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VITÓRIA, SÁBADO, 7 DE JANEIRO DE 2012 www.agazeta.com.br Pensar O exemplo jovem Cinema TONI VENTURI TRATA QUESTÕES EXISTENCIAIS COM DELICADEZA. P ágina 4 Música VERA DA MATTA CANTA COMPOSITORES LOCAIS E FAZ HOMENAGEM AO BRITZ. Página 5 Ficção CONTO INÉDITO DE LEANDRO REIS PERCORRE O LADO SELVAGEM DA CIDADE. Página 12 ARTIGOS DISCUTEM PROTAGONISMO JUVENIL E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A JUVENTUDE Páginas 6, 7 e 8 Entrelinhas CENÁRIO DE MEDO COSTURA O ENREDO DO ROMANCE NÊMESIS”, DE PHILIP ROTH. Página 3 A ARTE E A CIÊNCIA SEGUNDO CALVINO Rita de Cássia Maia analisa a obra do escritor que fez da literatura uma aventura do conhecimento. Páginas 10 e 11

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VITÓRIA, SÁBADO, 7 DE JANEIRO DE 2012www.agazeta.com.brPensar

O exemplo jovem

CinemaTONI VENTURITRATAQUESTÕESEXISTENCIAISCOMDELICADEZA.Página 4

MúsicaVERA DAMATTA CANTACOMPOSITORESLOCAIS E FAZHOMENAGEMAO BRITZ.Página 5

FicçãoCONTO INÉDITODE LEANDROREIS PERCORREO LADOSELVAGEMDA CIDADE.Página 12

ARTIGOS DISCUTEM PROTAGONISMO JUVENIL EPOLÍTICAS PÚBLICAS PARA A JUVENTUDE Páginas 6, 7 e 8

EntrelinhasCENÁRIODE MEDOCOSTURA OENREDO DOROMANCE“NÊMESIS”, DEPHILIP ROTH.Página 3

A ARTE E A CIÊNCIASEGUNDO CALVINORita de Cássia Maia analisaa obra do escritor que fezda literatura uma aventurado conhecimento. Páginas 10 e 11

Documento:AGazeta_07_01_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_1.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:05 de Jan de 2012 18:56:02

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2PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,7 DE JANEIRODE 2012

marque na agenda prateleiraquempensa

Maninho Pachecoéjornalista,designergráficoepublicitá[email protected]

AndréiaLimaéespecialistaemJornalismoCultural [email protected]

PauloGoisBastoséprodutoreeditordeconteúdomultimí[email protected]

ErlonJoséPaschoalésubsecretá[email protected]

NayaraLimaéescritoraegraduandaemPsicologiapelaUfes.www.nayaralima-versoeprosa.blogspot.com

RaquelHenriqueé formadaemAdministraçãoeestudantedeJornalismo. [email protected]

WandaMariaAlckminépoeta,escritoraemembrodaAcademiaEspí[email protected]

RitadeCássiaMaiaémestreemEducaçãoedoutoraemCiê[email protected]

LeandroReiséestudantedeJornalismoeestáescrevendoumlivrosobrerock’n’roll.Blog:leandrosr.blogspot.com

O Eterno MaridoDostoiévskiNeste romance publicado em1870, Dostoiévski (1821-1881)conduz seus personagenspelo fio tênue da dúvida aopromover um surrealencontro entre um homemtraído e o ex-amante de sua

falecida mulher. Repleta de sarcasmo, anarrativa perpassa questões que mais tardeseriam objeto de estudo da psicanálise.

176 páginas. L&PM Editores. R$ 14

Páginas do Futuro -Contos Brasileiros deFicção CientíficaBráulio Tavares (org.)A coletânea selecionadapelo escritor e compositorparaibano reúne 12 contosde autores de diferentes

épocas, como Joaquim Manuel deMacedo, Rubem Fonseca e Fausto Fawcett,com ilustrações de Romero Cavalcanti.

152 páginas. Casa da Palavra. R$ 34,90

A Ascensão daClasse CriativaRichard FloridaO estudiosonorte-americano revelaquem são os 18 milhõesde brasileiros e 38 milhõesde norte-americanos que

estão redesenhando a economia mundiale produzindo mudanças profundas nomodo de trabalhar e consumir.

452 páginas. L&PM Editores. R$ 48

O Xangô deBaker StreetJô SoaresVersão econômica doromance “cômico-policial”em que Jô Soares traz odetetive Sherlock Holmes aoBrasil para investigar o que

parecia um pequeno e discreto caso imperial.

192 páginas. Companhia das Letras. R$ 28

LetrasCapixaba eleita para a Academia MineiraNascida em Vitória, a escritora Carmen SchneiderGuimarães foi eleita em dezembro último para a AcademiaMineira de Letras. Entre seus livros, destacam-se ospremiados “Corpo Molhado” e “As Cinco Verdades”.

TelevisãoCanal exibe especial Ingmar BergmanO Telecine Cult homenageia em janeiro o cineasta sueco IngmarBergman, que morreu em 2007, aos 89 anos. “O Ovo daSerpente” (1978) abre hoje a programação, às 22h. Até o fim domês serão exibidos outros clássicos do diretor, sempre aos sábados.

12de janeiroAline Dias lança “Vermelho” em VitóriaO lançamento do primeiro livro da jornalista e escritoraserá na próxima quinta, às 19h30, no Espaço Coletivo,Rua Professor Baltazar, 152, Centro. “Vermelho” conta ahistória de Giordano, um tradutor-fantasma que éapaixonado por sua editora e envolve-se com a filha dela.

19de janeiro“Um Canto Solidário” volta ao Carlos GomesA segunda edição do espetáculo dedicado à Tropicália terá rendanovamente revertida para entidades de combate e prevenção àAids. Os ingressos – R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia) – podem seradquiridos na bilheteria do teatro, a partir do dia 11.

José Roberto Santos Neveséeditor doCaderno Pensar, espaço para adiscussão e reflexão cultural que circulasemanalmente, aos sábados.

[email protected] VOZES DAS JUVENTUDES

Historicamente, os jovens são propulsores de grandesmudanças sociais e comportamentais no mundo, vide o Maiode 68 e a Primavera Árabe. Mas qual será o perfil dajuventude brasileira do século XXI? Nas páginas 6 e 7, PauloGois Bastos tenta responder a essa questão a partir dapercepção de que não há uma só juventude, mas sim váriasjuventudes, cujos interesses podem se diferenciar conformegênero, classe, etnia, orientação sexual, nacionalidade ereligião. Editor da revista “Nós”, publicação do programaRede Cultura Jovem, ligado ao governo do Estado, Gois

identifica alguns aspectos comuns à nova geração, citando oCircuito Fora do Eixo e a revista “Viração” como exemplos deprotagonismo juvenil que tendem a romper com a atuallógica de funcionamento da indústria cultural. Complementaessa linha de raciocínio o artigo de Erlon José Paschoal sobrepolíticas públicas para a juventude. No campo literário, Ritade Cássia Maia nos brinda com uma análise aprofundada daobra de Italo Calvino, tendo como mote a reedição do livro “AEspeculação Imobiliária” (1957). Ótimas reflexões paracomeçar um ano que nasce cercado de esperança.

