PEQUENA HISTÓRIA DAS GRANDES RELIGIÕES Felicien Challaye

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PEQUENA HISTRIA DAS GRANDES RELIGIESFlicien Challaye

A nossos netos Nicole, Michel, Franoise, Annie, Philippe, Hlne, Martine e Michelle

"Se no vos tornardes como crianas, no entrar eis no Reino dos Cus". (Evangelho segundo So Mateus, XVIII, 3). ** *

A traduo brasileira de Petite Histoire des Grandes Re-ligions, de Flicien Challaye, foi feita a partir da edio correta e aumentada que se publicou em Paris no ano de 1947. Especialmente para ela, entretanto, escreveu vrias notas o autor, que assim completa e rev algumas opinies e pontos de vista. Essas notas foram colocadas em apndice, que vai no fim do livro, fazendo-se cuidadosa referncia pgina e linha a que se referem as notas. O leitor poder desse modo incorpor-las sem dificuldade ao texto. Aconselhamos os leitores a examinar primeiro o Apndice, como se fsse uma errata, nle colhendo as indicaes relativas s pginas em que devem entrar as notas, e depois assinalar essas pginas, de modo que, ao l-las, possam les reportar-se imediatamente ao Apndice. A Editra Traduo de Alcntara Silveira Ttulo do original francs: Petite Histoire des Grandes Religions 1940

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NDICEINTRODUO 3

Capitulo I........................................................................................................5 O Totemismo..............................................................................................................................5 Captulo II.....................................................................................................15 O Animismo...............................................................................................................................15 Captulo III...................................................................................................22 A religio do Egito..................................................................................................................22 Capitulo IV....................................................................................................32 As religies da ndia..............................................................................................................32 Capitulo V.....................................................................................................55 As Religies da China............................................................................................................55 Capitulo VI....................................................................................................62 As religies do Japo.............................................................................................................62 Captulo VII..................................................................................................67 As religies do Ir..................................................................................................................67 Captulo VIII................................................................................................75 As religies da sia Ocidental............................................................................................75 Capitulo IX....................................................................................................82 O Judasmo................................................................................................................................82 Capitulo X...................................................................................................100 As religies da Europa setentrional e ocidental........................................................100 Capitulo XI..................................................................................................106 A religio da Grcia..............................................................................................................106 Capitulo XII................................................................................................113 A religio de Roma e da Itlia romana ........................................................................113 . Captulo XIII..............................................................................................118 O Cristianismo .......................................................................................................................118 . Captulo XIV...............................................................................................141 O Islame...................................................................................................................................141 Captulo XV.................................................................................................147 Natureza, origem e valor do sentimento religioso...................................................147 CONCLUSO..............................................................................................158 2

INTRODUO"A religio a mais alta e atraente das manifestaes da natureza humana", escreve Ernest Renan no Prefcio dos seus tudes d'histoire religieuse. Pode-se aceitar ste julgamento de um esprito livre. O sentimento religioso, qualquer que seja a definio- que se lhe d, procurar destacar uma, na concluso deste li-vro, aps minucioso estudo dos fatos, - o sentimento religioso a mais complexa inclinao que se pode descobrir no fundo do corao humano: em torno dessa tendncia fundamental agrupam-se todas espcies de aspiraes, de entusiasmos, de curiosidades, de pensamentos sutis sobre a Vida, sobre o Universo, sobre o Alm; todas espcies de inquietudes dolorosas e de exultantes alegrias. Interessante objeto de anlise para todo esprito curioso de psicologia, para todo amador de alma. Alm disso, as religies exerceram influncia, boa ou m, feliz ou desagradvel, em todo caso profunda, sobre as diversas sociedades, sobre as diversas civilizaes. Cativante tema e reflexes para tda inteligncia que possui gosto pela histria, pela sociologia, pela filosofia. Todo homem culto, qualquer que seja seu meio, devia ter certo nmero de conhecimentos precisos a respeito da religio, das religies. A ambio do autor seria condensar esses conhecimentos essenciais em algumas pginas desta, pequena histria. Passaremos em revista todas as grandes religies, numa ordem ora lgica, quando fr possvel ir do simples ao complexo; - ora histrica, quando, em vez de simidtaneiade, houver evidentemente sucesso; - s vezes geogrfica, quando as relaes e vizinhana apresentarem alguma importncia. Comearemos pelas duas religies mais primitivas, o To-temismo e o Animismo. Passaremos a para as religies que, cheias de sobrevivncias desses velhssimos cultos, elevaram-se, no entanto, s formas mais complexas do pensamento e do sentimento, a religio do Egito, as religies da ndia. Nascido na ndia, o Budismo arrastar-nos- China e ao Japo. Voltando ndia para abandon-la numa outra direo, encontraremos as religies do Ir, depois as da sia Ocidental, depois o Judasmo. Na Europa, aps uma vista de olhos lanada sobre as religies do Norte e do Oeste, ns nos deteremos mais tempo a estudar as do Sul, isto , as da antiguidade clssica grega e romana. Ento, na confluncia do misticismo oriental, do messianismo judeu, do pensamento grego e do universalismo romano, aparecer-nos- o Cristianismo. Na ordem cronolgica, a ltima das granes religies o Islame (1). Estas anlises3

histricas levar-nos-o a uma concluso sinttica sobre a natureza do sentimento religioso, sobre sua origem, sobre seu valor. Nestes breves estudos, eliminar-se-, na medida do possvel, too vocabulrio inutilmente complicado, toda discusso exageradamente tcnica. A quem desejar levar mais longe tal ou tal pesquisa, aconselharse- a leitura de algumas obras escritas ou traduzidas em francs (pois a um pblico francs ou leor e francs que esta pequena histria se dirige); o leitor a encontrar bibliografias que lhe permitiro, vontade, empreender, em seguida, trabalhos de maior flego. Que tal livro deva apresentar infinitas lacunas, a prpria evidncia. Tratava-se de reunir, num nmero limitado e pginas, a maior quantidade possvel e idias e de fatos, escolhidos dentre uma infinidade e outros. Ora, escolher sacrificar. Que esprito inspirou esta escolha? * No se tratar neste livro nem de apologia, nem de crtica agressiva: far-se- apenas esforo para tentar compreender, com tda objetividade. Mas objetividade no necessariamente frieza ou indiferena. Aqui o autor sente-se obrigado a apresentar-se queles de seus leitores que no o conhecem. Educado na religio crist, mas tendo deixado de a ver a revelao de uma verdade exclusiva, ele teve ocasio preciosa de visitar bastante regies do vasto mundo, e de nelas contemplar os mltiplos aspectos da vida religiosa; espetculos pitorescos ou comoventes, s vezes grandiosos. Viu as insgnias totmicas das choas maoris na Nova--Zelndia. Teve o prazer de assistir s danas religiosas do Gabo e de observar, numa vila de Oubangui, como opera um feiticeiro. Fez, em Giz, a ascenso da Grande Pirmide. Nas ruelas de Benars, dirigindo-se aos banhos sagrados, tropeou em vacas sagradas e acotovelou-se com faquires. Em Angkor Vat os frescos esculpidos sobre as paredes do nobre monumento desenrolaram, diante de seus olhos, as cenas de Rmaiana. Num convento budista de Kandy, entreteve-se, com um monge budista em trajes amarelo->canrio, a respeito das transmigraes. Em Pequim visitou o grandioso templo do Cu, o austero templo de Confcio, o ertico templo dos Lamas. Em Tquio seguiu, como amador comovido, as representaes dos ns (dramas lricos do Sculo XV) e por elas sentiu-se em contacto com o melhor da alma japonesa, misturando ao respeito xinto dos antepassados o encanto da suavidade budista. Em Bombaim freqentou os Parses e visitou, com eles, as Torres do Silncio, onde o rito exige que se faa os mortos serem comidos pelos abutres. Sem deixar o quarto, passou meses em exaltao na companhia do mais nobre dos judeus, Baruch Spinoza. Em Atenas, em Delfos, em Olmpia, saboreou a lembrana das festas que celebram os Deuses helnicos. Sentiu a majestosa grandeza de Roma. Em muitos pases da Europa assistiu a numerosas cerimnias catlicas ou protestantes, tocou com suas mos,4

em Beirute, os sinos do Graal, passou horas encantadoras, em Florena, no convento So Marcos, onde o caro Fra Anglico soube exprimir perfeitamente o mistrio delicado da alma crist. Viu se recortar, sobre o cu azul da frica do Norte, as mesquitas brancas do Islame; contemplou, prximo a Agra, a obra-prima da arte muulmana, uma das obras-primas da arte universal, o tmulo construdo por um sulto mais amada de suas mulheres, o Taj Mahal...(*) Recordaes maravilhosas!... Dessas mltiplas experincias, o autor tirou a firme convico de que h, em todas as raas humanas, qualidades, virtudes, encanto; que nenhuma religio sem valor; que cm cada uma delas pode-se descobrir alguma grandeza ou alguma nobreza, ou alguma doura. Amando todas as religies, le se expressar com simpatia sobre todas elas, escolhendo, para faz-las conhecidas e compreendidas, os fatos mais reveladores, os pensamentos mais altos, as frmulas mais surpreendentes ou as mais tocantes. Entretanto, no poder abster-se de condenar com vigor, em algumas delas, um fanatismo intolerante, cheio de desprezo por todas as outras crenas e que tende a destru-las. O amor exige que se sinta dio por esse dio. Visando a fazer tanto amar como conhecer e compreender as religies, este livro conter alguns dos mais belos textos que, no passado, fizeram os espritos refletirem e os coraes se comoverem. Talvez o contacto dsses pensamentos generosos e serenos seja benfazejo, para certas almas, em um perodo da histria particularmente grosseiro, brutal e sangrento. Se esta Pequena Histria das Grandes Religies puder dar a certos leitores um pouco de fra confiante, de calma resignada, de paz, da alegria que freqentemente a religio propicia a seus fiis, o anelo mais ntimo do autor ficar satisfeito. Setembro 1939.

