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VITÓRIA, SÁBADO, 14 DE JULHO DE 2012 www.agazeta.com.br Pensar Leituras provinciais Música PESQUISADOR DESTACA VITALIDADE DOS ROLLING STONES , NOS 50 ANOS DA BANDA. Página 5 Imprensa O PAPEL DO VENDEDOR DE JORNAIS NA HISTÓRIA DA COMUNICAÇÃO . Página 8 ESCRITOR COMENTA OBRAS RARAS LIDAS PELOS CAPIXABAS ENTRE 1855 E 1889 Páginas 6 e 7 O TEMPO SEGUNDO A POESIA E A ARTE Especialista analisa a mostra “Água Viva”, de Shirley Paes Leme, inspirada no livro de Clarice Lispector Páginas 10 e 11 Entrelinhas ENSAÍSTA ALEMÃO DESCREVE O HUMOR PELO OLHAR DOS GRANDES PENSADORES. Página 3 Letras POEMA DE CECÍLIA MEIRELES REVELA AS INCERTEZAS DA VIDA. Página 4 VITOR JUBINI REPRODUÇÃO Ilustração do livro “Géographie Universelle”, de Malte-Brun, um dos volumes do século XIX que integram acervo da Biblioteca Pública Estadual

Pensar_14_07_2012

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Pensar é um suplemento do jornal A Gazeta, do Espírito Santo, veiculado aos sábados.

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VITÓRIA, SÁBADO, 14 DE JULHO DE 2012

www.agazeta.com.brPensar

Leituras provinciais

MúsicaPESQUISADORDESTACAVITALIDADE DOSROLLINGSTONES, NOS 50ANOS DA BANDA.Página 5

ImprensaO PAPEL DOVENDEDOR DEJORNAIS NAHISTÓRIA DACOMUNICAÇÃO.Página 8

ESCRITOR COMENTA OBRAS RARAS LIDASPELOS CAPIXABAS ENTRE 1855 E 1889 Páginas 6 e 7

O TEMPO SEGUNDOA POESIA E A ARTEEspecialista analisa a mostra“Água Viva”, de Shirley PaesLeme, inspirada no livro deClarice Lispector Páginas 10 e 11

EntrelinhasENSAÍSTAALEMÃODESCREVE OHUMORPELO OLHARDOS GRANDESPENSADORES.Página 3

LetrasPOEMA DECECÍLIAMEIRELESREVELA ASINCERTEZASDA VIDA.Página 4

VITOR JUBINI

REPRODUÇÃO

Ilustração do livro “Géographie Universelle”, de Malte-Brun, um dos volumes do século XIX que integram acervo da Biblioteca Pública Estadual

Documento:AGazeta_14_07_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_1.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:12 de Jul de 2012 19:30:50

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2PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,14 DE JULHODE 2012

marque na agenda prateleiraquempensa

Williams Roosevelt Monjardimé servidor público e professor de [email protected]

Ricardo Salvalaioé professor e escritor. Publicou dois livros eescreve no blog www.outros300.blogspot.com

Camilo Ceoliné administrador, professor universitário epesquisador de blues, jazz e [email protected]

Reinaldo Santos Nevesé escritor residente da Biblioteca Pública doEspírito Santo. [email protected]

Gabriel LabancaéprofessordeComunicaçãoSocialedoutorandoemHistó[email protected]

Caê Guimarãeséjornalista,poetaeescritor.Publicouquatrolivroseescrevenositewww.caeguimaraes.com.br

Jô Drumondé tradutora e escritora membro da AEL edo IHGES. [email protected]

Horacio Xavieré membro da Academia de Letras Humbertode Campos. http://horacioxavier2.blogspot.com

Cauê Alvesé mestre e doutor em filosofia pela Faculdadede Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

Para CompreenderFernando PessoaAmélia Pinto PaisA autora pretendeapresentar didaticamente avida e a obra do maiorpoeta da língua portuguesa,com dados biográficos

sobre o autor, o contexto da época em quePessoa viveu e capítulos dedicados a seusheterônimos, entre eles Alberto Caeiro,Ricardo Reis e Álvaro de Campos.

248 páginas. Claro Enigma. R$ 34

Outros Contosdo BaléInês BogéaA bailarina e diretora dedança conta a história decinco peçasindispensáveis para

qualquer companhia clássica: “A Sílfide”, “OCorsário”, “La Bayàdere”, “O Quebra-Nozes”e “O Pássaro de Fogo”. Acompanha fotos deespetáculos e companhias pelo mundo.

88 páginas. Cosac Naify. R$ 49,90

Cenas de Nova Yorke Outras ViagensJack KerouacA narrativa alucinante doescritor que personificou aalma beat está presentenesta edição da Coleção 64Páginas, que destaca duas

crônicas de viagens, a crônica “O vagabundoamericano em extinção”, um poema e umaapresentação de Kerouac por ele mesmo.

64 páginas. L&PM Pocket. R$ 5

Os DesvalidosFrancisco J. C. DantasNeste romance publicadooriginalmente em 1993, oautor sergipano retoma atradição consagrada porGuimarães Rosa, aomesmo tempo em que

atualiza a cultura popular nordestina.

256 páginas. Alfaguara. R$ 39,90

Encontro literárioEster Abreu participa do “Debate-papo”A presidente da Academia Feminina Espírito-Santense deLetras é a convidada deste mês do Projeto Debate-papo com oEscritor, com mediação de Renata Bomfim e Ana Quirino. Nodia 18 de julho, às 19h, na Biblioteca Pública do Espírito Santo.

Artes plásticasHilal abre exposição em São João del-ReyA mostra “Sherazade”, de Hilal Sami Hilal, será aberta hoje e ficaem cartaz até 12 de agosto, no Centro Cultural da UniversidadeFederal de São João del-Rey (MG). A curadoria é de RicardoCoelho, que define a exposição como “uma delicada representaçãoda vida que se mantém por um fio de encantamento”.

20de julhoOrquestra da Polônia em VitóriaA Orquestra de Câmara polonesa Capella Bydgostiensis seapresenta no Theatro Carlos Gomes, na próximasexta-feira, às 20h, dentro da série ConcertosInternacionais. Regência do maestro José Maria Florêncio.Mais informações: www.concertosinternacionais.com.br.

1ºde agostoPós-graduação em Artes abre inscriçõesEstão abertas até 1º de agosto as inscrições para o processoseletivo de aluno especial do Programa de Pós-Graduação emArtes da Ufes (PPGA). A ficha de inscrição está disponívelno site www.artes.ufes.br.

José Roberto Santos Nevesé editor do Caderno Pensar, espaço para adiscussão e reflexão cultural que circulasemanalmente, aos sábados.

[email protected] VIVA

A biblioteca é muito mais do que um depósito delivros, já afirmaram acadêmicos e educadores. Trata-se deum espaço cultural vivo, de convivência social, onde secompartilham afinidades sobre literatura, cinema, música,artes plásticas e filosofia, entre outros ramos do conhe-cimento. É também o local onde se pode aprender sobre nossahistória e identidade, e descobrir preciosidades até entãoinacessíveis ao público, como as obras raras comentadas porReinaldo Santos Neves nesta edição. Escritor residente daBiblioteca Pública do Espírito Santo (BPES), Reinaldo pes-

quisou o acervo da instituição com livros incorporados entre1855 e 1889, durante o período da Província do EspíritoSanto, e relaciona algumas curiosidades sobre o materialdisponível e consumido pelos leitores capixabas no século XIX.Uma delas diz respeito à expressiva quantidade de livros emfrancês, a maioria dentre os 275 volumes remanescentes,incluindo uma tradução em verso de “Os Lusíadas” (1876).Esse material estará disponível aos leitores assim que o projetoda Biblioteca Digital entrar em funcionamento no futuroportal da BPES. Bom sábado, boa leitura, bom Pensar!

