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VITÓRIA, SÁBADO, 31 DE DEZEMBRO DE 2011 www.agazeta.com.br Pensar Pensador do mundo Entrelinhas OS CANTOS PERDIDOS DA ODISSEIA” MOSTRA ULISSES À REVELIA DOS DEUSES. Página 3 Memória O VIGOR ARTÍSTICO E OS EXTREMOS DE CÁSSIA ELLER , 10 ANOS APÓS SUA MORTE. Página 4 Música A TRADIÇÃO DO CONCERTO DE ANO-NOVO DA ORQUESTRA FILARMÔNICA DE VIENA. Página 5 Resenha AUTORA SE DESTACA NA NOVA SAFRA DA LITERATURA FANTÁSTICA BRASILEIRA. Página 8 ERIC HOBSBAWM DEFENDE IDEIAS DE MARX COMO BASE PARA TRANSFORMAR A REALIDADE P á ginas 6 e 7 O CINEMA NUNCA MAIS FOI O MESMO Especialista analisa o legado da geração francesa que revolucionou a sétima arte. Páginas 10 e 11 MARCELO ALVES/FOLHAPRESS Cena do filme Acossado” (1959), de Jean- Luc Godard

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VITÓRIA, SÁBADO, 31 DE DEZEMBRO DE 2011www.agazeta.com.brPensar

Pensador do mundo

Entrelinhas“OS CANTOSPERDIDOS DA

ODISSEIA”

MOSTRA

ULISSES ÀREVELIA DOS

DEUSES.Página 3

MemóriaO VIGOR

ARTÍSTICO E OS

EXTREMOS DE

CÁSSIA ELLER,10 ANOS APÓS

SUA MORTE.Página 4

MúsicaA TRADIÇÃO DO

CONCERTO DE

ANO-NOVO DA

ORQUESTRAFILARMÔNICADE VIENA.Página 5

ResenhaAUTORA SE

DESTACA NA

NOVA SAFRA DA

LITERATURA

FANTÁSTICABRASILEIRA.Página 8

ERIC HOBSBAWM DEFENDE IDEIAS DE MARX COMOBASE PARA TRANSFORMAR A REALIDADE Páginas 6 e 7

O CINEMA NUNCAMAIS FOI O MESMOEspecialista analisa o legado dageração francesa que revolucionoua sétima arte. Páginas 10 e 11

MARCELO ALVES/FOLHAPRESS

Cena do filme“Acossado”(1959), de Jean-Luc Godard

Documento:AGazeta_31_12_2011 1a. SABADO_CP_Pensar_1.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:29 de Dec de 2011 18:13:47

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2PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,31 DE DEZEMBRODE 2011

marque na agenda prateleiraquempensa

Wilson CoêlhoéAuditorRealdoCollè[email protected]

RicardoCostaSalvalaioémembrodaAcademiadeLetrasHumbertodeCampos. [email protected]

EricodeAlmeidaMangaraviteéservidorpúblicoe frequentadordeconcertoseó[email protected]

RafaelSimõeséhistoriador,professoruniversitárioemembrodaONGTransparê[email protected]

BrunellaFrançaé jornalista, escritora, colunista, fic-writer,blogueira.http://twitter.com//brullf

CaêGuimarãeséjornalista,poetaeescritor.Publicouquatrolivroseescrevenositewww.caeguimaraes.com.br

AntônioMarcosRolyGarciaséprofessordaredeestadualedomunicí[email protected]

SuelyBispoémestrandaemLetrasnaUfes,atriz,graduadaemHistó[email protected]

MarcosVeroneseé jornalista, diretordecinemaeví[email protected]

O Pequeno X – DaBiografia à HistóriaSabina LorigaA autora francesa estuda aobra de pensadores doséculo XIX que buscaramrestituir a dimensãoindividual da história. Entre

eles, o historiador de arte JacobBurckhardt, o filósofo Wilhelm Dilthey, oromancista Leon Tolstoi e o grandehistoriador alemão Johann Gustav Droysen.

232 páginas. Autêntica Editora. R$ 47

O AlçapãoPedro CavalcantiEsta ficção fantásticaparte de um personagemque atravessa dias e noitesentre a vida e a morteapós ser atingido por umabala perdida. A narrativa

mergulha no inconsciente coletivo dosbrasileiros, com referências a bandeirantes,cangaceiros, palacetes e favelas.

104 páginas. Global. R$ 23

A Dinastia RothschildHerbert R. LottmanA trajetória da grande famíliade banqueiros começa emum gueto judeu da cidadealemã de Frankfurt, emmeados do século XVIII, epercorre os principais

acontecimentos do século XX para mostrara riqueza e a influência deste grupo sobreos grandes centros financeiros da Europa.

400 páginas. L&PM. Trad. Ana Ban. R$ 58

Antônio VieiraRonaldo VainfasO volume da série PerfisBrasileiros reconstitui osmomentos mais importantesda vida e da obra do jesuíta,político, pregador e escritorseiscentista, nascido em

Lisboa e falecido em Salvador.

352 páginas. Companhia das Letras. R$ 44

Literatura na redePublicação traz poesias, ensaios e artigosO número 5 da revista “Água da Palavra” já está disponível no sitewww.aguadapalavra.com. Textos de Sergio Cohn, WilberthSalgueiro, Alexandre Moraes e Anne Ventura, entre outros autores.

CarnavalCachoeiro promove concurso de marchinhasVão até 13 de janeiro as inscrições para o I Concurso deMarchinhas Carnavalescas “Prêmio Zé Nogueira”, promovidopela Prefeitura de Cachoeiro de Itapemirim. A ficha de inscriçãoe o regulamento estão disponíveis no www.cachoeiro.es.gov.br.

16de fevereiroOfes faz concerto inspirado no carnavalA Orquestra Filarmônica do Espírito Santo abre suatemporada 2012 com o concerto “Música Clássica eCarnaval”, no Theatro Carlos Gomes. No programa,peças de compositores que fazem um diálogo entre oclássico e o popular: Berlioz, Arban, Moncayo, Bernsteine o brasileiro Ernane Aguiar.

29de fevereiroRaridades na Biblioteca EstadualA exposição “Uma página da leitura no Brasil – grandescoleções dos anos 1930/1960”, com curadoria do escritorresidente Reinaldo Santos Neves, se estenderá até o final defevereiro na Biblioteca Pública do Espírito Santo (Av. JoãoBatista Parra, 165, Praia do Suá, Vitória).

José Roberto Santos Neveséeditordo Caderno Pensar, espaço para adiscussão e reflexão cultural que circulasemanalmente, aos sábados.

[email protected] FUTURO POSSÍVEL

O título do mais recente livro do historiador EricHobsbawm não poderia ser mais adequado para a vésperado início de um novo ano: “Como mudar o mundo – Marx eo Marxismo, 1840-2011”. Para o intelectual de 94 anos, asrespostas para as questões sociais, políticas, econômicas eambientais contemporâneas estão nos estudos de Karl Marx,considerado por ele “um pensador para o século XXI”. Naspáginas 6 e 7, Rafael Simões conta mais detalhes sobre a novaobra do estudioso britânico e elenca a tetralogia clássica deHobsbawm. Nesta edição, o leitor também confere o artigo

de Ricardo Salvalaio sobre os 10 anos da morte de CássiaEller e o ensaio de Marcos Veronese sobre o legado daNouvelle Vague, a escola francesa que revolucionou o cinemano final dos anos 1950. Aproveito para agradecer a todos osleitores e colaboradores que participaram do Pensar comsugestões, críticas, dicas e textos ao longo deste ano. Esseincentivo é fundamental para buscarmos sempre a ex-celência neste espaço de reflexão cultural e livre exposição deideias. Que em 2012 possamos continuar e ampliar essaparceria tão produtiva. Aquele abraço literário e até lá!