Capitulo IO Totemismo

Certo nmero de socilogos e de historiadores considera o Totemismo a mais primitiva das religies. Totemismo a religio que subordina um grupo de homens, chamado cl, a eterminada espcie de seres sagrados ou, por vezes, de coisas sagradas, chamadas totens. A palavra totem era empregada por alguns ndios da Amrica do Norte, os Algonquins. Foi encontrada pela primeira vez num livro publicado em5

Londres, em 1791, por um "intrprete ndio", J. Long, ao contar suas viagens. Foi entre os ndios da Amrica do Norte que primeiro se estudaram as instituies e crenas totmicas. Na metade do Sculo XIX, descobriu-se que fatos anlogos tinham sido encontrados entre os primitivos da Austrlia. No fim do Sculo XIX e no princpio do XX, dois excelentes observadores inglses, Baldwin Spencer e Gillen, fizeram uma importante pesquisa entre as tribos do Centro Australiano. Um missionrio alemo, que passou longos anos nessas regies, e que fala suas lnguas, Carl Strehlow, traz, para o mesmo estudo, contribuio de valor excepcional. Fi-ea-se sabendo, ento, que a Austrlia a regio em que melhor se conservou o Totemismo. medida que as instituies e as crenas totmicas so mais conhecidas, fortifica-se a hiptese de que o Totemismo deve ter desempenhado grande papel na histria de toda humanidade. J na segunda metade de Sculo XIX, Mac Lennan aproximara-o das religies da antiguidade e Robertson Smith, das religies dos Semitas. No fim do Sculo XIX e no comeo do XX, o erudito ingls Sir James-George Frazer (1854-1941) reuniu, a respeito deste problema, vasta documentao (1). A mais notvel sntese de todos os fatos conhecidos at agora a que apresentou o grande socilogo francs Emile Durkheim (1858-1917) em sua obra de capital importncia, Les Formes lmentaires de la Vie Religieuse (2). livro que ainda hoje convm ser lido para ter-se uma viso de conjunto mais ntida a respeito dste problema. Mesmo que se faa, em seguida, certas reservas a respeito de vrios aspectos da doutrina, importa, antes de mais nada, conhecer-lhe as teses principais. As idias fundamentais do Totemismo so as de totem, de mana e de tabu. Os ritos essenciais correspondem a um culto negativo e a um culto positivo. Aplica-se o trmo totem espcie de seres ou de coisas que todos os membros de um cl julgam sagrados. So, na maioria das vzes, animais (o canguru, o opossum, o bfalo, a guia, o falco, o papagaio, a lagarta), s vzes vegetais (a rvore do ch) e, mais raramente, coisas (a chuva, o mar, determinados astros). Por exemplo, todos os membros do cl do canguru consideram sagrados todos os representantes da espcie canguru, todos os cangurus. O totem tambm o nome que tm todos os membros do cl e une a todos. Pertence-se a um cl pelo s fato de ter-se seu nome. Na grande maioria das sociedades, a criana tem, por direito de nascena, o totem de sua me. O totem , ainda, um smbolo, "o brazo de um grupo; ... um verdadeiro brazo, cujas analogias com o brazo herldico sempre foram observadas" (3). Chega-se a desenhar este smbolo sbre o cho, s vzes aps hav-lo regado com sangue, a pint-lo nos escudos, nos botes, nas tendas, depois nas casas, nos postes erguidos nas vilas.6

Freqentemente, o sinal totmico impresso no prprio corpo, sob a forma de tatuagem, ou de desenho traado, no vivo, antes da reunio de seu cl, no morto antes do sepultamento do cadver. Alis, os membros do cl procuram dar-se o aspecto exterior de seu totem; notadamente pelo penteado: no cl do bfalo, os cabelos so dispostos em forma de cornos; no cl da tartaruga, o crnio raspado, mas seis cachos imitam a cabea, as patas e a cauda do animal. Quando o totem um passro, chega-se a usar a plumagem dsse pssaro. Segundo Durkheim, "o totem , antes de mais nada, um nome e um smbolo." (4) le mais ainda: "o totem, ao mesmo tempo que uma etiqueta coletiva, tem um carter religioso... em relao a le que as coisas so classificadas como sagradas e profanas. le o prprio tipo das coisas sagradas" (5). De resto, "as imagens do ser totmico so mais sagradas que o prprio ser totmico". (6) O carter sagrado passa do totem e de sua imagem ao prprio homem.A razo desta santidade pessoal que o homem acredita ser, ao mesmo tempo que um homem no sentido usual da palavra, um animal ou uma planta da espcie totmica. Com efeito, le usa o seu nome: ora, a identidade do nome passa, ento, a implicar uma identidade de natureza... Um membro do cl do canguru chama-se, le mesmo, um canguru; le , pois, em certo sentido, um animal dessa espcie." (7)

Determinadas partes do corpo humano so particularmente sagradas: o sangue (da o carter religioso do ocre vermelho, que o lembra) e a cabeleira (o corte dos cabelos uma operao ritual). A dignidade religiosa no difundida igualmente. Os homens possuemna mais que as mulheres, os antigos mais que os jovens, mesmo iniciados. O totem freqentemente considerado o pai ou o av, o ancestral dos membros do cl. Na tribo, dividida em grupos totmicos, todos os seres, todas as coisas so classificadas em relao ao totem. Todos os animais, todas as plantas, a chuva, o trovo, os astros, as estaes so divididas entre os diferentes totens. Em uma tribo australiana, o sol aparentado com a cacatua branca; le uma cacatua branca; a lua aparentada com a cacatua preta; ela uma cacatua preta.O Totemismo possui sua cosmologia... O crculo das coisas religiosas estende-se bem para alm dos limites dentro dos quais parecia, a princpio, aprisionado... Longe de ficar restrito a uma ou duas categorias de seres, o domnio da religio totmica se estende at aos ltimos limites do universo conhecido. Como a religio grega, ela coloca o divino em tudo (8).

Uma outra idia fundamental do Totemismo a do mana.7

Esta palavra um termo melansio. Designa uma fora impessoal, ao mesmo tempo material e espiritual, difundida por todas as partes, comum aos smbolos sagrados, aos seres e aos objetos sagrados, a todos os seres, a todas as coisas. O missionrio ingls Codrington, que foi o primeiro a estudar esta idia na Melansia, assim define o termo mana: uma fora, uma influncia d ordem imaterial e, em certo sentido, sobrenatural; mas pela fora fsica que ela se revela ou ento por toda espcie de poder e de superioridade que o homem possui. O mana no fixado sobre um objeto determinado; pode existir em qualquer espcie de coisas... Toda religio do melansio consiste em alcanar o mana, seja para dl beneficiar-se pessoalmente, seja para fazer outrem dele aproveitar.

A mesma idia encontra-se entre os ndios da Amrica do Norte, onde, ela designada pelos termos wakan, entre os Sioux, orenda entre os iroqueses, manitu entre os algonquins, etc. Durkheim observa que o Totemismo dos australianos supe tambm a crena em um princpio comum aos smbolos totmicos, aos indivduos da espcie sagrada, aos membros do cl. O termo churinga , s vzes, empregado para designar tal princpio. a este princpio comum que se dirige, na realidade, o culto. Em outros termos, o Totemismo a religio, no de tais animais, ou de tais homens, ou de tais imagens, mas de uma espcie de fora annima e impessoal, que se encontra em cada um dos seres, sem se confundir no entanto com qualquer deles. Ningum a possui inteiramente e todos dela participam. Ela de tal forma independente dos sditos particulares em que se encarna que tanto os precede como lhes sobrevive. Os indivduos morrem; as geraes passam e so substitudas por outras; mas esta fora continua sempre atual, viva e semelhante a si mesma. Anima as geraes de hoje como animava as de ontem, como animar as d amanh. Tomando-se a palavra num sentido bem lato, poder-se-ia dizer ser ela o deus que cada culto totmico adora. Apenas um deus impessoal, sem nome, sem histria, imanente ao mundo, difuso numa multido inumervel de coisas... O totem apenas a forma material sob a qual representada s imaginaes esta substncia imaterial, esta energia difusa atravs de toda espcie de seres heterogneos, que sozinha o objeto verdadeiro do culto (9).

Encontra-se, ainda, no Toteniismo, a idia do tabu, isto , da proibio. A palavra tabu polinsia: designa a instituio em virtude da qual determinadas coisas, certos atos so proibidos. Aplica-se tambm como adjetivo s coisas, aos atos considerados proibidos. O tabu visa, essencialmente, a separar o sagrado do profano.

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, em princpio, proibido matar e comer o animal tot-mico, colher e comer o vegetal totmico, salvo em determinadas cerimnias solenes, verdadeiras comunhes. proibido tocar, s vezes olhar os objetos sagrados. proibido falar durante as cerimnias sagradas. proibido trabalhar, s vezes comer, durante os dias consagrados s festas religiosas.O trabalho a forma eminente da atividade profana: no tem outro fim aparente seno prover as. necessidades temporais da vida; le no nos pe em contacto seno com as coisas vulgares. Ao contrrio, nos dias de festa, a vida religiosa atinge a um grau de excepcional intensidade. O contraste entre estas duas espcies de existncia , pois, nesse momento, particularmente marcado; por conseqncia, no podem avizinhar-se... A inatividade ritual no apenas um caso particular de incompatibilidade geral que separa o sagrado do profano; o resultado de uma proibio (10).

Outras proibies, de origem religiosa, dominam a vida moral e social. proibido matar um membro do mesmo cl; proibido unir-se a uma mulher do mesmo cl; preciso arranjar esposa fora do cl: dever de exogamia. Estas interdies impem abstenes, privaes, logo, dores. Segue-se da - escreve Durkheim - que o ascetismo no , como se podia crer, um fruto raro, excepcional e quase anormal da vida religiosa; ao contrrio, um elemento essencial dela, pois no existe uma em que no se encontre um sistema de proibies. (11) Pode chamar-se "a observncia das proibies" de culto negativo. Certas cerimnias tm por objeto concentrar sobre uma nica pessoa um sistema completo de proibies. B o que se produz na Austrlia, quando da iniciao. O nefito deve retirar-se da sociedade, deixar de ver as mulheres e os no iniciados, viver no mato ou na floresta, sob a orientao de alguns ancies que lhe servem de padrinhos. -lhe proibida a maioria dos alimentos; no deve tocar nos que lhe so permitidos: os padrinhos pem-lhe na boca a quantidade de alimento estritamente indispensvel manuteno da vida. s vezes -lhe imposto o mais rigoroso jejum. necessrio abster-se de falar, de distrair-se, de lavar-se, de mover-se... O resultado desta prova uma transformao total, um segundo nascimento. Da em diante o iniciado entrar na sociedade dos homens, adquirir um carter sagrado, tomar parte nos ritos.Em razo da barreira que separa, o sagrado do profano, o homem no pode entrar em relaes Intimas com as coisas sagradas a no ser sob a condio de despojar-se do que nele existe de profano. No pode viver uma vida religiosa um pouco intensa se no comear por retirar-se mais ou menos completamente da vida temporal. O culto negativo , pois, em 9

certo sentido, um meio em vista de um fim; a condio de acesso ao culto positivo (12).

