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VITÓRIA, SÁBADO, 26 DE MAIO DE 2012 www.agazeta.com.br Pensar Delírio em rede Entrelinhas JORGE LUÍS BORGES INSPIRA LIVRO QUE RELACIONA ARTE E CIÊNCIA. Página 3 Artes CURADORA DA MOSTRA “MESTRES FRANCESES” COMENTA A OBRA DE CHAGALL. Página 4 Música “RECANTO”, DE GAL COSTA, TRAZ EMBALAGEM FINA PARA DISCO MENOR. Página 5 História O PAPEL DE MUNIZ FREIRE NA DEFESA DA DEMOCRACIA, ANTES E DEPOIS DO GOLPE. Página 8 ESPECIALISTA APONTA A INFLUÊNCIA DOS SITES DE RELACIONAMENTO SOBRE A COMUNICAÇÃO Págs. 6 e 7 BREVES ANOTAÇÕES SOBRE NIETZSCHE Professor de Filosofia analisa “Assim falou Zaratustra” Páginas 10 e 11

Pensar_26_05_2012

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Pensar é um caderno do Jornal A Gazeta, do Espírito Santo, veiculado aos sábados.

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VITÓRIA, SÁBADO, 26 DE MAIO DE 2012

www.agazeta.com.brPensar

Delírio em rede

EntrelinhasJORGE LUÍSBORGESINSPIRA LIVROQUE RELACIONAARTE E CIÊNCIA.Página 3

ArtesCURADORA DAMOSTRA“MESTRESFRANCESES”COMENTA AOBRA DECHAGALL.Página 4

Música“RECANTO”, DEGAL COSTA,TRAZEMBALAGEMFINA PARADISCO MENOR.Página 5

HistóriaO PAPEL DEMUNIZ FREIRENA DEFESA DADEMOCRACIA,ANTES E DEPOISDO GOLPE.Página 8

ESPECIALISTA APONTA A INFLUÊNCIA DOS SITES DERELACIONAMENTO SOBRE A COMUNICAÇÃO Págs. 6 e 7

BREVES ANOTAÇÕESSOBRE NIETZSCHEProfessor de Filosofia analisa“Assim falou Zaratustra” Páginas 10 e 11

Documento:AGazeta_26_05_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_1.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:24 de May de 2012 21:30:41

2PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,26 DE MAIODE 2012

marque na agenda prateleiraquempensa

Alfredo AndradeégraduadoemHistóriaechefedaSeçã[email protected]

Maria D’Ermoggineé italiana, professora de História da Arte ecuradora de exposições no exterior.

André Andrèsé crítico de vinhos da Revista.AG e gosta [email protected]

Marcilene Forechié jornalista, mestre em Educação e professorada [email protected]

Nayara Limaé escritora e graduanda em Psicologia pelaUfes.www.nayaralima-versoeprosa.blogspot.com

Herbert Soares Caçadoré estudante do curso de História do CentroUniversitário São Camilo. [email protected]

Debson Afonsoé radialista, formado em Economia pela [email protected]

Álvaro Francisco Frazãoéescritoramadoreescrevenoblogwww.alvaro.frazao.zip.net

Adolfo Oleareé professor do Ifes, mestre em Filosofia e [email protected]

Clarice Lispector:uma LiteraturaPensanteEvando NascimentoAo analisar a obra deClarice Lispector, o autoraponta que a escritoraestruturou em seus livros

um pensamento complexo e com umaorientação ética que se relaciona comdiversos campos do conhecimento, comopsicanálise, antropologia e filosofia.

304 páginas. Civilização Brasileira. R$ 34,90

A Mulher CaladaJanet MalcolmJanet Malcolm se debruçasobre todas as biografias jáescritas sobre Sylvia Plathpara desvendar a trajetóriade uma das poetas maisoriginais do século XX, além

de reconstruir o contexto do seu suicídio, em1963, poucos meses depois de se separar domarido, o também poeta Ted Hughes.

240 páginas. Companhia das Letras. R$ 23

A Mulher mais Lindada Cidade & OutrasHistóriasCharles BukowskiEsta coletânea de contos emversão pocket oferece umajornada pelo universo infernale onírico de Bukowski, com

seus personagens desvalidos, seus quartosimundos de hotéis baratos e perdedores quecontracenam no submundo de Los Angeles.

64 páginas. L&PM. Trad. Milton Persson. R$ 5

A Paixão de A.Alessandro BariccoO romancista italianonarra as experiências dequatro adolescentes deTurim, nos anos 1970, quetêm suas vidas alteradasapós a chegada de uma

jovem rica, fascinante e desinibida.

136 páginas. Companhia das Letras. R$ 33

MúsicaProjeto do Estado chega ao AçoresO CD “Açorianidade Capixaba”, em comemoração aobicentenário da imigração açoriana no Espírito Santo, serálançado no dia 01/06 na Ilha Terceira, no Açores.

CampusPublicação recebe artigos sobre AdornoA revista eletrônica “Literatura e Autoritarismo”, comcoordenação geral da professora Rosani Ketzer Umbach(UFSM), está recebendo artigos para o Dossiê “Theodor Adornoe o estudo da poesia”, cuja coordenação editorial ficará a cargodo professor Wilberth Salgueiro (Ufes). Os artigos deverão serenviados até 10 de agosto para o e-mail [email protected].

31de maioDebate-papo com Deny GomesA escritora é a próxima convidada do projeto promovidopela Biblioteca Pública Estadual, na próxima quinta-feira,às 19h, com mediação de Sérgio Blank. Deny Gomes éautora dos livros “O desejo aprisionado” e “Promessas dotempo”. Av. João Batista Parra, 165, Praia do Suá, Vitória.

31de maioMostra sobre folclore na AlesVai até esta data a exposição de fotos do Folclore Capixaba, naAssembleia Legislativa, com diversos registros da culturapopular do Espírito Santo. A mostra integra o III FestivalIdentidade Capixaba. No destaque, o Boi Pintadinho pela lentede Gabriel Lordêllo. Mais informações: (27) 3222-2133.

José Roberto Santos Nevesé editor do Caderno Pensar, espaço para adiscussão e reflexão cultural que circulasemanalmente, aos sábados.

[email protected] REFLEXÃO REAL

As redes sociais libertam ou aprisionam? Essa foi a questãolevantada pela professora de Comunicação Social da UVVMarcilene Forechi junto aos alunos do curso de Jornalismo dainstituição, durante uma experiência realizada em setembrode 2011. A ideia era simples: os estudantes teriam de ficar umasemana sem acesso à internet e, especificamente, ao Facebook– maior rede social do mundo, com mais de 900 milhões deusuários –, para refletir sobre a influência dessas redes sobreos jovens e a sua capacidade de contribuir para a aproximaçãodas pessoas. O resultado do desafio está nas páginais centrais

desta edição, em que a professora aponta para a im-possibilidade de se reduzir essa discussão a um simplesexercício de prós e contras, e chama a atenção para a sensaçãode pertencimento proporcionada pelas comunidades virtuaisaos jovens e aos grupos nos quais estão inseridos. No Pensar dehoje, o leitor confere ainda um ensaio de Adolfo Oleare sobre“Assim falou Zaratustra”, de Nietzsche, além de crônicas,poesias, resenhas, crítica musical, artigos e um conto inéditode Brunella França, com ilustração do Coletivo Peixaria.Saudações literárias e até o próximo sábado!

Pensar na webGaleria de fotos da mostra “MestresFranceses”, faixas do CD “Recanto”, deGal Costa, e trechos de livroscomentados nesta edição, nowww.agazeta.com.br

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal

A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493

Brunella Françaé jornalista, escritora, colunista, fic-writer,blogueira. http://twitter.com//brullf

Coletivo Peixariareúne amigos que desenham porque [email protected]

Documento:AGazeta_26_05_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_2.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:24 de May de 2012 21:27:35

3PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

26 DE MAIODE 2012

entrelinhaspor ALFREDO ANDRADE

A ARTE E A CIÊNCIA VISTASPELO LABIRINTO BORGEANO

DIVULGAÇÃO

BORGES E A MECÂNICAQUÂNTICAAlberto Rojo. Editora daUnicamp, 2011. 142 páginas.Quanto: R$ 30.