Pensar na webConfira textos deEricHobsbawm, vídeosdaOrquestra FilarmônicadeViena,cançõesdeCássia Eller e trechosdelivros e filmes comentadosnesta edição,nowww.agazeta.com.br

PensarEditor: José Roberto Santos Neves;EditordeArte:Paulo Nascimento;Textos:Colaboradores;Diagramação:Dirceu Gilberto Sarcinelli;Fotos:Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações:Editoria de Arte;Correspondência: Jornal

A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493

IvanBorgoéprofessoruniversitá[email protected]

ColetivoPeixariareú[email protected]

Documento:AGazeta_31_12_2011 1a. SABADO_CP_Pensar_2.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:29 de Dec de 2011 18:09:15

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3PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

31 DE DEZEMBRODE 2011

entrelinhaspor WILSON COÊLHO

O ESPELHO DE HELENAREFLETE PENÉLOPE

Zachary Mason apresenta Ulisses como um herói vítima de suas fragilidades

OS CANTOS PERDIDOSDA ODISSEIAZachary Mason. Tradução:Rubens Figueiredo.Companhia das Letras. 216páginas.Quanto: R$ 39, em média

TRECHOOdisseu volta para Ítaca numbarco pequeno num dia claro. Afamiliaridade da face leste dailha parece absurda –desconcertado, ele segue poruma contracorrente traiçoeira,na qual fazia quinze anos quenão pensava, e chega à terraatravés da boca de umaenseada onde nadava quandomenino. Toda sua impaciência oabandona, senta-se ao pé de umcarvalho de que se lembra ecujos galhos pendem sobre aágua, muito bons paramergulhar. Vinte anos sepassaram, reflete ele, o queimportam mais uns poucosminutos? Uma hora transcorreem silêncio e lhe vem opensamento de que estácansado e que seria melhor irpara casa, portanto apanha suaespada e caminha em direção àsua casa, seguro de quequalquer obstáculo que oaguarde será pequenocomparado com tudo aquilo quejá enfrentou.

Assim como Sócrates, Cristoe tantas outras figuras que,historicamente, fora asideias que lhes foram im-putadas a autoria, não fazdiferença se existiram ou

não como pessoas, também Homerosempre vem à baila para confirmar aqui-lo que até hoje tem se construído como osentido ideal de nossa chamada civi-lização ocidental, bem como tem servidopara sustentar os ânimos de nossos com-portamentos “demasiado humanos”.Assim como na “Odisseia”, da tradição

homérica, em “Os cantos perdidos daOdisseia”, de Zachary Mason, coincide aideiadequeOdisseu(ouUlisses, como lhechamavam os romanos) é o rei de Ítacaque vai a Troia lutar contra os troianos.Em Homero, a “Odisseia” é um poemaépicodivididoem24Cantos comumtotalde 12.110 versos, cujo argumento prin-cipal é a volta de Ulisses, Odisseu emgrego, de Tróia a Ítaca. Em seu livro,Mason reúne 44 "cantos perdidos" da“Odisseia”, que teriam sido encontradosem um obscuro papiro pré-ptolomaico.Mas se, em Homero, Odisseu se

apresenta com epítetos de herói per-feito, homem de mil voltas, astucioso,engenhoso, muito prudente, industrio-so, habilidoso, resistente, glorioso etc.,em “Os cantos perdidos da Odisseia”,Mason mostra o mais sagaz e ardilosodos heróis gregos depois de suas gló-rias, ou seja, ao ser abandonado pelosdeuses e pelas divindades, quando temque se reinventar e viver sua tragédiacomo homem comum. Depois de tantocontar e recontar suas aventuras, desdea de que enfrentou o exército troianoaté matar o ciclope Polifeno, passandopela experiência de escapar do ca-tiveiro de Calipso e resistir ao en-cantado canto das sereias.Esse Ulisses, abandonado à condição

humana ou à revelia dos deuses, tor-nou-se vítima de suas fragilidades.Conforme a narrativa repleta de va-riantes, a partir de diferentes perso-nagens e conforme recortes incomunsentre os mesmos, tanto na “Odisseia”quanto em “Ilíada”, sobre as bruta-lidades na Guerra de Troia, Ulisses,quando fora recrutado, ele mesmo des-conhecia suas habilidades para atuarem tal façanha, fato que o colocava nacondição de amedrontado e indeciso.No caso de “cantos perdidos”, trata-sede um Odisseu com caráter mais hu-mano e contemporâneo, num encontroda modernidade com a tradição doromance, onde deuses e heróis nãoestão distantes do sentimento do ho-mem comum, aquele que está diante da

possibilidade do fracasso e do sofri-mento e que, ao mesmo tempo, tor-na-se capaz de se rebelar e reescreverem todo momento a sua própria his-tória, desafiando as armadilhas cons-truídas pelo destino.

ResistênciaQuanto à sua condição de resistência

ao canto das sereias, uma vez mais,revela sua “humanidade” ou fragili-dade, considerando que pediu para seramarrado aomastro para não sucumbirao canto das supostas ninfas. Se real-mente se tratava de uma “resistência”em prol de sua esperança e necessidadede ouvir o canto das sereias comopossibilidade de estar diante de umarevelação sobre o mundo e sobre seupróprio destino, o fracasso se dá deduas maneiras. Primeiro, porque este

Odisseu não tem o atrevimento su-ficientemente heróico de encarar o po-der das sereias sem ter que se amarrarnum mastro para ouvir seu canto e,segundo, por ter sido em vão a suatentativa de saber sobre o futuro, prin-cipalmente por não ter conseguido se-quer compreender porque foi aban-donado pelos deuses.Mason faz de Homero, ora narrador,

ora personagem de si mesmo – em-retorno à Ítaca –, o homem que en-contra Penélope envelhecida e cansadade esperá-lo e, por vezes, surge comouma morta. Tudo se confirma na his-tória deste homem que, transitando nomundo da nostalgia, da ilusão, do vul-nerável, do angustiado, do iludido,transforma-se no herói/personagemsonhado de si mesmo como a tentativade marcar o seu próprio destino.Trata-se de um monólogo, consi-

derando que o suposto diálogo de Odis-seu/Ulisses, exilado de sua própria vi-da, não passa de uma tentativa deencontrar-se consigo mesmo, ondeOdisseu é incumbido de matar a simesmo, cortando a humanidade pararebelar o animal que tem dentro de si,ou seja, negando-se como homem parasobreviver como mito. Paradoxalmen-te, Odisseu, para sobreviver, em todomomento, tenta matar-se a si mesmocomo possibilidade de superar-se.Enfim, Odisseu/Ulisses, o contador

de histórias, se confunde com Homero.A arte imita a vida ou a vida imita aarte? Na literatura ocidental, quasecomo um exercício de palimpsesto,parece difícil a possibilidade de en-contrar um romance que não seja uma“releitura” da Odisseia de Homero, in-clusive, onde o espelho de Helenareflete Penélope.

Documento:AGazeta_31_12_2011 1a. SABADO_CP_Pensar_3.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:29 de Dec de 2011 16:58:12

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4PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,31 DE DEZEMBRODE 2011

Ao mesmo tempo em que regravava compositores consagrados da MPB, cantora tinhatrânsito livre no rock‘n’roll e fazia questão de radicalizar esta marca em suas apresentações

memóriapor RICARDO SALVALAIO

FERA, BICHO, ANJO E MULHER:10 ANOS SEM CÁSSIA ELLER

CHICO GUEDES/23/09/2001

A LETRAALL STAR (NANDO REIS)Estranho seria se eu não meapaixonasse por vocêO sal viria doce para os novoslábiosColombo procurou as índias,mas a terra avistou em vocêO som que eu ouço são as gíriasdo seu vocabulário

Estranho é gostar tanto do seuAll Star azulEstranho é pensar que o bairrodas LaranjeirasSatisfeito sorri quando chego aliE entro no elevadorAperto o 12 que é o seu andarNão vejo a hora de tereencontrarE continuar aquela conversaQue não terminamos ontemFicou pra hoje

Estranho mas já me sinto comoum velho amigo seuSeu All Star azul combina com omeu preto de cano altoSe o homem já pisou na lua,como eu ainda não tenho seuendereço?O tom que eu canto as minhasmúsicasPara a tua voz parece exato

A cantora na Praça do Papa, Vitória, em 2001: ao mesmo tempo ácida e meiga

Há dez anos a música po-pular brasileira perdiauma das maiores canto-ras da geração 90. Em 29de dezembro de 2001,aos 39 anos, morria a

eclética e pulsante Cássia Eller. A artistadeixou uma obra importantíssima; seusoito álbuns são desnorteantes em setratando de originalidade, capacidadeinterpretativa e ousadia ao elencar seurepertório.A cantora nasceu no Rio de Janeiro,

mas aos seis anos mudou-se com afamília para Belo Horizonte. Cássiaera uma beatlemaníaca das mais pre-maturas, que já aos nove anos sedeleitava com o som dos garotos deLiverpool. Aos dez, foi para Santarém(PA). Aos 12 anos, voltou para o Rio ecomeçou a aprender a tocar violão.Aos 18, chegou a Brasília. Lá, faziashows em bares, participou de corais,trabalhou em um espetáculo ao ladode Oswaldo Montenegro, conheceu acantora Zélia Duncan, cantou em trioelétrico e estudou canto lírico.

