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VITÓRIA, SÁBADO, 23 DE JUNHO DE 2012 www.agazeta.com.br Pensar Bravo, maestro! Entrelinhas LIVRO DE RICHARD DAWKINS EXPLICA FENÔMENOS NATURAIS ATRAVÉS DA CIÊNCIA. Página 3 Música TARCÍSIO FAUSTINI CELEBRA A MILÉSIMA EDIÇÃO DO PROGRAMA DOMINGO BRASIL. Página 5 Letras ENSAÍSTA DESTACA O ESTILO ORIGINAL DE LUIS FERNANDO VERISSIMO . Página 8 Crise social SOCIÓLOGO BUSCA SOLUÇÕES PARA O COMBATE À VIOLÊNCIA. Páginas 10 e 11 UM PERFIL DE HELDER TREFZGER, QUE COMPLETA 20 ANOS À FRENTE DA OFES Páginas 6 e 7 ALINE VALADARES

Pensar_23_06_2012

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Pensar é um caderno semanal, veiculado aos sábados, no Jornal A Gazeta, do Espírito Santo

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VITÓRIA, SÁBADO, 23 DE JUNHO DE 2012

www.agazeta.com.brPensar

Bravo, maestro!

EntrelinhasLIVRO DERICHARDDAWKINSEXPLICAFENÔMENOSNATURAISATRAVÉS DACIÊNCIA.Página 3

MúsicaTARCÍSIOFAUSTINICELEBRA AMILÉSIMAEDIÇÃO DOPROGRAMADOMINGOBRASIL.Página 5

LetrasENSAÍSTADESTACAO ESTILOORIGINAL DELUIS FERNANDOVERISSIMO.Página 8

Crise socialSOCIÓLOGOBUSCASOLUÇÕESPARA OCOMBATE ÀVIOLÊNCIA.Páginas 10 e 11

UM PERFIL DE HELDER TREFZGER, QUECOMPLETA 20 ANOS À FRENTE DA OFES Páginas 6 e 7

ALINE VALADARES

Documento:AGazeta_23_06_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_1.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:21 de Jun de 2012 18:55:26

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2PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,23 DE JUNHODE 2012

marque na agenda prateleiraquempensa

Maninho Pachecoéjornalista,designergráficoepublicitá[email protected]

Luiz Guilherme Santos Nevesé escritor e [email protected]

Tarcísio Faustiniéprodutoreapresentadordoprograma“DomingoBrasil”,naUniversitá[email protected]

Erico de Almeida Mangaraviteé servidor público e frequentador deconcertos e ó[email protected]

Mariana Passos Ramalheteé graduanda em Pedagogia pela Ufes eprofessora. [email protected]

Nayara LimaéescritoraegraduandaemPsicologiapelaUfes.www.nayaralima-versoeprosa.blogspot.com

Sonia Rita Sancio LóraémembrodaAcademiaFemininaEspí[email protected]

Milson Henriquesé cartunista, dramaturgo e ator, não teme-mail e não usa celular.

Erly dos Anjosé professor aposentado do Dep. de CiênciasSociais da Ufes. [email protected]

Nas Trilhas daPolítica AmbientalLeonardo BisA relação entre sociologiae meio ambiente é o temadeste estudo baseado nadissertação de mestradodo autor na Universidade

Estadual do Norte Fluminense (UENF). Emfoco, os conflitos advindos das diferentesformas de exploração da natureza.

242 páginas. Annablume(www.annablume.com.br). R$ 31,50

João GilbertoWalter Garcia (org.)Dividido em quatro partes,reúne uma seleção deentrevistas concedidas porJoão Gilberto, além deensaios, textos críticos edepoimentos de pessoas

próximas do cantor. A seleção aponta osdiversos ângulos da arte de João e ignora oanedotário criado em torno do músico.

512 páginas. Cosac Naify. R$ 215

EvoluçãoBrian e DeborahCharlesworthOs pesquisadoresapresentam os conceitoselementares, os avanços eas descobertas da biologiaevolutiva, demonstrando

as aplicações práticas da Teoria daEvolução na vida das pessoas e narelação da humanidade com o universo.

176 páginas. L&PM Pocket. R$ 15

Nietzsche X KantOswaldo Giacoia Jr.Professor da Unicamp(SP) e autor de livrosreferenciais, o autor revelaos pontos de oposiçãoentre esses dois mestresda filosofia ocidental e

mostra que suas ideias continuam atuais.

296 páginas. Casa da Palavra. R$ 34,90

Literatura russaDostoiévski é tema de palestraO escritor e pintor Gilbert Chaudanne apresenta a palestra“Dostoiévski: matar ou não matar, eis a questão”, na próximaterça-feira, às 19h, na Biblioteca Pública do Espírito Santo(Av. João Batista Parra, 165, Praia do Suá, Vitória).

MúsicaSerra recebe concertos de canto coralO Instituto Todos os Cantos (ITC) inicia neste domingo, às 9h,na Igreja Católica de Boa Vista, uma série de 10 concertosgratuitos de canto coral em diversos bairros da Serra. O ProjetoCanto em Todos os Cantos terá a participação do CoralArcelorMittal Tubarão, Coral Canto na Escola e grupo Algazarra.

30de junhoBig Bat Blues Band lança segundo CDO show de lançamento do álbum “Haze Hot Blues” seráno próximo sábado, a partir das 20h, no Teatro do Sesi(Rua Tupinambás, 240, Jardim da Penha, Vitória).Participação especial do gaitista Jefferson Gonçalves.Ingresso: R$ 20 (inteira), à venda no local.

16de julhoArquivologia promove encontro nacionalEstão abertas as inscrições para o XVI Encontro Nacional dosEstudantes de Arquivologia (Enearq), que será realizado de 16 a21 de julho, no Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas (CCJE)da Ufes. Informações: http://enearq2012.blogspot.com.br/.

José Roberto Santos Nevesé editor do Caderno Pensar, espaço para adiscussão e reflexão cultural que circulasemanalmente, aos sábados.

[email protected] MISSÃO CLÁSSICA

Quando assumiu a regência da Orquestra Filarmônica doEspírito Santo (Ofes), em 1992, Helder Trefzger encontrouuma situação crítica: o quadro de instrumentistas era li-mitado, não havia local de ensaios adequado e concertos nointerior eram cancelados por falta de estrutura para sereceber uma orquestra. Vinte anos depois, ainda há di-ficuldades a serem vencidas, mas é notório que a estrutura ea imagem da Ofes junto ao público e ao meio musical deramum salto de qualidade. Essa evolução pode ser mensurada pormeio de um concorrido calendário de concertos anual, com a

participação de solistas renomados, e o reconhecimento dediversas publicações especializadas. Atento a essas duasdécadas de dedicação do maestro à música clássica, Erico deAlmeida Mangaravite apresenta, nas páginas 6 e 7, um perfilde Helder Trefzger, com fotos de Aline Valadares. O relato deTarcísio Faustini sobre a marca de mil edições do programa“Domingo Brasil” e o artigo de Erly dos Anjos sobre as causase soluções da violência são outros destaques deste número,que traz ainda resenhas literárias, crônicas, poemas, ensaio,ficção... Porque hoje é sábado, dia de ler e Pensar.

