilatação quase incômodamesmo ao mais aberto dos olhares, pois, adestrados, aguardamos o"acontecimento", o "momento decisivo" que quase nunca vem. (GARDNIER: 2006,s.p) 

O esvaziamento da necessidade de uma imagem rara possibilitado pelo recurso do

digital aproxima   No quarto da Vanda da vida daquela personagem, fazendo ressaltar a

 banalidade do fluxo das ações, enquanto que repele o espectador que enquanto “aguarda o

acontecimento” é inserido no cotidiano de uma dependente química cuja trajetória pessoal é

tão ou mais destrutiva quanto o ambiente exterior, gradativamente degradado epaulatinamente substituído por um conjunto habitacional.

Filmando em espaços reduzidíssimos, impróprios do ponto de vista técnico, Costa vai

  jogar com a proximidade/afastamento, usando para isso elementos formais contraditórios

como o grande plano ou o plano aberto em situações fortemente dramáticas, como aquelas

em que Vanda consome drogas em seu quarto, assim como o uso da lente grande-angular

para planos próximos, como comenta Melo Ferreira:

Na verdade, e como o próprio Pedro Costa esclarece, ele teve que ajustar oequipamento cinematográfico, nomeadamente a câmara de filmar digital, a espaçosdiferentes nos dois filmes, pelo que teve que proceder a todo um trabalho com aimagem que o levou a adoptar focais longas e a grande angular em circunstânciasespacialmente diferentes. (FERREIRA, 2009, pag. 55)

Em seu  Juventude em marcha, de 2006, Costa ainda tem como elemento central os

residentes do Bairro das Fontaínhas, agora, alojados numa espécie de conjunto habitacional

que tem como marca fundamental a impessoalidade, a assepsia. Já não é mais Vanda Duarte

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quem conduz a narrativa, mas sim, Ventura, espécie de guardião da memória coletiva daquela

comunidade. O uso de planos longos, a anti-narratividade no sentido aristotélico do termo

põe em evidência as configurações dos corpos dos personagens, assim como as inquietações

inconscientes vividas. A busca pelo o que sente e como sente desses personagens ainda

mantém-se, em detrimento do como agem e do que fazem.

Figura 6 –   Juventude em marcha 

É possível traçar um paralelo entre a proposta de Pedro Costa com estes dois filmes  e

outros anteriores a ele a quem dedicamos certa paternidade. Já em  Belarmino, filme de 1964,

Fernando Lopes traz como personagem central um ex-boxer fracassado, Belarmino Fragoso,

como ele mesmo. Apesar de recorrer ao estilema da entrevista, Fernando Lopes mescla com

elementos clássicos do documentário situações puramente ficcionais, tais como as

deambulações de Belarmino por entre Lisboa, o convívio deste com sua mulher e a

reconstituição de cenas de boxe. O mesmo pode ser dito de  Acto da primavera, de 1963, de

Manoel de Oliveira, filme que, de forma inaugural no cinema português, revela o dispositivo

de filmagem, apresenta os recursos ficcionais do documentário, privilegiando a filmagem de

uma encenação popular, “promiscuindo” por completo os gêneros do documentário e da

ficção.Do ponto de vista histórico, esses dois filmes comentados acima são fundamentais

porque revelam que importantes experiências no campo formal entre a ficção e o

documentário já haviam sido realizadas anteriormente. Entretanto, de acordo com artigo de

Anabela Moutinho, a filiação direta de Pedro Costa para com o cinema português será mesmo

através de António Reis (realizador de Trás-os Montes, juntamente com Margarida Cordeiro),

pois, como o próprio Costa argumenta:

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A partir do momento em que vi Trás-os-Montes foi finalmente a oportunidade decomeçar a ter um passado no cinema português (…), fez (…) com que, ao começar a pensar num filme, seja sempre a pensar a partir de alguém, real, um rosto, umamaneira de andar, um sítio, mais do que uma história. (Costa, In: MOUTINHO:2005: 29).

A construção desse passado na história do cinema português reflete a adoção de

algumas medidas que corroboram a continuidade de um método produtivo que dá ênfase à

lentidão do processo criativo, reduzindo os obstáculos, ao mesmo tempo em que os órgãos de

financiamento são minimizados no processo da criação.

Contra os anseios de um cinema industrial, a confecção artesanal do cinema português

é não apenas desejado, mas visto como um dos requisitos necessários para fazer do cinema,

em última instância, uma forma de arte. O que o conceito dessa escola portuguesa de cinemarevela é uma maneira de fazer filmes em Portugal que nasce com o cinema novo português,

volta-se para o cinema de autor e põe-se sempre em desconfiança em relação à

profissionalização, à industrialização e à normatização do cinema português.

Há, em relação aos filmes realizados em perfeita consonância com o ideário da escola

portuguesa de cinema, que é, a do filme de autor, uma determinada forma de lidar com o

“real”, ou com a “realidade” que já não é, a partir  de Os verdes anos, um mecanismo de

denúncia social ou ferramenta política. Apesar de Pedro Costa lidar com uma comunidademarginal, extremamente precária nas suas condições básicas, O quarto da Vanda e Juventude

em marcha não constituem um discurso organizado contra uma forma de poder, mas, em

primeiro lugar, um interesse em lidar com o imaginário e com a forma de sentir e de viver

daquelas pessoas.

Em consonância com a forma canônica de fazer cinema em Portugal desde o cinema

novo da década de 1960, Pedro Costa assume novos riscos estilísticos e através do uso de

equipamento digital pôde levar ainda mais adiante a radicalidade do método produtivo docinema português.

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