Jorge Luís Borges inspira livro que relaciona o conhecimento científico e o artístico

Arelação entre arte e ciênciaconstitui um campo fértilpara reflexões que explo-ram as trocas constantesentre uma e outra. A ficçãocientífica, porexemplo, tra-

fega entre as duas áreas de conhecimentoe baseia-se no diálogo constante entrerealidade e ficção. No meio acadêmico,esse debate já esteve no centro de al-gumas polêmicas, ganhando às vezescontornos dramáticos, como no terrenoda teoria da história, onde se deu umarecente discussão em torno da própriaidentidade da disciplina. O instigantelivro “Borges e a mecânica quântica” é umcaso mais ameno. Trata-se de uma reu-nião de artigos de divulgação científicapublicados em sua maioria no jornal“Critica de la Argentina”.

O autor, Roberto Rojo, transita comdesenvoltura pela ciência, como pes-quisador de física quântica do estadosólido, e pela arte, como músico quecompôs e tocou nos últimos discos dacantora Mercedes Sosa, tendo grava-ções também como solista. Admiradorinveterado de seu compatriota JorgeLuís Borges, Rojo constrói um labirintoautenticamente borgeano, enveredan-do pelos caminhos das duas formas desaber, especialmente quando eles sesobrepõem. Sendo uma reunião de tex-tos escritos para o grande público, aobra tem um caráter informal, acessívelaos não especialistas.

O mote para o livro é o conto “O jardimdos caminhos que se bifurcam”, inte-grante do volume de contos “Ficções”,publicado por Borges em 1941. Rojoafirma que o famoso escritor argentino é opoeta mais citado pelos cientistas, usadona maioria das vezes para ilustrar con-ceitos por meio de “exemplos metafóricosque dão brilho à prosa opaca das ex-plicações técnicas”. Já “O jardim...” édiferente, pois, para Rojo, trata-se de umaliteral antecipação da polêmica tese dedoutorado do físico Hugh Everet III, pu-blicada em 1957 com o título “Formu-lação da mecânica quântica por meio deestados relativos”.

A tese de Everet III é conhecida como“A interpretação dos muitos mundos damecânica quântica”. Tendo tal coin-cidência como ponto de partida, o livrobrinda o leitor com muitas outras, en-trelançando-as sutilmente. Quando noprólogo o autor faz uma referência aoseu artigo “Tertium Organum”, relatadesdobramentos que sugerem umadessas “fortuitas” adivinhações fre-quentes na literatura, da qual “O jar-dim...” é uma das mais inquietantes.

Mais adiante, percorrendo os labi-

rintos de Rojo, encontramos outra pro-vocação: seria Borges um dos viajantesdo futuro que Carl Sagan aventou emum de seus textos sobre viagens notempo? Com isso, Rojo parece ma-liciosamente nos fazer a mesma per-gunta sobre si mesmo. Não à toa, otítulo do último texto do livro é “Dozecoincidências”.

DicotomiaPara superar uma aparente dicotomia

entre o conhecimento científico, queaborda a realidade, e o artístico, que atuano mundo da imaginação, uma cons-tatação: “As grandes obras literárias ana-lisam profundamente a realidade, e osgrandes avanços científicos redefinem oslimites da imaginação”. A partir daí,

exemplos de obras literárias que ins-piraram soluções para problemas cien-tíficos servem para ilustrar o quanto asinterseções entre as duas práticas sãoprolíficas.

Outra indicação das constantes in-terações entre as duas formas de saberestá demonstrada no papel que grandescientistas atribuem à beleza na elabo-ração de teorias. Rojo cita vários exem-plos, sendo muito ilustrativos os trabalhosdo miraculoso ano de 1905, quandoEinstein publicou os artigos que mudaramradicalmente a história da ciência. Vemosque o cientista alemão incorporou ele-mentos estéticos em seu raciocínio, uti-lizando-se de conceitos que até entãoeram considerados ficções matemáticas.Ou seja, Einstein construiu a partir daficção uma teoria científica que descrevia

corretamente a realidade, contra a nossaintuição e, o que é mais grave, contra umacerta teoria newtoniana até então vistacomo sinônimo de método científico. Umdos trabalhos desse ano de milagres,aquele que apresenta a relatividade, seorigina de uma exigência estética in-troduzida com a seguinte frase: “A ele-trodinâmica de Maxwell, aplicada aoscorpos em movimento, conduz a as-simetrias que não parecem ser inerentesao fenômeno”. E aqui reside uma evi-dência de quão importante era a belezapara Einstein, pois uma postura foi crucialpara que ele chegasse à relatividade: nãoaceitar a assimetria da teoria em umfenômeno no qual a natureza se apre-sentava simétrica.

Outros assuntos relacionados aos usose abusos da ciência estão presentes nolivro, como teletransporte, viagem notempo, acaso e probabilidade, a física notango e na Bíblia, homeopatia e o GPScomo aplicação da teoria da relatividade,sempre de forma bastante leve e clara.

Sem dúvida, Rojo tem habilidade econhecimento para visitar os dois mun-dos, descrevendo o que a arte tem deciência e o que a ciência tem de arte.Para quem quiser uma mostra, a editoradisponibiliza as vinte primeiras páginasno link http://issuu.com/editorauni-camp/docs/borges_e_a_mecani-ca_quantica.

TRECHO“A 9 de julho de 1985, por puroacaso, troquei uma palavrascom Borges. Recordo-me dadata porque era um dia depoisdo meu casanmento e, antes departirmos para a lua de mel,minha mulher e eu tínhamosido saudar meus pais, queestavam alojados no HotelDora, na Rua Maipu, 900.Minha mãe me pegou pelobraço e me levou aorestaurante. As mesas estavamvazias, exceto uma, e ali estavaBorges, sentado junto de umamulher, que provavelmente eraEstela Canto, com quem elefalava às vezes em inglês e àsvezes em castelhano.”

Documento:AGazeta_26_05_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_3.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:24 de May de 2012 21:24:16

4PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,26 DE MAIODE 2012

Curadora da mostra “Mestres Franceses”, em cartaz no Palácio Anchieta, destaca o aspectohumanista e a espiritualidade do artista que viveu e pintou por ideias, conceitos e memórias

artes plásticaspor MARIA D’ERMOGGINE

MARC CHAGALL: UM CONTADORDE HISTÓRIAS AMANTE DA VIDA

DIVULGAÇÃO

Marc Chagall (Vitebsk,07 de julho de1887-Saint-Paul-de-Vence, 28 de marçode 1985) foi um ar-tista e poeta na his-

tória do século XX e ocupou um lugarúnico. Seu trabalho altamente originalnão é reconhecido em nenhum dos mo-vimentos de vanguarda artística. Chagallera fascinado por seus contemporâneos,devido à intensidade da cor do racional,do cubismo sintético e do Fouvismo, masnunca se identificou com nenhum deles,evitando generalizações e teorias de seusprincípios artísticos: ele viveu e pintou porideias, conceitos e memórias.

Nascido em Vitebsk, um importantecentro administrativo da Western Bie-lo-Rússia, Marc Chagall pertencia a umafamília modesta de religião e culturajudaica. Seu país mantinha o folclorecaracterístico da região e suas históriastradicionais. As memórias da infânciaestavam sempre presentes no curso deseus negócios, mas não apenas as lem-branças românticas e nostálgicas; Chagallherdou uma pátria cultural e visão domundo onde a espiritualidade tem umlugar de excelência.

Ele estudou primeiro em Vitebsk, emseguida foi para São Petersburgo e, graçasa um patrono, foi para Paris, onde o jovempintor respirava a vivacidade e a ver-satilidadedeumacidadequedeixounele–jovem, tímido e introvertido – um intensochoque emocional, o que naturalmentepode ser visto nas obras desse período.

Apesar de sofrer o encanto das ten-dências artísticas predominantes, ele se-guiu um caminho muito pessoal para aliberdade criativa absoluta e as brinca-deiras imaginativas. Após a primeira ex-periência parisiense, Chagall retornou aoseu país, onde permaneceu por um longotempo, casou com sua amada Bella epassou um dos momentos mais alegres dasua vida com o nascimento de sua filha.