CarreiraEm 1989, Cássia Eller foi para São

Paulo, fez amizade com Arrigo Bar-nabé e Itamar Assumpção, e começoua divulgar uma fita demo, com amúsica “Por enquanto”, de RenatoRusso. Lançou seu primeiro LP, “Cás-sia Eller”, em 1990. Além de “Porenquanto”, o disco incluía, entre ou-tras, “Eleanor Rigby”, dos Beatles, e“O dedo de Deus”, de Arrigo Barnabée Mário Manga. Em seguida, fezshows com o guitarrista Victor Bi-glione, com repertório de blues, o quea deixou conhecida como cantora deblues e rock.Em 1992, veio o segundo disco, “O

marginal”, que consolidou o timbregrave de sua voz. Entre as faixas doálbum, duas músicas de Jimi Hendrix(“If Six Was Nine” e “Hear My Train AComing”) e composições de Itamar As-sumpção e Luiz Melodia. Em 1994, oótimo disco “Cássia Eller”mistura clás-sicos do rock brasileiro (Raul Seixas,Renato Russo, Herbert Vianna, Cazuzae Frejat) e versões para Ataulfo Alves eDjavan. Seu disco seguinte, “Venenoantimonotonia” (1997), foi um belo

tributo ao ídolo Cazuza, e em seguidalançou sua melhor obra “Com você...Meu mundo ficaria completo” (1999),com o hit “O Segundo Sol” e váriasoutras grandes composições de NandoReis, produtor do disco. O último disco,“Acústico MTV” (2001), também pro-duzido pelo amigo Nando Reis, vendeu1,1 milhão de cópias.O ex-titã Nando Reis encontrou

em Cássia a intérprete perfeita, alémde uma amizade que influenciariaaté a sua inspiração como compo-sitor (em homenagem à amiga elecompôs a música “All star”). “Es-tranho seria se eu não me apai-xonasse por você/ O sal viria docepara os novos lábios/ Colombo pro-curou as Índias, mas a terra avisto emvocê/ O som que eu ouço são as gíriasdo seu vocabulário/ Estranho é gos-tar tanto do seu All Star azul...”, diz aletra da linda composição. A cançãose encontra no disco póstumo “Dezde dezembro” (2002), também pro-duzido por Nando.Essa parceria foi tão importante

para ambos que este ano foi lançada acoletânea “Relicário –As canções que oNando fez para Cássia cantar”, pro-duzida por Nando e Felipe Cambraia.

DualidadesCássia podia cantar Dorival Caymmi,

Beatles, Ataulfo Alves, Nirvana, ChicoBuarque e Renato Russo num mesmoálbum. A cantora não era dada a ró-tulos. Seu ecletismo e seu incrível po-der de escolha de repertório eram umcharme a mais. Numa mesma canção,ela podia ser áspera, agressiva, terna ebela. A cantora carioca atravessou adécada de 1990 numa posição única: ade equidistante tanto do rock quanto daMPB. Ao mesmo tempo em que re-gravava compositores consagrados daMPB, tinha trânsito livre no rock‘n’roll efazia questão de radicalizar esta ca-racterística em suas apresentações.A primeira biografia da artista, in-

titulada “Cássia Eller: Canção na voz dofogo”, de Beatriz H. R. Amaral, fazreferência às várias etapas do desen-volvimento e do amadurecimento dacantora e enfatiza os processos de se-leção de repertório, concluindo que, aointerpretar obras de tão diferentes es-tilos musicais, Cássia Eller vivia pro-cedimentos de mimetismo, converten-do-se ela própria em cada uma dascanções que entoava. “Uma caracte-rística que faz de um cantor um grandecantor é tomar para si as músicas como

se fossem dele. Ela tinha essa inten-sidade”, pondera Nando Reis.Cássia Eller era dúbia tanto na car-

reira artística quanto na vida pessoal.Uma figura incrivelmente doce e frágil,diferente da imagem forte e avassa-ladora dos palcos, mas que trazia navida pessoal pelo menos uma das mar-cas da artista: era amada por todos quecruzaram seu caminho. “Ela era ácida emeiga ao mesmo tempo e essa dua-lidade fazia dela uma pessoa di-ferente”, revela Djavan.

Documento:AGazeta_31_12_2011 1a. SABADO_CP_Pensar_4.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:29 de Dec de 2011 16:57:36

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5PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

31 DE DEZEMBRODE 2011

falando de músicapor ERICO DE ALMEIDA MANGARAVITE

UM CONCERTO PARASAUDAR O ANO NOVO

DIVULGAÇÃO

Willi Boskovsky regeu durante décadas a famosa apresentação da OrquestraFilarmônica de Viena, com peças de Johann Strauss I (no alto) e Johann Strauss II

Existem três elementos que fa-zem parte das tradições vie-nenses:O,du lieberAugustin,Sachertorte e Das Neujahrs-konzert der Wiener Philhar-moniker. Como para a maio-

ria de nós, brasileiros, o idioma alemão éum pouco assustador, vamos às expli-cações: o primeiro elemento é uma can-ção que remonta à época daGrandePesteVienense, mas que hoje está associada afestas nas quais são ingeridas grandesquantidades de cerveja; o segundo é umatorta de chocolate, cujo sabor não faz jusà fama que tem a iguaria; o terceiro é oConcerto de Ano Novo da OrquestraFilarmônica de Viena.Sim, aOrquestra FilarmônicadeViena,

essa renomada e antiga instituição mu-sical que se destaca por diversas pe-culiaridades. Lá, os músicos têm grandeautonomia e deliberam a respeito dediversos assuntos de interesse do grupo,em uma forma rara de autogestão ex-tremamente democrática. Em numerososcasos, os filhos seguemacarreiradospais,sucedendo-os nos quadros da orquestra,de modo que muitos membros atuaispodem orgulhosamente afirmar que seusantepassados se apresentaram para pla-teias que incluíram celebridades como oscompositores Richard Wagner e AntonBruckner, ou foram dirigidos por GustavMahler e Richard Strauss (esses últimos,além de compor, também regiam).Outros detalhes dignos de nota são a

utilização de oboés e trompas diferen-ciados daqueles utilizados pela grandemaioria das demais orquestras e, atéalguns anos atrás, a não aceitação demulheres em seus quadros fixos (ca-racterística comum a outras orquestraseuropeias). Felizmente, nesse último as-pecto o anacronismo saiu de cena e hojeuma mulher ocupa o honroso posto deviolinista principal da Filarmônica, aolado de mais três colegas, todos do sexomasculino: trata-se da búlgara AlbenaDanailova, a primeira Konzertmeisterindesde a fundação do conjunto.Significativamente, nunca houve a fi-

gura de um regente titular: os músicosconvidam quem bem entendem. Essaindependência já rendeu boas estórias,como a resposta que um dos músicos daFilarmônica teria dado a um amigo quelhe perguntou qual obra determinadomaestro convidado iria reger em umconcerto – “o que ele vai reger eu não sei.Nós iremos tocar a Sinfonia Pastoral!”É esta idiossincrática orquestra que,

nas manhãs do primeiro dia de janeiro,executa desde 1941 o famoso Concertode Ano Novo – a primeira edição, ex-

cepcionalmente, ocorreu no dia 31 dedezembro de 1939. No início, o regenteconvidado Clemens Krauss comandava oespetáculo. Com a sua morte em 1954,foi substituído no concerto seguinte pelolendário Willi Boskovsky, primeiro vio-lino da orquestra desde 1936.