Pensar na webGaleria de fotos de livros raros do acervoda Biblioteca Pública Estadual, vídeos dosRolling Stones, poemas de CecíliaMeireles e trechos de livros comentadosnesta edição, no www.agazeta.com.br.

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal

A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493

Aline Diasé jornalista e escritora. Publicou o livro“Vermelho”. [email protected]

Coletivo Peixariareúne amigos que desenham porque [email protected]

Documento:AGazeta_14_07_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_2.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:12 de Jul de 2012 20:01:51

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3PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

14 DE JULHODE 2012

entrelinhaspor WILLIAMS ROOSEVELT MONJARDIM

PENSO, LOGO RIO: UMAFILOSOFIA DO HUMOR

DIVULGAÇÃO

DO QUE RIEM ASPESSOAS INTELIGENTES?Manfred Geier. Record. 302páginas. Quanto: R$ 42,90

Para o pensador alemão Manfred Geier, o riso tem uma perspectiva libertária

Debussy & Luiz Gonzaga

Do Prelúdio ao Baião

20 a 29 Julho 2012

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Não perca o XIX Festival Internacional de Inverno de Música Erudita e Popular de

Domingos Martins.

Serão diversas apresentações de orquestras, recitais, corais, danças folclóricas e

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Fábio Presgrave, Fernando Dissenha e Robertinho Silva.

Visite Domingos Martins, de 20 a 29 de julho, e faça parte desse espetáculo.

Confira a programação completa em www.festivaldomingosmartins.com.br

Com as mortes de MillôrFernandes e Chico Anysioainda recentes, estamosdiante de uma boa oca-sião para pensar o humor.E Manfred Geier nos con-

vida a isso em “Do que riem as pessoasinteligentes? Uma pequena filosofiado humor” (Record, 2011).

Já no prólogo, uma provocação. “Afilosofia existe quando se ri”. A partirdaí, procura “pessoas inteligentes quenão aceitaram que lhes proíba o riso”. Eas encontra.

A primeira delas foi uma escrava tráciaque riu ao ver Tales cair num buracoenquanto investigava o céu.

Sem achar o riso engraçado, Sócratese Platão o condenaram. Para eles, “origor do pensamento e a profundidadeintelectual do conhecimento cognitivonão suportam nenhum distanciamentocausado pelo riso, nenhum divertimentobrincalhão, nenhuma atitude efêmera”.E é curioso pensar que o método so-crático se iniciava pela ironia. Sua fi-losofia fez Atenas rir dos “sábios”, quan-do os desmascarava em público. Platãonão viu graça ao ver Sócrates ser mortopor estes pseudossábios. Em sua Re-pública, idealizada mais tarde, o co-mediante foi completamente expulso.

Aristóteles, por sua vez, entendeu queo riso fazia parte da natureza humana.Mas que se ria com moderação, pois se acapacidade de brincar pode ser uma“virtude relacionada à interação social,[...] quem persegue o ridículo a qualquerpreço, fazendo continuamente anedotasque ninguém quer ouvir, é um meroninguém, incapaz de manter uma con-versa sociável”. Se devidamente tratada,a comédia possui uma espécie de po-tência negativa que, ao ressaltar com-portamentos socialmente indesejáveis,pode melhor condená-los e assim cons-tituir uma pedagogia moral.

Também houve quem risse sem re-ceios. Demócrito foi um deles e por issofoi perseguido ao longo da história. Arazão de seu riso estava em sua doutrinaque atribuía aos átomos e ao vazio aorigem de toda realidade. Os átomos seagregam e desagregam fazendo surgirtudo o que conhecemos. Os corpos sedecompõem e se recombinam em novasformas, numa perene mutação do mes-mo. Nenhuma vida após a morte, nemdeuses ou demônios a temer, apenas oeterno ciclo da natureza. Se tal filosofiaprosperasse, toda construção metafísicaruiria peça por peça e, ao final delas,cairia a maior de todas: a ideia do Bem,como a chamava Platão, de Sumo Bem,como chamava Aristóteles, de Deus, co-

mo chamam os cristãos. Sem medo dosdeuses, Demócrito ria abertamente dosmitos e das pretensões humanas.

O cristianismo satanizou o humor evalorizou o sofrimento. “Os funda-dores da Igreja eram inimigos do risopara quem todos seus amigos só po-dem ser tolos ou até mesmo pecadores.Afinal, já a Sagrada Escritura dizia ‘aide vós, os que agora rides, porque voslamentareis e chorareis’.” (Lc 6:25).Jesus também nunca foi mostrado rin-do, apenas sério ou chorando. Apesarde tudo, Demócrito sobreviveu. Cíceroe Horácio se inspiraram em sua ale-gria; Erasmo fez-lhe homenagens ex-plícitas; Rabelais, bebendo em suafonte, considera o riso o “bem máximodo homem”.

InteligênciaAo longo de sua investigação, Geier

ainda encontra-se com Diógenes, Mon-taigne, Descartes, Kant, Schopenhauer,Kierkegaard, Bergson e outros. Mas,afinal, por que falar do riso?

Para Geier, porque o riso tem umaperspectiva libertária, um é locus pri-vilegiado onde o pensamento se libertaao expor o ridículo das ideias oficiais. Aoelogiar a escrava trácia, diz que “em seuriso se descobre uma inteligência com aqual os sisudos filósofos jamais sonha-ram. É o riso libertador de uma mulherque, num instante fugaz, desmascara amentira em que se baseia toda a filosofiaeuropeia: que o amor à sabedoria ne-cessariamente significa precisar se dis-tanciar do mundo vivido”.

Para mim, embora crítico, o humor setorna perverso quando caminha com o

preconceito ou faz rir da miséria. Umareação comum das pessoas diante datragédia é se reduzir em dizer: “Só podeser piada”, ou “é brincadeira...”. Por queassociamos a miséria ao engraçado?Que consequências têm isso em nossoagir político? Para nós, a tragédia socialcostuma ser uma piada da qual rimos econtinuamos a conviver com ela. Pro-gramas de humor transformam a tra-gédia em riso: o espectador ri, tende aum sentimento de superioridade e, logoem seguida, a um esvaziamento dopoder de revolta. Isso nos põe diante deum impasse: se a realidade vem sob aforma de tragédia, constatamos a baixacapacidade de articulação das pessoas;se sob a forma de comédia, no risoapaziguamos tensões políticas e sociais.Que povo é esse que não reage nempelo choro nem pelo riso?