Pensar na webGaleriadefotosdomaestroHelderTrefzgerevídeosdaOrquestraFilarmônicadoEspíritoSanto,áudiodoprograma“DomingoBrasil”etrechosdelivroscomentadosnestaedição,nowww.agazeta.com.br

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal

A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493

Eduardo Selga da Silvaé graduado em Letras-Português pela Ufes,professor e [email protected]

Documento:AGazeta_23_06_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_2.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:21 de Jun de 2012 20:31:29

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3PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

23 DE JUNHODE 2012

entrelinhaspor MANINHO PACHECO

RESPOSTAS PARA OSSEGREDOS DO MUNDO

DIVULGAÇÃO

A MAGIA DA REALIDADE -COMO SABEMOS OQUE É VERDADERichard Dawkins. Tradução:Laura Teixeira Motta.Companhia das Letras. 274páginas. Quanto: R$ 54

Aciência não consiste apenasnas coisas que já conhe-cemos, mas sobretudo noque existe mas ainda ig-noramos. Se possível fossesintetizar as belíssimas 274

páginas de “A magia da realidade”, deRichard Dawkins (Cia. das Letras, 2012),seriam as palavras acima que utilizaria. Aadjetivação extremada não é gratuita.Tudo é mágico ali: texto, contexto, ilus-tração. Essa última, aliás, tão precisa esensivelmente assinada por Dave Mckeanque a faz um coautor não-intencionaldessa mais recente obra de Dawkins nadifícil tarefa de provar que nada há desobrenatural – mas excepcional – naquiloque nos ronda. E tudo é provado comfacílima simplicidade por Dawkins, atra-vés de pura poesia. E magia. Magiapoética. Eis aí o mistério da excepcio-nalidade. A natureza – incluindo aí ahumana – e tudo o que nos cerca é puramagia do acaso, de um processo in-cansável e imemorial de tentativa e erroevolucionário da ciência e da paradoxallinearidade do caos. Disso deriva a rea-lidade. A realidade de existirmos, deestarmos onde estamos neste mundo. Dehabitarmos um planeta que, aparente-mente, vaga solitário na vastidão doCosmo, esse enigmático espetáculo.

Em “A dança do universo”, o físicoMarcelo Gleiser diz que há apenas duassoluções para a questão da origem doCosmo: “Ou ele surgiu em um momentodo passado ou é eterno”. Não há espaçopara digressões acerca da criação disso oudaquilo. Notadamente do universo. Éexatamente isso a que Dawkins se pro-põe: derrubar o mito da criação para aexplicação fácil do cotidiano. A criaçãonos remete à ideia do sobrenatural paraexplicar as coisas. O sobrenatural nuncaexplica coisa alguma. Mas nos aprisionana ignorância do saber e no obscuran-tismo do passado e no presente e excluiqualquer possibilidade de se explicar oque quer que seja no futuro. Isso porque,por definição, o sobrenatural está fora doalcance de uma explicação natural. “Temde estar fora do alcance da ciência e dométodo muito bem estabelecido, testadoe aprovado, que tem sido responsávelpelos imensos avanços no conhecimentoque nos beneficiam há cerca de quatroséculos”, diz Dawkins. Ainda recorrendo aGleiser (um crítico, a propósito, do ateís-mo radical dawkiniano), mitos da criaçãopressupõem entidades transcendentes,deuses além do espaço, do tempo e dasleis da natureza. “Se você se satisfizer comuma explicação sobrenatural do mundo,o problema acaba”, diz Gleiser.

A ciência se opõe ao sobrenatural,

constata Dawkins, posto que a realidade éinteligível, explicável e pode ser testada. Eé a partir dessa pegada que o autor nosconvida a uma irrecusável viagem rumoàs coisas deste mundo. E do outro mundotambém, se é que, por acaso, exista essealém. ETs existem? Por que ocorremterremotos? Como se forma o sol? O queé um arco-íris? E os milagres? E as coisasruins? Sorte e azar: o que é isso? Dawkinsnão se furta a explicar nenhuma dessas

questões, das mais complexas às maispueris e comezinhas. E tudo com a graçade um texto envolvente que nos fazencher o peito de alegria e ficarmosorgulhosos de nossa condição de sereshumanos inteligentes, livres do obscu-rantismo das crenças e dos demôniosculturais e interiores. Faz-nos até rir e nosperguntar como não pensamos nisso an-tes ao traçar um paralelo entre a criaçãodo homem a partir do barro e a trans-

formação da carruagem da Cinderela emabóbora. São duas situações que sub-vertem e afrontam as mais elementaresleis físicas. E, no entanto, somos cul-turalmente condicionados a, por fábula,desprezar como realidade a segundatransformação, mas, por bíblica, tomar-mos a primeira como uma leitura literalda criação do ser humano.

Tendo em seu currículo bíblias doateísmo como “O Gene Egoísta” (1976),“A Escalada do Monte Improvável”(1997) e “Deus, um delírio” (2006),Richard Dawkins é o papa do evolu-cionismo, um darwiniano apaixonado egenial. Se Charles Darwin criou o ho-mem (ou, pelo menos, inventou o quehoje nós conhecemos como homem,após aposentarmos nossa presunçosaimagem de obra sublime da criação ecentro do universo), Dawkins recriouDarwin, sobretudo em “O Maior Es-petáculo da Terra - As Evidências daEvolução” (2009). E o prazer de lê-los -Dawkins e Darwin. Ou, o que é melhor,Dawkins explicando Darwin - é o de nosconvencer com a força irrefutável de seusargumentos e nos contentar não passiva,mas mágica e poeticamente, com nossamonumental insignificância de apenasmais uma entre milhões e milhões deespécies que já habitaram e habitameste tão frágil planeta.

TRECHOEm “A Magia da Realidade”, Richard Dawkins usa a ciência para explicar uma grande variedade de fenômenos naturais

“Realidade é tudo o que existe.Parece claro, não? Só que nãoé. Há vários problemas. O quedizer dos dinossauros, que nãoexistem mais? E das estrelas,tão distantes que quando sualuz finalmente chega até nós econseguimos vê-las podem játer se extinguido? Trataremosdos dinossauros e das estrelasdaqui a pouco. Mas, afinal,como sabemos que as coisasexistem, mesmo no presente?

Para começar, nossos cincosentidos — visão, olfato, tato,audição e paladar — fazem umtrabalho razoável para nosconvencer de que muitas coisassão reais: pedras e camelos,grama recém-cortada e cafémoído na hora, lixa e veludo,cachoeiras e campainhas,açúcar e sal. Mas dizemos quealgo é “real” só quandopodemos detectá-lo diretamentecom nossos cinco sentidos?”

Documento:AGazeta_23_06_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_3.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:21 de Jun de 2012 19:48:08

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4PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,23 DE JUNHODE 2012

Escritor chama a atenção para a obsessão de D. Pedro Maria de Lacerda em cronometrar otempo durante suas andanças pelos rincões do Espírito Santo, nos anos de 1880 e 1886

históriapor LUIZ GUILHERME SANTOS NEVES

O RELÓGIO DE ESTIMAÇÃODO SENHOR BISPO

REPRODUÇÃO

DIÁRIOS DAS VISITASPASTORAIS DE 1880 E1886 À PROVÍNCIA DOESPÍRITO SANTOD. Pedro Maria de Lacerda.Org. e coordenação editorial:Maria Clara Medeiros SantosNeves. Phoenix Cultura. 648págs. R$ 35. Disponível no sitewww.estacaocapixaba.com.br

Poderia ser um Patek-Phi-lippe, talvez sem uma cor-rentinha de ouro para nãoincorrer no pecado da os-tentação. Mas se fosse umSavonnette ou um Ross-

kopf também seria de boa prestança orelógio que o bispo D. Pedro Maria deLacerda usou em suas andanças pelosrincões do Espírito Santo, nos anos de1880 e 1886.