O culto positivo comporta todo um conjunto de prticas rituais. Pode-se citar, primeiro, uma grande festa, a intiquiuma, celebrada na ocasio da primavera que se segue a uma breve estao chuvosa. Os membros do cl dirigem-se, inteiramente nas, isto , tendo abandonado as vestes profanas, a um local em que pedras e rochas simbolizam os ancestrais fabulosos identificados aos totens. Por diversos processos, por exemplo espalhando um p fecundante, esperam assegurar a reproduo abundante da espcie totmica. Depois, purificados por uma estrita observncia das proibies, reunem-se para consumir, juntos, o animal sagrado. "Comungam o princpio sagrado que a existe e assimilam-no." (13) Encontram-se aqui, "sob a forma mais elementar atualmente conhecida, todos os princpios essenciais de uma grande instituio religiosa, que fora chamada a ser um dos fundamentos do culto positivo nas religies superiores: a instituio sacrificatria". Segundo Robertson Smith, que foi o primeiro a expor esta tese, "os banquetes sacrificatrios tinham por objeto fazer comungar numa mesma carne o fiel e seu deus, a fim de criar entre ambos um vnculo de parentesco." (14) Deve-se, de agora em diante, considerar como assente que a forma mais mstica da comunho alimentar encontrada desde a religio mais rudimentar presentemente conhecida." (15) O culto positivo comporta ainda ritos mimticos. Em virtude da crena de que o semelhante produz o semelhante, fazem-se gestos ou reproduzem-se sons visando a imitar o animal do qual se deseja assegurar reproduo abundante: gestos de canguru saltando, da lagarta abandonando a crislida; gritos da cacatua (o chefe do cl repete este grito toda uma noite, parando somente quando est sem foras; , ento, substitudo pelo filho, mas recomea assim que se sente um pouco descansado). Ha ainda, ritos representativos ou comemorativos. Supe-se que o cl descende de antepassados mticos que criaram as plancies, as montanhas e os rios, semearam os germes dos vivos. Reeordam-se essas histrias legendrias. As vezes uma espcie de representao dramtica permite evocar esta poca longnqua. Passou-se, assim das cerimnias religiosas, das quais participam apenas os iniciados, para as recreaes coletivas, a que so admitidos os jovens e as mulheres. O culto torna-se "uma espcie de recreao". Compreende-se o fato de "que os jogos e as principais formas de arte parecem ter nascido da religio, e que eles, durante muito tempo, observaram um carter religioso." (16) necessrio citar, finalmente, os ritos expiatrios, "festas tristes que tinham por objeto ou enfrentar uma calamidade ou, simplesmente, record-la e deplor-la". (17) Sendo o morto um ser sagrado, necessrio, em sua presena, suspender toda atividade profana. O costume exige que se faam10

determinados gestos, que se chore, que se lamente, que se troquem abraos em dados momentos. Os ritos variam com as relaes de parentesco. As mulheres devem cortar os cabelos, cobrir o corpo de terra, observar completo silncio durante todo tempo do luto, que pode durar at dois anos. Algumas mesmo, no fim do luto, continuam a exprimir-se apenas por gestos: uma anci permanece sem falar durante vinte e quatro anos. Embora sagrado, o morto no menos impuro. Esta verificao leva a distinguir, do profano, dois aspectos do sagrado: o sagrado puro, ou fasto; o sagrado impuro, ou nefasto. Acontece, alis, que no domnio do sagrado, passa--se de um a outro. "O puro e o impuro no so dois gneros separados, mas duas variedades do mesmo gnero que compreende todas as coisas sagradas... Com o puro faz--se o impuro e reciprocamente" (18). O animal totmico, cuja absoro d fora e poder, torna-se, para aquele que lhe consome indbitamente a carne, um princpio de morte. As prticas ascticas, os ritos expiatrios no devem, no entanto, sugerir a idia de que o Totemismo seja essencialmente uma religio de tristeza.O primitivo no viu, nos seus deuses, estranhos, inimigos, seres essencial e necessariamente malficos, com cuja proteo seria obrigado a pr-se de acordo a qualquer preo; bem ao contrrio, os deuses so para le amigos, parentes protetores naturais. No so esses os nomes que le d aos seres da espcie totmica? le no imagina o poder a que se dirige o culto, planando muito alto sobre si, esmagando-o com sua superioridade; le est, ao contrrio, bem prximo e lhe confere poderes teis que sua natureza no tem. Jamais talvez a divindade esteve mais prxima do homem que nesse momento da Histria, pois ela est presente nas coisas que povoam seu meio imediato e , em parte, imanente a si mesmo. O que est na raiz do Totemismo so, em definitivo, sentimentos mais de alegre confiana do que de terror e de compresso." (19).

Havendo feito uma brilhante sntese das crenas e dos ritos totmicos, Durkheim prope-se a descobrir as causas e extrair as conseqncias dessa religio primitiva. Aqui suas concepes tornam-se menos objetivas, mais pessoais, prestando-se mais a discusses. Durkheim submete a explicao que prope do Totemismo sua concepo geral da religio. A religio essencialmente caracterizada pela distino do sagrado e do profano. "A diviso do mundo em dois domnios, compreendendo um tudo quando sagrado, o outro, tudo o que profano, tal o trao distintivo do pensamento religioso" (20). De outra parte, a religio um fato social. "As crenas propriamente religiosas so sempre comuns a uma coletividade determinada que faz profisso de

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a ela aderir e praticar os ritos que lhe so solidrios" (21). Pode-se, pois, definir a religio "um sistema solidrio de crenas e de prticas relativas a coisas sagradas, isto , separadas, proibidas, crenas e prticas que unem numa mesma comunidade moral, chamada Igreja, todos os que a le aderem" (22) a sociedade que, levando o indivduo acima de si prprio, produz o sentimento do sagrado. "Ela para seus membros o que um deus para seus fiis." (23) Em particular, nas sociedades australianas, o primitivo sente-se dominado, protegido, sustentado por seu cl. Depois a populao, geralmente dispersada no curso de sua existncia profana, concentra-se por ocasio de certas cerimnias religiosas, reservadas aos iniciados ou de corroboris, access-veis aos no iniciados e s mulheres. Estas reunies suscitam transportes de entusiasmo. Grita-se, canta-se, berra-se, saltase, dana-se, batem-se os boomerangs. Os sexos se acasalam contrariamente s regras habituais; os homens trocam suas mulheres... O primitivo entra, ento, em contacto com os poderes extraordinrios que o galvanizam at ao frenesi." (24) Penetra no mundo das coisas sagradas. As impresses que o indivduo ento experimenta - impresses de dependncia e de vitalidade aumentada - transportam-se do cl para o smbolo do cl, para o totem, cujas mltiplas imagens apresentam-se aos seus sentidos. O cl teve necessidade de tal smbolo que o distingue dos outros cls e que torna sensvel a unidade do grupo. O smbolo precisou ser escolhido entre as coisas e sobretudo entre os seres com os quais o primitivo teve mais contacto. Uma observao de Strehlow leva a pensar que o cl precisou tomar como smbolo "o animal ou o vegetal que era o mais difundido na vizinhana do local em que le tinha o hbito de se reunir." (25) Estudando o Totemismo no mais em suas causas, mas em suas conseqncias, Durkheim pensa demonstrar que esta religio primitiva exerceu vasta e profunda influncia sobre a vida intelectual, moral, social, religiosa da humanidade. Devemos-lhe, primeiramente, os limites em que se move nosso pensamento: espao, tempo, idias gerais ou conceitos, leis fundamentais de nossa razo. Sem dvida o indivduo percebe, imediatamente, pelos sentidos, certa extenso, notadamente por sua vista. Mas o espao homogneo, que todos os homens imaginam, de origem social, de origem religiosa. Em determinadas sociedades australianas, o espao concebido sob a forma de um crculo, pois o campo ocupado pela tribo circular, dividido em tantas partes quantos cls existem. (26) Por outro lado, a distino entre direita e esquerda liga-se a certas representaes coletivas - a mo direita assemelhada ao sagrado, a mo esquerda ao profano. (27) Sem dvida o homem tem conscincia de que nele se sucedem estados de alma individuais, percepes, lembranas, prazeres e dores, desejos,12

etc. Mas desta durao em que se desenrola a existncia de cada qual, distingue-se o tempo homogneo, comum a todos. Ora, as divises do tempo correspondem periodicidade dos ritos, das festas, das cerimnias religiosas. A cosmologia totmica exigiu a repartio dos seres e das coisas em grupos que renem a todos: da as idias gerais ou conceitos, que presidem s classificaes humanas. Ao pensamento individual impem-se os princpios da razo impessoal, isto , coletiva. Sem tais princpios, qualquer ao comum teria sido impossvel. Os ritos mimticos esto ligados crena de que "o semelhante produz o semelhante". um primeiro enunciado do princpio de causalidade - "as mesmas causas produzem os mesmos efeitos" - isto , de uma das leis fundamentais da nossa razo. O Totemismo foi ainda a origem da vida esttica. Vimos anteriormente como o culto pode tornar-se distrao, ser a fonte dos jogos e de certas formas de arte, notadamente da arte dramtica. A vida moral, social, jurdica da humanidade teve por origem a religio, a primeira das religies, a religio totmica. As proibies representam a primeira forma de leis que a sociedade impe aos indivduos. Durkheim v, finalmente, no Totemismo, a origem das idias religiosas destinadas a tomar, mais tarde, imenso desenvolvimento, idias de alma, de esprito, de Deus. Os australianos admitem que cada corpo humano abriga um ser interior, princpio de vida, uma alma. (Algumas tribos, entretanto, no outorgam alma mulher.) Cada vez, a alma de um antepassado que aparece num corpo novo. Na morte, ela entra na regio das almas voltando, depois, a encarnar-se. Os ancestrais foram seres totmicos, animais ou vegetais, ou homensanimais, por exemplo homens-cangurus. Ora, "os ancestrais so o totem fragmentado". (28) Pois da reencarnao de um ancestral que provm a alma individual, "a alma, de maneira geral, no outra coisa seno o princpio totmico, encarnado em cada indivduo"; (29) o "mana individualizado". (30) Pode-se explicar, assim, o fato de a alma ser uma coisa sagrada, oposta ao corpo, coisa profana. Nas sociedades em que o Totemismo se enfraqueceu, a alma pode ainda ser imaginada sob a forma animal: entre os ndios da Amrica do Norte, entre os Borors do Brasil, a alma concebida como sendo um urso, um cervo, um pssaro, uma serpente, um lagarto, uma abelha. Pela morte de um indivduo, ela retoma sua forma original, reencarna-se num corpo de animal. Segundo Durkheim, " da, verdadeiramente, que veio a doutrina, to difundida, da metempsicose". (31) Desencarnadas, as almas tornam-se espritos. Sua sobrevivncia indispensvel continuidade da vida coletiva. Uma parte do esprito ancestral reencarna-se no corpo da mulher; uma outra paira sobre o13

recm-nascido, protege o homem, serve de gnio tutelar. Certas almas de falecidos escolhem seu domiclio nas florestas ou nas cavernas, tornam-se os espritos da natureza. Certos espritos, considerados como tendo sido os que estabeleceram os ritos comuns a todos os cls duma tribo - por exemplo os ritos da iniciao - tornam-se verdadeiras divindades tribais. Acontece mesmo serem essas divindades conhecidas por outras tribos, cujos delegados foram convidados para as cerimnias da iniciao, "espcies de feiras internacionais ao mesmo tempo religiosas e laicas". Essas Divindades podem, desde ento, ser adotadas por estas tribos. Assim se realiza uma troca de idias e constitui-se "uma mitologia internacional". Verifica-se que "o internacionalismo religioso" no "uma particularidade das religies mais recentes e mais avanadas". (32) Por exemplo, o deus Bunjil, tornou-se a divindade adorada nas tribos de quase todo o Estado de Vitria. le tem, em todas as partes, os mesmos caracteres. um ser imortal e mesmo eterno, pois no provm de nenhum outro. Aps haver habitado a terra durante certo tempo, subiu ao cu, onde foi criado e continua a vivendo, rodeado de sua famlia... Atribui-se-lhe poder sobre os astros. Foi le que regulou a marcha do sol e da lua, aos quais d ordens. le que faz nascer o relmpago das nuvens e que lana o raio. Por ser o trovo, est igualmente em contacto com a chuva: a le a quem se dirigem quando falta gua ou quando chove muito. Fala-se dele como duma espcie de criador: chamado o pai dos homens e dizem que le os fz. (33) Eis-nos chegados - escreve Durkheim - mais alta concepo a que se elevou o Totemismo. ~ o ponto em que rene e prepara as religies que viro. (34) A teoria de Durkheim , sem dvida, a mais completa e a mais profunda das que tm sido propostas sobre o Totemismo. Em seu conjunto, ela permanece uma slida construo. Entretanto, est longe de ser a nica doutrina explicativa, desse fato religioso. Numa obra de 1920, L'tat actual du problme totmique, (35) Arnold Van Gennep enumera quarenta e trs teorias diferentes! (36) A concepo de Durkheim suscitou vivas discusses. Criticou-se especialmente a explicao sociolgica que ela d dos fatos por le expostos. Sob um ponto de vista geral, considerou-se como um postulado injustificado a identificao estabelecida por le do sagrado e do social. (37) No que se refere mais particularmente s sociedades australianas, pode-se considerar dificilmente aceitvel a explicao de toda vida religiosa atravs da necessidade que teve o cl de possuir, como smbolo, a imagem de um vegetal ou de um animal como diferenciador dos outros cls. "A desproporo flagrante entre a causa, - desejo de possuir uma14