Pensar na webConfira faixasdoCDdeVeradaMatta,trailerdo filme “Estamos juntos”e trechosde livroscomentadosnestaedição,nowww.agazeta.com.br

PensarEditor: José Roberto Santos Neves;EditordeArte:Paulo Nascimento;Textos:Colaboradores;Diagramação:Dirceu Gilberto Sarcinelli;Fotos:Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações:Editoria de Arte;Correspondência: Jornal

A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493

Documento:AGazeta_07_01_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_2.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:05 de Jan de 2012 18:42:27

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3PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

7 DE JANEIRODE 2012

entrelinhaspor MANINHO PACHECO

NOTÍCIAS DE UMAGUERRA PARTICULAR

Em “Nêmesis”, Philip Roth retrata o horror provocado pela disseminação da poliomielite entre a população de sua cidade natal

NÊMESISPhilip Roth. Tradução:Jorio Dauster. Companhia dasLetras. 200 páginas.Quanto: R$ 36

Uma carreira premiadaDo Pulitzer ao Man Booker PrizeEm 1997, Philip Roth ganhou o prêmio Pulitzerpor “Pastoral americana”. Em 1998, recebeu aNational Medal of Arts na Casa Branca e, em2002, conquistou a mais alta distinção daAmerican Academy of Arts and Letters, a GoldMedal in Fiction. Recebeu duas vezes oNational Book Award e o National Book CriticsCircle Award, e três vezes o prêmioPEN/Faulkner. “Complô contra a América” foipremiado pela Society of American Historiansem 2005. Roth recebeu dois prestigiososprêmios da PEN: O PEN/Nabokov (2006) e oPEN/Saul Bellow (2007). E, em 2011, ganhou oMan Booker International Prize. É o únicoescritor americano vivo a ter sua obrapublicada em edição completa pela Library ofAmerica.Fonte: Companhia das Letras

Um poliovírus medindocerca de 24 nanômetrosvaga no ar após ser ex-pelido pelo espirro de umcorpo doente. Sua traje-tória visa exclusivamente

ao hospedeiro humano. Quando o en-contra e o infecta por via oral, porexemplo, segue direto para a correntesanguínea rumo a uma célula. Ao en-contrá-la, é preso por receptores atéque sua capa se rompa e libere a cadeiade RNA para o interior celular. A doen-ça entra em período de incubação.Vírus e defesa do organismo iniciamuma luta devastadora.Já no núcleo celular, o RNA agressor

migra para o ribossomo dominando-o eforçando-o a produzir réplicas. Com areprodução acelerada, as células hos-pedeiras incham, explodem e liberammilhares de novos vírus novamente paraa corrente sanguínea, de onde seguempara o intestino, bulbo ou sistema ner-voso central. Ao receber os sinais dainvasão, a medula óssea passa a produzircentenas demilhares de glóbulos brancospara combater o elemento estranho. Fe-bre intensa, diarreia, rigidez na nuca ecomprometimento dos movimentos sãoalguns dos sinais de que os glóbulosbrancos estãoperdendoabatalha.Algunsdesses vírus já alcançaram os núcleosmotores, atingindo áreas do sistema ner-voso responsáveis pelo comando da res-piração e dosmovimentos, sobretudo dosmembros inferiores. Em menos de ummês, o corpo doente desenvolve os pri-meiros sintomas daquilo que virá a serdiagnosticado como poliomielite.No verão de 1944, esse inimigo di-

zimou mais americanos em território pá-trio que as forças do Eixo nos campos decombate da Segunda Guerra. Um dosmaiores escritores norte-americanos vi-vos, Philip Roth estava lá, tinha noveanos, à época, e uma infância marcadapelo pânico provocado pela epidemia. “Édifícil imaginarmos um mundo sem va-cinaspara tratardoenças comoapólio. Euvivi aquele mundo e o efeito sobre mimfoi devastador”, disse o autor de “Nê-mesis”, sua mais recente novela.O livro retrata o horror provocado

pela disseminação da poliomielite en-tre a população de sua Newark natal,emNova Jersey, palco de outros dois deseus romances, “Complô contra a Amé-rica” (2005) e “Indignação” (2009).E é nesse cenário de medo que surge o

personagemque irá costurar o enredo atéseu desfecho desconcertante: EugeneCantor. O jovem professor de educaçãofísica para crianças é um homem es-sencialmente bom, mas marcado por um

múltiplo e obsessivo sentimento de culpa.Míope, é impedidode iràguerra. Sente-sediminuído pelo fato de ser o único jovemna cidade enquanto seus pares damesmaidade pegam em armas. Culpa-se por nãoreunir condições físicas para tal. O con-tato com as crianças é seu alento. Até queum poderoso inimigo invisível invadeNewark e começa a vitimar uma a uma ascrianças para as quais dedica exclusivadevoção. Cantor, então, deflagra suaguerra particular contra a poliomielite.Mas não dispõe de recursos para dar-lhecabo. Resta-lhe praguejar contra o mal. Echega a Deus, o criador do vírus, paraCantor o único responsável. Contra Elevocifera: “Por que logo as crianças?”.Sua namorada Márcia o convence a

abandonar Newark e subir as montanhas,onde reina a paz. Aparentemente. Re-lutante, aceita o convite, não sem antes seconsumir por ainda mais culpa. Con-sidera-se um desertor por ter abandonadoseus alunos em meio à insana guerracontra a pólio. Mas seus medos, culpas eangústias estão apenas começando. Suabatalha pessoal contra a própria existênciacaminha para um final surpreendente.Trigésimo primeiro romance de Roth,

“Nêmesis” forma junto com “Homemcomum” (2007), “Indignação” (2008) e“Humilhação” (2011) uma espécie detetralogia de rápidas novelas, semprecom um protagonista sob uma situaçãode ameaça (vírus, morte, guerra, de-crepitude) sem qualquer controle sobreseu destino. Para um autor conhecido,sobretudo, por seus longos romances, aexemplo de “Complexo de Portnoy”(1969) e “Pastoral americana” (1998), ocurto e contundente “Nêmesis” se apro-xima em síntese e impacto do seu pri-meiro livro, “Adeus, Columbus” (1959).Cortazar dizia que o conto bem-su-

cedido vence por nocaute e o romance,por pontos. Roth consagra a analogia doescritor argentino com os dois tipos devitória. Só não vence a relutância daAcademia Sueca em lhe conceder apremiação máxima da literatura. O queabsolutamente lhe tira o sono. Em re-cente entrevista concedida em sua casaescondida no meio do mato, em Con-necticut, perguntado se se sente in-justiçado, Roth pede ao repórter quecontemple a natureza ao redor e per-gunta: “E eu lá preciso de umNobelquando tenho tudo isso?”.

Documento:AGazeta_07_01_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_3.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:05 de Jan de 2012 18:41:36

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4PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,7 DE JANEIRODE 2012

Toni Venturi: entre a ficção e a realidade

Uma doença grave, um triângulo amoroso, a solidão e os problemas sociais envolvem atrama do novo filme de Toni Venturi, “Estamos juntos”, grande vencedor do Cine PE em 2011

OS CONTRASTES DEUM DRAMA URBANO

No longa, Leandra Leal vive uma jovem médica interiorana que vai trabalhar na metrópole paulista, onde conhece Cauã Reymond

cinemapor ANDRÉIA LIMA

Na primeira tomada de “Es-tamos juntos” (2011), docineasta brasileiro ToniVenturi, a câmera sobre-voa como um pássaro océu de São Paulo, reve-

lando concreto e inúmeras possibilidadesde vida. O olhar embutido nessas ima-gens logo no início anuncia o tom etéreoe intimista da trama. Também é umconvite para entrarmos em algumasnuances da personagem Carmem (Lean-dra Leal), uma jovemmédica interioranaque foi estudar e trabalhar na metrópolepaulista. O enredo é todo focado em seusmedos, na sua solidão, e em seus pre-conceitos, e como tudo isso é confron-tado por ela após a descoberta de umagrave doença. Um filme que explora comdelicadeza o estranho encontro com apossibilidade de morte. A película, quechegou recentemente em DVD, foi agrande vencedora do Festival de Cinemade Pernambuco em 2011.Como de costume, em suas noites

solitárias, Carmem conversa com umjovem misterioso (Lee Taylor) que sem-pre está por perto quando ela precisa.No diálogo da varanda de seu apar-tamento, alguém constata a inversão docéu da cidade, que com tantas luzes efaróis impede que se vejam as estrelas.“Parece que o céu desabou sobre nossascabeças”, diz a médica. O tom poético éa prévia do drama que ela viverá, acom-panhada apenas de seu companheiro deapartamento, um personagem que podeassumir traços de amigo imaginário,consultor espírita, confessor ou mesmoanjo da guarda. O roteiro não deixaclaro essa relação, o que provoca emmuitos momentos desconforto e con-traste com o resto da trama.