A cronometragem do tempo, a queobcecadamente se devotou o prelado nasconsultas ao seu “belo e delicado relógiode ouro, o mesmo que trago agoracomigo”, como informou na visita de1880, revela duplamente sua preocu-pação com a urgência em atender a ummaior número de pessoas e localidadesem sua missão de pastoreio, como seupropósito de medir o tempo gasto nopercurso entre os lugares que visitava.Foi o recurso prático e até novidadeiro,ao alcance de sua mão, para mensurar asdistâncias percorridas.

A todo instante, atravessando matas,vilarejos e fazendas, o bispo sacava orelógio da algibeira no interior da ba-tina, e anotava horas e minutos que omostrador lhe indicava.

Não chegava a descer aos segundos,o que seria esperar muito de sua re-verendíssima ou talvez do seu relógiode época, desprovido, quem sabe, doponteiro apropriado. Mas horas e mi-nutos registrou-as religiosamente emseus apontamentos.

Às vezes as consultas ocorriam numespaço tão curto de tempo que ficaevidente que o bispo nem sequer sedava ao trabalho de guardar o relógioporque a ele recorreria em seguida.Mantinha-o ao alcance da vista en-quanto viajava a cavalo ou em lombo deburro, ou navegando em embarcaçõespelos rios.

Na caminhada realizada em 10 dedezembro de 1886 da atual Iúna aoArraial do Espírito Santo (Muniz Freire),consultou o relógio 17 vezes, o que dá amédia de quase três consultas por hora.

Leia-se a cronografia que transcreveuem seus manuscritos recém-editados (1):“Às 9h 20’ parti e uns 10 ou 12 cavaleirosme acompanharam, e às 9h 27’ passamosdefronte das poucas casinhas do Qui-lombo, afastadas da estrada, [...] to-mamos para a nossa esquerda para ver-

mos a tão falada Água Santa, ondechegamos às 9h 45’ [...] e às 9h 55’ saímose às 10h 4’ estávamos já na nossa estrada,a mesma para onde viemos para o RioPardo [...] Às 10h 11’ passamos defrontedo sítio do Barbosa [...] Às 10h 25’passamos a pequena ponte da Laje [...] Às10h 30’ passamos defronte do sítio daLaje [...] Às 11h 15’ passamos a ponte doJatobá [...] Às 12h 47’ estávamos no altoda serra do Valentim [...] À 1h 10’ datarde passamos um córrego grande [...] eà 1h 15’ passamos a boa ponte sobre oimportante Rio Norte Direito [...] era 1h25’ e o sítio chama-se Barro Branco [...]montamos a cavalo às 2h 55’, e daí apouco cessaram os mesmos chuviscos[...] Às 3h e 10’ passamos a ponte doribeirão ou córrego Vargem Grande quepassa no Arraial Espírito Santo [...] Às 3h30’ passamos defronte da cascata [...]Apeamo-nos à porta do Sr Marcílio [...] emeu relógio marcava 3h 45’.”

Tique-taqueInúmeras outras anotações de horas

e minutos permeiam os apontamentosde viagem de D. Pedro de Lacerda,quase permitindo aos leitores, numafiguração de imagem, ouvir o tique-ta-que do seu “delicado” relógio, sempreque era acionado.

Tais anotações cuidadosas têm odom de revelar o espírito meticuloso doilustre prelado, sendo de se notar queeram feitas num rascunho provisórioantes de serem incluídas nos textosdefinitivos das suas visitas pastorais.

Creio que não se deva ir ao extremode se ver nesse comportamento epis-copal uma tendência à “cronometro-mania”, mas é bem sintomático que aoiniciar o diário de 1880, quando vempela primeira vez ao Espírito Santo, D.Pedro comece escrevendo: “Quarta-fei-ra, 14 de julho de 1880: À 1 hora datarde deste dia chegávamos à Cidadeda Serra...” Idêntica obsessão repete-sena abertura das notas do terceiro ca-derno, em 24 de julho de 1886: “Erampois 11h 15’ da manhã quando che-gamos à barra do Rio Itapemirim, aosom de foguetes e de tiros...”

Imagino o quanto estariam muitomais fartamente recheados de horáriosos diários do senhor bispo se usasseele um relógio de pulso.

As anotações cuidadosas revelam o espírito meticuloso do ilustre prelado

Documento:AGazeta_23_06_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_4.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:21 de Jun de 2012 19:29:11

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5PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

23 DE JUNHODE 2012

falando de músicapor TARCÍSIO FAUSTINI

MIL DOMINGOS DE MÚSICAPOPULAR BRASILEIRA

DANIELA DACORSO

Zé Renato participa doshow que comemora amilésima edição doprograma “DomingoBrasil”, no ar há maisde 19 anos, naUniversitária FM

Você não aguentarámais de um anofazendo programade rádio sobremúsica popularbrasileira, logo fi-cará sem assunto”

– me disse um amigo em 1993.Rebobinando: naquele ano fui con-

vidado para produzir um programa do-minical na Rádio Universitária e o nomeestava escolhido: “Domingo Brasil”. No-me aprovado, convite aceito, mas o quedevo fazer? Ora, a produção de umprograma de duas horas significa fazeruma seleção musical e, se quiser, falar ouescrever sobre as gravações. Como nãosou locutor, preferi fazer a seleção no meuacervo de discos e escrever os textos.Então, assim foi feito nos primeiros tem-pos e muitos foram os apresentadores doprograma, que me ensinaram os recursosdo estúdio. Optei por fazer blocos mu-sicais temáticos e dar informações sobre amúsica popular. Com os profissionais,aprendi a operar os equipamentos doestúdio e um dia a falta de um deles melevou a assumir o microfone, como venhofazendo desde então. Mas fazer a ope-ração junto com a locução não era fácildevido à predominância dos discos devinil, cuja mixagem requer habilidade,sobre a pequena quantidade inicial deCDs brasileiros. Quando os CDs passarama predominar, a operação dos equipa-mentos ficou muito mais fácil e, hoje, comos modernos recursos computacionais, afacilidade operacional é ainda maior.

Além dos temas, os quadros iniciaisforam “As preferidas dos músicos” e “Mo-mento instrumental brasileiro”, esse des-tacando o trabalho atual ou histórico deum grande músico. O “Preferidas” me

dava a oportunidade de falar sobre umartista que ainda não tinha feito gravação;eu gravava a voz dele escolhendo quatromúsicas de outros artistas e executava asgravações em seguida. Isso passou a serfeito também com artistas de fora quandovinham a Vitória e me permitiu formar umacervo com preciosidades assim: “Meunome é Cauby Peixoto e vou escolherquatro músicas, não acredita?, é o Caubymesmo, Conceiçããããããão!”. Com o tem-po, a escolha passou a ser feita tambémpor colecionadores de discos ou produ-toresmusicais,dedezmúsicasbrasileirasmarcantes, em vez de apenas quatro.

Desse modo, o acervo pessoaldedicado à música brasileira foicrescendo e, além dos livros ediscos, passou a ter também gra-vações de entrevistas e de showsao vivo em casas como Bordel,Picadeiro e Zanzibar.

Novos quadros vieram. A série de livros“Então, foi assim” foi escrita por RuyGodinho, produtor musical de Brasília, quefaz um programa de mesmo nome naRádioNacionalFMdeBrasília.Oprogramae a série de livros mostram entrevistas nasquais compositores contam sobre seu pro-cesso criativo. Esse programa se trans-formou em quadro do mesmo nome em“Domingo Brasil”, graças à generosidadedo Godinho, que envia as gravações.