Documento:AGazeta_14_07_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_3.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:12 de Jul de 2012 19:27:58

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4PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,14 DE JULHODE 2012

estudos literáriospor RICARDO SALVALAIO

DIVULGAÇÃO

A poeta (1901-1964) trabalhou as angústias do ser humano e a consciência da morte

OS PARADOXOS DA VIDA NAPOESIA DE CECÍLIA MEIRELESÀ luz da filosofia, escritor analisa o poema “Motivo”, no qual o eu lírico criado pelaautora oscila entre ideias contrárias e elege as incertezas como razão da existência

Em “Motivo”, o primeiro poe-ma da obra-prima “Viagem”(1939), Cecília Meireles tra-balha com a questão da me-talinguagem, ou seja, o fazerpoético. No entanto, o foco

aqui é a análise do poema, à luz deKierkegaard (1813-1855). “Ocorre que seo paradoxo é o lugar onde uma verdadese revela a nós, nossa situação não deixade ser paradoxal. Não cessamos de as-pirar a uma plenitude enquanto vagamosno meio de uma incerteza infinita, é comesta própria incerteza que nos devemoscontentar como verdade”, revela o fi-lósofo. Vejamos o poema “Motivo”, que érepleto de paradoxos:

Motivo (Cecília Meireles)Eu canto porque o instante existee a minha vida está completa.Não sou alegre nem sou triste:sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,não sinto gozo nem tormento.Atravesso noites e diasno vento.

Se desmorono ou edifico,se permaneço ou me desfaço,- não sei, não sei. Não sei se ficoou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.Tem sangue eterno e asa ritmada.E sei que um dia estarei mudo:- mais nada...

No poema, o paradoxo está pre-sente em vários versos: “Não soualegre nem sou triste”; “Não sintogozo nem tormento”. Entretanto,apesar dos paradoxos, o eu líricorealiza ações (vive) mesmo com to-das as contradições da vida. É umaironia da vida, em meio a tantasincertezas, o Homem querer siste-matizar a vida. Desse modo, a rea-lidade deixa de ser “realidade” epassa a ser “possibilidade”. A vidaindividual é irredutível a conceitos,pois todo sistema é insuficiente.Kierkegaard chega à conclusão quecaptar a realidade a partir da lógicaé resolvê-la em mera possibilidade.Todos os paradoxos do poema in-dicam que o eu poético oscila entre

ideias contrárias: triste/ alegre, go-zo/tormento, desmorono/edifico.Assim sendo, o indivíduo vive (sen-te) as duas ideias, pois não há comoser o mesmo sempre. Ser indivíduo éeleger-se e apaixonar-se por si pró-

prio. Aqui, “os motivos” da exis-tência são a inconstância e a in-certeza.

De acordo com as ideias de Kier-kegaard, o existente é o Homem vi-vente, que dirige sua atenção sobre o

fato de que existe, que não se fechana especulação abstrata. A existênciaé o momento de decisão e da paixão.No poema, vê-se que o eu lírico viveseus problemas existenciais, porémsegue em frente, e no fim revela: “Eum dia sei que estarei mudo: - maisnada”. Este verso, que é uma dascertezas do indivíduo, parece reme-ter à morte, também uma certeza,pois, para Kierkegaard, não há re-encarnação, só existimos uma vez. Ea existência é movimento. Pensar eexistir estão juntos na existência.

O canto mudoNas estrofes há uma quebra de

ritmo, seria uma tensão rítmica, poisas estrofes são constituídas de quatroversos, sendo três octossílabos e oúltimo trissílabo. O ritmo do poemaestá ligado ao ritmo da vida, que écheia de “quebras”.

Geralmente, as certezas do eu poé-tico estão acompanhadas do verbo“ser”: “Sou poeta”, “sei que canto”, “seique estarei mudo”. A subjetividade éúnica nesse caso e a manifestação do eulírico na cultura se dá aí, haja vista queum “ser existente” é um pensador sub-jetivo. “O indivíduo é a categoria atra-vés da qual devem passar o tempo, ahistória, a humanidade. A compreen-são deve acontecer na existência e nãofora dela. O Homem é uma união decontrários – de autoconsciência e deum corpo físico”, aponta Kierkegaard.Está aí, porém, o foco do terror, ouangústia do Homem. O ser humano éeste paradoxo, tem consciência de suaindividualidade, do terror do mundo ede sua morte.

Em “Motivo”, apesar de cantar ao ladodas individualidades e das contradições,o indivíduo tem a consciência de que umdia não poderá mais cantar, estará mudo(morto). A morte é, portanto, a maior emais peculiar angústia do Homem. O serhumano está limitado pelo mundo e peloseu espírito, então, experimenta angústiaporque é esta síntese entre espiritual ecorporal. O eu lírico parece saber de suamorte e parece não se importar, este é oestilo usado por ele para funcionar nomundo automaticamente. Assim, seu“motivo” de viver é a eterna busca doque ele não conhece.

Documento:AGazeta_14_07_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_4.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:12 de Jul de 2012 19:31:30

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5PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

14 DE JULHODE 2012

falando de músicapor CAMILO CEOLIN

ERA UM GAROTO QUE COMO EUAMAVA MAIS OS ROLLING STONES

Cinquenta anos depois desua primeira apresenta-ção ao vivo, os RollingStones confirmam o queo tempo lhes prometeu:ser a maior banda de ro-

ck’n’roll do mundo.No início da carreira, os Rolling

Stones já cantavam o sucesso “Time ison my side” (o tempo está ao meulado). Profético. Cinquenta anos depoisde sua primeira apresentação oficial,no clube inglês Marquee, no dia 12 dejulho de 1962, a banda liderada porMick Jagger e Keith Richards sobre-viveu ao teste do tempo e seus desafios.Se para alguns filósofos franceses “otempo destrói tudo”, para esses ingleses otempo correu a favor, construiu e au-mentou a sua fama e fortuna, colo-cando-os definitivamente no posto de “amaior banda de rock’n’roll do mundo”.Essa história merece um tributo.

Considero que um bebê manifesta oseu verdadeiro nascimento quandochora. Chorar, bradar ao mundo “euestou aqui”, através de um grito primal,gutural e ensurdecedor, atesta commaior veemência o início da vida. Porisso, particularmente eu considero odia 12 de julho de 1962 como a “data denascimento” dos Rolling Stones. Estavatudo ali: um blues elétrico, bem alto,com Jagger arrebentando suas cordasvocais para se igualar ao volume dasguitarras ensurdecedoras de Keith Ri-chards e Brian Jones. Barulho é vida.Silêncio é morte. It’s rock’n’roll, baby!

Eles são a epítome do rock’n’roll. Orepertório dos Stones está no patamardos songbooks dos maiores compo-sitores da história da música mundial.“(I can’t get no) Satisfaction” é até hojeum hino da rebeldia juvenil, semprelembrada como um dos cinco maioresclássicos do rock. O riff de guitarra deRichards é magistral. Aliás, já li emalgum lugar que, se os Beatles possuemas melhores músicas do mundo, nin-guém possui as melhores introduçõesde músicas como os Stones. Concordoplenamente. Não é à toa que Richards éo “Mestre dos Riffs”. Seu som é oamálgama de blues, country, gospel esoul – ou seja, rock’n’roll.

“Gimme Shelter”A introdução de “Gimme Shelter” é

sublime para que, logo depois, se der-rame num cenário de catástrofe e hor-ror. Como não se sentir elevado diantede uma canção tão bela e com umamensagem tão linda como “You Can’t

Always get What you Want”? Como nãosentir a ebulição dos hormônios ou-vindo músicas sacanas como “HonkyTonk Women” ou “Tumbling Dice”?Como não desejar ir pras ruas e fazeruma revolução no braço ao ouvir “Stre-et Fighting Man”? Dá pra ficar in-diferente à genialidade de “Paint itBlack” ou ao lirismo poético de “RubyTuesday”? Dá pra ficar sem dançar aosom de “Start me Up”? Sempre acre-ditei que tocar “Jumping Jack Flash” novolume máximo faria as caixas de somestourarem. E as baladas? Ah, as ba-ladas... A metáfora do casal de amantescomo cavalos selvagens faz de “WildHorses” digna de se dedicar só àquelesamores extremamente especiais. “An-gie” é delicada e bela. “As Tears Goesby”, melancólica e lírica.