Carmem possui uma vida social quasenula. Morando em São Paulo há pou-quíssimo tempo, ela divide o trabalho deresidente em umhospital público com osestudos para se tornar cirurgiã. Entre aspoucas relações que estabelece com omundo há a do seu amigoMurilo, umDJgay com quem ela se diverte vez poroutra; a do novo namorado, o músicoargentino Juan (Nazareno Casero), aponta de um triângulo amoroso queprovoca uma briga entre ela eMurilo; e ade sua companheira de profissão, a mé-dica Elisa (Débora Duboc). Paralelo aesse mundo, Carmem passa a se con-frontar com um outro quando é con-vidada para fazer palestras em umacomunidade de sem-tetos, liderada porLeonora (Dira Paes).

“Estamos juntos” possui fotografia ri-gorosa que explora diferenciadas visões dacidade de São Paulo durante o dia e suasluzes durante a noite. Os planos fechadospossibilitam uma atmosfera de proximi-dade entre público e atores. É notáveltambém que essa “intimidade” com oespectador se reflita na edição de som,quando a confusão sonora da metrópole éinterceptada por um silêncio absoluto pro-porcionado apenas pelos ouvidos de Car-mem (e repassada ao espectador atravésda edição de som) nos momentos de criseda personagem. Vale destacar as atuaçõesde Leandra Leal, como amédica que se vêdoente, edeCauãReymond,queconseguese desfazer do papel de galã, atuandocomo um homossexual.Sobre o(s) tema(s) de “Estamos jun-

tos”, a atriz Leandra Leal avalia: “É sobrecomovocê reestrutura sua vida apartir dosem controle que é a própria vida”. Já odiretor Toni Venturi prefere pontuar auniversalidade do filme gravado em SãoPaulo. “Poderia ser em Nova York ou emqualquer outra cidade, é um filme sobre aaldeia. Como diz Tolstói, ‘fale sobre suaaldeia para ser universal’”.O fato é que a película tem a cara de

São Paulo e os problemas também(leia-se a greve nos hospitais e o mo-vimento dos sem-teto), mas acaba pornos envolver em conflitos mais gerais,como é o caso de uma doença grave, otriângulo amoroso, a solidão e os pro-blemas sociais. Um filme belo e de-licado, mas que às vezes se perdediante de temas tão divergentes.

FormaçãoDiretor e produtor paulista, ToniVenturi formou-se em 1984 emArtes Fotográficas – Cinemapela University Of Ryerson, noCanadá. Em seguida voltou aoBrasil, onde cursou

Comunicação Social – Cinema, pela USP. Desdeesse período ele transita entre a produção de ficçãopara TV e cinema e a realização de documentários.Hoje, aos 56 anos, é dono da produtora de cinema evídeo Olhar Imaginário, fundada logo após o períodode retomada do cinema brasileiro.

Latitude Zero (2001)Grávida de oito meses, Lena (Débora Duboc) foiabandonada pelo amante, o Coronel Mattos daPolícia Militar paulista. Ela administra um bar debeira de estrada por onde passam caminhõesdiariamente. É quando conhece Vilela (CláudioJaborandy), expulso da PM e procurado pelaJustiça por um crime que cometeu em SãoPaulo. O filme ganhou 15 prêmios em festivaisnacionais e internacionais nas categorias demelhor direção, ator, atriz e arte, além departicipar da 51ª edição do Festival de Berlim,na seção Panorama.

No Olho Do Furacão (TV, 2003)Neste documentário para TV, Toni Venturidivide a direção com Renato Tapajós parafalar sobre a vida clandestina dosguerrilheiros urbanos que foram contra aditadura militar brasileira, nos anos 1960 e1970. A ideia era investigar o cotidiano, osamores, as crenças, os medos e os gestosdos militantes da esquerda radical brasileira.Para isso, foram colhidos 11 depoimentossobre o dia a dia da luta armada nas cidades.O longa serviu de matéria-prima para aprodução de “Cabra-Cega” (2005).

Cabra-Cega (2005)Jovens militantes da luta armada, Thiago(Leonardo Medeiros) e Rosa (DéboraDuboc) sonham com uma revolução socialno Brasil. Após ser ferido por um tiro,Thiago precisa se esconder na casa dePedro (Michel Bercovitch), um arquitetoque simpatiza com a causa. É nessemomento que Rosa passa a ser o únicocontato de Thiago com o mundo. O filme foio grande vencedor do Festival de Brasília eacumulou 25 prêmios nos festivais poronde passou.

Documento:AGazeta_07_01_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_4.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:05 de Jan de 2012 18:42:01

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5PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

7 DE JANEIRODE 2012

ENTRE VÉUS E TUSSORVera da Matta. 10 faixas. LeiVila Velha Cultura e Arte.Produção musical: RodrigoTristão. Quanto: R$ 20.Encomendas: (27) 9965-2800e (27) 3229-1175

falando de músicapor JOSÉ ROBERTO SANTOS NEVES

SAMBAS E BOLEROSFEITOS EM CASA

Hácoisas que só acontecemno Espírito Santo? Talvez.Quando um compositorcarioca canta as belezas doRio de Janeiro, todos oconsideram “cosmopolita”.

Mas quandoomúsico capixaba vai relatarem letra emúsica o seu amor pelo Estado,o Penedo, o Convento da Penha, o Morroda Fonte Grande, os antigos bares doCentro, o folclore, a culinária, não ra-ramente é tachadode “provinciano”, “pie-gas”, ou coisa parecida. Ora, a diferençanão está no ato de cantar a sua aldeia, esim em como cantá-la. Boas canções commelodia, harmonia, ritmo, letra, execuçãoe interpretação sempre terão vez – aqui,ali e em qualquer lugar.Escrevo essas linhas para falar sobre a

cantora Vera da Matta, que só agora,depois de passar dos 60, chega ao seuprimeiro CD solo, “Entre véus e tussor”,lançado com o apoio da Lei de Incentivoà Cultura da Prefeitura de Vila Velha.Figura querida no meio musical, Veratemomérito de ser umaartista gregária,capaz de reunir compositores de di-ferentes gerações em torno de sua voz. Enão tem o pudor de olhar para o lado eperceber que no Estado sobram autorestalentosos, que ela fez questão de re-gistrar nas 10 faixas do álbum.Não se trata de capixabismo, até

porque neste ano Vera preparamais doisprojetos inéditos, sendo um deles de-dicado às canções de Noel Rosa. Ali-nhada com os sambas e os boleros, elapasseia por esses e outros ritmos comdesenvoltura e viés passional. Assimcomo aMarromAlcione – sua influênciaconfessa, como aponta Jace Theodorono texto de apresentação do CD –, Veraexpõe sentimentos sem medo de serfeliz. Ela quer cantar e celebrar a alegriade viver, de preferência rodeada degente que entende do riscado.Entre eles está Francisco Velasco, au-

tor de dois sambas que podem per-feitamente entrar sem pedir licença nasrodas de bambas do Salgueiro ou daPortela. “Jacaré do Papo Furado”, ins-pirada no intérprete da Piedade, EdsonPapo Furado, é uma crônica repleta degraça e malandragem que conta com aparticipação do próprio autor e do ho-menageado. E “Bom mesmo era lá noBritz”, em parceria com o saudoso Mag-no de Assis Brito (Luca), revive o len-dário bar da Rua Gama Rosa, reduto de“artistas, jornalistas, de poetas e sam-bistas” em tempos de repressão. Na letrade Velasco moram vários personagensdesse marco boêmio da cidade, quebateriam palmas para o refrão:

“Todos os bares são bons, mas o Britzfoi melhor!”.Ainda na seara do samba, Vera recebe

Dennise Pontes em “Bem brasileira”,composição de Dennise que bebe nafonte dos mestres João Nogueira e PauloCésar Pinheiro. Aliás, se tivéssemos queelencar outros bambas que servem dereferência para este disco, certamente alista contemplaria os nomes de Candeia,Mauro Duarte, Nei Lopes, Monarco, El-ton Medeiros, Wilson Moreira.De Gegê do Cavaco, capixaba ra-

dicado na Suíça, a cantora apresenta“Submundo”, samba de cunho social quetoca na questão do menor abandonado,tão cara à sociedade brasileira.Na área do bolero, destacam-se a

A LETRABOM MESMO ERA LÁ NOBRITZ (FRANCISCO VELASCOE MAGNO DE ASSIS)

Bom mesmo era lá no BritzPonto de encontro dos boêmios dacidadeReduto de artistas, jornalistas, depoetas e sambistasFantasia misturada a realidadeUma batida no copo, uma novaamizadeQuando se fala no BritzQuase choro de saudades

Zum, Zum, Papo FuradoTerminado em discussãoAquele chopp gelado pra esfriar aexaltaçãoUm grande amor encucadoHá muito guardado no fundo deum coraçãoVinha um canto chorado dedilhadoao violão..Vinha um canto chorado dedilhadoao violão..