InteraçãoBoskovsky, que esteve à frente dos

concertos até 1979, era um verdadeiromestre de cerimônias. Na melhor acep-ção do termo, conduzia a orquestra comum sorriso simpático no rosto, ora usan-do a batuta, ora com o violino nas mãos(arco na direita, instrumento na esquer-da), alternando em certas obras regênciae execução de solos – comonas “Csárdás”(dança folclórica de origem húngara) daópera “Ritter Pázmán” de Johann StraussII. Dava instruções ao público para tornaro eventomais interativo e fazia pequenosdiscursos, tudo de acordo com o caráterfestivo do concerto.Havia ainda a carismática figura do

percussionista Franz Broschek, que sur-preendia os espectadores com apariçõesmarcadasporumsensodehumorbastantepeculiar – fantasiava-se de jóquei, de cam-ponês, de ferreiro, dependendo do título

ou do tema da composição. Também eracapaz de comer salsichas e tomar cervejadurante a execução de uma polca, paradelírio da audiência. Em seguida, atiravabrindes para todos. No concerto de 1969,entrou vestido de militar, carregando umleitão debaixo do braço enquanto saudavao público e distribuía porquinhos em mi-niatura para os violinistas, sem se in-comodar com os guinchos desesperadosdosuíno:naÁustria,oporcoéconsideradoportador de boa sorte, sendo consumidofartamentenosbanquetesdeAnoNovo. Jáem 1972, trajado de bandido, Franz brin-cou de furtar diversos itens dos instru-mentistas da orquestra, incluindo um sacode dinheiro que estava escondido dentroda tuba, para ao final dar um tiro para oalto – felizmente, de festim – e em seguidadesejar a todos um bom ano novo.Parte dessas manifestações típicas do

humor austríaco se perdeu com a apo-sentadoria de Boskovsky, seguida, algunsanosdepois, peladeBroschek.Aorquestrapassou a contar nos Concertos de AnoNovo com regentes convidados. Não obs-tante a indiscutível competência de todosos que figuraram nos programas desde1980, o fato é que o evento ficou maiscomercial, uma vez que a figura de umgrande regente como Lorin Maazel, Her-

bert vonKarajanouRiccardoMutià frenteda orquestra tornou o produto aindamaisvendável para emissoras de televisão domundo inteiro. Estima-se a audiênciaatual em cerca de 50 milhões de pessoas.O repertório do concerto não varia

muito: peças dos Strauss (Johann I e seusfilhos Johann II, Josef e Eduard), quepodem ser valsas, marchas, polcas, ga-lopes... enfim, diversas formas de músicaligeira. Excepcionalmente, alguns outroscompositores são executados – notabi-lizam-se os exemplos deOtto Nicolai (fun-dador da orquestra) e do hoje quaseesquecidoJosephLanner (granderival, emvida, de Johann Strauss I). Peças que nãopodem faltar são a valsa “ODanúbio Azul”e a “Marcha Radetzky”. E que ninguémdiga que esse repertório é de segundacategoria. Muito pelo contrário: as com-posições do clã austríaco dos Strauss sãofrequentementeexecutadaspororquestrase regentes de excelente reputação.Com efeito, em certa ocasião, ao con-

ceder um autógrafo à enteada de JohannStrauss II, Brahms rabiscou as primeirasnotas da valsa “O Danúbio Azul”, es-crevendo ao lado: “Infelizmente, não(composta) por Johannes Brahms”.Assim, como dizem os vienenses,

Prosit Neujahr! – Feliz Ano Novo!

Documento:AGazeta_31_12_2011 1a. SABADO_CP_Pensar_5.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:29 de Dec de 2011 16:59:11

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7PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

31 DE DEZEMBRODE 2011

6PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,31 DE DEZEMBRODE 2011

EM NOVO LIVRO, ERIC HOBSBAWM APONTA AS IDEIASDE MARX COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO

históriapor RAFAEL SIMÕES

COMO MUDARO MUNDO PELOMARXISMO

Um dos mais importantes historiadores em atividade, Hobsbawm relaciona a solução dos problemas da sociedade atual ao estudo das questões propostas pelo filósofo alemão há mais de 150 anos

MARCELO ALVES/FOLHAPRESS

Obra do intelectual britânico, de 94 anos, é marcada pela identificação dos elementos-chave dos processos históricos com base em ampla revisão bibliográfica

Eric Hobsbawm nos brinda,mais uma vez, com um livromagistral. Historiador dosmais competentes, sua obraé dedicada ao período con-temporâneo e várias de

suas manifestações. Desde os prin-cipais eventos/processos históricos,como as Revoluções Francesa e In-dustrial, até movimentos como o na-cionalismo e o que ele denominou debanditismo social.Agora, com esse seu “Como mudar o

mundo: Marx e o marxismo, 1840 –2011” (Companhia das Letras), Hobs-bawm faz uma reavaliação bastanteampla e generosa daquela que é a suaprincipal influência teórica: o marxis-mo. Algo aomesmo tempo ousado, nummomento em que o marxismo ainda émajoritariamente identificado com o so-cialismo estilo soviético, e instigante,com a proposta de título que nos chamaa reflexão para a persistente neces-sidade de se mudar a realidade com aqual nos defrontamos.Hobsbawm acredita nessa necessi-

dade de se mudar o mundo. Já na suaautobiografia “Tempos interessantes:uma vida no século XX”, ele deixavaisso claro ao terminar a obra afirmandoque “a injustiça social ainda precisa serdenunciada e combatida. Omundo nãovai melhorar sozinho”.Voltando para a obra que hoje nos

interessa, o autor destaca que elapretende ser “um estudo sobre a evo-lução e o impacto póstumo do pen-samento de Marx, e seu amigo En-gels...”. E ele faz isso de maneira aomesmo tempo didática e profunda,com clareza e intensidade. Hobs-bawm é um entendedor do assunto aque se propõe analisar. Em que peserecuperar parte de seu estudo maisamplo sobre a História do Marxismo,“Como mudar o mundo” adota umaperspectiva que só a profunda crise,enfrentada por essa corrente de pen-samento nos últimos 20 ou 30 anos,poderia proporcionar.Hobsbawm chama a atenção para o

fato de que Marx é um pensador parao século XXI. Surpreendente? Não. Omarxismo libertou-se, com o colapsoda URSS, do leninismo, na teoria e naprática; e o mundo globalizado queemerge e se constrói a partir da dé-cada de 1990 apresenta caracterís-ticas que o jovem Marx, do ManifestoComunista, já apontava então.Evidentemente que sendo um

“não-ortodoxo”, Hobsbawm não pre-tende, de algum modo diferente, maisuma vez canonizar Marx em algumpanteão de semideuses. Ele afirma,com todas as letras, que grande partedo que Marx escreveu “está obsoleto(…) ou não é mais aceitável”.Nessa obra, Hobsbawm nos mostra

como a construção do marxismo bebeem fontes muito mais complexas e

amplas do que gostariam de assumir osortodoxos. Destaca que um dos gran-des apetrechos de Marx – além de tersido o primeiro a apreender ou buscaro mundo com a sua inteireza política,econômica, científica e filosófica – é asua metodologia investigativa, queproduziu e continua proporcionando“diferentes resultados e perspectivaspolíticas”.

Chama a atenção, também, para ainfluência de inúmeros pensadores emesmo as escolas surgidas dentro doIluminismo, e para o socialismo utó-pico, tão fortemente criticado por Marxe Engels e, por isso, desprezado porinúmeros analistas na formação dopensamento marxista.Pensadores tais como Saint Simon,

com suas ideias sobre a “exploração do

homem pelo homem” ou de que “a todohomem deve ser garantido o livre de-senvolvimento de suas capacidades na-turais”; e Charles Fourier, pela suacrítica à sociedade burguesa, sua defesada emancipação das mulheres e suavisão dialética da história, estão pre-sentes no marxismo; e, dando um pulono tempo, para o único pensadorpós-Marx e Engels citado na obra, An-tonio Gramsci, destacado por Hobs-bawm como “o pensamento mais ori-ginal surgido no Ocidente desde 1917”,e que teve como principal contribuiçãopara o marxismo a construção de uma“teoria marxista da política”.