marca, - e o efeito, i- organizao social e religiosa", escreve Ren Dussaud em sua Introduction l'histoire des religions. (38) A afirmao de Durkheim, julgando a imagem totmica mais sagrada, para o primitivo, que o prprio ser totmico, , tambm, singular. Parece normal que o carter sagrado parta do ser ou do objeto para a sua representao. A cruz no sagrada a no ser para os que consideram como divina a personalidade do crucificado. Finalmente, e sobretudo, a passagem do totem ao mana parece de difcil compreenso. Pode-se pensar, ao contrrio, que "o totem tira seu carter sagrado do mana, que a forma de incorporao talvez mais primitiva, da fora mgico--religiosa difusa, cuja existncia em todas as religies no poderia ser negada". (39) Para os membros do cl, isto seria uma espcie animal ou vegetal particular que nela concentraria o excesso do mana. (40) Se se considera, assim, a idia do mana como anterior do totem, aproximar-se- o Totemismo do Animismo, mais do que o fz Durkheim.

Captulo IIO Animismo

Por Animismo pode-se entender a religio que coloca em toda a natureza espritos mais ou menos anlogos ao espirito do homem. O Animismo foi, a princpio, chamado Fetichismo. Esta palavra foi introduzida, na histria das religies, no Sculo XVIII, pelo Presidente De Brosses (1709-1777), autor da obra Du Culte des dieux fetiches, aparecida em 1760. A palavra fetiche procede do vocbulo portugus feitio, derivado do latim facticius: por este termo, que significa coisa feiticeira, coisa encantada, dotada de fora mgica, os navegadores portugueses designavam os objetos de piedade e os instrumentos de magia dos negros. Para o Presidente De Brosses, o culto dos fetiches devia estar na origem de todas as religies. Foi essa idia e a palavra Fetichismo que o grande filsofo Augusto Comte (1798-1857) adotou, quando formulou, na primeira lio do seu Cours de philosophie positive, a clebre lei dos trs estados. Segundo le, a inteligncia humana passou, sucessivamente, por trs estados: o estado teolgico, em que o homem explica os fenmenos por vontades anlogas sua, porm mais poderosas; o estado metafsico, em que os explica por abstraes, as foras da natureza; finalmente, o estado positivo, em que os explica por outros fenmenos. No prprio estado teolgico houve evoluo: o homem comeou pelo Fetichismo, em que faz intervir espritos, benfazejos ou malsos; passou, em seguida, para o Politesmo, onde fz intervir deuses, espritos menos numerosos e mais poderosos; depois le condensa esses deuses em um nico deus: o Monotesmo.15

A crtica do Monotesmo, considerado como explicao "fictcia", isto , imaginria, levou determinadas inteligncias aos estados metafsicos e depois, positivo... Entretanto, compreendeu-se, cada vez melhor, que, mais que os objetos materiais, os negros adoram foras espirituais comparveis a espritos. Ao termo Fetichismo preferiu-se, desde logo, o termo mais exato, de Animismo. O etnlogo ingls Tylor, na segunda metade do Sculo XIX, criou a teoria do Animismo. O filsofo evolucionista ingls Herbert Spencer (18201903) aceitou grande parte de suas concepes. Tanto sbre o Animismo, como sobre o Totemismo, o grande erudito ingls J. G. Frazer fornece abundante documentao. Na Frana, ao fim do Sculo XIX e no princpio do XX, Lucien Lvy-Bruhl (1857-1939) realiza belos estudos a respeito da mentalidade primitiva. le censura aos partidrios do Animismo, o desnaturar as idias dos primitivos, assimilando-as demasiado s nossas concepes sobre a alma. Entretanto, no contesta ter havido, entre uma e outras, estreitas relaes. Reconhece, outrossim, que os primitivos adotam, de bom grado, a linguagem do Animismo quando eles prprios nos expem sua maneira de compreender o homem e a natureza; de sorte que se poderia, a quem quisesse ter uma idia exata das concepes animistas, aconselhar particularmente a leitura, tanto das seis grandes obras consagradas por Lvy-Bruhl mentalidade primitiva, (1) como do livro Morceaux choisis, em que le prprio reuniu as pginas mais caractersticas de sua obra, (2). preciso reconhecer ser impossvel separar nitidamente o Animismo das concepes religiosas que dele se aproximam. Encontram-se no Animismo algumas das teses essenciais do Totemismo: idia de mana, idia de tabu, idia de ancestrais mticos, semi-animais, semi-humanos. Por outro lado, encontram-se sobrevivncias do Animismo, como de Totemismo, em todas as religies de todos os meios. (Sero indicadas nos captulos seguintes). Entretanto, temos o direito de designar pela palavra Animismo a religio de numerosas sociedades, mais evoludas que as tribos australianas, mas que, comparadas s sociedades de antiga civilizao, parecem primitivas: por exemplo, as sociedades negras da frica no muulmana, as sociedades po-linsicas, as sociedades ndias atuais das duas Amricas, os povos esquims, etc. Convm estudar as crenas desses primitivos com referncia alma e natureza, suas prticas mgicas, suas cerimnias religiosas. Para o primitivo, a alma est estreitamente ligada ao corpo, a certas partes do corpo; para os australianos, sobretudo gordura dos rins. A alma pode, alis, deixar momentaneamente o corpo sem que este morra: ela exerce, ento, sobre ie, a alguma distncia, uma ao de presena. Frazer, em Rameau d'Or, estudou particularmente esta alma16

exterior. Mostrou que "a alma pode ser roubada, comida, transportada e, em determinados casos, substituda, consertada, reformada, etc." (3) Entre os ndios Cherokee, durante uma batalha, o chefe coloca a alma na copa de uma rvore; em vo o inimigo atira, pois le no morto nem ferido. Seu adversrio, porm, conhecedor, tambm, desse ardil guerreiro, manda atirar sobre os ramos e o chefe, ento, cai morto. Para o primitivo, "a individualidade no se detm na na periferia de sua pessoa... A mentalidade primitiva confunde-a com o prprio corpo, com o que cresce sobre le e com o que dele sai, as secrees e as excrees: cabelos, plos, unhas, lgrimas, urina, excrementos, esperma, suor... As prticas mgicas feitas nesses resduos corporais agem sobre a prpria pessoa, da qual so partes integrantes. Da, o extremo cuidado que cada qual toma, em grande nmero de sociedades, para evitar que seus cabelos ou fragmentos de unha, ou seus excrementos, etc. caiam em mos de terceiro, que possa ter ms intenes. Dispor dessas coisas dispor de sua vida. Os plos, secrees, etc. do indivduo constituem le prprio, como seus ps, suas mos, seu corao e sua cabea. Pertencem-lhe no sentido mais lato desta palavra. Chama-los-ei pertenas. "A estes elementos de individualidade, preciso acrescentar as marcas que o corpo deixa sobre um assento ou sobre o cho e, em particular, as pegadas". (4) Colocando-se uma criana nos traos deixados por um mgico poderoso, tem-se esperana de que ela participe de seu poder. Pertenas so, ainda, a sombra do indivduo, seu reflexo na gua, sua imagem (donde o receio de se ser desenhado, pintado ou fotografado, medo geral entre os primitivos). Pertena o nome: um excelente observador dos Esquims, Rasmussen, diz que, para eles, o homem compe-se dum corpo, duma alma e dum nome. Um viajante viu Fidjianos moribundos gritarem desesperadamente seu nome a fim de se manterem vivos. Pertenas so as vestes: uma mulher tendo posto sobre si a roupa suada de um homem, torna-se grvida. Pertenas, os utenslios constantemente manuseados, os objetos que um indivduo possui e que, em determinadas sociedades, queimam-se sua morte. A morte sobrevm porque a alma, princpio da vida, abandona definitivamente o corpo. Entretanto, o esprito do indivduo permanece ligado a seu cadver, com o qual convm ter-se cuidado, para que o defunto, com cime dos vivos, no se vingue deles. Os mortos tm necessidade de comer e de beber e desejos de honrarias. A mentalidade primitiva - que Lvy-Bruhl mostra ser essencialmente pr--lgica, isto , que no exclui a contradio - aceita perfeitamente que o morto esteja, ao mesmo tempo, ausente e presente, ou presente em vrios lugares ao mesmo tempo. Admitindo a "bipresena dos mortos", ela cr que estes podem, em certas circunstncias, aparecer aos vivos, embora habitando outro mundo.17

'Os mortos vivem.. . O mundo dos mortos exatamente o oposto do dos vivos. Tudo nele invertido". (5) Como, para eles, nossa noite o dia, de noite que eles voltam terra; de noite que perigoso encontr-los. No entanto, a sociedade dos mortos dividida em cls, como a dos vivos. Pode acontecer que os mortos se reencarnem. Pode se dar, tambm, que eles desapareceram definitivamente. Se se tratasse de almas puramente espirituais, elas seriam tambm imortais. Nas sociedades primitivas, porm, que ignoram estas espcies de almas, no encontramos, em nenhuma parte, crena na imortalidade. Por todas as partes acredita-se numa sobrevida, mas em nenhum lugar imagina--se a vida sem fim... A crena na morte dos mortos praticamente universal. (6) Em todo caso, enquanto eles vivem, da sua boa vontade que dependem a prosperidade, o bem-estar, a prpria existncia de seus descendentes. O mundo do primitivo feito de imagens, sempre tomadas como realidades, sejam elas recebidas durante a viglia, ou animem o sono, ou sejam evocadas a ttulo de pressgio, ou correspondam a antigas tradies. No mesmo plano que as percepes so colocados os dados do sonho, as profecias, bem como os temas de uma mitologia que se apresenta como a histria dos seres sobrenaturais. Assim so constantemente misturadas natureza e sobrenatureza. Na frica Equatorial, por exemplo, considera-se uma viagem feita em sonho como tendo sido realmente realizada. Entre os ndios, aquele que sonha ter sido mordido por serpente deve obedecer ao mesmo tratamento como se houvesse sido realmente mordido. As imagens de que constitudo o mundo exterior so penetradas por foras espirituais, ou dominadas por elas. "A palavra espirito, embora bem precisa, a menos importuna que temos para designar essas influncias e essas aes que se exercem continuamente em torno dos primitivos". (7) Esta observao de Lvy-Bruhl justifica o termo de Animismo, a despeito das repugnncias que essa palavra desperta neste exigente pensador... As disposies humanas tm seu lugar entre essas foras espirituais. Elas se exteriorizam e contribuem para determinar, por sua fora prpria, acontecimentos felizes ou infelizes. Em Taiti, um piedoso eremita faz um branco deitar-se sobre uma tnica dada por um leproso de bons sentimentos, pois esse contacto parece-lhe sem perigo: a lepra, segundo le, s contamina se o leproso tiver dio aos que dele se aproximam... Assim orientada, a mentalidade primitiva no somente pr-lgica, ela tambm mstica. dominada por uma lei que Lvy-Bruhl descobriu, a lei de participao: "Nas representaes coletivas da mentalidade primitiva, os objetos, os seres, os fenmenos podem ser, de uma maneira incompreensvel para ns, ao mesmo tempo eles mesmos e outra coisa diferente deles mesmos. De um modo no menos incompreensvel, eles emitem e recebem foras, virtudes,18