Outro quadro é “Tirando de letra”, com

Jace Theodoro interpretando como poe-sias letras marcantes da música popularbrasileira. O quadro mais recente é “Ci-netemas Brasil”, no qual Haifa Sawaya fazum breve resumo sobre um filme, na-cional ou não, e destaca uma músicabrasileira da trilha sonora do filme.

A interação com o ouvinte é feita portelefone, redes sociais ou e-mail, pelosquais recebo sugestões para os pro-gramas seguintes, já que a progra-mação é temática. Há ouvintes assíduosdesde os primeiros programas e tam-bém aqueles que comentam lembran-ças pessoais que as músicas lhes des-pertam ou contribuem com gravações,enriquecendo o acervo existente.

Há mais de cinco anos, a produção doprograma ganhou um reforço inesti-mável mediante a parceria pessoal eprofissional com a cantora e locutoraEliane Gonzaga. Amanhã se comple-tarão mil domingos do programa, o quesignifica duas mil horas e cerca de 60 milmúsicas, e isso é motivo de festa.

Ao vivoPara comemorar, com a ajuda de vá-

rias pessoas, haverá um show hoje, àsoito e meia da noite, no Teatro da Ufes,que apresentará ao vivo os quadros do“Domingo Brasil” e será gravado paraaudição posterior no próprio programa.Na primeira parte, com direção musicalde Eliane Gonzaga, músicos e cantoresconvidados apresentarão músicas com otema “Brasil”. No quadro “Então, foiassim”, Ruy Godinho entrevistará ao vivoo cantor e compositor Sérgio Souto. Parafechar a programação, haverá um “po-cket show” do cantor, compositor e ins-trumentista Zé Renato, escolhido emvista de suas afinidades com a cidade deVitória, onde nasceu, pelas suas qua-lidades artísticas e por ser um dos ar-tistas, assim como os demais convidados,cujo trabalho musical vem sendo acom-panhado durante toda a existência doprograma “Domingo Brasil”.

Felizmente o amigo estava enga-nado. Um programa de rádio sobremúsica popular brasileira ainda temmuito assunto, sim, depois de quasemil domingos e mais de 19 anos.

Documento:AGazeta_23_06_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_5.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:21 de Jun de 2012 19:38:43

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7PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

23 DE JUNHODE 2012

6PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,23 DE JUNHODE 2012

HELDER TREFZGER RELATA A ESPECIALISTA AS PASSAGENSMAIS MARCANTES DOS SEUS 20 ANOS NA DIREÇÃO DA OFES

música clássicapor ERICO DE ALMEIDA MANGARAVITE

OS SONHOS EAS VITÓRIASDO MAESTRO

O reconhecimento nacional da orquestra em publicações especializadas se deve a fatores como a divulgação antecipada de temporadas e a presença de artistas renomados na programação

ALINE VALADARES

Diante da estrutura modesta, regente é obrigado a acumular uma série de funções administrativas, fazendo as vezes de produtor e de relações públicas

Não espere encontrar cemtoalhas brancas ou outrasesquisitices no camarimdo regente Helder Tref-zger: esse tipo de atitudenão combina com ele. Até

porque a estrutura da Ofes (OrquestraFilarmônica do Espírito Santo) não lhepermitiria grandes estrelismos: a equipeé pequena, obrigando o próprio Helder ase envolver com uma série de detalhesadministrativos. Ele faz as vezes deprodutor e de relações públicas – conferea arrumação do palco, verifica se ocamarim do solista convidado está emordem, recebe o público na antessala doteatro. E, apesar das modestas condiçõesde trabalho, da defasagem de músicosno quadro fixo da Ofes e dos salários nãomuito atraentes, a orquestra hoje é re-conhecida por veículos especializadoscomo as revistas “VivaMúsica!” e “Con-certo” como um importante conjunto nocenário nacional.

Tal reconhecimento se deve a múl-tiplos fatores: a divulgação antecipadade temporadas traz credibilidade à or-questra. A presença de artistas reno-mados na programação, como o vio-linista alemão Nicolas Koeckert e aviolonista croata Ana Vidovic, é uminegável atrativo. Também há a escolhade um repertório ousado, que em 2012inclui compositores como RichardStrauss, Prokofiev, Shostakovich eWagner, além da primeira audição naAmérica Latina da Sinfonia Cotswolds,do inglês Gustav Holst.

Outro importante ingrediente para osucesso é a constante interação entremúsicos convidados e os instrumentistasdos quadros fixos da orquestra. Um dessesconvidados, o trompista da Osesp (Or-questra Sinfônica do Estado de São Paulo,reconhecida internacionalmente comoum conjunto de primeira linha) LucianoAmaral, tocou com a Ofes pela primeiravez em 2008. Após o primeiro ensaio,surpreendeu-se com aquilo que encon-trou: gostou da orquestra e do Estado, doqual até então pouco conhecia. Ouvia

falar de violência, mas não de cultura.Desde então, para o trompista, o EspíritoSanto passou a ter outra cara: já se foramcerca de 10 participações em concertos daOfes. Amaral destaca o crescimento con-tínuo da orquestra, em decorrência dorepertório cada vez mais elaborado, queexige maior empenho dos músicos locais.E ressalta ainda a presença do público:capixabas de todas as idades lotam osconcertos – o Theatro Carlos Gomes temse mostrado pequeno para tanta gente.

GestorObviamente, ao longo de duas dé-

cadas de trabalho é compreensível aexistência de alguns conflitos e desgastespessoais. Hoje, Trefzger define sua re-lação com os músicos da Ofes comoprofissional, balizada por um certo dis-tanciamento característico das interaçõesentre regentes e instrumentistas, massem deixar de lado a cordialidade e ocompanheirismo. Por sua vez, os mon-tadores (funcionários responsáveis pelaarrumação do palco) Izaias e José Matias,ambos com mais de 25 anos de serviçosprestados à cultura capixaba, consideramHelder um gestor exigente, preocupadocom a qualidade dos serviços.

Sul-mato-grossense, torcedor do Cru-zeiro, fã da culinária italiana e adepto dascaminhadas, se não tivesse seguido acarreira de músico Helder Trefzger teriasido engenheiro ou arquiteto. Admiradordeclarado das obras de Johannes Brahms(1833-1897), caso fosse possível Trefzgergostaria de convidá-lo para assistir a umconcerto da Ofes em que seriam exe-cutadas a “Quarta Sinfonia” e o “Concertopara Violino” do compositor alemão. Re-conhecido por onde passa pela popu-lação, o regente teve algumas dificul-dades iniciais com esse tipo de contato;hoje, não dispensa a aproximação com opúblico, e se diz emocionado e motivadocom o carinho que recebe.

O início dos trabalhos de Helder com aOfes não foi fácil: concertos no interiorchegaram a ser cancelados por absoluta

falta de estrutura para se receber umaorquestra. Havia ainda a dificuldade emse obter um local adequado para ensaios,hoje realizados no Parque Botânico daVale (de modo semelhante, na década de1980 a Osesp chegou a ocupar o CineCopan, onde não havia camarins nemar-condicionado). A primeira apresen-tação ocorreu em 16 de maio de 1992,em um campo de futebol no Bairro SãoPedro. Por ser ao ar livre, havia muitoruído externo, problema compensadocom a grande presença de palco dosolista da noite, o celebrado flautistaAltamiro Carrilho. No dia 17 de junhoHelder estreou no Teatro do Carmélia:desta vez, estava presente o saudosopianista Manolo Cabral. Ambos os even-tos tiveram boa repercussão.