Suas experiências de vida, seu mundointerior e exterior representaram, cadavez mais, a inspiração para suas obras. Eleviveu a experiência da revolução e foisocial e politicamente comprometido emseu país, onde decidiu criar uma escola dearte que combinou todos os artistas emnome da criação de uma arte livre eespontânea. Porém, a Academia acaboupor ser uma grande decepção com o

abuso do suprematismo de Malevich,que assumiu o comando.

Após a Primeira Guerra Mundial,Chagall voltou para a França, ondepodia-se respirar um ar mais alegre ebrincalhão, e começou a pintar o “seu”realismo poético com cores mais suaves eum estilo leve e arejado. Foi durante esseperíodo que o artista começou a trabalharcom gráficos complexos e a capacidade dejuntaro real ao fantástico: asalmasmortas,Fábulas de La Fontaine, o Cirque Vollard.Todas as obras desse período foram en-viadas para o editor Vollard.

Com a chegada de leis antissemitas,Chagall começou um período de viagemna Europa, incluindo a Itália e a Es-panha, no início da Segunda GuerraMundial, e fugiu para a América, ondecontinuou a sua atividade no campo dacenografia. Retornando à Europa, agorareconhecido como artista renomado,trabalhou continuamente até sua morteem 1985. Durante esse longo período,testou sua mão em diferentes técnicasartísticas: escultura, cerâmica, mosai-

As litografias “Moisés e oCandelabro” e “Moisés e a SarçaArdente”, produzidas por Chagall em1966 para a série “A História doÊxodo”, estão expostas até 10 dejunho no Palácio Anchieta

cos, vitrais e, especialmente, os gráficoscom o uso da litografia.

Os assuntos discutidos foram a natureza,comasualuzalegreepenetrante,eaBíblia,cujo texto o fascinava desde a infância. ABíblia era, para Chagall, “a maior poesia da

raiz de todas as idades”. Chagall tambémenfatizou que “o amor para o mundo todoé a coisa mais importante, bem como aliberdade. Quando você perde a sua li-berdade, você perde o amor”.

Quanto ao tema bíblico, Chagall de-dicou-se a um primeiro ciclo de repre-sentações, incluindo a história do Êxodo,com 105 gravuras nos anos 30 e, maistarde, o editor Morloto o fez voltar aomesmo tema, usando as novas técnicas delitografia. O artista, de fato, foi atraídopela possibilidade de fazer a cor, muitoquerida por ele.

E assim criou as 24 litografias daexposição “Mestres Franceses”, expostasnas paredes do Palácio Anchieta, queincluem “O nascimento de Moisés”, a“Sarça ardente”, “Moisés e a serpente” eoutras obras muito semelhantes em es-tilo e composição, gravadas em cobre eimpressas em preto e branco. Mais umaprova do seu talento inato como um“contador de histórias” e de que Chagallpermanece ancorado no progressoda arte mundial.

Documento:AGazeta_26_05_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_4.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:24 de May de 2012 21:14:48

5PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

26 DE MAIODE 2012

RECANTOGal Costa. Universal. 11 faixas.Quanto: R$ 29,90

falando de músicapor ANDRÉ ANDRÈS

EMBALAGEM FINA PARAA NEGAÇÃO DA MELODIA

AGNEWS

Poucos dias após a morte deTom Jobim, em dezembrode 1994, Chico Buarque,com um ar um tanto apar-valhado pela perda do ami-go e mestre, tentou dimen-

sionar seu estado emocional e criativo:“Eu compunha para ele, para obter aaprovação dele. Era como se Tom es-tivesse o tempo todo me olhando, porcima de meu ombro, observando meutrabalho. Será assim por mais algumtempo.” Dez anos depois, com as feridasda perda já há muito cicatrizadas, Chicodeclarou o fim da canção, pelo menos damaneira como a conhecemos e apren-demos a admirar: “(A canção)... é umfenômeno próprio do século passado, tala quantidade de releituras, de com-pilações, de gente cantando clássicos.Os meus próprios discos são relançadosde diversas formas, em caixas, caixo-tes... Se eu lançar um disco novo, voucompetir comigo mesmo. E devo per-der.” Bem, ele tinha razão, pelo menosem sua conclusão: seu último CD, “Chi-co”, está longe de figurar entre suasmelhores obras. Tem, aqui e ali, o brilho

do grande compositor que Chico é (co-mo na deliciosa “Se Eu Soubesse”). Masinvariavelmente as melodias se perdemem andamento, harmonia, ritmo er-rantes (“Tipo um Baião” é uma mis-celânea difícil de se definir). Se fossevivo, Tom faria como fez com tantas etantas músicas de Chico, Edu Lobo –dedilharia o piano, corrigiria a melodiaem certos trechos, e diria: “Era assimque você queria não era, Eduzinho?”

A frase de Chico, no entanto, pareceter sido incorporada de maneira radicalpor Caetano Veloso. Seu último discode estúdio,“Zii e Zie” (2009), já apon-tava para um namoro um tanto estérilcom a música eletrônica. O namorovirou casamento e rendeu um filhonada agradável: “Recanto”, último dis-co de Gal Costa após um tempo afas-tada dos estúdios. Todas as músicas dodisco são de Caetano.

Um desafio: ganha um “Zii e Zie”quem conseguir ouvir “Recanto” maisde uma vez seguida. Aliás, há umsegundo desafio: ganha uma caixa comtodos os discos de Caetano quem con-seguir entoar ou assoviar três melodias

do novo disco de Gal. Não se vai entraraqui na discussão das letras feitas porCaetano. O ponto a ser abordado é opossível enterro da canção. Quandofalou sobre isso, Chico apontou o rapcomo um fenômeno musical novo, as-cendente e, também, como a nega-çãoefetiva da melodia. Caetano nadadeclarou nesse sentido, mas parece terido buscar nos sons eletrônicos algumtipo de vanguarda ou, talvez, de re-juvenescimento de sua obra.

João GilbertoO resultado é estranho, até mesmo

nas leituras feitas por ele e Gal a respeitodo disco. Gal, por exemplo, aponta“Tudo Dói” como sua música preferida,“porque traz no seu DNA o traço in-contestável de João Gilberto”. Bem, ver-sos como “Viver é um desastre quesucede a alguns. Nada temos sobre osnão. Nenhuns...” remetem muito mais aoutros namoros e paixões estéticas deCaetano, como sua aproximação com apoesia concreta e a obra dos irmãosCampos. Aliás, é curioso notar como

essa aproximação já rendeu bons frutos.“Pulsar”, poema concreto de Augusto deCampos musicado por Caetano e gra-vado em “Velô” (talvez uma referência a“Velocidade”, de Ronaldo Azeredo,obra-símbolo do concretismo), funcionano disco porque está justaposta entre abalançante e memorável “Podres Po-deres” e a melancólica “Homem Velho”.A ousadia estética de “Pulsar” se so-bressai porque é um contraponto àmelodia - e por ser contraponto, tor-na-se ousada.

Chico, Caetano e Gal têm obrasconsistentes. São figuras fundamen-tais para o cenário de nossa música,de nossa história cultural. E justa-mente por isso têm o direito de errar,de produzir obras menores. Só nãodeveriam querer revestir com umembrulho de sofisticação um discosofrível, como fizeram Gal e Caetano.“Recanto” é apresentado como umaobra ousada, moderna, avançada.Não é nada disso. Pode até ter seuvalor poético. Como disco é ruim. Ecomo música, é uma perda detempo. Tom Jobim reprovaria...

Gal Costa no show de lançamento de “Recanto”: álbum repete fórmula de “Zii e Zie”, de Caetano Veloso, que já apontava para um namoro estéril com a música eletrônica

Documento:AGazeta_26_05_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_5.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:24 de May de 2012 20:59:14

7PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

26 DE MAIODE 2012

6PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,26 DE MAIODE 2012

PROFESSORA DE JORNALISMO ANALISA A INFLUÊNCIAPROVOCADA PELA INTERNET NAS NOVAS GERAÇÕES

comunicação socialpor MARCILENE FORECHI

A REDE SOCIALLIBERTA OUAPRISIONA?