qualidades, aes msticas, que se fazem sentir fora deles sem cessar de continuar onde elas esto. (8) Por exemplo, certos ndios do norte do Brasil, os Bororos, embora se saibam gente, proclamam-se araras. Em muitas sociedades, a abundncia de alimentos e a regularidade das estaes so relacionadas com a realizao de determinadas cerimnias ou com a presena de uma personalidade que desfruta de um poder misterioso. Tornamos a encontrar aqui, no corao do Animismo, como do Totemismo, a idia desta fora impessoal, ao mesmo tempo material e espiritual, difundida por todas as partes e que na Melansia chamam mana. Segundo Kreglinger, toda a vida religiosa dos primitivos define-se pelo mana. Todos os ritos que eles executam tm, por objeto, ou defender-se dele, quando no esto preparados para suportar-lhe o contacto, ou, ao contrrio, quando sofreram a iniciao necessria, assimilar a maior parte possvel de sua substncia sagrada. O sacerdote o homem que possui mana e pode, conseqentemente, us-lo a seu bel prazer... O santurio, por seu lado, o lugar em que o mana se concentra em quantidade notvel. (9) Se foras msticas, que podem ser comparadas a espritos, animam a natureza, o homem poder exercer ao sobre ela como age sobre os seres espirituais, atravs de palavras e gestos apropriados. Tal influncia constitui o essencial daquilo que se denomina magia. Segundo uma frmula admirvel de Salomon Reinach (1858-1932), a magia "a tcnica e a estratgia do Animismo". (10) Palavras pronunciadas em voz alta ou cantadas so foras. Pode-se fazer desaparecer as doenas usando frmulas como:O papagaio voou. O cuco voou. A codorna voou. A doena voou. (11)

Imitando um acontecimento, fazmo-lo produzir. Antes de empreender uma expedio, simulam-na com todas as mincias ; danam-se danas guerreiras: a vitria fica, assim, assegurada. Derramando gua, obedecendo-se a certos ritos, produz-se chuva. o que se chama a magia imitativa. Chama-se tambm, s vezes, magia simptica que utiliza a participao que existe entre o indivduo e sua imagem. Quebrando ou destruindo a imagem, acredita-se ferir ou destruir o indivduo. o princpio da bruxaria. Viu-se, anteriormente, que se pode agir sobre outras pertenas, alm da imagem, como, por exemplo, sobre os plos, os excrementos, as pegadas do indivduo, etc. o que se chama, por vezes, magia contagiosa. Determinados objetos so dotados de poder mgico; afastam a desgraa ou produzem felicidade: amuletos, feitios, talisms.

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Quase todos os adornos com que se compraz a garridice, tanto masculina como feminina, s se transformam em enfeites aps haver, primeiro, servido de amuleto. (12) Existe a boa magia, praticada pelos chefes e pelos sacerdotes ou feiticeiros e a magia m, praticada pelos nigroman tes. Estes causam a doena e a morte; so espcies de canibais: "as vtimas dos bruxos so devoradas sem o perceberem; no lhes servem de alimento, uma vez mortas; ao contrrio, morrem porque o bruxo j as comeu." (13) Para paralisar a ao de um mau bruxo, o bom feiticeiro pratica um contrafeitio: ento - como o diz uma excelente observadora dos negros congueses, Mary Kingsley - "o esprito do remdio age sobre o esprito da doena". Sendo o bruxo um perigoso inimigo da sociedade, preciso despist-lo; o objeto de um orlio, isto , uma provao que poupa os bons e castiga os maus. Faz-se a provao, na frica Equatorial, pelo veneno, "espcie de reativo mstico" que no mortal seno para o culpado. (*) Finalmente, encontra-se, tanto nas sociedades animistas, como nas totmicas, uma mitologia, um sistema de mitos, de resto bem pouco coerentes. Os mitos descrevem uma histria sobrenatural colocada num passado longnquo, sem relao com o passado histrico. Esse passado , alis, presente.Quando os primitivos dizem que o mundo mstico est na origem de todas as coisas, tal no significa somente ser le de uma antiguidade por assim dizer transcendente e meta-histrica, mas tambm, e sobretudo, que tudo quanto existe dele proveio ou que este perodo criador... Os fatos da criao no esto vivos na lenda sob o nico ttulo de acontecimentos separados nitidamente do presente por um abismo de tempo escoado no intervalo. Uma cena mstica, por mais que esteja colocada na poca da criao, seus atores esto ainda vivos e, sua influncia, ainda dominante (14).

At os prprios Bushmen, indiferentes ao passado, vivendo unicamente no presente, possuem inumerveis mitos e lendas. O mito coloca-nos num mundo fluido, em que animais e homens esto bem prximos uns dos outros. (15) O mito permite entrar em contacto com os antepassados do perodo mtico e conseguir que sua ao se renove periodicamente. As cerimnias em louvor dos ancestrais mticos - cerimnias em que atores mascarados e em trajes especiais danam ao som de msica - so as mais surpreendentes manifestaes do culto animista.Essas cerimnias so religiosas no s pela comunho, em que os membros do grupo, atualmente vivos, se unem aos membros

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desaparecidos ou aos poderes invisveis, como tambm pela intensidade da emoo sagrada que provocam (16).

A pr-histria aplicada Europa, interpretando especialmente os desenhos, pinturas e esculturas encontradas nas grutas da Frana meridional e da Espanha setentrional, estabeleceu que os primeiros habitantes dessas regies deviam ter uma religio bem aproximada do Totemismo ou do Animismo. Essas cavernas deviam ser santurios, locais sagrados. Os desenhos, pinturas e esculturas estavam localizados no fundo mesmo da gruta como, ainda hoje, as pinturas rituais dos negros australianos so traadas sobre paredes rochosas, em lugares tabus, proibidos s mulheres e aos no iniciados. - A prpria posio das obras de arte mostra que se no trata aqui de decoraes ornamentais, mas de operaes mgicas. Desenhando, pintando, esculpindo animais, - mamutes, renas, bises, cavalos, veados - o primitivo julga exercer ao sobre eles. Representa-os feridos, a fim de serem mais facilmente atingidos por suas armas. Representa feridos apenas os machos, pois preciso respeitar as fmeas, que asseguram o futuro da raa. (17) Na caverna do Tuc d'Audobert (Arige) descobriu-se um casal de bises esculpido na argila, em alto-relvo, de sessenta centmetros de comprimento: frente, a fmea, passiva, com o pescoo esticado; atrs, o macho, meio erguido sobre as patas traseiras, "formidvel, pesado, concupiscente". Trata-se de obter, por esta representao figurada, a reproduo da espcie animal de que vivem os caadores. Os descobridores dessa obra-prima pr-histrica, filhos do Conde Begouen, encontraram nessa caverna os traos dos danarinos e danarinas de h vinte ou vinte e cinco mil anos. fixados na argila. As danas, como os cantos e a msica, deviam j ser processos mgicos. (18) Os adornos, as incises, as mutilaes, as tatuagens, podem ter sido smbolos totmicos, que permitiam distinguir cls e tribos. Certas jias devem ter sido amuletos. As primeiras artes, nascidas da magia, evoluram, em seguida, com as religies. O Animismo forneceu aos homens uma primeira hiptese que permite estudar o mundo; encorajou os primitivos de outrora, encoraja os primitivos de hoje na tentativa de agir sobre a natureza, que eles acreditam povoada de espritos anlogos aos seus. Pode-se dizer, com Augusto Comte, que le conseguiu "tirar o esprito humano de seu torpor animal." (19) Acabamos de verificar que a magia animista parece ter estado na origem do desenho, da pintura, da escultura, da dana, da msica, logo, direta ou indiretamente, de todas as artes. Se refletirmos no papel magnfico que a arte desempenha ou podia e devia desempenhar na vida21

humana, s se pode ser reconhecido a essa religio primitiva pelos benefcios por ela trazidos aos homens de todos os sculos.

Captulo IIIA religio do Egito

Segundo Augusto Comte - de quem citamos, anteriormente, a lei dos trs estados (1) - a humanidade passou, necessariamente, do Fetichismo, hoje chamado Animismo, que venera espritos existentes da natureza, ao Politesmo, que cultua vrios deuses. Os deuses assemelham-se aos espritos, mas so menos numerosos e mais poderosos. Podemos estudar bem aquela passagem particularmente no Egito. Pode-se aqui seguir a evoluo de uma religio no decurso de mais de quarenta sculos, num pas colocado no ponto de convergncia de populaes africanas e de populaes semticas, cuja fuso formou o povo egpcio. Muitas informaes sobre a religio do Egito foram-nos fornecidas pelos escritores gregos e latinos, a comear pelo historiador grego Herdoto que visitou o Egito no Sculo V antes da era crist e que escreve: "Os Egpcios so o mais religioso dos povos." Outros documentos para conhecer esta religio so de ordem arqueolgica e epigrfica, ou por outra, provm de antigos monumentos, inscries e papiros. Durante muito tempo fomos incapazes de ler os textos egpcios em caracteres hieroglficos (isto , formados de pequenos desenhos) ou em escrita cursiva, seja hiertica, isto , sacerdotal, empregada pelos sacerdotes, seja demtica, usada pelo povo. Mas, no princpio do Sculo XIX, o ingls Young descobriu que a escrita hieroglfica no era alfabtica, e que as duas escritas cursivas eram simplificaes dela. Mais tarde o francs Champolion (1790-1832) descobriu o meio de decifrar os hierglifos. Noa sculos XIX e XX, belas pesquisas arqueolgicas foram feitas no Egito por misses francesa, alem, inglesa, egpcia, americana, belga, italiana, etc. (*) Nos monumentos egpcios, descobriram-se textos que, sem possuir o carter sagrado de uma Bblia revelada, trazem preciosas revelaes sobre a religio egpcia. O Livro das Pirmides uma compilao de textos gravados em muros de corredores e de quartos das cinco pequenas pirmides de Saqqara, uma da V dinastia, as outras da VI dinastia; compreende le textos litrgicos e frmulas relativas ao destino do rei no outro mundo; algumas dessas peas so extremamente antigas. - O Livro dos Sarcfagos data do Mdio--Imprio; formado de textos escritos, em hierglifos cursivos, no interior de sarcfagos de madeira; contm frmulas destinadas a proteger os defuntos dos perigos que os ameaam num outro mundo; e a permitir-lhes a viver de maneira satisfatria. - O Livro dos Mortos data do Novo-Imprio: seus captulos estavam reunidos em rolos de papiro envoltos em tiras das mmias, e cujos exemplares22