Confesso que hoje sinto calafrios aoouvir “Gimme Shelter”. Pare pra pensarse a letra da canção não é um retrato doclima de violência que acomete a so-

ciedade contemporânea, incluindo,claro, nós capixabas: “Guerra, crianças,está a apenas um tiro de distância/Es-tupro, assassinato, está a apenas umtiro de distância”. “Gimme Shelter” é ohino de um apocalipse que se des-cortina debaixo dos nossos narizes.Aterrorizante.

Paradoxalmente, não há nada deaterrorizante em “Sympathy for theDevil”, que é uma metáfora sobre aganância e o poder, mas que se apro-veitou do polêmico título e da sua letrapara aumentar a fama dos Stones. Praquem não sabe, Mick Jagger é eco-nomista e entende muito de negócios.

“It’s Only Rock and Roll”, “Miss You”,“Can’t you hear me knocking”, “I’mFree”, “Let it Bleed”, “Dead Flowers”,“Happy”, “Mixed Emotions” ou “Saintof Me”... São dezenas de canções in-superáveis. São canções de uma vida.Cinquenta anos de vida.

DIVULGAÇÃO

TestosteronaEssas canções tocadas ao vivo re-

velam um ingrediente indispensável eabundante na música dos Rolling Sto-nes: a testosterona. Sem testosterona asua música e longevidade não seriampossíveis. Parece que quando entra nopalco a banda quer justificar a sua famade “maior banda de rock do mundo” afórceps, esbanjando macheza e viri-lidade. Daí que suas apresentações aovivo davam a sensação aos fãs de queJagger deixava as suas vísceras emalgum canto do palco, tamanha a in-tensidade das suas interpretações. Des-culpem-me, juro que não sou machista,mas devo concordar com os Stones:rock’n’roll é coisa pra macho!

Cinquenta anos depois, eles continuamativos, firmes, fortes, divertidos e im-portantes. São craques na arte de fazerrock’n’roll. Coisas de quem joga nas onzee chuta com as duas. O tempo está aolado dos Rolling Stones.

Os Rolling Stones, que completaram 50 anos nesta semana, em foto dos anos 60: o tempo está ao lado deles

Documento:AGazeta_14_07_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_5.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:12 de Jul de 2012 19:26:05

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7PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

14 DE JULHODE 2012

6PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,14 DE JULHODE 2012

ESCRITOR RESIDENTE DA BIBLIOTECA PÚBLICA ESTADUALDESTACA COLEÇÃO DE OBRAS RARAS DO SÉCULO XIX

memóriapor REINALDO SANTOS NEVES

O ACERVOHISTÓRICODA PROVÍNCIA

Ao pesquisar obras consultadas por idioma na instituição, autor constatou que, em 1886, lia-se muito em francês, além de volumes escritos em inglês, latim, italiano e espanhol

REPRODUÇÃO

Folha de rosto dos livros “Encyclopédie moderne” (1848), “Tractado dacultura da canna de assucar” (1868) e “Biographie universelle” (1841)

ABiblioteca Pública do Es-pírito Santo está comple-tando 157 anos. Quempromoveu sua criação foio escritor Brás Rubim, ca-pixaba de nascimento, que

ofereceu ao governo provincial um con-junto de 400 volumes como núcleoinicial do acervo, cabendo ao governo,em contrapartida, criar, instalar e man-ter a instituição. Maiores detalhes emdois artigos publicados na Revista doInstituto Histórico e Geográfico (ns. 59 e64): “Biblioteca Pública Estadual doEspírito Santo: memória administrativa,1855-2005”, de Rogério Coimbra, e “Ointelectual Braz da Costa Rubim e afundação da Biblioteca Pública Estadualem 1855”, de Getúlio Pereira Neves.

Os relatórios dos presidentes pro-vinciais (consultados na página do Ar-quivo Público) dão conta das imensasdificuldades de funcionamento nos pri-meiros 25 anos. Diz Leão Veloso em1859: “Não passa a biblioteca públicade, talvez, novecentos volumes, inclu-sive muitas brochuras, atirados a esmosobre uma mesa, e pelo chão, entreguesà voracidade das traças, e ao estrago dapoeira.” E faz apelo, como fariam muitosde seus sucessores, à Assembleia (apelo,

à mesma fonte, que ainda hoje convém eé preciso que se faça): “Se entendeis quea província deve ter uma livraria pú-blica, cumpre que a doteis dos meios deque há mister o núcleo que já temos,para que se possa desenvolver. [...]consignando-se, anualmente, algumaquantia por pequena que seja, ir-se-ágradualmente fazendo novas aquisiçõese assim acrescentando-se a livraria.”

Mais dramático, o bibliotecário refereque se chegou “a comprar 30 tábuas dediversas qualidades para mandar fazeruma ou duas estantes, embora toscas,mas nem assim puderam ser feitas porfalta de dinheiro para pagamento damão de obra”.

Só na década de 1880 as coisas co-meçam a melhorar. O relatório de Eliseude Souza Martins, de julho de 1880, já

traz uma nota de otimismo. “A Bibliotecavai tendo grande desenvolvimento pelacontinuada oferta de livros; sua fre-qüência, que excede em muito as pre-visões ordinárias, demonstra que ela veiosatisfazer uma grande necessidade doespírito público nesta capital.” Até alinguagem oficial muda: a Bibliotecatorna-se “utilíssimo estabelecimento” e“civilizadora instituição”. Os relatóriospassam a ser mais detalhados, incluindoinformações do número de leitores e deobras consultadas, estas por área deconhecimento e até por idioma.

Em 1882 o acervo conta 2.942 vo-lumes. Para ter uma estimativa do totalno fim do período monárquico adi-cionamos a esse número as aquisiçõespor compra e doação (quando) dis-criminadas nos relatórios subsequentes,e chegamos à soma de 4.353 volumes. Éum cálculo grosseiro, pois não leva emconta números ausentes dos relatórios,como perdas por dano e furto e volumesnão devolvidos, coisas então, como ho-je, corriqueiras.

Nenhum dos relatórios contém listaou catálogo dos 400 títulos doados porBrás Rubim nem das incorporações pos-teriores. Quem sabe uma busca nosarquivos do Estado não exumaria>

documentos contendo essas infor-mações preciosas para a história da

nossa cultura no século XIX?No entanto, uma noção, embora par-

cial, da fisionomia desse acervo provémde pesquisa que fizemos, como escritorresidente, no setor especial da BPES co-nhecido como Coleção Província, quereúne uns 8.000 títulos do período entre1800 e 1950. Aí encontramos 275 so-

breviventes do acervo provincial, ou seja,incorporados entre 1855 e 1889. Foi fácilidentificá-los: todos eles exibem o ca-rimbo Biblioteca Pública – Província doEspírito Santo.

É um acervo histórica e documen-talmente precioso e, devido às enca-dernações mandadas fazer na época, emsua maioria em bom estado de con-servação. Dá-nos uma boa amostragem

do material de leitura disponível e con-sumido pelos leitores provinciais. Exem-plo: lia-se muito em francês, como se vêpela estatística de obras consultadas poridioma em 1886: 867 em português, 551em francês, e outras em inglês, latim,italiano e espanhol. Não é pois de admirarque, dentre os 275 volumes hoje re-manescentes, 137 sejam em francês, 112em português, e 26 em outras línguas.