O regente lembra, com algum sau-dosismo, dos concertos da temporadade 1993, a primeira que idealizou paraa orquestra, e do concerto de Natal doano seguinte, na Praia de Camburi, quecontou com excelente acolhida pelopúblico. O momento mais emocionan-te, na opinião de Trefzger, talvez tenhasido a apresentação do “Réquiem” deMozart ocorrida em 11 de setembro de2003: o evento, organizado como parte

das comemorações pelos 75 anos dojornal A GAZETA, ocorreu em um shop-ping. A orquestra foi posicionada sobreum tablado que cobria um chafariz; ocoro ficou distribuído pelas escadarias.Com o público fazendo compras oupasseando, o regente temeu pelo pior: amagnífica obra de Mozart servindo, tãosomente, como música de fundo paracompras. Compenetrado na execuçãoda obra, Helder só se deu conta doimenso sucesso da apresentação quan-do, após os últimos acordes, uma tor-rente de aplausos inundou o local.Havia gente por todos os lados, quaseque se espremendo para assistir à or-questra. O improvável aconteceu: aarte suplantou o consumismo...

FuturoTrefzger entende que as perspectivas

para o futuro são promissoras. Há boaprocura pelo ensino da música e contínuoaumento do público. Como o acessodemocrático às atividades culturais é fun-damental para o estabelecimento de umasociedade mais igualitária, a Ofes podecontribuir para a consolidação de umEspírito Santo melhor. Aos seus músicos,Trefzger deixa um recado: “As dificul-dades não podem nos impedir de sonhar,de dar o nosso melhor, de sermos ver-dadeiramente artistas e, depois disso tu-do, de podermos olhar para trás e sentirorgulho do que construímos”. E como oregente gostaria de ser lembrado daqui a200 anos? Eis a resposta: “Tento realizar omeu trabalho com muita dedicação, amore afinco. Acredito nas pessoas e trato-ascom respeito, procurando interagir demaneira positiva. Gostaria de ser lem-brado assim. Ah, e como uma pessoa queama a música clássica!”.

O leitor mais atento pode ter notadoque até agora não foi utilizado o termoitaliano “maestro”, que significa mestree é conferido somente àqueles que sedestacam na área musical. Alguém du-vida que ele mereça o título? Então...bravo, maestro!

As dificuldadesnão podem nosimpedir de sonhar,de dar o nossomelhor, de sermosverdadeiramenteartistas”—Helder TrefzgerRegente da Orquestra Filarmônicado Espírito Santo

GILDO LOYOLA/ARQUIVO AG ALINE VALADARES

Trefzger em 1992, ano em que assumiu a Ofes, e em ensaio recente: no início, concertos no interior foram cancelados por falta de estrutura para se receber uma orquestra

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8PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,23 DE JUNHODE 2012

ensaiopor MARIANA PASSOS RAMALHETE

A CRÔNICA VERÍSSIMAA maneira de Luis Fernando Verissimo tratar a realidade por meio das maquiagens etraquinagens da palavra é uma marca única de sua produção literária, aponta autora

Escritor lança olhar impiedoso e bem-humorado sobre a vida pública brasileira

Em linhas gerais, a crônicapode ser compreendida co-mo um gênero narrativoque trata de temas da atua-lidade e sua casa, inicial-mente, é o jornal. Os as-

suntos, mesmo que variados, são ba-nais e refletem o cotidiano. Algumasdelas, após atenta observação e cui-dadosa seleção, são editadas em li-vro, para garantir, dentre outros, suadurabilidade. Retiradas dos jornais,muitas vezes transcendem a ele: os-cilam entre a descartabilidade e apermanência, entre a literatura e ojornalismo.

No Brasil, Luis Fernando Verissimo éuma notável referência. Com um uni-verso literário vasto, é um dos maisrespeitados escritores brasileiros, ta-lentoso, imaginativo e de humor re-finado em plena produção. Assim, otítulo deste ensaio é uma jocosidadeque aponta para o que especificamentese anseia retratar. A crônica do autor,Verissimo, e o caráter dela: “Veríssima”,verdadeira.

Se alguém começar a leitura dasproduções veríssimas ficará com aimpressão de que o cronista está apre-sentando um tipo de história que jános habituamos a vivenciar: os cos-tumes, o dia a dia, à moda bembrasileira, descritos frequentementecom ironia, simplicidade, num tomisento de refino demasiado na lin-guagem. Quem fala é o povo, o ma-landro, a esposa furiosa, o político, acriança, o empregado..., o que seexpõe são as falcatruas, as gafes, ascompulsões, as promessas nuncacumpridas, aquilo que a nação tem devício, de mácula, de podre.

Nesse sentido, Verissimo não se mos-tra alienado em relação ao que nomundo ocorre; delineia os contornos davida, faz das mensagens conteúdos ar-tísticos e dá uma pincelada de levezasobre a dureza das informações: umpouco de riso, abstração e jogo, paratolerar o nó e as duras realidades dopaís. Ele mexe com nossos vícios, brios,vaidades, ambições, compulsões, nasesferas políticas, familiares, relacio-nais, profissionais, estudantis. Ele nosarranca o riso, mostrando-nos e obri-gando-nos a olhar nos olhos tudo o quede ridículo há em nós.

AspectosNesse sentido, é imprescindível rea-

firmar que a crônica de Luis Fernando éveríssima. Isso pelo menos em trêsaspectos muito especiais. Primeiro: acrônica de Verissimo é muito dele. Suamaneira de tratar a realidade por meiodas maquiagens e traquinagens da ecom a palavra dificilmente poderá serconfundida com a de outro cronistadeste país: é uma marca, sua e única.Por exemplo, tratar com seriedade ni-

tidamente falsa a permanência de umpolítico corrupto no poder é um gestoque não pode ser visto sem estranhezapelo espectador: e nem deve. Eis, atin-gido, o objetivo do autor: gerar o es-tranhamento daquilo que é estranho,mas que, por descuido, já se olha comolhos acostumados. Quando o cronistabrinca com as situações conjugais,quando abusa das palavras, em rear-ranjos aparentemente desinteressados,quando faz comparações das mais in-

comuns, quando, enfim, se exerce, lan-ça suas marcas e palavras, que não sepodem confundir com quaisquer outrassobre o mesmo tema.

O segundo aspecto diz respeito àfidelidade ao cotidiano, mas nunca orelatando “sem se meter na história”. Adiferença entre dizer “Depois da se-paração veio o momento da divisão dascoisas” e “Depois da separação veioaquele momento difícil da divisão dascoisas”, na crônica “Enquanto Dure”,registrada em “O melhor das Comédiasda Vida Privada”, ilustra as interfe-rências ortográficas aparentemente pe-quenas, mas extremamente represen-tativas e alteradoras dos sentidos quecaracterizam a estética veríssima.

Finalmente, sobre o detalhe, edi-ficam-se não apenas desenhos demundo, modos de ver esse mundo,mas modos de percebê-lo, de senti-lo,com um olhar metonímico, ou seja,olhar para a situação da família, ou dapobreza da condição humana atual,por exemplo, tomando apenas umnúcleo familiar ou um único humanocomo modelo.