mais bem cuidados eram enriquecidos por vinhetas. ste texto compunha-se so A obra mais autorizada a do sbio alemo Erman, Die Beligion der gypter (2) traduzida para o francs com o ttulo de La Religion des gyptiens. (3) Poder-se- ler tambm uma curta mas excelente exposio de Kreglinger, na obra anteriormente citada, tudes sur l'origine et le dveloppe-ment de la vie religieuse (pgs. 167-251) e o captulo sobre a Religio (pgs. 63-131) do livro Les Peuples de L'Orient mditerranen: L'gypte, por Etienne Drioton e Jacques Vandier (4), - a mais recente das obras que permite recolocar o problema religioso no quadro em que se situa a histria geral do antigo Egito. (5) A religio egpcia mostra-nos numerosas sobrevivncias do Totemismo; (6) um Animismo manifestado especialmente pela importncia atribuda vida futura dos mortos; um Politesmo que alguns tentaram orientar para o Monotesmo. H no Egito animais sagrados cuja espcie venerada no pas todo, como o gato, por exemplo : o persa Cambise, do Sculo VI antes da era crist, desejando conquistar o Egito, teve a habilidade de colocar, frente de suas tropas, gatos e bis, sobre os quais os egpcios no ousaram atirar. H animais sagrados dos quais toda espcie venerada em determinadas localidades, como o crocodilo por exemplo: Herdoto os viu com as orelhas e patas anteriores ornadas de jias. H animais sagrados individuais, escolhidos de acordo com certos sinais caractersticos, como, por exemplo, o touro pis, negro com uma mancha branca triangular na cabea. O Sera-peum, (*) descoberto pelo francs Mariette (1821-1881), continha os sarcfagos em que estavam colocadas as carcaas desses touros. Certos animais sagrados tornaram-se deuses ou foram igualados s divindades locais. Os deuses so sempre acompanhados por animais a eles consagrados; so sempre representados com cabeas de animais ou com certos detalhes emprestados animalidade. Horus, por exemplo, tem cabea de falco, Anbis, cabea de chacal, Toth, cabea de bis, Bstis, cabea de gata; sis tem freqentemente chifres de vaca. Khnum, deus local do Alto-Egito, "era um deus-car-neiro ou com cabea de carneiro. Sua lenda fazia-o o Criador que, em seu torno de oleiro, modelara o corpo de todos os homens". (7) Este animal-homem criador lembra bem particularmente os mitos do Totemismo. A propsito das verificaes precedentes, o historiador sueco Soderblom escreve:A histria das religies no confirma o axioma de Xenfanes e de Feuerbaeh segundo o qual os deuses so criados imagem dos homens. O divino reveste-se, em regra, de forma animal antes de adotar traos humanos. Para o primitivo, o animal muito mais misterioso que o homem. Mas em nenhum lugar o culto dos animais manteve-se com tanta tenacidade como no seio da religio egpcia. (8) 23

O Animismo foi tambm uma das crenas do Egito antigo. Os espritos animam a natureza, os astros e notadamente o Sol, as rvores, os rios e, muito particularmente, o Nilo. O antigo Egito conheceu e praticou a magia. Nele existiam amuletos, esttuas curadoras: estas esttuas possuam filtros contra as serpentes e os escorpies; quem quer que fosse mordido devia fazer correr gua sobre a cabea da esttua ; o lquido tendo passado sobre os textos gravados, adquiria virtude curativa; para a cura era suficiente beb-la. O problema da sobrevivncia dos mortos interessou particularmente os egpcios. Em sua conscincia misturam--se, a propsito, idias confusas que podem nos parecer contraditrias. Podemos esclarec-las, porm, desde que compreendamos o que era, para eles, um homem vivo. Era, ao mesmo tempo, um corpo, uma sombra, uma imagem, um nome, uma alma (ha) e o que se chamou um duplo (ha). Estes vrios elementos desempenham, ou podem desempenhar, um papel na vida futura. O corpo no deve ser mutilado, esquartejado pelos inimigos do morto; deve ser preservado de qualquer ferida, conservado por todos os meios. Desde a poca neoltica, os mortos so colocados em tmulos, com o rosto virado para as habitaes (para poder contemplar sua posteridade), a mo sempre levada boca, e com gros de trigo na mo e em torno da cabea. Muito cedo embalsamam o cadver, ou ento esvaziam-no, dissecam-no, mumificam-no. Coloca-se, ento, o cadver, a mmia, num monumento funerrio que a casa da eternidade. Sob o Antigo Imprio, sepultavam os faras nas pirmides: todo mundo conhece as majestosas pirmides de Gizeh, protegidas pela esfinge; nenhuma paisagem pode evocar, ao mesmo tempo, tanta grandeza e mistrio. As pirmides de Oizeh datam da IV dinastia, isto , do terceiro milenrio antes da era crist; as de Saqqara, das V e VI dinastias. Ao redor da pirmide real encontram-se pequenas pirmides da rainha e dos membros da famlia real e os tmulos de alguns particulares ou mastabas (esta palavra, que quer dizer banco em rabe, foi aplicada a tais sepulturas pelos operrios de Mariette). medida que o tempo se escoa, as pirmides tornam-se cada vez menores e as mastabas cada vez mais importantes. Pelo fim do Antigo Imprio e durante o Mdio e o Novo Imprio, acreditava-se proteger mais o cadver colocando-o nos tmulos subterrneos ou hipogeus. Uma vez que a imagem equivale realidade, assegura-se a sobrevivncia do morto erguendo-lhe a esttua num tmulo, de preferncia num tmulo diverso daquele que contm sua mmia. Da as maravilhosas esttuas dos faras ou de altas personalidades, obrasprimas da escultura universal, encontradas escondidas nas sepulturas egpcias, dissimuladas aos olhares. No basta que o morto sobreviva; preciso que le seja feliz tambm no outro mundo. Desde os tempos pr-histricos colocam-se, na tumba, alimentos e adornos, colares de prola, objetos de "toilette" esculpidos em marfim. Pem-se figurinhas esculpidas em relevo: mulheres vestidas ou24

nuas servindo de concubinas; escravos; uchebti, isto , fiadores que servem de substitutos do morto, se alguma divindade severa dele exigir duros trabalhos.i A obra-prima do gnero a elegante portadora de oferendas do Louvre. Alm disso, em virtude da equivalncia admitida entre a imagem e a realidade, frisos pintados no interior do sarcfago representam todos os objetos de que o morto se servia durante a vida. Baixos-relevos esculpidos e pintados mostram o defunto presidindo o trabalho de seus domnios ou distraindo-se em banquetes e viagens ou recebendo abundantes oferendas. Mas-pro, seguido por muitos egiptlogos, admite que esta ltima imagem deve criar, magicamente, para o defunto, a realidade da cena representada. O nome tem ainda mais poder que a imagem. Assegura--se a sobrevivncia do morto gravando-lhe o nome em caracteres durveis e pedindo aos sacerdotes e aos transeuntes que pronunciem seu nome. * A alma tambm imperecvel. Exprime-se esta idia por este hierglifo: um pssaro com cabea de gente. Representam-na voando no cu, prximo ao sol ou morando na terra, em osis felizes ou vivendo num mundo subterrneo.' O Livro dos Mortos d a conhecer os obstculos que os defuntos encontram no outro mundo e os meios de vencer as dificuldades. As vezes, no momento dos funerais, representam-se dramas simbolizando o triunfo do morto sobre demonacos adversrios. Sob as primeiras dinastias, s o rei parece ter o direito sobrevivncia num mundo solar; le devia, porm, para ser admitido no seio dos deuses, passar por um julgamento e provar que fizera reinar a justia na terra. O privilgio da sobrevivncia foi, em seguida, estendido aos mais importantes funcionrios. Por fim o direito imortalidade foi concedido a todos. Mas todos tiveram que comparecer perante o tribunal do grande deus dos mortos, Osris; todos foram obrigados a justificar sua conduta. s concepes religiosas misturam-se, desde logo, determinadas idias morais de valor desigual, mas das quais algumas so belssimas. O famoso Captulo CXXV do Livro dos Mortos faz-nos conhecer a confisso negativa que o morto deve pronunciar diante do tribunal de Osris:No fiz, perfidamente, mal a qualquer homem. No tornei meus prximos infelizes. No cometi vilanias na morada da verdade. No tive convivncia com o mal. No cometi mal algum. No fiz, como patro, algum trabalhar alm da sua tarefa. No houve, por minha causa, nem medrosos, nem pobres, nem sofredores, nem infelizes. Jamais fiz o que os deuses detestam. No consenti que o senhor maltratasse o escravo. No fiz algum passar fome. No causei lgrimas. No matei. No ordenei a morte traio. No menti a nenhum homem. No pilhei as provises dos templos. No diminui as substncias consagradas aos deuses. No furtei os pes nem as faixas das mmias. No forniquei. No cometi atos vergonhosos com sacerdotes do meu distrito religioso. No encareci os fornecimentos, nem os diminu. No exerci presso 25

sobre o peso da balana. No fraudei nem mesmo o peso da balana. No tirei o leite da boca dos lactentes. No roubei animais das pastagens. No engaiolei as aves dos deuses. No pesquei peixe putrefato. No recusei a aceitar a gua na poca das enchentes. No desviei gua de um canal. No apaguei a chama (dos templos) na sua hora. No fraudei as oferendas dos deuses. No repeli os animais de propriedade divina. No opus obstculo a um deus em fuga. Sou puro, puro, puro. (9)

A vinheta que ilustra ste texto mostra, em alguns exemplares, Osris sentado em seu trono e, diante dele, o defunto que colocou seu corao num dos pratos da balana tendo a Verdade por contrapeso. O deus Toth registra o resultado da pesagem. A alma que mentiu supliciada e depois aniquilada. A alma que disse a verdade "justificada" e entra para o mundo dos bem-aventurados. (10) Imortal como , a prpria alma tambm o que s chama o duplo. Assim se traduz o termo Ka que desencadeou numerosas discusses. (11) O ka parece representar o que h de mais profundo na personalidade do indivduo, e ser a emanao dum ka familiar, espcie de gnio comum a todos os membros do grupo. Esta definio aproxima o ka do totem. Inspirando-se nas teorias de Durkheim, o excelente egiptlogo francs Moret v no ka a individualizao do mana da Substncia divina. (12) A despeito das crenas na vida futura, certos egpcios entendem que a felicidade deve ser procurada unicamente na terra. - Uma to viva oposio de idias bastaria para provar a vivacidade intelectual deste povo. - "Sderblom recorda a divisa egpcia: "Vida, bem-estar e sade". (13) E Kre-glinger cita, a respeito deste tema, alguns textos interessantes. Uma mulher morta envia ao seu marido esta mensagem:Oh meu companheiro, meu maridol No cesses de comer, de beber, de embriagar-te, de gozar o amor das mulheres e de dar festas. Abandonate aos teus prazeres, tanto de noite quanto de dia! No deixes as preocupaes ocuparem o menor lugar em teu corao. Pois no pas do oeste reinam o sono e a obscuridade; u'a morada de onde jamais sairo aqueles que a se encontram. Eles dormem sob a forma de mmia e nunca mais acordaro. O deus que aqui reina chama-se extino absoluta.