CríticosComo não poderia deixar de ser para

um pensador de formação marxista,Hobsbawm faz uma caminhada pelodesenrolar das ideias de Marx e Engelspela história, não sem antes destacaralguns de seus críticos, alguns maisintensos, outros pontuais, mesmo re-conhecendo neles algo positivo.Hobsbawm destaca o processo de

afirmação do marxismo, que começaainda na década de 1880, com o cres-cimento do movimento operário; o seumomento de antifascismo, entre 1929 e1945, exceto o período do acordo Hi-tler-Stálin de 1939-1941; a recepção ea percepção contraditória no períodoentre 1945 e 1983, negativamente afe-tada pelos acontecimentos do socia-lismo real e positivamente impactadapelo desenrolar das lutas de libertaçãonacional no TerceiroMundo; e, por fim,o período de recessão, entre 1983 e2000, graças à derrocada da URSS e deseus satélites e às mudanças radicais derumo na China.Ao revisitar Marx, Engels e o mar-

xismo, sua formação e história, Hobs-bawm nos permite ver, sem a pressãodo debate entre os poderes do séculoXX, que o legado desses pensadorespara a compreensão do mundo con-tinua atual. Como ele afirma: “Nãopodemos prever as soluções dos pro-blemas com que se defronta o mundono século XXI, mas, quem quiser so-lucioná-los, deverá fazer as pergun-tas de Marx, mesmo que não queiraaceitar as respostas dadas por seusvários discípulos”. A melodia do mar-xismo está no método – essa tem sidoa força da sua história de quasedois séculos.

Hobsbawm e seus clássicos

Como Mudar o Mundo –Marx e o Marxismo,1840-2011Eric HobsbawmTradução: Donaldson M.GarschagenCompanhia das Letras424 páginasQuanto: R$ 57

Escritor da contemporaneidade,Hobsbawm tornou-se mundialmenteconhecido depois que venceu seu pudorem tratar de períodos históricos maisrecentes. Sua trilogia mais famosa, maistarde transformada em tetralogia, cobre operíodo que vai da Revolução Francesa,em 1789, até a derrocada do socialismo

soviético em 1991. Sua obra é marcada poruma tentativa, de sucesso ao meu juízo,de identificar os elementos-chave dosprocessos históricos, sempre sustentadapor ampla revisão bibliográfica e porum conjunto significativo de dadossociais e econômicos. O autor não faznarrativa histórica.

A Era das Revoluções: 1789–1848Publicado em 1962, abrange o período que vai da Revolução Francesaaté o fim das ondas revolucionárias que abalaram a Europa e os EstadosUnidos em meados do século XIX. Fala das guerras revolucionárias enapoleônicas e do nacionalismo em ascensão.

A Era do Capital: 1848–1875Publicado em 1975, analisa o grande processo de desenvolvimento do capitalismo,que unifica o mundo e constrói as nações modernas, além de gerar as novasforças da democracia. Destaca guerras e conflitos e a presença cada vez maisintensa do capitalismo pelo mundo, suas características e consequências.

A Era dos Impérios: 1875–1914Lançado em 1987, compreende o período da primeira grande crise docapitalismo mundial, do início da década de 1870 até o início da década de1890. Discute o processo de desenvolvimento acelerado do capitalismo, comsuas mudanças sociais e tecnológicas e sua nova onda colonial, a força e asconquistas dos movimentos trabalhistas e a situação das mulheres, das artese das ciências, até o início da Primeira Guerra Mundial.

A Era dos Extremos: 1914–1991Obra magna de Hobsbawm, de 1994. Analisa o breve século XX, incluindo aEra da guerra total (1914-1945), com as duas grandes guerras mundiais; onazifascismo e a crise de 1929; a Era de Ouro (1945-1973), com seudesenvolvimento econômico e social, somado às conquistas culturais; alémda Guerra Fria, e o desmoronamento (1973–1991), com as crises do petróleo,os movimentos revolucionários, o fim do socialismo real e da Guerra Fria.

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8PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,31 DE DEZEMBRODE 2011

resenhapor BRUNELLA FRANÇA

LITERATURA FANTÁSTICAMADE IN BRASILAutora da trilogia “Dois mundos, mesmo destino”, Danieli Hautequest utiliza oselementos mais surpreendentes da obra de J.R.R. Tolkien para criar um estilo próprio

DANIELI HAUTEQUEST

Escritora – que também faz as ilustrações – apresenta mulheres fortes e guerreiras

Existe um universo paraleloa este, onde o tempo é con-tado de maneira diferente,onde há duas luas verme-lhas no céu, numa dimen-são que poucos puderam

conhecer. Este é o mundo de TaraTehänsien, uma garota de aparênciaum tanto quanto incomum e inusi-tadas particularidades. Dois metros dealtura, cabelos vermelho-mogno eolhos cor de ametista. Isso sem contaro fato de ter sido criada morando nasmontanhas com monges tibetanos.Assim começa a trilogia “Dois mun-

dos, mesmo destino”, da escritora in-dependente Danieli Hautequest, quenão apenas escreve, como também ilus-tra a obra. O volume um, “Despertar”, éum cartão de visitas de arrebatar, capazde fazer o leitor se perguntar o que vempela frente e ansiar pela continuação.“Despertar” vai da Inglaterra ao Ti-

bet. E de lá, para outro universo, numvoo sem escalas, mas conduzido commaestria. Acompanhar o despertar deuma mulher já é algo mágico. Tra-tando-se de Tara, ou Sua MajestadeLilädein Tehänsein Uhülan, é aindamais especial.Ao longode todaa leitura, aqueles que

já conhecem um pouco da literaturafantástica, podemmuito bem se lembrarde J.R.R. Tolkien. Por quê? Danieli Hau-tequest entrega aos leitores uma obracom personagens intensos e marcantes;coerência de ações; além de ter a des-treza para criar mundos, povos e serestão absurdamente incríveis e reais, semlacunas. E é emocionante ver o talentodeum grande mestre presente na obra deuma jovem escritora brasileira.Arrisco-me a chamá-la de “Tolkien

de saias”. Não que seja uma cópia, nãoque seja idêntica, longe disso. Mas usaos elementos mais surpreendentes daliteratura do escritor sul-africano paracriar algo próprio, num estilo que lhe épeculiar.Trovähien é um planeta que não per-

tence a este universo, com duas luasvermelhas e invadido por um povo maisrobô que “humano” que não entende demagia, os kasacktrins. Sua população jáquase não tem o que comer, quase nãopossui recursos minerais e energéticos eestá sendo dizimada pelos invasores. Ca-be à rainha guerreira e a seus escolhidos

empreenderem uma jornada repleta desurpresas e perigos para encontrar umcristal que, despertado pela magia cor-reta, poderá derrotar os inimigos.Na obra, temos ainda um resgate do

regime de matriarcado, quando os di-reitos de casta e o poder de governareram das mulheres. E em nenhummomento há a estupidez da guerraentre os sexos. Os homens são tãovalorosos quanto as mulheres. Guer-reiros, conselheiros, mestres de armas,

comandantes. Mas o direito a reger e àsucessão é feminino pela naturalidadedas coisas: é a mulher que gera osagrado da vida, a descendência. Aterra é fêmea, a política, a vida, adiplomacia, a sabedoria e a harmoniatambém o são.E as mulheres criadas pela escritora

são apaixonantes e fortes. Sejam asguerreiras imbatíveis, magas com po-deres fantásticos, senhoras do lar, me-ninas impetuosas. Diversas e únicas.Em sua escrita fantástica, Danieli Hau-

tequest consegue criar, como pano defundo, uma metáfora do que é a vida: odespertar, a aceitação, a luta diária pelodireito de ser e, principalmente, a es-colha por tomar a vida nas própriasmãos e conduzi-la de acordo com aessência.E ninguém está ali para dizer que

será fácil. Ninguém vai dizer que nãohaverá dor ou lágrimas. Mas para mos-trar que para a existência valer a pena,para se alcançar objetivos e ser emplenitude, é preciso coragem. Muitacoragem. E amor.É também mérito de DH criar uma

história capaz de cativar não apenasleitoras lésbicas – público-alvo da es-critora. A qualidade da história contadaé literatura, sem rótulos, sem precon-ceitos. “Dois mundos, mesmo destino –Despertar” não é uma história de amorlésbico. É uma história de literaturafantástica da qual as protagonistas sãoduas mulheres que se amam.Opúblicoamantedeboashistórias tem

em mãos uma obra de qualidade e comnuances e diferenças do que estão acos-tumados a ver em outros livros. A se-gunda edição do livro, que encontrava-seesgotado, está disponível para venda noClube dos Autores e também em formatodigital, versão para ePub, eKindle eem PDF. Todos, pelo preço de R$ 8.