REPRODUÇÃO

Mas quais dentre essas obras pode-ríamos mencionar aqui como especial-mente raras e curiosas? A mais antiga delasdata de 1793-1807 e é uma traduçãoportuguesa em onze volumes (de querestam cinco) da História eclesiástica: “Osséculos cristãos, ou História do Cristia-nismo no seu estabelecimento e progres-sos”. E mais: “Variedades sobre os objetosrelativos às artes, comércio e manufaturas,consideradas segundo os princípios daeconomia política” (1814); “Teoria do di-reito penal aplicada ao código penal por-tuguês comparado com o código do Brasil,leis pátrias, códigos e leis criminais dospovos antigos e modernos” (1856), emquatro volumes; “Manual dos juízes dedireito ou Coleção dos atos, atribuições edeveres destas autoridades”, do capixabaPereira de Vasconcelos (1861); “Estudospráticos sobre a administração das pro-víncias no Brasil” (1865); “Breve notíciasobre a coleção das madeiras do Brasil”(1867); “Catálogo suplementar dos livrosdoGabinetePortuguêsdeLeituranoRiodeJaneiro” (1870); “Teses sobre colonizaçãodo Brasil: Projeto de solução às questõessociais que se prendem a este difícil pro-blema” (1875); “Apontamentos sobre oabaneênga também chamado de guaraniou tupi ou língua geral dos brasis” (1876);e “O Rio de Janeiro: sua história, mo-numentos, homens notáveis, usos e cu-riosidades” (1877).

“Os Lusíadas”Em francês destacamos uma tradução

em verso de “Os Lusíadas” (1876); e(traduzindo os títulos): “Quadro das re-voluções da Europa”, de Koch, em trêsvolumes (1823); “Dicionário racional dostermos de botânica”, de Le Coq (1831);“Dicionário de medicina, cirurgia, far-mácia, ciências auxiliares e arte vete-rinária”, de Nysten (1840); “Biografiauniversal: Dicionário histórico contendo anecrologia dos homens célebres de todosos países, artigos consagrados à históriageral dos povos, às batalhas memoráveis,aos grandes acontecimentos políticos, àsdiversas seitas religiosas etc. etc. desde ocomeço do mundo até os nossos dias”(1841), da qual restam três de seis vo-lumes; quinze volumes da “Enciclopédiamoderna: Dicionário abreviado das ciên-cias, letras, artes, indústria, agricultura ecomércio” (1846-60); e vários númerosda década de 1840 do “Journal des Eco-nomistes”, revista mensal de questõesagrícolas, industriais e comerciais.

Todo esse relicário de 275 volumes, emuito mais, pretende a atual gestão,comandada pela diretora Nádia AlcureCampos da Costa, reproduzir na Bi-blioteca Digital que integrará o futuroportal da BPES. São antigos tesouros deconhecimento que, graças aos novosmecanismos da tecnologia da informa-ção, podem e devem ser recolocados aoalcance de leitores e pesquisadoresno mundo inteiro.

Ilustrações do livro “Géographie Universelle”, de Malte-Brun, 1865, obra rara do acervo da Biblioteca Pública Estadual

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8PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,14 DE JULHODE 2012

Vendedor de jornais foi mais do que simples mediador entre jornalista e leitor, apontaacadêmico, que lembra estrutura montada por imigrantes italianos no início do século XX

O PAPEL DO GAZETEIRO NACONSTRUÇÃO DA COMUNICAÇÃO

Não faz muito tempo, eracomum ouvir a voz es-tridente de gazeteiros queanunciavam os jornais aosberros pelas ruas da ci-dade. Cada um com sua

própria melodia, buscavam se destacardos concorrentes através do único recursopublicitário que dispunham: a voz. Sempercebermos, acompanhamos a extinçãodessa antiga profissão. Afinal, os ga-zeteiros teriam mais para nos dizer queapenas o nome e a manchete dos jornais?Há poucos anos, a maioria dos pes-quisadores não perderia seu tempo noestudo de questões consideradas meno-res, como vendedores de jornal. Na cons-trução de uma história da imprensa,parecia mais óbvio levar em conta jor-nalistas e editores, únicos personagensque aparentemente tinham condições deprovocar alguma transformação relevan-te. Felizmente, esse cenário mudou muitonas últimas décadas e alguns antigoscoadjuvantes têm roubado a cena nessa eem outras histórias.

Na História da comunicação, o ven-dedor de jornais nunca foi apenas umsimples mediador entre jornalista e leitor.Ele teve um papel muito maior comoparte de uma estrutura organizada pelosimigrantes italianos no Rio de Janeiro doinício do século XX. Em 1906, o célebreeditor italiano Gaetano Segreto liderou78 vendedores de jornais na fundação daSocietá di Beneficenza e Mutuo Soccorsodegli Ausiliari della Stampa. Associaçãomutualista, fundamental numa épocasem previdência pública, seu objetivoprincipal era mais do que oferecer pen-sões aos inválidos. Ela organizava toda acirculação de periódicos do Rio de Ja-neiro. Desde finais do século XIX, italianosjá dominavam a venda de jornais e re-vistas na cidade.

SobrevivênciaSem capital ou capacitação, os imi-

grantes tiveram que se voltar para pe-quenos serviços urbanos: eram mascates,engraxates, garçons e vendedores am-bulantes. Se não constam nos livros dehistória, em romances mais realistas doséculo XIX, como “O Cortiço”, de Aluísiode Azevedo, os italianos são normal-mente representados como mascates ba-rulhentos e sem modos. A venda de

ARTE SOBRE FOTO DE AUGUSTO CÉSAR MALTA/MUSEU DA IMAGEM E DO SOM

imprensapor GABRIEL LABANCA

impressos, portanto, não era algum tipode característica cultural, mas apenasuma das estratégias de sobrevivênciadaquele povo no novo país.

Ainda sem as bancas que conhecemoshoje, as disputas pelos melhores pontosde venda eram constantes e violentas. Acriação da Stampa foi uma resposta a essecenário instável e à profissionalização dosjornais, generosamente financiados pelonovo sistema republicano. A virada para oséculo XX marca o início da estruturaçãode grandes empresas jornalísticas, bemdiferentes da imprensa panfletária doséculo anterior. Dependentes da publi-cidade mais do que de convicções po-líticas, as folhas matutinas ou vespertinasprecisavam alcançar o maior número deleitores para atrair anunciantes na mesmaproporção. É nesse contexto que foi fun-

dada a Stampa. Com ações enérgicas, aorganização aos poucos se afirmou, dis-ciplinando a classe e harmonizando asdivergências com a imprensa.

Organizados, os italianos monopoli-zaram a distribuição de jornais e revistasda então capital política e cultural doBrasil por décadas. Nenhum periódicopoderia sair às ruas se não fosse pelasmãos dos imigrantes. Essa estrutura fez afortuna dos distribuidores, mais alto es-calão da Societá. Chegavam a emprestardinheiro aos jornais, como o “MundoEsportivo”, de Mário Filho, bancado pelodistribuidor Vicenzo Perrotta. Cada dis-tribuidor representava um jornal ou re-vista e determinava quantas edições cadajornaleiro receberia. Por esse trabalho,ganhavam uma boa porcentagem sobre aquantia distribuída. Sem passar pelos

italianos, portanto, um jornal não con-seguiria circular pela cidade, talvez nãopudesse sequer ser lançado.