A partir de experiência realizada com estudantes, especialista observa que, para os jovens, ficar fora das redes sociais seria o mesmo que “um exílio voluntário, um isolamento, uma solidão”

Ciro Marcondes Filho, emseu livro “Afinal, até queponto de fato nos comu-nicamos?” (Editora Paulus,2004), nos instiga a pensarsobre a impossibilidade da

comunicação. O mesmo autor, que afirmaser a comunicação um enigma, fala sobreo que classifica como os equívocos dosestudiosos do Colégio Invisível (grupo deestudiosos que se reuniu em torno dopesquisador Gregory Bateson) e dos es-truturalistas sobre a comunicação. Osprimeiros afirmam que “tudo comunica” eque basta estar vivo para comunicar. Já ossegundos estão centrados no que estásendo comunicado versus o que não estásendo comunicado.

O autor questiona se, na visão da-queles dois grupos, não se estaria con-fundindo a simples transmissão obri-gatória de sinais, um mero existir, comcomunicação. E afirma que Gregório, na“Metamorfose” de Kafka, não morreuporque se transformou em uma barata;ele morreu porque perdeu a capacidadede comunicar-se com sua família e seusamigos. É natural que o ser humanoprecise se fazer ver para comprovar suapresença no mundo e é por meio dacomunicação que essa experiência no

mundo é validada. A consciência (de quefala Hegel) só existe na medida em que éreconhecida pela outra.

Na atualidade, muito se fala sobre asnovas formas de comunicar, os novosmeios, as quedas de fronteiras, as mu-danças no estatuto da percepção do mun-do e as novas possibilidades de produçãode conhecimento. Tudo o que há e, prin-cipalmente, o que há no mundo virtual, étratado como comunicação, ou pelo me-nos assim entendem os que acreditam sera internet a maior e melhor possibilidadede comunicação que já se viu e de ser aweb a grande seara na qual se esta-belecem relações, formam-se vínculos ecriam-se novos espaços e tempos.

A ideia de que todos estejam conec-tados, de que a comunicação seja umavariável absoluta e de que não hajafronteiras no mundo é tentadora. For-mam-se comunidades virtuais, as maisdiversas, e é possível participar de muitas,seja por afinidade ou pela crença de que asimples participação será capaz de umtransporte a outro mundo, de um re-conhecimento, de uma comunicabilidadeinstantânea e permanente. Talvez, pu-déssemos questionar se as redes sociaisseriam capazes de possibilitar o reco-nhecimento ao qual Hegel se refere. Ou,

ainda, se estariam seus membros fadadosà experiência, ao “estar presente” e nuncaao compartilhamento ou à comunicação.

Uma experiência realizada em setem-bro de 2011 com alunos do curso deJornalismo da Universidade Vila Velha(UVV) despertou para a necessidade derefletir sobre os processos comunicacio-

nais proporcionados pelas redes sociais,mais especificamente pelo Facebook, esobre qual seria sua capacidade de con-tribuir para a aproximação das pessoas epara a formação de comunidades. Aexperiência – a que demos o nome de “Avida sem rede” – nos apontou para aimpossibilidade de reduzirmos essa dis-cussão a um simples exercício de prós econtras e nos levou ao reconhecimentoda inevitabilidade da interferência dasredes sociais na formação dos jovens,uma vez que elas (as redes sociais e ascomunidades virtuais) fazem parte dasua estratégia de pertencimento aos gru-pos nos quais estão inseridos.

PertencimentoTudo começou quando uma aluna lan-

çou a pergunta, que, segundo ela, cir-culava no Facebook: você trocaria o restode sua vida sem acesso às redes sociais porum milhão de reais? A pergunta causoualvoroço entre os alunos e vários delesafirmaram que isso seria impossível. Omotivo? Ficar fora das redes sociais seria omesmo que um exílio voluntário, umisolamento, uma solidão. Para aquelegrupo de alunos, a participação nasredes sociais representa a possibi->

Todosacreditavam queestar na rede ecompartilharinformações comos amigos era umaforma deliberdade”—Marcilene Forechi Jornalista, mestreem Educação e professora da UVV

lidade de comunicação, no sentido detrocar informações, de ver e se fazer

ver. Um simples existir na rede parece sersuficiente para que haja essa sensação depertencimento.

Decidimos propor o desafio de queficassem não o resto da vida, mas umasemana sem acesso às redes sociais e àinternet – o que incluiu e-mails, vídeose portais de notícias. Posteriormente,os quatro alunos que aceitaram odesafio relataram o que fizeram na-quela semana e o que sentiram dianteda impossibilidade de acessar o Fa-cebook e encontrar os amigos. A per-gunta que orientou a conversa pos-terior ao desafio foi se a rede liberta ouaprisiona, pois todos acreditavam queestar na rede e compartilhar infor-mações com os amigos era uma formade liberdade, uma vez que as pos-sibilidades são ilimitadas e não hálimites físicos ou temporais.

Ao final do desafio, foi surpreendenteouvir dos quatro que a rede aprisiona,pois os condiciona a uma experiência daqual não podem se libertar sob pena deficarem isolados e excluídos do mundo aoqual pertencem e que, agora, não temsentido existir senão mediado pelo com-putador. Em maior ou menor grau, os três

participantes do desafio disseram terfeito coisas que não faziam normalmen-te, como passar mais tempo conversandocom os pais na hora do almoço, caminharna praia, falar ao telefone com os amigos,ler, assistir ao noticiário da TV.

A sensação de exclusão relatada pelosparticipantes do desafio e a angústia denão poderem se comunicar nos lembroua experiência do personagem Gregório.“O computador é uma extensão de mim.Sem ele, me sinto desamparada, mu-tilada”, disse uma aluna ao se referir aoque sentiu na semana em que ficou longedo seu lap top. Assim como Gregóriomorreu ao perder sua capacidade decomunicar-se com a família, os alunosmanifestaram a sensação da não-exis-tência, do isolamento e da impossibi-lidade de comunicar-se com os outros.

A experiência que chamamos de“Vida sem rede” não teve o caráter deuma pesquisa acadêmica. Ela se con-figurou em uma importante possibi-lidade de reflexão sobre o uso dasredes sociais e os sentidos que elesdespertam nos jovens estudantes deJornalismo. Diante das afirmações dosalunos de que a rede lhes permiteestarem ligados em tudo o que acon-tece, poderíamos supor que eles são

mais informados e estão mais pre-parados para desenvolver atividadespessoais e profissionais. Mas, ao con-trário, parece que a experiência deestarem na rede e de fazerem parte,tendo como consequência o reconhe-cimento – é o que motiva passar tantashoras conectados.

RitualExpediente comum nos grupos é o

clique no botão “curtir”, o que nãosignifica que o conteúdo postado foi lidoou assistido. A impressão que se tem éque essa prática se assemelha a umritual, que se faz simplesmente para quealgo seja feito naquele tempo que passamuito rápido. E são necessários muitoscliques para que haja a percepção dosoutros da presença. Quando questio-nados sobre o que buscam nas redessociais e na internet, não houve res-postas pontuais. Há, em princípio, umnavegar a esmo, uma espera pelo que ooutro irá dizer ou postar, uma neces-sidade de estar ali o tempo todo, poisalguém pode precisar ou querer falar ese não estiver on-line não haverá essapossibilidade.

Para Marcondes Filho, discutir a

internet e o que virá depois dela “Tor-na-se uma questão que envolve nãoexatamente uma vitória ou derrota deposições, mas, antes, uma tomada deconsciência das reais implicações douso desse sistema técnico e o que elenos preparará posteriormente”. Inte-ressa-nos, então, ao levantar questõese propor esta reflexão, o que está alémdo uso das técnicas e dos instrumen-tos, uma vez que o que se processa pormeio do uso das redes sociais pode sercapaz de mudar o estatuto da per-cepção do mundo.

A sociedade contemporânea, regidapela midiatização e pela tendência àvirtualização das relações, nos apontapara a desatenção de educadores e co-municadores (especialmente jornalistas)para os desdobramentos que virão dessasformas de socialização e (in)comuni-cação. Parece haver nas redes não umabusca por comunicar-se no sentido decompartilhar ou tornar comum, masuma busca frenética pelo novo, por algoque seja motivador. O mesmo Ciro Mar-condes nos diz que a internet materializaa lógica da nova sociedade e que já nãovivemos mais o fenômeno da comu-nicação, mas o delírio técnico tra-vestido de comunicação.