DOIS MUNDOS,MESMO DESTINODanieli Hautequest. Clube dosAutores. 224 págs. Quanto: R$35,80 (livro impresso); R$ 8(livro digital). Onde comprar:http://clubedeautores.com.bre http://danielihautequest.com

PerfilDANIELI HAUTEQUESTCursando o último período de LetrasPortuguês-Inglês, é escritora,ilustradora, revisora, diagramadora ecapista. Autora e fundadora doABCLes (www.abcles.com.br)

Idade: 34 anos (16 de janeiro de1977)Onde nasceu: Carioca de berço,residente em Belo Horizonte (MG).Publicações: Integrante dacoletânea “Elas Contam”, publicadaem 2006, pela Corações e Mentes,com o conto “Apenas Passado”. Em2007, publicou “Suposições: AsSurpresas do Amor”, pela GIZ. Olivro será relançado em breve emuma edição revista e ampliada.

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9PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

31 DE DEZEMBRODE 2011

poesias

O BEIJODO SOLSUELY BISPONo primeiro dia do anoAcordei com o solBeijando meu rosto.Aos poucos esquentouTodo meu corpoE já brincavaDe fazer amor comigo.Era como se DeusDissesse-me:Feliz ano novo!

NEGRA ALMAAlma negraAlma brancaE alma tem cor?Se tiverTem a cor do sono mais profundoEm que mergulhamTodas as almasNo dia final.

DESNUDALMANaquele diaDo outro lado da portaSeus olhos penetraramEm mimCom tal profundidadeComo se vissemMinha almaNua!

PALAVRASTONTASIntervalos de silêncioentrecortampalavras tantasque ficam tontasno desconsertoda emoção.

Parecem fugirvoam com os passarinhosou nas asas das borboletas.Voltam trazendoo perfume das florespreenchendo espaçosde palavras não ditas...

crônicas

NAS CURVASDO TEMPOpor CAÊ GUIMARÃES

Os grãos de areia seguem caindopelo estreito vão da ampulheta. Eassim seguirão enquanto estivermosaqui para contar o tempo, para re-gistrar os tantos e os tentos. Paraeliminar as traças e limar os pe-driscos do reboco das mágoas. Paracultivar as rugas e eliminar as rus-gas. Um dos entendimentos que avida pode nos dar, creio, é que nãoestamos no mundo a passeio. O quenão quer dizer que haja sentido emtudo isso ou nisso tudo.Talvez a eternidade seja composta

disso, um eterno vagar entre apren-der e ensinar, correr e observar, ex-plodir e sedimentar. Talvez o queentendemos por existência seja umgrande laboratório onde as pipetas esifões são trocados por pensamentose emoções, ainda que vastos e im-perfeitos.Acontece que certo dia você abre os

olhos e entende com precisão que otempo passou. Não no sentido figu-rado, sempre é tempo de fazer o quetu queres, pois é tudo da Lei, disse umbaiano arretado que não ouço hátempos. Falo aqui do Cronos que nosdevora, das folhas de calendário sen-do destacadas paulatinamente, mêsapós mês, ano após ano. Das páginasque amarelam, dos cabelos que pra-teiam ou se tornam escassos. E dosnovos seres, filhos que crescem einteragem, como se chegassem a estepalco doido e doído estreando novascores e vozes. E novas formas deinterpretar tudo.Há alguns dias partilhei com ami-

gos queridos, alguns distantes no tem-po e no espaço, boas horas de boemiae lembranças. Percebemos todos que omundo não acabará em 2012. E queainda somos os moleques que co-meçavam a engatinhar na vida pro-

fissional nos bancos das salas de aulana Ufes, nas cantinas entre café esinuca, nas festas entre birita e fu-maça. Há mais ou menos 20 anos.Foi inevitável lembrar do filme “As

Invasões Bárbaras”, ainda que este-jamos hoje com a idade dos per-sonagens em seu antecessor, “O De-clínio do Império Americano”, clás-sico dos anos 80. Chegamos todos atéaqui com o acúmulo que veio desde lá.Somamos, multiplicamos, dividimos,subtraímos. Fracionamos e elevamoscoisas às potências máximas de cadaum. Neste encontro, entre copas ytapas, abraços e sorrisos, lembrançase riso fácil, pensei vislumbrar umsentido para o tempo, a vida, a fi-nitude. Que nada. Era apenas a leveembriaguês que se assomava aos ar-quivos da memória abertos. Só deupra confirmar, mais uma vez, que sena vida não há sentido, temos todas aspossibilidades do devir advindo daexperiência de estarmos vivos. E as-sim seguirá sendo enquanto estiver-mos aqui para contar o tempo, pararegistrar os tantos e os tentos. Osgrãos de areia seguem caindo peloestreito vão da ampulheta. Que venha2000 e doce.

NEWTON BRAGA:CENTENÁRIO DA SENSIBILIDADEpor ANTÔNIO MARCOS ROLY GARCIAS

Uma chuva fina e fria dança e esfria amanhã. Não é uma chuva de precisãoassim gorda, chuva de corda, da-quelas de cachorro beber água em pé.Os pingos no fio são apenas pingos.Imagino Newton ali, sentado em umadas cadeiras, em terceira pessoa. Oneto que veio dos Estados Unidossomente para as comemorações docentenário de nascimento do avô éconvocado de improviso a se de-clarar. Pego assim, vacila nas pri-meiras palavras em um portuguêsmudado de casa, mas não vacila noque tem a dizer. O avô toma de umpedaço de papel e anota o neto. Elesentencia o quanto tem presenciado acerteza e a exatidão como guias nasdecisões, todas desnutridas de sen-sibilidade. Suas palavras contagiame, como a chuva calma, infiltram

perturbações. O sol que faltava parafazer estrelas os pingos. A manhã secarrega de metáforas. O avô recolheao bolso mais uma croniqueta.Todos os discursos avante, infla-

mados e flamados, ficam sob a nuvemdas palavras dele, o neto. É Newtonvivo em cada sílaba agregada naconstrução de cada palavra. A es-sência newtonbraguiana sombreia osinflados. Nenhum brilho encontra es-curidão para reinar.A chuva rompe.As palavras do neto-newton rasgam,

sublinham as homenagens. The end?À noite, o Teatro Rubem Braga lo-

tado reserva espaço para mais Newton.Vejo-o mais uma vez, comum, entre aplateia.

Eu não sabia que era filha doNewton. Era filha do meu pai. Ao ouviro depoimento da filha, Newton recolhemais uma papeleta ao bolso. Anotatambém a outra filha que rompe atimidez e pede para falar do pai. Nãolhe deram oportunidade. Por que aignoraram?Faz parte dos festejos o concurso

Newton Braga. Em meio a oratórias,dá-se início à premiação. Os ven-cedores de cada categoria recebemseus prêmios. Newton impacientequer ver o desenho, o curta e o conto.Os vencedores desejando mostrarporque foram vencedores. Mas ondeforam parar os trabalhos?Na grande noite festiva, aplausos

para os prêmios.Ao contrário de discursos, sensibi-

lidade não se ensaia.