Com a pressão dos jornais e con-correntes, a Stampa foi perdendo a suaforça em meados do século XX. As po-líticas nacionalizantes da Era Vargas tam-bém contribuíram para a diluição dogrupo, principalmente com a Itália comoinimiga durante a 2ª Guerra. A italia-nidade parecia ser o principal elementoagregador dos jornaleiros e, ao ser aban-donada, abriu espaço para o domínio daatividade por outros grupos. Hoje o ga-zeteiro já não berra manchetes pelas ruas,mas sua voz pode ser escutada através dasua história, ainda por ser contada. Maisdo que notícias, seu grito pode revelardetalhes sobre a formação da im-prensa como a conhecemos hoje.

Menino vendendo periódicos no Rio de Janeiro, em 1914: disputas por melhores pontos eram constantes e violentas

Documento:AGazeta_14_07_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_8.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:12 de Jul de 2012 19:53:22

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9PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

14 DE JULHODE 2012

poesias

PALAVRÓRIOHORACIO XAVIERPalavra é ponto de partidaÉ mostra de saídaÉ meio de expressãoMesmo que na despedida

Palavra é mais que alucinaçãoÉ mais que dor partidaÉ mais que solidãoMesmo que em si, perdida

Palavra é um lamentoÉ jeito de sentirÉ jeito de ser, é tormentoPalavra é uma arma, um instrumento

crônicas

CARTA AOSNOBRES E PUROSpor CAÊ GUIMARÃESVocês ocupam as grandes internas dobom mocismo sereno. Vocês tornam oph ácido em teor ameno, sem ao me-nos entornar no chão a quota me-tafórica da proteção. Vocês validamquem os rege, rangem os dentes só ànoite, mergulhados no torpor incons-ciente. Vocês rezam e oram até esfolarjoelhos e inflamar amídalas, mas nãose livram de nada do que julgam serindecente. Porque são gente. Tomamaspirina porque é bom para o coração.E aspiram a sentimentos elevados, des-de que não sejam seus os cobertoresselecionados para encobrir o frioalheio. Vocês paralisam ante qualquerreceio. E para não errar, sempre optampelo caminho do meio.

Separam as meias brancas das co-loridas. E têm medo, muito medo deexpor as próprias feridas. Conduzem avida com elegante e falsa suavidade.

Mas abdicam das memórias contidas.Passam por ruas e avenidas com medo,muito medo da tal indecência, cro-nometrados na agulha dos ponteirossem saber, ou sequer intuir, que a únicaindecência existente é a violência.

Vocês comem, bebem e riem, ridentes,com todos os molares e caninos à dis-posição do cliente. Embriagam e ficamtontos, mas não sentem ou sequer sus-peitam das iluminações que os esprei-tam. Contorcem e entopem garganta eintestino. E a cada faca na carne, a cadaangústia no gesto, a cada gaguejar noolhar, calam o bem guardado segredo ematam, por covardia, o menino queainda lhes deveria habitar.

Quando o que surge é o contrário, oprimeiro gesto é arbitrário. Quandoalgo emperra, sentam e berram. Quan-do o vento sopra de um lugar in-suspeito, protegem o peito. E na gar-

ganta morta, na hora torta e tola emque se deparam com a própria imagemno espelho, carregam nas maquiagenspor puro zelo. E olham de soslaio,apenas para confirmar se a máscara deLaio coube milimetricamente na faceenrubescida. Laio, queridos, é a an-tevéspera da ferida, a víbora que ino-cula um veneno com prazos a perder devista. E a cegueira cabe a quem lhessegue. Com todos os estigmas.

Não há, houve ou haveria outra for-ma de perceber o quanto tudo é vasto epotente? Uma mirada diferente da ofe-recida nas gôndolas dos pegue-paguesda vida? Qualquer coisa que anule essaforma baleada de sorver a bebida que ouniverso serve? Ou algo que seja ma-leável e venenoso, como o rabo perigosoda arraia. Libertem dos frascos os com-primidos de sorrir, liberem os fracos doesforço que é acionar a mola arre-bentada da serventia.

A vida é uma grande e movimentadaaurora. Não se ocupem em entender deque lado vocês estão. Apenas deslum-brem-se. Não há dentro ou fora. Tudo édentro. E estamos todos dentro damesma jaula.

O HÁBITO DA LEITURApor JÔ DRUMOND

Há quem culpe a internet pela evasão dosleitores, mas é provável que se leia mais,hoje em dia, no mundo virtual, mesmoque seja em “internetês”, pois a línguaescrita é largamente usada nesse tipo decomunicação.

Na Europa, é usual que cada cidadãotenha sempre em mãos um livro, umarevista, um jornal ou algo similar, nasmais diversas circunstâncias do cotidia-no, seja em transportes coletivos, salas deespera, cafeterias ou praças públicas. Ofato é que cada um carrega consigo algoescrito para momentos ociosos.

Recentemente, cenas inusitadas, en-volvendo leitores, atraíram minha aten-ção. No desembarque, em Munique, ooperador da ponte móvel, após o términode sua tarefa, abriu um livro e pôs-se aler, atentamente, de pé, indiferente aofluxo dos passageiros. Era como se oentorno não existisse para ele.

Em Paris, presenciei uma cena curiosa,ao flanar sob arcos da rua Rivoli. Ummendigo, deitado placidamente no pas-seio público, indiferente aos passantes,parecia usufruir da leitura de um bomlivro. Seu boné fora colocado displi-centemente ao lado, para eventuais óbo-los. Todavia, as misérias da vida não lhediziam respeito. Absorto no tempo e noespaço, parecia não se dar conta doconstante tilintar de moedas. Seu es-tratagema era duplamente eficaz: pri-meiramente porque, sendo ou não leitorvoraz, a encenação poderia render bonsproventos, considerando que os amantesda leitura (que são muitos na Europa)não deixariam de dar um adjutório àque-le infortunado com quem aparentementeteriam alguma afinidade.

Em segundo lugar, porque para o es-moler, talvez seja mais cômodo fazer umaboa ação livre do constrangimento da

abordagem “face a face”. Percebe-se que ospassantes quase sempre evitam o olhar dosdesvalidos. Não se sabe se por comi-seração, por pressa, por desprazer... talvezpela incoerente fusão de sentimentos di-fusos, ou até mesmo pela sensação deimpotênciadiantedasdoresdomundo.Dequalquer forma, aquele pedinte (que nãopedia) se fazia merecedor de ajuda, tantopelo provável gosto da leitura quanto pelaperspicácia da mendicância.

Citando Fernando Pessoa, “o mito é onada que é tudo”. Realmente, a ficção,muitas vezes, pode ser mais verossímil quea realidade. Embrenhando-se nas aven-turas de um bom livro, o leitor escapa dafaina do cotidiano e do tempo cronológico.Ao entrar no tempo mítico, pode vis-lumbrar novos horizontes, conhecer novosmundos, viver outras vidas... enfim, driblaras agruras, as tristezas e os desamores queporventura surjam no dia a dia.