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Documento:AGazeta_26_05_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_6.PS;Página:1;Formato:(548.22 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:24 de May de 2012 21:01:28

8PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,26 DE MAIODE 2012

políticapor HERBERT SOARES CAÇADOR

OS GRUPOS DE ONZE COMPANHEIROSEstudante de História lembra a adesão da cidade de Muniz Freire ao movimento lideradopor Leonel Brizola, em 1963, pela defesa democrática e a resistência contra o golpe militar

DIVULGAÇÃO

De cima para baixo, o Grupo dos Onze de Muniz Freire: Jonatas RibeiroSoares, Ângelo Cizotto, Carlinho José de Arêas, Ilton Vieira, Jair RibeiroSoares, Mauro Rodrigues de Oliveira, Lino Ribeiro Soares, Mario RibeiroSoares, Renato Viana Soares, Nelson Bolzan e Rômulo Araújo

“Povo desunido, po-vo desorganizado épovo submetido”.Assim pensava, em1963, o então de-putado federal

Leonel de Moura Brizola. A frase,ainda atual, resume bem a agitaçãopolítica existente no governo JoãoGoulart, onde esquerda e direita ra-dicalizavam a sua atuação política.Foi pregando sobre a necessidade deorganização do povo para que o mes-mo se libertasse da pobreza e ex-ploração internacional, que Brizolacomeçou a discursar na rádio May-rink Veiga, no Rio de Janeiro. Emnovembro de 1963, é lançada por elea ideia de formar os “Grupos de OnzeCompanheiros” ou “Comandos Na-cionalistas”.

Leonel Brizola desempenhava im-portante papel na política brasileira.Após a renúncia de Jânio Quadros em25 de agosto de 1961, Brizola, entãogovernador do Rio Grande do Sul,liderou a Campanha da Legalidadepara defender a posse do vice-pre-sidente João Goulart, adiando de certamaneira o golpe que se concretizariaem 31 de março de 1964. Os discursosem defesa da Constituição fizeramdele um grande líder político, prin-cipalmente entre as esquerdas.

Ao propor a criação dos grupos, Brizolase inspirou no futebol, dada a proxi-midade do país com esse esporte. Cadagrupo seria formado por 11 pessoas e umintegrante seria escolhido o capitão. Noinício, dois ou três começariam até chegarao número de 11, e as reuniões seriamrealizadas nas casas dos membros. Comos 11 definidos, lavrariam a ata de fun-dação com o nome de todos e infor-mariam por carta ou pessoalmente acriação do grupo ao deputado LeonelBrizola, na sede da rádio Mayrink Veiga.

Segundo o criador, o movimento irialutar pela “defesa das conquistas de-mocráticas, resistência a qualquer ten-tativa de golpe, instituição de uma de-mocracia autêntica e nacionalista, ime-diata concretização das reformas, emespecial das reformas agrária e urbana, epela libertação da pátria da espoliaçãointernacional”. Para atingir esses ob-jetivos, os grupos iriam articular açõesem todo o Brasil. Ressalte-se que nada

era clandestino, e sim totalmente abertoe público, visto que as instruções para acriação dos grupos eram transmitidasvia rádio para todo o país.

Aceitação popularO discurso visando à melhoria das con-

dições de vida do povo fez com que a ideiativesse grande aceitação popular. A opo-sição ao movimento também teve força, osconservadores o acusavam de terrorista, ea imprensa publicava notícias ilusóriassobre as possíveis ações dos grupos, sem-pre os associando ao comunismo.

Interessante notar, é que a imprensa,tentando atrapalhar o movimento, acaboupor supervalorizar o mesmo, chegando acausar pânico na direita civil-militar, queimaginava estar próxima uma guerra civildentro do país. Vale lembrar que o PartidoComunista Brasileiro foi contrário à ini-

ciativa de Brizola, o que arruína a ideia deassociar esse movimento ao comunismo.

O número de participantes é incerto,mascálculosdoprofessorCibilisViana,quefazia parte da organização, informam que,às vésperas do golpe, já haviam se formadocerca de 100 mil grupos. O historiadorJorge Ferreira apresenta dados do ex-de-putado Neiva Moreira, com cerca de 60 a70 mil militantes organizados.

No meio desses milhares de seguidoresBrasil afora, a cidade de Muniz Freire foirepresentada. O grupo formado a partirda liderança de Jonatas Ribeiro Soarestinha os seguintes membros: Ângelo Ci-zotto, Carlinho José de Arêas, Ilton Vieira,Jair Ribeiro Soares, Lino Ribeiro Soares,Mario Ribeiro Soares, Mauro Rodriguesde Oliveira, Nelson Bolzan, Renato VianaSoares e Rômulo Araújo. A adesão se deupela admiração à figura de Brizola, e porsua luta a favor dos mais pobres.

Com o golpe consolidado, esses gruposforam enquadrados na Lei de SegurançaNacional e injustamente perseguidos comprisões e outras barbaridades cometidaspelo novo regime. Em Muniz Freire, tam-bém aconteceram perseguições e prisões.A pena foi cumprida no Fórum local e,diferentemente de outras cidades, aqui ospresos foram bem tratados. O dossiê“Grupo dos Onze”, existente no ArquivoPúblico Estadual, menciona a condenaçãode alguns: Jonatas (um ano de reclusão),Mauro (seis meses), Nelson (seis meses),Rômulo (seis meses), Carlinho (seis me-ses) e Ângelo (seis meses). Vale destacarque Renato, Ilton e Jair também foramcondenados. No caso de Mario e Lino,houve o indiciamento, mas o processo nãofoi em frente e, portanto, não houvecondenação.

PreconceitoAlém da perseguição oficial, eles so-

freram com o preconceito de parte dasociedade que erroneamente os ligavaao comunismo. É bom frisar que o grupode Muniz Freire também não praticouatos ilegais e, portanto, o preconceito, aperseguição e a posterior condenaçãoforam injustas.

Mesmo com toda dificuldade, essesgrupos deixaram marcas e se constituíramnuma inovação em estimular as massas.Em entrevista ao jornalista FC. Leite Filho,o sociólogo Herbert de Souza, um dosúltimos coordenadores dos Grupos dosOnze no Brasil, dimensiona o movimento:“Era uma coisa que crescia espontanea-mente. O Brizola pegava a rádio MayrinkVeiga, que todo mundo escutava, e dizia oseguinte: ‘Reúnam 11 companheiros, pe-guem os nomes deles e nos enviem cópias’.E começavam a surgir os comitês. E seformou Grupo dos 11 em todo lugar”.

A verdade é que o movimento, atéentão promissor, não teve tempo de pros-perar. Dias antes do golpe, as primeirasreuniões estaduais e uma nacional aindaestavam sendo organizadas. A rapidez domovimento golpista o impediu de pro-duzir maiores resultados.

Na memória dos membros muniz-frei-renses entrevistados, ficaram as lembran-ças de uma luta justa e pacífica, mas quefoi derrubada por um golpe civil-militarque maltratou não só 11 pessoas, masa maioria de um país.

Documento:AGazeta_26_05_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_8.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:24 de May de 2012 21:09:08

9PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

26 DE MAIODE 2012

poesias

SONETOÁLVARO FRANCISCOFRAZÃOMinha vida se assemelha no arremedoda peleja do oceano com o penedo.Um recife contra as ondas solitárioum rochedo invencível e abandonado.

Sou o profeta do irrealizadoo feitor do desejo mais frustradono cenário das irrealizaçõessou o autor dos projetos abortados.

A música de inaudível melodiao espectro lunar ao meio-diaum arbusto plantado contra o vento.