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11PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

31 DE DEZEMBRODE 2011

10PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,31 DE DEZEMBRODE 2011

audiovisualpor MARCOS VERONESE

NOUVELLE VAGUE – O TSUNAMIDO CINEMA NO MUNDO

“O sonho é o único direito quenão se pode proibir”

Glauber Rocha

As revoluções são inerentesao ser humano e existempara que haja rupturas nocampo do direito civil, dapolítica internacional, dasmudanças sociais, da lite-

ratura, da arte e da cultura em geral. NaFrança, a Nouvelle Vague, ou a NovaOnda, surge em1958 e forma-se emumarevista. Escola essa concebida através doteóricoAndréBazin, fundador doCahiersDu Cinéma, a bíblia dos cinéfilos.Bazin tinha um texto refinado, era

extremamente carismático e exercia enor-me influência naqueles que seriam ossoldados da revolução imagética fran-cesa. Ele não deixou uma teoria acabadasobre o cinema, tinha uma visão hu-manista e definia-se como cristão fran-ciscano. Entendia o cinema como umaexperiência iluminista; a tela, para ele,não era uma moldura, mas uma janelapor meio da qual os espectadores de-veriam reaprender a olhar o mundo.É idiotice achar que a Nouvelle Vague

não teve antecedente, pois ela não só tevecomo também reverenciava os pioneirosdo final do século XIX. Reconhecia gênioscomo os irmãos Max, Charlie Chaplin, ocriador de Carlitos, o vagabundo, umartista genial, o mais incontestável gênioque o cinema conheceu desde as suasorigens, e queelevouo cinemaaumaartesuperior, comparável a Molière. DavidWarkGriffith tambémfazparte dagaleriade honraria da Nouvelle Vague. Nor-te-americano dos Estados do Sul, naturalde uma família arruinada pela guerracivil, ele realizou seu primeiro filme em1908: “The Adventures of Dolly”.Influenciado por sua ascendência su-

lista, buscou o tema de “O despertar deuma nação” em um romance violen-tamente hostil para com os negros. Ocaráter racista de sua obra provocoureações sangrentas em várias cidadesamericanas. Essas manifestações servi-ram de publicidade para o filme, quecustou cemmil dólares e faturou mais de20 milhões. Griffith tirou proveito de seusucesso para filmar “Intolerância”, ar-tisticamente uma obra-prima, mas finan-ceiramente uma catástrofe. Esses doisfilmes elevamocinema à classe degrandeespetáculo, sendo Griffith o precursor.

A admiração e o reconhecimento aesses gênios levaram os cineastas daNouvelle Vague a se autodenominaremfilhos da história do cinema. Os jovens daCahier, e seu núcleo central tinham comointegrante Jean-LucGodard, EricRohmer,Claude Chabrol, Jacques Rivette e Fran-çois Truffaut, que Bazin resgatou da de-linquência. Todos eram jornalistas, crí-ticos de cinema e intelectuais, e por meiode suas críticas já havia um enunciado doque se preparavam para produzir. Essaobstinação os leva a uma subversão hie-rárquica que os afasta dos cineastas fran-ceses naquele momento. Passam a atacarde forma virulenta os clássicos do cinemafrancês e os realizadores contemporâ-neos, mas respeitam e admiram Renoir eRobert Bresson. O cinema francês realistae poético, anterior à guerra, realizado porcineastas comoMarcel Carné, de “Trágicoamanhecer”, “Hotel do Norte” e os “Vi-sitantes da noite...”, e por Jean Cocteau,de “A bela e a fera”, estavam em alta.

Os renegadosA genialidade dos que produziram e

alavancaramocinema francêsnos anos50ficou à margem do processo da Nouvelle

DIVULGAÇÃO

Especialista analisa o legado da escola francesa que mudou o modo de olhar efazer a sétima arte, tornando-a autoral e rebelde como seus próprios criadores

Vague, como Jacques Demy, que sonhavaem realizar musicais hollywoodianos, re-novou o gênero e antecipou em váriosanos o cinema de citação que utilizava emseus filmes. Delicado, ele dirigia filmescom cores matissianas, e foi guilhotinadopelos modernos diretores do Cahiers, to-dos chauvinistas. Claude-Autant Lara, umpioneiro à frente de seu tempo, adaptouem1947 “LeDiable auCorps” (Odiabonocorpo), do jornalista, literato emodernistaRaymond Radiguet (1903-1923), amigode Picasso, May Jacob e Jean Cocteau.Publicado em 1923, o livro aborda o

adultério praticado por uma jovem quetrai o marido enquanto ele luta no front,escandalizandoopaís queacabarade sairda Primeira Guerra. Em 1954, é a vez de“O vermelho e o negro”, de Henri-MarieBeyle (1783-1842), mais conhecido co-mo Stendhal, que faz uma análise dasociedade francesa na época da res-tauração, onde representa as ambições econtradições da emergente sociedade declasses de sua época.Lara também realiza uma alegoria so-

bre o período da ocupação alemã, em queumpintor, contratadopara transportarumporco para um ponto do outro lado deParis, enfrenta soldados alemães e a po-

lícia francesa em cenasmemoráveis, ondea personagem diverte-se com a façanha,arriscando a própria vida. Em 1956, Hen-ri-Georges Clouzot lança “Le Mystère Pi-casso”, documentário sobre o pintor quetransforma a tela em cinemascope, poisPicasso reclama que a tela em que estápintando é pequena. Clouzot já haviarealizado o clássico “O salário do medo”,uma obra-prima, e aproveita paramostraraos modernos uma novidade: o ti-me-lapse photography, recurso quecomprime o tempo concreto de ação.Todos esses filmes são ousados e an-

teriores ao que seria a primeira realizaçãoda Nouvelle Vague, “O Belo Sergio”, deChabrol. Na verdade, o que eles buscavamera a libertação de modelos estereoti-pados, acadêmicos, reivindicando essa li-berdade também no campo da realização,ou seja, queriam contornar a indústriaaudiovisual libertando-se dos pesados en-cargos financeiros, fazendo filmesdebaixoorçamento, ganhando em leveza, rapidez,flexibilidade e inventividade.Para tanto, seguem o exemplo do et-

nocineasta Jean Rouch, que utiliza umacâmera 16mm leve e discreta para captarimagens de países exóticos como aCostadoMarfimeaNigéria. Exemplo

seguido por um dos inventores doneorrealismo, Roberto Rossellini, que

aplica o método no filme “Índia 58”.Claude Chabrol pavimentou e mudou omodo de fazer cinema, inovou na edição,desconstruiu a linguagem clássica do ci-nema, levando a câmera para a rua.Chabrol é o soldado que dá o pri-

meiro tiro dessa revolução com seuprimeiro filme, “Nas Garras do Vício”,em 1958. Essa data marca o tsunamiproduzido por esses cineastas sem di-nheiro e tendo como meta a política docinema autoral. Em seguida, vieramJean-Luc Godard com “Acossado”,

François Truffaut com “Os incompre-endidos”, Eric Rohmer com “O signo doleão”, Jacques Rivette com “Paris nospertence” e Alan Resnais com “Hiroshi-ma meu amor”.

MúsicaOs filmes da Nouvelle Vague não

existem semmúsica. Elamarca o dramaexistencial e substitui a palavra que nãopode ser dita, por afasia ou impotênciado discurso verbal de seus persona-gens. Nos filmes de Truffaut, as as-sinaturas de Jean Constantin, Antoine

Duhamel e Georges Delerue respon-dem pela coautoria de filmes como “Osincompreendidos” (Constantin), “Julese Jim” (Delerue) e “Beijos roubados”(Duhamel). Nos filmes dirigidos porGodard, a trilha era formada por Duha-mel, Delerue e Michel Legrand.Nos filmes de Chabrol, o compositor

Pierre Jansen assume a batuta.Delerue e Legrand foram os com-

positores mais prolíficos da NouvelleVague. O primeiro, já morto, tinhaformação erudita. Era apaixonado porVivaldi e o Barroco. É uma influêncianítida em trilhas de filmes como “O

desprezo”. Já a formação de Legrand éjazzística, o que contribuiu para a cria-ção do primeiro filme totalmente can-tado da história do cinema, “Os guar-da-chuvas do amor”, dirigido por Jac-ques Demy em 1964.