HumorO deslindamento de valores so-

ciais, culturais, morais ou de qualqueroutra espécie parece fazer parte danatureza significante do humor, en-tretanto, determinadas manifesta-ções não parecem estar exclusiva-mente a serviço do riso, embora essaseja uma consequência inevitável. As-sim sendo, um texto humorístico tan-to pode revelar agressão a instituiçõesvigentes, quanto aspectos encobertospor discursos oficiais, cristalizados outido como sérios.

A importância da obra está, então,nos artifícios empregados para revestirde traços de arte o corriqueiro, isto é,perceber nos fatos cotidianos algo quefaça jus a menção. Nesse sentido, oolhar impiedoso e bem-humorado deVerissimo repousa sobre os absurdos davida pública e sua sátira dispara ogatilho dum irônico riso do brasileiro: ohumor, ao sabor da crônica, sobre arealidade que, na obra, representação,é motivo de riso, mas na vida re-presentada, é motivo da misériadesse povo – que ri.

MARCELLO CASAL JR./ABR

Documento:AGazeta_23_06_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_8.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:21 de Jun de 2012 18:51:31

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9PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

23 DE JUNHODE 2012

poesias

OUSADIASMILSON HENRIQUESDECISÃOO bom da velhiceé que mandei o espelho à merdae voltei a ser menino.Agora, só me vejocomo me imagino.

MOTIVOTodo doido,antes,foi muitodoído.

RELIGIÃOMe desculpemos que acreditammas o “ou me adoraou de castigo”,não funciona comigo.

ILUSÃOPoesia muito herméticaÉ masturbação,apenas o autor sentea emoção.

FUTUROSe a internetaproxima quem está longemas afasta quem está perto,estamos nos aproximandode um deserto.

PUREZAUma recatada opiniãoque é só minha:Paralelepípedoé um palavrãocué palavrinha.

FÉAcredito:O finitoé infinito.

DEPENDÊNCIASem o Bemo Mal não existe.É aí que minha fé desaba:Deixando de fazer o Bemo Mal acaba?

RESPOSTAO silêncio ofende.................................me entende?

CONCLUSÃO“O tempo passa”É uma ilusão que nós criamos.O tempo permaneceNós é que passamos...

crônicas

AO PÁSSAROpor NAYARA LIMA

Agora é madrugada e a maioria de vocêsdorme. Seguro o mundo com o corpo.Tento fazer o mundo virar palavra. Éinútil. Não vira. O mundo são vocêsdormindo e é bonito assim. O traves-seiro está quente na noite que é fria.Acontece uma sutil combinação entre avida que levam e a vida que é. Tentoinverter a ordem e minha língua estáquente, porque isso de escrever é a maisindelicada paixão. Daqui, escrevo oevento noturno em que vocês sonham: omar hoje bate forte na areia, como seestivesse em mágoa. Mas o escuro estáfrio e bonito, talvez haja estrela. Umpássaro voa contido, como se voar nãofosse da natureza, mas do luxo. Voa,portanto, como se voar fosse uma asaroubada. Que nunca pertenceu a ele. Éassim. Voa com remorso? Não sei por

que voa. A importância de eu observar opássaro estranho e prendê-lo na palavraem papel faz-me, em vez de pensar noato da escrita, apenas fazê-lo acontecer.Escrever é minha condição.

Condição é assim: diz-se para o me-nino que para ele ganhar a bola é precisose comportar bem na escola. Frente aopedido que o fará abdicar do imensoprazer que lhe causa existir daquelemodo, ele pensa com intensidade nodesejo de ter a bola. É a condição. É acondição de o pássaro ter de voar. Assimsobrevive. (Sei que vocês sabem o que éa condição, mas me explico com cautela.Acho forte esse significado e o que eleprovoca no corpo da vida).

Clarice Lispector disse que não conhecenada que dê mais direito a uma pessoa doque o fato de ela estar viva. Concordo,

aliviada. Mas a história de cada umentrega condições, desde que se nasce.Como se nascer não bastasse. Segue-se,de condição a condição, todo o caminho.Construímos atentos e distraídos tudo oque foi um dia ter vivido. E o que foi?

De todo modo, tenho gosto por isso. Esei que o primeiro parto é só o começo.De vários outros. A ideia, por exemplo,de que nascer é mais de uma vez, meconvence. Não me refiro às crenças re-ligiosas, mas àquilo que o faz acordarnum sábado pensando em comprar umaorquídea para colocar na sala e mudartudo a partir daí. Nascer de novo.

Mas eu falava do pássaro. Ele seconfunde com a cor da noite, e escuroinvade o caminho do céu. Roubo imageme ele, asa. Jamais saberá que existo, atéque me olhe. E, se concordo com aClarice, temos, eu e ele, o mesmo direito.Nesse caso, penso no direito de não voare não escrever. Mas então chega a con-dição. Fazemos o que é preciso. É tudosilêncio e qualquer criança sabe que éhora de se deitar. Mas estou acordada.Como quem teima amanhecer palavra.

SÍNDROME DE ESTOCOLMOpor SONIA RITA SANCIO LÓRA

“As pessoas que sofrem de síndromede Estocolmo terminam por se iden-tificar e até mesmo por gostar da-queles que os sequestram, em umgesto desesperado e em geral incons-ciente de preservação pessoal.”

Falo sobre esta síndrome porque tivelampejos, eu mesma, numa experiênciaque mudou a minha vida em apenasalguns minutos. Quando o adolescenteentrou no carro e gritou que eu saísse, poralguns segundos não estava entendendo oque ele queria. Depois de repetir três vezesque eu fosse embora, é que entendi que euhavia perdido algumas coisas materiaisimprescindíveis para que minha vida con-tinuasse normalmente. Documentos. Ce-lular. Óculos de grau. Carro. Livros. Cha-ves de casa. Cartões. Moedas. Outrasbobagens, tais como CDs, som, cadeira depraia, chapéu, brinquedos. Fiquei duashoras e quarenta minutos sentada do lado

de fora do restaurante cheio, no sol, semque uma única pessoa se aproximasse demim e me desse um alento. Quando ospoliciais chegaram, levaram-me para fa-zer o boletim de ocorrência. Atenciosos,ensinaram-me como fazer. Sem dinheiro,sem telefone e sem carona, com o do-cumento nas mãos (o único que merestou), um jovem policial foi gentil edeixou-me em casa. Primeira providência:chaveiro. Em uma hora eu tinha chavespara entrar e sair de minha casa, meusantuário. Daí em diante foi uma ver-dadeira maratona para conseguir os ou-tros documentos. As pessoas são gentis,mas extremamente profissionais. Sepa-ram as dores dos outros e garantem a suasobrevivência. Você pode chorar, porqueas lágrimas descem naturalmente, maslogo depois precisa se refazer, porquevolta à dura realidade. Seus pés começama formar pequenos calos, pelas longas

caminhadas e o calor escorre do seurosto dentro do ônibus lotado. Uma vezao dia, se puder, você se permite pagarum táxi, na hora de ir pra casa e não terque sair de novo.

Mas eu me perguntei tanto e tantoqual foi a razão da atitude do me-nino. Uma mistura de pena e surpresame assola até hoje. Será que eleestava fugindo? Será que ele queria ocarro para usar em outra bobagem?Será que os pais deles sabem que elefaz isso? Será que ele é drogado? Seráque ele vai ter pena de mim e jogar osmeus documentos pelas estradas? Se-rá... será... pobre menino. Pobre me-nino. Pronto! A Síndrome de Esto-colmo instalou-se em mim. Enquantoeu fico morrendo de pena do garoto,nada foi encontrado. Nem a medalhaazul e prata de Nossa Senhora que meacompanhava por anos.