Um recanto capixaba no estilomais perfeitoCom todas as suas virtudes e comtodos os defeitosCarmélia se foi pra não ver o nossoBritz morrerPara ela seria pior

Todos os bares são bonsMas o Britz foi melhor!Todos os bares são bonsMas o Britz foi melhor!

faixa-título “Entre véus e tussor” (MariaHelena Dessaune/Elias Borges) e “Vocêolha pra mim” (Etti Paganucci), em quea cantora mostra que as décadas debailes e serestas valeram a pena. Pal-mas também para a direção musical eos arranjos de Rodrigo Tristão, e para aqualidade dos músicos envolvidos nagravação, que, juntamente com o cui-dado na captação, mixagem e mas-terização, proporcionam padrão téc-nico e sonoro ao CD.Talvez a única imperfeição de “Entre

véus e tussor” seja o excesso de ecle-tismo. A incursão pelo samba-rock e pelopop, em “Te amar” (Cecitônio Coelho) e“Quente pra frente” (Guto Neves), des-toa do restante do repertório e com-

AMANDA TRISTÃO/DIVULGAÇÃO

promete a unidade do CD. Vera precisadefinir sua identidade, e a partir deladesenvolver seus projetos futuros.Tudo indica que seu porto seguro é

mesmo o samba de terreiro e de par-tido-alto, enadamelhordoquesedespedirdesta estreia bem-sucedida comumexem-plar típico das melhores exaltações car-navalescas: “Lá vem o povo”, de LuizTrevisan e Aristides Pereira, com direito asaudação às agremiações no melhor estiloda Guerreira Clara Nunes. E assim, semvergonhae semculpa,VeradaMatta cantaa fina flor dos compositores do EspíritoSanto, que muitos capixabas – por pre-conceito, preguiça ou desinformação –ainda teimam em desconhecer. Nãosabem o que estão perdendo.

No primeiro CD solo, Vera da Matta grava compositores locais e lembra o Britz Bar

Documento:AGazeta_07_01_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_5.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:05 de Jan de 2012 18:42:09

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7PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

7 DE JANEIRODE 2012

6PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,7 DE JANEIRODE 2012

INICIATIVAS DA NOVA GERAÇÃO ROMPEM COM A ATUALLÓGICA DE FUNCIONAMENTO DA INDÚSTRIA CULTURAL

artigopor PAULO GOIS BASTOS

A CULTURAJUVENIL COMOUM DIREITO

Para especialista, juventude vive o paradoxo de ter seus valores transformados em mercadoria e, ao mesmo tempo, de ser vítima dos problemas econômicos e sociais, como violência e desemprego

JUNIA MORTIMER/DIVULGAÇÃO

Capa da revista “Viração”, produzidapor jovens de várias partes do país

Quarto congresso do Circuito Fora do Eixo, realizado em São Paulo, em 2011: evento serviu para reforçar as conexões entre os diversos integrantes da rede

Historicamente, os jovenssempre fizeram parte dosmovimentos de vanguar-da e foram protagonistasdas transformações so-cioculturais da Moderni-

dade. São eles que encabeçam as re-voluções estéticas, transgridem valorese tencionam as inovações. Em um jar-gão do mundo do marketing, diríamosque a juventude dita “tendências”. Nãoé à toa que esse segmento social é o alvopreferencial das campanhas publici-tárias, dado o seu poder de consumo ede influência sobre o comportamentodo restante da sociedade. Hoje, mais doque nunca, os jovens são o segmentosocial estratégico para se pensar o mo-delo de desenvolvimento que nortearáas ações da sociedade civil e do Estadoem um contexto no qual o acesso aosmeios de produção e fruição culturalpassam, cada vez mais, pela mediaçãodigital e pelas redes virtuais.Uma forma de perceber o jovem é a

sua representação enquanto um su-jeito em construção que goza de pou-cas responsabilidades, com bastantetempo para as atividades de lazer e embusca de competências para se inserirno mundo adulto. Essa percepção ge-

nérica, mais do que explicar, esca-moteia a enorme diversidade de rea-lidades juvenis e dá conta de repre-sentar apenas os jovens das classesmédias e alta. Por isso, os estudiososdo tema tendem a defender a ideia deque não há uma juventude, mas simjuventudes marcadas e atravessadaspor várias outras categorias, como ogênero, a classe, a etnia, a orientaçãosexual, a nacionalidade e a religião.Tampouco o limite etário resolve a

definição da identidade juvenil. So-ciedades e momentos históricos di-ferentes atribuem distintos limites deidade para aquilo que consideram seruma pessoa jovem. Indo mais adian-te, podemos pensar em culturas ju-venis, ou seja, trata-se de uma ca-tegoria que precisa ter as suas es-pecificidades sociais e suas criaçõesreconhecidas. Por isso, os movimen-tos juvenis reivindicam espaços eações públicas que promovam acessodos jovens aos bens culturais e aosmeios, por meio dos quais, eles pos-sam expressar as suas ideias.É com o fim da Segunda Guerra

Mundial que se formam os padrões decomportamentos dos jovens como co-nhecemos hoje. A partir desse pe-

ríodo, o segmento juvenil passa adispor de maior liberdade e de ummenor controle por parte dos pais. Operíodo escolar é alargado, am-pliam-se os espaços de lazer e osmeios de comunicação passam a ocu-par papel significativo na sociabili-dade e na construção do imagináriojovem. Essa ideia de uma culturajuvenil se propaga internacionalmen-te e tem a chamada da cultura demassa como promotora e espelho doscomportamentos e valores das ge-rações jovens subsequentes.As novas gerações herdam, dão

novos significados, assimilam ou seopõem aos valores, estéticas e formasde comportamento das gerações an-teriores. Por isso, o entendimento des-se percurso geracional é fundamentalpara se compreender as tendências eorientar os projetos de futuro. NoBrasil, a chegada da indústria cul-tural, especialmente com a implan-tação das redes nacionais deTV, “coincide” com a implantação daditadura. A partir daí, a proposta deuma identidade nacional popularorientada pelo pensamento mo-dernista e pelo conceito de an-tropofagia é cerceada pelo patru->

lhamento ideológico. Esse hiatodeve ser pesadamente conside-

rado ao refletirmos sobre a relaçãodas juventudes atuais com osmeios deprodução e fruição cultural.