Sou a rima da poesia inacabadaa matéria que transcende ao nadaum legado ao próprio esquecimento.

crônicas

QUEM?por NAYARA LIMA

“Quem poderá calcular o calor e a violênciade um coração de poeta quando preso nocorpo de uma mulher?”, perguntou Vir-ginia Woolf. Eu não devia escrever sobre otema, há o que se torna perigo. Mas ocorreque não me vem outro assunto. Ocorretambém que decidi que essa frase vouescrever em alguma parede próxima, tal-vez na cozinha ou no quarto, ainda nãodecidi. De todo modo, vou deixá-la es-cancarada. Estive em uma biblioteca re-centemente e pude ver uma menina que,olhando para a gaveta da mesa, nada faziaque não fosse chorar. A cena devia sercaótica, não fosse de beleza. Eu sabia quenão se tratava da perda de algum objetoengavetado e depois desaparecido, masprecisei encostar na ferida. “Perdeu algumacoisa? Posso te ajudar?”

“Não, na verdade, sim, perdi. É que

acabei de ler um poema de FernandoPessoa. Fiquei emocionada. Estou comvergonha, porque meu namorado meespera ali na outra sessão de livros, e nãome entenderia”. Olhei em volta até acharum menino magro em êxtase para oslivros de cálculo na prateleira. Era eleque não entenderia. Respondi de ime-diato que estava em extrema curiosidadepara conhecer o poema e que, ao con-trário dela, eu não corria nenhum risco,já que estou livre para chorar, se for ocaso. O poema era o mesmo que li portantas vezes nos jardins de Shanghai,mês passado, quando fui buscar algumacoisa do outro lado do mundo e en-contrei o verso que avisa: “O segredo dabusca é que não se acha”.

Fujo da pergunta de Virginia Woolf? Seique as estantes da biblioteca, tanto quanto

os livros, comoviam. Em madeira antiga,enfileirados por ordem alfabética, os livrosestavam quentes. Do lado de fora a chuvaescorriapelosgalhosdeárvorequepoucoapouco pareciam transbordar, como acon-tece com frequência na nossa cidade.Tentei não me lembrar do caos no trânsitode depois, dos homens sem teto e em frio.Dentro da biblioteca, um poema trans-bordava imprevisto no rosto de uma mu-lher. Decidi que pela cena, restava-meapenas dizer a ele, que andava para lá epara cá: “Perdeu alguma coisa? Posso teajudar?”. “Não encontro a obra intitulada‘Cálculo comGeometriaAnalítica’, deSwo-kowski”, respondeu.

O verso de Pessoa chegou pronto paraser dito friamente: é assim mesmo, porque“Osegredodabuscaéquenãoseacha”.Noentanto, foi o verso de Woolf que tomoulugar para ser dito, em tom de raiva, aorapaz matemático que não entenderia:“Quempoderá calcularocaloreaviolênciade um coração de poeta quando preso nocorpo de uma mulher?”.

Saí aliviada. Talvez eu fosse a meninaque chorava as lágrimas na gaveta.

SOBRE GUARDA-CHUVA E E-MAILpor DEBSON AFONSO

Sempre fui avesso a certas coisas,principalmente, coisas que nos ofe-rece o mundo “modernológico”. Di-zem que não tenho foco, que soudesconectado da realidade, que nãosou plugado às facilidades que a tec-nologia nos permite. E eu sou látomada para viver plugado? Pode-seaté achar que é brincadeira, mas àsvezes sinto saudade da minha velhaRemington que obrigatoriamente tiveque aposentar para ficar de frentepara essa tela branca.

Algumas cores os meus olhos nãoaceitam, também a minha casa, e o meucorpo não veste roupas. Nada de su-perstição. Cheiros? Por favor, não deixequem toma banho de perfume sentar-seao meu lado. Sabores? Experimente meconvidar para comer jiló.

Das invenções do homem, acho, deachismo mesmo, porque não sei delas,

quais as que mais me irritam, o telefone éo meu carrasco. Quando ele toca às setehoras, e eu não dormi à noite, tenhovontade de não só jogá-lo na parede, mastambém o meu interlocutor. O celular,esse que nos acompanha até o banheiro,nem se fala! Quando tenho de ficarouvindo as brigas alheias, tenho um de-sejo insano de tomá-lo das mãos do meualgoz e pisá-lo, pisá-lo e pisá-lo, com-prando a briga. Talvez se eu vivesse àépoca de Graham Bell e pensasse comopenso hoje, o teria mandado conversarcom São Pedro e ainda ficaria por pertopra ver se ele seria perdoado.

Pois, sim, o guarda-chuva. Abençoadoe desabençoado guarda-chuva. Abençoa-do quando está chovendo de barulhinhoe a gente pode sair guardado. Desa-bençoado quando passa o barulhinho eeu o esqueço em um canto qualquer, e amemória não guardou onde foi esque-

cido. Abençoado, quando, por falta dele,se pega carona com Michelle. Ah, Mi-chelle, ainda impressa no meu livro delembranças! Percorremos o trajeto até oterminal sob a chuva de barulhinho e oque guarda a chuva. Poucas palavras nopouco que tínhamos para caminhar. Masmuito foi dito. A coincidência entrou naconversa, pegamos o mesmo ônibus e oslugares reservados lado a lado. Química,afinidades, concordâncias e discordân-cias aos assuntos fluíam feito rio embusca de um mar de possibilidades. Pedium engarrafamento com a fé que nor-malmente não tenho, e que o percursofosse maior que a eternidade. Virou poei-ra, o que pedi em silêncio budista. Sal-tamos. Ela pediu o meu e-mail. Malditopedido. Eu não tinha ainda o [email protected] amaldiçoadoe-mail. Nos despedimos. Nunca mais viMichelle.

QUEM É?O cristal que não quebroua aliança que derreteuo rio que não secoua estrada que não terminaa lembrança que iluminao amor que não morreu?

A abelha que não fez mela flor que desabrochouo sino que não tocoua lua que se escondeuo barco que naufragouo amor que não morreu?

O trem que não partiue se partiu, não chegou.O feto que não cresceua música que não se ouviuo fogo que não queimouo amor que não morreu?

A ponte que não caiuo time que não ganhou.A mulher que não pariuo filho que não nasceuo copo que entornouo amor que não morreu?

ENTROPIACada centímetro quadrado de teucorpo,Essas ruínas de paixõesdesencantadas.Cada centelha divina de tua alma,São essas rugas marcadas no meurosto.

Estereótipo de um amor perdido,Retórica que morre sem resposta.Desgaste natural quando se amaUm coração mergulhado no desgosto.

Se meu amor já não quer mais sofrerSe minha dor já não quer mais passar,Se meu desejo não quer te esquecer,

Meu coração,vestido de esperançaSimulacro cruel de um tom perfeitoPerde o calor e esfria até morrer..

Documento:AGazeta_26_05_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_9.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:24 de May de 2012 20:53:02

11PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

26 DE MAIODE 2012

10PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,26 DE MAIODE 2012

ideiaspor ADOLFO OLEARE

ZARATUSTRA: POR UMA DOUTRINANIETZSCHEANA DOS AFETOS

ARQUIVO AG

Para professor de Filosofia, obra escrita pelo pensador alemão entre 1883 e 1885 seconstitui como exercício de pensamento afetivo acerca da indizível essência da realidade

Os leitores brasileiros deNietzsche têm um bommotivo para comemorar:foi lançada, pela Compa-nhia das Letras, mais umaesmerada tradução de

Paulo César de Souza, doutor em li-teratura alemã (USP) e coordenador dascoleções de Nietzsche e de Freud pu-blicadas pela editora. “Assim falou Za-ratustra” é o 11º livro do filósofo traduzidopor ele, que também se responsabiliza porum instrutivo posfácio e por 173 notas,fruto de estudos nos quais explicita ele-mentos da intertextualidade nietzschea-na, destacando o diálogo com as tradiçõespoética, filosófica, científica e religiosa,sobretudo no que toca o cristianismo, obudismo e o zoroastrismo - cujo estudo,afirma, estava em voga na Europa doséculo XIX: “Nos cinquenta anos antes dapublicação do Zaratustra, aparecerammais de vinte livros sobre o Zend-Avesta eseu inspirador”.

Inscrito na fronteira entre literatura efilosofia, “Assim falou Zaratustra” apre-senta as ideias capitais de Nietzsche:eterno retorno, super-homem, vontade depoder. O livro se inicia com a notícia damorte de Deus, termo que delineia afalência das tábuas de valor que até entãogarantiam coesão moral e sentido ci-vilizatório à sociedade europeia. Diantedo fenômeno, ao homem se impõe atarefa de transvalorar todos os valores,assumindo-se como legislador autônomode suas ações e não mais como de-pendente de normas heterônomas ba-seadas em ilusões transcendentais.