Documento:AGazeta_23_06_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_9.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:21 de Jun de 2012 19:00:55

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11PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

23 DE JUNHODE 2012

10PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,23 DE JUNHODE 2012

estudo socialpor ERLY EUZÉBIO DOS ANJOS

POR QUE É TÃODIFÍCIL REDUZIRA VIOLÊNCIA?

uem acompanha o noti-ciário sobre a violência noEspírito Santo se deparacom elevados índices dehomicídios, do tráfico dedrogas, acidentes de trân-sito, roubos e assaltos.

São, também, comuns as justificativasfeitas pelas autoridades públicas sobreinvestimentos feitos – financeiros, empessoal e equipamentos – e até afirmamque houve redução de alguns dessesíndices por conta destas iniciativas.Logo, a seguir, nos surpreendemos comoutras manchetes de jornal que anun-ciam a nossa colocação no topo doranking nacional, de um campeonatoque nunca perdemos. Por que é tãodifícil reduzir a violência?

A pergunta é sempre feita e a respostadifícil, se não impossível, de ser res-pondida a contento. Pode-se, no en-tanto, pensar em condicionantes quecircundam esta que é uma das maispertinentes e incômodas questões paraos governantes e o público em geral.Pode-se argumentar que o expressivonúmero de pesquisas, estudos e algumasexperiências exitosas sobre a violêncianos permite tergiversar sobre o tema,mas falta ainda comprometimento po-lítico para elegê-la prioritária, aplicarconhecimentos obtidos com inteligên-cia, criatividade e ousadia, para se co-lher os frutos desejados. A seguir al-gumas considerações.

Uma concepção simplista e reducio-nista da violência, ou desconsiderar suacomplexidade não leva a lugar nenhum.Sem considerar a inter-relação deste fe-nômeno com instâncias da sociedade (asrelações com a economia, política e acultura) e a especificidade em que semanifesta, em diferentes contextos, e oque representa para diferentes grupos eclasses sociais. Não se pode, ainda, des-cartar os impactos que a nova ordemmundial tem em estruturas de sociedadesdependentes e em desenvolvimento ecom enormes déficits a serem cumpridos,nos campos da educação, saúde e daproteção social. Paralelamente ao con-sumismo e à homogeneização culturalque esta nova ordem econômica pro-move, grandes contingentes de pessoas setornam descartáveis ou levam a pior coma degradação (social e ambiental) e nãopodem ser deixadas sem políticas deproteção e promoção social.

FOTO E ARTE: CARLOS ALBERTO SILVA

Sociólogo aponta caminhos para solucionarum problema que aflige a sociedade capixaba

Triste retrato do dia a dia das cidades: para especialista,o combate à violência deve passar pela adoção depolíticas de prevenção envolvendo questões sociais

Oposição ao bemConsiderar a violência como algo

externo e do mal, maligna e em oposiçãoao bem, ou pensar que não faz parte daconstituição (interna) da própria so-ciedade, de sua dinâmica de luta daordem (consenso) contra a desordem(conflito), resulta numa análise super-ficial desta problemática.

Há relação entre a violência existentena sociedade e os conflitos resultantesdas contradições sociais não resolvidos,que, abafados no passado, ressurgem nopresente com toda a força, para se juntaràs novas modalidades da violência so-cial. Pode-se dizer que é por meio daconfrontação de conflitos e contradiçõesque a sociedade evolui e se desenvolvesocialmente. A visão dicotômica do bemx o mal, do moderno (progresso) x otradicional (atraso), por exemplo, ocul-ta uma estrutura desigual em que osdiferentes são tratados de forma de-sigual, gerando segregações e discri-minações contra as minorias sociais queincluíam os indígenas, as mulheres, osnegros e que hoje se somam aos ho-mossexuais e a outros do gênero. Estaestrutura repressora se reflete em po-líticas públicas e não permite que odesigual e diferente obtenha autonomiae autossuficiência. São passíveis somen-te de políticas compensatórias de umaintegração forçada e ilusória.

Por causa desses equívocos a so-ciedade brasileira é, por definição, au-toritária, seletiva e reativa; ela querresultados de programas de enfrenta-mento da violência, imediatos e emcurto prazo. Um sentido de urgência quenão condiz com a lógica de ações pre-ventivas que requerem observações eresultados a médio e em longo prazo,mas que podem ser conjugadas a açõesde impacto a curto prazo. A prevençãosocial da violência que requer açõesduradouras precisa de diagnósticos, mo-nitoramento e avaliações permanentes,para corrigir o curso de ação que nãocoaduna com a especificidade da ques-tão em consideração em determinadoslocais. A intervenção numa realidadeconflituosa não deve ser “de cima parabaixo” e não pode descartar a par-ticipação ativa das pessoas, diretamenteafetadas por certo tipo de violência,para que haja negociações e o esperadopacto pela paz.

Q

Prevenção socialPensar em uma abordagem (um “pano

de fundo”) para desencadear essas ini-ciativas é pensar em prevenção social,conceito muitas vezes mal compreendidoe que necessita de especificação. Pre-venção da violência não deve ser con-fundida com a criação de “programassociais” e nem mesmo de “políticas pú-blicas”, que são vistos como oferta deserviços públicos (educação, saúde, ha-bitação, lazer e outros serviços). Essesprogramas essenciais podem redundar emações que incidem sobre a redução docrime e da violência, mas não podem serconsiderados como prevenção, em si, daviolência (mas também não podem serdesconsiderados). Ações e programas pa-ra diminuir a criminalidade violenta numadeterminada região não podem ser pon-

tuais e nem desarticulados, fazemparte de um processo, com início,meio e fim. As quatro partes deste pro-cesso devem ser consideradas nas se-guintes dimensões:

(1) As estruturas microconjunturais eas macroestruturais devem ser conju-gadas na intervenção social. Em termosconjunturais mencionam “o crime or-ganizado, em torno do narcotráfico e desuas variantes (assaltos a bancos, roubosde carros, de cargas, sequestros e outrasformas de violência geral e difusa)”. Emnível cultural tipificam “a violência contraa criança e o adolescente, contra a mu-lher, contra os idosos, a violência contrahomossexuais e a discriminação racial”,como aspectos importantes a serem con-siderados. A “violência e corrupção po-licial, o alijamento e a morosidade da

Justiça, assim como incontáveis for-mas de discriminação e maus-tratos

que ocorrem em diferentes setores doEstado, na sua relação com a população”são, também, importantes do ponto devista institucional. Enfim, o enfoque épontual e as ações preventivas devem sedirigir às questões locais e específicas, deuma área ou região, mas não devemignorar a interface destas com as ma-croviolências.

(2) A relevância de equipes in-ter-e-transdisciplinar e da interse-toriedade das ações institucionais esociais. Ou melhor, a integração nãodeve ocorrer somente entre pesqui-sadores, mas inclui a participaçãocom a administração pública, ór-gãos e instituições de governos (mu-nicipais, estadual e federal), enti-

dades não-governamentais e, prin-cipalmente, em parceria com a so-ciedade civil.

(3) A questão do agenciamento defatores condicionantes da violênciaversus as “causas” da violência. O agen-ciamento se refere aos fatores que in-cidem na dinâmica da sociedade en-quanto que as causas são complexas e“remetem a problemas estruturais cujasolução é tarefa para gerações inteiras”(conforme o “Guia para a prevenção docrime e da violência nos municípios”,do SENASP e disponível emhttp://www.cfappm.ma.gov.br).