ParadoxosA condição da atual juventude é pa-

radoxal. De um lado percebemos umajuvenização cultural, em que os valores eatributos tidos como dos jovens são exal-tados, amplamente veiculados pela mídiae, de alguma forma, transformados emmercadoria. De outro, os jovens são afaixa populacional mais vitimizada pelasproblemáticas econômicas e sociais daatualidade, como o desemprego, a evasãoescolar e a violência urbana.Não são poucas as iniciativas que bus-

cam intervir nessa realidade social pormeio da oferta de atividades artístico-cul-turais. Parte dessas investidas continuama partir de um velho pressuposto que, aolongo do século XX, orientou a relação dasociedade e do Estado com o segmentojuvenil: a ideia de “juventude problema”.A concepçãoda juventude comouma fasede transição e de crise orienta o tra-tamento tutelar e cerceador de direitosdos jovens. Há que se pensar a “inserção”do jovem por meio da arte e da culturatendo como orientação a percepção dojovem como um sujeito de direitos in-serido em contextos socioculturais e his-tóricos específicos e, mais do que isso,capaz de refletir e intervir na sua própriarealidade de maneira autônoma.O cenário atual é de uma intensa

hibridização cultural, de um mundo di-

gital cada vezmais próximo do cotidiano,de profundas mudanças na relação es-paço-tempo e de uma intensa flutuaçãoidentitária. Os jovens,mais uma vez, sãoos protagonistas dessas mudanças de va-lores e de percepções. As redes virtuaisagregammilhões de jovens que, de formacontínua, trocam informações e cons-troem um imaginário independente dosmeios massivos de comunicação. Para osavessos à onda digital, esses jovens ape-nas compartilham inutilidades. No en-tanto, não se pode negar a existência deum fluxo informacional com enorme ca-pacidade de interação. As redes virtuaispossibilitam a identificação e o com-prometimento entre as diversas culturasjuvenis, mediam um contínuo relacio-namento e trocas interpessoais, além de

se apresentarem como uma forma aces-sível para dar visibilidade e difundir asmais diversas expressões culturais.

ExperiênciasCom as possibilidades de comuni-

cação e intercâmbio em rede trazidaspela internet e pelas novas mídias, osjovens empreendem ideias e projetosque intervêm nas suas realidades es-pecíficas e geramnovasmetodologias detrabalho. Nessa direção, vale a penaconhecer duas experiências nacionaispotentes de transformação socioculturalque têm a produção cultural e midiáticacomo interface: o Circuito Fora do Eixo(FDE) e a revista “Viração”.Surgido no final de 2005, o Circuito

FDE articula uma rede de produtoresculturais situados em 25 Estados bra-sileiros e no Distrito Federal, e em outrossete países latino-americanos. Tendo amúsica como carro-chefe, essa rede con-ta com 112 pontos de articulação pormeio dos quais são conectados cerca de700 empreendimentos culturais que tro-cam serviços e produtos sob a lógica daeconomia solidária. O FDE tem con-tribuído para constituir um verdadeiroambiente público para a experimen-tação, a produção, a circulação e oacesso aos bens culturais tendo, so-bretudo, o jovem como protagonista.A revista “Viração” é desenvolvida

pela organização paulista ViraçãoEducomunicação. Existente desde2003 e com periodicidade mensal, apublicação é distribuída nacional-mente e aborda temáticas relacio-nadas aos direitos juvenis. O seu con-teúdo é produzido por conselhos for-mados por jovens de 23 unidades dafederação. Em 2005, a experiência darevista desdobrou-se na Agência Jo-vem de Notícias, que envolve diversasinstituições brasileiras e internacio-nais e amplia o espaço para a vei-culação de notícias produzidas a par-tir de núcleos jovens.O FDE e a “Viração” são orientados

pela ideia de produzir da maneira maishorizontal possível por meio de umadinâmica colaborativa de trabalho. Essasiniciativas rompem com a atual lógica defuncionamento da indústria cultural eencaram a comunicação e a cultura comodireitos fundamentais para a efe-tuação da cidadania jovem.

O Fora do Eixo está presente em 25 Estados brasileiros e no Distrito Federal

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Documento:AGazeta_07_01_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_6.PS;Página:1;Formato:(548.22 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:05 de Jan de 2012 18:48:25

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8PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,7 DE JANEIRODE 2012

+ artigo de capapor ERLON JOSÉ PASCHOAL

A LIVRE EXPRESSÃO ATRAVÉS DA ARTEO incentivo a ações culturais produzidas por jovens tem se revelado um instrumento eficaz depolítica pública para esta parcela da população, estimada em 48 milhões de habitantes no país

LOUISE GRIPP/DIVULGAÇÃO

Relva Rodrigues desenvolve atividades voltadas àeducação ambiental a partir da linguagem audiovisual

Aelaboração e a implemen-tação de políticas públicasvoltadas para as juventudesé algo recente no Brasil. ASecretaria Nacional de Ju-ventude e o Programa Na-

cional de Inclusão de Jovens (ProJovem)foram criados em 2005 visando a atendera uma parcela significativa da população,afinal o país tem48milhões de habitantesentre 15 e 29 anos, dos quais 34 milhõesentre 15 e 24 anos. E é justamente nestafaixa etária que se constatam índicesaterradores que vão da falta de formaçãoprofissional à criminalidade, da evasãoescolaràspoucasoportunidadesdeeman-cipação e inserção social. No EspíritoSanto, temos quase 600 mil jovens queformarão em um futuro próximo as basesde uma nova sociedade.Neste âmbito, a cultura tem sido cada

vez mais considerada como um setorestratégico para a socialização, a va-lorização da diversidade e das mani-festações culturais e o fortalecimento delideranças comunitárias queatuamcomoreferências importantes para a constru-ção de futuros saudáveis. Além disso, asatividades artísticas e culturais incen-tivam a busca de conhecimentos, deinovações e de experimentações, carac-terísticas sempre presentes nas novasgerações, e a sensação de pertencimento,tão necessária para a formação de umasociedade mais equilibrada.No Espírito Santo, o programa Rede

Cultura Jovem cumpre um papel sig-nificativo no fomento de processos, ex-pressões e manifestações criativas dosjovens potencializando e ampliando asações juvenis pormeio da cultura, abran-gendo todo o território estadual e oscomponentes múltiplos da identidadecapixaba. Como o jovem, por natureza, éum ser mutante e em constante trans-formação, um dos maiores desafios doprograma é compatibilizar os seus an-seios de liberdade e de autonomia compolíticas públicas democráticas e comresultados mensuráveis.Das inúmeras ações presenciais – com-

postas por editais de incentivo a ma-nifestações culturais diversas, de mostrasdeaudiovisual, pela formaçãodeagentes earticuladores culturais, transmissões aovivo pela web TV, encontros, seminários evárias publicações –, ao Portal Yah, espaçovirtual de convergências, compartilha-

mentos e divulgação de trabalhos e deideias, o programa tem demonstrado umpotencial de crescimento compatível comas necessidades dos jovens contempo-râneos, em um mundo cujas bases dodesenvolvimento assentam nas novas mí-dias e nas inovações tecnológicas que, em

última análise, são sempre culturais.O lançamento emdezembroúltimodo

quarto número da revista “Nós” – con-cebida e realizada por participantes daRede Cultura Jovem – simboliza a forçade mobilização e o significado social deum programa que está apenas come-çando. Tendo a pauta totalmente es-tabelecida por integrantes da RCJ, arevista estimula a elaboração de textoscríticos sobre atividades culturais di-versas, artigos sobre temas pertinentesao universo juvenil, matérias sobre fatosrelevantes da produção cultural das ju-ventudes capixabas e entrevistas comlideranças culturais em ascensão. Nestenúmero, por exemplo, Relva Rodrigues(25 anos), moradora de Patrimônio daPenha, e integrante do Coletivo SextaBásica, cujo projeto foi aprovado nosEditais de Núcleos de Criação da RCJ,fala sobre suas atividades voltadas àeducação ambiental articuladas sobre-tudo a partir da linguagem audiovisual.Neste contexto, vale mencionar aMos-

tra Capixaba de Audiovisual, que neste

ano incluiu a região Sul com a temáticaHistórico-Cultural, atingindo agora 58municípios. A simples possibilidade de seoferecer aos jovens, que habitam regiõesdistantes dos grandes centros urbanos,condições de se expressarem livremente ede semanifestarematravésdaarte resultaem processos novos de abordagem darealidade e de construção do presente. Oestímulo para comunicar os próprios sen-timentos e os de sua comunidade de-sencadeia ações participativas solidárias eaponta para a consciência de outras for-mas de se reelaborar a vida.Os jovens da cidade de Anchieta, que

se saíram vencedores nestaMostra como filme “O Jaraguá”, constituíram-seem um grupo permanente de produçãoaudiovisual apoiado pelo poder públicolocal. Vitória dos jovens e vitória dacultura.Afinal, investir no jovem e na cultura

é investir em nossos potenciais, emnovas formas de desenvolvimento, nacriatividade e no aprimoramentodas relações sociais.