E o Canto do Harpista, poptilar desde o princpio do Mdio-Imprio, isto , no terceiro milnio antes da era crist, e que era ouvido sobre as tumbas, chega mesma concluso :Segue teu corao tanto quanto queiras; diverte-te sem medida; no permitas a teu corao ficar abatido; satisfaze teus desejos, procura a felicidade enquanto estiveres na terra. Porque ningum traz os seus bens consigo. Ningum que veio at aqui jamais voltou. (14)

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Entretanto muitos outros egpcios conservaram viva esperana de imortalidade, esperana que se transmitiu s religies com as quais a religio do antigo Egito esteve em contacto. (15) -Um dos traos caractersticos da religio egpcia a importncia dada ao soberano, ao fara., -O fara est sob a especial proteo dos deuses, notadamente do deus-falco Horus (16) le participa do brilho do sol; le , muito antes de Lus XIV, o Rei Sol. le filho de deus. le deus. De onde lhe vem seu poder sobre-humano? Da hereditariedade sem dvida; e para que fosse mantida a pureza do sangue real, o soberano desposava sua irm ou sua meia-irm. Entretanto houve no somente usurpadores, mas tambm soberanos dos quais ao menos um dos pais no era de origem real. Uma fico, ento, salvava a doutrina: supunhase que o deus descera do cu e engendrara, le mesmo, o rei no seio de sua me terrestre; havia a teogamia. Alm disso,, a sagrao dava ao soberano um poder sobrenatural; as duas coroas, a do Baixo e a do Alto Egito, colocadas na cabea do novo fara, eram "as grandes magas" que lhe transmitiam o fluido divino. O soberano tem por principal dever - vimos anteriormente - fazer reinar a justia. Trata-se, segundo uma frmula surpreendente, de "fazer elevarse a Justia at aquele que criou a Justia." (17) Mas este papel social no esgota a funo do fara. dele tambm que dependem todos os fenmenos da Natureza, notadamente a marcha regular do sol e a fecundante inundao do Nilo. dele que podem provir as secas, quando os homens merecem castigo. Pois le a encarnao do Soberano ideal que criou o mundo. le deve ser adorado como deus tanto enquanto vivo, quando se identifica com o deus Horus, como aps a morte, quando se identifica com o deus Osris. Penetrada de Totemismo e de Animismo, a religio do antigo Egito ultrapassou esses estgios primitivos. Ela foi um Politesmo. Cada um dos deuses foi, primeiro, uma divindade local, transformao, talvez, de um animal sagrado, totem do grupo vencedor. le tinha naquele lugar todos os poderes. Depois o pas unificou-se: a dinastia reinante imps por todas as partes o culto de seu deus protetor, adotando como divindades acessrias os outros deuses locais. Os sacerdotes agruparam esses deuses por trs (trades) por oito (ogdoades) ou por nove (eneades) e expuseram os mitos destinados a explicar as relaes desses deuses. O que realiza a unidade da religio egpcia atravs dos sculos no a fidelidade a um texto sagrado, nem a um sistema de dogmas; a permanncia do culto, mantido pelos sucessivos faras, mesmo quando se dirige a deuses diferentes. '('A religio egpcia era essencialmente a adorao de fato dos deuses possuidores legtimos do solo do Egito. Estavam a seu principio e seu vnculo de unidade", (18)27

Entre os deuses, bastante numerosos, do Politesmo egpcio, destacamse alguns, por vrias razes. No primeiro plano coloca-se Osris, associado sua mulher sis e a seu filho Horus. Osris, deus de Busris no Delta* foi identificado, em Mnfis e em Abidos, a dois deuses dos mortos, o que fz dele o deus do Alm. A tradio ope-no ao seu irmo Seth, deus do Alto Egito: (19) trata-se de simbolizar as lutas do norte e do sul e do triunfo do Delta. A lenda de Osris, embora apresentando, em suas vrias verses, certo nmero de mincias diferentes, pode ser resumida assim: Herdeiro de um imprio que abarca a terra inteira, le a governa como soberano benfazejo; faz "cessar os combates" e reinar a justia. Ensina a indstria e as artes. Paz passar a humanidade da barbrie civilizao. Infelizmente seu irmo Seth - ou Tufo, na verso helenizada - inveja-o. Seth mata Osris, esquarteja-lhe oi corpo em catorze pedaos. sis, esposa e irm de Osris, rene seus membros esparsos e f-lo voltar vida. Deitada sobre o cadver ressuscitado, ela concebe Horus. Cria penosamente o filho, escondida nos pauis do Delta. Horus cresce, luta contra Seth, triunfa, vinga seu pai. Osris reina no imprio dos mortos. ste deus bondoso, sofredor, moribundo e ressuscitado, foi sempre, no Egito, a divindade mais popular, mais ternamente querida. le representado como um homem encerrado num maio funerrio, com a cabea coberta por alta e pontuda tiara flanqueada por duas plumas e com as carnes pintadas de verde, cr da revivescncia. Quanto a Isis, tendo em seus braos o pequeno Horus, sempre simbolizou, de maneira tocante, o amor materno. (20) Viu-se no mito de Osris um modo de exprimir a morte da vegetao seguida de seu renascimento. E aproximaram--no de outras narraes religiosas. (21) Um outro deus, R (ou R), deus de Helipolis, o deus do Sol levante, o maior deus solar. le viaja ao cu em duas barcas, tanto na do dia como na da noite. Amon, o deus da pequena cidade de Tebas, foi, a princpio, uma divindade obscura, venerada num medocre santurio. Mas quando Tebas tornou-se a capital, le transformou--se no primeiro dos deuses. Os sacerdotes de Helipolis tm a habilidade de identific-lo, ento, com R: este deus "aproveitador" chama-se, da em diante, Amon-R: Nos ltimos tempos da religio egpcia, eleva-se o deus Serpis (OsrisApis) : os Ptolomeus vem, no culto deste deus egpcio helenizado, um meio de unificar as crenas de seus sditos egpcios e gregos. O culto desses deuses era celebrado em templos considerados como suas "casas". Destinados a abrigar seres eternos, esses edifcios eram construdos de pedra, de "materiais da eternidade.'' O templo de Amon, em Tebas, tinha, sob Ramss III, mais de cinco vezes o tamanho da administrao do Sena. (*) Sob os Antoninos, a havia quarenta e dois templos de Serpis.28

Um numeroso clero dedicava-se ao servio dos templos. Dispunha le, s vezes, de imensas riquezas, sobretudo o clero de Amon, que possua vastos domnios e que participava largamente da habitual pilhagem dos povos colonizados. (22) Sob Ramss III, a fortuna de Amon compreendia 235.000 hectares, 81.000 escravos, 5.000 esttuas colocadas no mesmo p de igualdade com os vivos, e 421.000 cabeas de gado. O culto cotidiano consistia em nutrir o deus, em fazer sua "toilette", em vesti-lo. Os alimentos, servidos em bandejas, eram finalmente atribudos aos privilegiados que o rei tinha dotado de uma renda alimentcia sobre o templo. As vezes realizavam-se procisses, cerimnias rituais. Herdoto viu, noite, no lago sagrado de Sas, uma represem taco dos mistrios de Osris. Em certas festas, comiam-se bolos representando Osris. Sob a XVIII dinastia, no sculo XIV antes da era crist, um soberano de nobre idealismo e de espantosa energia, Amenhotep IV (ou Amenofis IV), quis estabelecer no Egito o Monotesmo. le adota como deus, no principal mas nico, uma divindade at ento sem importncia, Aton, personificao do disco solar. Percebendo que no poderia realizar esta reforma se vivesse em Tebas, onde a influncia do clero de Amon era preponderante, le abandonou a capital, a partir do quarto ano do seu reinado, e criou, no Mdio-Egito, uma nova cidade, Akhet-Aton, horizonte do disco solar (Tell el-Amarna). Neste Egito, em que o nome havia conservado toda a importncia mgica que le tem nas sociedades primitivas, Amenofis IV esforou-se por apagar, de todas as partes, o nome de Amon. Sem fazer desaparecer os nomes dos outros deuses, proibiu-lhes o culto. le prprio abandonou seu nome antigo, significando Amon est satisfeito e tomou o de Akhnaton, que quer dizer Esplendor de Aton. Seguindo seu exemplo, os funcionrios, instalados na nova capital, adotaram um nome atoniano. Realizou-se, assim, uma extraordinria revoluo religiosa, uma estrepitosa ruptura com o passado politesta. Quais seriam as razes do soberano! Diz-se que se tratava, para le, de quebrar o poderio poltico do clero de Amon e, tambm, que le desejava suprimir da religio as particularidades tebanas, a fim de torn-la acessvel aos sditos no egpcios do Imprio. O culto do universal Sol permitia estabelecer uma religio universal. Talvez tambm Akhnaton houvesse, muito simplesmente, obedecido a um sincero sentimento religioso. No se contentou le em destruir os cultos anteriores, mas props-se a criar uma nova religio, a religio da Vida Universal. Nela o Sol , ao mesmo tempo, realidade e smbolo : representa-se o disco solar espalhando, por todos os sentidos, raios terminando por mos.O que o rei diviniza no um ser poderoso, mas igualmente semelhante ao homem e limitado como le; no o sol fsico; so todos os benefcios que o astro espalha pelo mundo, o calor, a luz que ilumina o universo e da qual o sol o foco mais poderoso. Esta ao 29

benfica, esta energia vivificante, o fara a descobre por todas as partes a seu redor; le reconhece a interveno do seu deus, no mais somente na criao do mundo ou nos acontecimentos maravilhosos, inexplicveis, Isolados que se desenrolam a seu redor; le a percebe em todas as partes, em toda a vida que palpita na terra, em toda a beleza, em toda a alegria e toda a felicidade que graas aos benefcios que a deus esparrama sobre o mundo, so recebidos por todos os humanos que sabem contempl-lo e apreciar sua obra. (23)

O prprio Akhnaton compe, em louvor de seu deus, hinos magnficos, nos quais j ressoa o tom de um So Francisco de Assis:Apareces, brilhando no horizonte, Aton vivo! tu que j vivias antes da gnese das coisas! Quando tu te elevas no horizonte oriental, iluminas com tua beleza todos os pases! Quando apareces, grande e brilhante, esplndido e poderoso, por cima de todos os pases, teus raios beijam todas as naes at a extremidade do mundo que criaste... Embora estejas longe de ns, teus raios, entretanto, caem sobre a terra e tu te mostras aos homens, por todos os caminhos... Quando manh tu te elevas, quando durante o curso do dia envias teus raios sobre a terra, afastas a escurido e oferta-nos tua luz. Os dois pases, ento, exultam de alegria; os homens levantam-se, pem-se de p; foste tu que os acordaste. Eles se lavam, vestem-se e todos os braos te adoram quando apareces. A terra toda retoma seu trabalho. O gado se alegra com a erva que lhe ds; as rvores e os prados verdejam; os pssaros voam de seus ninhos e at mesmo suas asas adoram teu ka. As cabras saltam; as aves, todos os seres que fendem o ar com seu vo, revivem quando tu te ergues. Os navios sobem e descem as guas; todos os caminhos se abrem tua apario; os prprios peixes dos rios se arremessam para ti; pois teus raios penetram at o fundo das guas. s tu que alimentas a criana no seio da me; s tu que a acalmas impedindo-a de chorar. s tu que ds o sopro animador de toda criana que criaste, quando ela vem luz do dia. Abres sua boca quando ela comea a chorar; cuidas de sua vida. Quando o pequeno pssaro* est ainda no vo, piando em sua casca, s tu quem lhe ds o ar que o faz viver, graas a ti que le tem fora para romper seu invlucro. Como so mltiplas as coisas que criaste! Criaste a terra segundo teu desejo, quando estavas s; foste tu que a criaste, juntamente com todos os homens, os rebanhos, o gado, tudo quanto vive e caminha na terra e tudo quanto voa nos ares. Nas regies estrangeiras, na Sria, na Etipia, por todas as partes, colocaste cada homem em seu lugar e tomas cuidado com sua conservao, e ds a todos o alimento que eles reclamam... Todos os olhos te contemplam quando, Aton luminoso, resplandeces acima da terra.