Escrito entre 1883 e 1885, não édesprovido de uma trama, mas com-põe-se basicamente pelos discursos de seuprotagonista – na verdade, um tipo quecaracteriza as vicissitudes epocais do pro-cesso de “mudança de pele” da huma-nidade ocidental, que se arrasta, ainda,em nossos dias.

Limitarei os comentários a seguir àprimeira das quatro partes da obra, queapresenta o retorno de Zaratustra à vidacitadina, aos 40 anos de idade, depois deuma década de total isolamento mon-tanhês. Trata-se de trajetória idênticaàquela vivenciada pelo Zaratustra persa(em grego, Zoroastro), líder religioso his-tórico (entre XII e VI a.C), do qual Niet-zsche toma o mote do livro: “Zaratustrafoi o primeiro a ver na luta entre o bem eo mal a roda motriz na engrenagem das

coisas – a transposição da moral para oplano metafísico, como força, causa, fimem si, é obra sua. [...] Zaratustra crioueste mais fatal dos erros, a moral: emconsequência, deve ser também o pri-meiro a reconhecê-lo”, afirma em seuEcce homo (“Por que sou um destino”, §3). Em uma nota de “Assim falou Za-ratustra”, o tradutor destaca que tambémBuda e Jesus Cristo viveram, aos 30 anos,o impulso de assunção de suas tarefasmessiânicas.

MetafísicaFixando-se na operação de descons-

truir um “mundo”, a primeira parte dolivro confirma a morte de Deus e agestação do super-homem (ao termo ale-mão Übermensch, formado pela pre-posição über – “acima de”, “além de” – epelo substantivo Mensch – “ser humano”–, Rubens Rodrigues Torres Filho ofereceua alternativa além-do-homem), apresen-tando-os como dois estágios históricosinerentes ao movimento de superação etransvaloração do homem niilista pla-tônico-cristão, constituído pelo idealismomoral soteriológico, cuja efetivação seelabora tanto no registro religioso comono filosófico-científico. Trata-se, portanto,do ataque à fórmula metafísica – pla-tônico-cristã – de binarização do real emmundo verdadeiro e mundo falso, mundodo ser e mundo do devir, mundo do beme mundo do mal, concepção que, à luz deNietzsche, gera a ilusão de uma panaceiada ciência e da religião, segundo a qual oconhecimento da essência da realidadepode redimir o homem do mal e do erro,estabelecendo uma existência sem con-tradição, sem dor, sem morte, sem con-flito: solução total, paz perpétua, pazeterna. Para Nietzsche, portanto, o quecaracteriza a metafísica “é a crença nasoposições de valores.” (“Além do bem e domal”). Por isso o filósofo ficcionaliza umZaratustra que volta a atuar, mas emsentido contrário à sua criação original,dessa vez trabalhando para desfazer acrença em tais oposições.

Mostrar esse movimento transvalora-dor, alimentando e promovendo as con-dições para seu desenvolvimento, foi atarefa empreendida por Zaratustra aolongo da movimentação do Prólogo e detoda a primeira parte: “‘Mortos estãotodos os deuses: agora queremos que vivao super-homem!’ – que esta seja um dia,

no grande meio-dia, a nossa derradeiravontade! –” Ao dizer isso (“Da virtudedadivosa”), já carente do próprio silêncio,volta Zaratustra para a solidão de suacaverna, no alto da montanha.

Na cidade, denominada “A vaca ma-lhada”, ficam sem mestre os discípulos queo acompanharam em seu périplo urbano,sendo afetados pela destruição operadanos 22 primeiros discursos proferidos porele, nos quais dinamitou o horizonte dainterpretação dualista erguida pela me-tafísica e pela religião. É o golpe fatal emideias capitais para a formação do Oci-dente – como os conceitos de subje-tividade, conhecimento, virtude, vida eter-na, corpo e alma, felicidade, entre outros –que seus interlocutores devem agora seesforçar para digerir.

A primeira parte do “Zaratustra” abala,portanto, o procedimento metafísico dededução do condicionado a partir doincondicionado, deixando vazio o lugar do

fundamento do real, isto é, não nomeandoa origem inominável, e, assim, buscandoapontar o absurdo de uma razão que, porquerer razão a qualquer custo, precisaencontrar causas primeiras das quais tudose possa deduzir, forçando na linguagem anomeação teológicado infinito (Heideggerindica que a metafísica se constitui on-to-teologicamente, pois se destina à de-terminação da unidade do todo).

A tarefa, por si só avassaladora, an-gustiante e absolutamente transformado-ra, na medida em que consiste na di-namitação de todos os ídolos que sus-tentaram o destino ocidental do ser, di-rige-se à constituição de novas “raízes”para a existência humana no mundo, e deum novo solo no qual se possa fincá-las.Apresentada no Prólogo, a figura do ere-mita beato à procura de raízes na florestapode funcionar como imagem de umdivisor de águas: de um lado, o desesperoniilista, traduzido na busca por um fun-damento seguro e inabalável para o real;de outro, a locupletação desse niilismocomo possibilidade da criação de metashumanas para o destino de um mundo jásem Deus, ou seja, o empenho em es-tabelecer um fundamento trágico capaz deabrir mão da vontade de verdade por meioda qual a tradição rangeu os dentes contratudo que não é eterno.

Para conviver, pois, com essa primeiraherança de Zaratustra, seus discípulosprecisam fazer valer a dimensão afetiva,a unidade fisio-psico-cosmológica docorpo, pois não obterão pela via teórica acompreensão do novo modo de pensar esentir experimentado, expresso e cons-truído, paulatina e incessantemente, pe-lo laboratório de si mesmo que é Za-ratustra, tipo caracterizado por colocarem jogo a dinâmica complementaridadeentre construção e destruição como ori-gem da criação de valores humanos,demasiado humanos.

Filosofia universalÉ fundamental que tenhamos sempre

em conta o fato de “Assim falava Za-ratustra” não ser absolutamente um livroteórico-conceitual, mas, ao contrário, umexercício de pensamento afetivo (ou umexercício afetivo de pensamento) acercada indizível essência da realidade. Isto é,“Zaratustra” é um texto que foge do modoconceitual e lógico dos sistemas fi-losóficos como o diabo da cruz, ex-

perimentando a poética do vir a ser doreal em sua dimensão mais abissal,

dionisíaca e silenciosa, gestada de modopré-representacional, pré-imagético epré-conceitual. Não se trata, pois, nostermos de Kant, de uma obra de filosofiaescolar (Schulphilosophie), técnica,erudita e acadêmica, ligada ao ensino datradição filosófica, mas da realização deuma filosofia universal (Weltphiloso-phie), na qual os problemas fundamentaisda existência humana são retomados, demodo a se poder “assumir uma posiçãoético-política no debate da cidade, noespaço público comum aos cidadãos”, con-forme as palavras da Profª. Jeanne MarieGagnebin, num artigo intitulado “As for-mas literárias da filosofia”.

A concepção de um homem além dohomem do humanismo se coaduna comuma nova língua, uma nova voz, umanova audição, uma nova sensorialidade.É contra a dessensualização do homem

moderno, decorrente de seu processounilateral de intelectualização, que sevolta a linguagem do “Zaratustra”, cujaforma de expressão manteve-se única,não tendo sido repetida por Nietzsche,mas chegou a ser destacada por ele comoo prelúdio da sedimentação de suasconcepções mais radicais e como o maiorpresente já dado à humanidade.

“Zaratustra” substitui a teoria do co-nhecimento moderna (que, fundamen-tada na oposição entre sujeito e objeto, fazdo homem “pedaço, enigma e apavoranteacaso” – ZA, “Da redenção”) por umadoutrina dos afetos (“Os pensamentos sãosignos dum jogo e dum combate de afetos:sempre estão ligados às suas raízes ocul-tas” – Nietzsche, citado por Patrick Wotlingno ensaio “As paixões repensadas: axio-logia e afetividade no pensamento deNietzsche”), apresentando uma concepçãode linguagem segundo a qual os “nomesdo bem e do mal” são “símbolos” de

estados fisiológicos determinados: “nãoenunciam, apenas acenam. É tolo quemdeles espera o saber!” (ZA, “Da virtudedadivosa”).