Crepúsculo“Acabou-se a brincadeira, a juven-

tude passou”. Com essa frase ClaudeChabrol dá início à crise de identidadedo grupo, e com ela a força da in-dustrialização antropofágica do cinemaamericano, que viu no baixo orçamentoda Nouvelle Vague um nicho de mer-cado. A produção que surgiu nesta criseem nada se compara evidentemente aocinema produzido por essa geração.O tsunami provocado pela Nouvelle

Vague também possibilitou a entradade outros países no universo audio-visual. A Polônia permite que AndrzejWajda realize “Cinzas e diamante”, Ro-manPolanski filma a obra-prima “A facana água”, e o tcheco Milos Forman faz“Amadeus” e outras obras provocantescomo “Os amores de uma loira”. NaHungria, o cineasta Jancso filma “Rou-ges et Blancs” (Vermelho e branco).Países sem indústria cinematográfica

apresentam obras como “O mundo deApu”, rodado na Índia, ou “Gare Cen-trale”, do egípcio Youssef Chahine. ABélgica destacou-se com André Delvauxe seu “Un soir un train” (Laços eternos).No Brasil, Glauber Rocha engajou-se nasraízes populares e na denúncia das alie-nações. E assim o cinema, que deu seusprimeiros passos com as míticas pro-jeções dos Lumière, em 1895, desdeentão vem ocupando importante papelno cenário histórico-social, artístico ecultural no mundo, além de documentaras grandes tragédias e eventosmarcantesna história da humanidade, seja de for-ma ficcional ou documental.Portanto, caríssimos leitores, o

grande legado da Nouvelle Vague foi areinvenção do cinema. Uma escola quemudou o modo de olhar e fazer asétima arte, tornando-a autoral e re-belde como seus próprios criadores, epossibilitando que uma nova geraçãocomposta por Bertolucci, Spielberg,Brian de Palma, Scorsese, Coppola, epor tantos outros, se firmasse no novoconceito de realização cinema-tográfica mundo afora.

O teórico André Bazin, fundador do Cahiers Du Cinéma, a bíblia dos cinéfilos Claude Chabrol deu início à revolução

“Os Incompreendidos” (1959), estreia de François Truffaut, rendeu ao cineasta o prêmio de melhor diretor em Cannes

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Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg caminham pela Champs-Élysées, em “Acossado” (1959), primeiro longa de Godard

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12PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,31 DE DEZEMBRODE 2011

ficçãopor IVAN BORGO

O MOINHOA explosão só não foi uma total surpresa porque antes de ouvi-la Gotardo viu o cano prateadodo revólver apontado em sua direção – descreve o narrador deste conto ambientado na lavoura

COLETIVO PEIXARIA

Lá fora o vento frio geme comoalma penada e consegue en-trar pelas frinchas das portase janelas. A portinha do sótão,quebrada hámeses, permite aentrada de golfadas de ar ge-

lado. Passava pouco das cinco da tarde,mas o céu nublado de inverno anunciavao princípio da noite. A neblina da serradesceu mais sobre a mata, chegando naborda do cafezal.Ele levantou-se da cadeira da sala e

foi até a cozinha olhar a panela fer-vendo sobre o braseiro formado porgrossas achas de lenha. Viu com sa-tisfação as cascas de banana da terracom o característico corte longitudinal,mostrando que estavam quase prontaspara serem retiradas do fogo.Esperou mais alguns minutos, retirou

apanelado fogoe colocou-a sobabicadeágua muito fria que vinha de uma nas-cente do morro fronteiro.Depois de alguns instantes pegou

uma das bananas e começou a untá-lacom manteiga da colônia. Lentamentepassou a saborear a fruta perto dajanela donde se avistava um pedaço damatinha que subia pelo morro até adivisa de sua propriedade.Não comera nem ametade da banana

e desfrutava um daqueles momentos emque se podia julgar quase feliz, apesar detudo, quando ouviu passos no terreiro.Foi até à porta e viu um homem parado.As folhas da laranjeira plantadas pertodo oitão dificultavam a visão total dorecém-chegado.Podia ver contudo que se tratava de

um desconhecido. Baixo, moreno, atar-racado, com uma barba de muitos dias eum chapéu de feltro cinzento, o des-conhecidopermaneceuparado semdizernada. Olhava atentamente para a porta.Gotardo, imóvel. Andou um pouco maispara frente e encarou-o:Gotardo Ferruccio? – perguntou ele.É o meu nome – respondeu.O senhor costuma pegar emprei-

tadas de pintura em casas?Às vezes. Por quê?Um serviço lá na volta do Wantuir.Um profundo alívio, a pressão da

cabeça caindo rapidamente e logo asensação de conforto que voltava. Enfim,nada a ver com a nuvem de ameaçasveladas dos últimos meses, que iam seesvaindo a ponto de quase não pensar

mais no assunto. Por instantes, naquelesmomentos, quase voltara o fantasma dasameaças que o haviam obrigado a seprevenir. Tantos os rebates falsos quedeixou de andar armado.Pensou em convidar o desconhecido

para comer algumas daquelas bananasdeliciosas, mas antes queria mais de-talhes dessa empreitada que aliás che-gava na hora certa.O momento era de crise na lavoura.

Pelo terceiro ano seguido as colheitasforam suficientes apenas para permitir

que os colonos sobrevivessem.Nopaiol havia sóumfeijãomuitoduro

que começava a bichar porque faltoudinheiro para compra de imunizante.Pra quando o senhor quer essa em-

preitada? – perguntou Gotardo comuma grande satisfação íntima.Pra agora – disse o desconhecido

inesperadamente.A explosão só não foi uma total

surpresa porque antes de ouvi-la Go-tardo viu o cano prateado do revólverapontado em sua direção. Caiu de bru-

ços na varanda e antes de entrar emdelírio ainda chegou a ver um fino veiode sangue correndo pelas tábuas decedro do assoalho.Um palácio de cristal, chão trans-

parente. Não consegue equilibrar-se e,por isso, vai segurando nas quinas dosmóveis dourados e ferindo as mãos.Segue depois por um corredor muitolongo. Há uma luz muito longe, que oatrai. Mas o chão é escorregadio. De-pois de muito esforço chega perto daluz e vê um homem sentado numacadeira de espaldar longo. O homemaponta um dedo indicador em suadireção e pergunta-lhe com uma vozmuito aguda:Construiu o seumoinho ou não? Não

sabe que farinha deve ser moída nomoinho do Visconde? Que ousadia éessa? Construiu ou não?Sim, Excelência, mas é um moinho

pequeno só...Condenado. Podem levá-lo. O pró-

ximo...Viu-se agarrado pelos ombros e jo-

gado para o alto. Teve a impressão defurar as nuvens, mas viu-se, em se-guida, caindo rapidamente. Seu corpojaz agora estatelado no assoalho davaranda da casa. Exatamente no lugaronde caiu logo assim que recebeu o tirodo desconhecido.

xxx

Cinqüenta anos mais tarde GotardoFerruccio está no mesmo lugar onde ou-trora sofreu a tentativa de assassinato. Atarde é morna e quieta. Devagar ele vaidemorando os olhos em sua plantação decaféqueagora estábemmaior.Mais paraaesquerda é a garagem onde estão seusautomóveis e jipes e, em outra garagem,uma frota de caminhões. Vai até a cozinhaonde há bananas dentro de uma panelacom água fervendo. Volta até a varanda eolha a estrada que passa logo adiante.Para um imaginário espectador que

estaria passando pela estrada Gotardoacena e diz com funda emoção:O moinho está construído há muito

tempo e existem ali algumas toneladasde milho para prepararmos outras tan-tas toneladas de polenta. Pode avisar aoSr. Visconde.

Publicado originalmente na coletâ-nea “Navegantes”, de Ivan Borgo.

Documento:AGazeta_31_12_2011 1a. SABADO_CP_Pensar_12.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:29 de Dec de 2011 17:37:23