Investir no joveme na cultura éinvestir em nossospotenciais, nacriatividade e noaprimoramento dasrelações sociais”

Oficina de audiovisual promovida pelo programa RedeCultura Jovem: processos novos de abordagem da realidade

Documento:AGazeta_07_01_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_8.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:05 de Jan de 2012 18:55:37

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9PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

7 DE JANEIRODE 2012

poesias

NÓS D’ÁGUAWANDA MARIAALCKMINEu sou filha do mare neta das ondas.Sou a irmã das espumas e dosrespingos.Sou a herdeira do amor d’águaque se acasala no ventoe se recria na areia da praia.Tenho antigos segredosque do meu pai, Netuno, herdei.E das raízes de mãe sábiatrago, na concha guardada,a pérola que cativei.Sou a gota d’água:Às vezes rasa,por outras, profunda.Sou simplesmente,a netada branca espuma.A filha refeitade terrae de mar.

crônicas

PRECE AOS SONSpor NAYARA LIMA

Toca ao longe um telefone, talvez noprédio vizinho, e escuto daqui. É minhaesperança o telefone que toca porque elealerta: há vida em movimento. Não fosseesse barulho insistente das uma e vinte enove da manhã, pouco importaria osgestos de agora. Quando pequena e es-candalizada pelo sentimento de medonoturno do que não se explica, eu erasalva por qualquer barulho de televisãoque viesse da sala pelos corredores atéchegar ao meu quarto. Se alguém decidiapor assistir a TV, uma força veemente mepuxava do abismo do medo: “há vida.Pode dormir tranquila”. Imagino a alegriados inventores da ciência quando emmeio ao grau máximo de criação e in-teligência festejam a descoberta de umnovo som eletrônico no mundo. Mas nãoimaginam os inventores que estão, destemodo, me salvando de mim e da mudez

posta entre as quatro paredes que existemdepois do ventre. O barulho ao longe dotelefone me recupera, me inaugura, meacalenta. O barulho vindo da sala de estarporque era a hora do último jornal do diame revelava bem mais que uma notíciacotidiana.Sãosinais, devida,queumavezemitida no cômodo próximome recuperado vazio inevitável porquehonesto.Muitotenho contra o alarme ensurdecedor docarro que dispara na madrugada. Masdevo a ele o correr até a janela, o abrir decortinas, o me deparar com céu e lualatejando silenciosos no alto, com pedraspequenas e poeiras mudas correndo nobaixo. Geralmente não é bandido o quedispara o alarme incômodo.É um pedregulho do vento, um efeito

pacífico da primavera brindando pneuscom pétalas de flor. Está dado de novo oalarme: a vida posta, estamos salvos, a

mesa pronta, estamos de férias, a cam-painha toca, estamos vivos. Não des-prezo o silêncio acolhedor de quando oseletrônicos não se mostram. Tambémpreciso da mudez no espaço que é a pazda natureza.Mas sei do risco, sei que nãoserá por muito tempo, sei que silênciopor silêncio prefiro o de agora sujeito àsinterferências vivas do século do aqueleoutro sobre o qual pouquíssimo temosconhecimento. Se penso no que queropara este ano de 2012 não ocupo oexagero de uma lista cheia.Basta que entre uma linha e outra na

expressão do tempo, esteja lá longe nomeio da noite um resquício de vida in-comodando o vazio ensurdecedor, que ovento dispare o coração na madrugada,que no prédio vizinho alguém insista emnão atender ao telefonema fora de hora e,embora já não haja na minha sala os quena minha infância assistiam ao últimojornal, queminhacachorra seespante coma sombra domuro eme chame latindo atéque eu feche as portas da varanda.Que a vida insista, descaradamente,

na minha cara. Que seja indiscreta, avida, com o meu tempo na terra.

NEM AÍ PRO NEMpor RAQUEL HENRIQUE

Se por sorte ou azar ainda não sei, massempre coincide de eu estar no Rioquando a polícia decide fazer suasmega incursões tele-espetacularizadasnas favelas cariocas.Em novembro de 2010, foi no Com-

plexo do Alemão. Depois de uma ma-drugada de muita tensão, assisti aoinício da invasão às 8h da manhã. Deonde eu estava, dava para ouvir e ver amovimentação dos helicópteros envol-vidos na ação. Grávida de seis meses,acompanhava um telejornal para saberse daria para ir a um casamento. O dialongo terminaria cheio de ataques eincêndios a carros e ônibus.Um novembro depois, e a mesma

novela. Dessa vez na Rocinha. Só que-ríamos ver a família, mas acabaram decapturar o Nem. Com o chefe do morropreso, não haveria melhor momentopara a “pacificação”. Bom pra mídia,ruim pramim. Difícil saber o que é paraa Rocinha.

Difícil mesmo. Poucos contextos vi-venciam tão intensamente a hipocrisiadas autoridades públicas quanto asfavelas cariocas. Antes de conhecermeu marido, achava que bandido erabandido e polícia era polícia, e pontofinal. Ele não. Nascido e criado noJacarezinho – segundamaior favela daAmérica Latina, atrás só da Rocinha –,cansou de ver o que chamava de “umenorme teatro”.Os policiais despontavam na en-

trada do morro, um chefe do tráficosinalizava para aguardarem por lá, eos traficantes se escondiam. Um novosinal, a viatura entrava, recebia seu“faz-me rir”, para então sair. Simplesassim.Na Rocinha, Nem seguia sua própria

ética. Quando sua filha, aos dezmeses,teve uma doença rara e a saúde públicanão o assistiu, o tráfico bancou. E elepagou. Entrou no “movimento”, e lácresceu e chefiou. A jornalista Ruth de

Aquino o entrevistou e foi criticada pornão satanizar o homem por trás domito de “inimigo número um da so-ciedade carioca”.Ruth descreveu um “presidente”

(como Nem era tratado) que não acei-ta comercializar crack. Que é fã doLula, porque as obras do PAC tiraram50 dos seus homens da criminalidade.Que sabe que, se os seus jovens ti-vessem as mesmas oportunidades dosfilhos dos ricos, iriam para a faculdadee não para o tráfico.Longe de apoiar a ética e a moral

duvidosas de um traficante, o preço que acomunidade paga nesses contextos é al-tíssimo.Ostatusquodo tráfico semantémàs custas da mordaça imposta aos mo-radores, que têm olhos mas não veem, eouvidosmasnãoouvem.Engraçadoéqueisso lembra o lado de cá, nos governos.Aliás, é injusto fazer uma comparaçãodessas.Nanossapolíticanão temnenhumNem. Só gente grande. Bem grande.

BARCA AVELASou barca de vela brancasolta no mar-oceanoconduzida pelos ventos.

Barca de bandeira rotaque ainda traz no seu mastroos farrapos das tormentas.

Sou marazul, maraberto,onde a vela voa livresobre as ondas desiguais.

Barca que navega semprepor achar o mar profundomais seguro que o cais.

VIVO VERSOSEscrevi poesiavivi meus versos.Ao lê-los,percebi que a peleque revestiu minha vidaabrigava agoraa minha escrita.

INVERNOPodaram-mepois insisti nas mudanças.Raízes?Eu já as tinha.Vi entãobrotos meusrenascendo em pésde acácias e flamboyants.