(4) Articular as redes e os atores daprevenção. As comunidades, em par-ceria com agentes de mudanças, devempromover o exercício constante de co-municação e de troca de informações,

capacitar profissionais e pessoas que seenvolvem em redes sociais, incorporarfamílias em ações de proteção e deprevenção e promover a participaçãonuma relação micro e macro da so-ciedade. Atores de prevenção social são:os governos municipais, estadual oufederal, ou setores governamentais jun-tamente com sujeitos da sociedade civil,que podem ser as ONGs, as entidadesligadas à área de responsabilidade socialde empresas, instituições religiosas, uni-versidades, escolas, associações de mo-radores, comerciais, profissionais, con-selhos (tutelares, da criança e do ado-lescente, comunitários, de segurança) emovimentos sociais. Não se deve des-cartar, ainda, os poderes do Legislativo eJudiciário, ou o Ministério Público (es-tadual ou federal).

Portanto, há uma pluralidade de su-jeitos e a cada sujeito pode corres-ponder uma multiplicidade de açõesque podem corroborar num trabalho deprevenção social contra a violência.Mas tudo isso requer eleger a questãoda violência como prioridade númeroum, conforme dito.

Por fim, deve-se ressaltar que amaioria dos programas de segurançaimplantados com sucesso em cidadesviolentas atua como programas de“prevenção social e situacional doscrimes”. Isso significa o entendimentode “como” e “onde” ocorre a violênciae a adoção de políticas de prevençãoenvolvendo questões sociais, em vezde políticas de repressão, em geral,conforme se percebe. Será assimpossível reduzir a violência?

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Documento:AGazeta_23_06_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_10.PS;Página:1;Formato:(548.22 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:21 de Jun de 2012 19:56:47

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12PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,23 DE JUNHODE 2012

ficçãopor EDUARDO SELGA

MATRIARCA DE NINGUÉM

“Se ambos fugiram de minha presença... Será, meu Deus, eu sou tão cansativa assim?”,pergunta-se a personagem deste conto, que vive a angústia do abandono e da espera inútil

Ouve o quê? Grunhidos doviolão ou a porta da salarangendo reumatismos,após um calhamaço detempo tão espesso que sediluiu na memória? Im-

possível encontrar as fronteiras semequívocos, apesar de essa mesma cenarepetir-se muitas vezes durante suaexistência estilhaçada. Sente-se, outravez mais na vida, nebulosa.

Abandona suspenso no ar o gesto,entre dois dedos o orégano. Coração epresente congelam quando supõe ouviro ex-homem, foragido do matrimônio,desabotoar a porta com o seu sorrisomudo habitando inevitavelmente o ân-gulo esquerdo de uma boca sem muitopréstimo: beijava nada, falava pouco e,quando muito, tolice.

Como se a correnteza do mundo es-tagnasse, não ela. Os dedos não pros-seguem no movimento paralisado, partede sua fábula ancora e aguarda o exatoinstantepara conduzi-la aumseupassadoora longínquo, ora presente... Maré. Umtempo em que o cinismo do então maridodoía menos que a amargura dançandonos rostos dos dois filhos. Procuravamencobrir o sentimento por obséquio oumisericórdia, e os folguedos da meninicefaziam cortinas de fumaça. Mas era ní-tido: nunca estavam felizes. As cirandas

tantas que eles criavam eram instrumentopor meio do qual se viam livres dosasfixiantes beijos. À época ela também eramáscara: em nome de uma “paz familiar”,não queria perceber os movimentos es-corregadios dos filhos. Porém, os frag-mentos mais sinceros de si tinham cer-teza: era muito exaustiva.

O navio do tempo, caravela sem ventoem mar alto, recolhe a âncora e o agoraoutra vez emerge. Vagamente. Ela meneiaa cabeça, sacode resíduos de lembrançasque se acumularam nas esquinas da casa,da alma, esfrega o tempero ainda al-gemado entre o indicador e o polegar.Contrariando em parte a gravidade, oorégano - poeira aromática -, slow mo-tion, boia no espaço e repousa em carnes,panelas de barro, fogão a lenha. Bolhasperfumadas e invisíveis sobem e ela pensaver seu ex-amante encostado à janela dacozinha, arranhando violão e voz emtoscas melodias. Até que era um bomsujeito, ao menos não havia o escárniometamorfoseado em palavras aparente-mente mansas, muito peculiares ao seumarido, para cujo corpo adormecido nacama ou no sofá inúmeras vezes dissera,murmúrio e medo:

- Se romper as juras do altar não melevasse ao Inferno, meu amor, teriaabandonado sua pessoa às própriasironias, marido; à sua própria inu-

tilidade, e convidado meu amante a sairdebaixo da cama para subir em mim.

Logo em seguida se acovardava. Éque, embora o outro fosse um espe-táculo sem dúvidas sob os lençóis, pe-cava no tom que usava fora deles, navida: malsonante, sempre muito agudoquando deveria ser grave; exagero nosgestos, nas palavras. Mesmo durante osgalanteios. É provável tenha percebido,súbito, o quanto estava ridículo: assimcomo o esposo, ele também, num belodia, resolveu submergir. Violão e voz.Nunca mais nenhuma notícia ou can-tarolagem. Exceto as imagens caseiras,algumas vezes sem foco. Se ambos fu-giram de minha presença... Será, meuDeus, eu sou tão cansativa assim?

Os pratos já arrumados na mesa, nacopa, desde quando começara a co-zinhar suas carnes. Flores, simetria,talheres há décadas dormindo à esperada circunstância, guardanapos rubri-cados. A toalha, ponto em cruz, trans-borda naftalina no ambiente. As ca-deiras dormem enquanto os dois con-vidados não chegam. À medida querepousa sobre a mesa travessas com oalmoço, os prazeres antigos retornamna condição de lembrança, e a fe-licidade é uma criatura líquida a na-vegar por dentro. Sente suas artériascomo rios irritadiços, tão desacorren-

tados quanto o passado. Acha graça nasimilitude. Cantarola a música que oseu ex-amante ainda insiste em tre-pidar lá na cozinha, agora tão distante.Quando considera tudo devidamentecomposto, senta-se à cabeceira, ma-triarca. E os filhos?

Os minutos se acumularam, entulhotemporal; gestando meses e anos, ashoras se arrastaram como um velhosem pernas junto ao pandemônio ur-bano. A fadiga pela espera inútil fez avelhice mostrar sua presença naquelamulher que, quando pusera a mesa,estava apenas na meia-idade. Ato con-tínuo, o reumatismo corroeu, tudo en-carquilhou, os cabelos brancos e semnenhum cuidado (fora tão vaidosa umdia...). Seu último verbo antes de osolhos se fecharem foi, sem pressa, dei-tar os ouvidos sobre a mesa, suavi-dades, de modo que pudesse escutar ospassos dos filhos chegando antes mes-mo de abrirem a porta da sala. Ou ajanela da cozinha.

Entretanto, nenhum dos convidadoscirandou o ar de sua graça no almoço.O mais próximo disso foram os doisintrusos: quando a noite ia alta, apro-ximaram-se, sentaram-se, jantaram.Velhos amigos, como se ela nem exis-tisse. O ex-marido, vindo na sala; oex-amante, da cozinha.

Documento:AGazeta_23_06_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_12.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:21 de Jun de 2012 19:01:32