REMINISCÊNCIAS

Eu ando tão distraídoPerdido em meus pensamentosLembrando tempos de amorMesmo com ditadura, porrada erancor

Eu ando tão delicadoPerdido em meu passadoLembrando tempos de pazMesmo com bomba, molotov e gás

Nada que me fez perder a graçaNada que me trouxe a inocênciaroubadaNada que me fez ser menos feliz

Sábio é o tempo, curador de cicatriz

A ÚLTIMACARTADA

Reúno todas as forçasAquelas loucas que me restamPara aplacar a dor

Reúno todas as energiasAquelas poucas que me cercamPara enfrentar o dissabor

Reúno todos os prazeresAqueles doidos que me infestamPara atiçar o despudor

Reúno todos os amoresAqueles soltos que me encantamPara realçar o rubor

Abarrotado de sentimentosExalo raios,Mil laços de um sedutor

Documento:AGazeta_14_07_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_9.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:12 de Jul de 2012 18:57:53

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11PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

14 DE JULHODE 2012

10PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,14 DE JULHODE 2012

artes plásticaspor CAUÊ ALVES

“ÁGUA VIVA”: UM INSTANTE ENTRESHIRLEY PAES LEME E CLARICE LISPECTOR

Água viva é a forma comosão chamadas as águasque brotam de uma nas-cente. Aquelas que jorramnum fluxo incessante. Olivro “Água Viva”, de Cla-

rice Lispector, publicado pela primeiravez em 1973, é elaborado de modo quecada nova frase aparece como um jorrodesconhecido que flui entre as páginasbrancas. Shirley Paes Leme parte dealgumas sentenças dessa espécie de poe-ma em prosa de Clarice para realizar suaspinturas e toda a mostra “Água Viva”.

A matéria viva de Shirley, além dolivro de Clarice, é composta da água domangue, que, ao ser fervida, torna-semais concentrada, criando um tipo deresina. Uma invenção que ressignifica oconhecimento das paneleiras locais,que selam as panelas de barro com essamesma substância. Clarice segue “otortuoso caminho das raízes reben-tando a terra” e Shirley usa a águatingida pelas raízes do mangue, co-zinha-as e transforma-as em pintura.Isso acontece num processo de se-dimentação, num tempo lento de se-cagem e de formação da espessa resinaavermelhada.

O tempo parece ser o elemento fun-damental em “Água Viva”. Segundo aescritora, “O instante é semente viva...é um pirilampo que acende e apaga,acende e apaga”; é uma abertura para ofuturo. E continua: “[O] presente é oinstante em que a roda do automóvelem alta velocidade toca minimamenteno chão. E a parte da roda que aindanão tocou, tocará num imediato queabsorve o instante presente e torna-opassado”. A continuidade e circula-ridade do tempo é o que está implícitonessa imagem: o tempo é fluxo cons-tante, e vivo como um vaga-lume.

“Água Viva” é uma tentativa, não derepresentar, mas de captar o “instan-te-já”. E aí está a dificuldade, uma vezque ele escorre entre os dedos e não sedeixa apreender facilmente. Passa antesque se consiga agarrá-lo. E se pudés-semos agarrá-lo já não seria mais oinstante imediato, mas algo que já se foie não é mais. De acordo com a escritora:“Novo instante em que vejo o que vai seseguir. Embora para falar do instante devisão eu tenha que ser mais discursivaque o instante: muitos instantes se pas-sarão antes que eu desdobre e esgote a

complexidade una e rápida de um re-lance”. O “instante-já” é puro movimentoque só pode ser vivido de dentro e demodo distraído. Pode ser apreendido nãopela visão especializada, tampouco pelodiscurso, mas pelos ouvidos, mesmo quepor um barulho silencioso e etéreo talcomo desenha Clarice: “Ouço o ribombooco do tempo. É o mundo surdamente seformando. Se eu ouço é porque existoantes da formação do tempo. ‘Eu sou’ é omundo. Mundo sem tempo. [...]”

O trabalho de Shirley, como o deClarice, também se pergunta sobre anatureza do tempo e sua necessidade. Oque a artista faz é tatear em torno de umaintenção de significar. Em “Água Viva”,ela se reencontra consigo mesma. Re-toma a tradição das paneleiras, mas adeforma e institui uma nova coerência eoutros sentidos, ou não sentidos, quecertamente serão incorporados e reto-mados pelo que está por vir.

LEONARDO FINOTTI

A noção do tempo e a fluidez literária da obra da escritora, publicada em 1973, serviram deinspiração para a artista realizar a mostra homônima, que vai até 12 de agosto, no Museu Vale

ExpressãoA personagem central do livro “Água

Viva” é uma pintora que escreve paraalguém determinado, abordando fre-quentemente a relação entre o tecer dapalavra e o traço do pincel. Trata-se daprópria dificuldade da expressão, dainsatisfação constante de um artista embusca de algo que não se deixa fixar: “Aoescrever não posso fabricar como napintura, quando fabrico artesanalmenteuma cor. Mas estou tentando escrever-tecom o corpo todo, enviando uma setaque se finca no ponto tenro e nevrálgicoda palavra.”

Shirley de fato fabrica a cor com aágua do mangue e, artesanalmente,tece suas palavras no mar em quehabita sua “Água Viva”. Não há se-paração entre aquela que pinta e seucorpo. O que a artista faz é transformarsuas ações em pintura.

A palavra nunca consegue, como a

pintura, expressar completamente oque se passa no interior de quem a

escreve ou pinta: “O que te falo nunca éo que eu te falo e sim outra coisa”. É porisso que não nos cansamos de reler olivro que gostamos ou de voltar nummuseu para rever aquela mesma obraque já conhecemos. Cada vez que es-tamos diante dela é possível ir além, veralgo que não havíamos visto. Ou, ainda,ver a mesma coisa e atribuir a ela outrosentido, ou não desvendar qualquer sen-tido. Ou, como reflete Clarice: “Entãoescrever é o modo de quem tem a palavracomo isca: a palavra pescando o que nãoé palavra. Quando essa não palavra – aentrelinha – morde a isca, alguma coisase escreveu. Uma vez que se pescou aentrelinha, poder-se-ia com alívio jogar apalavra fora. Mas aí cessa a analogia: anão palavra, ao morder a isca, incor-porou-a”. As coisas se escrevem do mes-mo modo como as pinturas se pintam por

elas mesmas. É no contato entre quem vêe o que é visto que o sentido se dá.

“Há muita coisa a dizer que não seicomo dizer. Faltam as palavras. Masrecuso-me a inventar novas: as que exis-tem já devem dizer o que se conseguedizer e o que é proibido. E o que éproibido eu adivinho. Se houver força.Atrás do pensamento não há palavras:é-se.” Mesmo que, segundo Clarice, aspalavras não possam exprimir todas ascoisas, é por elas que compreendemosnão apenas essa insatisfação, esse hiatoentre elas e o mundo, mas aquilo que estáalém das palavras. É do indizível e doinvisível que surge o dizível e o visível. Éo silêncio que torna possível a expressão ea invenção de novos sentidos.

No caso de Clarice, ela não precisainventar novas palavras porque torce asque já existem para que elas signifiquem oque não significavam em seu sentidoestrito, aquele do dicionário. As palavras

que existem podem expressar aquilo queainda não existe, assim como uma tintainforme extraída da água do mangue vaimuito além de sua materialidade e dizalgo do indizível, faz ver o invisível. Omesmo ocorre com a pintura: em vez deser uma imagem ou ideia que ocorre forada tela, ela é aquilo que vemos, é o modocomo se apresenta.