Documento:AGazeta_07_01_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_9.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:05 de Jan de 2012 18:43:21

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11PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

7 DE JANEIRODE 2012

10PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,7 DE JANEIRODE 2012

ensaiopor RITA DE CÁSSIA MAIA

A CONTEMPORANEIDADE NAPOÉTICA DE ITALO CALVINO

JERRY BAUER

Seduzido pelas combinações da lógica com a imaginação, escritor aprofunda e utilizaos recursos da arte e da ciência para fazer da literatura uma aventura do conhecimento

“ TRECHOEm Quinto, a preocupação denão ter no mundo nem adécima parte da verbanecessária para pagá-los, e oatávico rancor dos agricultoreslígures parcimoniosos eantiestatistas contra o fisco, eainda a ineliminável acrimôniados honestos que seconsideram os únicos seresmassacrados pelos impostos,“enquanto os grandes, como sesabe, sempre conseguemescapar”, e mais a suspeita deque houvesse naquele labirintode cifras uma arapuca evitável,mas que só nósdesconhecemos, todo essetorvelinho de sensações que ospálidos carnês de impostossuscitam nos corações doscontribuintes mais imaculadosse misturava com a consciênciade ser um mau proprietário,incapaz de fazer render ospróprios bens e que, numaépoca de contínuos eaventurosos movimentos decapitais, tráficos de influênciae giro de promissórias,continua de braços cruzados,deixando seus terrenosdesvalorizarem. Assim elepercebia que, nessa maldadetão desproporcional da naçãocontra uma família carente derecursos, agia com lógicaluminosa aquilo que, emlinguajar jurídico, costumachamar-se “o entendimento dolegislador”: golpear oscapitais improdutivos, e quemnão consegue ou não temvontade de fazê-los render quese vire.

Páginas 12 e 13

A ESPECULAÇÃOIMOBILIÁRIAItalo Calvino. Tradução:Maurício Santana Dias.Companhia das Letras. 120páginas. Quanto: R$ 32

Italo Calvino (1923-1985), cujo romance “A Especulação Imobiliária” ganha reedição no país: acuidade e precisão de linguagem

“A EspeculaçãoImobiliária” éuma evocação àResistênciaItaliana, da qualparticipou, e oinclui desdeentão na vidacultural deseu país

Erguer os olhos do livro(…) e reencontrar apaisagem(…)”, man-tendo “um olho no li-vro e outro para alémda janela...”: é assim

que se apresenta já no início o an-ti-herói do romance “A EspeculaçãoImobiliária”, de Italo Calvino, no re-torno à sua cidade natal na Ligúria,região da Riviera Italiana. Traço deestilo do escritor, o exercício intelectualassociado à simplicidade da forma e àperspicácia com que observa o mundocircundante faz deste romance (escritoentre 1956 e 1957 e traduzido porMaurício Santana Dias para a Com-panhia das Letras, que o editou em2011) a atualização, só possível pelaliteratura, de um tema aparentementebanal e gasto e, no entanto, tão pre-sente e universal apesar de prosaico.Como toda a diversa e vasta obra deCalvino, um clássico, que, por issomesmo, convida à releitura.Entretecido pela pena da ironia,

pontilhado por percepções e digres-sões ricas de referências históricas epolíticas, o enredo se forma comintrincadas redes de interesses e in-justiças, decepções e fracassos vi-vidos pelo protagonista, além de ga-nhar força com as manifestações su-tis de caráter em personagens tãoverossímeis quanto contraditórios,cuja experiência os humaniza, dandorealce às conturbadas transforma-ções por que passa a Itália dopós-guerra. Gozando de “um bem-es-tar sacrossantamente baseado naprodução industrial” e na predatóriaindústria do turismo, a burguesiaascendente, em seu modo de en-tender a vida, descarta a arte, aciência, até mesmo os ideais polí-ticos. Às contradições de Quinto An-fossi, nosso anti-herói alterego doescritor, que vive o mal-estar do in-telectual em crise com as mudançaseconômicas e políticas de seu tempo,opõe-se a ascensão do antagonista,“uma equívoca e antiestética bur-guesia de nova estampa”. Na trama eno jogo de argumentos apresentadonos diálogos se lê a insídia e a au-sência de lógica da burocracia e deum sistema social perverso.Com a acuidade e a precisão de

linguagem que lhe são peculiares,

Italo Calvino amplia, pelo olhar donarrador onisciente, as possibilidadesde fruição do texto pelo leitor, prin-cipalmente pela graça na construçãode imagens poéticas com que descrevea terra, a gente do lugar e seumodo devida, a cidade, o mar... Aliás, tendosido filho de cientistas, é na descriçãodos jardins da família que o escritormais se esmera em dar às palavras odesenho e o colorido mais justo eapropriado para honrar o que pareceter sido o desejo de seus pais: o de queele próprio se dedicasse à ciência e,mais propriamente, à botânica.Anos mais tarde, tendo vindo a

participar do OULIPO (Ouvroir deLittérature Potentielle) – grupo depesquisa de literatura experimentalvoltado para novas possibilidadespoéticas – Calvino afirmaria seu gos-to pela geometria e seu interessepela liberdade criadora num de seuslapidares ensaios em “Seis Propostaspara o Próximo Milênio”:“Num desses livros científicos em

que costumo meter o nariz à procurade estímulo para a imaginação, acon-teceu-me ler recentemente que osmodelos para o processo de formaçãodos seres vivos são ‘de um lado ocristal (imagem de invariância e deregularidade das estruturas especí-ficas) e de outro a chama (imagem daconstância de uma forma global ex-terior, apesar da incessante agitaçãointerna)’(... )O que me interessa aquié a justaposição dessas duas figuras(...). Cristal e chama, duas formas dabeleza perfeita da qual o olhar nãoconsegue desprender-se, duas ma-neiras de crescer no tempo, de des-pender a matéria circunstante, doissímbolos morais, dois absolutos,duas categorias para classificar fatos,idéias, estilos e sentimentos.”

Conjunto infinitoSeduzido pelas combinações da

lógica com a imaginação, dominadopelo gênio da análise e da invenção,Calvino aprofunda e utiliza os re-cursos da arte e da ciência para fazerda literatura uma aventura do co-nhecimento. O escritor vê no en-trecruzamento de fantasia e conhe-cimento científico e nas correspon-dências entre esses diferentes mun-

dos o paradoxo de um conjunto in-finito, e o classifica como “indeci-dível”. Essa indecidibilidade se apli-ca à sua ampla formação intelectualresponsável por unir criação cien-tífica e criação estética numa vastasíntese, fazendo-as responder pelaunidade da cultura. Cônscio da in-findável teia que enlaça o atomismo ea gravitação universal, a filosofia e amagia do co nhecimento, a subs-tância, as permutações e o contínuomovimento do mundo, Calvino faz

prosseguir “uma longa tradição depensadores para quem os segredosdo mundo estavam contidos na com-binatória dos sinais da escrita...”.A despeito da importância con-

siderável de suas publicações, in-cluindo-se ensaios e obras de ficção,pouco se sabe da biografia de ItaloCalvino, a não ser por alguns estudosda crítica italiana e por fragmentos einformações esparsas.Considerado um dos maiores es-

critores do século XX, e autor dasobras fundamentais “As cidades in-visíveis” e “Se um viajante numanoite de inverno”, Italo Calvino nas-ceu em Cuba em 1923, tendo suafamília logo retornado à Itália. Fa-leceu em 19/09/1985, aos 62 anosincompletos. Tendo nascido, crescidoe vivido em diferentes lugares, con-siderou a instabilidade geográfica ecada mudança repetição do traumado nascimento. Sob o signo da ba-lança plasma seu caráter. A insta-bilidade o faz sentir-se sempre es-trangeiro no lugar que deliberada-mente escolhe para viver. Mais queisso, o faz desejar sem cessar umalhures... Para ele, “tudo pode mu-dar, mas nunca a língua que por-tamos em nós, ou sobretudo que nosporta nela como um mundo maisexclusi vo e definitivo que o ventrematerno”.Escritor realista, dotado de ines-

gotável imaginação, Calvino faz daexperiência com a linguagem, ei-vada de ironia e originalidade, umcompromisso pessoal com as ma-nifestações políticas e culturais deseu tempo. “A Especulação Imobi-liária”, tal como o primeiro livro, “Atrilha dos ninhos de aranha”, pu-blicado em 1947, é uma evocação àResistência Italiana, da qual par-ticipou, e o inclui desde então navida cultural de seu país. Realismo eelementos de pura fantasia se mis-turam, associados ao gosto pelo tomimpessoal que não esconde a fortesensibilidade do artista. Toda suaobra traduz suas preocupações so-ciais com o mundo presente. A po-lítica preencheu parte consideráveldas inquietações da juventude. Atomada de consciência e a perdada esperança de radicais trans-formações políticas e sociais no>

decurso dos anos da Resistênciae do pós-guerra culminaram

com o abandono do Partido Comu-nista, em 1956. Seu trabalho comoeditor e como escritor revelou aopúblico seu rigor e a recusa a umaatitude de vanguarda isolada darealidade histórica. Comentaria elemais tarde: “Certas práticas que pa-recem afastadas da política contammuito mais por sua influência sobrea história (mesmo política) dos in-divíduos e dos países”.