Os termos que transportam o espíritoda moral – bem e mal – são vistos aí comoalusões ao estado fisiológico de seus cria-dores, seguidores e fomentadores. Nãosão, pois, entes autônomos, nem fatosmorais, nem significados, mas interpre-tações possíveis de mundo, ou seja, rea-lizações possíveis, a partir de metáforas docorpo (Eric Blondel, “Nietzsche: a vida e ametáfora”); não são, portanto, realidadesontológicas a serem conhecidas, mas si-nais genealógicos de tipos humanos, deformas de agenciamento fisiológico, sejapelo predomínio da afirmação da finitude,como postula o “Zaratustra”, seja pelo danegação da finitude, como procedeu, se-gundo Nietzsche, todo o conhecimentoocidental. Eles não são nenhuma rea-lidade transcendental, mas vêm a ser,

desde uma escuta do corpo, entendidocomo campo de batalha de pulsões noqual se hierarquiza a multiplicidade – enão mais como na fórmula tradicional:substância extensa organizada mecani-camente em oposição à imaterialidadepensante da alma.

“Novos caminhos sigo, uma nova falame vem; como todos os criadores, can-sei-me das velhas línguas. Meu espírito jánão deseja caminhar com solas gastas”,afirma Zaratustra no discurso “O meninocom o espelho”. Um novo corpo, portanto,demanda uma nova voz, uma nova fala,uma nova audição, uma nova língua, umanova sensorialidade. Talvez essa seja agrande pista para o sucesso de um mer-gulho criativo em “Assim falou Zaratustra”,originado da transformação da capacidadeauditiva de seu autor e pensado por elecomo música (Ecce homo, “Assim falouZaratustra”). Não por acaso, o filósofoafirmou, em carta a Georg Brandes(27/3/1888): “Sem música, a vida seriapara mim um erro” (citado por Paulo Césarde Souza no “Sumário cronológico da vidade Nietzsche” que abre sua tradução doEcce homo e encontrado, também, emCrepúsculodos ídolos, “Máximase flechas”,§ 33: “Sem música a vida seria um erro”).

Encerremos com um exercício de ave-riguação dos ganhos que nos pode tra-zer para a compreensão do projeto deZaratustra a seguinte passagem de “Ocaso Wagner: um problema para mú-sicos”, escrito por Nietzsche em 1888:“Já se percebeu que a música faz livre oespírito? Que dá asas ao pensamento?Que alguém se torna mais filósofo,quanto mais se torna músico? (...) –Acabo de definir o pathos filosófico. – Ede súbito caem-me respostas no colo,uma pequena chuva de gelo e sapiência,de problemas resolvidos... Onde estou?– Bizet me faz fecundo. Tudo o que ébom me faz fecundo. Não tenho outragratidão, nem tenho outra provapara aquilo que é bom.”

Friedrich Nietzsche em 1869: autor apresentou suas ideias capitais em texto situado na fronteira entre literatura e filosofia

ASSIM FALOUZARATUSTRA – Um Livropara Todos e paraNinguémFriedrich Nietzsche. Trad.:Paulo César de Souza.Companhia das Letras. 360páginas. Quanto: R$ 42>

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12PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,26 DE MAIODE 2012

ficçãopor BRUNELLA FRANÇA; ILUSTRAÇÃO: COLETIVO PEIXARIA

DE AMOR E DE SOMBRAS“Meu sentir por ela parecia crescer dentro de meus sonhos, sob as pálpebras unidas, aoritmo de sua respiração”, revela o eu lírico deste conto sobre paixão, encantamento e dor

Sentada sobre as pernas naareia úmida da praia, dequando em vez, uma ondamais atrevida vem lam-ber-me as coxas. Em fren-te aos olhos, o mar. E tudo

que o oceano me inspira. Mais dis-tante, no horizonte, acompanhoatenta o nascer de uma tempestade.Se parece com as minhas, um ajun-tamento de coisas, um atrito, fa-gulhas e trovões.

A minha cabeça em seu ombro.O passado permanece atrás de mim

como uma casa onde eu morava. Cons-truiu em meu íntimo sua morada. A portaera minha boca; as paredes, meus braçoseas janelas,meusolhos.EscreviAMORnaporta daquela casa para que jamais meperdesse de seus telhados castanhos epara que o calor do colo dela não meabandonasse.

A sua boca em meus olhos.Meditava, mesmo de olhos abertos.

Os lábios dela formavam as palavras. Apalavra e o beijo eram um só. E bei-jei-lhe os lábios onde o mar estava. Eladizia meu nome, sussurrava-o qual es-puma branca se desfazendo na areia.Deixava-se admirar, amava pela ver-tigem do amor, mas não se deixava ver.Sabia de cor cada gesto, cada olhar,cada segredo de mulher apaixonada.

Os meus cabelos nos dedos dela.O rosto dela era pensativo, imo-

bilizado na sombra dos cabelos. Cu-riosidade e desejo em partes iguaiseram as chamas que lhe iluminavam aface. Mas eu gostava do sossego da-quele colo, o regaço onde se iniciavamtodas as minhas angústias.

O meu corpo tremia tanto...Minha boca junto à dela formava pa-

lavras que eu desconhecia. O que lia naclarividência de seus lábios? Era o meufuturo que ela carregava naquele espaçoaberto por onde o espírito respira. Sim,ela gostava. O problema é que a pers-pectiva de ter um relacionamento não eradas mais entusiásticas. Não que fossecontra. Mas bastava.

As nuvens carregadas, outrora dis-tantes, se aproximam da orla.

Tinha medo que ela ouvissemeu coração a bater.

Procurava-lhe a alma e ela esvanecia.Deitava ao seu lado, queria ver-lhe adivisão dos poros. Meu sentir por ela

parecia crescer dentro de meus sonhos,sob as pálpebras unidas, ao ritmo de suarespiração. E ela detestava a força que um“eu te amo” exercia sobre si. Não dis-punha das armas para lutar contra aquelecárcere sentimental a que se obrigava.

A minha boca em seus dedos.Sentia a inspiração se aproximar a

cada espasmo. Novos sentidos se ex-pandiam a partir de minhas coxas. Elapreferia ignorar palavras suaves e, emseu lugar, buscava o prazer de umlibertino e pensava numa forma de sedespedir sem muitos estragos. Masromper laços é doloroso...

A cabeça dela em meu colo.Dominava as sombras de toda a escala

de cinzas. Mais: fazia-se de sombra paramelhor ver a luz. E eu ansiava por aquelavida escondida sob sua pele. Sentia comose não houvesse sentido eu estar onde elanão estivesse também.

Os olhos dela em meus olhos.Precisava do abraço e dos passos dela

ao lado dos meus. E não havia nenhumanecessidade de esconder, de me esconder.Nenhuma necessidade de escuridão ouluz. Queria apenas vê-la como era.

O sol do nosso tamanho pelasfrestas da veneziana.

Queria ser como ela, conseguir amartudo de uma vez. Ainda não sabia, porém,que todas as paixões são uma, e os objetosdela ficção. Estendi os braços sem entenderque ela não precisava do abrigo de mim.

Os braços dela em minha cin-tura.

Gostava de vê-la colher rosas nojardim e oferecê-las à Lua. Havia umbrilho cósmico em seu olhar que mederretia. Jamais fui imune a estrelas...

A sua boca na minha.Desde então, nunca mais houve nin-

guém. Aquele amor apagou o mundo, omeu e os demais, todos construídos emmim e do lado de fora. Não bastavadizer “eu te amo”. Tanta coisa se podia(e pode) ocultar em três palavras...

Estava escuro.O luto do amor tornou-me apenas

uma pessoa, uma concha partida. Etudo tornou-se somente mar. E sersomente mar já não é o bastante.

Havia só a luz do aquário aolado do toca-discos...

Ela queria os raios e a trovoada.Fecho os olhos, deixo cair na areia umsorriso e corro de encontro às ondas.

Documento:AGazeta_26_05_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_12.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:24 de May de 2012 20:35:44