A pintura de Shirley é como a escrita deClarice, é feita ao correr da mão, como sea escritora e a artista não mexessem maisno que a mão escreveu e no que já foipintado. A expressão flui direta, como atinta escorre na tela controlada pelo ân-gulo desta em relação ao chão. “Esse é ummodo de não haver defasagem entre oinstante e eu: ajo no âmago do próprioinstante”, diz a autora em “Água Viva”. Adefasagem estaria no retorno: uma se-gunda escrita mudaria o sentido, tornariamais artificial aquele instante genuíno,assim como o retoque da pintura que já

não se dá mais naquele “instante-já” emque a obra se realiza.

A escrita, o discurso, não é o fim, é umaespécie de aquecimento para a pintura:“Comecei estas páginas também com o fimde preparar-me para pintar”, escreve Cla-rice. E continua: “Mas agora estou tomadapelo gosto das palavras, e quase me libertodo domínio das tintas [...]”. Shirley, tam-bém livre das tintas, escreve com suapintura, tanto quanto Clarice pinta com aspalavras. A artista vislumbra sentidos pe-los quais jorra “Água Viva”. Mais queesboços, as palavras são constituintes dapintura e de todo o espaço expositivo.

Shirley é Clarice porque ela vive suaspalavras de dentro, com toda a suaexistência muda e inconclusa. Ela as fazpulsar como se estivessem frescas, re-cém-escritas, profanas, vivas como nu-ma fonte natural, como se es-tivessem sendo pronunciadas no“instante-já” pela primeira vez.

Instalação dá ao visitante a ideia de caminhar sobre as águas; artista vislumbra sentidos pelos quais jorra sua “Água Viva”

“Nada existe demais difícil do queentregar-se aoinstante. Estadificuldade é dorhumana. É nossa.Eu me entrego empalavras e meentrego quandopinto.”—Clarice LispectorEscritora >

BRUNO COELHO

Para especialista, mais que esboços, as palavras contidas na sala espelhada que integra a mostra são constituintes da pintura e de todo o espaço expositivo

DIVULGAÇÃO

Clarice Lispector: relação entre otecer da palavra e o traço do pincel

VITOR JUBINI

Shirley faz as palavras pulsarem comose estivessem frescas, recém-escritas

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Documento:AGazeta_14_07_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_10.PS;Página:1;Formato:(548.22 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:12 de Jul de 2012 19:06:51

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12PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,14 DE JULHODE 2012

ficçãopor ALINE DIAS, COM ILUSTRAÇÃO DO COLETIVO PEIXARIA

A RODA DA FORTUNAE O REI DE PAUSEnquanto sorteava as cartas a serem postas na mesa, Madama Carlota deixava umcigarro aceso no cinzeiro. Adalgisa, personagem principal deste conto inédito, tossia

Asala era fumaça pura àmeia-luz. Um cheiro fortede incenso e cigarro e unsolhos pretíssimos, pinta-dos com kohl. Adalgisa,mesmo vendo muitas co-

res na cartomante, achava que nos olhosestava o principal. Quis, logo de cara,aquele negrume para si. Sentou-se tí-mida, afoita, desatada e destrambelhada– desesperada de primeiro amor. Nãodisse nada além de boa noite e do nomeperguntado de cara pela cartomante.

Madama Carlota tinha sido recomen-dada pela faxineira da escola. Era gran-de, gorda, colorida, espalhafatosa e deuma doçura quase maternal. Enquantosorteava as cartas a serem postas namesa, deixava um cigarro aceso nocinzeiro. Adalgisa tossia.

– Quantos aninhos você tem, minhaflor?

– Quinze.– Tem cara de até menos. Vamos ver

o que o futuro te traz, queridinha.Quero que pense numa pergunta afazer para as cartas. Se concentre nelaenquanto corta o baralho, sim?

– Eu quero saber como vai...– Não precisa me dizer, sim? Guarde

a pergunta com você e se concentrenela. Mas fique calminha. Não precisater medo de Madama Carlota.

– Tudo bem.– Tão pequenininha, você. Estou ven-

do aqui a roda da fortuna e o rei depaus. Vamos ver... vamos ver... que-ridinha! Você está apaixonada?

– É pra eu falar?– Ô queridinha! O tarô não mente

nunca! Trate de ficar mais calma, flor-zinha. O acaso é uma força muitogrande que dá sempre um jeito deavisar pra nós o que ele vai aprontar.Esse baralho aqui é uma das vozes doacaso e você não chegou à toa emMadama Carlota. Acalme este cora-çãozinho. Vejo muita força aqui no seufuturo, sim?

– Força como?– Florzinha, você vai ser uma mulher

muito forte. Uma imperatriz. Veja cá aimperatriz. Mas, olhe. Não leve a mal oque Madama Carlota vai dizer. Essegaroto aí que você gosta.

– Sim.– Este garoto é um atraso de vida. Ele

te prende ao seu passado e não deixa

você virar a imperatriz do futuro.– Tudo isso o tarô está dizendo?– Sim, florzinha. Ele também vai ser

um homem muito bom, sim. Mas, mediga. Esse garoto te ama, florzinha?

– Era isso que eu queria saber, Ma-dama.

– Ô, florzinha, deixe isso de lado,sim? Você pode ter muitos e muitosgarotos novos e uns bons homens. Está

tudo aqui, nas cartas. Você precisacrescer mais tempo longe dele.

– Mas eu gosto dele!– E ele sabe disso.– E como o tarô sabe disso?– É o acaso, sim? O acaso sabe tudo.

É uma força enorme, queridinha. Umaforça maior do que Madama Carlota edo que você e do que o ônibus queatropelou uma moça um dia desses.

Você viu no jornal?– Quanto tempo?– Quanto tempo o que, minha flor?– Quanto tempo eu tenho que ficar

longe do menino que eu gosto?– Dez anos exatos.– Não posso nem falar com ele,

Madama Carlota?– Pode sim, queridinha. Mas o amor

precisa desse tempo para amadurecer.Você precisa virar antes uma grandeimperatriz.

– Mas Madama Carlota, dez anos équase minha vida toda!

– E com tanta vida assim pela frente,pra que você vai ter pressa, queridinha?

– Mas eu estou toda descompen-sada, Madama Carlota. Ele encostouessa semana o joelho no meu joelhono refeitório da escola e eu senti umascoisas quentes que eu nunca tinhasentido! E o olho dele, Madama Car-lota! Ele tem os olhos mais bonitos domundo!

– São verdes?– Castanhos.– Arrume uns olhos verdes pri-

meiro, sim. Você é muito bonitinha,Adalgisa. Bote na frente os olhosazuis, depois os verdes, depois ospretos. Arrume uns pretos grandes efortes que te ensinem como ser abra-çada. Você vai longe, queridinha. Masse afaste desse moço, sim?

– Mas vai dar tudo certo?– Só daqui a dez anos. Mas não se

afobe, você tem muito ainda o queamar.

E Adalgisa foi para casa com ocoração na mão, acabadíssima. Masno dia seguinte apareceu um meninoloiro vindo de transferência comduas grandes bolebas azuis no lugardos olhos. E na outra escola veio umde cabelo de anjo. E na faculdadevieram infinitos meninos – e atémeninas.

E Adalgisa formou-se mulher esque-cida daquela afobada primeira paixão. Equando se passaram dez anos, ela nemlembrou da data. Só por acaso encontrouna farmácia aquele garoto primordial.

– Mas olha, eu gostava tanto tanto devocê.

– Eu também.Madama Carlota sentiu alguma

coisa no peito sem saber de ondevinha.

Documento:AGazeta_14_07_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_12.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:12 de Jul de 2012 18:57:35