MemóriaHá neste romance especial cui-

dado com a memória. Certa evocaçãonostálgica a um tempo e a uma ci-dadezinha desfeitos na poeira cinzado cimento faz nos sentirmos cúm-plices do mal-estar de seus perso-nagens:“Era o lamento que a mãe punha

nelas por uma parte de si, de si mesma,que se perdia e da qual ela sentia nãoser capaz de refazer-se, a amargura quecolhe a velhice, quando cada injustiça

geral que de algum modo nos atinge éuma injustiça cometida contra nossaprópria vida, da qual não seremos maisressarcidos, e cada coisa boa da vidaque se perde é a própria vida a irembora”.Finda a ilusão, porém, no romance

como na vida, a esperança prevalece.Porque, a despeito de tudo, “se osolhos não se voltassem para o alto,onde de todos os lados surgiam asjanelas dos prédios, o jardim erasempre o jardim”.

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Documento:AGazeta_07_01_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_10.PS;Página:1;Formato:(548.22 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:05 de Jan de 2012 18:46:54

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12PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,7 DE JANEIRODE 2012

ficçãopor LEANDRO REIS

EL DESDICHADOOs habituais corpos da cidade não arriscavam suas caras turvas pra fora naquele horário.Davam lugar às prostitutas e aos mendigos – neste conto inédito sobre sexo, drogas e música

Consigo despertar daqueladormência em que a men-te trabalha lisergicamenteproduzindo miragens deque não se consegue afas-tar e nem correr. São esses

os únicos momentos em que acordar éum alívio, o manto do silêncio se des-prende em gritos sossegados e umMarlboro salta pras mãos em consolo –um dos poucos secos do maço, deitadorente aos cacos de um provável copo devinho. Não planejava acordar de ma-drugada, baque do destino, acaso tino.Duas da manhã: dois anos completos.Recordei-me na primeira tragada: gos-to de nicotina que vestia lábios e dedos;o sabor não me fugia entre os dentesmesmo com o paladar enfraquecidopelos cigarros. Ela me acordaria hojecom Nick Drake, violão e voz mansaentrando na pele dos tímpanos, umpacto da noite fria com a chuva fraca.Ideal seria a sua imagem com a belezatrágica espelhada nas retinas, semprepronta pra descer ao fundo comigo sópelo prazer de voltar à superfície. Voutomar veneno até ficar imune, ela dizia.Trago fundo, afasto as quase-lágrimaspra dissipar as cenas que persistem elevanto pra sair. A vontade é do pre-to-branco na pele, lá fora.Os habituais corpos da cidade não

arriscavam suas caras turvas pra foranaquele horário. Davam lugar às pros-titutas e aos mendigos, pontos marcadosnas calçadas escuras, que em suamaioriamigravam do centro pra orla naquelaépoca propícia a turistas. As lembrançasdesses arredores vêm como flashes des-conexos, geralmente armazenados emgrandes goles de Natasha. Eu e JohnnyYen batizamos aquela área de Ponto daMeia-Volta: a linha que separava as duasmetades, a da quase-sobriedade e a dapotencial loucura. Decidíamos ali, eu, elee ela, se a embriaguez etílica seria su-ficiente ou se o pó não estava assim tãolonge pra buscar.Em meio às putas, o primeiro co-

lapso. Eu e Johnny Yen, chapados, nãoconseguíamos levantar o seu corpo aponto de levá-la nos braços. Balbu-ciamos às putas que nos ajudassem,mas seus corpos retilíneos, lúgubres,foram logo sorvidos pelas ruas pa-ralelas. Voltamos andando, os três, de-pois de minutos de procedimentos mé-

dico-drogados, com as promessas desobriedade também engolidas pelas pa-ralelas. Daí pra frente algo de im-paciente criou-se no olhar, nos gestos.Acabaram-se primeiro os olhos nosolhos, restou o soslaio, vieram as pa-lavras que diziam várias coisas e sealargavam, invadiam outras dimen-sões. E depois as peculiaridades ru-maram para o clichê, para o copoquebrado, para os punhos cerrados e osabraços efêmeros.– Segura a vela comigo, até queimar

nossos braços?Vagueio como se fosse livre, en-

xugando a boca com as costas da mãopelo gole de vodka, garrafas que sem-pre brotam. Pouso um pé após o outro,alternadamente, perguntando-me qual

seria a maneira mais eficaz ou, aliás, seaquilo teria alguma eficácia compro-vada. Os poucos acossados nas ruelasda cidade não repreendem com a vistacomo fazem à luz do dia, envoltos emauras de fumaça. À noite todo mundo épodre e é nessa hora que eu me junto aeles, nas rodas, nos terrenos, nos pe-daços de casas sem pedaços. São doisanos e isso só não dói nos percentuaisdos analistas, fatiados e enfileiradospelos cartões de crédito, não comun-gam dos berros pulmonares que pro-fanam esse ambiente sacro, a casa, ospedaços, os despedaços.Abandono a casa, dia ameaça a raiar,

aquela claridade cinza da madrugadairrompendo os olhos. O asfalto irre-gular cospe à calçada, sempre o ca-

minho mais turvo, sempre o atalhomais vago. Vejo o Catamaran, o pontode partida de todas as coisas, as bi-furcações, os agudos, os vácuos – todasas metáforas respingadas nos alvéolosda língua. Entro, compro, saio, lágri-mas nos olhos, olhos verdes, claros,lindos. Descemmuito, as lágrimas. Des-cemmuito, os anos. Tremi, não sabia seo frio vinha de dentro ou de fora, o soljá aparecia e não era inverno ainda,talvez o calafrio venha antes mesmo – enão por causa – da sensação exata dofrio. E cortava por dentro, pontadassecas, justas, como uma navalha pin-celando os tecidos sem deixar espaçopro sangue coagular. Pensava naqueleespelho trincado, refletindo meu es-boço em três porções, todas desfigu-radas e simetricamente desiguais, umtriângulo de lados esquivos e corretosem decomposição. Contornos belos,traços fatigados, mas não se pode dizerque sejam de derrota – embora tam-pouco de vitória. Já era manhã e osinvisíveis subsistiam nas calçadas, semdar passagem às putas que voltavampras suas tocas com grana na bolsa e aspernas mais separadas. Eu segui, con-tornei o Ponto da Meia-Volta, já nãoprecisava decidir mais nada. Hoje euvou tomar veneno até ficar imune.Restava acender outro cigarro pra não

ficar sozinho, casa grande, quartos cheiossó enquanto dura a festa. O violão sentounas minhas coxas, pareceu pressentiruma despedida, não se leva nada pra umexílio desses. Vieram também os bar-bitúricos, o conhaque, a música – essademoroumais que os outros. Tomei tudo,inclusive a música, ainda regurgitadaalgumas vezes até disfarçar o amargo daboca. Não me lembrava de ter deixado atevê ligada. Cheirei os dois anos, parececocaína, mas é só tristeza. A pontada. Ofrio. O problema era nas entranhas e aminha cura tinha nome, uma cura pro-blemática pra um corpo feito de retalhos:Pam era o nome, não quero repetir.Zapeei enquanto meus olhos colavam,umcanal dedinossauros, pensei noSpiel-berg, mais uns cliques e filmes nacionaisesquecidos, zap, apresentadores cons-trangidos com o auditório, mulheres debiquíni se oferecendo em troca de men-sagens de celular. Deixei o violão cair, nãome lembro do som que fez, se eraoco, se era maciço, se era triste.

Documento:AGazeta_07_01_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_12.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:05 de Jan de 2012 18:43:14