Esta nobre revoluo religiosa foi acompanhada por profunda transformao moral. O Sol ilumina todas as naes, todos os homens, todos os seres. Uma parcela divina encontra-se em todos eles. Pode-se ter confiana em sua espontaneidade. "A liberdade uma das grandes idias30

da religio amarniana... A outra grande idia da nova doutrina o amor da natureza... Compreende-se que semelhante doutrina tenha pregado o amor entre as criaturas e a alegria de viver." (24) A transformao se manifesta no culto. A interveno de uma casta sacerdotal deixa de ser necessria: basta abrir os olhos para descobrir o deus benfazejo. O templo amar-niano compe-se de ptios e corredores ao ar livre; o altar principal banhado pelos raios do sol. E a arte toda se transforma. Ela feita, de agora em diante, '' de realismo e de espiritualidade... O amor da natureza encontra-se novamente por toda parte em Tell-el--Amarna: na religio, nos hinos ao sol, nas cenas de vida familiar e, finalmente, na decorao das casas. Os pssaros, as flores e os frutos no so mais considerados motivos ornamentais estilizados, mas dons infinitamente preciosos da natureza, reproduzidos com uma exatido, uma sensibilidade e um encanto indizveis." (25) Os tradicionalistas, no entanto, chocaram-se com a revoluo que se realiza em todos os domnios. O clero no aceita uma mudana social que mexa com seus interesses. A reao explode assim que morre Akhnaton, com a idade de vinte e nove anos. Seu primeiro genro reina apenas um ano; seu segundo genro submete-se ao clero de Amon, abandona Amarna por Tebas (26) e troca seu nome de Tutankaton para Tutankamon. (27) Seu sucessor, Horemheb, militar manejado pelos sacerdotes, manda destruir os santurios e apagar o nome de Aton, e restabelece, em todos os lugares, o nome de Amon. Assim chega ao fim um dos mais belos movimentos religiosos que a histria universal conhece. Desde o Sculo IV antes da era crist o culto de Isis, considerado portador de uma promessa de sobrevivncia, espalha-se pelo mundo grego e romano. Osris e Serpis dividem os favores de sis. Serpis, identificado a Jpiter, torna-se o deus preferido dos que aspiram ao Monotesmo. Nas proximidades do comeo da era crist, esses cultos egpcios, assumindo carter cada vez mais universal, suscitam vivo movimento de misticismo. Os autores latinos nos descrevem os sacerdotes de sis, imberbes e tonsurados, em tnica de linho, chamando os fiis por toques de campainha, para celebrar uma espcie de missa perante a Madona. Tornaremos a encontrar esses cultos egpcios ao estudar a religio de Roma e da Itlia latina. (28) Tambm numa edio, publicada em 1798, das lgies de Tibule, traduzidas por Mirabeau, uma nota esclarece o leitor que um templo de sis existia nos arredores de Lutcia, o Paris atual, na vila de Issy, e que um cardeal, no Sculo XVI, a havia mandado derrubar uma esttua da deusa, conservada at ento por curiosidade. (29) A religio egpcia das que no podem ser estudadas sem se experimentar um sentimento de reconhecida simpatia.31

Desde a poca mais longnqua desenvolveu-se, nos meios sacerdotais, uma vida intelectual intensa, da qual se aproveitaram tambm outras atividades, alm do pensamento religioso propriamente dito. O Egito faranico, por exemplo, foi o primeiro a servir-se de um calendrio baseado na trajetria do sol e no giro peridico das estaes, com dias de vinte e quatro horas e semanas de sete dias. "Este calendrio imposto por Jlio Cesar ao mundo romano com algumas modificaes, e reformado no Sculo XVI, pelo Papa Gregrio XIII, tornou-se o calendrio universal". Ora, le parece datar do quinto milenrio antes da era crist e ser devido aos astrnomos desse grande centro religioso, Helipolis. (30) A obrigao religiosa, impondo a construo das pirmides, ensejou a criao e o desenvolvimento da geometria. A esperana na sobrevivncia, mantida pela acalmou bastante inquietaes no Egito, durante dezenas de sculos e depois fora do Egito, quando se espalhou, no mundo romano, o culto de sis, de Osris e de Serpis. A idia de uma confisso exigida dos mortos deve ter contribudo para espalhar excelentes idias morais: a idia de que no se deve tornar infeliz o prximo, de que no se deve fazer mal a nenhum homem, de que preciso no criar em torno de si sofrimento, nem fazer chorar. E j se falou da grandeza do Monotesmo de Akhnaton, criando a idia de igualdade de todos os seres diante de seu criador, o Sol, pregando a liberdade, o amor pelas criaturas, a alegria de viver.

Capitulo IVAs religies da ndia O VEDISMO - O BRAMANISMO - O HINDUSMO - O JAINISMO - O BUDISMO

Como o Egito, a ndia (1) mostra-nos uma religio que, provinda de cultos extremamente primitivos, deles guarda numerosos vestgios, mas os ultrapassa prodigiosamente. Em nenhum lugar, alis, a humanidade conheceu mais extraordinrias realizaes do pensamento metafsico, nem aprofundou mais fundamente os mistrios da vida espiritual. As religies da ndia apresentam-nos uma mistura de abundantes sobrevivncias totmicas* e animistas e de um Politesmo que se orienta ora para o Monotesmo, ora para um piedoso Atesmo. Esta observao pode explicar, desde j, a impresso de confuso que se experimenta em face desse mundo imenso, desprovido de unidade. Visando a obter uma indispensvel clareza, somos constrangidos, aqui mais que alhures, a sacrificar certos aspectos de um real infinitamente complexo. Pode-se compreender, em todo caso, porque convm colocar a ndia, como o Egito, entre as religies primitivas como as dos australianos e polinsios e das religies mais evoludas, como as dos semitas. (2)32

Pode-se distinguir, na ndia, uma religio ortodoxa ou relativamente ortodoxa, mantida pelos brmanes desde, pelo menos, o Sculo VII antes da era crist at nossos dias, o Bramanismo,, e duas heresias do Sculo VI antes da era crist, o Jainismo e o Budismo. Grande nmero de historiadores, entretanto, distingue do Bramanismo propriamente dito (dando a essa palavra um sentido mais limitado) uma religio anterior, o Tedismo e uma religio posterior, o Hindusmo. Esta distino - que tomaremos como ponto de partida do nosso estudo - foi exposta de maneira particularmente clara por Nathan Sderblom em seu Manuel 'histoire des religions. (3) O captulo sobre a questo (pgs. 211-360) pode ser lido com interesse. Para conhecimento mais completo do assunto, preciso abordar a obra (*) de um sbio indianista alemo que nos servir tambm de guia na explorao do Budismo, H. Oldenberg: (*) Die Beligions des Vedas, traduzido por Victor Henry: La Beligion du Vda. (4) Grupos que mais tarde seriam classificados como ndo-europeus, vindos quer das proximidades do Bltico, quer da Rssia meridional, ocuparam o Ir, a Prsia moderna; (5) depois - no Sculo XVI antes da era crist (segundo a cronologia de alguns) - uma parte deles invadiu o nordeste da ndia. Estes ndo-iranianos so classificados, em alguns textos, como loiros e belos; chamavam-se rias (isto , nobres). Na ndia conquistaram eles o Pendjab, depois o vale do Ganges e, mais tarde, o resto do pas. Conseguiram dominar populaes mais ou menos trigueiras ou mais ou menos negras, mais ou menos anlogas aos atuais draviianos negros da ndia do Sul. Em que situao encontravam-se esses grupos humanos antes de dominados pelos arianos? Durante muito tempo, aceitando alguns depoimentos de seus vencedores, foram eles considerados simples brbaros. Ao contrrio, mais recentemente, o sbio hindu Bannerji e o ingls Sir John Marshall sustentaram que havia, no vale do ndus, uma notvel civilizao pre-vdica, a pelo ano 3.000 antes da era crist. (6). Indagou-se se os sumerianos - esses primeiros ocupantes da Caldeia, dos quais trataremos mais adiante (7) - no estariam na origem desta cultura; e falou-se de uma civilizao sumero-dravidiana. (8) Em todo caso, os povos submetidos estavam mais prximos que seus vencedores do Totemismo e do Animismo primitivos. Estas religies deviam estar ainda vivas ou sobreviventes, pois vestgios delas ainda hoje subsistem no somente naquilo que chamam de "supersties" das populaes mais atrasadas da ndia meridional, como tambm na religio atual, o Hindusmo. Animais sagrados destinados a conserv-la, como a vaca, o macaco, a serpente; ou prestes a se tornarem divindades com cabea de animal, como hoje o deus Ganesh, com cabea de elefante; vegetais sagrados; talvez divindades femininas, anteriores s ' divindades masculinas, como subsistem no Dekkan; carter sagrado de corpos celestes, de rios, especialmente do Ganges; honrarias votadas aos mortos; prticas mgicas; grande papel desempenhado pelo linga,33

imagem do rgo viril em ereo, que devia ser considerado como exercendo influncia mgica favorvel fecundidade universal; tudo isto so evidentes sobrevivncias totmicas ou do Animismo, que a ndia apresenta ainda hoje; pode-se, pois, admitir que esse modo de pensar e de agir l existia antes da chegada dos arianos. Indaga-se, mesmo, se no foi em tal meio que fz seu aparecimento a idia de transmigrao, conciliando o culto dos antepassados com o respeito aos animais. Quanto aos invasores, foi talvez ao Totemismo que deviam a noo de sacrifcio que tanto ocupava sua mentalidade. E acreditavam eles tambm num mundo de espritos povoando a natureza. Mas j o Animismo entre eles transformara-se em Politesmo: alguns espritos haviam se tornado deuses. Encontrou-se em Boghaz Keui, na Capadcia, um tratado de paz, datado do Sculo XIV antes da era crist entre os hi-titas (9) e os arianos, no qual existe a convocao geral dos que, dois sculos antes, haviam passado da Prsia para o Pendjab (chamam-nos no mitanianos). Ora, o tratado desig na como divindades protetoras dos mitanianos Indra, Mitra e Varuna - que sero os grandes deuses do Vedismo. (10) Define-se o Vedismo pelo livro que lhe serve de texto sagrado, o Veda ou os Vedas. A palavra Veda significa saber. uma sabedoria que se adquire atravs do ouvido, no pelos olhos. Em lugar de "est escrito", os textos usam "est ouvido". um "ouvir dizer sagrado." (11) A sua parte mais antiga, o Rig-Veda, contendo 1028 hinos, teri